Casas Enxaimel

Restauro Enxaimel Casa Fischer Paulo Volles / Stefan Pfitzner Novembro, 2009.(Rev)

Restauro Enxaimel da Casa Fischer

Fachada da Casa Fischer e a parede dos fundos que desabou durante uma reforma do telhado

Relato aqui alguns pontos que observamos durante nosso trabalho de restauro na Casa Fischer na Vila Itoupava, em Blumenau, SC. Restaurar a parte da casa que desabou foi um trabalho muito enriquecedor. Tivemos a oportunidade de aplicar as técnicas mais tradicionais do Enxaimel e de descobrir valiosas informações. Além disso, o resultado nos trouxe alivio e tranqüilidade ao ver que pelo menos parte está bem recuperada e garantida por muito tempo.

As características da casa

A casa é um raro exemplar. Possui um conjunto de linhas exatamente conforme as normas originais do Neuzeitigesfachwerk de 1800. A existência de 2 linhas horizontais, as grossas paredes e a generosa altura de suas paredes e janelas são suas principais características. Essas características e alguns detalhes da estrutura, leva a crer que o carpinteiro que a construiu era recém chegado à região. Praticamente em nenhum ponto aplicou alguma medida tropicalizada e seguiu exatamente como se fosse na Alemanha.

O reboco de estuque (barro, areia e cal) foi fixado de 2 maneiras distintas. Em algumas partes pelo tradicional uso de pregos pequenos entrelaçados por arame e outras usaram a madeira lascada pela ponta de um martelo. Na estrutura original não havia os rasgos na lateral para fixar a massa dos tijolos. Aplicaram simplesmente um prego de 3mm deixando 30mm saliente nas laterais superiores.

De acordo com o pessoal da região, a casa era um antigo comercio de frios. E analisando os fundamentos antigos, possuía outra forma de divisórias. As paredes internas atuais são da casa convertida em habitação.

Infelizmente houve a queda da parede e muito se perdeu. Alguns fatores prejudicaram sua durabilidade. -Reformas feitas por pedreiros ao invés de carpinteiros durante a década de 70 ou 80. As vigas da base da estrutura foram cortadas fora e preenchidas em seu lugar com tijolos. Desta forma, a casa perdeu sua estabilidade estrutural e a proteção contra a umidade. Apoiada diretamente sobre tijolos e sem impermeabilização, as madeiras apodrecem rapidamente.

Viga base substituída por tijolos e cimento.

-As madeiras deveriam ter recebido a cada década uma demão de betume para proteger da chuva e dos cupins. A própria viga base poderia ter resistido se tivessem dado algum cuidado.

Apodrecimento da madeira devido a falta de proteção contra a chuva e umidade

-Os pinos utilizados para travar os encaixes, eram quadrados em furos redondos. Método bastante usado na Alemanha. Há algumas vantagens neste tipo de pino quadrado em relação ao redondo: fácil de se fazer, menos atrito ao bater e dá um acabamento atraente. No entanto, um fator que não foi muito levado em conta na época. Com as chuvas, a água acaba entrando pelas frestas e se acumulando dentro dos encaixes e assim, apodrecendo a madeira. É provável que esta tenha sido a causa do colapso da parede.

Detalhe dos encaixes travados com pinos quadrados.

Trabalhos no galpão / pré montagem

Os trabalhos se iniciaram com a coleta de dados e particularidades. No local observamos alguns restos de madeiras, os tipos de encaixes utilizados, medidas existente, alterações e inclusive informações dos moradores da casa. O IPHAN nos ressaltou da importância de mantermos ao máximo a fidelidade com as peças antigas. Entretanto nem tudo era possível.

Algumas madeiras possuíam 9,2m de comprimento. Além de ser raro encontrar tal comprimento para fornecimento, ninguém se disponibilizava ou autorizava tal transporte. A solução para este caso, foi emendar as madeiras com um encaixe de época chamado Schräges Hakenblatt typ A. É um tipo de encaixe muito robusto, específico para cargas laterais, tração e pressão. Outro ponto importante é que uma das partes poderia ser encaixada no local depois que metade da parede já estivesse rígida.

Imagem: fachwerk-lehmbau.de Encaixe Schräges Hakenblatt

As madeiras utilizadas foram o Eucalipto Citriodora e o comercial Cambará. O Eucalipto tínhamos em estoque já com 1 ano de secagem e atendeu muito bem. As únicas dificuldades eram manusear com o peso e a dureza da madeira. Já o Cambará teve a necessidade de ser secado por chama e algumas peças endireitadas por calor e pressão. Ambas, após os cortes, foram tratadas com um preparado especial betuminoso contra cupins e umidade.

Peças feitas com Eucalipto Citriodora.

Elaboramos um desenho da estrutura, baseado no desenho original e inserindo algumas mudanças necessárias para a casa. A fachada original possuía 3 janelas e nas reformas anteriores, uma delas foi fechada e convertida em parede. Também uma porta foi inserida precariamente sem os encaixes necessários. Estas mudanças fazem parte do histórico da casa, de sua conversão de comércio para residência. Foram neste caso, mantidas e de forma Enxaimel correta.

Desenho de situação, contendo modificações e reformas feitas no passado.

Desenho de restaurações e alterações necessárias.

Como parte do processo de reforma, algumas peças são cortadas e ajustadas no local de montagem. No entanto, neste caso, devido a época de chuvas e ao risco da altura no local com peças tão pesadas (algumas com até 300Kg) era preciso fazer de uma forma diferente. A estrutura seria completamente montada e inclusive com os devidos furos para os pinos de madeira. Os desenhos destas peças mais importantes foram detalhados com maior grau de precisão.

Desenho técnico da estrutura. As peças a direita, foram mais detalhadas.

É importante também ressaltar a qualidade dos instrumentos de medição utilizados

para obter corretamente os ângulos e medidas. Representar corretamente as medidas nas madeiras depende de alguns fatores muito importantes: - Usar um único ponto ou linha de referencia. - Usar a mesma face externa de referencia - De uma mesma pessoa fazer todas medições. - O riscador ou lápis deve estar sempre perfeito - Usar sempre a mesma trena p medir comprimentos. - Orientar que o corte seja executado sempre da mesma forma - Observar a qualidade da madeira se é aplicável à função que a peça deverá ter. - Se possível ter mais uma pessoa supervisionando o trabalho

Da mesma forma que representar as medidas, o corte necessita uma habilidade

formidável com serras circulares. A precisão exige paralelismo e que sejam encaixes suaves. Não demasiado folgado ou apertado. Novamente ocorre a necessidade de sempre uma mesma pessoa executar os cortes de dentes. A própria prática e hábito evitam erros de corte, que acabam causando a perda total da peça. Não há como recuperar.

Todas as peças da casa foram devidamente riscadas e cortadas com serras circulares portáteis. Peças que tinham mesma aplicação e medida eram cortadas lado a lado. Em todos os cortes era feito um acabamento com uma antiga ferramenta alemã de carpinteiro, o Stossaxt, que retira as rebarbas e faz o ajuste do encaixe.

Corte com a serra portátil Acabamento com o Stossaxt Os furos pra os dentes foram feitos por uma máquina especial, trazida da Alemanha,

própria para casas enxaimel. Apesar de ser um mais rápido e preciso do que com o formão tradicional, necessitou mais atenção. O Eucalipto é muito duro, o corte levava cerca de 2 a 3 vezes o tempo normal e um erro pode danificar seriamente o equipamento. Um detalhe nas madeiras de Eucalipto, que na foto aparece escurecido devido ao tratamento já aplicado.

Corte do encaixe Detalhe do encaixe pronto

Sendo somente um dos lados da casa, pudemos pré montar toda a estrutura dentro do galpão para verificar o perfeito encaixe de todas as peças. Neste antigo e tradicional processo, montamos todas as partes e ajustamos as madeiras para que nenhuma tenha folga ou esteja desalinhada. Com a ajuda de esticadores, alguns com capacidade de até 3 toneladas, as peças foram colocadas uma a uma e de acordo com cada função e qualidade. Aspectos como rachaduras e falhas foram colocados para o lado interno. Sempre observando a condição que favoreça a durabilidade.

Uma vez acertadas as medidas, é dado um forte aperto com vários esticadores em todo o conjunto e os furos de pinos que darão o travamento definitivo são feitos.

Peças sendo colocadas com esticadores e ajustadas.

Conjunto da parede finalizado com os encaixes

O telhado possuía um detalhe interessante. Normalmente os telhados de casas Enxaimel possuem inclinação de exatos 45 graus. Mas neste, por alguma razão, possuía 43. Parece uma diferença muito pequena, mas não num telhado tão grande. Exigiu mais atenção porque boa parte dos instrumentos e técnicas tradicionais estão baseadas unicamente em medidas padrão 30, 45 e 60.

Vista lateral da parte do telhado da casa, montada pelo processo tradicional

Dispor de medidas exatas geradas pelo computador permitiu para nós reproduzir bem essa característica da casa. O construtor da casa neste caso deve ter usado um gabarito próprio de madeira. As linhas da fachada do telhado foram reproduzidas utilizando o frontal da casa como referencia. A simetria é uma característica comum nas casas Enxaimel.

Vista superior da fachada do telhado.

Como parte final dos trabalhos, é feita a numeração da peças. Este processo garante que a montagem no local final seja rápida e sem erros. As peças são marcadas em números romanos, por um formão especialmente afiado, em ordem crescente da esquerda para a direita por todo o conjunto. Esta marcação primária serve para que todas as colunas e linhas deste lado sejam colocadas em sua posição correta em relação a viga base e as peças das linhas em relação a sua respectiva coluna. Nas peças cada lado da casa recebe uma numeração iniciando por I. As colunas recebem a numeração na parte inferior. Já as peças horizontais recebem no lado esquerdo e inclusive o mesmo numero é colocado na coluna no mesmo ponto de encaixe. A numeração secundária consiste em acrescentar um segundo numero ou símbolo, que identifique o lado da casa que se destina a peça. Cada carpinteiro coloca de sua forma como uma assinatura. A ordem da numeração não implica necessariamente na ordem de montagem. A seqüência é decidida no momento pelo carpinteiro. Na casa em questão, no lado caído, não identificamos uma numeração secundária. É provável que este tenha sido o primeiro lado feito e assim, não havia necessidade ainda de se distinguir das outras. Mas encontramos uma numeração primária e a secundária bem original num dos lados. A numeração primaria foi feita de duas formas, uma com entalhes e outra com números romanos. A secundária trata-se de um X com uma linha representando o lado da casa.

Numeração primaria de um 14 e a secundária No mesmo lado o seqüencial 13 em romano

Numeração primária, sem a secundária.

IIII

II

IIIIII IV

IV

I I II II

V V

III III IV IV

VI VI

VIIIVIII

VIIVII

Como parte de nosso trabalho de restauro, adotamos o padrão de marcação tradicional em romanos. Padrão de marcações e seqüência de numeração

Marcação das peças c formão Peças marcadas e com pino.

Montagem Local

A montagem final é uma etapa interessante de se observar a praticidade e rapidez da técnica construtiva do Enxaimel. Normalmente uma montagem destas em boas condições levaria 6 a 10 horas. Mas tivemos algumas dificuldades, na preparação do local, transporte das peças e partes antigas da casa que não podíamos interferir. Iniciamos com a retirada das últimas madeiras da estrutura antiga, comprometidas pelos cupins e umidade. Foi observado que em todas as madeiras, havia somente 50% de parte sólida. Nenhuma pode ser reutilizada. Inclusive a própria retirada representava um risco para o pessoal envolvido na preparação. Aparentemente não utilizaram nenhum produto para proteger a madeira de cupins. Havia também uma antiga parede de tijolos maciços no meio da casa, que não possuía nenhuma amarração. Estava simplesmente colocada sobre as tábuas do assoalho e encostada na parede Enxaimel. Esta parede inclusive recebeu um apoio de concreto por baixo, para se manter estável durante a montagem. Na parte do fundamento, foram retirados os tijolos e argamassa para novamente colocar a viga principal. O local foi devidamente preparado com uma massa a base de cal e isolado com uma manta asfaltica de 3mm de espessura e largura suficiente para isolar toda a madeira das pedras e tijolos do fundamento.

Aplicação de manta asfáltica como isolamento / Parede de tijolos maciços .

Após a preparação, as peças foram sendo descarregadas e separadas de acordo com sua aplicação. O peso e comprimento de algumas delas dificultou a passagem por dentro da casa pelas portas e pelo piso irregular. As 2 peças mais pesadas e grossas, tiveram de ser arrastadas pelo piso. Não havia condição de usar um carrinho ou de levar pelos braços. As 6 pessoas envolvidas não foram suficientes e no pior caso até o Eng. do IPHAN, que acompanhava a obra, teve de ajudar. Logo em seguida, as peças foram sendo colocadas conforme a numeração que receberam ao fim da pré-montagem. Iniciamos pelo extremo direito, onde foi feito o encaixe com as peças antigas da casa. Felizmente os antigos encaixes estavam em bom estado. Os cupins atacaram bastante a madeira, no entanto mantiveram o cerne intacto. Em todas as madeiras que estavam expostas devida a restauração desta parede foi aplicado o nosso produto para proteção. Constatamos também que havia uma variação de 5mm na espessura de cada dente. Um padrão normal para a época. Após 4 horas, metade da parede já estava de pé, com as peças encaixadas e estável. A viga superior, de aprox 300Kg foi içada por meio de uma talha manual. A viga base foi travada junto ao fundamento c pinos metálicos.

Detalhe da viga sendo içada por talha de corrente Um detalhe na montagem da última peça. Devido as paredes laterais da casa estarem preenchidas com tijolos, não era possível terminar a montagem no outro extremo da casa. Existem 6 encaixes necessários e em 4 faces. Nossa opção foi colocar a coluna VI onde está a porta, por último. Para isso, os dentes nas peças horizontais IX , X e XI receberam cortes específicos permitindo a colocação das peças por verticalmente.

Detalhe da montagem da última peça da parte inferior.

No telhado, o trabalho necessitou mais atenção e cuidado devido ao peso das peças e o risco de queda. Todas as precauções eram tomadas e era feito sempre uma dupla checagem da peça e uma simulação antes de encaixar. Não havia como trabalhar no outro lado da parede. Uma vez que as últimas peças foram colocadas, em seguida foram travadas com os pinos. Alguns furos foram feitos somente no final porque na pré-montagem consideramos que necessitavam que a parede estivesse acomodada de acordo com o piso existente. No entanto, não houve alteração na geometria entre a pré-montagem e na definitiva. Outra observação dos pinos é que inicialmente experimentamos diversas madeiras: Itaúba, canela, Eucalipto e Cambará. Este último com melhores resultados principalmente após ser banhado em nosso produto de proteção. Ao perceber a diferença, passamos a adotar como padrão para essa obra.

Estrutura pronta após 2 dias.

Finalizações

Para finalizar os trabalhos, realizamos apenas uma inspeção na estrutura para verificar se algo foi esquecido. Foram dadas ainda as últimas recomendações aos pedreiros para aplicarem o produto em algumas partes e por fim nas madeiras externas com Betume para o tradicional acabamento preto e assim protegendo a madeira. Aos proprietários da casa informamos que o cheiro do produto que aplicamos dura até 3 meses e que nos 2 primeiros anos poderia haver ruídos da madeira se assentando.

Parede finalizada com os tijolos originais e uso de massa a base de cal Colaboradores:

Stefan Pfizner – Carpinteiro(Alemanha) Paulo Volles - Carpinteiro Arno Diel – Pedreiro Divo Pazzetto – Pedreiro Antonio Sabino – Pedreiro