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373 Dossiê Dossiê RESUMO Tomam-se as obras A genea- logia da moral, de Nietzsche, e O mal-estar na civilização, de Freud, como leituras moder- nas acerca do papel desempenha- do pelo sentimento de culpa no processo civilizatório. Algumas medidas (discutidas por ambos os autores) tomadas contra o sofrimento advindo da socializa- ção humana são focadas como diagnósticos modernos do pro- cesso civilizacional e de seu atual estado, para então, a partir da problemática dos ideais, serem traçadas algumas decorrências éticas (concernentes à psicanáli- se) diante do conflito entre indi- víduo e civilização. Descritores: sentimento de culpa; ética; interpretação; mal- estar; moral. Fundamentos DA MORAL NIETZSCHIANA AO MAL-ESTAR FREUDIANO: ALGUMAS APROXIMAÇÕES E DECORRÊNCIAS ÉTICAS Renee Volpato Viaro Luciana Albanese Valore As mutilações do homem selvagem têm sua trágica sobrevi- vência na renúncia que nos estraga a vida. Somos punidos por nossas recusas. Cada impulso que tentamos abafar fermenta em nosso espírito e nos envenena. Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray Psicólogo. Mestre em Práticas Educativas e Produção de Subjetividade pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil. Professora do Departamento de Psicologia e diretora do Centro de Estudos e Assessoria em Psicologia e Educação (CEAPE) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil.

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DossiêDossiê

RESUMO

Tomam-se as obras A genea-

logia da moral, de Nietzsche,

e O mal-estar na civilização,

de Freud, como leituras moder-

nas acerca do papel desempenha-

do pelo sentimento de culpa no

processo civilizatório. Algumas

medidas (discutidas por ambos

os autores) tomadas contra o

sofrimento advindo da socializa-

ção humana são focadas como

diagnósticos modernos do pro-

cesso civilizacional e de seu atual

estado, para então, a partir da

problemática dos ideais, serem

traçadas algumas decorrências

éticas (concernentes à psicanáli-

se) diante do conflito entre indi-

víduo e civilização.

Descritores: sentimento de

culpa; ética; interpretação; mal-

estar; moral.

Fundamentos

DA MORALNIETZSCHIANA AO

MAL-ESTARFREUDIANO: ALGUMAS

APROXIMAÇÕES EDECORRÊNCIAS

ÉTICAS

Renee Volpato Viaro

Luciana Albanese Valore

As mutilações do homem selvagem têm sua trágica sobrevi-

vência na renúncia que nos estraga a vida. Somos punidos

por nossas recusas. Cada impulso que tentamos abafar

fermenta em nosso espírito e nos envenena.

Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray

Psicólogo. Mestre em Práticas Educativas e Produção de

Subjetividade pela Universidade Federal do Paraná (UFPR),

Curitiba, PR, Brasil.

Professora do Departamento de Psicologia e diretora do Centro

de Estudos e Assessoria em Psicologia e Educação (CEAPE) da

Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil.

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Introdução1

uito já se falou de aproximações e distanciamentos entreas obras de Sigmund Freud e Friedrich Wilhelm Nietzsche.2 Emmuitos desses comentários, foram debatidas questões concernentesa “O mal-estar na civilização” (Freud, 1930/1996) e A genealogia da

moral (Nietzsche, 1887/2007). Assim, iniciamos nossa elaboraçãoao sabor das repetições, pois serão estes os textos primeiros sobreos quais nos debruçaremos com o intuito de aproximá-los, toman-do-os como leituras modernas do processo civilizatório que confe-rem lugar fundamental ao sentimento de culpa na constituição detal processo – isso para que algumas decorrências éticas referentes àpsicanálise possam ser depreendidas.

Contudo, a despeito do não ineditismo da proposta, espera-mos, em nosso comentário, contar com a fecundidade de uma repe-tição diferencial, que possibilite um horizonte de (re)significaçõesno mesmo ato em que conjura nosso discurso e seu acaso para que,enfim e paradoxalmente, possamos dizer pela primeira vez aquiloque desde há muito já estava dito, repetindo, no entanto, aquilo quejamais havia sido articulado,3 de tal sorte que possamos conduzir omal-estar de uma ética avessa à ética a expressar-se através de umacerta ruptura com a moral.

De forma geral, pode-se dizer que, nessas obras, tanto Freudquanto Nietzsche estão às voltas com o impasse da manutenção doindivíduo na cultura – manutenção, pois ambos bem concebem suainserção. De maneira semelhante, através deste impasse, ambos re-alizam uma certa leitura – mais ou menos profética – do períodohistórico no qual se encontram, da Modernidade. Trata-se, então,de visões modernas sobre um impasse que extrapola o modernis-mo, mas que apenas nele puderam ser assim formuladas. Ressalta-mos tal aspecto por considerá-lo, em parte, esclarecedor das seme-lhanças entre duas obras cujas publicações distam quase meio século,sem que haja qualquer referência da mais tardia à primeira. Os tex-tos em pauta podem ser aproximados se tomados como hermenêu-ticas modernas, tal como em Foucault (1980), capazes de represen-tar os modos de análise desses autores – modos de análise cujopotencial para (re)situar perspectivas históricas (sejam elas do pa-ciente, da civilização ou do valor dos valores morais) configurametodologias capazes de reposicionar perspectivas acerca de nos-

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sas próprias análises, de nossos pró-prios distanciamentos e aproxima-ções, inclusive dos realizados aqui.

Método(s)

Se Freud busca fazer de seu mal-

estar a fundamentação da relação tor-tuosa entre indivíduo e cultura, Niet-zsche, por sua vez, busca com sua

moral investigar sua própria origem,de maneira a criticar o valor dos valo-res morais (e a ambiguidade da cons-trução frasal não é, logicamente, gra-tuita). Contudo, suponhamos apossibilidade de abandonar a parcia-lidade de nossa leitura, suspendendo-a com o uso de um jargão tranquili-zador: impressões pessoais à parte, o fatoque buscamos formular é o de que osautores, cada um a sua maneira, de-senvolvem suas ideias por meio deuma gênese interpretativa.

Esta gênese não escapou a umcerto comentário a respeito dos en-contros e desencontros entre as téc-nicas de interpretação de Freud,Nietzsche e também de Marx.Referimo-nos à fala de Foucault(1980), intitulada Nietzsche, Freud e

Marx, apresentada em 1964 num co-lóquio sobre Nietzsche: ali, Foucaultelegeu estes pensadores como aque-les que fundamentaram a possibilida-de de uma hermenêutica específica –a hermenêutica moderna. Nietzschee Freud estariam, assim, alinhados namedida em que, juntamente com

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Marx, nos teriam colocado numa po-sição incômoda, visto que suas técni-cas de interpretação nos dizem res-peito, e já que nós, como intérpretes,teríamos que nos interpretar a partirdestas técnicas. “E é a partir destastécnicas interpretativas, que pelo nos-so lado, devemos interrogar aos in-térpretes que foram Freud, Nietzschee Marx, ainda que sejamos perpetua-mente refletidos, num perpétuo jogode espelhos” (Foucault, 1980, p. 10).Em nossa leitura, interpretamos in-terpretações eminentemente moder-nas, estando situados num dado tem-po e lugar, vale lembrar. Destarte, aoposicionarmos os olhares de Freude Nietzsche no âmbito de gênesesinterpretativas modernas, não faze-mos menção a qualquer busca de ori-gens puras, essenciais, cuidadosa-mente recolhidas em si mesmas, ouainda resguardadas numa forma an-terior a tudo o que é externo e, as-sim, verdadeiras em si. Preferimos,antes, interpretar seus olhares comojogos de astúcia que, diante do vazioda gênese, em vez de recuarem aoconforto daquelas “origens puras”,propõem-se a forjar, a lançar ponte(por meio do homem) e a construir(em análise).

No início de “O mal-estar na ci-vilização”, ao se debruçar sobre o sen-timento oceânico, Freud afirma quenão tem nada de decisivo a sugeriracerca de tal experiência, mas que,diante de semelhante fato tão estra-nho ao contexto de sua psicologia, “setorna justificável a tentativa de des-

cobrir uma explicação psicanalítica –isto é, genética – para esse sentimento”(Freud, 1930/1996, p. 74, itálico nos-so). Na sequência, afirmará que o ego“deve ter passado por um processode desenvolvimento, que, se não pode

ser demonstrado, pode ser construído comum razoável grau de probabilidade”(Freud, 1930/1996, p. 75, itálicos nos-sos). Desta forma, Freud exibe algo(com toda a consistência clínica quelhe é própria) do processo de desen-volvimento egoico para afirmar queo sentimento oceânico remete a umestado primário do ego, anterior à di-ferenciação do mundo externo. O quequeremos deixar patente aqui é o ca-ráter eminentemente interpretativo daavaliação freudiana sobre o desenvol-vimento individual, sobre ahistoricidade do sujeito. Umahistoricidade interpretada, construída,não factual, não demonstrativa, é oque Freud desenrola.

A reconstrução interpretativa dopassado pode ser agora menos apre-endida e mais inferida quando Freudexpõe a analogia entre a questão dapreservação na esfera da mente e asRomas de diversos tempos. Esta ana-logia revela algo da marca interpreta-tiva da construção psicanalítica dopassado, marca que permite ao ob-servador “apenas mudar a direção doolhar ou a sua posição para invocaruma visão ou outra [da cidade]”(Freud, 1930/1996, p. 79).

A equiparação entre explicaçãopsicanalítica e genética está presentenovamente quando Freud aponta “a

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maneira descuidada com que a linguagem utiliza a palavra ‘amor’”(Freud, 1930/1996, p. 108). Mais uma vez, as origens profundas deum sentimento serão demarcadas nos meandros de um processocheio de retrocessos que inibe a finalidade do amor plenamentesensual, bastando “apenas mudar a direção do olhar ou a sua posi-ção para invocar uma visão ou outra [do sentimento amoroso]”(Freud, 1930/1996, p. 79).

Assim, aquilo que Freud nomeia como genético associa-se a todoo processo de desenvolvimento (na maior parte das vezes, individu-al) de uma determinada instância psíquica, sentimento ou caracte-rística mental qualquer, processo este marcado por vicissitudes quea explicação psicanalítica – isto é, genética – buscará elucidar comrazoável grau de probabilidade (e historicidade interpretativa, acres-centemos). Nossa insistência neste aspecto se deve ao objetivo des-te trabalho: aproximar algo dos pensamentos de Freud e Nietzsche(sem fazer crer uma identidade, mas sim algumas proximidades),pois se Freud faz uso de uma genética, Nietzsche faz uso de umagenealogia.

Já no prefácio de A genealogia da moral, Nietzsche (1887/2007)aponta que a leitura de seu livro exige do leitor uma “ruminante artede interpretação” (da qual, segundo o autor, o homem modernocarece), sem a qual seus aforismos não podem “ser decifrados”.Com isso, Nietzsche nos faz ocupar a posição que ele mesmo ocu-pa diante das origens dos preceitos morais, isto é, nos faz interpre-tar uma realidade já transcorrida estando munidos apenas de nossaevidente limitação num “aqui e agora”. Adiante, no aforismo 12 doTerceiro Tratado, Nietzsche afirma necessitar de um senso históri-co para empreender sua pesquisa, senso esse que, muito antes devisar a uma objetividade factual, se apodera das “limitações” às quaisnossa perspectiva está sujeita para invocar uma visão que difere da-quela a que estamos habituados:

o querer ver de modo diverso dos outros, não é pouca disciplina nem pouca prepa-ração do intelecto para sua futura “objetividade”, entendendo por essa palavranão a “contemplação desinteressada” (que é um monstro intelectual e um contra-senso), senão a faculdade de dominar o pró e o contra, servindo-se de um e deoutro para a interpretação dos fenômenos e das paixões úteis para o conhecimen-to.... Só há um ver em perspectiva, um conhecer em perspectiva; mais deixamosafetos tomar a palavra a respeito de outra coisa, mais sabemos dar-nos olhos,olhos diferentes para essa mesma coisa, e mais nosso “conceito” dessa coisa, nos-sa “objetividade” serão completos. Mas eliminar a vontade em geral, suprimir

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inteiramente as paixões – supondo que issofosse possível – como? Isso não significariacastrar o intelecto? (Nietzsche, 1887/2007, p.116, itálicos do autor)

É nesse sentido que Nietzschepropõe sua “metodologia histórica”(como chama a genealogia), calcadanum “querer ver de modo diverso”,nessa vontade peculiar. Para tanto, aolongo dos aforismos 12 e 13 do Se-gundo Tratado, o autor opera umadistinção simples, porém fundamen-tal: ao versar sobre o castigo, explicitaa diferença entre origem e finalidade.Nietzsche atenta para o entendimen-to corriqueiro (mesmo para algunsestudiosos) que descobre no castigouma finalidade qualquer – por exem-plo, a vingança – e coloca esse fim naorigem, na causa dele, como se o cas-tigo tivesse sido criado justamentepara vingar ou punir. Quebrando comessa lógica, o autor aponta para a sig-nificativa distância entre a causa deemergência de algo – sua origem – ea aplicação que lhe é dada – sua fina-lidade. Uma vez criado, o procedi-mento “não cessa de ser interpretadoem função de novas intenções por umpoder que lhe é superior, de se verreconfigurado e reordenado paranovo uso... [o procedimento é subju-gado, dominado] e toda dominaçãoequivale a uma interpretação sucessi-va” (Nietzsche, 1887/2007, p. 73).Assim, o procedimento se constituienquanto uma origem, uma anterio-ridade de algo duradouro que sofre aintrodução de novos sentidos pormeio de interpretações sucessivas;

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uma origem que, se sobreposta à fi-nalidade, viria a configurar o equívo-co de considerar o sentido último doprocedimento como o equivalente deseu surgimento, o que favoreceria aprecipitação de um olhar objetivistaavesso à interpretação, uma vez que,ao fazer a equivalência finalidade =origem, perde-se de vista justamentetoda a história constitutiva do proce-dimento – e a mobilidade (a nosso ver,interpretativa) que ele comporta. Istoporque, se o procedimento é dura-douro, o sentido é o que há de maisfluído: ele acompanha a direção deuma síntese do passado histórico da-quela coisa, de suas diversas represen-tações, síntese esta difícil de definir,pois, de acordo com essa visão, “sóse define o que não tem história”(Nietzsche, 1887/2007, p. 76). Nãoseria, então, por mero acaso que Freudconstrói ao invés de demonstrar. Combase no mencionado, fica evidente ocaráter violento que a interpretaçãotem sobre a realidade, violência forteo bastante para suplantar uma finali-dade, um sentido, em prol de outra.É a trilha dessa vontade de subjuga-ção e dominação, dessa vontade de po-

der, que intervém em todo processode produção que Nietzsche segue emsua genealogia. Vale ainda mencionaro caráter hostil e cruel que atribui pra-zer à agressão, à mudança e à destrui-ção, que a vontade de poder compor-ta: é necessário destruir o instituídopara que uma nova visão possa advir– processo prazeroso, nos dizNietzsche.

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Julgamos que, em sua genealogia, Nietzsche realiza uma análi-se histórica relativamente ampla que remete a classes sociais, povos,épocas, bem como a seus respectivos valores, costumes e usos de si.Em síntese, pode-se dizer que “a moral será encarada de um pontode vista histórico, o que a retira imediatamente da esfera do absolu-to” (Vieira da Silva, 2000, p. 44). A partir desta amplitude, ou me-lhor, desta análise histórica de coletividades, o autor eventualmenteestabelece categorias individuais que lhe permitem concluir algosobre o sujeito moderno, encarando-o como o produto mais recen-te e não linear deste processo. No método de Nietzsche, a passa-gem se dá do coletivo para o individual. Freud, ao se dedicar a seusestudos socioantropológicos, segue o mesmo caminho, mas em sen-tido inverso: com base na construção singular que a clínica lhe pro-porciona, busca conceber o âmbito coletivo como dedução e emanalogia com o individual. O autor expressa tal movimento algumasvezes em “O mal-estar na civilização” (Freud, 1930/1996): “nãopodemos deixar de ficar impressionados pela semelhança existenteentre os processos civilizatórios e o desenvolvimento libidinal doindivíduo” (p. 103) – filogênese e ontogênese (não numa acepçãoestritamente cientificista, como indica Mariguela [2001]) servindocomo pontos de apoio mútuos para a elaboração da hermenêuticavisada. Inverte-se o sentido do pensamento, mas permanece o mé-todo interpretativo histórico: Freud, tributário de uma gênese daindividualidade; Nietzsche, de uma gênese da coletividade, por as-sim dizer. Hermeneutas da gênese, pensadores que metodologica-mente rumam em direções diametralmente opostas, um buscandoalcançar o ponto de origem do outro numa mesma via de mão du-pla chamada Modernidade.

Gêneses do m(or)al-estar

Vejamos agora aquele que foi o ponto de partida para a execu-ção deste trabalho, isto é, o desenvolvimento que cada autor atribuiao sentimento de culpa. Seremos sucintos, pois, sob determinadoângulo, ambas as obras podem ser tomadas quase que por inteirascomo uma investigação da origem do sentimento de culpa, de suascorrelações e implicações.

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No capítulo VII de “O mal-es-tar na civilização”, Freud formula aorigem da consciência como prove-niente da introjeção da agressividade,ou seja, de seu retorno ao lugar deonde proveio, ao ego, origem cujopropósito maior é possibilitar e favo-recer a ordem civilizatória frente àinclinação originária à agressividadedo ser humano. A consciência moralassim formada, ou superego, assumea agressividade que o ego inicialmen-te dirigia ao mundo externo e volta-acontra o próprio ego gerando umatensão entre este e o superego, ten-são denominada sentimento de culpae que se expressa por meio de umanecessidade de punição.

Seguindo os passos de Freud,detenhamo-nos um pouco mais naorigem deste sentimento tão caro àtradição cristã. Freud é claro e didáti-co ao postular duas origens para osentimento de culpa: remontando aocomplexo edípico, o autor frisa umprimeiro momento no qual a criançarenunciaria a levar a cabo a realizaçãode um impulso devido ao medo quea autoridade externa lhe imputa; ou,ainda, graças ao medo de perder oamor dessa figura de autoridade e todaa proteção que isso implica (e, porconseguinte, encontrar-se sujeita aosgolpes de sua fúria, em desamparo),a criança aceita ceder em sua açãosatisfatória. A tensão aqui estabeleci-da entre o infante e a autoridade ex-terna é chamada por Freud de má cons-

ciência, um estado que exige, porparte do primeiro, “apenas” a renún-

cia à satisfação pulsional. Contudo, nasequencia do desenvolvimento infan-til, esta autoridade, alvo de amor eódio, é conduzida, ela mesma, a es-tranhos caminhos nesse deserto ple-no de miragens que é o complexo deÉdipo; a inatingível autoridade exter-na é internalizada pela criança pormeio de uma poderosa identificação,em que o investimento energético di-rigido aos objetos incestuosos se vol-ta contra o sujeito, precipitando umamodificação – parte consciente e par-te inconsciente – em seu aparelhopsíquico, que toma posse da quota deagressividade contida naquele inves-timento empregando-a contra o pró-prio ego do sujeito. Diante da inte-rioridade do superego formado, arenúncia à satisfação pulsional não émais suficiente para livrar o sujeito datensão com a autoridade, pois, umavez introjetada, a autoridade estaráapta a identificar até mesmo as maisescusas intenções que nunca seriamlevadas a cabo, mas que serão, aindaassim, severamente supervisionadas etaxadas como dignas de punição, umavez que suas origens inconscientespermanecerão ativas e evidentes àautoritária voz interior. Acerca da ten-são entre o ego e a autoridade inter-nalizada, fala-se não mais em máconsciência, mas em sentimento deculpa propriamente dito.

Graças à continuidade entre aautoridade externa e a interna, inten-ção equivale a ação, e a renúncia à sa-tisfação pulsional não mais livra o in-divíduo da punição que pagaria caso

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tivesse se satisfeito, sendo que, para-doxalmente, quanto mais o indivíduose submete ao seu superego, renunci-ando a suas satisfações e acatandopara si o Crime e o Castigo decorren-te, mais severo e exigente o supere-go se torna, uma vez que é ele quemse apodera do impulso renunciado,fortificando-se diante do ego ma-soquista.

Recorrendo ao mito antropoló-gico de “Totem e tabu”, Freud recriauma espécie de suposta primeira en-cenação edípica para explicar ainevitabilidade da culpa no caso de osujeito levar a cabo seu impulso, eli-minando a autoridade externa quepretende barrar sua satisfação. Nessecaso, devido à ambivalência dos sen-timentos dirigidos ao pai totêmico(ambivalência que se encontra igual-mente no ordinário complexo deÉdipo), após a execução do ato deódio sobrevém, juntamente com oamor, o remorso por tal ato e a iden-tificação reparatória que erigirá osuperego (paralelamente, ocorrerá ainstauração de uma lei entre os paresdaquela comunidade).

A entrada do ser humano no pro-cesso civilizatório é análoga à entra-da do indivíduo na cultura e propici-ada pela ambivalência constitucionalentre os impulsos eróticos e agressi-vos da espécie. De tal forma, quandoconsiderado em sua relação com aambivalência edípica, o sentimento deculpa aparece não somente como ine-vitável, mas como necessário para aexecução do projeto civilizatório.

Agregar unidades implica o estabele-cimento de vínculos afetivos que su-primam a agressividade. Para Freud,o homem está fadado à introjeçãodesta agressividade, ou seja, fadado àculpa: “Enquanto a humanidade nãoassume outra forma que não seja a dafamília o conflito está fadado a se ex-pressar no complexo edipiano, a es-tabelecer a consciência e a criar o pri-meiro sentimento de culpa” (Freud,1930/1996, p. 135).

A interpretação freudianaexplicita (ou planta?) as raízes para ofundamento da cultura, alocando umaverdade profunda acerca da gênese daconsciência e do sentimento de culpana ambivalência do terreno edípico:“a alguns é concedido salvar, sem es-forço, do torvelinho de seus própri-os sentimentos as mais profundasverdades” (Freud, 1930/1996, p. 136).Freud, um homem moderno – de ver-

dade.Enquanto Freud percorre a sinu-

osa via da impossibilidade constitu-cional da felicidade humana para che-gar à formulação de uma consciênciamoral advinda da internalização daagressividade, Nietzsche trilha outrocaminho para chegar a uma formula-ção um tanto semelhante. Vejamos.

De forma geral, Nietzsche dedi-ca todo o Primeiro Tratado de seu li-vro à elaboração de uma etiologiasociopolítica dos sentidos dos valo-res que intitulam este tratado: “Beme mal” – “Bom e mau”. O autor vaiesclarecendo o ponto de vista queassocia historicamente a qualidade de

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“bom” à nobreza e a de “mau” à ple-be; vai reconhecendo como “se per-petua ainda e muitas vezes, nas pala-vras e nas raízes que significam ‘bom’,o matiz principal pelo qual os ‘nobres’se tinham por homens de classe su-perior” (Nietzsche, 1887/2007, p. 27);vai deslizando na superfície do olhara transformação de um conceito emi-nentemente político (sobre a nobre-za, ou melhor, sobre a superioridadede poder de uma classe) num concei-to psicológico (que molda a nobreza

da alma num traço de caráter).Contudo, o sentido dessa “no-

bre bondade” não é ainda aquele quereconhecemos hoje quando evoca-mos um “bem”. Nietzsche apontauma virada decisiva, um golpe judeude ressentimento diria o autor, queinverte a fórmula greco-romana so-bre o “bom” e o “mau” para associarà pobreza e à miséria a qualidade do“bom”, do abençoado por Deus, e ànobreza a qualidade do “mau”. Se-gundo Nietzsche, no coração dessareviravolta de valores judaica está asemente do ódio e do ressentimentode Israel contra Roma, semente daqual vigora a árvore de um novoamor, o mais sublime, profundo e ide-al amor que será acolhido pela tradi-ção cristã. É curioso observar que,também para Nietzsche, é uma espé-cie de “árvore ambivalente” (que vai doódio ao amor) que produzirá o frutodo pecado tributário da consciênciamoral. Findado o Primeiro Tratado,o autor abordará aspectos do proces-so civilizatório em si, que fundariam

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as condições de possibilidade do “bom” e do “mau” como vistoimediatamente acima.

Educar um animal capaz de fazer promessas, eis a tarefa para-doxal que a natureza se impôs com relação ao homem. Para isso, énecessário tornar o homem uniforme, semelhante, regular e, porconseguinte, calculável. Entra em ação aquilo que Nietzsche nome-ará moralidade dos costumes, ou seja, o trabalho pré-histórico do ho-mem sobre si mesmo na moldagem de uma “camisa de força” soci-al. Tais aspectos serão mais bem desenvolvidos na sequencia. Paraprometer, foi necessário aprender a lembrar, e aqui o melhor instru-mento para a memória foi a dor capaz de deixar marcas indeléveis.Nietzsche aponta para o alto preço que o animal humano pagoupara se tornar civilizadamente razoável – e Freud provavelmentenão discordaria da assertiva.

Um dos próximos itens no rol do processo civilizatório é ocastigo (Nietzsche descreve outras experiências fundamentais, comoa relação credor-devedor, mas nos concentraremos naquelas imedi-atamente relacionadas a nossos fins). O castigo é colocado comoparte da primeira linha de barreiras que a organização social cons-truiu para se defender contra os instintos de liberdade do indivíduo,barreiras estas que propiciam a origem daquilo que Nietzsche cha-mará de má consciência. É importante notar que, apesar da semelhan-ça entre os termos, a má consciência de Nietzsche não correspondeà de Freud: este usa o termo para designar o momento em que osentimento de culpa se relaciona exclusivamente com o medo daperda do amor da autoridade externa, momento em que a renúnciapulsional diante desse referencial externo é o suficiente para prote-ger-se do desamparo e aplacar a culpa; Nietzsche, porém, quandofala em má consciência, está se referindo a algo muito mais próxi-mo daquilo que Freud nomeia como sentimento de culpa propria-mente dito. Nietzsche associa a má consciência a um “sofrimentointerior” e ao “sentimento de culpabilidade”. Vê-se que seu enten-dimento acerca da má consciência já remete a uma interioridadeculpabilizada.

Se o castigo é parte das barreiras sociais impostas contra osinstintos de liberdade do indivíduo, não devemos confundi-lo coma origem mesma da má consciência. Lembremo-nos da distinçãometodológica nietzschiana entre origem e finalidade. O castigo nãosurgiu para despertar ou expiar a culpa – a associação entre castigoe culpa é uma interpretação posterior de um procedimento mais

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antigo. De acordo com o autor, antes de se relacionar à culpa, ocastigo se destinou a domar o homem, a torná-lo frio, resistente, aaumentar sua prudência. O golpe do castigo era visto como umafatalidade irresponsável, como a irrupção brutal de um imprevisto,um fenômeno natural que o indivíduo entendia como um “não foisenão um acidente”, em vez de transmitir (como transmite hoje)um “eu não devia ter feito isso”. O castigo apenas domava o ho-mem, não se propunha a torná-lo moralmente melhor.

O advento de uma moralidade internalizada através da qual oindivíduo passa a se ver como responsável pelo golpe recebido, oumelhor, o advento da má consciência acontecerá somente (e aquijulgamos encontrar um dos pontos de maior aproximação entrenossos autores) com a volta dos instintos reprimidos pela civiliza-ção contra o próprio homem. Vejamos melhor.

Nietzsche apresenta esta ideia chamando-a de “minha própria

hipótese acerca da origem da ‘má consciência’” e continua dizendoque considera a má consciência

como a profunda doença, na qual o homem que devia ter caído sob a pressão damais radical de todas as modificações que viveu de maneira geral – a modificaçãoque sobreveio quando se viu definitivamente prisioneiro da feitiçaria da socieda-de e da paz. (Nietzsche, 1887/2007, p. 80, itálico nosso)

Tamanha modificação obrigou o indivíduo a, de repente, re-nunciar a seus instintos de liberdade quando eles mesmos não havi-am renunciado às suas exigências:

era difícil e raramente possível satisfazê-las; era preciso procurar satisfações no-vas e subterrâneas. Todos os instintos sob a enorme força repressiva, volvem paradentro, e a isso chamo interiorização do homem; assim se desenvolve o que mais tardeserá chamada “alma”. (Nietzsche, 1887/2007, p. 80, itálicos do autor)

Eis a interioridade surgindo com a inibição da exteriorização:as barreiras sociais propiciaram que os instintos do homem se vol-tassem contra o próprio homem, dando origem à (má) consciência.Não bastassem tais semelhanças entre as gêneses freudiana enietzschiana da culpa, nesta última, o autor ainda arremata dizendoque os instintos de liberdade (ou a vontade de poder) aos quais serefere são “a hostilidade, a crueldade, o prazer em perseguir, naagressão, na mudança, na destruição, [e que] tudo isso se dirigiacontra o detentor desses instintos; [que] essa é a origem da ‘má

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consciência’” (Nietzsche, 1887/2007,p. 81). Passemos a palavra a Freud:

Na literatura analítica mais recente, mostra-se predileção pela idéia de que qualquer tipode frustração, qualquer satisfação instintivafrustrada, resulta, ou pode resultar numa ele-vação do sentimento de culpa. Acho que seconseguirá uma grande simplificação teóri-ca, se se encarar isso como sendo aplicávelapenas aos instintos agressivos, e não se en-contrará nada que contradiga essa afirmação.(Freud, 1930/1996, p. 141, itálico do autor)

Um pouco antes desta passagem,Freud afirma que sua intenção é “re-presentar o sentimento de culpa comoo mais importante problema no de-senvolvimento da civilização” (Freud,1930/1996, p. 137). Nietzsche, na se-quencia do que estava sendo expostoacima, diz que, com a má consciên-cia,

foi introduzida a maior e mais inquietantedoença, da qual a humanidade não se curouaté hoje, o sofrimento suscitado no homempelo homem, por ele mesmo, conseqüência de umaruptura violenta com o passado animal, deum salto e de uma caída, por assim dizer, emsituações e condições de existência novas, deuma declaração de guerra contra os antigosinstintos que antes constituíam sua força eseu temível caráter. (Nietzsche, 1887/2007,p. 81, itálico do autor)

Difícil não nos lembrarmos dasnotas freudianas sobre um curiosoconceito, a saber, uma repressão orgâni-

ca que entrou em ação para que ohomem pudesse se defender de umafase do desenvolvimento superada(um “passado animal”) e do papel da

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adoção da postura ereta nesse ínte-rim. Então, foi de fato “preciso an-dar a pé, a ‘levarem-se a si mesmos’”(Nietzsche, 1887/2007, p. 80) paraque a civilização vingasse?! Segundoesses pensadores modernos, sim.

Mas não somente. Se para Freudo advento da consciência (enquantointernalização da autoridade parental)está intimamente ligado às necessida-des religiosas e ao medo do podersuperior do Destino (e de Deus), paraNietzsche tal advento foi tão novo,enigmático, profundo e pleno de fu-turo que

faltavam espectadores divinos para apreciaro espetáculo que começou assim.... Desdeentão o homem, entre golpes de sorte, ines-perados e apaixonantes, veio figurar comopersonagem do jogo da “criança grande” deHeráclito, que tem por nome Zeus ou acaso.(Nietzsche, 1887/2007, p. 81)

Civilização moderna

Nietzsche e Freud, ao se debru-çarem sobre o processo civilizatório,encontram em seu cerne um mesmoelemento nevrálgico: a culpa. Disse-mos que a culpa é “encontrada” naproblemática civilizatória. Contudo,ainda em tempo, preferimos pensarque a culpa pôde ser assim constituí-da (como o grande problema ou do-ença) não no cerne da civilização, mas,antes, no cerne da modernidade. Ve-mos esse momento histórico como

um momento profícuo na reunião dascondições de possibilidade necessá-rias para semelhantes enunciações.Sem nos atermos à história em si (oque, sem dúvida, geraria interessan-tes reflexões), continuaremos salien-tando algumas similaridades e conti-nuidades dos pensamentos de Freude Nietzsche, que os aproximam en-quanto espíritos modernos às voltascom um diagnóstico civilizacional,por assim dizer. Para isso focaremosalgumas medidas, problematizadaspor esses autores, que a cultura crioupara lidar com seu mal-estar. Toma-remos a liberdade de utilizar diversaspassagens do texto de Freud a fim deaproximá-lo do de Nietzsche e vice-versa (como vem sendo feito desde oinício do trabalho).

Ambos os autores designam umespaço de suas obras para a reflexãoem torno da religião. É assim queFreud abre seu texto, indagando osentimento oceânico e suas relaçõescom a religiosidade. Sua conclusão éde que tal sentimento se refere, narealidade, a resquícios de um estadoegoico anterior, que remeteriam a umnarcisismo onipotente que, posterior-mente, no decorrer do desenvolvi-mento do sujeito, seria vinculado àatitude religiosa (eis uma bela genea-logia, diríamos com Nietzsche: umadiferenciação entre uma origem e umafinalidade atribuída a posteriori). Freuddirige críticas implacáveis à religiosi-dade, estabelecendo-a como umamedida paliativa capaz de provocarilusões, ou melhor, delírios de massa

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diante da dura e árdua realidade davida.

Se Freud aponta a religiosidadecomo uma dentre várias medidas pos-síveis no evitamento da dor e dodesprazer, e na busca da felicidade edo prazer, Nietzsche se detém umpouco mais nesse ponto, indicando areligiosidade (ou a atitude sacerdotal,como a nomeia o autor) como berçode diversas práticas (fármacos, dizNietzsche) contra a doença da civili-zação. O sacerdote agiria como omédico de seu rebanho delirante,prescrevendo um conjunto de práti-cas que, segundo Nietzsche, comba-te os sintomas do sofrimento advindoda socialização do homem, mas nãosuas causas. A primeira de tais práti-cas é o rebaixamento do sentimentode vida, tipicamente cristão. Freudtambém atenta para esse aspecto: “umfator desse tipo, hostil à civilização, jádevia estar em ação na vitória do cris-tianismo sobre as religiões pagãs, deuma vez que se achava intimamenterelacionado à baixa estima dada à vidaterrena pela doutrina cristã” (Freud,1930/1996, p. 94).

A atividade maquinal, ou a “bên-ção do trabalho”, seria outra maneirade distanciar a consciência do sofri-mento. Novamente, tal aspecto tam-bém é mencionado por Freud comofator de peso tanto na constituição dacivilização quanto na busca do ho-mem pela felicidade através da subli-mação enquanto trabalho psíquico eintelectual. A diferença é que Freudparece refletir sobre o trabalho to-

mando-o num colorido mais positi-vo, ao passo que Nietzsche lhe em-presta um tom negativo que o tornaalvo de críticas. Porém, pode-se ar-gumentar que os autores não se refe-rem ao mesmo tipo de trabalho: o deNietzsche é visivelmente uma fuga desi mesmo e da dor decorrente, ao pas-so que o de Freud parece apontar paraa ordem da satisfação através dacriatividade.

Uma terceira prática receitada éaquilo que Nietzsche denominou de“pequena alegria”, ou seja, a alegriaem suscitar alegria, o “amor ao pró-ximo” que denota uma deformadavontade de ínfima superioridadeimplicada em “fazer o bem”. Abor-daremos adiante as ref lexõesfreudianas sobre a receita do “amorao próximo” – por hora, é válido sa-lientar que o autor também se detémsobre ela.

A próxima prescrição é a da for-mação de um rebanho. Nietzsche pro-põe que “os fracos se agregam sen-tindo justamente prazer nessaagregação porque isso satisfaz tantoseu instinto como organização [quan-to] irrita e inquieta fundamentalmen-te o instinto dos fortes” (Nietzsche,1887/2007, p. 131, itálico do autor).Freud, além de mencionar a agrega-ção de uma maioria que se faça maisforte que os indivíduos isolados, aotratar do narcisismo das pequenas di-ferenças, diz que

É sempre possível unir um considerável nu-mero de pessoas no amor, enquanto sobra-

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rem outras pessoas para receberem as mani-festações de sua agressividade. [E que] quan-do, outrora, o Apóstolo Paulo [figura nãomuito querida por Nietzsche] postulou oamor universal entre os homens como o fun-damento de sua comunidade cristã, uma ex-trema intolerância por parte da cristandadepara com os que permaneceram fora delatornou-se uma conseqüência inevitável.(Freud, 1930/1996, p. 119)

Por fim, o último desse tipo defármaco – pois existem outros, deoutra ordem –, que também pode serlido sob o prisma do narcisismo daspequenas diferenças, refere-se ao au-mento de poder da comunidade, quese dá juntamente com o aumento daconsciência do indivíduo, e que im-plica o fortalecimento dos laços (defé) e o aumento da culpabilidade.Nesse sentido, Freud adverte: “Vistoque a civilização obedece a um im-pulso erótico interno que leva os se-res humanos a se unirem num grupoestreitamente ligado, ela só pode al-cançar seu objetivo através de umcrescente fortalecimento do senti-mento de culpa” (Freud, 1930/1996,p. 135). Eros: pastor do rebanhocivilizatório.

Aqui se abre espaço para o meiode luta contra o sofrimento queNietzsche chamou de “culpado”, qualseja, a libertinagem dos sentimentosconduzida pelo sacerdote asceta – liber-tinagem que consiste em tirar proveitodas grandes paixões, de maneira a

despertar o homem de tristeza, eliminar, poralgum tempo pelo menos, sua dor acabru-nhadora, sua miséria indecisa, sempre em fa-

vor de uma interpretação e de uma “justifi-cativa” religiosa.... O principal estratagema deque se serviu o sacerdote asceta ... [foi] ex-plorar em seu benefício o sentimento de culpa-bilidade.... O “pecado”, porque assim se cha-ma a interpretação sacerdotal da “máconsciência” animal, (da crueldade, cuja di-reção foi invertida), o pecado é o maior acon-tecimento que até o presente a alma doentetem conhecido: nela encontramos o que háde mais perigoso e funesto da interpretaçãoreligiosa. (Nietzsche, 1887/2007, p. 134-135,itálico do autor)

Podemos arriscar uma aproxima-ção entre a manipulação religiosa dossentimentos (em especial do de cul-pa) com vistas ao fortalecimento dorebanho e a tendência culturalindicada por Freud quando afirmaque “a civilização está obedecendo àsleis da necessidade econômica, vistoque uma grande quantidade da ener-gia psíquica que ela utiliza para seuspróprios fins tem de ser retirada dasexualidade” (Freud, 1930/1996, p.109). Esta exploração da sexualidadeconduz à utilização de medidas re-pressivas cada vez mais estritas paraa manutenção da ordem estabelecida– ou seja, conduz a mais culpa. A in-terpretação religiosa mencionada porNietzsche leva ao mesmo caminho.O pecado da falta cometida contra opai roga penitência, e não há, no pro-jeto de Eros, qualquer limite de expi-ação desta culpa.

O que esses autores nos mos-tram é que, paradoxalmente, os mei-os usados para o combate do mal-es-tar apenas melhor conduzem a ele. Nabusca pela absolvição, o

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ser que sofre procura, com efeito, instintiva-mente uma causa de seu sofrimento; maisexatamente ainda um agente, mais precisa-mente ainda, um agente culpado, suscetível desofrimento.... “Eu sofro, alguém deve ser cul-pado disso”. Assim pensam todas as ovelhasdoentes. Mas seu pastor, o sacerdote asceta,responde: “É verdade, minha ovelha; alguémtem a culpa; mas esse alguém é você mesma,é sua culpa exclusiva – você é culpado perantevocê mesmo!”... (Nietzsche, 1887/2007, p. 123-124, itálicos do autor)

Ao propor (ou impor) ao sujeitoque “ame seu próximo como a simesmo” o sacerdote asceta nada maisfaz do que operar aquela libertinagemde sentimentos à qual Nietzsche serefere – faz com que a agressividadedo indivíduo remonte apenas a elemesmo. O “amor ao próximo” serevela como um dispositivo culpabi-lizante de primeira linha, dispositivocuja reflexão freudiana não deixa es-capar à crítica.

Freud toma o mandamento“amarás a teu próximo como a timesmo” como uma exigência ideal(fruto daquela reviravolta de valoresjudaica...) que, além de ser injusta paracom aqueles que são realmente pró-ximos, simplesmente não leva emconta a significativa e poderosa quo-ta de agressividade da qual todo serhumano é dotado, isto é, não leva emconta que, no homem, a considera-ção, o respeito e o amor para com seupar são algo de muito estranho. Maisainda: não leva em conta que seu pró-ximo é muito antes alvo de ódio aoinvés de amor.

Se no jogo de diagnóstico doprocesso civilizacional identificamos,dentre outras, duas cartas fundamen-tais que se repetem nas mãos de am-bos os autores, quais sejam, o Ás deAmor e o Curinga de Culpa, pode-mos formular que, também Freud,recusa-se a fazer com essas cartaspares cristãos. Com isto, pretende-sedar especial destaque ao lugar centralque o cristianismo, ou a moral cristã,ocupa na crítica freudiana. Semelhan-te circunscrição é feita porque julga-mos que, em relação ao texto nietzs-chiano, o escrito de Freud é de estilomais sutil e discreto ao tratar de talaspecto; suas referências diretas aocristianismo são mais pontuais. Con-tudo, elas estão implicitamente pre-sentes em toda a proposta do texto:ao identificar o sentimento de culpacomo cerne do mal-estar na civiliza-ção, correlacionando-o constitutiva-mente ao projeto de Eros e à introje-ção da agressividade por ele requerida,consideramos que Freud denuncia,assim como Nietzsche, o papel de-sempenhado pela tradição cristã nadisposição das cartas do jogo civili-zacional.

Assim, a reflexão sobre o man-damento cristão do “amor ao próxi-mo” torna-se crucial para que avan-cemos em nossa elaboração, uma vezque ela traz consigo a questão dosideais e, paralelamente, a de uma di-reção ética em psicanálise.

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De uma ética não ideal

Ao apontar para a falha do pro-gresso técnico-científico, para a frá-gil constituição humana avessa aoconstante estado de prazer, para oconflito entre os interesses do indiví-duo e os da civilização e, finalmente,para a inclinação à agressão como fa-tor perturbador das relações huma-nas, Freud denuncia o papel dos ele-vados ideais a que somos estimulados(e aos quais nos propomos) a perse-guir – elementos inibidores e aplaca-dores desta inclinação à agressivida-de, ou seja, elementos repressores quepodem se afirmar apenas a um custo:o de um mal-estar na civilização.

Atribuindo originalidade eautossubsistência à pulsão de morte,Freud realiza (mais) uma quebra naimagem ideal do ser humano. Demaneira análoga, Nietzsche, ao ques-tionar o valor dos valores morais epropor sua vontade de poder (e todoo desejo de destruição nela implica-do), desfere um golpe nessa imagembimilenar que tanto preza pelo idealascético. Entretanto, mais do que umasimples quebra, o reconhecimento(nada fácil, diga-se de passagem) daautonomia dessas forças implica, nocaso do ser humano, o reconhecimen-to de sua natureza destrutiva, o quenos conduz a posturas éticas outras.Tomar a destrutividade como princí-pio autônomo e não mais como sim-ples tendência significa reconhecerque a agressividade (com relação ao

outro e a si mesmo) não se justificamais como parte de um processo devida, e, portanto, moralmente valida-do. A ética voltada à consecução dobem ideal, além de não estar em con-dições de recompensar as renúncias,esforços e sofrimentos requisitados,não pode mais justificar o mal-estarpresente como uma espécie de danocolateral necessário à execução de umbem maior. Ao contrário, toda Ordem

e todo Progresso são plasmados no epelo mal-estar. Ele existe como ele-mento constituinte necessário: se osacerdote asceta manipula a culpa paraa constituição de seu rebanho, ele ren-de agradecimentos a Eros pelaimplementação do sentimento de cul-pa como engendrador do projetocivilizatório. E aí, onde Eros edestrutividade comungam aliança,somos forçados a reconhecer inclu-sive que “ver sofrer, faz bem; fazersofrer, melhor ainda: aí está um duroprincípio, mas um princípio funda-mental, antigo, poderoso, humano,demasiado humano” (Nietzsche,1887/2007, p. 64). Significa, finalmen-te, reconhecer que inclusive na puni-ção há prazer e que “sem crueldadenão há festa: é isso o que ensina a maisantiga e longa história do homem: nocastigo há muita festa!” (Nietzsche,1887/2007, p. 65, itálico do autor).

Ao colocar os padrões éticoscomo ignorantes acerca da determi-nação das diferenças presentes nocomportamento humano (ou sim-plesmente, como não querendo saberda diferença) e como exigências ideaisde um superego cultural, Freud está

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justamente apontando a falha desses padrões ao tentarem alcançar,por meio de uma exigência superegoica ideal (como “amarás teupróximo como a ti mesmo”), algo que elemento algum da culturajamais conseguiu atingir: uma solução pacífica para a destrutividadeinerente.

Ambos os autores se detêm na dimensão conflitante do indiví-duo (agressivo) com a cultura, sendo que Freud deliberadamente serecusa a acolher para si (e para a psicanálise) algum bem maior a serperseguido como solução ética para este conflito, alegando que

a defesa contra ela [a agressividade] pode causar tanta infelicidade quanto a pró-pria agressividade ... [que a] ética “natural”, tal como é chamada, nada tem aoferecer aqui, exceto a satisfação narcísica de se poder pensar que se é melhor queos outros. Nesse ponto, a ética baseada na religião introduz suas promessas de umavida melhor depois da morte. Enquanto, porém, a virtude não for recompensadaaqui na Terra, a ética, imagino eu, pregará em vão. (Freud, 1930/1996, p. 146)

Nietzsche também denuncia nossos mais altos valores e ideaispor meio da consideração que tece acerca do ideal ascético. Nela, opróprio ideal asceta é exposto como engendrador de um sofrimen-to, no mínimo, do calibre daquele que havia proposto aplacar, ten-do sua dimensão mais crua e cruel evidenciada:

a vontade humana de se achar culpado e condenado a um ponto inexplicável, suavontade de ver-se castigado sem que o castigo jamais possa tornar-se equivalente àfalta, sua vontade de infectar e envenenar o fundamento último das coisas graçasao problema do castigo e da falta, a fim de fechar de uma vez por todas a saídaque conduz para fora desse labirinto de “idéias fixas”, sua vontade de erigir umideal, aquele de “Deus santo”, e, diante dele, ter a certeza palpável de sua absolutaindignidade. (Nietzsche, 1887/2007, p. 89, itálicos do autor)

Ainda por meio do ideal ascético, é exposto o engodo do dis-curso científico, sobre o qual Freud também se debruça em seutexto. Contrariando a expectativa vigente de que a ciência seria rivale oposta ao ideal ascético, Nietzsche apresenta-a, ao invés disso,como um dos mais refinados e tardios desenvolvimentos desse ide-al. Isso se deve, grosso modo, justamente à vontade de ficar no factualdo discurso científico e a renúncia geral à interpretação, ou seja, àcrença desses incrédulos na verdade.

essa vontade de verdade incondicional, é a crença no próprio ideal ascético, em-bora sob a forma de seu imperativo inconsciente – que não nos iludamos a res-

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peito – é a crença num valor metafísico, numvalor em si da verdade, valor que o ideal ascéticogarante e consagra (esse valor se mantém ese expande com esse ideal). (Nietzsche, 1887/2007, p. 144, itálicos do autor)

Seja através da crítica à lógicacivilizatória engendradora de mal-es-tar ou da crítica à moral cristã (em boamedida, seio desse mesmo mal-estar),nossos autores apontam para umadireção comum, cuja principal marcaé a do ideal (civilizatório ou ascético).

Freud é claro ao dizer que as res-trições à vida sexual e o ideal huma-nitário a ele contemporâneos não são,necessariamente, tendências do de-senvolvimento impossíveis de seremsuprimidas, mas que, pelo contrário,tais tendências vêm e vão na históriada humanidade – a moral cristã atualé apenas uma interpretação possível,diria Nietzsche. Todavia, diante destalacuna de infinitas possibilidades,Freud nada diz, senão que não temcoragem de se erguer perante seussemelhantes como um profeta, cur-vando-se ante a censura de que nãolhes pode oferecer consolo algum.

A lacuna deixada por Freud foi evem sendo interpretada de diversasmaneiras. Em nossa leitura, conside-ramos que o fato de Freud dirigir cen-suras ao imperativo superegoico,opor-se aos ideais até então presen-tes e não apontar um substituto cons-titui, por si só, uma baliza ética para apsicanálise, baliza cuja orientação é ada vontade de uma ética avessa aosideais (e, especificamente sob esseponto de vista, a vontade de

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Nietzsche de quebra da verdade da moral cristã e de seu ideal ascéticonão soa tão distante da psicanálise); uma ética que, diante do “mal”,não recua em direção ao “bem” – e se “mau é tudo aquilo que, coma perda do amor, nos faz sentir ameaçados” (Freud, 1930/1996, p.128), estamos no terreno de uma ética do desamparo.

Quando, no início do trabalho, insistimos no caráter interpre-tativo do pensamento freudiano, tínhamos em mente marcar aquiloque entendemos como uma importante característica de sua postu-ra: mesmo diante de um fenômeno de fundo clínico há anos enten-dido pela psicanálise (e de certa forma comprovado) – o desenvol-vimento egoico –, Freud, em vez de demonstrar, se propõe a construir.Vemos aqui um indício da ética freudiana que permite e mantémuma lacuna em si para que seja possível a interpretação do outro,com tudo aquilo que uma interpretação implica.

FROM THE NIETZSCHEAN MORALS TO THE FREUDIANDISCONTENTS:SOME APPROACHES AND ETHICAL CONSEQUENCES

ABSTRACT

The authors consider the works On the genealogy of morals by Nietzsche and Civilizationand its discontents by Freud as Modern readings about the role played by guilt feeling on thecivilizing process. Some measures (discussed by both authors) taken against the suffering thatcomes from human socialization are focused as diagnostics of Modern civilization process andits current state. Then, from the issue of ideals, some ethical consequences (concerningpsychoanalysis) are placed about the conflict between individual and civilization.

Index terms: guilt feeling; ethics; interpretation; discontents; moral.

DE LA MORAL NIETZSCHEANA AL MALESTAR FREUDIANO:

ALGUNAS APROXIMACIONES Y CONSECUENCIAS ÉTICAS

RESUMEN

Se toman las obras La genealogía de la moral, de Nietzsche, y El malestar en lacivilización, de Freud, como lecturas modernas del papel desempeñado por el sentimiento deculpabilidad en el proceso de civilización. Se caracterizan algunas de las medidas (que ambosautores examinan) tomadas contra el sufrimiento que proviene de la socialización humana comodiagnósticos modernos del proceso de civilización y su estado actual, para después, partiendo dela cuestión de los ideales, considerar algunas de las consecuencias éticas (en relación con elpsicoanálisis) ante el conflicto entre el individuo y la civilización.

Palabras clave: sentimiento de culpabilidad; ética; interpretación; malestar general; moral.

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REFERÊNCIAS

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das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21, pp. 65-148). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)

Mariguela, M. A. (2001). Freud e Nietzsche: ontogênese e filogênese. Impulso,12(28), 105-113.

Nietzsche, F. W. (2007). A genealogia da moral (A. C. Braga, trad.). São Paulo: Esca-la. (Trabalho original publicado em 1887)

Vieira da Silva, C. (2000). Nietzsche, Freud e o problema da cultura. CadernosNietzsche, 8, 43-54.

NOTAS

1 Expressamos o sincero agradecimento ao Prof. Dr. Vinicius Anciães Darribapela atenciosa revisão do manuscrito. Agradecemos também à Fundação Araucáriapelo incentivo à pesquisa.

2 Vide P.-L. Assoun(2009) e M. Foucault (1980), para citar apenas alguns.

3 Pois, segundo Foucault (2009, pp. 25-6), “O comentário conjura o acaso dodiscurso fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mascom a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado.... Onovo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”.

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Recebido em junho/2011.Aceito em dezembro/2011.

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