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RESUMO DAS MATÉRIAS DE HUMANÍSTICA 2012

Resumo Do Felipe HUmanistica(1)

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RESUMO

DAS MATÉRIAS DE HUMANÍSTICA

2012

SUMÁRIO

1. NOMES............................................................................................................................................ 7

1.1. ANTIGUIDADE......................................................................................................................................71.1.1. Pré-Socráticos...........................................................................................................................71.1.2. Sócrates....................................................................................................................................71.1.3. Platão.......................................................................................................................................71.1.4. Aristóteles.................................................................................................................................81.1.5. Sofistas.....................................................................................................................................91.1.6. Estóicos...................................................................................................................................10

1.2. IDADE MÉDIA....................................................................................................................................101.2.1. Agostinho................................................................................................................................101.2.2. Tomás de Aquino....................................................................................................................10

1.3. MODERNIDADE..................................................................................................................................141.3.1. Augusto Comte.......................................................................................................................141.3.2. Émile Durkheim.......................................................................................................................141.3.3. Max Weber.............................................................................................................................161.3.4. Maquiavel...............................................................................................................................161.3.5. Contratualistas.......................................................................................................................17

1.3.5.1. Thomas Hobbes................................................................................................................................171.3.5.2. John Locke........................................................................................................................................181.3.5.3. Jean-Jacques Rousseau....................................................................................................................191.3.5.4. Montesquieu....................................................................................................................................20

1.3.6. David Hume............................................................................................................................201.3.7. Georg Hegel............................................................................................................................211.3.8. Karl Marx................................................................................................................................221.3.9. Antônio Gramsci.....................................................................................................................221.3.10. Emannuel Kant......................................................................................................................231.3.11. Hans Kelsen...........................................................................................................................291.3.12. Giorgio Del Vecchio...............................................................................................................29

1.3. CONTEMPORANEIDADE........................................................................................................................291.3.1. Robert Alexy............................................................................................................................291.3.2. Ronald Dworkin......................................................................................................................291.3.3. Herbert Hart...........................................................................................................................32

1.3.3.1. Introdução........................................................................................................................................321.3.3.2. Hart e a Defesa do Positivismo Jurídico Metodológico.....................................................................33

1.3.3.2.1. A Estrutura Do Ordenamento Jurídico......................................................................................331.3.3.2.2 Os Conceitos De Existência, Validez E Eficácia Jurídica..............................................................341.3.3.2.3. A Distinção entre Ponto de Vista Interno e Ponto de Vista Externo Perante as Regras Jurídicas e os Respectivos Enunciados Internos e Externos....................................................................................351.3.3.2.4. A Relação Entre O Direito E A Moral.........................................................................................36

1.3.3.3. Conclusão.........................................................................................................................................381.3.4. John Rawls..............................................................................................................................38

1.3.4.1. Consenso Constitucional, Neutralidade e Razão Pública: Elementos de Teoria da Constituição em Rawls.............................................................................................................................................................42

1.3.5. Theodor Viehweg....................................................................................................................451.3.6. Niklas Luhmann......................................................................................................................461.3.7. Chaïm Perelman......................................................................................................................461.3.8. Jürgen Habermas....................................................................................................................46

1.3.8.1. O Fundamento da Legitimidade Política dos Grupos de Pressão à Luz da Teoria da Ação Comunicativa................................................................................................................................................46

1.3.8.2. A Concepção Comunicativa do Direito e da Democracia em Habermas...........................................481.3.9. Franz Kafka.............................................................................................................................521.3.10. Michel Foucault....................................................................................................................521.3.11. Alf Ross.................................................................................................................................521.3.12. Heidegger.............................................................................................................................531.3.12. Hans-Georg Gadamer...........................................................................................................53

13.12.1. Círculo Hermenêutico X Espiral Hemenêutica: Schleiermacher X Gadamer....................................541.3.13. Peter Habërle........................................................................................................................56

2. CORRENTES DE PENSAMENTO....................................................................................................... 58

2.1. UTILITARISMO....................................................................................................................................582.1.1. Jeremy Bentham.....................................................................................................................582.1.2. John Stuart Mill.......................................................................................................................58

2.2. FENOMENOLOGIA...............................................................................................................................582.2.1 Husserl.....................................................................................................................................58

2.3. REALISMO JURÍDICO............................................................................................................................592.3.1 Oliver Holmes...........................................................................................................................602.3.2. Jerome Frank..........................................................................................................................602.3.3. Olivercrona.............................................................................................................................602.3.4. Alf Ross...................................................................................................................................60

2.4. DIREITO ALTERNATIVO.........................................................................................................................602.5. EXISTENCIALISMO...............................................................................................................................602.6. CETICISMO........................................................................................................................................612.7. TRIDIMENSIONALISMO JURÍDICO............................................................................................................612.8. JUSNATURALISMO...............................................................................................................................632.9. JUSPOSITIVISMO.................................................................................................................................642.10. PÓS-POSITIVISMO.............................................................................................................................652.11. MORALISMO JURÍDICO.......................................................................................................................652.12. LIBERTARISMO..................................................................................................................................652.13. COMUNITARISMO.............................................................................................................................652.14. LÓGICA DO RAZOÁVEL.......................................................................................................................66

2.14.1. Noções Preliminares acerca da Lógica do Razoável..............................................................662.14.2. A Lógica do Razoável e a Interpretação................................................................................722.14.3. A Lógica do Razoável e a Função Legislativa........................................................................732.14.4. A Lógica do Razoável e a Função Jurisdicional......................................................................742.14.5. A Lógica do Razoável e a Equidade.......................................................................................752.14.6. Aplicações Práticas...............................................................................................................77

2.15. TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA..................................................................................................782.15.1. Introdução............................................................................................................................782.15.2. A Teoria da Argumentação Jurídica como Controle de Racionalidade..................................792.15.3. A Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas...........................................................802.15.4. Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy...............................................................842.15.5. Teoria da Argumentação Jurídica de Chaïm Perelman: A Nova Retórica..............................87

2.15.5.1. Os Elementos da Argumentação....................................................................................................872.15.5.2. O Auditório Universal.....................................................................................................................892.15.5.3. Persuadir e Convencer...................................................................................................................902.15.5.4. A Situação Ideal de Fala..................................................................................................................912.15.5.4. A Busca pela Universalidade...........................................................................................................91

2.15.6. Teoria da Argumentação Jurídica de Neil Maccormick.........................................................92

3. CONCEITOS BÁSICOS DA FILOSOFIA DO DIREITO............................................................................93

4. DIREITO, ÉTICA, CULTURA, JUSTIÇA, EQUIDADE E MORAL E OUTRAS QUESTÕES DE HUMANÍSTICA.97

4.1. CONCEITOS DE DIREITO........................................................................................................................974.1.1. Direito em Kant.......................................................................................................................984.1.2. Direito em Kelsen..................................................................................................................1004.1.3. Direito em Carlos Cossio.......................................................................................................1014.1.4. Direito no Realismo Jurídico..................................................................................................101

4.2 ÉTICA..............................................................................................................................................1014.2.1. Ética X Moral........................................................................................................................1014.2.2. Conceitos de Ética.................................................................................................................1044.2.2. Ética e Meio Ambiente..........................................................................................................1054.2.3. Ética de Princípios e Ética de Resultados...............................................................................1064.2.4. Eutanásia e Ética/Moral.......................................................................................................107

4.3. CONCEITOS DE CULTURA....................................................................................................................1074.3.1. Bens Culturais e Ciências Culturais........................................................................................108

4.4. CONCEITOS DE JUSTIÇA......................................................................................................................1094.5. CONCEITOS DE MORAL......................................................................................................................112

4.5.1. Moral Kantiana.....................................................................................................................1124.5.1.1. Tratamento do Direito em Kant.....................................................................................................115

4.6. REGRAS JURÍDICAS, REGRAS MORAIS E REGRAS DE TRATO SOCIAL.............................................................1184.7. REALIDADE, VERDADE E CONHECIMENTO..............................................................................................1194.8. O VALOR........................................................................................................................................1204.9. POR QUE ESTUDAR AS MATÉRIAS DE HUMANÍSTICA?..............................................................................121

5. SOCIOLOGIA DO DIREITO............................................................................................................. 121

5.1. INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA DA ADMINISTRAÇÃO JUDICIÁRIA. ASPECTOS GERENCIAIS DA ATIVIDADE JUDICIÁRIA (ADMINISTRAÇÃO E ECONOMIA). GESTÃO. GESTÃO DE PESSOAS......................................................................126

5.1.1. Introdução à Sociologia da Administração Judiciária............................................................1265.1.2. Aspectos Gerenciais da Atividade Judiciária (Administração e Economia)............................1285.1.3. Gestão..................................................................................................................................1295.1.4. Gestão de pessoas................................................................................................................131

5.2. RELAÇÕES SOCIAIS E JURÍDICAS. CONTROLE SOCIAL E DIREITO. TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E DIREITO..............1325.2.1.1. Relações Sociais e Jurídicas............................................................................................................1325.2.1.2. O Processo de Formação da Sociologia Jurídica.............................................................................1345.2.1.3. O Direito como Fato Social.............................................................................................................136

5.2.2. Controle Social e Direito........................................................................................................1375.2.2.1. Instituições e Controle Social.........................................................................................................140

5.2.3. Transformações Sociais e Direito..........................................................................................1415.2.4. Coerção, Coação e Sanção: Diferenças.................................................................................145

5.3. DIREITO, COMUNICAÇÃO SOCIAL E OPINIÃO PÚBLICA..............................................................................1465.3.1. Direito, Comunicação Social e Opinião Pública.....................................................................146

5.3.1.1. Texto Introdutório..........................................................................................................................1465.3.1.2. Continuação...................................................................................................................................148

5.4. CONFLITOS SOCIAIS E MECANISMOS DE RESOLUÇÃO. SISTEMAS NÃO JUDICIAIS DE COMPOSIÇÃO DE LITÍGIOS....1515.4.1. Conflitos Sociais e Mecanismos de Resolução.......................................................................151

5.4.1.1. Os Conflitos e as suas Soluções......................................................................................................1525.4.1.2. A Crise do Processo........................................................................................................................153

5.4.2. Sistemas Não Judiciais de Composição de Litígios................................................................1555.4.2.1. Meios Alternativos de Resolução de Conflitos e Operadores do Direito........................................1565.4.2.2. Empecilhos à Aplicação dos Meios Alternativos de Solução de Conflitos.......................................157

5.5. EXTRATIFICAÇÃO SOCIAL....................................................................................................................158

6. ÉTICA E ESTATUTO JURÍDICO DA MAGISTRATURA NACIONAL.......................................................159

6.1. INTRODUÇÃO...................................................................................................................................1596.2. DEVERES DOS MAGISTRADOS..............................................................................................................162

6.2.1 Deveres Previstos na LOMAN (art. 35)...................................................................................1626.2.2. Outros Deveres dos Magistrados..........................................................................................166

6.3. O ESTATUTO DA MAGISTRATURA.........................................................................................................1676.4. REGIME JURÍDICO DA MAGISTRATURA..................................................................................................169

6.4.1. Garantias do Poder Judiciário...............................................................................................1696.4.1.1. Garantias Institucionais..................................................................................................................169

6.4.1.1.1. Autonomia Orgânico-Administrativa......................................................................................1696.4.1.1.2. Autonomia Financeira............................................................................................................170

6.4.1.2. Garantias Funcionais......................................................................................................................1726.4.1.2.1. Garantias Relativas à Independência do Magistrado..............................................................1726.4.1.2.2. Garantias Relativas à Imparcialidade do Magistrado..............................................................178

6.4.2. Provimento do Cargo de Juiz.................................................................................................1806.4.2.1. Provimento Originário....................................................................................................................181

6.5. SISTEMA DE CONTROLE INTERNO DO PODER JUDICIÁRIO..........................................................................1826.5.1. Distinção entre Controle Interno e Controle Externo.............................................................1846.5.2. Órgãos de Controle Interno do Poder Judiciário....................................................................189

6.5.2.1. Corregedoria..................................................................................................................................1896.5.2.2. Ouvidoria........................................................................................................................................1936.5.2.3. Conselho Nacional de Justiça.........................................................................................................194

6.5.2.3.1. Introdução e Composição.......................................................................................................1946.5.2.3.2. Atribuições do CNJ..................................................................................................................1976.5.2.3.3. Atuação do PGR e do Presidente do Conselho Federal da OAB..............................................2036.5.2.3.4. CNJ e o Princípio da Subsidiariedade......................................................................................2046.5.2.3.5. A ADI 4638 e a Tentativa de Esvaziar os Poderes Investigatórios do CNJ...............................2066.5.2.3.6. Ações Judiciais em Face do CNJ..............................................................................................2076.5.2.3.7. Colaboração do CNJ para o Aprimoramento do Judiciário.....................................................210

6.6. RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA, CIVIL E PENAL DOS MAGISTRADOS....................................................2116.6.1. Responsabilidade Criminal do Magistrado...........................................................................2116.6.2. Responsabilidade Civil do Magistrado..................................................................................2136.6.3. Responsabilidade Administrativa do Magistrado.................................................................217

7. TEORIA GERAL DO DIREITO E DA POLÍTICA...................................................................................222

7.1. DIREITO OBJETIVO E DIREITO SUBJETIVO...............................................................................................2227.1.1. Texto Introdutório.................................................................................................................2227.1.2. O Que é Direito Subjetivo (Dicotomia entre Direito Subjetivo e Direito Objetivo).................224

7.1.2.1. O Dever Subjetivo...........................................................................................................................2247.1.3. Alguns Conceitos Essenciais da Teoria Geral do Direito........................................................2257.1.4. As Teorias Acerca do Direito Subjetivo..................................................................................227

7.1.4.1. A Teoria da Vontade de Windscheid..............................................................................................2287.1.3.2. A Teoria do Interesse de Ihering....................................................................................................2297.1.3.3. A Teoria Mista de Jellinek...............................................................................................................2307.1.3.4. Teoria do Autorizamento ou da Autorização da Norma Jurídica....................................................2307.1.4.5. As Teorias Negativistas do Direito Subjetivo de Hans Kelsen e Léon Duguit..................................231

7.1.5. A Relação Jurídica, seus Elementos e sua Ligação com o Direito Subjetivo...........................2337.1.5.1. A Subjetividade e a Capacidade de ter Direitos..............................................................................2357.1.5.2. A Relação do Direito Subjetivo com as Situações Jurídicas Subjetivas............................................236

7.1.6. Direitos Públicos Subjetivos...................................................................................................2387.1.6.1. Direitos Públicos Subjetivos - Perspectivas Históricas....................................................................2387.1.6.2. Os Direitos Subjetivos Públicos na Constituição Brasileira.............................................................239

7.1.6.3. Fundamento dos Direitos Públicos Subjetivos................................................................................2407.2. FONTES DO DIREITO OBJETIVO. PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO. JURISPRUDÊNCIA. SÚMULA VINCULANTE.........2447.3. EFICÁCIA DA LEI NO TEMPO. CONFLITO DE NORMAS JURÍDICAS NO TTEMPO E O DIREITO BRASILEIRO: DIREITO PENAL, DIREITO CIVIL, DIREITO CONSTITUCIONAL..........................................................................................2447.4. O CONCEITO DE POLÍTICA. POLÍTICA E DIREITO......................................................................................260

7.4.1. Ciência Política: Alguns Conceitos Básicos............................................................................260Pensamento Político de Kant..........................................................................................................2667.4.2. Relação Entre Política e Direito.........................................................................................267

7.5. IDEOLOGIAS.....................................................................................................................................2687.5.1. Ideologias Políticas Modernas..............................................................................................271

7.6. A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM (ONU).................................................................2747.6.1. Introdução............................................................................................................................274

7.6.1.1.Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos............................................................................2767.6.1.2. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais..................................................277

7.6.2. História.................................................................................................................................2787.6.2. Significado de Direitos Humanos..........................................................................................279

7.6.2.1. Direitos Humanos – Texto de Norberto Bobbio.............................................................................2797.6.3. Fundamento Axiológio dos Direitos Humanos e sua Vigência Universal...............................282

1. Nomes

1.1. Antiguidade

1.1.1. Pré-SocráticosOs pré-socráticos não deixaram muita herança no estudo acerca da justiça. Poucos são os seus escritos encontrados; eles eram extremamente religiosos, acreditando que os deuses determinavam o destino de cada homem e como se esse fosse quase um mero coadjuvante desempenhando o papel que lhe era predestinado.

Assim, nessa fase, com a mitologia grega, somente pelas histórias deixadas se chega ao conhecimento de um certo saber e noção de justiça, com as criações literárias de Homero (Odisséia, Ilíada) e de Hesíodo.

1.1.2. SócratesAo contrário dos sofistas, ele acreditava que era possível chegar ao conceito verdadeiro das coisas, ao pleno conhecimento. Justiça não seria algo relativo, mas sim algo fundamental, cujo conhecimento poderia ser alcançado através do diálogo.

Seu método, então, era, por intermédio da retórica, fazer perguntas ao interlocutor e questionar as respostas, ao que se deu o nome de MAIÊUTICA.

Para Sócrates, ética significava conhecimento. Só poderia ser ético quem tinha conhecimento, já que assim poderia discernir o bem do mal. E só poderia ter conhecimento quem fosse educado (paideia).

A maior das virtudes, para Sócrates, é saber que nada se sabe. Ensina obediência irrestrita às leis, apesar de poderem ser justas ou injustas, pois é instrumento de coesão social, que visa a realização do Bem Comum.

Porém, essa era a concepção individual de ética. Na concepção coletiva, Sócrates tinha como ético o agir conforme as leis da Pólis. E essa ética, para ele, estava acima da individual. Provou isso com sua morte.

1.1.3. PlatãoDiscípulo de Sócrates, escreveu aquelas historinhas bobas do mito da caverna.

Fora isso, acreditava e defendia que a sociedade justa seria uma idealizada, à qual se chegaria despindo-se o homem do véu da ignorância.

Platão defendia que cada pessoa tinha uma aptidão. Que haveria justiça quando cada um exercesse a sua na sociedade, de acordo com sua natural designação. Assim, o papel do homem já era pré-determinado.

Segundo ele, a sociedade ideal seria a comandada pelos filósofos, os sábios, seguidos pelos guerreiros e, por fim, na base da pirâmide social, pelos trabalhadores. Vê-se desde aquela época que o corporativismo era descarado.

Ele era tão radical nesse pensamento que entendia ser legítima a intervenção do Estado para “adequar” o homem ao seu papel. Ou seja, se um trabalhador tentasse ser filósofo, poderia vir a ser coativamente “reabilitado” pelo Estado.

Bom, Platão quebrou a cara com o caso “Dionísio de Siracusa”. Ele foi chamado para ensinar a esse guri as virtudes de um governante, como ser um filósofo. Após anos de ensinamentos, o rapaz cresceu e virou um dos mais vis e cruéis governantes da idade antiga. Tragicômico.

Ética: ser ético é ter racionalidade despida de interesse próprio.

1.1.4. AristótelesAristóteles foi um grande sujeito. Trouxe alguma luz ao mundo naquela época.

Aspectos sociológicos

No que se refere à sociologia, ele fez um amplo estudo em mais de 150 pólis da Grécia antiga para ter uma base empírica dos fenômenos jurídico-sociais normalmente observados em todas. Tais estudos foram consolidados na obra “Política”.

Nesse livro ele traçou a teoria das formas de governo, ao descrever possíveis formas de governo:

FORMAS PURAS FORMAS IMPURAS (DEGENERAÇÕES DAS PURAS)Monarquia TiraniaAristocracia OligarquiaDemocracia Demagogia

Aristóteles entendia que as formas de organização da sociedade não eram ideais, mas fáticas, e que os modelos bons poderiam se degenerar para os ruins. Vê-se, pois, que ele tinha um pensamento mais zetético, voltado à realidade.

Trouxe ele também claramente a ideia de que o homem é um “animal” político, que precisa se relacionar para sobreviver.

Aspectos filosóficos

Ética: para Aristóteles, ética é a ciência prática, o agir humano que diferencia o bom e o mau, o justo do injusto. A ética não pode ser vista como uma ciência exata, dogmática, visto que seu estudo está marcado pela preocupação de definir, mas sem constranger, conceitos, dando margem de variabilidade de acordo com as características próprias de cada indivíduo. Ser ético é ser virtuoso, alcançar a virtude através da razão.

Justiça: Aristóteles defendia que o homem deveria ser virtuoso. E o que é virtude? Virtude é o agir com moderação, atuar no meio termo dos extremos. Pois bem, e o que era justiça para ele? Justiça é o agir com cooperação interpessoal. Não se trata de algo individual, mas algo essencialmente social, que se manifesta nas relações entre os homens. Como se concretiza a justiça? Pelo alcance da igualdade. Ele via a justiça em duas acepções, justiça particular

(justiça na relação entre as partes) e justiça universal (justiça que envolve o todo, ou seja, a legislação e toda comunidade por ela protegida). A justiça particular podia ser:

a) Justiça particular comutativa ou corretiva : trata-se da justiça entre particulares, entre pessoas que atuam com coordenação, sem diferenciações hierárquicas, a qual deve ser concretizada de forma simples ou aritmética. Os ganhos e perdas das partes devem ser iguais, não importando o mérito individual. Esse justo conduz à noção de reciprocidade proporcional das forças dentro da malha social.

b) Justiça particular distributiva : trata-se da justiça entre sociedade e particulares, não devendo ser implementada de forma direta, e sim proporcional. Nela se insere a importância do mérito (avaliação subjetiva do merecimento ou não de benefícios) para se fixar a justiça na distribuição dos bens. Aristóteles reconhecia que o mérito era um valor variável, conforme o sistema político adotado.

Para se completar a teoria da justiça em Aristóteles, ele agregou o elemento da equidade em sua concepção. Equidade significaria avaliar o justo no caso concreto, visto que a lei possui um caráter geral e abstrato. Assim, equidade é a correção dos rigores da lei; a falta de equidade pode levar à injustiça por meio do próprio justo legal. Não se trata, pois, de um problema de erro legislativo, mas simplesmente de uma impossibilidade fática de se minudenciar exaustivamente a legislação.

a) Justiça em sentido amplo ou universal (justo total) : refere-se ao cumprimento das leis do Estado. Significa a observância do que é regra social de caráter vinculante. Realiza-se a justiça com a conformação do ato humano à lei. Assim, nessa acepção, justiça e direito, e legalidade, se confundiriam. Os antigos não concebiam a existência de uma lei injusta. Se era legal, era justa.

b) Justiça em sentido estrito ou particular : aquela que permite distribuir de modo justo os bens da sociedade (corresponde à justiça comutativa + justiça distributiva).

Ligando justiça, ética e equidade: para Aristóteles, ser ético é agir com virtude; ser virtuoso é ser moderado; ser justo é praticar reiteradamente (com ética, habitualmente) atos virtuosos, atos voluntários de justiça. Não basta, pois, o conhecimento teórico do que seja justo.

Por fim, trazendo para o presente as ideias do filósofo, uma grande colaboração que ele deu foi fornecer os fundamentos filosóficos para as AÇÕES AFIRMATIVAS, visto que elas se assentam na distributividade de bens sociais.

1.1.5. SofistasOs sofistas representaram a ruptura com o pensamento mitológico dos pré-socráticos, voltando o pensamento dos deuses para os homens. Famosa frase: “o homem é a medida de todas as coisas”.

Os sofistas romperam com a herança cultural pré-socrática ao voltar a filosofia para o estudo do homem, como ser individual e social, colocando-se como radicais opositores da tradição, sobre definições absolutas, conceitos fixos e eternos, sobre tradições inabaláveis, com isso relativizando o conceito de justiça que é igualado ao conceito de lei, de legalidade.

Os sofistas, tais como Protágoras e Górgias, relativizaram a possibilidade de conhecimento, afirmando, no que se refere ao direito, que o senso de justiça não advém de deuses, mas sim do fruto das convenções humanas, variando com o tempo e com o imperativo das circunstâncias. Ademais, eles apontavam a identidade entre a legalidade e a justiça, de modo a favorecer o desenvolvimento de ideias que associavam à inconstância da lei a inconstância do justo.

Por passarem o foco ao homem, os sofistas foram tidos como os precursores da sociologia. Por intermédio do relativismo, eles inauguraram a crítica social, já que lançaram dúvidas sobre a capacidade de justiça da polis grega.

1.1.6. EstóicosTem como seu principal expoente Marcus Tullius Cicero (romano).

Ética: a ética estoicista é o agir humano que respeita o universo e suas leis cósmicas, além do respeito a si mesmo. Ela determina o cumprimento de mandamentos éticos pelo simples dever, não com vistas a um fim outro qualquer. É a ética do dever, não pelo temor reverencial, mas a vontade de praticar justiça (já sabemos de quem Kant copiou...).

1.2. Idade Média

1.2.1. AgostinhoUm dos precursores do movimento chamado PATRÍSTICA, aqueles que desenvolveram os fundamentos da igreja católica romana.

Agostinho defendia uma concepção de justiça na qual tudo estava baseado na dicotomia bem/mal, alma/corpo, divino/humano, absoluto/relativo etc. Assim, se a lei humana se encontrasse desenraizada de sua origem, seu destino só pode ser o erro e o mau governo das coisas humanas. Se o homem, por outro lado, se deixar inspirar divinamente, seus atos e instituições prosperarão.

No entanto, apesar de imperfeitas, as leis humanas são a garantia da ordem social e, para serem chamadas em seu conjunto de Direito, devem estar minimamente aproximadas da justiça.

A justiça terrena é, na verdade, reflexo da cidade dos homens; essa concepção deverá imperar até o advento da Cidade de Deus, quando então haverá a ruptura com a presente ordem social.

Apesar de católico, Agostinho teve evidente influência do cristianismo verdadeiro.

1.2.2. Tomás de AquinoDeu grande contribuição para o desenvolvimento do direito e da sociologia.

Para ele, o papel do Estado é realizar o bem comum. Se não promover esse objetivo, não pode ser considerado como uma forma justa de organização do poder político.

Aquino é um neoaristotélico, valeu-se de muitas das ideias daquele filósofo para justificar seus pensamentos. Ele foi o grande expoente da ESCOLÁSTICA, um movimento de racionalização do cristianismo com forte ênfase na dialética como método de conhecimento.

Em sua obra magna, a Suma Teológica, São Tomás partiu do pensamento Aristotélico, admitindo uma ordem natural do mundo, abaixo da ordem divina. Foi um teórico da igreja católica responsável por reabilitar a razão e a ciência como preocupações fundamentais.

O pensamento causal de Aristóteles serve para reenviar a Deus a origem do mundo, mas também para conferir certa autonomia à ordem natural.

Daí a distinção entre causas primeiras e causas segundas.

Na sua classificação das leis, São Tomás colocou no cume de todo o sistema legislativo a lex aeterna tomada de Santo Agostinho: razão de Deus ordenando o cosmos.

Porém o mundo possui uma ordem e uma natureza dadas por Deus. Cabe aos homens investigá-las e agir conforme os seus princípios. Essa é a base do direito natural tomista, a lei natural (lex naturalis).

A lei positiva (lex positiva) seria a forma humana de imitar a lei natural, codificando-a em normas de condutas e serem seguidas pelos cidadãos. Tanto mais justa será, quando mais próxima estiver da natureza humana.

“Assim, o direito é a um só tempo fruto da razão e da vontade: da razão, na medida em que deriva da ciência da natureza; da vontade humana, na medida em que o poder legislativo lhe acrescentou fixidez, forma escrita rígida, precisão”.

Dado o caráter errático da conduta humana, inclusive dos julgadores, não se poderia pressupor a existência de um julgamento sempre de acordo com a lei natural. Por isso a questão da lei e do julgamento injustos é trazida para evidenciar a precariedade da condição humana frente à ordem divina, mas, ao mesmo tempo, para demonstrar que isso não apaga ou exclui a necessidade dessa ordem dos homens, cujo sentido primordial seria a busca da virtude, o seu exercício cotidiano, e não mais uma predisposição inata apenas revelada aos "eleitos".

Justiça: em Aquino, a justiça consiste na disposição constante da vontade de dar a cada um o que é seu, segundo uma igualdade. Não respondeu, entretanto, o que era devido a quem. Ele é jusnaturalista, admite a existência de uma lei natural, a qual, entretanto, seria mutável.

Ética: ser ético é agir de acordo com os padrões divinos (ética teocêntrica).

A Teoria do duplo efeito é uma tese da filosofia moral, normalmente atribuída a São Tomás de Aquino. Ela visa explicar em que circunstâncias é permitido tomar uma ação tendo ao mesmo tempo consequências positivas e negativas (ou seja, um duplo efeito). Ela enuncia diversas condições necessárias para que uma ação possa ser moralmente justificada mesmo quando comporte um efeito ruim:

A ação deve ser ela mesmo boa ou moralmente neutra; O efeito positivo deve resultar do ato e não do efeito negativo;

O efeito negativo não deve ter sido diretamente desejado, mas deve ter sido previsto e tolerado;

O efeito positivo deve ser mais forte que o negativo, ou ainda, ambos devem ser iguais.

Em suma, esta tese sustenta que existem situações onde é justificado produzir uma consequência ruim se ela é apenas um efeito colateral da ação e não intecionalmente buscado.

Um submarino é torpedeado em uma guerra. Um dos compartimentos começa a encher-se de água. O comandante imediatamente manda que fechem a escotilha, a fim de que a água não invada o restante da embarcação. Ao fazer isso, porém, dez tripulantes que estavam no compartimento torpedeado morrem afogados.

A ação de fechar a escotilha não é má em si, e nem sequer é praticada com má intenção. No entanto, ela terá como efeito inevitável a morte de dez tripulantes daquele compartimento, que serão afogados. A morte desses inocentes, causada indiretamente, não é um “meio” de salvar a embarcação. O meio é o fechamento da escotilha. Se, absurdamente, o comandante mantivesse a escotilha aberta, mas mandasse matar os dez tripulantes, não salvaria o submarino. Nesse exemplo, jamais se pode dizer que a salvação do submarino se deu por meio da morte de dez inocentes. A distinção entre meio e efeito é fundamental para que se resolvam certas questões cruciais da Bioética e do Biodireito. Muitos de nossos atos bons produzem efeitos maus indesejados, mas inevitáveis. Ao tomarmos uma aspirina para curar uma dor de cabeça, podemos causar dano ao estômago. Ao corrigirmos o próximo, às vezes ele se sente humilhado ou envergonhado.

A questão do duplo efeito foi, inclusive, expressamente invocada no julgamento sobre o direito de greve dos servidores públicos:

EMENTA: RECLAMAÇÃO. SERVIDOR PÚBLICO. POLICIAIS CIVIS. DISSÍDIO COLETIVO DE GREVE. SERVIÇOS OU ATIVIDADES PÚBLICAS ESSENCIAIS. COMPETÊNCIA PARA CONHECER E JULGAR O DISSÍDIO. ARTIGO 114, INCISO I, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIREITO DE GREVE. ARTIGO 37, INCISO VII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. LEI N. 7.783/89. INAPLICABILIDADE AOS SERVIDORES PÚBLICOS. DIREITO NÃO ABSOLUTO. RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO DE GREVE EM RAZÃO DA ÍNDOLE DE DETERMINADAS ATIVIDADES PÚBLICAS. AMPLITUDE DA DECISÃO PROFERIDA NO JULGAMENTO DO MANDADO DE INJUNÇÃO N. 712. ART. 142, § 3º, INCISO IV, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO. AFRONTA AO DECIDIDO NA ADI 3.395. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO PARA DIRIMIR CONFLITOS ENTRE SERVIDORES PÚBLICOS E ENTES DA ADMINISTRAÇÃO ÀS QUAIS ESTÃO VINCULADOS. RECLAMAÇÃO JULGADA PROCEDENTE. 1. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o MI n. 712, afirmou entendimento no sentido de que a Lei n. 7.783/89, que dispõe sobre o exercício do direito de greve dos trabalhadores em geral, é ato normativo de início inaplicável aos servidores públicos civis, mas ao Poder Judiciário dar concreção ao artigo 37, inciso VII, da Constituição do Brasil, suprindo

omissões do Poder Legislativo. 2. Servidores públicos que exercem atividades relacionadas à manutenção da ordem pública e à segurança pública, à administração da Justiça --- aí os integrados nas chamadas carreiras de Estado, que exercem atividades indelegáveis, inclusive as de exação tributária --- e à saúde pública. A conservação do bem comum exige que certas categorias de servidores públicos sejam privadas do exercício do direito de greve. Defesa dessa conservação e efetiva proteção de outros direitos igualmente salvaguardados pela Constituição do Brasil. 3. Doutrina do duplo efeito, segundo Tomás de Aquino, na Suma Teológica (II Seção da II Parte, Questão 64, Artigo 7). Não há dúvida quanto a serem, os servidores públicos, titulares do direito de greve. Porém, tal e qual é lícito matar a outrem em vista do bem comum, não será ilícita a recusa do direito de greve a tais e quais servidores públicos em benefício do bem comum. Não há mesmo dúvida quanto a serem eles titulares do direito de greve. A Constituição é, contudo, uma totalidade. Não um conjunto de enunciados que se possa ler palavra por palavra, em experiência de leitura bem comportada ou esteticamente ordenada. Dela são extraídos, pelo intérprete, sentidos normativos, outras coisas que não somente textos. A força normativa da Constituição é desprendida da totalidade, totalidade normativa, que a Constituição é. Os servidores públicos são, seguramente, titulares do direito de greve. Essa é a regra. Ocorre, contudo, que entre os serviços públicos há alguns que a coesão social impõe sejam prestados plenamente, em sua totalidade. Atividades das quais dependam a manutenção da ordem pública e a segurança pública, a administração da Justiça --- onde as carreiras de Estado, cujos membros exercem atividades indelegáveis, inclusive as de exação tributária --- e a saúde pública não estão inseridos no elenco dos servidores alcançados por esse direito. Serviços públicos desenvolvidos por grupos armados: as atividades desenvolvidas pela polícia civil são análogas, para esse efeito, às dos militares, em relação aos quais a Constituição expressamente proíbe a greve [art. 142, § 3º, IV]. 4. No julgamento da ADI 3.395, o Supremo Tribunal Federal, dando interpretação conforme ao artigo 114, inciso I, da Constituição do Brasil, na redação a ele conferida pela EC 45/04, afastou a competência da Justiça do Trabalho para dirimir os conflitos decorrentes das relações travadas entre servidores públicos e entes da Administração à qual estão vinculados. Pedido julgado procedente.

(Rcl 6568, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 EMENT VOL-02375-02 PP-00736)

1.3. Modernidade

1.3.1. Augusto ComteAspectos sociológicos

Considerado o pai da sociologia, Comte teorizou e dividiu a evolução da sociedade em três estágios (famosa Lei dos Três Estágios):

a) Religioso : sociedades primitivas, com organização social voltada à religião e à fé.

b) Metafísico : sociedades que iniciam a racionalização do pensamento, mas ainda conservando grande parte de suas ideias espirituais, como na Grécia antiga.

c) Científico : racionalismo puro, que traria a “iluminação” para o homem.

No modelo do estágio científico europeu, a ciência seria uma visão empírica, concreta e experimental da sociedade. A sociologia seria o estudo objetivo do comportamento humano e das instituições sociais.

De acordo com a teoria Comtiana, o desenvolvimento da sociologia possibilitaria ao homem planejar de forma racional a vida social e trazer o conforto material e espiritual necessários. O estudo sociológico seria a solução de tudo, da fome, da pobreza etc.

Comte, entretanto, teve muita fé na sociologia, com base num cientificismo que, posteriormente, se mostrou irreal e em constantes ataques pelos céticos e pelos relativistas. Ele quis explicar a sociedade como se ela fosse uma máquina, sujeita a obviedades lógicas como teoremas matemáticos.

Sua proposta frutificou e ganhou grande espaço no Direito, com o positivismo jurídico, que durou, numa concepção pura, até o fim da 2ª GM, quando então declinou fortemente.

Os grandes opositores do positivismo (cientificistas) são os racionalistas (argumentativistas).

Aspectos jurídicos

Comte não deu atenção para o Direito. Por quê? Pois ele considerava que, com o desenvolvimento da sociologia, não seriam mais necessários direito, religião, moral ou qualquer tipo de conhecimento de base axiológica. A sociologia supriria tudo.

Assim, ele dedicou seu tempo a desenvolver aquilo que achava ser a solução de todos os problemas do mundo. Vê-se, pois, que foi muito tempo perdido.

1.3.2. Émile DurkheimAspectos sociológicos

Emílio centrou seus estudos nos fatos sociais.

O que é fato social?

Para Émile Durkheim, fatos sociais são "coisas". São maneiras de agir, pensar e sentir exteriores ao indivíduo, e dotadas de um poder coercitivo. Não podem ser confundidos com os fenômenos orgânicos nem com os psíquicos, constituem uma espécie nova de fatos. São fatos sociais: regras jurídicas, morais, dogmas religiosos, sistemas financeiros, maneiras de agir, costumes, etc.

“É um fato social toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coação exterior.”; ou ainda, “que é geral no conjunto de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais”. Ou ainda: todas as maneiras de ser, fazer, pensar, agir e sentir desde que

compartilhadas coletivamente. Variam de cultura para cultura e tem como base a moral social, estabelecendo um conjunto de regras e determinando o que é certo ou errado, permitido ou proibido.

Para ele, o Direito seria apenas um fato social, o resultado do atuar da sociedade. Entretanto, seria distinto dos demais ante a maior força coercitiva que lhe é conferida. Todos os fatos sociais são coercitivos, já que condicionam e constrangem os indivíduos, psiquicamente, a atuar de tal ou qual modo. Por ter dado destaque ao direito, Durkheim é considerado o pai da sociologia do direito.

Assim, o direito é fato social acima dos demais por ter fundamento social capaz de impor sanções, perda de patrimônio e privação da liberdade, mais contundentes do que as sanções dos outros fatos sociais.

Emílio era um empirista, pregava o dever de neutralidade e afastamento axiológico do sociólogo.

Durkheim, para fundamentar sua teoria, fez a seguinte distinção:

a) Solidariedade mecânica : sociedades em que o indivíduo, considerado isoladamente, têm pouca importância, ele é apenas uma engrenagem social. O agir é mais coletivo, sendo as pessoas praticamente fungíveis entre si.

b) Solidariedade orgânica : fruto de sociedades mais desenvolvidas, nas quais a pessoa tem mais importância e uma maior influência social.

Qual a importância dessa bobagem? A evolução social levou o direito a ser bem mais restitutivo do que repressivo. Na sociedade mecânica, o indivíduo é mais fácil de ser cambiado por outro em suas funções. O Direito, especialmente o penal, teria, pois, a função de retirar da sociedade a engrenagem defeituosa. Já nas sociedades orgânicas, como o indivíduo possui mais valor, a sua retirada do meio social afetaria de forma mais contundente o todo orgânico. Assim, muito mais importante é a reparação do dano (fortalecimento da esfera cível) do que a pena pessoal. A preservação do indivíduo com suas funções preserva a sociedade. Logo, com a evolução da sociedade, o Direito passa a ser muito mais restitutivo do que repressivo.

1.3.3. Max WeberMax Weber, contemporâneo de Durkheim, rompeu um pouco com a visão empirista do positivismo, defendendo que o sociólogo não poderia ter uma visão neutra e distante de seu objeto de estudo, antes deveria mergulhar no universo, adotando o método compreensivo para aprender.

Em Weber, o fato social perde importância em detrimento do AGIR SOCIAL, que seria o fato social culturalmente valorado. A ação social weberiana é o agir ordenado para o outro. Diferentemente do fato social de Durkheim, na ação social o sujeito é ativo e reativo ao próximo.

Para ele, existiam quatro tipos ideais de ações sociais:

a) Racional com relação a fins : quando o homem pensa racionalmente para decidir em vista da obtenção de determinado resultado;

b) Racional com relação a valores : quando o homem não age orientado pelo resultado, mas por um valor relevante a si, como, v.g., o sentimento de justiça;

c) Social afetiva : condutas humanas movidas pelo sentimento.

d) Social tradicional : condutas humanas realizadas em decorrência de costumes ou hábitos.

Weber destacou a forte INFLUÊNCIA DA LEGALIDADE PARA A CONSOLIDAÇÃO DA SOCIEDADE CAPITALISTA, por ter proporcionado maior segurança e estabilidade, formando uma conjuntura propensa à burguesia.

No que se refere ao Estado, ele traz três espécies de legitimidades dos governantes:

a) Legitimidade carismática : baseada em qualidades pessoais do governante;

b) Legitimidade tradicional : ligada a valores históricos e tradição de um povo, como a hereditariedade;

c) Legitimidade legal-burocrática : referente à escolha dos governantes pelo povo e os procedimentos de escolha.

Weber também escreveu uma importante obra chamada “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, na qual tentou explicar como o surgimento do protestantismo e rompimento com o catolicismo permitiu também o cenário para o desenvolvimento econômico.

1.3.4. MaquiavelEm sua obra “O Príncipe”, descreveu como o governante deveria fazer para chegar ao poder e mantê-lo. Ele fez um estudo realista sobre a virtude do governante, não uma virtude do “dever-ser”, dogmática, mas sim uma virtude como ela é, zetética.

Interessado no momento histórico pelo qual passava a Itália (que não era ainda unificada), utilizou-se de uma metodologia indutiva e empírica para explicar os diversos modos de manutenção e exercício do poder político.

A virtude, para ele, é exatamente isso, reunir as condições necessárias para ficar no poder. Elas poderiam ser várias, o carisma, a inteligência, a força; no entanto, se houvesse de ser feita uma escolha, sempre seria preferível ser odiado, mas ter força, do que ser amado, mas perder o poder.

Classicamente diz-se que Maquiavel defendia que o bem deveria ser administrado a conta-gotas, enquanto o mal, como um jato.

O colega era um pouquinho radical, como se pode ver. Suas ideias foram utilizadas, ainda que não de forma aberta, como base para fundamentar regimes tirânicos e despóticos; grande exemplo se pode citar com Stálin, que a pretexto de manter em funcionamento a sociedade soviética, eliminou mais de 50 milhões de pessoas.

Seria uma espécie de utilitarismo levado a extremo.

1.3.5. ContratualistasOs contratualistas deram importantes contribuições para a sociologia, para a política e para o Direito. Isso porque buscaram explicações teóricas sobre quais seriam os fundamentos da organização político-social do Estado, sobre como se daria o processo de legitimação da subordinação da maioria dos homens em detrimento de outros.

1.3.5.1. Thomas HobbesHobbes, filósofo inglês do século XVII, imaginou que os homens, antes da criação do Estado, viviam no que ele chamava de “Estado da Natureza”. O Estado da Natureza, para ele, era um Estado de liberdade pura, absoluta, em que cada homem poderia fazer o que quisesse.

Assim, sempre prevaleceria a lei do mais forte, sendo clássica a frase de que o homem é o lobo do homem.

Ao escrever a obra “O Leviatã” (1641), ele afirmou que o Estado da Natureza é um Estado que conduziria à destruição humana, porque em um local em que cada um pode fazer tudo, em que a liberdade é absoluta, não há necessidade de se respeitar o outro. Ninguém pode ter um direito subjetivo contra a liberdade absoluta e o uso da força, porque aquele que tem a força simplesmente não respeita o direito.

O Estado de Natureza é aquele que leva ao caos e à destruição do próprio ser humano. Quando os homens despertam para isso, eles passam a exercer o seu extinto de preservação.

E como o homem se preserva? Com a criação do contrato social que origina o Estado.

Para ele o Estado é criado por um contrato social em que cada ser humano entrega a sua liberdade em troca de paz e segurança. Para Hobbes, então, o Estado é o somatório das liberdades individuais que foram entregues quando o homem quis sair do Estado caótico da Natureza.

O problema é que o Estado que nasce desse contrato social, na ideia do Thomas Hobbes, é um Estado de Sujeição, em que o Estado sujeita o indivíduo a partir do momento em que ele passa a existir.

É por isso que vários regimes de força encontram apoio na ideia de Thomas Hobbes, quando ele afirma que depois que o homem entrega a sua liberdade, cabe ao Estado garantir a paz e a ordem. E as ações do Estado são irresistíveis ao homem, porque o homem já não tem mais a liberdade, se ele entregou essa liberdade para o Estado.

Direitos fundamentais e contratualismo em Hobbes: em Hobbes, como o objetivo do Estado é a sobrevivência da raça humana, praticamente não existem direitos fundamentais. O homem cede quase toda sua liberdade para viver em paz. No “Leviatã”, há uma mínima passagem que reconhece um direito ao homem oponível contra o Estado, que seria o direito de resistência para preservar sua vida.

Como se pode facilmente perceber, o camarada não era muito fã da democracia. O Estado, após criado, virava um monstro.

1.3.5.2. John LockeLocke é um autor mais moderado do que Thomas Hobbes. Ele baseia sua obra também no contrato social, mas afirma que antes do Estado, o homem não vivia no caos. O homem se organiza naturalmente. Para Locke, jamais houve o Estado de Natureza na concepção hobbesiana.

Em Locke já era possível, por exemplo, exercer a propriedade no Estado da Natureza, só que nesse Estado havia algumas questões que não eram resolvidas. Por exemplo, quem poderia resolver as questões dos conflitos de interesse? Quem estaria legitimado para exercer o poder de polícia? Eram questões não resolvidas, motivos pelos quais o homem sentiu necessidade de criar o Estado.

Então, na principal obra do John Locke, “II Tratado sobre o Governo Civil” o Estado da Natureza não é um Estado de caos e já existem direitos que podem ser exercidos; além disso, o Estado não é um Estado Sujeição, mas um Estado de Cooperação.

Locke afirma o seguinte: o homem para criar o Estado não entrega a sua liberdade toda, mas parte dela. Isso faz toda a diferença, até para a teoria dos Direitos Fundamentais.

Como o homem entregou parte de sua liberdade para a criação do Estado, a parte não entregue corresponde exatamente aos direitos não passíveis de serem renunciados, os direitos da personalidade, os direitos fundamentais. Nisso vê-se que em Locke, ainda que não tenha ele afirmado expressamente, o rol de Direitos Fundamentais é um rol declaratório, de algo que já existe antes do Estado.

Então, o que justifica que o homem exerça o direito em face do Estado (que é a própria concepção de direitos fundamentais, pelo menos de primeira geração, que são direitos que são exercidos em face do Estado – pois ele que é o opressor dos direitos de primeira geração) é a compreensão de que o homem não entregou toda a sua liberdade para a criação do Estado, mas parte dela.

Locke também traz nessa obra a ideia de separação de poderes. Em geral, quando se estuda separação de poderes, todo mundo começa falando em Montesquieu. Só que o Locke, que escreveu 50 anos antes de Montesquieu, já começa a falar em separação de poderes.

Suas ideias, entretanto, não foram consagradas porque sua tripartição se baseia nos podres Executivo, Legislativo e Federativo. Como o que acabou prevalecendo na teoria da separação de poderes foi a ideia de Montesquieu, quando se começa a falar em separação de poderes, todo mundo começa a falar em Montesquieu.

Interessante também notar que o homem, por ceder parcela de suas liberdades ao Estado tão somente para que este administre o que é coletivo, possui plenamente a legitimidade para engatilhar processos revolucionários quando os governantes não agem de acordo com o motivo do contrato social.

1.3.5.3. Jean-Jacques RousseauRousseau, diferentemente de Hobbes, afirmava que o homem, antes do contrato social, vivia no Estado da Natureza feliz, alegre e saltitante, desfrutando de liberdade e igualdade. Sem

comandos políticos, o homem vivia no livre exercício de seus direitos naturais, em uma Idade de Ouro, onde não havia propriedade privada nem corrupção.

A desarmonia teria surgido quando alguns homens, prevalecendo de sua força, impuseram o domínio. De acordo com ele, a sociedade civil surgiu quando o primeiro indivíduo fez um cercadinho, bateu uma laje e bradou: “isso me pertence”.

Em sua obra “O Contrato Social” (1.762), o homem, visando recuperar seu bem estar primitivo, teria transferido seus direitos naturais ao Estado em troca de direitos civis (vê-se aqui a dualidade rousseauniana entres direitos naturais e direitos civis, sendo que estes somente seriam justos e legítimos se fundados naqueles). Direitos naturais, então, seriam os direitos civis sob a tutela do Estado. Não haveria renúncia à liberdade, pois tal ato seria incompatível com a natureza humana. Toda a noção de contrato social deste filósofo está baseada no bem comum, na união de forças destinada à utilidade geral, que não se limita ao somatório das vontades particulares.

Importante entender que Rousseau não buscava explicar o contrato social como um fato histórico, mas sim como algo hipotético, filosófico.

Direito: como claramente se percebe, Rousseau era um jusnaturalista, tendo sua filosofia um aspecto imanentista de justiça, não advinda de Deus, mas dos próprios homens. E a justiça, em Rousseau, é a observância das leis justas que foram elaboradas com base nos direitos naturais pela vontade geral de preservar direitos e liberdades inatos ao homem.

Veja bem, Rousseau escreveu e concebeu essas ideias, evidentemente, sabendo que a realidade não era assim. Ele fez, de fato, uma grande crítica aos desmandos da política e da sociedade, especialmente no cenário miserável que se encontrava a França pré-revolução.

1.3.5.4. MontesquieuCharles Louis de Secondat, conhecido como o Barão de Montesquieu, rejeitava o método racionalista de conhecimento, pautando-se no empirismo histórico para desenvolver suas teorias.

Jurídica e politicamente, teve ele grande importância ao escrever o livro “O Espírito das Leis”, que forneceu as bases definitivas para a consagração da atual e majoritariamente adotada teoria da separação das atribuições do poder, conhecida como teoria dos freios e contrapesos.

Montesquieu foi um nobre Francês que escreveu sobre as instituições inglesas entre os séculos XVII e XVIII. A Inglaterra já possuía uma monarquia constitucional na época. A Revolução Inglesa acontece 140 anos antes da Revolução Francesa e ela é muito menos aguda do que a Francesa, pois aquela foi se fazendo com o passar do tempo. Durante um período a Inglaterra foi uma República, logo depois houve o retorno de uma monarquia limitada, constitucional.

Então, os ingleses passam de uma monarquia absoluta para uma República que dura 40 ou 50 anos e que depois volta a ser uma monarquia constitucional, só que com limitações de poder.

Então, Montesquieu quando escreve sobre as separações de poderes, ele escreve sobre as instituições inglesas, e não sobre a França, pois essa estava num Absolutismo monárquico ainda.

A doutrina do Barão não era de caráter positivista. Pelo contrário, ele era um jusnaturalista teológico, que afirmava existirem leis naturais que teriam sido criadas por Deus ao formar o universo.

TEORIAS DA SEPARAÇÃO DAS FUNÇÕES (PODERES)

Aristóteles

Deliberativo Assembleia que deliberaria sobre os negócios do Estado

Executivo Teria prerrogativas e atribuições determináveis em cada caso

Judiciário Administrador da Justiça

John Locke

Legislativo Elaborar as leis que disciplinariam o uso da força na comunidade civil

ExecutivoAplica as leis aos membros da comunidade, tanto na esfera judicial quanto na administrativa

Federativo Função de relacionamento com outros Estados

MontesquieuLegislativo LegislarExecutivo Exercer atividades executivasJudiciário Exercício da jurisdição

1.3.6. David HumeHume é responsável por uma verdadeira revolução filosófica em seu tempo (séc. XVIII), já que rompe com a supremacia da razão e com os métodos racionais de se alcançar a verdade ao estilo cartesiano e conduz sua reflexão para reconstruir o conhecimento humano a partir de bases sensoriais. Mais claramente, Hume foi um cético e um empirista, alicerçando toda a fonte de conhecimento humano sobre a experiência.

Ao repudiar o racionalismo, ele entendia que não tinha o homem capacidade cognitiva suficiente, de per si, pelo simples esforço do pensamento, de atingir a essência das coisas. Por isso ele tanto prezava pelos sentidos corpóreos, como a observação.

Em Hume, a moral somente existe por sua própria utilidade, pela necessidade de adoção de determinados comportamentos para não levar o homem à autodestruição. É a experiência humana que determina o que é bom, o que é ruim, o que é justo e injusto.

A utilidade geral é o verdadeiro critério estável de justiça, que se baseia numa moralidade social, naquilo que os homens, de forma convencionada (não convenção no sentido formal, mas uma convenção forjada com o tempo), julgam necessário para a sociedade.

Logo, a justiça não se define por critérios subjetivos, pelo que um indivíduo considera justo, mas sim pelo que objetivamente se tem como justo na coletividade.

Essas convenções podem mudar com o tempo.

Hume não se preocupa muito em analisar o homem como indivíduo, ele tem uma postura mais sociológica, sua base filosófica é a coletividade.

Para o filósofo, há regras naturais que regem a sociedade, não naturais no sentido jusfilosófico, mas no sentido da convencionalidade humana, de que os homens aprendem com a vivência

pelo fato de estarem insertos na sociedade. Por exemplo, não existe um direito natural (ordem superior) de não limpar o nariz em público, mas o homem aprende que isso não deve ser feito pois está fora da utilidade social.

Qual é o espaço do direito positivo aqui? Para Hume, se as regras da razão natural por algum motivo não forem suficientes, deve-se promulgar leis positivas para ocupar seu lugar e dirigir a sociedade. Se estas falharem, por sua vez, entram os precedentes judiciais.

1.3.7. Georg HegelSofreu forte influência de Kant, apesar de ter sido um pouco mais radical no que se refere às possibilidades do racionalismo.

A obra hegeliana possui um viés essencialmente racionalista. Dizer que há um racionalismo, de caráter idealista, no pensamento hegeliano significa dizer que toda a teoria do conhecimento vem marcada pela idea de que a realidade mora na racionalidade; o sujeito é o construtor da realidade das coisas, nada existindo fora do pensamento. Tudo o que é conhecido já é pensamento.

Hegel acreditava piamente que o racionalismo humano era absoluto, um idealismo absoluto em sentido objetivo. Ele negava qualquer limite ao conhecimento: o próprio absoluto é cognoscível. Isso não tornava incompatível, para ele, a necessidade da razão se valer de dados empíricos.

Dialética hegeliana

Quando se afirma algo (tese), o contrário está pressuposto no que vem afirmado (antítese), e do confronto entre a afirmação e a contraposição surge a síntese. Para Hegel, tudo poderia ser explicado com base na dialética, inclusive as mudanças históricas e movimentos sociais, que são frutos de diversas forças contraditórias que levam a um resultado específico.

Doutrina hegeliana

Hegel se preocupou muito com questões epistemológicas e com a ontognoseologia. O ponto central é o idealismo. Para ele, toda a realidade mora na racionalidade. Todo real só é real porque é conhecido por um sujeito que lhe identifica como real, e, nessa medida, aquilo que já foi conhecido, já se tornou real. Isso quer dizer que somente se torna conhecido aquilo que é refletido, idealizado pelo espírito, internalizado na mente da pessoa. Ao mesmo tempo, somente a razão pode ordenar o real, de modo que este se torne racional. Isso não quer dizer que tudo o que é real é racional. Dito de outra forma, nem tudo o que é real é racional, tendo-se em vista aquilo que pode ser identificado como o caos, como o desordenado, pois nisso não há razão.

Justiça e Direito

Como todo o sistema de Hegel é baseado no idealismo racional, somente pelo exercício da lógica se pode fazer a construção racional do Direito, na medida em que direito e justiça haverão de ser identificados com o que há de racional e não com o que há de irracional.

Surgirá a justiça não somente como um mero dado axiológico da sociedade, mas como a ideia que norteia a formação do próprio direito. O direito consubstancia-se por meio da legislação, e, com base na legislação, os indivíduos agem para a defesa e construção de seus direitos. O direito representa nada mais nada menos que uma manifestação do espírito objetivo, uma manifestação que consiste na liberdade em grau máximo da capacidade volitiva humana.

1.3.8. Karl Marx

1.3.9. Antônio GramsciPensador do século XX simpático a Marx, aperfeiçoou a dialética marxista pois reconheceu que não é só o fator econômico que influencia na política, mas que essa também forja o fator econômico.

Ele trouxe a discussão sobre a hegemonia, que se trata de uma posição ideológica dominante. O direito seria um sistema normativo que retrata o modelo dominante. Assim, se o Direito reflete a hegemonia, o papel do Judiciário na defesa dos direitos fundamentais, especialmente das minorias, seria contra-hegemônico.

Importante entender que, para Gramsci, o poder da classe dominante não reside apenas no controle dos aparatos repressivos do Estado (se fosse, seria mais fácil modificar a ordem das forças, pois a força pura e simples sempre pode ser desafiada). O principal aspecto de consolidação do poder é a HEGEMONIA CULTURAL, exercida por intermédio do controle do sistema educacional, das instituições religiosas e dos meios de comunicação, o que inibe a potencialidade revolucionária.

Como exemplo pode-se citar o argumento da “reserva do possível”, que, sob o manto da falta de recursos, esconde um ideal liberal e de estado mínimo.

Gramsci traz também o conceito de intelectual orgânico, pessoa que não só pensa, mas também participa da construção e formação da hegemonia, seja do lado dos conservadores, seja do lado dos grupos de transformação.

Nesse sentido, o juiz muitas vezes atua como esse intelectual orgânico, seja confirmando a hegemonia em decisões que atendam os anseios do poder dominante, seja confrontando-a, pelo exercício do controle de constitucionalidade e do ativismo judicial, por exemplo.

1.3.10. Emannuel KantFilósofo alemão nascido no ano de 1724, na cidade de Konigsberg. Faleceu em 1804. Escreveu importantíssimas ideias que até hoje fundamentam inúmeras práticas do dia a dia, tendo se destacado, no que se refere ao Direito, ao falar sobre a moral e a liberdade.

Kant com sua concepção de autonomia refuta, principalmente, o deísmo, o utilitarismo, o naturalismo, o voluntarismo, portanto, nesse sentido, se opõe também aos iluministas. Esses, não deixam espaço para a dimensão moral e, dessa forma, para a liberdade, pois a liberdade precisa de uma dimensão moral. Para Kant, a moralidade não deve ser definida segundo qualquer resultado, mas sim segundo o motivo que é a conformidade da ação com a lei moral.

Isso é liberdade, porque agir moralmente é agir de acordo com o que realmente somos, agentes morais/racionais. A lei da moralidade, em outras palavras, não é imposta de fora. É ditada pela própria natureza da razão. Ser um agente racional é agir por razões. Por sua própria natureza, as razões são de aplicação geral. Uma coisa não pode ser uma razão para mim agora sem ser uma razão para todos os agentes numa situação relevantemente semelhante. Assim, o agente de fato racional age com base em princípios, razões que são entendidas como gerais em sua aplicação. É isso que Kant quer dizer por agir de acordo com a lei. (TAYLOR, 1997, p. 465).

A lei moral não deve ser definida de acordo com resultados específicos. Dessa forma a decisão de agir moralmente é a decisão de agir com o propósito de conformar a minha ação com a lei universal. Isso corresponde a agir segundo minha verdadeira natureza raciona, e agir de acordo com as exigências de minha razão é ser livre. Para Kant, a vontade dos seres racionais é capaz de promulgar a legislação universal a que se submetem, e esse é o princípio da autonomia. Seguir apenas os ditames do desejo é cair na heteronomia. Kant discorda da noção do humanismo iluminista segundo a qual os desejos emanam de nós e a vivência deles representaria uma espécie de autonomia. "A visão kantiana encontra sua segunda dimensão na ideia de uma autonomia radical dos agentes racionais. A vida da mera satisfação dos desejos não é apenas rasa, mas também heterônoma. A vida plenamente significativa é aquela escolhida pelo próprio sujeito" (idem, p. 491). Segundo Vincenti (1994, p. 8), existir como sujeito significa não precisar referir-se a outro ser ou existência para definir, compreender ou justificar o que se é, sujeito é aquele que se sustenta ele mesmo na existência, por isso a ideia de sujeito está ligada à autonomia. Para Kant, o que realmente "emana de mim" é produzido pela razão, e ela exige que se viva de acordo com princípios. Essa perspectiva se rebela contra as que afirmam que a ação é determinada pelo fato dado, pelos fatos da natureza, em favor da própria atividade como formuladora da lei racional.

A partir do pensamento de Kant podemos afirmar que tudo que há na natureza se conforma com suas leis, exceto o homem. Isso porque o homem, na condição de ser racional, conforma-se às leis universais que ele próprio formula. Por isso os seres racionais são autônomos e têm uma dignidade particular22, se destacam da natureza por serem livres e autodeterminantes. (cf. TAYLOR, 1997, p. 467). Esse status racional nos impõe a obrigação de viver como agente racional. A natureza racional é a única coisa que existe como um fim em si mesma. Esse caráter racional confere ao homem dignidade, todas as outras coisas têm um preço, mas o homem possui dignidade. O homem, como ser racional, possui valor absoluto e não pode jamais ser tratado como meio, o que podemos ver em uma das formulações de Kant ao imperativo categórico: "Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio" (KANT, 1974a, 229). Por isso, na visão kantiana, a pretensão do naturalismo iluminista em submeter também o homem às leis da natureza nada mais é que heteronomia.

"O sentido da revolução copernicana23 consiste em ter ele acabado com o predomínio absoluto do pensamento físico e da filosofia naturalista [...]". (MESSER, 1946, p. 342). A libertação do naturalismo iluminista que impunha uma necessidade natural onipotente e não deixava lugar genuíno para a liberdade, consiste na descoberta de que o objeto considerado pela física, a natureza, não é a realidade absoluta. Assim, a natureza não é mais considerada coisa em si,

mas sim o sistema regular daquilo que o eu se representa. O eu se torna o Sol em torno do qual os objetos giram. Ainda segundo Messer (idem, p. 343), Kant não teria realizado tal revolução se seu pensamento não se achasse tão profundamente enraizado na sua consciência moral, se não tivesse levado em conta a vontade que se determina a si própria e a lei que a vontade impõe a si própria, ou seja, se não estivesse enraizado em sua concepção de autonomia moral.

O conhecimento das ciências deve ser estimulado dentro de seus limites, não pode ser a última instância para a nossa concepção de mundo e da vida. Kant está certo de que o imperativo categórico da consciência é regulativo e que a vontade tem que ser independente das leis da natureza. Ainda, com isso Kant pensa o homem como cidadão de dois mundos, o mundo sensível do conhecimento natural e o mundo supra-sensível da liberdade; assunto que retomaremos em seguida e é central para entendermos a concepção de autonomia desse autor.

"Kant segue Rousseau em sua condenação do utilitarismo. O controle instrumental-racional do mundo a serviço de nossos desejos e necessidades só pode degenerar num egoísmo organizado [...]" (TAYLOR, 1997, p. 466). Kant parte das fontes morais da internalização ou subjetivação, inauguradas por Rousseau, mas fornece uma nova base. Para ambos, a lei moral vem de dentro e não pode ser definida por qualquer ordem externa. No entanto, para Kant, ela não pode ser definida pelo impulso da natureza "em mim", mas apenas pela razão prática que exige uma ação de acordo com princípios gerais. Qualquer concepção moral que derive seus propósitos normativos de uma ordem cósmica ou de uma ordem dos fins da natureza humana acarreta a abdicação da responsabilidade de gerar a lei por nós mesmos e cai na heteronomia. Assim, a exaltação da natureza como fonte é, para Kant, tão heterônoma quanto o utilitarismo.

A concepção de autonomia de Kant também se alia aos antivoluntaristas. Ele reprovava fortemente o pensamento de dependência de um ser racional às ordens e aos desejos de outro, mesmo que este seja Deus, considerando essa concepção, de certa maneira, oposta à nossa ação livre essencial. "A moralidade da autonomia kantiana é decisivamente oposta ao voluntarismo, porque a racionalidade da lei moral que guia Deus e nós é tão evidente para nós quanto para ele" (SCHNEEWIND, 2001, p. 556).

Kant não condena a razão instrumental voltada para o controle racional. Considera que o desenvolvimento da razão instrumental, necessário para o homem superar obstáculos da natureza e sobreviver, pode levá-lo à racionalidade em sentido mais amplo (cf. TAYLOR, 1997, p. 468). Ele manteve-se um homem do Iluminismo, herda da filosofia de sua época a problemática da maioridade e autonomia, mas se opôs em aspectos essenciais. Preservou a centralidade da razão, mas a pensou em sentido mais amplo que a razão instrumental. A diferença fundamental é que a questão crucial quanto à autonomia para Kant é o crescimento em racionalidade, moralidade e liberdade, não em felicidade.

O erro do naturalismo iluminista é ter interpretado mal o espírito com o qual a vida deve ser vivida, o fim básico que deve presidir tudo. Não é a felicidade, mas a racionalidade, a moralidade e a liberdade. O homem pode, de fato, atingir um alto grau de civilização sem se tornar realmente moral. (idem).

Enfim, Kant manteve a leitura empírica e matemática da natureza que os iluministas haviam recebido de Galileu e Descartes, no entanto a restringiu à natureza, não a aplicando ao homem, como haviam feito os iluministas. Quanto ao homem, Kant o pensou como dotado de alma espiritual com o poder de pensar o universal, vinculando a isso, sua liberdade e dignidade, sua autonomia.

Na Crítica da Razão Pura, Kant demonstrou a possibilidade das ciências matemáticas e naturais e acabou chegando à negação de uma metafísica que se apóia na mesma objetividade e universalidade dessas ciências. A razão teórica ficaria limitada ao âmbito da experiência. Só podemos conhecer os fenômenos que nos são acessíveis pelos sentidos; liberdade, imortalidade da alma e Deus, temas da metafísica, não são objetos de conhecimento. Rousseau já havia condenado a pretensão da filosofia iluminista de buscar o bem no acréscimo de conhecimento. O progresso humano no campo especulativo não significa o progresso moral do homem. A partir da impossibilidade da metafísica enquanto conhecimento, Kant precisa construir uma crítica para conhecer as possibilidades que a razão dispõe para elaborar uma metafísica. Na Crítica da Razão Prática, Kant demonstra que a razão pura é prática por si mesma, ou seja, ela dá a lei que alicerça a moralidade, a razão fornece as leis práticas que guiam a vontade. Leis práticas são princípios práticos objetivos, regras válidas para todo ser racional. Elas se diferenciam das máximas que são princípios práticos subjetivos, regras que o sujeito considera como válidas apenas para sua própria vontade. "Admitindo-se que a razão pura possa encerrar em si um fundamento prático, suficiente para a determinação da vontade, então há leis práticas, mas se não se admite o mesmo, então todos os princípios práticos serão meras máximas" (KANT, sd, p. 31).

Para Kant, se os desejos, os impulsos, impressões, ou qualquer objeto da faculdade de desejar forem condições para o princípio da regra prática, então o princípio será empírico, não será lei prática, não haverá unidade nem incondicionalidade do agir, e assim, não garantirá a autonomia. A lei moral deve independer da experiência. Uma vontade boa determina-se a si mesma, independentemente de qualquer causalidade empírica, sem preocupar-se com prazer ou dor que a ação possa provocar. Uma moral que se determina por causas empíricas cai no egoísmo. "Todos os princípios práticos materiais são, como tais, sem exceção, de uma mesma classe, pertencendo ao princípio universal do amor a si mesmo, ou seja, à felicidade própria" (idem, p. 33). Para Kant a busca da felicidade própria concerne à faculdade inferior de desejar, ela se relaciona às inclinações da sensibilidade e não à razão. O princípio do amor por si ou da felicidade jamais poderiam servir de fundamento para uma lei prática, tendo em vista sua validade que é apenas subjetiva. Cada um coloca o bem estar e a felicidade em uma coisa ou outra, de acordo com sua própria opinião a respeito do prazer ou da dor. Se formulássemos uma lei subjetivamente necessária como lei natural, seu princípio prático seria contingente e não garantiria a autonomia.

Somente a razão, determinando por si mesma a vontade, é uma verdadeira faculdade superior de desejar. "Um ser racional não deve conceber as suas máximas como leis práticas universais, podendo apenas concebê-las como princípios que determinam o fundamento da vontade, não segundo a matéria, mas sim pela forma" (ibid, p.37). Um ser racional não pode conceber seus princípios subjetivos práticos, suas máximas, como leis universais. A vontade para ser moral

não deve determinar-se pelo objeto, deverá abstrair a matéria da lei para reter-lhe apenas a forma, a universalidade.

Em suma: ou um ser racional não pode conceber os seus princípios subjetivamente práticos, isto é, as suas máximas como sendo ao mesmo tempo leis universais ou, de forma inversa, deve admitir que a simples forma dos mesmos, segundo a qual se capacitam eles para uma legislação universal, reveste esta de característico conveniente e apropriado. (ibid).

Para o filósofo de Königsberg, a vontade só pode ser determinada pela simples forma legislativa das máximas. A mera forma da lei só pode ser representada pela razão e não pelas leis naturais que regem os fenômenos. A vontade deve ser independente da lei natural dos fenômenos, e essa independência se denomina liberdade. Então, a vontade que tem como lei a mera forma legisladora das máximas é uma vontade livre. "A razão pura é por si mesma prática, facultando (ao homem) uma lei universal que denominamos lei moral" (ibid, p. 41). A força da lei moral está em sua absoluta necessidade e em sua universalidade. Ora, a universalidade da lei moral, para Kant, significa que ela tem de valer não só para os homens, mas para todos os seres racionais em geral (cf. KANT, 1974a, p. 214). Em Kant, universalidade significa racionalidade, se o dever ordena universalmente é porque é racional. Já a absoluta necessidade denota uma necessidade que não seja condicionada a nenhum outro fim, mas que seja necessária por si mesma. Por isso a lei moral deve ser um mandamento, um imperativo, que seja categórico e não hipotético. Em virtude de ser incondicional e universal, o imperativo categórico possui apenas conteúdo formal, sendo, portanto, uma fórmula. A lei moral deve ser assim formulada, em termos de imperativo categórico24: "Age de tal forma que a máxima de tua vontade possa valer-te sempre como princípio de uma legislação universal" (KANT, sd, p. 40). Segundo Kant, nós temos consciência imediata dessa lei, ela se impõe como um fato, um fato da razão. Mas não é um fato empírico, é o único fato da razão pura que se manifesta como originariamente legisladora, impõe-se a nós de forma a priori.

Todavia, no homem, a lei possui [...] a forma de um imperativo, porque, na qualidade de ser racional, pode-se supor nele uma vontade pura; mas, por outro lado, sendo afetado por necessidades e por causas motoras sensíveis, não se pode supor nele uma vontade santa, isto é, tal que não lhe fosse possível esboçar qualquer máxima em contraposição à lei moral. Para aqueles seres a lei moral, portanto, é um imperativo que manda categoricamente, porque a lei é incondicionada. (idem, p. 42).

A lei moral é para nós um dever. É a consciência do dever que nos mostra que a razão é legisladora em matéria moral, que a razão é prática em si mesma e que o homem é livre. A partir disso, Kant na Crítica da razão prática formula o seguinte teorema: "A autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres correspondentes às mesmas" (ibid, p.43). O princípio da moralidade é a independência da vontade em relação a todo objeto desejado, ou seja, de toda matéria da lei e, ao mesmo tempo, a possibilidade da mesma vontade determinar-se pela simples forma da lei. Assim, a liberdade possui o aspecto negativo e o positivo, os quais convergem na ideia de autonomia. A lei moral apenas exprime a autonomia da razão pura prática, ou seja, a liberdade.

Fica demonstrada assim a possibilidade e a centralidade da razão prática e da autonomia na teoria kantiana:

Revela esta analítica que a razão pura pode ser prática, isto é, pode determinar por si mesma a vontade, independentemente de todo elemento empírico; - e demonstra-o na verdade mediante um fato, no qual a razão pura se manifesta em nós como realmente prática, ou seja, a autonomia, no princípio da moralidade, por meio do que determina a mesma a vontade do ato. - Por sua vez, a Analítica mostra que este fato está inseparavelmente ligado à consciência da liberdade da vontade, identificando-se, além disso, com ela. (ibid, p. 49).

A lei moral implica que a vontade possa ser livre na medida em que se determina por um motivo puramente racional. Mas o homem está sujeito às leis da causalidade enquanto pertencente ao mundo sensível, e por outro lado tem consciência que é livre enquanto participante da ordem inteligível.

Pelo dever, o homem sabe, pois, que não é somente o que aparenta a si mesmo, isto é, uma parte do mundo sensível, um fragmento do determinismo universal, mas é também uma coisa em si, a fonte de suas próprias determinações. A razão prática justifica assim o que a razão teórica tinha concebido como possível no terceiro conflito da antinomia: a conciliação da liberdade que possuímos como noúmenos, com a necessidade de nossas ações como objetos da experiência no fenômeno25. (BRÉHIER, sd, p.205).

Dessa forma, Kant confere ao homem dois mundos, o mundo da causalidade, no qual não é possível prever grau de liberdade para um fenômeno físico e, o mundo da liberdade26, que é o âmbito da razão prática no qual é possível autonomia. O homem é considerado como fenômeno, sujeito à necessidade natural, e como coisa em si27, ou livre. A liberdade só é possível porque a coisa em si não está determinada e, portanto, não é cognoscível. A razão teórica não atinge o "ser noumênico", já a razão prática se refere ao "ser noumênico". Assim, os conhecimentos devem limitar-se à síntese entre a sensibilidade e categorias do entendimento, ou seja, aos fenômenos. Já no domínio prático, "a razão se aplica a motivos determinantes da vontade, enquanto faculdade de produzir objetos correspondentes, podendo determinar-se a si mesma, engendrando sua própria causalidade, na sua atuação em relação a si mesma" (MARTINI, 1993, p. 114). Assim, como participantes do mundo noumênico, somos livres, e como participante do mundo fenomênico, somos determinados. No entanto, segundo Bréhier (sd, p. 199), o determinismo é uma lei do nosso conhecimento, não uma lei do ser, se aplica à realidade tal como a conhecemos, e não tal como ela é. A distinção kantiana entre dois mundos abre um espaço legítimo para o livre-arbítrio, já que o mundo noumênico não é determinado pelas leis da causalidade que determinam o mundo fenomênico. Se o livre-arbítrio não deixar fundamentar-se pelo dever, que é dado na razão prática, ou fundamentar-se em algo que é contrário a esse dever, a ação será heterônoma. Em resumo, ação autônoma é aquela que se guia pela própria lei, que é lei da razão prática, e ação heterônoma é aquela que se guia por algo que é externo ou contrário à lei da razão prática.

Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em qualquer outro ponto que não seja a aptidão das suas máximas para a sua própria legislação universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca essa lei na natureza de qualquer dos objetos, o resultado é então sempre heteronomia. (KANT, 1974a, p. 239).

Para Kant, a liberdade prática é, então, a independência da vontade em relação a toda lei que não seja a lei moral. O homem não é determinado pela natureza, e, pelo livre-arbítrio, pode

escolher agir por dever, e nisso consiste sua autonomia. Ainda, a distinção kantiana entre o caráter inteligível e o sensível, além de negar o determinismo do homem pela natureza, nega o determinismo teológico. O homem assume a reinvidicação de responsabilidade total. No entanto, penso que a concepção de autonomia de Kant mantém a questão estética subjugada ao dever, seu formalismo restringe demasiadamente o sentido empírico, existencial da autonomia. Dessa forma, podemos dizer que Kant também promove um reducionismo28 da autonomia, no entanto, no sentido inverso ao que os iluministas haviam feito. E, é importante destacarmos que a dimensão estética deve estar bem presente numa educação ou pensamento que vise formar para a autonomia, por ser de caráter diretamente individuante, é instância que necessariamente integra o ser autônomo do homem.

Na Crítica da razão pura e na Crítica da razão prática, Kant enfatiza a distinção entre razão teórica e razão prática, na Crítica da faculdade do juízo ele aponta a faculdade de julgar como possibilitadora da passagem de um domínio para outro, propõe a tarefa de tentar uma mediação entre os dois mundos. Assim o entendimento é a fonte dos conhecimentos, a razão o princípio de nossas ações e o juízo tem a função de pensar o mundo sensível em referência ao mundo inteligível (cf. PASCAL, 1999, p. 177). É na faculdade do juízo29 que Kant encontra o intermediário procurado. Dessa forma, Kant procura na terceira crítica resgatar a dimensão estética da autonomia que fica subjugada ao formalismo da lei moral na segunda crítica. No entanto, mesmo na terceira crítica, a ideia de felicidade permanece submetida à ideia de dever e à universalidade, e, portanto, em Kant, a dimensão estética da autonomia não é devidamente acionada. Segundo Suzuki (1989, p. 12), Schiller vai procurar acabar a tarefa iniciada por Kant na Crítica da faculdade do juízo, conseguindo dar maior ênfase à dimensão estética da autonomia.

A morte para Kant

Fortunately, there is more. In Immanuel Kant's "Critique of Pure Reason," the great philosopher explained how space and time are forms of human intuition. Indeed, everything you see and experience is information in your mind. If space and time are tools of the mind, then we shouldn't be surprised that at death there's a break in the connection of time and place. Without consciousness, space and time are meaningless; in reality we can take any time -- or any spatial plane -- and estimate everything against this new frame of reference.

1.3.11. Hans Kelsen

1.3.12. Giorgio Del Vecchio

1.3. Contemporaneidade

1.3.1. Robert AlexyVide item 2.15.4. Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy.

1.3.2. Ronald DworkinIntrodução: antipositivismo e anti-utilitarismo dworkiano

Ronald Dworkin foi um célebre jusfilósofo que buscou elaborar uma teoria do direito de forma totalmente crítica ao positivismo jurídico e ao utilitarismo.

Em relação ao positivismo jurídico, o filósofo defendia que não se poderia conceber o direito como um legalismo estrito a ser realizado pelo juiz. Não concordava ele com a ideia de que direito era simplesmente um processo subsuntivo das normas positivadas aos fatos apresentados, nascendo daí a lei do caso concreto. Antes, ele outorgava uma imensa importância à interpretação, já que o direito seria fato interpretativo dependente das necessidades da prática social, comunitária e institucional dos agentes de justiça.

Acerca do utilitarismo, sabe-se que tradicionalmente os utilitaristas opuseram-se à noção de direitos humanos, sendo que Jeremy Bentham chegou mesmo a considerá-los algo fictício. O princípio fundamental do utilitarismo é que o bem-estar de qualquer indivíduo não pode contar mais do que o bem-estar geral, e, portanto, a ideia de que um indivíduo possua direitos que podem se sobrepor ao bem comum é rechaçada por alguns utilitaristas que primam pela maximização da felicidade geral. Esta é geralmente entendida em termos de prazer, no utilitarismo clássico, ou de satisfação de interesses, desejos ou preferências, nas versões contemporâneas do utilitarismo.

Dworkin sustenta que essas teorias utilitárias possuem uma deficiência no seu modo de justificação. A defesa do bem-estar geral é comumente feita no utilitarismo a partir da noção de que, por exemplo, o prazer é um bem em si. Todavia, ele considera essa ideia absurda para justificar políticas públicas. Assim, se o bem-estar é uma noção fundamental da política, então temos que encontrar uma razão melhor para adotá-la. Para ele, esta justificação é dada pela ideia de igualdade.

A interpretação como meio de alcançar a justiça

O direito deve ser visto como instrumento que realiza valores e expectativas de justiça que lhe são anteriores. Isso não pode ser feito no modelo positivista propugnado por Kelsen. Para Dworkin, a interpretação no direito é essencial, especialmente mediante sua posição de que o juízo jurídico não pode ser feito sem o juízo moral.

Porém, ele não quer, com isso, ir de encontro ao sistema jurídico vigente para afirmar a inexistência de parâmetros judiciais de decisão ou conceder uma carta branca aos juízes para julgar.

Para Dworkin, a atividade interpretativa, inerente ao Direito, é essencialmente evolutiva, na medida em que as concepções jurídicas do “ontem” são remanejadas, a cada case, para ser o melhor possível hoje. A forma pela qual se interpretava “ontem” recebe constantemente ajustes, adequações e acomodações para caber no hoje1.

No marco teórico dele, duas regras presidem a ideia de interpretação:

a) Conveniência : levantamento dos precedentes e argumentos cabíveis perante o caso analisado;

1 Nessa perspectiva, o Direito é fruto de uma concepção histórica de justiça de um conjunto de participantes. Veja-se, aqui, presente a ideia Gadameriana de espiral hermenêutica.

b) Valor : escolha do valor de justiça que se acolhe para orientar a seleção dos argumentos, de acordo com a ideia de que a justiça exige a igualdade para se manifestar.

Dworkin trabalhou muito com a ideia de “moral política”. Para ele, moral política é a norma fundamental que rege sua teoria. E qual seria ela? Igual respeito e igual atenção. Importante entender que o filósofo se taxava de liberal. Assim, numa primeira fase de sua produção literária, ele adotava o entendimento kantiano de que a autonomia individual deveria ser observada, não podendo o Estado interferir exceto para proteger as próprias liberdades individuais.

Porém, avançando em suas obras, percebe-se que ele passa a entender que a satisfação do bem particular privado não pode ser conquistada sem que alguns elementos de justiça (públicos) intervenham para a sua realização. A justiça é entendida como condição de bem estar para a realização dos indivíduos.

A filosofia política de Dworkin parece ser algum tipo de liberalismo idealizado. Isso quer dizer o seguinte: teoricamente, parece não haver realmente conflito entre liberdade e igualdade, mas nas práticas das economias capitalistas, nas quais o seu igualitarismo liberal encontra seu lugar natural, há certamente um antagonismo entre esses ideais políticos. Por isso, autores como Rawls, ao darem prioridade para as liberdades e imediatamente reconhecerem que elas produzem desigualdades sociais, parecem ser mais realistas. Portanto, ao colocar a igualdade como fundamento do liberalismo, Dworkin é levado a aceitar, em primeiro lugar, um conceito meramente formal de igualdade (igual respeito e consideração) e, em segundo, tipos de igualdade mais substantivos (de recursos, de oportunidades etc.), mas que ainda estão longe de satisfazerem uma versão mais radical de igualitarismo.

Hermenêutica, razoabilidade e coerência do direito

Como visto, a interpretação é um aspecto crucial para o desenvolvimento do próprio Direito, pois permite entender que ele não se exaure num conjunto de normas2, já que pressupõe, além das regras positivadas, princípios igualmente vinculantes da atividade judicial3.

Para Dworkin as regras são aplicadas ao modo tudo ou nada (all-or-nothing), no sentido de que, se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou é a regra válida e a consequência normativa deve ser aceita, ou ela não é considerada válida. No caso de colisão entre regras, uma delas deve ser considerada inválida. Os princípios, ao contrário, não determinam absolutamente a decisão, mas somente contêm fundamentos, os quais devem ser conjugados com outros fundamentos provenientes de outros princípios.4 Daí a afirmação de que os princípios, ao contrário das regras, possuem uma dimensão de peso (dimension of weight), demonstrável na hipótese de colisão entre os princípios, caso em que o princípio com peso relativo maior se sobrepõe ao outro, sem que este perca sua validade.

2 Dworkin entende que norma é sinônimo de regra, diferentemente de outros doutrinadores que entendem que normas são regras e princípios.3 Lembrar que para o positivismo jurídico clássico, os princípios não tinham força normativa, eram meras diretrizes.4 Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, 6* tir., p. 26, e "Is law a system of rules?", in The Philosophy ofLaw, p. 45.

Os princípios, para Dworkin, geralmente serão invocados nos casos difíceis (hard cases), quando há lacunas, antinomias ou ambiguidades insuperáveis, ou quando inexistir precedente apto a amparar o que é analisado (lembrar que Dworkin trabalha num contexto de commom law, apesar de sua teoria ser perfeitamente consentânea com a civil Law).

Ademais, os princípios sempre serão tidos como instrumentos de auxílio à decisão judicial.

Nessa direção, a distinção elaborada por Dworkin não consiste numa distinção de grau, mas numa diferenciação quanto à estrutura lógica, baseada em critérios classificatórios, em vez de comparativos, como afirma Robert Alexy. A distinção por ele proposta difere das anteriores porque se baseia, mais intensamente, no modo de aplicação e no relacionamento normativo, estremando as duas espécies normativas (regras e princípios).

Pois bem.

Em Dworkin, quando se passa a pensar a coerência do Direito como uma grande mecânica que reúne regras e princípios, a razoabilidade (fairness) do Direito deixa de depender apenas da lógica intrassistêmica (ou seja, de uma análise do direito positivo) e passa a depender da lógica intersistêmica (aquilo que as instituições humanas reconhecem como práticas socialmente legítimas), em face da recorribilidade à história e à prática (práxis) em torno da justiça. Se a aplicação do direito sempre depende de uma releitura do passado, de forma a se chegar a um ponto melhor, história e interpretação andam juntas na definição da ideia de ‘coerência’ do Direito.

O fato de o juiz basear sua interpretação num fundamento histórico não o autoriza a agir com arbitrariedade, mas sim o vincula também a dados constantes no ordenamento jurídico, mas não necessariamente positivados: os princípios. Isso elimina do juiz a possibilidade de recorrer ao direito alternativo, o completo atropelo das normas positivadas para aplicar o solipsista ideal pessoal de Justiça.

Liberdade X Igualdade

Dworkin é um liberal igualitário. Na colisão existente entre liberdade e igualdade, ambos os princípios se fazem imprescindíveis. Assim, Dworkin constrói seu sistema de forma a responsabilizar os indivíduos pelas escolhas que fazem (liberdade), mas desde que haja a responsabilidade da sociedade em criar as oportunidades para que as escolhas individuais sejam efetivas (liberdade).

Dworkin se diferencia, com esse modelo, dos igualitários antigos, os quais embora afirmem que a comunidade possui o dever coletivo de tratar igualmente a todos, ignoram a responsabilidade dos indivíduos por suas escolhas pessoais. Diferencia-se também dos libertários, os quais enfatizam a responsabilidade pessoal e deixam de reconhecer a responsabilidade coletiva.

Ele se vale, para promover essa coerência entre os dois princípios, da “estratégia da ponte”, pela qual um dos princípios não tem convivência autônoma sem o outro.

1.3.3. Herbert Hart5

1.3.3.1. IntroduçãoEste artigo tratará sobre uma particular concepção positivista do Direito. As páginas que seguem estarão dedicadas a analisar as principais contribuições teóricas de Herbert L. A. Hart. Explica-se esta escolha com base nas seguintes justificativas: 1) porque tanto Kelsen como Ross deixaram evidente em suas teorias que o Direito tem a peculiaridade de ser, ao mesmo tempo, um sistema normativo e um fato social, tal como pensa Hart . Um dos problemas que ambos os autores enfrentaram, e ao qual não conseguiram dar uma resposta adequada, reside na elaboração de uma teoria da validez capaz de abranger esta natureza dual do Direito. A este vazio teórico soma-se a obra jurídica de Hart, que é uma significativa conciliação das teses de Kelsen e Ross.

2) Hart era um liberal. Escreveu contra a pena de morte, contra a perseguição das pessoas pela sua preferência sexual, a favor do direito ao aborto. Era, também, um convicto defensor da democracia e, assim como Kelsen, sua concepção de Direito está vinculada à defesa do Estado democrático e, sobretudo, dos valores de tolerância e liberdade. Hart se propõe a elaborar uma teoria do Direito que ele define como “sociologia descritiva”.

O que Hart procura descrever é o modo como os juristas e as pessoas comuns usam a linguagem do Direito. Para fundamentar sua teoria, Hart emprega os instrumentos elaborados pela filosofia analítica que ele entende como um método que permite não só sopesar o significado das expressões, mas também entender melhor o funcionamento das instituições sociais e, em particular, o Direito. Ele considera que é necessário diferenciar no Direito – como em certa medida o fez Ross – um aspecto interno e outro externo, distinção que permite examinar o fenômeno jurídico sob dois pontos de vista: o interno e o externo.

1.3.3.2. Hart e a Defesa do Positivismo Jurídico Metodológico

1.3.3.2.1. A Estrutura Do Ordenamento Jurídico

“O que é o Direito?” Segundo sua opinião, para encarar este questionamento é necessário saber: (1.º) em que se diferencia o Direito das ordens respaldadas por ameaças; (2.º) em que se distingue a obrigação jurídica da obrigação moral; (3.º) que são as normas jurídicas e, em que medida, o Direito é uma questão de normas. Alguns dos problemas fundamentais da teoria jurídica encontram-se no âmbito das relações entre o Direito e a coerção, o direito e a moral e o Direito e as normas. Ao buscar dar uma resposta a estas questões, Hart desenvolve uma teoria do Direito com duas características fundamentais: (a) é geral, no sentido que busca explicar qualquer sistema jurídico vigente nas complexas sociedade contemporâneas. e (b) é descritiva, posto que pretende elucidar a estrutura do Direito e o seu funcionamento sem considerar, deste modo, a justificação moral das práticas jurídicas analisadas.

Com base nestes alicerces, Hart critica a teoria positivista elaborada por John Austin (cujas raízes se remontam a Jeramy Bentham) que delimitou os pilares do positivismo inglês na separação categórica entre o Direito que é e o Direito que deve ser e na insistência de que os fundamentos de um sistema jurídico não devem ser buscados em nenhuma teoria moral ou

5 Tópico elaborado com base no artigo “UM MODELO DE POSITIVISMO JURÍDICO: O PENSAMENTO DE HERBERT HART”, de Sheila Stolz, professora da FUFRG.

justificativa. Dentro desta tradição positivista, Austin formula sua teoria imperativa do Direito afirmando que este é um conjunto de ordens respaldadas por ameaças ditadas pelo soberano no exercício de seu poder soberano e legislativo ilimitado.

Hart comparte parcialmente as duas afirmações centrais do positivismo clássico, mas refuta a conclusão de Austin conforme a qual o critério de identificação das regras jurídicas se encontra no hábito dos cidadãos de obedecer a um soberano, uma vez que o Direito, em uma sociedade organizada, não pode ser identificado satisfatoriamente respondendo as perguntas: (1) quem é o soberano? e (2) quais são as suas ordens? Este critério é adequado para identificar mandados como as ordens dadas por um assaltante a sua vítima, mas inadequado para explicar a percepção que os cidadãos têm de uma vida social institucionalizada, como a dos sistemas jurídicos contemporâneos. Ao juízo de Hart, um dos erros de Austin foi não construir a noção de regra sem a qual é impossível explicar a estrutura e o funcionamento do Direito – que deve ser entendido como um conjunto de regras que formam parte de um sistema jurídico. Para Hart, o ordenamento jurídico é formado por um conjunto de regras que ele denomina de regras primárias e por três tipos de regras secundárias: regras de reconhecimento, regras de alteração/modificação e regras de adjudicação.

Com a intenção de manter a distinção de Hart entre regras primárias e secundárias, Hacker e MacCormick propuseram algumas reformulações a esta distinção, reforçando a essencialidade da tipologia das normas apresentada por Hart e o fato de tal tipologia ser, na opinião do próprio autor, ambígua e imprecisa, o que a converte, irremediavelmente, em banco de muitas críticas. Uma destas críticas aponta para a rigidez de tal distinção e ao fato de que, em determinadas situações, pode ser difícil delimitar quando uma norma é uma regra eminentemente primária ou secundária. Outra repreensão relevante é a de que esta tipologia não incorpora em sua estrutura as normas permissivas. Mas certamente a crítica mais importante advém do já mencionado debate entre Dworkin e Hart, em que o primeiro acusa o autor em tela de preocupar-se excessivamente com as normas, ignorando os princípios.

A fim de complementar a estrutura fundacional da sua teoria, Hart cria a noção de rule of recognition que pretende ser um remédio para a falta de certeza do regime de regras primárias, bem como o instrumento adequado para a identificação de todo o material jurídico, de modo que o status de uma norma como membro do sistema dependa de que ela satisfaça certos critérios de validez estabelecidos na regra de reconhecimento. Dita regra, ademais, é uma norma última que subministra um critério jurídico de validez supremo. Neste sentido, todas as normas identificadas com referência a este critério são reconhecidas como normas válidas do ordenamento jurídico. Não obstante, é mister enfatizar que uma norma subordinada pode ser válida ainda que não seja geralmente obedecida, mas uma regra de reconhecimento não pode ser válida e rotineiramente desobedecida, pois ela somente existe como uma prática social eficaz e complexa. Então, uma regra de reconhecimento existirá como questão de fato se, e somente se, é eficaz. Para a verificação do grau de eficácia da regra de reconhecimento se exige do cumprimento, a aceitação da mesma por seus destinatários.

É a presença da regra de reconhecimento que articula a ideia de sistema jurídico, é ela que distingue o Direito de outros sistemas normativos, como a moral, as regras de trato social e as regras de jogo – dado que estes sistemas não dispõem, em seu interior, de uma regra última

que identifique toda e cada uma das normas existentes estabelecendo a sua pertinência e validez. A regra de reconhecimento última é reconhecida/aceita pela maioria dos cidadãos. Esta asseveração induz a muitas perguntas: 1) Além dos cidadãos como categoria genérica, existe outro sujeito que necessariamente deve aceitar a regra de reconhecimento?; 2) Podem existir zonas de penumbra nos critérios últimos de validez jurídica contidos na regra de reconhecimento?; 3) A aceitação da regra de reconhecimento exige, necessariamente, uma justificação moral? Estas perguntas são importantes para compreender o pensamento de Hart.

1.3.3.2.2 Os Conceitos De Existência, Validez E Eficácia Jurídica

Articular uma concepção do Direito como sistema é um requerimento teórico que possibilita estabelecer critérios para identificar e definir quais são as normas jurídicas que compõem um determinado conjunto normativo ao que normalmente se denomina “ordenamento jurídico”. Na construção hartiana, uma norma somente pertencerá a um ordenamento jurídico se a regra de reconhecimento identificá-la como tal, outorgando-lhe validez. Este é o denominado critério de filiação. Para Hart, uma norma existe de fato, quando a conduta por ela estabelecida é geralmente obedecida. Hart adverte que se deve distinguir entre a ineficácia de uma norma que pode ou não afetar a sua validez e uma inobservância geral das normas do ordenamento jurídico. A obediência dos sujeitos – sejam destinatários ou operadores jurídicos – é, em última instância, a única dimensão da qual se predica a existência de um sistema jurídico. Neste sentido, estará descartada a possibilidade de incluir como outra condição para a validez de toda e qualquer norma jurídica a correção moral do seu conteúdo. A fim de que os destinatários e os operadores jurídicos possam obedecer às normas jurídicas, com independência de que em um segundo momento mostrem-se em desacordo ou não com o seu conteúdo e queiram atuar de forma distinta a prevista na norma, é imprescindível que estas sejam formuladas de modo que “possam” ser obedecidas, isto é, que cumpram com determinados requisitos, por exemplo, a claridade e a publicidade, pois somente desta forma poderão servir como pautas de conduta e, consequentemente, serão capazes de produzir certeza jurídica. Traçar as características específicas da regra de reconhecimento ajuda não somente a distingui-la das demais normas, mas também a ter uma imagem mais adequada do ordenamento jurídico como sistema normativo.

1.3.3.2.3. A Distinção entre Ponto de Vista Interno e Ponto de Vista Externo Perante as Regras Jurídicas e os Respectivos Enunciados Internos e Externos

Centrada em um normativismo moderado, a teoria do dever jurídico pretende ser um modelo capaz de separar a obrigação jurídica do dever moral. Para alcançar seus objetivos, parte Hart de um conceito normativo do dever: só e exclusivamente a existência de uma norma jurídica distingue a situação em que um sujeito tem uma obrigação da situação na qual está obrigado. Desta forma, pretende justificar a sanção que impõe a obrigação e, para tanto, leva em consideração o fato de que vivemos em sociedades complexas onde existem, quando menos, dois tipos de atitudes distintas perante o Direito: aquela em que o sujeito se vê obrigado e aquela situação perante a qual o sujeito obra de um modo determinado porque tem uma obrigação. Assim, propõe o autor a distinção entre os pontos de vista externo e interno.

Distinção que pode ser aplicada a qualquer tipo de regra social e é muito importante para conhecer não apenas o Direito, mas a estrutura normativa de qualquer sociedade. Tratando-se

do Direito, o ponto de vista externo possibilita a sua compreensão como fenômeno social e o ponto de vista interno, a sua explicação como sistema normativo. Como o ponto de vista interno é explicado por Hart de forma descritiva, ele se atém às atitudes externas que manifestam os aceitantes do Direito e que se caracterizam por apresentar três momentos: o momento de adequação, o momento linguístico e o momento crítico, os quais, necessariamente, devem exteriorizar-se para adquirir relevância jurídica, caso contrário, terão simplesmente relevância moral. A adequação do comportamento de um indivíduo a uma norma é explicada mediante o conceito de aceitação.

O ponto de vista interno define a conduta daqueles que aceitam as normas jurídicas e, em particular, define a conduta dos juízes, promotores, funcionários e profissionais jurídicos inseridos em um determinado contexto jurídico. Adota este ponto de vista quem assume o caráter obrigatório das normas, ou seja, as aceita como critério e guia da conduta própria e dos demais e cuja infração justifica, segundo o aceitante, a respectiva imposição de sanções. Logo, aqueles que ocupam o ponto de vista interno, pronunciam enunciados internos – os únicos enunciados aptos a justificar a coerção jurídica.

O ponto de vista externo é aquele próprio do observador que se limita a explicar o Direito em termos psicológicos e/ou sociológicos, portanto cabe ao mesmo constatar a existência de um comportamento uniforme e regular praticado por razões prudenciais por parte daqueles que não aceitam, eles mesmos, as normas como guias e/ou critérios de valoração da conduta pessoal ou alheia e que só as seguem por medo de sofrer algum tipo de sanção ou punição. Aqueles que ocupam o ponto de vista externo pronunciam, por conseguinte, enunciados externos.

A constatação de que existem dois pontos de vista de aproximação ao Direito é fundamental para o método descritivo empírico de Hart. Primeiro, no que diz respeito à noção de ordenamento jurídico concebido como um conjunto de normas, pois a admissão de um discurso descritivo externo possibilita que as normas sejam contempladas como causas de comportamento e, em consequência, em termos de eficácia. Não obstante, para descrever o Direito em termos de eficácia, é necessário considerar o ponto de vista interno já que somente ele é capaz de delimitar quais comportamentos se amoldam ao seguimento das normas jurídicas, normas que têm o seu fundamento nas práticas sociais.

Assim que dito ponto de vista é definido a partir de certos fatos empíricos que podem ser efetivamente verificados por um observador de uma perspectiva descritiva externa. Segundo, porque também a regra de reconhecimento pode ser compreendida com base nos enunciados emitidos conforme aos pontos de vista de participantes e observadores.

1.3.3.2.4. A Relação Entre O Direito E A Moral

Para compreender seu ponto de vista nada melhor que partir do núcleo de seu modelo positivista e das três teses básicas que defende:

a) A tese das fontes sociais do Direito;

b) A tese da separação conceitual do Direito e da moralidade;

c) A tese da discricionariedade judicial.

(a) a primeira tese mantém que a existência do Direito é definida pelas práticas sociais complexas que estipulam quais são as fontes últimas de identificação das normas jurídicas que configuram o Direito; (b) a segunda tese argui que as conexões entre o Direito e a moral são contingentes, ou seja, não são necessárias nem lógica, nem conceitualmente; (c) a terceira tese, esta fundada na concepção hartiana acerca da textura aberta da linguagem e, em particular, da linguagem jurídica que, em algumas ocasiões, estabelece normas jurídicas que contêm termos genéricos, vagos, controvertidos. Esta asserção leva a outra importante afirmação: a de que o Direito é parcialmente indeterminado ou incompleto e que, portanto, quando um juiz se depara com uma norma que contenha termos potencialmente imprecisos, atuará discricionariamente.

Para poder compreender o alcance da tese da separação conceitual do Direito e da moralidade é necessário entender o pensamento de Hart acerca da tese da discricionariedade judicial. De acordo com Hart, a indeterminação é uma característica de todo intento de guiar a conduta humana mediante normas gerais formuladas linguisticamente e a ela não escapa o Direito. Consequentemente, a teoria do Direito não pode ser contemplada como se estivesse imersa entre duas concepções igualmente inaceitáveis do Direito: entre o realismo e o ceticismo.

Na obra “O conceito de direito”, Hart destaca que alguns ordenamentos jurídicos incorporam – como critérios últimos de validez jurídica – princípios e valores morais. Nestes casos a fim de que a regra de reconhecimento cumpra o seu papel de ser remédio para a incerteza, ela deve tolerar apenas certo grau limitado de indeterminação, pois serão os juízes e tribunais quem definirão, em última instância, o alcance e o significado de ditos termos. Esta última afirmação custou a Hart a acusação de ser um jurista antidemocrático.

Nenhum jurista pode negar que nas democracias contemporâneas as faculdades normativas não são exercidas exclusivamente pelo Poder Legislativo. Ademais, afirma que é menos custoso para a coesão social e a democracia permitir a resolução de um caso particular com base na discricionariedade judicial – e na leitura que os juízes e tribunais façam de um determinado princípio/valor – que não outorgar nenhuma solução concreta ao mesmo. Das arguições de Hart se deduz que o que ele não aceita é a “legalização da moral”. As sociedades contemporâneas são caracterizadas pelas constantes mudanças sociais e pela pluralidade de tradições, convicções e pautas morais vigentes simultaneamente. Resulta difícil, consequentemente, falar em um consenso moral em torno a uma moral concreta. Além do mais, ressalta Hart, que pode ter vigência em uma determinada sociedade uma moral positiva aberrante e, justamente por esta característica, dita moral não pode ser considerada valiosa ou razoável de ser assimilada pelo Direito. Definitivamente, conclui o jurista que a introdução de conteúdos morais no Direito deve ser sempre tomada com muita cautela. Seja por meio da introdução de conteúdos morais no Direito, seja pela admissão de que os juízes em suas decisões podem recorrer a princípios e valores morais.

Estas “aberturas” do Direito à moralidade terão consequências não somente para a reflexão legal, mas também para a tese hartiana da Separação conceitual entre o direito e a moral. Temas que induzem Hart a repensar alguns de seus pressupostos teóricos (incluirá, por exemplo, na sua estrutura de regras os chamados princípios jurídicos) e a defender sua adesão

a um soft positivism – modelo teórico que contradiz a tese positivista forte segundo a qual existe uma regra de reconhecimento isenta de conteúdos valorativos e que possibilita uma separação categórica entre o Direto e a moral. Além do mais, certas características do funcionamento adequado do Direito, tais como a generalidade, a claridade, a inteligibilidade, a perdurabilidade e a publicidade das normas jurídicas, bem como o princípio geral de irretroatividade das mesmas e a congruência em sua aplicação (que deve ser imparcial), implicam, em si mesmos, a realização de um mínimo de justiça – ainda que seja justiça formal –, por parte do Direito.

Portanto, para Hart, é inegável que existem conexões entre o Direito e a moral, mas esta vinculação deve situar-se no âmbito da justificação e da legitimidade do Direito. E é justamente neste ponto que reside a grande virtualidade da tese da separação que não estriba, apenas ou principalmente, na duvidosa possibilidade de construir uma Ciência do Direito meramente descritiva e livre de valorações, mas na possibilidade de manter um ponto de vista moral frente ao Direito positivo livre de determinações fáticas.

1.3.3.3. ConclusãoPara o positivismo jurídico a separação conceitual entre o Direito e a moral é essencial. A existência e o conteúdo do Direito estão determinados por fatores que fazem com que o Direito esteja sujeito à apreciação moral, mas isto, por si mesmo, não garante o seu valor moral. A relação entre o Direito e os valores e princípios morais não é necessária, mas sim contingente e, neste sentido, o Direito é moralmente neutral. Mas, sobretudo, é preciso entender que a separação entre o Direito e a moral apregoada pelo positivismo hartiano tem raízes em um ato moral, em um ato político, qual seja preservar a autonomia e a liberdade individuais da interferência estatal exorbitada (paternalismo jurídico) e de terceiros (seja do domínio das maiorias ou da tirania das minorias). Como já havia destacado Von Wright, “a moralidade transcende a legalidade no sentido de que censura as leis e as decisões dos tribunais de justiça. Por esta razão, nunca pode ser incorporada no tipo de ordem coativo que constituem as leis do Estado”. Enfim, é a moral que deve separar o Direito da moral e são estas motivações e as suas consequências, que parecem possuir relevância no debate atual acerca do Direito.

1.3.4. John RawlsJohn Rawls foi um importante jusfilósofo norteamericano do século XX. Escreveu a obra chamada “A Theory of Justice”, que condensou uma série de artigos antes publicados que expunham suas ideias.

Rawls era um ferrenho crítico do utilitarismo, acreditando na máxima Kantiana de que o homem é um fim em si mesmo, pois defendia que não era a única via existente para promover o bem de todos o sacrifício dos direitos das minorias.

Em Rawls, a teoria da justiça parte de duas ponderações:

a) A equidade rege todas as reflexões sobre a questão da justiça (equidade aqui em nada coincidindo com a concepção aristotélica). Equidade para ele dá-se quando do momento inicial em que se definem as premissas com as quais se construirão as estruturas institucionais da sociedade; mais claramente, quando se fala em equidade

em Rawls, fala-se de um momento inicial em que os atores do contrato social discutiram em pé de absoluta igualdade os princípios da justiça;

b) Rawls é contratualista (neocontratualista). Como ele cria uma teoria, ele a assenta numa base hipotética, não histórica, para poder desenvolver todo o seu raciocínio.

Outro ponto nevrálgico em Rawls é o fato de que a justiça não é estudada com base na ação humana individualmente tomada, mas sim com base nas instituições sociais. É a justiça das instituições humanas (interesses comuns a todos) que beneficia ou prejudica a comunidade que a ela se encontra vinculada.

O que são essas “instituições” em Rawls? São as leis fundamentais, regras e preceitos de uma sociedade, não devendo ser compreendidas no sentido organizacional, isto é, de Estado, Igreja etc.

Assim, o modelo de Rawls BUSCA, ALÉM DE DETERMINAR O QUE É SOCIALMENTE JUSTO, MOSTRAR QUAIS SÃO OS MODAIS DEÔNTICOS (DEVERES) DAS INSTITUIÇÕES NAS ESTRUTURAS BÁSICAS DE UMA SOCIEDADE.

Para apontar o que é justiça, Rawls confere um importante papel às questões relativas à distribuição de direitos e deveres e das oportunidades econômicas e condições sociais, assim como às relativas à participação nessa distribuição.

A Posição Original

Na hipótese teórica de Rawls, como visto na primeira ponderação acima, todos os homens estavam submetidos ao “véu da ignorância”. Esse véu da ignorância não é o não saber6, mas sim o impedimento de que os interesses mais imediatos dos indivíduos, decorrentes de suas condições reais de vida, interfiram na integridade do procedimento deliberativo. Isso permitiria a tomada da “decisão prudente”, deliberando em um contexto em que a liberdade e a igualdade seriam idealmente garantidas.

É nesse contexto e nessa exata situação de equidade originária que os cidadãos escolheriam os princípios de justiça e toda a estrutura fundamental da sociedade, seus alicerces, estabelecendo o pacto ou contrato social. Suas escolhas recairiam sobre as opções cujos piores resultados melhores do que os resultados possivelmente decorrentes das demais opções.

O pacto social possui dois princípios basilares de seu sistema acerca da justiça:

a) Princípio da igualdade : cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais para que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos. Logo, isso torna evidente que a liberdade em Rawls não é absoluta.

b) Princípio da diferença : as desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo: 1) tragam o maior benefício possível para os menos

6 Embora as partes estejam sob o véu da ignorância sobre fatos específicos, é-lhes dado conhecimento de toda sorte de fatos gerais que afetam a escolha da estrutura básica, em particular aqueles que a psicologia e as ciências sociais põem à sua disposição.

favorecidos; 2) Sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades.

Veja que o primeiro princípio tem carga axiológica baseada na liberdade, sobretudo, e na igualdade, em segundo lugar. Já o segundo princípio tem carga axiológica forte na fraternidade, e, também, na igualdade.

O segundo princípio regula a aplicação do primeiro, corrigindo as desigualdades.

O primeiro princípio fixa as liberdades individuais, políticas, de expressão, de reunião etc. Porém, abdicam-se alguns direitos, até mesmo fundamentais, em função do pacto. Para que haja essa abdicação, é preciso que aqueles que aderem ao pacto recebam em troca benefícios ainda maiores que aqueles que teriam se mantivessem sua posição original.

Já no segundo princípio, a expressão “funções às quais todos têm acesso” deve ser interpretada de acordo com a igualdade democrática. Por exemplo, se o primeiro princípio determina que todos devem ter acesso à previdência social, o segundo cuida para que concreta e efetivamente isso aconteça.

Além dos princípios acima, os contratantes originários estabeleceram, para Rawls, as seguintes regras de prioridades:

a) A liberdade sempre tem prioridade. Somente se aceita a redução da liberdade se isso resultar no aumento do total de liberdades de todos (isso legitima, por exemplo, a prisão de alguns indivíduos ameaçadores para que os outros tenham liberdade plena);

b) A justiça (social) tem prioridade sobre a eficiência e sobre o bem estar (por exemplo, deve-se dar preferência a políticas que financiem a compra de apartamentos populares àquelas que financiam a compra de apartamentos de luxo).

Veja bem: Rawls teorizou uma ideia voltada à justiça NA DEMOCRACIA. E, na democracia, o primeiro preceito que se consagra é a liberdade (liberdade, igualdade, fraternidade). Liberdade é o pilar de tudo. Tanto que é o primeiro princípio de Rawls.

Pois bem. Continuemos.

O “após” a Posição Original

O pacto social não se faz de uma só vez. Ele é gradativo, em uma série de etapas. Após a posição original, os pactuantes passam a deliberar concretamente sobre as diretrizes da sua própria sociedade, isso por meio de UMA VOTAÇÃO DE UMA CONSTITUIÇÃO. Finda essa etapa, as discussões passam a deitar sobre as políticas de bem estar da sociedade, mediante a economia e outras fontes de justiça social.

Fases:

a) Posição original: princípios de justiça;

b) Definição da Constituição;

c) Definição de políticas de bem estar social.

Pergunta: se os pactuantes originários estavam numa posição de equidade, por que, então, há diferenças entre os homens? Rawls responde isso com base nas naturais diferenças existentes entre as pessoas. Ainda que, no que se refere à formação, informação e conhecimento, eles estivessem no mesmo nível, após definir os princípios de justiça e começar o “processo de desnudação do véu da ignorância”, as qualidades e defeitos pessoais vão aparecendo, motivos pelos quais surgem as desigualdades.

Mas não só por isso. O princípio da diferença legitima ao homem a realização pessoal, desde que se melhore a condição do outro e se respeitem as condições impostas pelo pacto para a preservação de todos.

Daí que entra a necessidade de que as instituições sejam promotoras da melhor participação do homem na estrutura social possível.

Síntese: para Rawls, igualdade para todos significa igualdade de oportunidades, e não igualdade absoluta, a qual é impossível de se alcançar pelo simples fato de serem desiguais as pessoas. No contratualismo de Rawls, necessário é igualar a oportunidade entre as pessoas; a liberdade não ocorre num sentido material, e sim num sentido de respeito às pessoas e valorização das possibilidades, igualdade de oportunidades.

Os principais pontos sobre os quais se assenta a teoria da justiça de Rawls, para Dworkin, são o equilíbrio reflexivo, o contrato e a posição original. O equilíbrio reflexivo revela-se como procedimento de ajuste iterativo entre as intuições morais e uma estrutura teórica moral, mais racionalizada, edificada segundo um modelo construtivo, onde os indivíduos vão, aos poucos, sedimentando os valores comuns, para além de simplesmente descobri-los em uma estrutura preexistente.

A ideia de contrato social, em Rawls, é retomada das teorias políticas clássicas, com a inovação profunda da posição original, na qual os participantes se vêem colocados. Entretanto, o contrato não é premissa ou postulado fundamental da teoria de Rawls, sendo apenas, segundo Dworkin, um argumento destinado a reforçar a legitimidade dos seus dois princípios de justiça.

A posição original, na qual os indivíduos são colocados para acertarem os princípios de justiça sobre os quais edificarão as instituições, é a grande inovação em termos de teoria política contratualista. Sua peculiaridade determina o afastamento de interesses meramente pessoais, destinados a privilegiar caracteres particulares dos participantes do grupo original.

Ao permitir apenas o atendimento a interesses antecedentes e, portanto, impessoais, a posição original absorve o formalismo kantiano, no sentido de que o acordo não pode tratar, primariamente, de estabelecer um conjunto substantivo de valores a serem perseguidos pelos indivíduos, ou estabelecer qualquer noção particular de virtude. Deixa tais metas, tal como Kant, ao arbítrio do indivíduo, apenas garantindo as regras que os permitirão atingi-las.

O artifício da posição original, também, tem o efeito de privilegiar a noção de igualdade, que, como já se viu, é central na teoria de Rawls. Assim, muito embora as críticas que são feitas à

sua teoria da justiça equitativa, trata-se de um dos mais importantes constructos teóricos do século XX, dotado de um conteúdo igualitarista imprescindível às instituições políticas atuais.

1.3.4.1. Consenso Constitucional, Neutralidade e Razão Pública: Elementos de Teoria da Constituição em Rawls7

A Justificação dos Princípios de Justiça

A posição original

O tema da posição original já foi tratado acima.

O equilíbrio reflexivo

O equilíbrio reflexivo, para Rawls, é etapa que se segue à posição original, na qual se submete os princípios de justiça às convicções mais ponderadas das pessoas, permitindo-se ajustes e revisões necessárias.

Uma de suas funções precípuas é justamente solucionar a eventual colisão entre os princípios, permitindo a elaboração de um modelo coerente e exercendo papel subsidiário em relação à posição original.

Construtivismo

Os princípios de justiça funcionam precisamente como critérios abstratos para guiar a construção das instituições político-sociais básicas. Eles não são justificados, por sua vez, a partir de uma racionalidade que lhes seja imanente (Rawls não é jusnaturalista), e nem, tampouco, em função de sua correspondência com valores históricos, mas através de um processo de construção cuja racionalidade é garantida pelas normas procedimentais que o balizam.

Eles não são dados objetivos simplesmente apreendidos pelos filósofos, mas criações humanas racionais, resultados de um processo discursivo.

Pluralismo, Imparcialidade e Consenso Sobreposto

Num momento posterior de sua construção filosófica, Ralws passa a adotar uma outra estratégia e justificação dos princípios, denominada de consenso sobreposto. Isso acontece porque Rawls antes não havia atribuído importância decisiva para o fato do pluralismo razoável, ou seja, como que seria possível a existência de uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, embora incompatíveis. A essas diferentes ideias parciais e incompatíveis, que não podem ser adotadas como razão pública, o filósofo dá o nome de doutrinas abrangentes. Segundo ele, qualquer forma de se organizar a vida política que opte por uma doutrina abrangente, em detrimento das demais, não pode realizar as expectativas de justiça e estabilidade que incidem sobre as relações sociais.

7 Resumo de artigo homônimo escrito por Cláudio Pereira de Souza Neto, professor da UFF e membro da Banca do TRF2.

O consenso sobreposto seria, então, exatamente a aprovação generalizada das doutrinas abrangentes razoáveis que convivem nas sociedades democráticas da atualidade, aprovação essa que recai e sustenta os princípios de justiça. Em outras palavras, os princípios de justiça seriam o ponto de convergência das diferenças, sendo por elas sustentadas.

A Razão Pública, Diretrizes de Indagação e Princípios de Justiça

Razão pública e neutralidade política

Para Rawls, os princípios de justiça englobados pelo consenso sobreposto dão conteúdo ao que denomina “razão pública”. Para ele, há as razões públicas e as não públicas. Estas seriam cultivadas por associações tais como organizações religiosas, sociedades científicas e grupos profissionais, que defendem interesses não generalizados. Elas são interiormente públicas, mas não públicas para o restante da sociedade.

A razão pública deve prevalecer quando os cidadãos atuam na argumentação política no fórum público, e quando votam em eleições nas quais elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica estão em jogo. Tais matérias, as mais relevantes para a democracia, são aquelas que devem ser resolvidas exclusivamente pela razão pública. Assim, a razão pública se limita a uma concepção política de justiça, aquela que independe de doutrinas abrangentes (ou seja, que não se limita a certo grupo humano), não obstante possa ser chancelada por aquelas que sejam razoáveis.

Isso não quer dizer, para Rawls, que os cidadãos e os legisladores não possam votar de acordo com suas visões abrangentes; podem sim, desde que não estejam em jogo as citadas relevantes questões da democracia e que as doutrinas abrangentes adotadas não sejam com ela incompatíveis.

Razão pública, razoabilidade e reciprocidade

Para Rawls, a razão pública engloba as chamadas diretrizes de indagação, cujo escopo é garantir que a argumentação política seja não somente persuasiva, mas também racional, especialmente quando em jogo questões constitucionais básicas.

A razão pública prescreve que a argumentação política apele unicamente para as crenças gerais e para as formas de argumentação aceitas no momento presente e encontradas no senso comum, e para os métodos e conclusões da ciência, quando estes não são controvertidos. Não se aceita o recurso às doutrinas religiosas e filosóficas abrangentes (salvo, repita-se, se razoáveis e não for elemento essencial da democracia o objeto em discussão).

De acordo com o filósofo, os cidadãos das democracias constitucionais contemporâneas são considerados pessoas morais, os quais possuem, fundamentalmente, dois atributos: a racionalidade e a razoabilidade. Esta está ligada ao senso de justiça, aquela se refere à capacidade de se ter uma concepção particular acerca do bem e de selecionar os meios para realizá-la. É com a racionalidade que o indivíduo busca realizar o seu projeto pessoal de vida, enquanto com a razoabilidade se verifica a realidade pela perspectiva do outro.

A razoabilidade, nessa visão rawlsiana, é que permite a cooperação social, pois os cidadãos possuiriam um senso de justiça que os orienta no processo de estabelecimento dos princípios que informam a estrutura básica da sociedade, que permite que as diversas doutrinas abrangentes possam concordar no tocante a questões políticas básicas, dando espaço ao assentimento generalizado denominado de consenso sobreposto.

A dimensão intersubjetiva da razão pública é analisada em Rawls pela noção de reciprocidade, segundo a qual nosso exercício de poder político é adequado apenas quando acreditamos sinceramente que as razões que ofereceríamos para as nossas ações políticas são suficientes, e pensamos razoavelmente que outros cidadãos também poderiam aceitar razoavelmente essas razões. É a reciprocidade que leva à conformação da relação política no âmbito de uma democracia constitucional como uma relação de amizade cívica, implicando em um diálogo sobre as questões políticas fundamentais tendo em vista o bem comum e não a mera agregação de interesses privados.

Daí se deriva a impossibilidade de se recorrer, na deliberação pública, a doutrinas abrangentes. Argumentos particularistas não exibem o potencial de serem aceitos pelos que professam outras doutrinas.

Questões Constitucionais Essenciais, Consenso Constitucional e Limites da Deliberação Pública

Rawls considera que a razão pública deve ser uma das características, sobretudo, da deliberação que tem lugar nos fóruns oficiais. Tanto os parlamentares, durante seus debates, quanto o Executivo, ao justificar suas políticas públicas, devem se guiar pelo ideal de razão pública, salvo nos casos em que estariam legitimamente autorizados a decidir conforme certa doutrina abrangente.

A jurisdição constitucional, entretanto, não comporta essa abertura das exceções. Para que a jurisdição constitucional seja exercida sem comprometer a cooperação social, os juízes não podem invocar sua própria moralidade particular; não podem recorrer, ao justificarem suas decisões, a visões religiosas ou filosóficas. O fundamento das decisões judiciais deve se limitar aos valores políticos que os magistrados julgam fazer parte do entendimento mais razoável da concepção pública e de seus valores políticos de justiça e razão pública. Tais valores são aqueles que os magistrados podem esperar que todos os cidadãos razoáveis e racionais endossem. Essa restrição faz do Judiciário um caso exemplar de razão pública. Ao aplicar a razão pública, o tribunal evita que a lei seja corroída pela legislação de maiorias transitórias ou, mais provavelmente, por interesses estreitos, organizados e bem posicionados8.

Porém, Rawls não permite que qualquer violação aos princípios de justiça leve à declaração de nulidade de uma lei ou ato com eles em desacordo, por parte da jurisdição constitucional. Isso porque somente quando em jogo as liberdades básicas (protegidas pelo primeiro princípio de justiça da posição original), as quais devem ser concretizadas em nível constitucional (o que demonstra o viés liberal de Rawls), é que se deve acionar a jurisdição constitucional; já o segundo princípio (da diferença) deve ser concretizado apenas no plano legislativo, devendo

8 Interessante essa parte, pois em muito se aproxima da questão da legitimidade democrática do judiciário em sua atuação contramajoritária justificada pelo discurso.

sua garantia ocorrer argumentativamente, através do uso da razão pública. Por que dessa diferença? Pois enquanto o primeiro princípio, da liberdade, é resultado de um consenso mais direto, é algo mais lógico para todos, o segundo princípio, o da diferença, requer um processo gradual de adesão e aceitação por parte dos cidadãos, que inicialmente tende a confrontar com uma série de doutrina abrangentes, mas que aos poucos vai sendo assimilado em prol de uma maior igualdade social.

1.3.5. Theodor ViehwegJusfilósofo alemão do pós segunda guerra mundial que buscou pragmatizar o Direito.

Viehweg: topoi (lugares-comum, argumentos razoáveis) são pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda a parte que se empregam a favor ou contra, e que é conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade. As decisões judiciais são assim. O ministro relator vai enfrentar o problema, propondo um argumento para a sua solução.

Tópica é a arte do pensamento problemático, métodos de superação das aporias9. Pensar por problemas. Zetética é pensar por problemas. Tércio Ferraz usa muito essa expressão, já que ele é “topicista”.

Tópica é arte do pensamento problemático. Não é techne, não é episteme, não é ciência. O argumento deve ser livre sob pena de impedir o alcance da melhor verdade. Daí, a súmula vinculante poder ser criticada, porque perturba a possibilidade de alcance de uma melhor verdade.

Problema é uma questão que, aparentemente, permite mais de uma solução, e que vai requerer, tem vários aspectos devendo-se dizer qual aspecto importante dele que será enfrentado, o que será respondido. Problemas vão encontrar respostas. O discurso deve ser um ambiente onde as respostas podem ser propostas. O RACIOCÍNIO TÓPICO DÁ ÊNFASE AO PROBLEMA. NÃO HÁ SOLUÇÕES PREDETERMINADAS; O SISTEMA JURÍDICO, PELA TÓPICA, NÃO PODERIA OFERECER RESPOSTA A TODOS OS PROBLEMAS, NÃO SERIA FECHADO. Se você dá ênfase ao sistema, não se consegue dar respostas a todas as questões, de tal forma que seriam excluídos tais problemas. Quem dá ênfase aos problemas, escolhe o sistema. Quem dá ênfase ao sistema, escolhe os problemas, eliminando os inconvenientes.

A tópica não é uma forma de pensar sistemática. A tópica se preocupa com a aceitabilidade de uma questão. As respostas não são verdadeiras ou falsas, mas simplesmente aceitas como verdadeiras por certas pessoas em certo tempo. Isto não é um método, mas apenas um estilo de pensamento, uma técnica de pensamento problemático. O método é um procedimento de lógica inequivocamente verificável. Não há um plexo único de pensamentos, na tópica. ASSIM, A TÓPICA NÃO E UM MÉTODO CIENTÍFICO.

Todo argumento, todo princípio jurídico, toda norma jurídica para a tópica, será apenas uma tentativa de solução. Até mesmo normas constitucionais poderiam não ser aplicadas diante de princípios ou normas extrajurídicas, por não ser a resposta ideal para um dado problema.9 De acordo com Viehweg, o termo aporia designa precisamente uma questão que é estimulante e iniludível, designa a falta de um caminho, a situação problemática que não é possível eliminar. A TÓPICA PRETENDE FORNECER INDICAÇÕES DE COMO COMPORTAR-SE EM TAIS SITUAÇÕES, A FIM DE NÃO FICAR PRESO, SEM SAÍDA. É,PORTANTO, UMA TÉCNICA DO PENSAMENTO PROBLEMÁTICO.

Tudo é topos, até as normas constitucionais, não é axioma fundamental. A tópica tem sido criticada, porque traz uma insegurança, uma subjetividade incompatível com o que se espera da ciência do direito, porque tudo é relativizado, dando-se um campo aberto para o intérprete.

José Leite: a tópica reside em não se poder dar um peso lógico em um sistema a qualquer topos; o problema da aplicação da tópica no campo constitucional reside no fato da não vinculação da interpretação das normas constitucionais, podendo descambar em uma verdadeira arma a favor da arbitrariedade, o que não é consentâneo com as garantias fundamentais.

Todo o direito medieval era tópico, como as obras de São Tomás de Aquino. Estudava-se máximas, sem sistematização, sem definições finais, porque qualquer definição, em direito, seria perigosa. Então, ninguém nem positivava as normas. Os glosadores estudavam as máximas. Mas isso tudo virou poeira com a Idade Moderna e as ciências naturais.

Essa postura aporética em tópica é fundamental. Essa noção de que não há respostas a priori para o problema da justiça, que deverá ser buscada em cada caso.

Durante muito tempo, a retórica jurídica se prendeu ao modelo semântico, sintático. E aí a tópica diz que isso é muito pouco, porque deve-se ir além, buscando-se a pragmática, forma de estudo da linguagem direta, objetiva. Veja que a tópica, não sendo sistema, promoveu uma agregação no estudo jurídico: ela buscou superar a hermenêutica tradicional (exegese, silogismos puros) para dar lugar a um direito mais pragmático. O importante são os argumentos para resolver os casos concretos.

Em detrimento do pensamento sistemático, que busca ser um pensamento dedutivo, que parte do apriorístico (norma) para o problema, a tópica é um pensamento a posteriori, casuístico, que inclusive permite a adaptação da norma ao caso concreto.

1.3.6. Niklas Luhmann

1.3.7. Chaïm PerelmanVide item 2.15.5. Teoria da Argumentação Jurídica de Chaïm Perelman: A Nova Retórica.

1.3.8. Jürgen Habermas

1.3.8.1. O Fundamento da Legitimidade Política dos Grupos de Pressão à Luz da Teoria da Ação ComunicativaOs princípios iluministas (liberdade, igualdade e fraternidade) são repensados, por Habermas, à luz de uma teoria crítica.

O autor afirma a necessidade de reinvenção do projeto da modernidade, para tanto se valendo de uma visão dinâmica do processo de concretização desses direitos e dessas liberdades.

Parte da constatação de que a estrutura tradicional das instâncias de exercício do poder numa democracia invariavelmente estabelece relações de dominação (seja do poder político, seja do mercado, seja de costumes, comportamento).

Para tanto, confere importância fundamental ao espaço público, como espaço necessário no diálogo crítico com o sistema estabilizado de expectativas, através do que denomina ação comunicativa.

Admitir uma ação política fundada no diálogo entre o espaço público e o sistema estabilizado garantiria que a força inercial deste não suprimisse a existência de formas de vida capazes de forjar relações de emancipação do homem-pessoa e reinventar continuamente práticas capazes de concretizar os ideais iluministas.

Dito isso, pode-se afirmar que, em Habermas, A LEGITIMIDADE DOS GRUPOS DE PRESSÃO (ATORES DO ESPAÇO PÚBLICO) PRESSUPÕE O RECONHECIMENTO DESSE ESPAÇO COMO ELEMENTO ESSENCIAL DA DEMOCRACIA.

A atuação desses grupos nem sempre assimila as reivindicações surgidas no mundo da vida, ou as toma como suas. Assim ocorre quando atua menos para fortalecer o processo plural de discussão que antecede a ação, e mais como mandatário de interesses pré-definidos.

Na democracia fundada numa ação comunicativa, a legitimidade dos grupos de pressão não ocorreria de dentro para fora (a partir do seu reconhecimento pelo Estado, como condição para o exercício de poder político), mas de fora para dentro (a partir da sociedade civil, como pólo de ação política válida).

E em razão disso, “o modelo de uma justiça processual para as sociedades democráticas atuais necessitará de gerenciamentos institucionais que, sem questionar o modelo institucional da modernidade (separação do Estado da sociedade civil, separação dos três poderes), vão de qualquer forma colocá-lo em maior conformidade com a ideia da autoconstituição de uma comunidade de pessoas livres e iguais”. (Jean-Cassien Billier. História da Filosofia do Direito, São Paulo: Manoel, 2005).

O seguinte trecho do seu Direito e Democracia entre facticidade e validade II (2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 2003) bem exemplifica como Habermas concebe a relação entre grupos de pressão e legitimidade democrática:

“A liberdade de opinião e reunião, bem como o direito de fundar sociedades e associações, definem o espaço para associações livres que interferem na formação da opinião pública, tratam de temas de interesse geral, representam interesses e grupos de difícil organização, perseguem fins culturais, religiosos, humanitários, formam comunidades confessionais, etc. A liberdade da imprensa, do rádio e da televisão, bem como o direito de exercer atividades publicitárias, garantem a infra-estrutura medial da comunicação pública, a qual deve permanecer aberta a opiniões concorrentes e representativas. O sistema político, que deve continuar sensível a influências da opinião pública, conecta-se com a esfera pública e com a sociedade civil, através da atividade dos partidos políticos e através da atividade eleitoral dos cidadãos. Esse entrelaçamento é garantido através do direito dos partidos de contribuir na formação da vontade política do povo e através do direito de voto ativo e passivo dos sujeitos privados (complementado por outros direitos de participação). Finalmente, as associações só podem afirmar sua autonomia e conservar sua

espontaneidade na medida em que puderem apoiar-se num pluralismo de formas de vida, subculturas e credos religiosos. A proteção da ‘privacidade’ através de direitos fundamentais serve à incolumidade de domínios vitais privados; direitos da personalidade, liberdades de crença e de consciência, liberalidade, sigilo da correspondência e do telefone, inviolabilidade da residência, bem como a proteção da família, caracterizam uma zona inviolável da integridade pessoal e da formação do juízo e da consciência autônoma”. (p. 101)

No entanto, as garantias dos direitos fundamentais não conseguem proteger por si mesmas a esfera pública e a sociedade civil contra deformações. Por isso, as estruturas comunicacionais da esfera pública têm que ser mantidas intactas por uma sociedade de sujeitos privados, viva e atuante. Isso equivale a afirmar que a esfera pública política tem que se estabilizar, num certo sentido, por si mesma: isso é confirmado pelo peculiar caráter autorreferencial da prática comunicacional da sociedade civil.

1.3.8.2. A Concepção Comunicativa do Direito e da Democracia em Habermas10

Após o fortalecimento da crise do positivismo, ganhou grande força o movimento de retomada do racionalismo, postura anti-empirista de se atingir o saber, na filosofia ocidental.

O racionalismo se baseava, fundamentalmente, numa posta interpretativa essencialmente subjetiva. Habermas, no entanto, deslocou a racionalidade do âmbito individual para o âmbito intersubjetivo/comunicativo.

Em Habermas, a racionalidade ocorre quando dois ou mais sujeitos agem comunicativamente de forma argumentativa em busca de um acordo consensual. É nessa ideia básica que se fundamenta a teoria do direito e da democracia habermasiana: ela toma como ponto de partida a força social integradora de processos de integração não-violentos, racionalmente motivadores, capazes de salvaguardar distâncias e diferenças reconhecidas, na base de manutenção de uma comunhão de convicções.

Ou seja, O CONSENSO É O CONSENSO NÃO VIOLENTO A QUE CHEGAM OS SUJEITOS DA DEMOCRACIA, EM CONDIÇÕES DE IGUALDADE, APÓS O DISCURSO.

Na ideia do jusfilósofo, a razão deixa de ser o fim do racionalismo (racionalismo teleológico), tornando-se, antes, um instrumento dos processos comunicativos. Isso é, em certa medida, a superação com a metafísica kantiana e com a dialética hegeliana.

Essa guinada linguística aponta também para uma distinção entre representações particulares e pensamentos universais conduzindo a uma dialética da intersubjetividade que busca estados sintéticos no acordo consensual entre sujeitos racionais comunicativos livres e iguais

A legitimidade de uma regra independe do fato de ela conseguir impor-se. Ao contrário, tanto a validade social como a obediência fáctica variam de acordo com a fé de seus membros na comunidade de direito na legitimidade, e esta fé, por sua vez apóia-se na suposição da legitimidade, isto é, da fundamentabilidade das respectivas normas.10 Extraído do artigo “A Democracia Comunicativa: uma exposição da ideia de democracia em Jürgen Habermas a partir da análise dos volumes da obra “Direito e Democracia, entre facticidade e a validade”, escrito por Paulo Roberto de Azevedo.

A complexificação das relações sociais na modernidade, o acréscimo de poder atribuído ao setor econômico e de mercado e o crescimento do poder administrativo ampliam cada vez

mais a já PROBLEMÁTICA RELAÇÃO ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE11. A estabilidade desta relação faz-se necessária para a articulação entre sistemas político-jurídicos. Da defasagem entre esses sistemas pode originar-se uma crise entre direito constitucional e ordem jurídica: “a tensão entre o idealismo da ordem constitucional e o materialismo de uma ordem jurídica, especialmente de um direito econômico, que simplesmente reflete a distribuição desigual do poder social, encontra seu eco no desencontro entre as abordagens filosóficas e empíricas do direito”. A RESPOSTA HABERMASIANA PARA ESSA CRISE SEGUE A GUINADA LINGUÍSTICA, CENTRANDO A ORDEM JURÍDICA NOS PROCESSOS INTERCOMUNICATIVOS. O DIREITO passa a ser mais que uma estrutura abstrata reguladora, constituindo-se, então, como uma força dinâmica e ativa. Mais que um sistema de saber, é um sistema de ação, que faz parte do “mundo da vida” . Para compreender melhor essa perspectiva é necessário considerar que, na teoria habermasiana, a ideia de “mundo da vida” recebe um sentido muito específico: difere da ideia de sociedade civil, como vista na perspectiva liberal, por não se resumir ao somatório das vontades livres iguais; também difere da perspectiva marxista, não sendo vista como aprisionada por forças históricas movimentadas pela luta entre classes antagônicas. A perspectiva habermasiana segue o viés linguístico passando a entender o mundo da vida como:

“... uma rede ramificada de ações comunicativas12 que se difundem em espaços sociais e épocas históricas; e as ações comunicativas não somente se alimentam das fontes das tradições culturais e das ordens legítimas, como também dependem das identidades dos indivíduos socializados. Por isso, o mundo da vida não pode ser tido como uma organização superdimensionada, a qual os membros se filiam, nem como uma associação ou liga, na qual os indivíduos se inscrevem, nem como uma coletividade que se compõe de membros. Os indivíduos socializados não conseguiram afirmar-se na qualidade de sujeitos, se não encontrassem

11 Habermas diz que o direito só pode ser compreendido a partir da noção de uma "tensão entre facticidade e validade". "Facticidade" seria o plano dos fatos, das coisas como elas são e funcionam, a dimensão do êxito real, cega para questões de certo/errado. "Validade" seria o plano dos ideais, das normas que se reconhecem como corretas e que justificam as ações, dos valores que se reconhecem como importantes e que justificam as escolhas, das utopias que se reconhecem como inspiradoras e justificam as instituições existentes e das esperanças que se reconhecem como necessárias e que justificam seguir em frente apesar de todos os desapontamentos. Pois bem, concebido apenas em termos de facticidade (como teriam feito o positivismo jurídico e o realismo jurídico), o direito não consegue justificar sua obrigatoriedade e, por conseguinte, explicar sua legitimidade ao longo do tempo. Concebido apenas em termos de validade (como teria feito a escola do direito natural), o direito perde seu contato e seu engajamento com o mundo concreto dos fatos, das ações e dos interesses e se torna uma retórica vazia sobre bem e justiça, que não é capaz de coordenar realística e eficazmente as relações em sociedade. Dessa forma, o verdadeiro lugar do direito é entre os planos da facticidade e da validade, como um "médium" (elo, canal, ponte) entre os dois, tornando a facticidade válida o bastante para ser obrigatória e aceitável, e a validade factual o bastante para ser viável e concretizável ao longo do tempo.12 O agir comunicativo proposto por Habermas está fundamentado na linguagem dirigida ao entendimento cooperado e compartilhado intersubjetivamente através da argumentação. Este conceito pressupõe a linguagem como principal meio dentro do qual é possível colocar em evidência todas as questões humanas passíveis de argumentações e as integrações sociais através dos processos de entendimento.

apoio nas condições de reconhecimento recíproco, articuladas nas tradições culturais e estabilizadas em ordens legítimas e vice-versa. A prática comunicativa cotidiana, na qual o mundo da vida certamente está centrado, resulta, com a mesma originariedade, do jogo entre reprodução cultural, integração social e socialização.

A proposta habermasiana é de ordem democratizadora, pois desloca a construção da normatividade jurídica do idealismo teleológico para a materialidade das ações comunicativas: veja bem, Habermas entendia que democracia não é simples representação com leis que, em tese, representam a vontade do povo. Antes é imprescindível a manifestação dialógica daqueles que agem comunicativamente acerca das normas e valores que promovem a integração social.

Habermas opera um deslocamento de enfoque, buscando o nexo interno entre autodeterminação moral e autorrealização ética, não na formulação de leis gerais, mas na formação discursiva da opinião e da vontade. A GUINADA LINGUÍSTICA DA TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA TRANSFERE A PRODUÇÃO DA TEORIA JURÍDICA DA POSITIVIDADE RACIONALISTA PARA A INTERAÇÃO COMUNICATIVA. Nesse modelo tanto as regras de aceitabilidade como a simples aceitação particular se estabelecem na ação discursiva em busca de consenso.

A democracia habermasiana não pode ser analisada pela simples verificação da existência de leis gerais. Essas pouco valem se não legitimadas pelo discurso, visto que os destinatários das normas são, simultaneamente, os autores de seus direitos.

Todo esse processo é acompanhado da progressiva racionalização do mundo da vida. A FORÇA MORAL (QUE SERVIA COMO GARANTIA INTERNA DE COESÃO SOCIAL) DÁ LUGAR AO CÓDIGO JURÍDICO QUE PROCURA MANTER, POR MEIO DE GARANTIAS EXTERNAS, A MANUTENÇÃO DAS CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE NECESSÁRIAS PARA QUE PROLIFEREM FORMAS DIALÓGICAS OPERANTES EM CONDIÇÕES EQUÂNIMES DE COMUNICABILIDADE. São necessários, então, mecanismos externos (uma vez que mecanismos morais internos perderam sua capacidade de interferência) que garantam essas condições de argumentação. Neste ponto, no entanto, deve-se evitar o retorno a uma metafísica jurídica que, justamente, é o alvo crítico da guinada linguística habermasiana. É preciso manter a perspectiva da formação das regras de comunicabilidade nos próprios processos intercomunicativos.

Com a complexificação da sociedade (desníveis sociais, administrativos etc.), ocorre uma maior dificuldade de manutenção da equidade argumentativa. Os agentes do discurso se tornam muito díspares, o que interfere negativamente no processo democrático sob o prisma da teoria do discurso.

Por tal motivo, ele estabelece princípios que garantem a equidade dialógica:

a) Direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas;

b) Direito ao status de membro de uma associação voluntária de parceiros do direito;

c) Possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual;

d) Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances em processos de formação de opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e por meio dos quais eles criam o direito legítimo;

e) Direitos fundamentais a condições de vida garantidas de forma social técnica e ecológica.

Tais princípios são também orientações democratizantes. A democracia identifica-se com a formação argumentativa da opinião e da vontade, bem como é responsável pelas garantias externas da continuidade desse processo. Para Habermas, O PRINCÍPIO DA DEMOCRACIA REFERE-SE AO NÍVEL DA INSTITUCIONALIZAÇÃO EXTERNA E EFICAZ DA PARTICIPAÇÃO SIMÉTRICA NUMA FORMAÇÃO DISCURSIVA DA OPINIÃO E DA VONTADE, A QUAL SE REALIZA EM FORMAS DE COMUNICAÇÃO GARANTIDAS PELO DIREITO. Vide que o Direito tem importante papel de garantia, tem um caráter procedimentalista, garantidor de instrumentos que abram espaço à confirmação democrática discursiva.

Desta concepção emerge também a ideia habermasiana de Estado, mais precisamente de

Estado de direito. ESTADO representa um corpo jurídico encarregado de fornecer garantias externas à equidade argumentativa de todos os membros de uma livre associação de parceiros

de direito; DE DIREITO por originar-se do mesmo princípio democrático argumentativo fundamental que dá origem ao sistema jurídico. Este aparece, então, como sistema de poder e sistema de saber. O sistema jurídico gera e controla o sistema político, ao mesmo tempo em que o sistema político gera e controla o sistema jurídico: “A ideia do Estado de direito pode ser interpretada então como a exigência de ligar o sistema administrativo, comandado pelo código do poder, ao poder comunicativo estatuidor do direito, e de mantê-lo longe das influências do poder social, portanto da implantação fáctica de interesses privilegiados.

As características deste novo modelo institucional fundamentar-se-iam na “interligação conceitual entre direito e poder político”. A partir daí, emanariam alguns princípios fundamentais norteadores do aparelho institucional. Tais princípios seriam necessários em função de riscos apontados pelo próprio autor:

“O direito constitui poder político e vice-versa; isso cria entre ambos um nexo que abre e perpetua a possibilidade latente de uma instrumentalização do direito para o emprego estratégico do poder. A ideia do Estado de direito exige em contrapartida uma organização do poder público que obriga o poder político, constituído conforme o direito, a se legitimar, por seu turno, pelo direito legitimamente instituído.”

O que ficaria resguardado por essa instituição seria a formação democrática da vontade. Isso significa dizer que a primeira questão a ser apontada como princípio de democracia seria a ampla e livre participação de todos os membros de uma sociedade nos processos comunicativos norteadores dos acordos normativos nos quais se dá a formação democrática

da vontade. Assim, um primeiro princípio a ser resguardado é o de que: a) todo poder deve emanar do “poder comunicativo dos cidadãos”. Na prática esse princípio remete a poderes parlamentares representativos e deliberativos. Uma segunda questão importante, imediatamente ligada à primeira, é o resguardo legal dos direitos do indivíduo à equanimidade argumentativa. Para tanto faz-SE NECESSÁRIO QUE A INSTÂNCIA JURÍDICA RESGUARDE-SE DA INSTRUMENTALIZAÇÃO POLÍTICA. TAL ASPECTO É GARANTIDO POR MEIO DE UMA: B) JUSTIÇA INDEPENDENTE. É fundamental a garantia contra a instrumentalização do sistema jurídico. Em contrapartida, deve-se evitar a interferência do sistema nos processos comunicativos de formação da vontade. Ou seja, o poder normativo/administrativo não pode interferir nos princípios que fundamentam a orientação de sua formação. Esse princípio traduz-se pela: c) legalidade da administração, bem como controle judicial e parlamentar da administração.

Por fim, faz-se necessário um controle dos processos argumentativos, buscando lhes resguardar de interferências sociais não constantes no acordo comunicativo realizado entre os membros da sociedade de direito. A sociedade civil precisa amortecer e neutralizar a divisão desigual de posições sociais de poder.

1.3.9. Franz Kafka

1.3.10. Michel Foucault

1.3.11. Alf Ross

1.3.12. Heidegger

1.3.12. Hans-Georg GadamerA hermenêutica filosófica de Hans-Geörg Gadamer (surgida em meados do século XX) representa uma das instâncias críticas do pensamento epistemológico.

O seu livro mais conhecido, “Verdade e Método”, propõe uma reflexão acerca do caráter situacional dos processos de construção dos saberes, submetendo-os, portanto, a um necessário filtro histórico, com a indispensável mediação da linguagem como elemento constitutivo de todo e qualquer discurso.

No referido livro o filósofo recorre ao pensamento de Martin Heidegger para estabelecer a linguagem como ponto de partida de qualquer processo interpretativo, assimilando a noção existencial de Dasein, conceito que acompanha todo o desenvolvimento da obra.

O autor e a obra são importantes numa prova sobre as matérias humanísticas, pois o processo judicial é tomado por Gadamer como um exemplo típico do modo pelo qual se estabelece o processo interpretativo.

O modelo clássico da teoria do conhecimento (epistemologia) sujeito-objeto é substituído por Gadamer pelo diálogo SUJEITO-SUJEITO.

Em outras palavras, Gadamer afirma que, para construir qualquer ciência ou discurso, não é a análise do objeto pelo sujeito que garante isenção e verdade.

Pelo contrário, somente compreendendo os processos históricos de interpretação de conceitos é que se poderia atingir minimamente um resultado seguro acerca do conhecimento, sobretudo nas ciências humanas.

Por isso, para o jurista, “ouvir a tradição” e com ela dialogar constituem tarefas irrenunciáveis quando em jogo a compreensão de normas e fatos.

A própria raiz etimológica da palavra “hermenêutica” está atrelada a uma visão dinâmica, baseada no ato de transportar mensagem, traduzir, “falar sobre” a tradição.

A pré-compreensão em Gadamer representa o conjunto das referências de um povo, de um grupo humano, que já é passado para cada indivíduo desde o seu nascimento e ao longo de sua vida. É a tradição.

Esses conceitos herdados da tradição, na medida em que se tornam controvertidos, são objeto de uma reflexão crítica (como ocorre, por exemplo, num processo judicial).

Mas a reflexão somente surge a partir do conteúdo herdado.

Para Gadamer é impossível uma relação sujeito-objeto, simplesmente porque todo objeto só é conhecido a partir da história que cada indivíduo aprendeu sobre ele desde o seu nascimento.

Os objetos não existem enquanto tais, diria Gadamer. Somente existem porque a eles nos referimos. E o próprio “referir-se” a eles já é um fenômeno de linguagem (o Dasein heideggeriano).

Transpondo para o direito, as normas e os fatos não existiriam como objetos estanques, sobre os quais fazemos incidir apenas uma análise a partir de um método desprovido de qualquer subjetividade.

As normas e os fatos nos são apresentados através de narrativas tradicionais. E toda narrativa é uma tradução, é uma transmissão de mensagem (hermenêutica).

Partindo da pré-compreensão das normas e dos fatos, por exemplo, o jurista os submeteria a um juízo crítico a partir da controvérsia sobre eles instaurada.

E num diálogo circular entre a tradição e a crítica, estabeleceria um “método” em espiral (o círculo hermenêutico), produziria o enriquecimento da tradição, assimilando novas perspectivas atuais não consideradas por ela.

Embora Gadamer não tenha em momento algum tratado de um método jurídico, a sua referência constante ao processo judicial em seus textos fez com que a teoria do direito se apropriasse de seus conceitos, propondo inclusive modelos metódicos.

É o que se nota, por exemplo, quando falamos em hermenêutica constitucional, cujos pontos de partida são inegavelmente aplicação, no direito, do pensamento de Gadamer.

Em “Verdade e Método” Gadamer faz referências ao método interpretativo compilado por Savigny, que consiste na análise dos textos legais a partir de quatro parâmetros: literal, lógico-sistemático, histórico e teleológico.

Sobre tal método, o autor faz incidir a crítica que dirige à epistemologia em geral, pois também Savigny considerou que a tarefa do intérprete seria analisar o objeto e dele extrair conclusões.

É certo que Gadamer valoriza aspectos do pensamento de Savigny, pela ênfase que este conferiu à necessidade de reconstrução histórica dos conceitos.

Contudo, propõe o autor que tal “reconstrução” não seria apenas um momento da interpretação, mas seu ponto de partida e chegada.

13.12.1. Círculo Hermenêutico X Espiral Hemenêutica: Schleiermacher X GadamerNo âmbito jurídico não pode ser considerada verdadeira a ideia de Schleiermacher sobre a existência de um momento no qual ocorre a compreensão total. Compatibiliza-se mais o pensamento de que:

O círculo da compreensão não é cumulativo, não é um círculo que se fecha sobre si mesmo, não tem a forma de uma circunferência, mas de uma espiral. Por isso, “não é correto falar em compreender melhor”, como se a verdade fosse um objeto a ser alcançado ao final do processo de elaboração da compreensão e de uma vez para sempre (...) explicita a prévia estrutura da compreensão e concebe a verdade como o sentido possível de ser manifestado e jamais esgotável (ALMEIDA, 2002, p. 275-276).

A percepção de Gadamer acerca do círculo hermenêutico é mais coerente com a seara jurídica, pois rechaça o ponto final no qual surge a verdade.

Ao contrário, as interpretações são inesgotáveis possibilidades. Este filósofo detalha seu pensamento da seguinte maneira:

“o círculo, portanto, não é de natureza formal. Não é objetivo nem subjetivo, descreve, porém, a compreensão como o jogo no qual se dá o intercâmbio entre o movimento da tradição e o movimento do intérprete. A antecipação de sentido, que guia a nossa compreensão de um texto, não é um ato da subjetividade, já que se determina a partir da comunhão que nos une com a tradição. Mas em nossa relação com a tradição essa comunhão é concebida como um processo em contínua formação” (GADAMER, 2005, p. 388).

Dessa forma,

“compreender não é compreender melhor, nem sequer no sentido de possuir um melhor conhecimento sobre a coisa em virtude de conceitos mais claros, nem no sentido da superioridade básica que o consciente possui com relação ao caráter inconsciente da produção. Basta dizer que, quando se logra compreender, compreende-se de um modo diferente” (GADAMER, 2005, p. 392).

Há dois fatos que devem ser especialmente frisados: primeiramente, que a tradição influencia no processo de compreensão, isso significa que Gadamer considera o caldo cultural no qual o intérprete está imerso; e, secundariamente, para este filósofo inexiste a compreensão, como uma única possibilidade verdadeira, mas sim posições, interpretações. Neste ínterim, solução divergente entre juízes ou tribunais é apenas uma questão de interpretação adotada, não havendo certo/errado.

Isso remete a uma explicação de Hegel para a filosofia de Heráclito, expressa pelo pensamento de que “tudo o que é ao mesmo tempo não é, [o qual salienta] o fato de ele esclarecer que a certeza sensível não possui verdade alguma” (Os Pré-Socráticos, 1973, p. 106). Ora, se a certeza sensível não é verdadeira poder-se-ia falar em verdade única advinda de um texto? Palavras são mais confiáveis que os sentidos?

A posição de que “o que é, ao mesmo tempo já novamente não é” (Os Pré-Socráticos, 1973, p. 98-99) é plenamente verossímil quando pensamos no Direito, pois não há como, antecipadamente, ter plena certeza da decisão que será dada pelo julgador e a mudança de entendimento é algo comum no mundo jurídico. Inclusive poder-se-ia afirmar que é esta mutabilidade que dá vida ao Direito e impulsiona-o a um progresso.

Retomando a ideia gademeriana acerca da inexistência de uma interpretação correta, faz-se importante mencionar as palavras de Kelsen:

“A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação “correta”. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vistas da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximativamente” (KELSEN, 1998, p. 396).

Nota-se que Kelsen trata a univocidade das normas como uma ficção e assim ratifica a existência de interpretações, de possibilidades. Sendo o texto normativo dotado de vários significados, a segurança jurídica fica prejudicada pois depende da interpretação dada pelo órgão aplicador do direito.

Quanto à estrutura do círculo hermenêutico, interessante a representação como um espiral. Esta pode ser empregada para explicar o processo evolutivo do campo jurídico: o julgador parte do sistema jurídico (cuja hipotética e simplista composição foi anteriormente explanada) e de elementos da tradição, para assim interpretar os fatos expostos pelas partes e decidir; ocorre que essa decisão também passa a integrar o sistema jurídico e, portanto, modifica-o. Dessa forma, em uma demanda posterior tem-se novas partes, um sistema jurídico diferente, um julgador cujas idiossincrasias já não são exatamente as mesmas e pode-se cogitar que até mesmo a tradição já fora levemente alterada.

Em suma, a jurisprudência assume papel central no espiral jurídico-hermenêutico, pois além de ser o resultado da tutela jurisdicional é fonte do Direito. Através dessa mutabilidade há correção do direito abstrato, possibilitando que no âmbito discricionário haja uma constante atualização com vistas aos ideais sociais. A imagem do espiral salienta que o sistema jurídico não está completo, tampouco é fechado; ao contrário, está em permanente formação.

1.3.13. Peter HabërlePara um estudo aprofundado, ver o resumo de direito constitucional.

Professor alemão que escreveu A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: uma contribuição para uma interpretação pluralista e procedimental da Constituição, traduzido por Gilmar Mendes.

Existe, hoje, no mundo, uma ideia de uma prática no sentido de que a Constituição tem uma interpretação feita por uma sociedade fechada de intérprete, porque quem interpreta são os juízes. São intérpretes vinculados por corporações.

A interpretação da Constituição, então, tem sido assim. E Haberle diz que tem que se estabelecer algo diferente. Ele propõe uma sociedade aberta de intérpretes. A interpretação deve ser feita em uma sociedade aberta, plural. Não pode a interpretação ser restrita, porque não deve ser feita só pelo Tribunal, mas também pelo cidadão comum, quando pratica atos e se coloca da forma como a Constituição estabelece. Os atores sociais praticam a Constituição diariamente. As normas são estabelecidas para qualquer um. Existem forças interpretativas da Constituição que abrangem toda a sociedade. São sujeitos de interpretação da Constituição, não objetos da Constituição.

O processo de solução de conflitos, enquanto parte de interpretação da Constituição, é que vem sendo realizado por uma sociedade fechada, a sociedade das corporações, dos juízes. Como a interpretação é plural, em geral, deve ser plural, também, na concretização da solução do conflito. Haberle, então, prevê formas gradativas de participação dos atores sociais na solução do conflito. Isso bate com a idéia de Alexy de que se o ambiente discursivo é fechado, o discurso é piorado, porque há menos argumentos. Garante-se, assim, a participação democrática nas decisões.

A solução é estabelecer meios onde os argumentos possam ser escutados e praticados dentro do processo discursivo de decisão. Ex: audiências públicas em processo em julgamento, intervenção de terceiros, amicus curiae. Isso tudo aprimora o discurso que possa haver dentro do Tribunal. É feita, assim, uma interpretação pluralista e procedimental da Constituição.

A Constituição não é norma positiva, mas é o que se faz, o que se compreenda como norma a ser aplicada. Não há Constituição, senão Constituição norma jurídica interpretada. A decisão se dá a cada momento, não há decisão prévia, permanente.

A garantia da independência dos juizes só é tolerável porque outras funções estatais pluralistas fornecem materiais para a lei. E se tornaria mais tolerável ainda na medida em que fosse aberto o processo decisório para a participação facultativa.

O desenvolvimento posterior deve ser pluralista.

A interpretação deve se mostrar apta a fornecer justificativas diversas e variadas.

Em face das questões mais polêmicas, o processo decisório deverá consultar a sociedade plural. Deve-se dar voz a todos os argumentos que possam haver. Uma questão tão grave não pode ser resolvida com ambiente restrito. O processo deve ser procedimentalmente plural. Deve-se analisar a opinião pública. O juiz não pode desconsiderar que o Congresso acabou de

aprovar emenda sobre aborto; aquilo é um elemento argumentativo forte, porque é decisão democrática do povo; aquilo não pode ser ignorado, num processo onde todos os argumentos são expostos. Os juízes podem contrariar a opinião pública (porque nem sempre a maioria deve ganhar, cumpre ao Judiciário defender as minorias, principalmente aquelas que foram sub-representadas no processo democrático ou judicial), mas não se pode deixar de considerá-la.

A Constituição é o consenso que se produza sobre o que deve ser, a partir dos conflitos, dos compromissos. O Direito Constitucional é um direito de conflitos. A hermenêutica constitucional significa decidir conflitos e reconhecer compromissos.

Alguns autores não têm capacidade jurídica para atuar. Deve-se permitir que o auditório tenha elementos livres para participar do discurso, como lançar argumentos... Na medida em que se tenha ignorantes no auditório, o debate é piorado. Se a pessoa não entende, não consegue expor argumentos. OS IGNORANTES DO AUDITÓRIO DEVEM SER REPRESENTADOS POR QUEM POSSUA CAPACIDADE DE ENTENDIMENTO. É A INTERPRETAÇÃO PLURALISTA INSTITUCIONAL. Ex: defensoria pública como porta-voz dos ignorantes; ONG’s podem atuar em nome deles... são institucionalizações da razão, onde se procura determinar mecanismos jurídicos suficientes para dar vazão a todos os argumentos possíveis.

2. Correntes de Pensamento

2.1. Utilitarismo

2.1.1. Jeremy Bentham

2.1.2. John Stuart Mill

2.2. FenomenologiaSomente com HUSSERL, através da fenomenologia jurídica, é que se vai superar a ruptura kantiana, tentando relacionar os dois mundos separados, permitindo uma correspondência entre o ´ser´ e o ´dever ser´, ou mais precisamente, entre o ser e o pensar. O Ego, agora com HUSSERL, volta-se intencionalmente para os objetos individuais, colocando-os em parênteses e, podendo desta forma captar o eidos, a essência ideal do objeto. Esta tentativa de superação da dicotomia kantiana, através da fenomenologia de Husserl, repercute no pensamento jurídico, sobremaneira nos trabalhos do jurista alemão ADOLF REINACH (13), que publicou um livro no qual o Direito era tomado através de uma ótica fenomenológica. Resta, inconteste, que o pensamento kantiano além de originalmente ter contribuído para o desenvolvimento da filosofia do Direito, despertou entre juristas da época e posteriores efervescentes discussões jusfilosóficas tanto no sentido de depurar as suas teorias, quanto no intuito de superá-las.

2.2.1 Husserl"Fenomenologia" escreve HUSSERL, "quer dizer, por conseguinte, a teoria das vivências em geral, e, encerrados nelas, de todos os dados, não só reais, mas também intencionais, que

possam nelas se mostrar com evidência. A fenomenologia pura é, desse modo, a teoria dos fenômenos puros, dos fenômenos da consciência pura, de um eu puro, não se situando no terreno da natureza física e animal ou psicofísica.

Se quisermos, por exemplo, saber qual a consistência de um objeto como esta mesa, a fim de poder penetrar-lhe a essência, devemos considerá-la apenas como conteúdo da consciência, pondo entre parêntesis o fato de sua existência extramental, para uma descrição pura e imediata. Verificamos, por exemplo, que se trata de mesa envernizada, dotada de certa forma. Podemos, de maneira evidente, reconhecer, num ato espiritual, que a circunstância de ser ou não envernizada, de ser de mármore ou de bronze, são qualidades acessórias, que não dizem respeito à consistência daquilo que procuramos determinar como sendo o objeto "mesa" como tal.

Através desta análise em progressão, podemos e devemos atingir uma ou várias notas que não poderemos mais colocar entre parêntesis, porque, se o fizermos, o próprio objeto acabará entre parêntesis. . . Quando atingimos esse ponto, esse dado não abstraível, temos o que se denomina o eidos, a essência da coisa (redução eidética).

Note-se, desde logo, que o método fenomenológico implica uma mudança de atitude com referência ao objeto que se quer descrever, atitude esta que brota de uma exigência critica de rigor e de evidência. Não se deve confundir, pois, com a mera descrição empírica que pressupõe a "existência" de um fato ou de um ser fora do processo cognoscitivo. Ao contrário, para o fenomenólogo a existência autônoma ou não do objeto não é pressuposta pelo sujeito, pois tudo se situa no interior do processo intuitivo mesmo, na correlação sujeito-objeto, com abstração de tudo o mais, inclusive das noções comuns ou científicas sobre a ordem da natureza.

Ora, este processo de descrição e redução de essência completa-se, na doutrina de Husserl, com uma terceira fase, que é a da reflexão da consciência intencional sobre si mesma (reflexão fenomenológica), que marca sua orientação idealista, porquanto, depois de ter levado a termo a descrição do objeto de maneira perfeitamente neutra, e de efetuar a redução eidética, ele pretende volver à subjetividade transcendental, para descobrir o objeto como intencionalidade pura, como "conteúdo intencional da consciência".

É preciso, porém, não olvidar que, tendo Husserl concebido a consciência como "referência a algo" (intencionalidade da consciência), disto resultou um conceito de "subjetividade transcendental" que — longe de se reduzir ao "eu puro", universal e formal próprio da Filosofia de Kant — se refere a um "eu puro" cujo fundamento, observa Ferrater Mora, se acha constituído pela temporalidade e historicidade ³. Sem se levar em conta essa alteração substancial, não se compreende, em todo o seu alcance, a lição de Husserl sobre o "a priori material", não dependente do sujeito cognoscente, mas inerente às "coisas mesmas".

Somente atingimos a essência do Direito em virtude de uma intuição intelectual pura, ou seja, purificada de elementos empíricos, que são apenas condições da análise eidética. Não se trata, pois, de indução, mas sim de intuição puramente intelectual, como tal irredutível às regras comuns da abstração e da generalização empíricas.

2.3. Realismo JurídicoOs realistas e os da corrente do direito livre afirmam que o Juiz é um criador, sofrendo a influência de múltiplos e variados fatores incidentes sobre o psiquismo humano no momento da decisão, desde as condições pessoais e internas, até as sociais e externas que de algum modo possam interferir no processo decisório. Sendo livre, não tem limites normativos, pois esta posição não reconhece valia no direito abstrato nem à razão como participantes da atividade interpretativa. Os mais extremados substituem as leis e regras de interpretação por sentimentos judiciais, aí incluindo instintos, emoções, sentidos.

Conforme os realistas, o Juiz é um criador, sofre influência de fatores de ordem orgânica, afetiva e circunstancial como qualquer pessoa, e em função disso age. A lei é um dado, entre outros, algumas vezes nem considerado para sua atividade. Só os fatos interessam ao Direito, que se limita ao mundo da experiência, onde se localizam os homens e a sentença que sobre eles dispõe. A decisão dada nessas condições não decorre da lei, não cabendo ao jurista, antes da sentença, senão formular simples profecias ou predições sobre o que possivelmente será decidido. A sentença é essencialmente um ato de vontade.

A grande contribuição dessa escola foi chamar a atenção para o fato muito simples de que o Direito existe no mundo real, onde ocorrem as relações humanas e a sentença, descortinando aí o contingenciamento do intérprete a essa realidade. Desvendou, como ninguém antes o fizera, o misticismo que entranha nossas ideias sobre o Direito. Apontou para o mito que realiza cada um dos grandes princípios jurídicos, que satisfazem exigências de segurança e de tratamento igualitário. Identificou na sentença seu componente de vontade, verificação que leva conseqüentemente a admitir a existência de elementos influentes na decisão que não estão absolutamente presentes na norma que o Juiz, numa posição ingênua, diz unicamente aplicar.

2.3.1 Oliver HolmesO Realismo Americano, diferentemente, diz que o fundamento não está só nos tribunais, mas também em estudar a estrutura psicológica do juiz; um assim chamado “psicologismo jurídico”.

2.3.2. Jerome Frank

2.3.3. Olivercrona

2.3.4. Alf RossPara o Realismo Escandinavo o que interessa é a aplicação do direito nos tribunais. O direito só nasce a partir de sua aplicação e quanto mais ele é aplicado mais norma se retira da lei. Não se enclausurar em busca de teses. A díade fundamental do direito é a análise da lei pelos tribunais.

Para esse realismo a validade do direito se submete a sua eficácia. Descreve um direito real e não uma norma jurídica hipotética como a de Kelsen. A norma jurídica é o que os tribunais

dizem da norma jurídica. Nesse sentido, Francesco Ferrara diz que os tribunais são os órgãos respiratórios do sistema jurídico.

Portanto, Alf Ross pretende descrever um direito real, e não um direito hipotético como o da norma fundamental de Kelsen. Norma jurídica para ele é o que os tribunais têm dito como norma jurídica, pois a norma por si não diz nada. Enfim, fazer Ciência do Direito para Ross é observar as práticas.

2.4. Direito Alternativo

2.5. Existencialismo

2.6. Ceticismo

2.7. Tridimensionalismo JurídicoO Direito, como qualquer ciência, constitui-se, em último grau, em UMA RESULTANTE FINAL DA PERCEPÇÃO INTERPRETATIVA (DE ÍNDOLE SUBJETIVA, INERENTE AO SEU CORRESPONDENTE JUÍZO DE VALOR, RELATIVO AO DENOMINADO MUNDO DO DEVER-SER, DOTADO DE SIGNIFICAÇÃO CULTURAL) DE UM DADO FATO SOCIAL, TRADUZINDO NECESSARIAMENTE UMA CONCEPÇÃO NORMATIVA (CULTURAL) DE PROJEÇÃO COMPORTAMENTAL E DE NATUREZA HERMENÊUTICA.

Por efeito consequente, a caracterização do Direito, como inconteste realidade científica, em sua vertente tridimensional, apenas reflete, em linhas gerais, o caráter comum da equação que sempre se constrói por intermédio da percepção interpretativa de um fato (valoração factual) concebendo uma norma resultante; sendo certo, sob este prisma, que as diferentes ciências e suas respectivas classificações se operam a partir, sobretudo, das duas diferentes possibilidades de percepções interpretativas de um dado fato produzindo normas finalísticas: de caráter objetivo (juízo de realidade inerente ao mundo do ser sobre fatos naturais, traduzindo normas (reais) explicativas) ou de caráter subjetivo (juízo de valor inerente ao mundo do dever-ser sobre fatos sociais, traduzindo normas (culturais) de projeção comportamental (hermenêutica) ou não comportamental).

Estrutura Tridimensional do Direito

O tridimensionalismo, essencialmente, constitui-se, portanto, em uma característica estrutural inerente a todas as ciências, - e não, como podem supor os menos avisados, a uma particularidade da Ciência do Direito -, ainda que sejamos obrigados a reconhecer que a denominada visão tridimensional de Miguel Reale, neste aspecto, transcenda à concepção básica da tríade Fato-Valor-Norma, comum a toda construção científica, para também abranger aspectos associados, próprios e específicos, da Ciência Jurídica, tais como aqueles integrantes da interação do fato com a validade social (sociologismo jurídico), do valor com a validade ética (moralismo jurídico) e da norma com a validade técnico-jurídica (normativismo abstrato), além de elementos de domínio que traduzem uma tridimensionalidade concreta ou

específica: fato/eficácia (aspecto do ser), valor/fundamento (aspecto do poder-ser) e norma/vigência (aspecto do dever-ser).

Ciência Axiológica

Da mesma forma que o Direito se caracteriza, sob o prisma hermenêutico, como uma ciência de “duplo processo interpretativo” (ou “sobreinterpretação”), igualmente se processa como uma ciência de valoração factual ampliada, ou mesmo de “sobrevaloração”.

Isto significa, em linguagem objetiva, que, no âmbito da Ciência do Direito, o processo de valoração intrínseca de um fato, concebendo uma dada norma, não se restringe a um espectro valorativo (de cunho científico) nitidamente objetivo (ou exclusivamente interpretativo), mas, ao contrário, necessita da imposição de valores sociais (derivados da ética, da moral etc. e que, necessariamente, são mutáveis no tempo e no espaço) e de valores intrínsecos (tais como segurança, justiça, ordem etc.).

Como os valores axiológicos do Direito podem, inclusive (em dadas circunstâncias), ser antagônicos (segurança versus justiça, por exemplo), incumbe ao processo valorativo (de feição axiológica) particular do Direito a busca permanente de uma solução conciliadora, representada, em última análise, pela caracterização dicotômica dos diferentes ramos científicos do Direito (direito penal, civil, tributário etc.) que ponderam, de maneira propositadamente desigual, os diferentes valores intrínsecos a cada dada situação efetiva.

A norma é a reação do valor ao fato. Os fatos, a realidade viva, ao contradizerem os valores, idealidade abstrata, reclamam destes uma reação decidida: os valores se agigantam, então, ao construirem as normas como seus instrumentos.

A norma, assim e já em Miguel Reale, representa “uma solução temporária (momentânea ou duradoura) de uma tensão dialética entre fatos e valores, solução essa estatuída e objetivada pela interferência decisória do Poder em dado momento da experiência social.

Especificidades da Ciência Jurídica

A percepção do Direito como inexorável ramo científico, todavia, não é, por si só, suficiente para a plena compreensão do fenômeno jurídico à luz das necessidades de superação das múltiplas questões que se apresentam. Muito pelo contrário, resta fundamental que o estudioso da matéria seja capaz de entender, de forma amplamente satisfatória, as três características basilares do Direito como ciência: projeção comportamental, axiologia e hermenêutica. A PRIMEIRA – PROJEÇÃO COMPORTAMENTAL – alude ao fato de que a preocupação vital do Direito resume-se, acima de tudo, em moldar comportamentos individuais e grupais, a partir de um quadro de ideias e valores (mutáveis no tempo e no espaço), idealizado pelo conjunto da sociedade, representada pelos seus legisladores.

Assim é que o Direito está, de modo constante e permanente, a orientar as condutas humanas em sociedade, a partir de suas normas jurídicas que são produzidas pelo conjunto da sociedade (ainda que através de seus representantes eleitos para tanto) e aplicadas (interpretadas) por um corpo técnico de julgadores, quando da eventualidade da existência do

conflito (derivado da não-compreensão dos exatos termos da norma e/ou do efetivo e intencional descumprimento da mesma).

A SEGUNDA – A AXIOLOGIA – corresponde à inconteste existência de uma infinidade de valores intrínsecos ao Direito, donde se destacam, preponderantemente, os valores da justiça e da segurança.

Como ambos os valores são igualmente importantes, tratou o Direito (originalmente, uma inconteste realidade unitária) de se ramificar, permitindo o estabelecimento a priori de eventuais possibilidades de prevalência de um valor sobre o outro, quando preexiste a hipótese de conflito valorativo.

Desta maneira, prevalece, em última instância, a verdade real (em nome do valor da justiça) nas questões instrumentalizadas pelo Direito Processual Penal, ao passo que prepondera, em última análise, a verdade ficta, formal ou presumida (em nome do valor da segurança) nas questões (sobretudo patrimoniais) instrumentalizadas pelo Direito Processual Civil.

A TERCEIRA – HERMENÊUTICA – indica, sobremaneira, a existente interação funcional entre a apriorística parcela legislativa do Direito e a subsequente parcela judiciária, responsável última pela interpretação (e aplicação, nos eventuais conflitos) das normas jurídicas produzidas pelos representantes do povo (na qualidade de titular do Poder Político). Muito embora o conhecimento dessas três características basilares do Direito como ciência seja absolutamente fundamental para o entendimento e a compreensão última do fenômeno jurídico, é exatamente esta última característica (a hermenêutica jurídica) – e sua indispensável e plena compreensão – o fator primordial para o completo êxito deste objetivo, posto que tal característica atinge o âmago da concepção estrutural do Direito.

Aliás, neste particular, cumpre assinalar, de modo veemente, que o objeto específico (em seu sentido mais restritivo) do conteúdo dos cursos jurídicos cinge-se, preponderantemente (se não exclusivamente) à interpretação (e aplicação) da norma jurídica, produzida pelo legislador, e não propriamente à caracterização originária da lei (em seu sentido amplo) ou do próprio Direito, devendo, neste aspecto, serem afastadas, com sinérgica repulsa, quaisquer teses (ou posições) excêntricas (e altamente controvertidas), como a do propalado Direito Alternativo ou Direito Insurgente.

2.8. Jusnaturalismorepresenta a ideia que existe a uma ordem sobreposta à ordem doDireito Positivo, esta ordem dá fundamento e legitima o direito. É uma propostadualista para a compreensão dos fenômenos jurídicos, que aponta para umafundamentação metajurídica para compreender o próprio direito.Uma questão terminológica essencial é distinção entre Jusnaturalismo e Direito Natural.Eles não se confundem, o Jusnaturalismo é especificamente uma dentre as diversas

Escolas do Direito Natural, ou melhor, o Jusnaturalismo é o chamado Direito NaturalContratualista. Entretanto, é permitido falar que jusnaturalismo seria todo essemovimento desde a Grécia antiga até a idade moderna que busca fundamentar elegitimar o direito a partir de uma ordem natural.Primórdios do Direito Natural:Sófocles, um dos maiores escritores trágicos, em Grécia no séc. V a.C., escreveAntígona1. Nesta obra encontramos o primeiro registro escrito quanto ao DireitoNatural.

As Escolas do Direitos Natural e a Declaração de Direitos Humanos: como apositivação dos direitos naturais.Momentos do Direito Natural: três momentos1) Antigo: Ideonômico; a ideia da justiça está fora do sujeito, o justo está na ordemuniversal. Filosofia do Objeto (Grécia até Kant). Essa fundamentação clássicaencontra-se principalmente na obra de Platão e Aristóteles.2) Medieval: Teonômico; está na vontade divina. Há um voluntarismo nessemomento, o livre arbítrio, como uma concepção básica do cristianismo, fundamenta aresponsabilidade do homem na escolha entre o bem e o mal. A fundamentação divinatudo ordena no universo. Toda essa abordagem pode ser encontrada na obra de SãoTomás de Aquino. Haveria nesta concepção quatro ordens legais:i) Lex Aeterna: é a própria lei de Deus. Ela não é conhecida pelo ser humano. Éa própria potência primeira, como pensava Aristóteles.ii) Lex Naturalis: ordenação de Deus sobre todo o universo. Todas as coisastêm uma ordem.iii) Lex Divina: é a ordem revelada por Deus através da bíblia, é o único acessodo homem à Lex Aeterna.iv) Lex Humana: seria o próprio Direito Positivo. Este deve se pautar na lexnaturalis e respeitar as formas da lex divina. Condicionamento direto do diretoà igreja. O Direito Canônico surge como a única forma de direito universaldurante 1000 anos.

3) Moderno: Autonômico (própria lei), ou Contratualismo Naturalista, ou ainda,Escola do Direito Natural ou das Gentes.Grotius2 a Rousseau: Tanto Rousseau quanto Hobbes fundamentam oestado no Contrato Social.(1) Hobbes: o direito positivo decorre de um pacto social, saindo do estadonatural e entrando no Estado Civil.(a) Estado de Natureza: dor, desordem. O homem é o lobo do própriohomem (Homo homini lupus).(b) Contrato Social: possibilita o Estado Civil. O indivíduo se submete aoEstado (Leviatã).(2) Rousseau: o homem no Estado de Natureza é um “bom selvagem”. Ohomem tem liberdade incondicionada no Estado de Natureza, massubstitui essa liberdade, abdicando-se dela, para entrar no Estado. Ohomem contrata porque tem vontade livre e racional. Aqui o homemsubmete o Estado a sua vontade.ii) Kant: nos dizeres de Edgar Godói da Mata-Machado Kant não estaria nojusnaturalismo, mas sim em um jusracionalismo. Kant é de certo modolegatário de Rousseau. Surge no filósofo de Königsberg a distinção entre oConhecer e o Agir (Razão prática). Esta Razão Prática é o fundamento detodo o Direito, onde se encontram os imperativos categóricos.(1) Agir: forma infinita do homem de agir de acordo com sua liberdade, sejade pensar e de manifestar.Do movimento do Direito Natural à positivação dos direitos:Tércio Sampaio diz que dicotomia entre direito naturais e direito positivos foi mitigadacom a positivação dos direitos naturais na forma de direitos humanos, estes são osdireitos naturais positivados.Os direitos humanos são historicamente construídos.

2.9. JuspositivismoO positivismo é um movimento de interpretação e aplicação do direito, de estudo do direito que nasce no século XIX e tem a sua maior projeção na primeira metade do século XX. Existem várias vertentes no Positivismo.

Uma, chamada vertente do Positivismo Normativista, cujo principal autor é Hans Kelsen, que praticamente iguala o conceito de Estado ao conceito de Direito. Para Kelsen não há Direito fora do Estado e esse Estado para ele é norma. Estado não é uma instituição, mas um conjunto de normas. Só é Direito aquilo que oficialmente emana do Estado, pelo devido processo legislativo.

Existem outras vertentes, uma das quais a mais importante é do Positivismo Sociológico, um dos principais autores é o Norberto Bobbio, que vê o Estado como um movimento social que, no entanto, só toma relevância a partir das normas que são positivadas pelo Estado.

Outra, a inicial, é o Positivismo Exegético, forte na escola da exegese pós-revolução francesa, que defendia que o juiz deveria ser simplesmente le bouche de loi, sem lhe ser permitido interpretar. Assim, sempre que dúvida houvesse, deveria ele buscar a solução no próprio Direito posto, pois buscava-se uma codificação plena e perfeita de todas as possíveis situações.

Então, a marca mais importante do Positivismo é dar um realce exacerbado à norma produzida pelo Estado sempre e isso é o que é o mais importante na visão positivista.

2.10. Pós-positivismoPós-positivismo é toda proposta de repensar o direito após o movimento positivista, que ideologicamente faliu, pois se acreditava que toda a realidade poderia ser posta em códigos. Portanto é uma maneira de repensar o direito além do positivismo jurídico. O pós-positivismo possibilitará o neo-constitucionalismo.

2.11. Moralismo Jurídico

2.12. Libertarismo

2.13. ComunitarismoDurante a década de 80, a teoria política anglo-americana foi dominada pelo aparecimento do comunitarismo que, tendo-se desenvolvido em aberta polêmica com o liberalismo em geral e o liberalismo rawlsiano em particular, pode ser entendido como uma corrente de pensamento que essencialmente contesta a insuficiência da teoria e prática liberal. Esta contestação e as respostas a que deu lugar animaram o debate ético-político sobretudo do continente americano onde, até então, num quadro geral de crise do socialismo, se antevia uma incontestada hegemonia do liberalismo, na teoria e prática tanto econômica como política. O desafio comunitarista a alguns dos axiomas liberais daria, assim, uma nova vida ao debate dentro do liberalismo.

Ao contrário do que a designação ‘comunitarismo’ possa indicar, não é tanto a questão da comunidade que está em causa no centro da controvérsia, mas a forma de entendimento do sujeito liberal e da justiça ligada à distribuição de recursos sociais. Embora seja clara a importância da comunidade como depositária de valores coletivos que hão de conduzir a vida humana, como dizem Cohen e Arato (1992), o que mobiliza o debate é então, por um lado, uma questão epistemológica – a questão de saber se é possível defender uma concepção universalista (deontológica) de justiça sem pressupor um conceito substantivo (histórica e

culturalmente situado) de bem – e, por outro, uma questão política, que é a de saber se o ponto de partida para a liberdade devem ser os direitos individuais ou as normas partilhadas da comunidade.

Esta disputa entre comunitários e liberais pode ser vista como um novo capítulo de um confronto filosófico de longa data, dado que a discussão pertence, naturalmente, à grande tradição filosófica da oposição entre universalismo e contextualismo, à oposição entre comunidade e sociedade, ou ao problema dos termos da autonomia moral.

2.14. Lógica do Razoável

2.14.1. Noções Preliminares acerca da Lógica do RazoávelCom o advento da lei francesa 16, de 24 de agosto de 1790, que impunha ao juiz o dever de motivar a sentença, surgiu o interesse pela interpretação jurídica.

A Revolução Francesa, marcada pela vitória da burguesia, trouxe uma nova tendência que tomou conta do pensamento jurídico, qual seja, a preservação dos direitos individuais, limitados apenas pela norma, expressão dos ideais coletivos.

Se de um vértice verificou-se um extremado apego ao texto legal, no que se referia à interpretação e aplicação do Direito (positivismo exegético), de outro, foi imposta ao Judiciário a proibição de participar na criação jurídica, por ser atividade exclusiva do Legislativo, como órgão representante da vontade popular.

Decorrente deste pensamento, surge a concepção mecânica da função jurisdicional, de sorte que a sentença era considerada um ato meramente mecânico; um simples exercício de lógica dedutiva, destituída de qualquer elemento valorativo e alheia à realidade dos fatos.

Nesta esteira, a decisão proferida ou prolatada pelo julgador, seria então assemelhada à construção de um mero silogismo, em que a lei seria a premissa maior; a premissa menor, o caso concreto apresentado à apreciação; e, a conclusão, o “decisum”.

Das transformações verificadas no seio da sociedade, motivadas sobretudo pela Revolução Industrial e que alteraram sensivelmente as relações, surgiram ferrenhas críticas contra essa concepção, reclamando uma melhor adequação da lei à existência concreta, fazendo surgir novas posturas interpretativas.

Multiplicaram-se então as escolas e os métodos de interpretação, de sorte que em 1926 Recaséns Siches, professor da Universidade Nacional Autônoma do México, frequentou um curso na Universidade de Viena, onde o professor era Fritz Schreir, discípulo de Kelsen e Husserl. Neste curso, foi-lhe apresentada uma análise de todos os métodos de interpretação de que se tinha conhecimento. O objetivo básico era encontrar os critérios de eleição dos referidos métodos, mas o que restou foi uma decepção, pois não havia nenhuma razão justificada, em termos gerais, para preferir-se um método em detrimento dos outros.

É pertinente, a esta altura, ressaltar que Luís Recaséns Siches nasceu na Espanha em 1903, onde fez os seus estudos universitários no período compreendido entre 1918 a 1925. Não destoando daqueles jovens acadêmicos que pretendem alçar vôos maiores, avançou além do

programa curricular, começando a desvendar, sozinho, os primeiros horizontes do pensamento jurídico, apaixonando-se pela Filosofia do Direito.

Nos seus estudos de pós-graduação, foi discípulo de renomados mestres, como Giorgio Del Vechio, em Roma, Rudolf Stanmmler, Rudolf Smend e Hermann Heller em Berlim, Hans Kelsen, Felix Kaufmann e Fritz Schrgirer em Viena, que inegavelmente eram os maiores expoentes do pensamento jurídico da época.

Inegavelmente ainda hoje, direta ou indiretamente, continuam orientando as linhas mestras da Filosofia do Direito.

Durante o tempo em que foi professor da “Graduate Faculty” da “New School for Social Research”, em Nova York, no período de 1949 a 1954, e da escola de Direito da “New York University”, entre 1953 e 1954, bem como de outras universidades norte-americanas, influenciado diretamente com o pensamento jurídico anglo-saxão, desenvolveu algumas ideias sobre a interpretação do Direito, a dupla dimensão circunstancial de todo Direito positivo, a lógica do humano e o caráter criador da função judicial.

Alguns anos antes, Benjamin Cardoso, ao analisar suas experiências jurídicas, já procurava saber quais eram os métodos que se empregava na interpretação do Direito positivo vigente. Basicamente concluiu que primeiro se buscava a solução mais justa e depois se preocupava encontrar, dentre os métodos de interpretação, o que melhor serviria para justificar esta decisão.

Para superar este dilema, Recaséns Siches, então retornando às cátedras da Universidade Nacional Autônoma do México, apresentou suas ideias em livro, defendendo o emprego de um só método, o da LÓGICA DO RAZOÁVEL, DEFINIDA COMO UMA RAZÃO IMPREGNADA DE PONTOS DE VISTA ESTIMATIVOS, DE CRITÉRIOS DE VALORIZAÇÃO, DE PAUTAS AXIOLÓGICAS, QUE ALÉM DE TUDO TRAZ CONSIGO OS ENSINAMENTOS COLHIDOS DA EXPERIÊNCIA PRÓPRIA E TAMBÉM DO PRÓXIMO ATRAVÉS DA HISTÓRIA.

Recaséns Siches defendia então que, assim como a Ciência Jurídica, a Filosofia do Direito não tinha condições de escolher um método ou uma tábua de prioridades entre os vários métodos de interpretação.

Decorre daí, que a única regra que se poderia formular, com universal validade, era a de que o juiz sempre deveria interpretar a lei de modo e segundo o método que o levasse à solução mais justa dentre todas as possíveis.

Defendia ele que esta atitude não se consubstanciaria em desrespeito à lei, porque segundo seu pensamento, ao legislador cabe emitir mandamentos, proibições, permissões, mas não lhe compete o pronunciamento sobre matéria estranha à legislação e referente apenas à função jurisdicional. Quando o legislador ordena um método de interpretação, quando invade o campo hermenêutico, esses ensaios científicos colocam-se no mesmo plano das opiniões de qualquer teórico e não têm força de mando.

É bem verdade que Alessandro Gropalli defende posição contrária, por entender que “as normas de interpretação da lei, mais do que simples critérios dirigidos ao prudente arbítrio dos

magistrados, representam verdadeiras normas jurídicas, que, por isso, vinculam a sua atividade lógica e vontade, indicandolhes os meios de adotar e os fins a conseguir”.

PARA SICHES, AO CONTRÁRIO DO QUE OCORRE COM A LÓGICA DA INFERÊNCIA, DE CARÁTER NEUTRO E EXPLICATIVO, A LÓGICA DO RAZOÁVEL PROCURA ENTENDER OS SENTIDOS E NEXOS ENTRE AS SIGNIFICAÇÕES DOS PROBLEMAS HUMANOS, E PORTANTO, DOS POLÍTICOS E JURÍDICOS, ASSIM COMO REALIZA OPERAÇÕES DE VALORAÇÃO E ESTABELECE FINALIDADES OU PROPÓSITOS.

Destarte, não interessaria ao juiz e mesmo ao legislador, a realidade pura, mas sim decidir sobre o que fazer diante de certos aspectos de determinadas realidades, de sorte que este método seria o correto para a função jurisdicional.

Segundo o mesmo autor, o legislador opera com valorações sobre situações reais ou hipotéticas, em termos gerais e abstratos, de forma que o essencial em sua obra não reside no texto da lei, mas nos juízos de valor adotados como inspiradores da regra de Direito.

No que tange à atividade do magistrado, especialmente a sentença, é essa também fruto de estimativa, pois o juiz para chegar à intuição sobre a justiça do caso concreto, não separa sua opinião sobre os fatos das dimensões jurídicas desses mesmos fatos. Pois “a intuição é um complexo integral e unitário, que engloba os dois aspectos: ‘fatos’ e ‘Direito’.”

A este particular, o referido autor formula as seguintes observações: primeiramente entende que a intuição do juiz acha-se embasada na lógica do razoável e que, quando se fala que o juiz procura uma justificativa para o que pressentiu intuitivamente, isto não significa que deva recorrer àquelas pseudomotivações lógico-dedutivas, de que se serviram os juristas no século XIX, bastando oferecer uma justificação objetivamente válida, com embasamento na lógica do humano.

Isto faz com que a função do juiz, embora mantendo-se dentro da observância do Direito formalmente válido, SEJA SEMPRE CRIADORA, por alimentar-se de um amplo complexo de valorações particulares sobre o caso concreto.

NÃO SE TRATA, CONTUDO, DE DIREITO ALTERNATIVO, MUITO MENOS DO USO ALTERNATIVO DO DIREITO, PORQUANTO AQUI, TRATA-SE DE QUE O JULGADOR SE VALHA, AO INTUIR A SOLUÇÃO MAIS JUSTA APLICÁVEL AO CASO CONCRETO, DOS MÉTODOS TRADICIONAIS DE INTERPRETAÇÃO PARA JUSTIFICAR A SUA TOMADA DE DECISÃO.

Recaséns Siches explica ainda que a estimativa jurídica informa ao intérprete sobre quais são os valores cujo cumprimento deve ou não ser perseguido pelo Direito, tais como justiça, dignidade da pessoa humana, liberdades fundamentais do homem, segurança, ordem, bem-estar geral e paz. Mas há outros que podem ser englobados no conceito do que tradicionalmente se denomina prudência: sensatez, equilíbrio, possibilidade de prever as conseqüências da aplicação da norma e de sopesar entre vários interesses contrapostos, legitimidade dos meios empregados para atingir fins justos, etc.

Resta claro, então, que Luís Recaséns Siches é o catalisador, na ciência jurídica latino-americana, das novas teorias em matéria de hermenêutica do Direito. Ao se referir ao festejado autor, Luis Fernando Coelho assim se expressou: “estas teorias que se afastam da silogística e da concepção subsuntiva da decisão judicial, fundamentam-se na prudência, na equidade e no sentimento do justo, ubicados no equilíbrio da dimensão humana, que o autor denomina o razonable, em oposição ao racional. As decisões jurídicas, antes de serem racionais, segundo a perspectiva lógico-subsuntiva, são razoáveis. A este novo pensamento, vinculado à dimensão humana, é que se denomina o logos do razoável.”

A lógica do razoável está exposta em três obras principais: “Tratado Geral de Filosofia do Direito”, “Nova Filosofia da Interpretação do Direito” e “Experiência Jurídica, Natureza das Coisas e Lógica do Razoável, já mencionadas em título original nas citações anteriores.

Siches observa que em todos os casos em que os métodos de lógica tradicional se revelam incapazes de oferecer a solução correta de um problema jurídico ou conduzem a um resultado inadmissível, a tais métodos não se deve opor um ato de arbitrariedade, mas uma razão de tipo diferente, que aliás, ORTEGA Y GASSET explica que: “razão no verdadeiro sentido, é toda ação intelectual que nos põe em contato com a realidade, por meio da qual, deparamo-nos com o transcendente.”(sem destaque no original) Na lição de Luís Fernando Coelho, Recaséns Siches parte das teorias de Scheller e Hartmam, de sorte que a principal preocupação é a conciliação da objetividade dos valores jurídicos, com a historicidade dos ideais jurídicos, a qual decorre de cinco fatores:

“- a mutabilidade da realidade social;

- a diversidade de obstáculos para materializar um valor em determinada situação;

- a experiência quanto à adequação de meios para materializar um valor;

- as prioridades emergentes das necessidades sociais, em função dos acontecimentos históricos; e,

- a multiplicidade dos valores.“

Fica bastante claro que o ponto de partida para a teoria do comportamento humano e a hermenêutica de Recaséns Siches é o seguinte fato: os homens discutem, argumentam, pesam suas razões, ponderam, deliberam sobre os problemas de seu comportamento prático, em debates que se travam à luz de determinados critérios estimativos. Isto ocorre, pois os homens querem solução para seus problemas de existência; as soluções que os homens encontraram para o seu comportamento prático não trazem em regra, a marca da verdade, da mentira ou da falsidade, do notoriamente errado ou certo, do absolutamente bom ou do mau, mas que basicamente estes consideram as mais justas, convenientes, adequadas, apropriadas, sensatas, eficazes, viáveis, prudentes, embora possam ser opostas à verdade e ao bem.

A SOLUÇÃO, ENTÃO, É RAZOÁVEL, “NÃO IMPORTANDO SE É RACIONAL OU NÃO, ISTO É SECUNDÁRIO; A SOLUÇÃO RAZOÁVEL É A SOLUÇÃO HUMANA, EMBORA NEM SEMPRE RACIONAL”, COMO LUCIDAMENTE AFIRMA LUIS FERNANDO COELHO.

Aliás, prossegue afirmando que “a lógica do racional não é a lógica toda, somente uma parte dela, pois existe outra, a do logos do razoável”. Impende ressaltar aqui a justeza da medida derivada desta “intuição” do julgador em cada caso concreto submetido à sua apreciação.

Isto se explica na medida em que o que se sucede é que as leis não se aplicam sozinhas, por si mesmas, decorrente de um mecanismo intrínseco que elas tivessem, pois nem remotamente existe tal mecanismo.

As leis têm seu âmbito de império, dentro do qual figura um aspecto material, relativo ao conteúdo, ou seja, cada norma jurídico-positiva se refere a uns determinados tipos de situações, de assuntos, de fatos ou de negócios jurídicos, sobre os quais trata de produzir especiais efeitos; efeitos que o legislador, portanto, autor da norma, considerou justo, adequado e pertinente. Deve haver alguém que declare qual é a norma aplicável ao caso concreto, como é aplicável esta norma e com qual alcance. Este alguém é o juiz, na sua função interpretativa e agora privilegiado com as cláusulas gerais, com os conceitos legais indeterminados e conceitos legais indeterminados pela função.

Desta forma e além disto, na sua atividade jurisdicional, o julgador, indagando-se qual a norma aplicável, não se deve guiar somente por critérios formais, mas também, materiais. Portanto, para saber se uma determinada norma jurídica é aplicável ou não a certo caso concreto e em que medida, deve antecipar mentalmente os efeitos que esta aplicação haverá de produzir, como magistralmente defende Recaséns Siches.

Isto significa dizer que tal atividade conduz à interpretação da lei, precisamente do modo que leve a uma conclusão mais justa para resolver o problema no caso em análise. Ao fazer isto, não significa dizer que o julgador se distancie de seu dever de obediência ao ordenamento jurídico positivo, mas dá a este mister um mais perfeito cumprimento, dado que o legislador, em seu labor, o faz, de regra, com a melhor maneira possível de atender as exigências da justiça e os anseios dos jurisdicionados.

Destarte, se o juiz ou julgador trata de interpretar tais regramentos de modo que o resultado traga ao caso apresentado o maior grau de justiça, não faz nada além do que se propôs o legislador. Servindo ao mesmo fim, interpretar, reconstruir intuitivamente na sua imaginação, qual é a autêntica vontade do legislador e se os métodos aplicáveis produzem ou não uma solução justa.

Diante de tal argumentação, atribui-se crédito a tal teoria, não somente porque é da lavra de renomado autor, mas também porque o Direito não é algo estático, estanque, de sorte que o seu funcionamento não pode consistir apenas numa operação de lógica dedutiva.

É evidente que as atuais normas jurídicas, reformadoras de velhas instituições, bem como criadoras de outras, não podem e não devem ser entendidas como resultantes de um processo dedutivo, pois existe algo além, que é a consciência valoradora.

Destarte, o “logos” do razoável constitui a lógica que serve ao homem. Não está destinada a explicar, mas sim, compreender e penetrar o sentido dos objetos humanos. Está voltada para a adequação das soluções aos casos reais, ainda que de forma irracional, pois assim como o próprio Direito, é fruto da concepção humana, que tem por fim a realização de certos valores.

Embora originando-se indiretamente de fatos, transcende às fronteiras fáticas, devendo ser visto numa noção de conjunto. Ademais, tem por objetivo a compreensão do sentido e nexos entre as significações, a fim de realizar operações valorativas, fixando finalidades e propósitos, pois o fato humano não se restringe apenas à causa e efeito, eis que tem um algo a mais, um sentido.

Este sentido se explica na multiplicidade de fatores que intervêm na vida humana, obrigando especialmente o julgador, que trata os conflitos humanos, a interpretar os sentidos e significações legais, pois, efetivamente, verifica-se que a atividade do legislador estava muito apartada da realidade.

Com o advento deste novo Código, a despeito de algumas fundadas críticas, outras desprovidas de suporte, podemos perceber a intenção do legislador, certamente influenciado pelo culturalismo de Miguel Reale, de tentar aproximar mais a sua função legislativa e a jurisdicional, dos anseios dos jurisdicionados.

Nem se discute da possibilidade, como defendem alguns autores, de que o legislador somente labora para o futuro, como norte ou referencial para a sociedade, pois em muitos casos encontramos injustificáveis equívocos.

Evidentemente, ainda que a regra ditada no artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil15

esteja a serviço da segurança das relações, em muitos casos isto não coaduna com a realidade e com o caso concreto pendente de julgamento, em que a aplicação do texto da lei poderia conduzir a uma injustiça, não sendo destarte “razoável”.

Nesta esteira, isto comportaria uma hipótese: suponhamos um indivíduo que sempre viveu em uma região da selva amazônica, com parcos recursos e raros contatos com aquelas comunidades ribeirinhas, onde precariamente aprendeu a “desenhar” seu próprio nome. Este indivíduo é preso em flagrante ao derrubar determinada espécie de árvore para fazer uma canoa, imitando o que sempre viu seu avô e seu pai fazerem. Em um país de dimensões continentais como este, composto em grande parte de sua população, de analfabetos ou semi-analfabetos, seria “justa” sua reclusão, dado o fato típico praticado? O mesmo não poderia acontecer com um indivíduo no sertão nordestino? Será que todos os profissionais do Direito, seus operadores, têm pleno conhecimento de todas as disposições editadas em sede de Medidas Provisórias?

Ao que parece, o legislador pátrio, quando da elaboração da regra constante no artigo 14, inciso I da Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, teve tal preocupação, ao “intuir” que no caso concreto poder-se-ia verificar tal situação. Tanto é verdade, que a regra está assim disposta:

“Art. 14. São circunstâncias que atenuam a pena:

I – baixo grau de instrução ou escolaridade do agente.”

Aliás, tal medida somente vem a roborar o que já estava consagrado na âmbito do Direito Penal, no tocante à figura do Erro sobre a ilicitude do fato, explicitada no artigo 21 do Código Penal vigente:

“Art. 21 O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.

Parágrafo único. Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.”

Ora, da mesma forma já abordada no tocante ao comentário do artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil, o agente não pode pretender se livrar da responsabilidade penal, alegando simplesmente que ignorava a lei, pois para a segurança do sistema jurídico-penal, quando a lei entra em vigor, pressupõe-se ser conhecida por todos. Daí o período destinado à sua divulgação. Entretanto, é inegável que o legislador penal não se colocou em posição de cometer possíveis injustiças, porque dentro de sua atividade, ao que se nos parece, não desconheceu ou desconsiderou a nossa realidade social, reafirmando o objeto de sua “intuição”, na regra do artigo 65 do mesmo diploma legal:

“Art. 65. São circunstâncias que sempre atenuam a pena:

I - .....

II – o desconhecimento da lei.“

Evidentemente que a segurança das relações não pode coadunar com a simples alegação de desconhecimento, mas em casos especiais, pode-se conduzir a verdadeira injustiça. Muito certamente, o legislador mexicano debruçou-se sobre sua realidade, sobre seus problemas sociais, reconheceu as deficiências e deu margem ao julgador, de que em certos casos, poderia consultar o Ministério Público e aplicar à situação, a medida justa e razoável.

2.14.2. A Lógica do Razoável e a Interpretação A interpretação das normas jurídicas incluem a referência a princípios axiológicos e a critérios valorativos, os quais muitas vezes não estão expressos no texto da lei, o que resulta dizer, que um ordenamento jurídico positivo não tem como funcionar, atendendo-se única e exclusivamente ao que nele está formulado.

Destarte, torna-se mister recorrer a princípios ou critérios, que embora não formulados explicitamente, são necessários, na medida em que o texto legal deva ser interpretado em função do propósito para o qual fora emitido, sempre com relação ao sentido e o alcance dos fatos particulares em relação à norma.

Desta forma, a interpretação apenas literal, além de absurda, torna-se sem sentido, pois se está buscando uma interpretação, esta nunca poderá ser literal, ainda que realcemos a importância do caráter semântico como elemento facilitador de acesso à correta via de interpretação.

Não fosse somente por este particular, temos ainda que o sentido das palavras empregadas pode ser delimitado, de sorte que por mais que o legislador se esforce, na qualidade de transmissor, o receptor jamais conseguirá fixar de modo preciso, o sentido claro e inequívoco das palavras empregadas, o que se deve basicamente à plurisignificação das palavras e também à mudança de sentido que estas sofrem através dos tempos.

Assim, Recaséns Siches aponta que o sentido de uma palavra ou frase, sobretudo nas normas jurídicas, nunca está terminantemente definido nem completo. Muito pelo contrário, seu significado existe somente em relação com a singular realidade do problema humano prático sobre o qual deva operar.

Como o legislador ou o órgão jurisdicional, ao usar palavras e frases, dá o sentido atual que elas têm na cultura de seu país, deve o julgador usar da atividade criativa do espírito para julgar com propriedade.

2.14.3. A Lógica do Razoável e a Função LegislativaComo já mencionado alhures, na atividade de elaboração da norma, o legislador tem diante de si um enorme leque de opções e, por certo, deve escolher a que melhor se ajuste aos propósitos eleitos, no sentido de melhor adequação ao fato social gerado no seio da sociedade, que “requeira” e que justifique a sua formulação.

Impende esclarecer que o termo “requerer” adredemente destacado, está intimamente ligado àquela crítica de que o legislador, em várias situações, estaria apartado da realidade.

Destarte, delimita então o campo axiológico, e, aplicando a Lógica do Razoável, deverá eleger valores que interessem ao mundo jurídico. É bem verdade que existem alguns valores, como os religiosos, entendidos como de superior hierarquia, que se realizam espontaneamente. Somente a título de ilustração, mister se faz mencionar que os valores estéticos, tidos como de menor hierarquia, como o estabelecer distinção entre o belo e o feio, não são relevantes.

O que importa ressaltar é que não se deve cogitar de hierarquia entre valores, pois este não é um critério a ser seguido pelo legislador. A Justiça sim é um valor que sempre deve inspirar o legislador, já que entre outras funções, ao Direito se designa a incumbência de garantir a realização de alguns valores e prestigiar outros para a garantia da paz social.

Resulta disto que a atividade legislativa deve estar impregnada de critérios valorativos, mas que não podem ser fornecidos pela lógica formal, mas sim, pela lógica do humano, pela Lógica do Razoável.

2.14.4. A Lógica do Razoável e a Função JurisdicionalComo visto no item retro, o legislador opera com valorações sobre os tipos de situações reais ou hipotéticas, valorações sobre gêneros ou espécies de situações, enquanto o Juiz, na sua atividade jurisdicional, completa a obra do legislador. Isto porque em vez de avaliar os tipos de situações em termos de gênero e espécie, avalia as situações individuais em termos concretos. Torna-se evidente então a incontestável diferença entre a operação do julgador e a do legislador, pois o essencial na atividade do primeiro não é necessariamente o texto da lei.

A despeito de colocado no presente opúsculo, de uma maneira bastante sintética, Recaséns Siches elabora um esquema das situações em que pode o juiz se encontrar, no mister de sua tarefa de prestação da tutela jurisdicional, elaborando a norma individualizada, encontrada de maneira clara e precisa, também na monografia de Lídia Reis de Almeida Prado:

“Situação 1 - Aparentemente existe uma norma vigente, aplicável ao caso em julgamento, de modo a lhe produzir uma solução satisfatória. Mas, mesmo nesta situação, o magistrado realiza uma série de juízos axiológicos: para encontrar a norma, para apreciar a prova e qualificar os fatos, e para adequar o sentido abstrato e geral da norma à significação concreta do caso controvertido;

Situação 2 - Há dúvida sobre a qual das normas de mesma hierarquia, mas de conteúdo diferente, deve ser aplicável ao conflito. Em tal hipótese, além das valorações referidas na "situação 1", o juiz, após analisar os resultados que cada uma dessas normas produziria, deve escolher aquela que conduz a uma solução mais justa;

Situação 3 - À primeira vista, o juiz, por se deixar influenciar por nomenclaturas e conceitos classificatórios contidos numa norma, pensa estar diante da regra que cobre o caso. Mas quando ensaia mentalmente a aplicação desta à controvérsia sub judice, percebe que a aplicação de tal norma à espécie, levaria a uma conseqüência diversa ao resultado a que a norma propõe, ou seja, contrária aos efeitos que o legislador pretendeu ou que teria pretendido se tivesse em vista a controvérsia concreta da questão. Em tal circunstância, o juiz deve afastar a norma aparentemente aplicável à espécie e considerar-se diante de um caso de lacuna.

Situação 4 - Por mais que o juiz investigue, não contém o Direito positivo vigente uma norma aplicável ao caso. Nessa situação, dá-se uma autêntica hipótese de lacuna.”

Após a apresentação dessas situações, Siches adverte serem frutíferas para análise das situações "3" e "4", algumas considerações sobre a equidade, que serão feitas no próximo item.

Como o processo de produção do Direito não se encerra com a promulgação da lei, mas sim no momento de sua individualização, que é a fase concreta, pode-se afirmar que esta é a mais importante. Mesmo não se verificando lacunas e contradições na lei, o órgão jurisdicional, no momento de julgar o caso concreto a si apresentado, valora as provas e fatos aos autos carreados, qualificando-as de maneira jurídica e adaptando-as ao geral e abstrato sentido da lei. Isto o faz, porque ao se deparar com leis contraditórias, deverá optar por uma ou outra, e pautar-se por critérios de justiça, antecipando mentalmente os efeitos que da aplicação da norma advirão e verificar se tais efeitos estão de acordo com os propósitos da lei. Nada mais lógico e razoável do que isto.

2.14.5. A Lógica do Razoável e a EquidadeA equidade deve ser considerada em toda extensão possível do termo e liga-se a três acepções intimamente correlacionadas no dizer de Alípio Silveira, e que são as seguintes:

a) latíssima, o princípio universal da ordem normativa, a razão prática extensível a toda conduta humana como religiosa, moral, social, jurídica e outras, que configura-se como uma suprema regra de justiça a que os homens devem obedecer;

b) lata, confundindo-se com a ideia de justiça absoluta ou ideal, com os princípios de Direito, com a ideia do Direito, com o Direito natural em todas as suas significações;

c) estrita, o ideal de justiça enquanto aplicado, ou seja, na interpretação, integração,

d) individualização judiciária, adaptação, etc. Sendo, nessa acepção empírica, a justiça no caso concreto.

A equidade, segundo Agostinho Alvim, classifica-se em legal e judicial. Na primeira, seria a contida no texto da norma, que prevê várias soluções, por exemplo, o artigo 10, §§ 1 º e 2º, da Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977.

Torna-se evidente que ainda antes do advento do atual Código, o juiz ao aplicar tal preceito em benefício das partes, sempre averiguava certas circunstâncias, como idade dos filhos, inocência ou não dos pais, e outras. Todavia, em todas estas situações, vê-se claramente um standard jurídico, e que “há um apelo à equidade do magistrado, a quem cabe julgar do enquadramento ou não do caso, em face das diretivas jurídicas”, no dizer de Limongi França.

Na segunda concepção do aludido autor, a judicial, podemos dizer que é aquela em que o legislador permite, explícita ou implicitamente ao julgador, no caso concreto, como no caso do artigo 1040, IV do Código Civil de 1916, que antes da revogação promovida por força da Lei 9.307/96, consistia na autorização, dada aos árbitros para julgarem por equidade, fora das regras e formas de direito.

Dos requisitos que Limongi França aponta, o que mais ressalta aos olhos quanto à pertinência deste trabalho, é no que tange à omissão, defeito ou acentuada generalidade da lei.

A equidade é tradicionalmente vista como um método para colmatar, para corrigir a lei em sua aplicação ao caso concreto, daí, a advertência de Recaséns Siches no sentido de ser indispensável a restauração da autêntica perspectiva de equidade, que foi mostrada, entre outros, por Aristóteles e Cícero.

Para Aristóteles, a equidade consistia na expressão do justo natural em relação ao caso concreto, sendo superior ao justo legal. Em outras palavras, a equidade é o autenticamente justo a respeito do caso particular.

Observava Aristóteles que o erro resultante da aplicação da fórmula geral da lei a casos particulares diferentes dos habituais por ela previstos, não é um erro que tenha praticado o legislador, não é um erro que esteja na lei mas algo que decorre da natureza das coisas, porque a lei só pode reger universalmente.

Segundo Cícero, equidade não consiste em corrigir a lei na aplicação desta a casos, mas sim, na sua exata aplicação, precisamente de acordo com as verdadeiras vontades do legislador, acima da imprecisão das palavras.

O que Siches extrai dos ensinamentos de Cícero e Aristóteles é que o legislador elabora suas normas gerais tendo em vista as situações habituais. Quando se tratar de um caso que não pertença a esse campo de situações, como quando o caso se apresenta como um tipo diferente daqueles que serviram de motivação na elaboração da lei ou, se a aplicação da regra genérica ao caso produzir resultados opostos àqueles a que se propôs, então deve-se considerar aquela regra como não aplicável à espécie. E se não há, na ordem jurídico-positiva, outra norma que sirva para resolver satisfatoriamente o caso, o juiz deve considerar-se como se estivesse diante de uma hipótese de lacuna.

Isto ocorre porque o problema de se decidir se uma norma jurídica é ou não aplicável a um determinado caso concreto, não se resolve por procedimento de lógica dedutiva. Ao contrário, é um problema que se pode solucionar somente por ponderação e estimativa dos resultados práticos que a aplicação da norma produziria em determinadas situações reais.

Siches conclui que correto é o caminho de se considerar a equidade como um "procedimento-adaptação" das normas jurídicas aos casos práticos, conjugando-as com as cambiantes necessidades da vida. No dizer de Lídia Reis de Almeida Prado, a equidade não é um método de interpretação, mas o meio de interpretação, pois foi um antecedente, um pressentimento do "logos" do razoável em matéria da interpretação das normas jurídicas.

Maria Helena Diniz, supeditando-se em Recaséns Siches, afirma que a equidade aparece na aplicação do método histórico-evolutivo no que pertine a interpretação do Direito, pois preconiza a adequação da lei às novas circunstâncias e do método teleológico, que requer a valoração da lei a fim de que o órgão jurisdicional possa acompanhar as vicissitudes da realidade concreta.

Desta forma, pela equidade, compreendem-se e estimam-se os resultados práticos que a aplicação da norma produziria em determinadas situações fáticas; se o resultado prático concorda com as valorações que inspiram a norma em que se funda, tal norma deverá ser aplicada. Todavia, se ao contrário, a norma aplicável a um caso singular produzir efeitos que viriam a contradizer as valorações, conforme as quais se modela a ordem jurídica, então indubitavelmente, tal norma não deve ser aplicada a esse caso concreto, o que resulta dizer que a equidade está consagrada como elemento de adaptação da norma ao caso concreto.

Na leitura, ainda que perfunctória da regra ditada no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, vê-se claramente que é possível corrigir a inadequação da norma ao caso concreto. Destarte, a equidade seria uma válvula de segurança que possibilita aliviar a tensão e a antinomia entre a norma e a realidade, a revolta dos fatos contra os códigos.

Por derradeiro a este tópico, convém ressaltar a posição de Vicente Ráo que apresenta três regras que devem ser seguidas pelo magistrado ao aplicar a equidade:

“a) por igual modo devem ser tratadas as coisas iguais e desigualmente as desiguais;

b) todos os elementos que concorreram para constituir a relação sub judice, coisa ou pessoa, ou que, no tocante a estas, tenham importância, ou sobre elas exerçam influência, devem ser devidamente considerados;

c) entre várias soluções possíveis deve-se preferir a mais humana, por ser a que melhor atende à justiça “.(sem destaque no original)

A equidade, então, confere um poder discricionário ao magistrado, mas não uma arbitrariedade. É uma autorização de apreciar, segundo a lógica do razoável, interesses e fatos não determinados a priori pelo legislador, estabelecendo uma norma individual para o caso concreto ou singular. Um poder conferido ao julgador para revelar o direito latente . Ora, como valer-se da equidade, aplicando-se a lógica do razoável, sem considerarmos o poder de intuição do julgador?

2.14.6. Aplicações PráticasAs aplicações em casos práticos são da mais variada natureza possível. Não somente naqueles casos já suscitados, que de certa forma contestam a regra ou aplicação do artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil mas que diuturnamente ocorrem.

Com específica relação aos negócios jurídicos, podemos arrolar como grandes exemplos, ainda que outros possam ser alinhados, todas as disposições constantes do Livro III, Título I, Capítulo IV, dos defeitos dos negócios jurídicos. É que os efeitos reflexos destas patologias podem ser causa de extremada injustiça se o julgador se descuidar das considerações alinhadas neste trabalho e, em alguns casos, aplicar a norma positivada como está e declarar a nulidade ou a anulação de um negócio defeituoso.

É ainda possível destacar dentre estes, os artigos 156 e 157 e respectivos parágrafos, pois o leitor poderá perceber a imensidão de situações conseqüentes da falta de razoabilidade. Aliás, esta foi a impressão digital do legislador: faltou com a razoabilidade nestas específicas disposições. A despeito dos elogios que são merecedores os aludidos artigos, não podemos nos furtar à crítica, dadas as omissões que também são resultantes, como a previsão do parágrafo segundo do 157, inexistente no artigo 156.

Com base nestas ponderações, espera-se que a razoabilidade oriente o julgador no instante de analisar o caso submetido à sua apreciação e que os conceitos de “grave dano” e onerosidade excessiva sejam realmente verificados no negócio jurídico, eis que a norma do artigo 171 determina a sua anulação. Todavia, talvez em algumas situações, o melhor mesmo não seria retira-lo do mundo jurídico, mas sim promover medidas que equilibrem a relação jurídica e atenuem a onerosidade para patamares aceitáveis de acordo com a função social do contrato.

Demais disto, como esperar que o julgador atinja a percepção da intenção da vontade prevista no artigo 112 do vigente Código, sem uma atividade intuitiva e razoável? Como detectar e aplicar o preceito de boa-fé explicitado no artigo 113?

Será que no caso em concreto a atividade interpretativa, acerca do que seria “pessoa de diligência normal” é algo que não exige uma maior cautela e que a falta de razoabilidade não poderia conduzir à injustiça?

2.15. Teoria da Argumentação Jurídica13

2.15.1. IntroduçãoÉ comum, ao sermos iniciados no mundo jurídico, ouvirmos e idealizarmos a figura do operador do Direito, como aquele profissional capaz de articular com perspicácia o sistema normativo com as minúcias de cada caso concreto. Como se o conhecimento amplo dos recursos oferecidos pelo ordenamento jurídico desse conta da complexa dimensão das relações humanas. Não basta sermos operadores do Direito, devemos ser “pensadores do Direito”. Temos que ser capazes de medir os efeitos de nossas ações perante o mundo e a responsabilidade que decorre delas. Pensar o Direito envolve o ato de articular o pensar com a ação argumentativa no mundo que expressa a reflexão, e por isso o exercício do Direito está intimamente ligado à argumentação. Esse processo demanda uma dialética constante do jurista com a realidade social e, de modo geral, aqueles que conseguem desenvolver essa aptidão são frequentemente reconhecidos por sua sabedoria e respeito à função social do Direito.

A argumentação é uma atividade indispensável ao Direito, sem ela a própria base principiológica dos ordenamentos jurídicos estaria em ameaça. Os juízes, em geral, e principalmente as cortes constitucionais estariam fadados a cumprir dogmaticamente a Lei, e haveria um retrocesso ao método clássico da Escola da Exegese que permitia apenas uma interpretação literal. Os princípios constitucionais e o próprio funcionamento do Direito estariam mitigados se não fosse possível conferir boas razões para lhes servir como fundamento ao serem reivindicados os direitos.

A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA SURGE NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX COM O OBJETIVO DE PROPOR MECANISMOS DE CONTROLE SOBRE A RACIONALIDADE DO DISCURSO JURÍDICO, POSSIBILITANDO QUE AS DECISÕES JURÍDICAS SEJAM PAUTADAS POR CRITÉRIOS SEGUROS FRENTE À COMPLEXIDADE DOS CASOS CONCRETOS. Em contraposição àqueles que defendem a pós-modernidade, a Teoria da Argumentação Jurídica é uma retomada à crença na racionalidade iluminista e, como observaremos, possui algumas deficiências. O nosso objetivo é realizar uma análise sucinta da evolução deste ramo ainda recente da filosofia do Direito e posteriormente expor críticas a esse modelo de racionalidade, visando ao aprimoramento e ao surgimento de novas alternativas. Após esta breve introdução, adentremos no cerne das reflexões que pretendemos desenvolver.

2.15.2. A Teoria da Argumentação Jurídica como Controle de RacionalidadeA racionalidade jurídica pode ser analisada sob diversos enfoques convergentes, entre eles a questão da produção do Direito, o que remete à questão da democracia e do Estado de Direito, bem como a discussão sobre a mudança de paradigma empreendida pela filosofia da linguagem, o que nos leva à Teoria da Argumentação Jurídica. Os autores que acabaram por construir o modelo padrão de Teoria da Argumentação Jurídica atual (Viehweg, Perelman, Maccormick, Alexy, Aarnio, Habermas, etc.) acreditam no poder emancipatório da Razão, são, portanto, herdeiros do iluminismo. O debate se acentua quando os pós-modernos negam a utilidade desse tipo de teoria, pois a falência do discurso moderno teria trazido uma

13 Extraído do texto: “A Teoria da Argumentação Jurídica como controle de racionalidade: breves considerações acerca de sua viabilidade”, de Adílson Silva Ferraz.

incredulidade em relação às metanarrativas, ou seja, nem a Razão, a religião, a política, a moral, a ciência, a arte e quaisquer sistemas totalizantes poderiam solucionar a condição fragmentada em que se encontra a humanidade14. A atualidade se caracterizaria pela consumação da capacidade crítica do sujeito (redução dos espíritos) e pela extinção das formas filosóficas que serviam de referência para pensar o estar-no-mundo. Apesar das variadas críticas, a teoria da argumentação jurídica continua em plena expansão e se destaca pela interdisciplinaridade, ao envolver diversos ramos do conhecimento em suas discussões.

De forma sucinta, a função da Teoria da Argumentação Jurídica é evitar arbitrariedades nas decisões jurídicas, oferecendo respostas para a questão das várias possibilidades de aplicação do Direito, explicitada desde Kelsen na sua Teoria Pura do Direito. O pensador da Escola de Viena falava em uma indeterminação do sujeito frente aos seus atos jurídicos, ou seja, a possibilidade de escolher entre vários caminhos de fundamentação, interpretação e soluções diferentes15. O Direito formaria uma moldura dentro da qual estariam contidas as várias possibilidades de aplicação. Portanto, o grande problema da metodologia jurídica atualmente é garantir que as decisões jurídicas sejam fundamentadas racionalmente mesmo quando o Direito positivo não oferece uma solução imediata e satisfatória para o caso concreto.

Há ainda outro aspecto relevante, o Direito não é uma ciência empírica. Alguns de seus ramos sim, como a Sociologia do Direito, a História do Direito e a Criminologia. Nas ciências naturais, o objeto de estudo é extensional, pode ser mensurado, pesado, verificado pela experiência sensorial. Já a Ciência do Direito trata da norma, do dever-ser, de modo que a dogmática jurídica envolve conceitos, regras e princípios na solução das suas controvérsias. Mas se a Ciência jurídica não engloba verificação empírica, quais seriam seus critérios de verdade e segurança? Seria preciso desenvolver cada vez mais mecanismos que permitam a ação dos juristas em função de uma técnica objetiva e que possibilitem maior grau de imparcialidade na produção e na aplicação do Direito.

Os melhores candidatos para essa função seriam os cânones do Direito (métodos de interpretação), mas da sua utilização decorrem algumas dificuldades. Os resultados poderiam variar a depender do intérprete, há muitos cânones e não há hierarquia entre os mesmos. Apesar das deficiências, os cânones apresentam uma lógica interna importante para as decisões jurídicas. A Tópica, com seus catálogos de Topoi, e a Nova retórica, de Chäim Perelman, representaram um avanço, mas não atingiram uma solução adequada por não estabelecer procedimentos seguros quanto aos resultados e por não dar a devida importância para os elementos formais do ordenamento jurídico, enquanto um sistema dinâmico de normas produzido pelo Estado. Dessa forma, critérios mais sólidos são necessários para resolver casos jurídicos quando, mais do que a dogmática jurídica, é utilizada a razão prática em detrimento da irracionalidade dos nossos impulsos, emoções e interesses.

O caso Elmer (Riggs versus Palmer), citado por Dworkin, demonstra bem a dificuldade em manter uma fundamentação racional frente a casos controversos (hard cases). Elmer assassinou o avô por envenenamento em Nova York, em 1882. Sabia que o testamento

14 Pós-modernidad aqui tratada nas vertentes do ceticismo e do existencialismo.15 Kelsen entendia que o ato de interpretar era um ato de vontade, e não de conhecimento.

deixava-o com maior parte dos bens do seu avô e desconfiava que o velho, que voltara a se casar havia pouco, pudesse alterar o testamento e deixá-lo sem nada. O crime de Elmer foi descoberto e ele foi considerado culpado e condenado a alguns anos de prisão. Estaria ele legalmente habilitado para receber a herança que seu avô lhe deixara no último testamento? A lei de sucessões da época não explicitava nada sobre o direito de herança na hipótese de o herdeiro assassinar o testador. A maioria dos juízes da mais alta Corte de Nova York decidiram em acordo com a lei, o único voto dissidente foi do juiz Gray, que defendia que o testador teria conhecimento e assumiu a responsabilidade por todas as cláusulas do testamento ao estipulá-las. Além disso, se Elmer perdesse a herança por causa do assassinato, estaria sendo duplamente punido por seu crime (bis in idem). Esse tipo de caso controverso não é incomum e revela como é complexo decidir quando há conflito entre a esfera jurídica e a moral, pois o senso de equidade não só se revela em seguir princípios corretos, mas também em aplicá-los de forma imparcial, considerando-se todas as circunstâncias especiais, de modo que não é possível abdicar da moralidade, da ética (razão prática).

Enquanto perdurou a visão positivista de raciocínio jurídico própria da exegese, as decisões judiciais eram consideradas uma simples operação dedutiva de subsunção, devendo a solução ser alcançada unicamente segundo o critério da legalidade, sem levar em consideração o seu caráter de razoabilidade. A concepção positivista tinha como consequência negar o papel da lógica, dos métodos científicos e do uso prático da razão, rompendo a tradição aristotélica que admitia a sua utilização em todos os domínios de ação. No século XX, com o resgate da tradição retórica e em virtude da mudança de paradigma empreendida pela linguistic turn, foi reconhecida a importância do desenvolvimento de uma teoria da argumentação jurídica. Essa necessidade é ainda mais premente, já que a complexidade, função e estrutura do Direito se diferenciam de outros fenômenos sociais justamente porque a prática jurídica é essencialmente argumentativa. A seguir, analisaremos mais detalhadamente dois modelos de Teoria da Argumentação, desenvolvidos por Jürgen Habermas e por Robert Alexy.

2.15.3. A Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen HabermasIntroduzindo em 1981 uma nova visão a respeito das relações entre a linguagem e a sociedade, Habermas publica “Teoria da Ação Comunicativa”, aquela que é considerada sua obra mais importante. Nessa obra o filósofo alemão demonstra sua capacidade de dialogar com desenvoltura com as diversas correntes filosóficas e científicas. Quanto à crítica à sociedade moderna, assume um caminho próprio em relação aos filósofos da Escola de Frankfurt, desenvolvendo uma teoria comunicativa calcada num procedimento discursivo que prescreve a igualdade entre os sujeitos, de modo a precaver a alienação e a dominação . Os escritos de Habermas foram marcantes na formulação de uma teoria do discurso prático racional geral e posterior elaboração da Teoria da Argumentação jurídica. Para os fins do nosso estudo, destacaremos sucintamente alguns aspectos da sua teoria do discurso e a sua relação com a construção da democracia através do consenso.

A Teoria do Discurso de Habermas explica a legitimidade do Direito com auxílio de regras e pressupostos de comunicação que são institucionalizados juridicamente, os quais permitem concluir que os processos de criação e de aplicação do Direito levam a resultados racionais.

Ora, para Habermas, a prática da linguagem serve como garantia da democracia, uma vez que a própria democracia pressupõe a compreensão de interesses mútuos e o alcance de um consenso. Assim, O CONSENSO SOCIAL DERIVA DA AÇÃO COMUNICATIVA, ou seja, uma orientação que responde ao interesse por um entendimento recíproco e pela manutenção e proteção de uma intersubjetividade permanentemente ameaçada no mundo da vida. A prática da ação comunicativa objetiva resgatar da razão a sua verdadeira função social, já que, “no curso da modernização capitalista, o potencial comunicativo da razão é simultaneamente desdobrado e deformado.” Nem sempre a ação é voltada para o entendimento e na maioria das vezes se reveste de estratégias (ação estratégica) visando a outros fins, envolve uma comunicação distorcida ou é impossibilitada pelas características físicas e psíquicas dos sujeitos.

O discurso pressupõe a argumentação, a participação de atores que se comunicam livremente e em situação de simetria. Habermas reconhece que uma ética formada com base no consenso discursivo é quase inalcançável, porém, não impossível. Dessa forma, os pressupostos da racionalidade comunicativa serviriam como uma idéia reguladora de uma ética pragmática.

Habermas fornece dois princípios que são complementares e orientam a argumentação no

sentido ético. O primeiro é chamado de “PRINCÍPIO DO DISCURSO”, representado por (D), o qual é colocado como uma condição anterior ao discurso. De acordo com (D): “São válidas as normas racionais às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais.” Ou seja, só são válidas as normas que puderem ser assentidas por todos os participantes do discurso. Habermas é radical em afirmar que só sob essa condição é que as normas (jurídicas ou morais) provenientes do discurso são válidas. A adesão de todos significa também a sua participação integral na produção da norma, o que torna qualquer um competente para resgatar a sua pretensão de validade para assegurar a obediência.

Enquanto o princípio (D) se refere ao processo de elaboração da norma, o princípio (U) refere-se às consequências de sua realização. Esse princípio não tem conteúdo como uma norma positivada, pois esta é uma tarefa histórica de cada sociedade. Tem o objetivo de ser apenas o método, o procedimento pelo qual as normas advindas do discurso são justificadas. Esse

princípio de regulação da ética é chamado de (U), ou “PRINCÍPIO DE UNIVERSALIZAÇÃO”. Seguindo um critério de fundamentação da ética segundo normas, a correção das ações entre os sujeitos diz respeito à retitude dessas ações em relação às normas vigentes. O princípio (U) informa que “Qualquer norma válida deve satisfazer a condição de que as consequências e os efeitos colaterais, que resultarem previsivelmente da sua observância geral para a satisfação dos interesses de cada um dos indivíduos, possam ser aceitos sem coação por todos os afetados.” Esse princípio expressa a idéia de uma fundamentação discursiva da ética, informando que só podem reclamar validez das normas que encontrem ou possam encontrar assentimento de todos os participantes do discurso. Uma norma que não satisfaça essa condição não é uma norma moral ou válida. Uma norma justificada por esse processo é uma norma boa para todos os envolvidos. O que determina o caráter moral de uma norma de ação é que ela possa ser aceita como justa por qualquer um que a analisasse. A aceitação sobre a decisão tem que ser compartilhada não pela maioria,

mas sim por todos. Assim, age moralmente quem age de acordo com uma norma que foi fruto de um procedimento de universalização dessa conduta, decorrente do consenso de uma comunidade ideal de comunicação.

É na sua obra de 1992, intitulada “Direito e Democracia: entre Facticidade e Validade”, que Habermas tenta unir a sua teoria discursiva ao Direito. Até esse livro, não havia conferido ao Direito um papel central na sua teoria, limitando-se a examinar indiretamente o seu desenvolvimento histórico tendo a racionalidade como parâmetro. A grande questão que Habermas tenta solucionar é: como o Direito pode ser legítimo recorrendo apenas à própria legalidade? O Direito seria uma amálgama entre facticidade e validade, entre o mundo da vida e o sistema, impedindo a colonização do primeiro pelo segundo. Afirma ainda que as ordens jurídicas modernas não podem tirar sua legitimação senão da idéia de autodeterminação, com efeito, é necessário que os cidadãos possam conceber-se a qualquer momento como os autores do Direito ao qual estão submetidos enquanto destinatários. A tese defendida por Habermas é a de que não se pode supor que a fé na legalidade de um procedimento legitime-se por si mesma, pois uma correção processual das etapas de formulação do Direito aponta para a base de validade do Direito. Então, o que dá força à legalidade é justamente a certeza de um fundamento racional que transforma em válido todo ordenamento jurídico. Mas como pode a legitimidade surgir da legalidade? Somente à medida que a legalidade é resultado da criação discursiva e reflexo da opinião e da vontade dos membros de uma comunidade jurídica. De acordo com Habermas, a pergunta pela legitimidade da ordem legal não obtém resposta adequada quando se apela para uma racionalidade jurídica autônoma, isenta da moral. Para Max Weber, as ordens estatais ocidentais seriam desdobramentos da “dominação legal”, do uso legal da força. A legitimidade conferida à legalidade advém da fé nas formas jurídicas independentemente da tradição ou do carisma. Weber introduziu um conceito positivista de Direito, segundo o qual o Direito é aquilo que o legislador, legitimado ou não, produz como norma através de um processo institucionalizado. Isso significa que o Direito tem uma racionalidade própria que independe da moral. Habermas discorda dessa posição afirmando que o Direito é moral na medida em que é produzido sob as condições de uma argumentação racionalmente moral. A legitimidade pode ser obtida através da legalidade, na medida em que os processos para a produção de normas jurídicas são racionais no sentido de uma razão prático-moral procedimental16. Não há uma identificação intrínseca entre legalidade e legitimidade, de modo que a legalidade não produz legitimidade de per si. Somente uma legalidade legítima produz legitimidade, ou seja, a legitimidade é resultante do entrelaçamento entre os processos jurídicos e uma argumentação moral que obedece à sua própria racionalidade procedimental (Discurso). Assim, para Habermas, só tem sentido falar em legitimidade da legalidade à medida que a juridicidade se abre e incorpora a dimensão da moralidade, estabelecendo assim uma relação com o Direito que, ao mesmo tempo, é interna e normativa. Em síntese, só é legitima a legalidade circunscrita em uma racionalidade cujo procedimento se situa entre processos jurídicos e argumentos morais.

16 Assim, o fundamento democrático do Direito é o próprio procedimento prévio de criação baseado no consenso. Como nele atuaram pessoas livres e racionais, dotadas de moralidade, o resultado do trabalho legiferante só pode ser legítimo. Como Habermas pregava o consenso, se a norma não fosse produzida por essa via, ela seria legal, mas não legítima.

O Direito não seria um sistema fechado em si mesmo, o que possibilita uma abertura, inevitável, aos discursos morais. Dentre os princípios do Direito moderno, há em grande parte os princípios morais, que possuem uma dupla estrutura: ao mesmo tempo em que são morais, foram incorporados ao sistema jurídico por meio da positivação. A segunda questão que ele procura responder é: A moral é capaz de garantir a integração da sociedade? Habermas procura aliar a moralidade com a segurança jurídica, e essa abertura do Direito à Moral significa uma incorporação da moral à própria racionalidade procedimental. Um dos pontos mais conflituosos da teoria de Habermas é justamente a ética do discurso. Chega à conclusão de que um discurso que gera as normas entre os indivíduos calcado apenas na moral (Razão Prática) não é capaz de garantir as pretensões de validade do discurso e é por isso que atribui ao Direito o papel de intervir como Medium, estabilizando a tensão entre a facticidade dos procedimentos jurídicos e a validade desses procedimentos, confrontando-os ao contexto histórico de cada sociedade.

Até as Tanner Lectures Habermas defendia uma relação de co-originariedade entre Direito e Moral, em que sua origem é simultânea, declinando-se posteriormente em favor de uma complementação recíproca. Essa relação de complementação recíproca significa que, ao mesmo tempo em que o Direito e a moral podem se originar simultaneamente, ocorre o condicionamento da ordem jurídica a uma esfera moral superior que a legitima, sendo a validade inerente ao Direito falível e sempre aberta à problematização pela sociedade através do discurso: “Para que o Direito mantenha sua legitimidade, é necessário que os cidadãos troquem seu papel de sujeitos privados do direito e assumam a perspectiva de participantes em processos de entendimento que versam sobre as regras de sua convivência.” Enquanto pessoa moral, o sujeito encontra-se sob o domínio da cultura, tendo como referência os valores sociais pelos quais age segundo seus interesses. Por pertencer simultaneamente à esfera da cultura e ser institucional, o Direito tem a capacidade de compensar as fragilidades morais do indivíduo. Ao se integrar a uma comunidade jurídica, ou seja, ao ser sujeito de Direito, retira-se o fardo das decisões individuais e se passa a decidir intersubjetivamente. É sob a tutela do ordenamento jurídico que a pessoa moral se livra do fardo de decidir monologicamente e pode decidir universalmente. Assim, o critério de Justiça é transferido, por meio do Direito, para o momento de formalização institucional da validade das normas, e já que o Direito complementa a moral, irradia a moralidade em todas as áreas da ação humana. Assim, ressalta que esse direito retira dos indivíduos “o fardo das normas morais e as transfere para leis que garantem a compatibilidade das liberdades de ação”. O Direito deve agir como medium de integração social, pois lhe cabe evitar ações moralmente inadmissíveis e estratégicas, além de solucionar os conflitos de forma democrática. Ocorre uma transferência de responsabilidade para o Direito, que retira o peso do sujeito de decidir o que é justo ou injusto. É o Direito o encarregado de barrar os excessos do sistema econômico e político, porque ele, ao mesmo tempo em que regulamenta o poder e a economia, também regulamenta as expectativas dos sujeitos no mundo da vida. Cumpre, assim, uma função integradora. Embora o Direito e a Moral sejam esferas distintas, não existe preponderância de uma sobre a outra, sendo que o processo legislativo, as decisões judiciais e a própria Dogmática Jurídica atrelam a ambas uma reciprocidade. Habermas, de certa forma, recusa a credibilidade de uma esfera moral individual que oriente nossas ações de forma confiável. A resolução dos problemas desliga-se da tradição e atrela-se ao procedimento unicamente.

A Teoria da Ação Comunicativa garantiria através de procedimentos democráticos o diálogo racional e justo entre a sociedade civil, o mercado e o Estado, permitindo a autonomia no sentido de auto-regulamentação. O pensamento de Habermas foi o alicerce para os modelos padrões de Teoria da Argumentação Jurídica.

2.15.4. Teoria da Argumentação Jurídica de Robert AlexyÉ interessante perceber que Alexy, influenciado por Kant e Habermas, e Neil Maccormick, por Hume, Hart e pela tradição da Common Law, trilharam caminhos diferentes em direção ao mesmo objetivo, alcançando resultados semelhantes. Ambos pensadores partiram da necessidade de construir uma teoria da argumentação para o Direito e do reconhecimento de que o juiz não decide exclusivamente com base na capacidade de extrair logicamente conclusões válidas (silogismo jurídico), mas deve julgar mesmo na ausência desses pressupostos lógicos, naqueles casos em que não é claro o método que utilizará para argumentar racionalmente. A decisão judicial nestes casos sofre a abrangência interpretativa do ordenamento jurídico e é pautada primordialmente segundo a razão prática e pelos princípios gerais de Justiça. Por isso o principal objetivo da elaboração de uma teoria da argumentação para o Direito é encontrar uma forma de manter a racionalidade do discurso jurídico, conferindo o máximo de segurança às decisões jurídicas.

Alexy retoma a difícil questão enfrentada desde Kant: é possível a moral ser racionalizada? E aproxima o problema especificamente para o Direito, ao qual a mesma pergunta repercute indiretamente: é possível uma argumentação jurídica racional? Obter uma resposta satisfatória seria bastante útil nas decisões que se tornam complexas por envolverem conflito de princípios, normas, valores etc. Da própria argumentação jurídico-racional depende não só o caráter científico do Direito, mas também a legitimidade das decisões judiciais. A racionalidade de um discurso prático poderia ser mantida ao serem cumpridas as condições expressas por um sistema de regras ou procedimentos. A racionalidade do discurso se define pelo conjunto dessas regras do discurso, portanto, o critério de racionalidade não se refere a uma verdade ontológica a priori, mas a um critério de “correção” do agir conforme o procedimento17. Nesse sentido, a racionalidade deve ser entendida enquanto “racionalidade comunicativa”.

A aplicação das regras do discurso não leva à segurança de sua efetividade, mas a uma considerável redução de sua irracionalidade. A Teoria da Argumentação Jurídica constitui, de certo modo, uma busca por uma objetividade na prescrição de normas ou condutas aceitas indiscriminadamente por todos aqueles que participam do discurso e que possam ser universalizáveis.

Embora tenhamos citado o caso Riggs versus Palmer descrito por Dworkin, este discorda em vários pontos de Alexy, se recusando a construir um sistema de regras procedimentais como fez o jurista de Kiel. No ensaio “Sistema Jurídico, Principios Jurídicos y Razón Práctica”, ALEXY APRESENTA SUAS OBJEÇÕES À TESE DWORKIANA DA EXISTÊNCIA DE UMA ÚNICA RESPOSTA CORRETA PARA UM CASO CONTROVERSO (HARD CASE). O filósofo de Oxford rejeita duas correntes de pensamento, o convencionalismo, que considera a melhor interpretação a de que

17 A racionalidade do discurso jurídico, para Alexy, não está, então, no seu objeto, mas no adequado procedimento que ele trilha para ser desenvolvido.

os juízes descobrem e aplicam convenções legais especiais, e o pragmatismo, que encontra na história dos juízes vistos como arquitetos de um futuro melhor, livres da exigência inibidora de agir coerentemente uns com os outros.

Dworkin desenvolve sua teoria levando em conta o giro hermenêutico empreendido por Heidegger e Gadamer. A orientação do decidir humano estaria submetida à orientação e aos limites das pré-compreensões inscritas na consciência histórica do sujeito. Com a metáfora do “Juiz Hércules”, Dworkin defende a figura ideal de um magistrado capaz de decidir de maneira criteriosa e íntegra, através de uma interpretação construtiva do ordenamento jurídico como um todo, considerando também a leitura da sociedade quanto aos princípios envolvidos no caso. Portanto, dentro dos limites da história e da moralidade está circunscrita a única resposta certa para cada caso. ALEXY DEFENDE QUE HÁ UMA MULTIPLICIDADE DE OPÇÕES E QUE A SUA ESCOLHA DEVE SER PAUTADA SEGUNDO OS CRITÉRIOS DE CORREÇÃO DO DISCURSO. Como não é possível uma teoria da razão prática de cunho ontológico, somente se pode recorrer para as teorias morais procedimentais, que formulariam regras ou condições para a argumentação e para uma decisão racional18. A teoria da correspondência de Aristóteles é então superada na medida em que o critério da verdade não é mais a correspondência entre a asserção que descreve algo e a realidade, mas

construída discursivamente. Portanto, A VERDADE NÃO ESTÁ NO MUNDO, É UMA PRODUÇÃO CULTURAL HUMANA SUBORDINADA À REFUTABILIDADE (FALSEABILIDADE) E QUE, POR SER HISTÓRICA, PODE SER NEGADA E SUBSTITUÍDA POR UM NOVO ARGUMENTO RACIONAL QUE LHE SIRVA ENQUANTO FUNDAMENTO.

A argumentação jurídica é vista por Alexy como um caso especial da argumentação prática geral. Sua peculiaridade está na série de vínculos institucionais que a caracteriza, tais como a Lei, o precedente e a dogmática jurídica (tese do caso especial). O procedimento da teoria da argumentação jurídica é vinculado a quatro níveis de limitação: o discurso prático geral, o procedimento legislativo, o discurso jurídico e o procedimento judicial. Mas mesmo esses vínculos, concebidos como um sistema de regras, princípios e procedimento, são incapazes de levar a um resultado preciso. As regras do discurso serviriam então para que se pudesse contar com um mínimo de racionalidade. Assim, ter-se-ia uma decisão aproximadamente correta.

Embora o discurso jurídico esteja circunscrito às regras da razão prática geral, Alexy afirma a necessidade de formulação de regras próprias à atividade da argumentação jurídica.

A justificação das decisões jurídicas poderia se dar através de uma justificação interna (internal justification) e uma justificação externa (external justification). Na justificação interna a decisão segue logicamente das suas premissas (silogismo jurídico), enquanto o objeto da justificação externa é a correção dessas premissas. A partir das teorias do discurso prático da

18 Veja a grande diferença entre o procedimentalismo de Habermas e o procedimentalismo de Alexy. Em Habermas, o procedimentalismo é voltado à política, à formação do Direito, criando-se condições discursivas adequadas entre os participantes do jogo político. Em Alexy, o procedimentalismo é voltado para a atuação do juiz (especialmente), no estabelecimento de critérios e condições para uma argumentação judicial válida do ponto de vista racional.

ética analítica (naturalismo, intuicionismo, emotivismo, Wittgenstein, Austin, Hare, Toulmin e Baier), da teoria consensual de Habermas e da teoria da argumentação de Perelman é que Alexy retira o substrato para estabelecer o conjunto de procedimentos da sua teoria da argumentação jurídica, entre eles a regra das cargas da argumentação e a regra de transição. A obra de Alexy é um marco na história da Filosofia do Direito, e, apesar das deficiências e críticas à teoria da argumentação, esse ramo se confirma como uma das promessas do porvir da Ciência do Direito.

ALEXY DIZ QUE A LEGITIMAÇÃO DO TRIBUNAL É ARGUMENTATIVA. O TRIBUNAL CONVENCE NÃO POR UMA PRESUNÇÃO DE QUE O PESO DA CORREÇÃO REPOUSA NO FATO DA MAIORIA TER DECIDIDO. TEM SUA LEGITIMIDADE ARGUMENTATIVA, NO MODO ARGUMENTATIVO, A PRESUNÇÃO DE QUE AQUELE GRUPO SE HOUVE COM A MAIOR CORREÇÃO POSSÍVEL AO DECIDIR EM UMA ÚLTIMA INSTÂNCIA DE DEBATE. É assim que sustentamos o STF. O Tribunal tem que convencer a população em cada julgamento de que somente se pode concluir pelo justo daquela maneira. Tanto o Tribunal quanto o Parlamento são representantes do povo, mas atuam de maneiras diferentes. O Parlamento atua democraticamente, e o Judiciário atua argumentativamente. O Tribunal age em nome do povo, às vezes até contra o processo político democrático. A representação argumentativa dá certo quando o Tribunal é aceito como instância de reflexão do processo político democrático.

Observe-se que o Judiciário é um órgão político também, mas que atua argumentativamente.

O Tribunal é a institucionalização da razão. A segurança jurídica é dada pelo Tribunal quando da solução para conflito que perturba a segurança jurídica. O tribunal concretiza direitos fundamentais em um Estado Constitucional Democrático. A democracia convive com a legitimação argumentativa.

2.15.5. Teoria da Argumentação Jurídica de Chaïm Perelman: A Nova RetóricaChaïm Perelman foi um filósofo do Direito que apesar de nascido na Polônia, viveu grande parte de sua vida na Bélgica, tendo estudado Direito e Filosofia na Universidade de Bruxelas. Sua obra principal é o Traité de l'argumentation - la nouvelle rhétorique5 (1958), escrita juntamente com Lucie Olbrechts-Tyteca, obra base de sua Teoria da Argumentação. Importantes contribuições no campo filosófico o qualificam como um dos mais importantes teóricos da Retórica do século passado. O estudo da argumentação em seu Traité de l'argumentation foi sistematizado em três grandes partes: os pressupostos, os pontos de partida da argumentação e as técnicas argumentativas, essas últimas, por exigirem um tratamento mais profundo do tema, não são indicadas para uma abordagem que se propõe inicial. Por esse motivo, considerando a proposta apresentada, trabalharemos basicamente com os pressupostos da argumentação.

A sua idéia de redefinição da retórica centra-se no conceito de auditório, ou seja, os destinatários de um discurso. Trabalhando com a premissa de contato de espíritos, Perelman defende a argumentação como meio de promover uma adesão de espíritos por intermédio da não-coação. Pensamento de grande valia, uma vez que se alcança a adesão do destinatário, mediante suas próprias convicções. Desse modo, destaca o discurso como um importante elemento da argumentação, sendo o fator que efetuaria a interação entre orador e auditório, entre emissor e destinatário.

Assim, para um completo tratamento do tema, torna-se importante apresentar os elementos da argumentação, visualizados nos conceitos de orador, discurso e auditório, que são pressupostos para o entendimento da nova retórica. Partindo posteriormente para o conceito perelmaniano de auditório universal, imprescindível destacar sua importância como parâmetro ideal para o desenvolvimento da argumentação, bem como para a definição das estratégias argumentativas pautadas na persuasão e no convencimento. Estas estratégias, em virtude de sua importância, também serão objeto de uma breve discussão, tendo em vista a ligação intrínseca que possuem com os auditórios a que são direcionadas. Finalmente, com a intenção de resgatar parte do pensamento do filósofo belga, cabe apresentar a ligação existente entre seu conceito de auditório universal e a concepção da situação ideal de fala, trabalhada por Habermas e Alexy, demonstrando em que medida tais idéias atuam na busca pela universalidade e racionalidade do discurso jurídico.

2.15.5.1. Os Elementos da Argumentação A discussão proposta não está relacionada a um estudo da oratória, entretanto, sendo a Teoria da Argumentação de Perelman uma retomada da antiga arte retórica concebida por Aristóteles, o estudo do pensamento perelmaniano, poderia parecer em um primeiro momento, uma simples reedição dos antigos ensinamentos do filósofo grego. Todavia, o próprio Perelman afirmou que seu trabalho se tratava de uma nova visão acerca da antiga retórica, mantendo com relação a esta, basicamente a idéia de auditório (PERELMAN, 1996:7).

Em seus estudos, o filósofo belga destaca alguns pontos de suma importância para o entendimento desta nova retórica. O discurso é compreendido como argumentação. Orador e auditório são, respectivamente, aquele que apresenta o discurso e aqueles a quem o discurso é dirigido (PERELMAN, 1996:7). Assim, Perelman promove interessante construção ao estabelecer discurso, auditório e orador como elementos da argumentação, entendida aqui em sentido amplo, como método para provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que lhes são apresentadas (PERELMAN, 1996:4).

Tal ponto de vista é bem fundado na idéia de que auditório e orador são elementos em profunda e constante ligação. O auditório determina o modo de proceder do orador, enquanto o orador deve se adaptar às características do auditório, de modo a alcançar melhores resultados em sua empreitada. Dessa maneira, não há como afastar a idéia de que a argumentação se desenvolve para o auditório.

Acerca do orador, Perelman destaca a importância da constante adaptação do discurso aos destinatários, afirmando que cabe ao auditório o papel principal para determinar a qualidade da argumentação e o comportamento dos oradores (PERELMAN, 1996:27).

O auditório, entendido, a priori, como o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação, pode ser concebido de três formas distintas. A partir de sua extensão, Perelman e Olbrechts-Tyteca nos apresentam três modelos:

a) O primeiro é o auditório universal, constituído por toda humanidade, ou pelo menos, por todos os homens adultos e normais.

b) O segundo formado apenas pelo interlocutor a quem se dirige, entendido como um diálogo.

c) O terceiro auditório abrange o próprio sujeito, quando delibera consigo próprio, hipótese em que coincidem os elementos auditório e orador (PERELMAN, 1996:33-34).

Tal extensão não pode ser compreendida simplesmente como a visualização física dos destinatários do discurso. Essa dimensão física é facilmente visualizada em um discurso verbal, todavia, não é bem estabelecida em um discurso escrito. O exemplo clássico é o do escritor que publica um livro, mas não sabe ao certo, no momento da confecção ou publicação, quem é o seu auditório. Desse modo, um dos grandes problemas colocados à frente do orador é descobrir quem de fato são os seus destinatários, os quais são imprescindíveis para o processo de adaptação e construção. Essa construção do auditório, à luz dos destinatários, não se trata de inovação dos nossos tempos, já sendo visualizada em Aristóteles, Cícero e Quintiliano, demonstrando estes autores que o conhecimento daqueles a quem se dirige a argumentação é uma condição prévia para o desenvolvimento de uma argumentação eficaz (PERELMAN, 1996:23).

Essa extensão dos auditórios, a princípio, sem muita utilidade prática, acaba por se tornar essencial na definição de uma estratégia argumentativa pautada na convicção ou persuasão.

Apesar das críticas sobre a imprecisão destes conceitos, oportuna lição nos ensina Atienza, ao demonstrar a distinção entre persuadir e convencer sob o viés do pensamento perelmaniano. Com vistas ao auditório que se pretende argumentar, considera o jusfilósofo espanhol que “uma argumentação persuasiva, para Perelman, é aquela que só vale para um auditório particular, ao passo que uma argumentação convincente é a que se pretende válida para todo ser dotado de razão” (ATIENZA, 2006:63).

Nesse sentido, quando ocorre uma argumentação perante um único ouvinte, encarado como auditório particular, deve-se optar por uma estratégia argumentativa persuasiva, todavia, se o destinatário é encarado como auditório universal, deve-se optar por uma estratégia pautada no convencimento.

Acredita-se que o interesse maior do estudo da argumentação, seja a descoberta de técnicas argumentativas passíveis de se impor a todos os auditórios. Tal objetivo seria possível mediante um discurso pautado na objetividade, alcançando um modelo ideal de argumentação que se imporia a auditórios compostos por homens competentes ou racionais (PERELMAN, 1996:29).

2.15.5.2. O Auditório Universal Tendo em vista que a própria concepção de auditório utilizada por Perelman deriva da definição tradicional de Aristóteles, especificamente, nessa parte, o filósofo belga inova em uma noção basilar de seu pensamento, ao estabelecer o conceito de auditório universal (Auditoire Universel).

Mediante a idéia de que é a partir dos destinatários que toda argumentação se desenvolve, ele destaca o auditório universal como um auditório “constituído por toda humanidade, ou pelo menos, por todos os homens adultos e normais” (PERELMAN, 1996:33-34). A partir disso,

busca-se elucidar a objetividade desse conceito, citando Perelman, destaca-se que este auditório “é constituído por cada qual a partir do que sabe de seus semelhantes, de modo a transcender as poucas oposições de que tem consciência” (PERELMAN, 1996:37).

Assim, para ele, o auditório universal é tido como um limite a ser atingido. Todavia, apesar dessa importância, ele não nega a imprecisão do conceito, uma vez que cada cultura ou cada indivíduo poderão ter sua concepção acerca do auditório universal (PERELMAN, 1996:37). Essa idéia desempenha importante papel como objeto de discussão aqui proposto, pois além de promover o parâmetro ideal de visualização do destinatário, permite ainda ao orador, em seu exercício de adaptação com relação àquele, escolher entre duas estratégias argumentativas: persuadir ou convencer (ATIEZA, 2006:63), as quais por também serem fonte de imprecisões, são igualmente objeto de forte crítica por parte de outros autores. A consideração do caráter ideal, atribuído ao conceito de auditório universal, permite uma aproximação deste com a situação ideal de fala, descrita por Habermas e utilizada por Alexy em sua Teoria da Argumentação Jurídica. Atienza ao também analisar o conceito perelmaniano, enxerga aspectos positivos e negativos. Sob o aspecto positivo, o pensador espanhol concorda com Alexy e sua atribuição ideal ao conceito de auditório universal, situado como parâmetro de racionalidade e objetividade (ATIENZA, 2006:81), concordando com o papel central exercido pelo auditório universal. Já sob o aspecto negativo, destaca a noção obscura desenvolvida, apontando para tanto, as críticas de Aulis Aarnio e Letizia Gianformaggio (ATIENZA, 2006:81) ao conceito em comento Alexy contempla importante papel à Teoria da Argumentação de Perelman no campo normativo, uma vez que os destinatários, considerados sob a forma de auditório universal, somente se convencem mediante argumentos racionais. Nota-se que, a aproximação entre auditório universal, convencimento e racionalidade é novamente alvo de deliberação (ALEXY, 2005:168). Assim, de uma forma mais lúcida, acerca dessa ligação, assevera o mestre alemão que esse estado (o auditório universal) corresponde à situação ideal de fala Habermasiana. “O que em Perelman é o acordo do auditório universal, é em Habermas o consenso alcançado sob condições ideais” (ALEXY, 2005:170). Acerca da racionalidade na argumentação, citando Alexy, observa-se estreita relação com a busca pela universalidade, “o apelo a uma universalidade, visando à realização do ideal de comunidade universal é a característica da argumentação racional” (ALEXY, 2005:140).

Finalizando, ainda nos dizeres do jusfilósofo alemão, este conceito de Perelman (auditório universal) não é uno, mas contempla duas visões: a primeira formando um auditório que os indivíduos ou uma sociedade representam para si próprios, e a segunda como a totalidade de seres humanos participantes do discurso. Sendo assim, será a concordância alcançada por parte do auditório universal, o critério de racionalidade e objetividade da argumentação, uma vez que o auditório universal só é convencido mediante argumentos racionais. Neste ponto, reside o caráter objetivo, alcançando-se uma validade para todo ser racional, consequentemente empreende-se uma argumentação racional, ao considerar que “cada homem crê num conjunto de fatos, de verdades, que todo homem ‘normal’ deve, segundo ele, aceitar, porque são válidos para todo ser racional” (PERELMAN, 1996:31).

2.15.5.3. Persuadir e Convencer Em seu Tratado da Argumentação Chaïm Perelman e Olbrechts-Tyteca diferenciariam os procedimentos argumentativos, com base nos objetivos do orador, afirmando que se o

objetivo deste está em obter um resultado, persuadir é mais do que convencer, entretanto, se a preocupação do orador reside no caráter racional da adesão, convencer é mais que persuadir (PERELMAN, 1996:30).

Assim, visualiza-se que a argumentação pode ser desenvolvida mediante um processo de persuasão ou de convencimento, a opção por um processo ou outro, como já dito, deriva da concepção que o orador faz do auditório e de suas extensões. Nesse sentido, para uma melhor visualização, as extensões já concebidas são divididas em dois modelos: o auditório particular e o auditório universal. O primeiro compreende a argumentação realizada perante um indivíduo, bem como aquela realizada pelo orador consigo próprio. O segundo compreende o auditório sob aspectos ideais, formado por todos os seres humanos racionais.

Com isso, busca o filósofo belga ligar uma estratégia argumentativa a um auditório específico, ao propor “chamar persuasiva a uma argumentação que pretende valer só para um auditório particular e chamar convincente àquela que deveria obter a adesão de todo ser racional” (PERELMAN, 1996:31). Ao presente trabalho não cabe discorrer acerca da ligação entre auditório particular e as técnicas de persuasão, concentrando-se na análise de uma argumentação pautada na convicção e realizada perante o auditório universal, que está relacionada com o caráter de universalidade e racionalidade.

Assim, observando as diferentes formas que assumem as argumentações perante auditórios diversos, é nítido que a adaptação do orador ao seu auditório, não se refere somente à escolha dos argumentos a serem utilizados, mas também às estratégias de argumentação que devem variar de acordo com o auditório a que se destina.

Por fim, é certa a visão de Perelman, ao estabelecer que do ponto de vista racional, convencer é mais que persuadir, tornando uma argumentação formulada sob os ditames do convencimento, mais próxima do ideal de objetividade e racionalidade, ligada ao auditório universal. Por isso há uma convergência entre as concepções de auditório universal e situação ideal de fala, como parâmetros ideais de objetividade e racionalidade.

2.15.5.4. A Situação Ideal de Fala A Teoria da Argumentação Jurídica de Alexy apóia seu caráter de universalidade na situação ideal de fala, idéia já concebida por Habermas. Trata-se de uma situação ideal em que todos os oradores têm direitos iguais e que não existe coerção, havendo uma relação simétrica entre os indivíduos (HABERMAS apud ATIENZA, 1996:163). Essas condições ideais de Habermas são utilizadas por Alexy em sua Teoria da Argumentação Jurídica e apresentadas sob a forma de regras, assim definidas como: regras fundamentais, de razão, de carga da argumentação, de fundamentação e de transição (ALEXY, 2005:283-286).

Muitas críticas pairam sobre as Teorias da Argumentação quando se discute acerca das possibilidades de sua realização, questionam os críticos, se este estabelecimento de regras abstratas, não tornaria a realização completa dos procedimentos, algo impossível de se obter na prática. Alexy frisa que é possível uma realização aproximada da situação ideal de fala (ALEXY, 2005:136). Além disso, importante destacar que a elaboração e cumprimento dessas regras, proporcionam a racionalidade do discurso, e é precisamente a racionalidade o que confere universalidade às conclusões obtidas consensualmente (TOLEDO, 2006:615).

Assim, o estabelecimento desses critérios a serem observados na prática do discurso, especificamente no discurso jurídico, não tem como condição sine qua non a exigibilidade de cumprimento de modo absoluto e em todas as situações a que são submetidos. Somente não se pode afastar o entendimento de que é mediante eles que devem ocorrer a fundamentação e orientação do discurso.

Ainda nesse entendimento, a própria racionalidade do discurso, não pode ser inferida somente mediante o cumprimento de todas as regras apresentadas, uma vez que se trata de uma situação ideal, e que devido a este aspecto não é real (TOLEDO, 2006:616). Entretanto, quando respeitados, alcançam padrões de racionalidade e universalidade, que proporcionam no âmbito do discurso jurídico a legitimidade da legislação e a controlabilidade das decisões judiciais, importantes bases para a consolidação da democracia e do próprio Estado de Direito (TOLEDO, 2006:619), fatores indissociáveis dos objetivos perseguidos pelo atual Estado brasileiro.

2.15.5.4. A Busca pela Universalidade O próprio Alexy destacou a proximidade existente entre a situação ideal de fala Habermasiana, concepção utilizada em sua teoria, e o conceito de auditório universal perelmaniano (ALEXY, 2005:179). A proposta de resgatar o trabalho de Chaïm Perelman, demonstrando ainda seu caráter atual, foi aqui trabalhada evidenciando o seu conceito de auditório universal e a situação ideal de fala de Habermas, utilizada por Alexy, em teoria mais recente, como meio de se alcançar a racionalidade e universalidade do discurso jurídico. Desse modo, buscou-se uma ligação entre o conceito perelmaniano e conceitos mais recentes da atual discussão que cerca as Teorias da Argumentação Jurídica.

Perelman promove uma composição ideal do auditório universal, ao estabelecer sua formação “por toda humanidade, ou pelo menos por todos os homens adultos e normais” (PERELMAN, 1996:33-34). Considerando que o acordo para estes casos seria alcançado mediante o convencimento, estratégia argumentativa relacionada com os métodos racionais, tem-se o auditório universal como um limite a ser atingido, uma vez que a composição alcançada neste limiar é o critério de racionalidade e objetividade da argumentação.

Habermas estabelece a situação ideal de fala como um parâmetro, sendo considerada aquela em que todos os oradores têm direitos iguais e que não existe coerção, havendo uma relação simétrica entre os indivíduos (HABERMAS apud ATIENZA, 2006:163). Assim, o acordo é obtido mediante a igual participação entre os falantes.

Nessa situação ideal, a elaboração e cumprimento de regras proporcionam a racionalidade, sendo ela o que confere a universalidade ao discurso.

Por fim, torna-se evidente que o resultado buscado pelos idealizadores de tais parâmetros é a busca pelo caráter universal da argumentação, aproximando-se do aspecto racional. Como se vê, seja mediante a situação ideal de fala, seja mediante o auditório universal, esse objetivo é alcançado.

2.15.6. Teoria da Argumentação Jurídica de Neil MaccormickA teoria de MacCormick pode ser sintetizada em alguns pontos. Primeiro, MacCormick identifica que a justificação básica no direito é uma justificação de natureza dedutiva: diante

de fatos operativos, aplicam-se determinadas consequências normativas. Porém, isso não é o bastante para solucionar controvérsias em casos problemáticos, nos quais nem os fatos operativos nem as consequências normativas são claras.

MacCormick identifica quatro tipos de problemas que podem ocorrer com as premissas do raciocínio dedutivo no direito. São eles os problemas de interpretação, problemas de pertinência, problemas de prova e problemas de qualificação. Quando eles ocorrem, o julgador deve fazer uma escolha entre aplicações por vezes conflitantes do direito: os mesmo fatos operativos e as mesmas normas gerariam consequências normativas diferentes.

Seguindo a ideia de que o direito é uma atividade racional, MacCormick foge da ideia de que, em casos problemáticos, o que se faz é simplesmente arbitrário. Ele diz que há uma racionalidade além da dedução silogística que está presente no direito nos casos difíceis, e essa racionalidade é retórica. ELE PROPÕE QUATRO CRITÉRIOS PARA ANALISAR A RACIONALIDADE DE ARGUMENTOS: A UNIVERSALIZAÇÃO, A CONSISTÊNCIA, A COERÊNCIA E O CONSEQUENCIALISMO JURÍDICO.

Em resumo, esses critérios podem ser definidos assim:

(i) universalização – um argumento deve poder ser afirmado na forma de um princípio de ação universal aceitável, que poderia ser aplicado de forma satisfatória a todos os casos com as mesmas características decisivas;

(ii) consistência – a exigência da consistência significa que as afirmações constantes de um raciocínio de justificativa devem ser postuladas de forma livre de contradições entre si. Difere da coerência na medida em que esse último critério relaciona-se com o sentido que se dá à narrativa. É possível criar uma narrativa livre de inconsistências, mas cujo sentido seja de alguma forma injusto, e por isso a consistência não se sustenta sozinha como critério de avaliação de argumentos.

(iii) coerência – resumidamente, a coerência diz respeito aos princípios e valores que são afirmados ou almejados na decisão, e sobre a justificabilidade desses princípios e valores no delineamento de uma forma de vida satisfatória. Ou seja, esse critério procura identificar se os valores afirmados em uma decisão, em conjunto, são aceitáveis e válidos.

(iv) consequencialismo jurídico – diz respeito não às consequência sociais de longo prazo, difíceis de serem calculadas e avaliadas de fato, mas aos comportamentos logicamente permitidos pela decisão, de forma que, se esses comportamentos forem aceitáveis, as consequências possíveis são tidas como aceitáveis também, e vice-versa.

3. Conceitos Básicos da Filosofia do Direito1. Autopoiese: trata-se de conceito criado inicialmente para a biologia (chilenos

Maturana e Varela), se referindo à capacidade dos seres de se autoproduzirem. No Direito, foi adaptado por Niklas Lühmann.]

O sistema jurídico é considerado um dos “sistemas funcionais”, ou sistemas parciais, do sistema social global, com a tarefa de reduzir a complexidade do ambiente por

meio da absorção do comportamento social. “O sistema jurídico, para Luhmann, integra o ‘sistema imunológico’ das sociedades, imunizando-as de conflitos entre seus membros, surgidos já em outros sistemas sociais (político, econômico, familiar, etc). (...) Para tanto, a complexidade da realidade social, com sua extrema contingência, é reduzida pela construção de uma ‘para-realidade’, codificada a partir do esquematismo binário ‘direito/não-direito’ (ou ‘lícito/ilícito), em que se prevêem os conflitos que são conflitos para o Direito e se oferecem as soluções que são conformes ao Direito”.

O fechamento operacional, e a autopoiése do sistema, dá a este a possibilidade de se desenvolver dinamicamente. Assim o desenvolvimento do Direito se dá reagindo apenas aos seus próprios impulsos, mas estimulado por “irritações” do ambiente social.

“O sistema jurídico, enquanto autopoiético, é fechado, logo, demarca seu próprio limite, auto-referencialmente, na complexidade própria do meio ambiente, mostrando o que dele faz parte, seus elementos, que ele e só ele, enquanto autônomo, produz, ao conferir-lhes qualidade normativa (=validade) e significado jurídico às comunicações que nele, pela relação entre esses elementos, acontecem”.

Considerando o Direito como capaz de se autoproduzir, portanto o sistema jurídico como autopoiético, há a necessidade de elementos do meio ambiente.

Hans Kelsen (Teoria pura do direito) falando sobre sistemas estático e dinâmico na ordem jurídica, estabelece que um há “normas regulando normas” e no outro “condutas produzindo normas”. Adaptando esse raciocínio ao sistema jurídico – sob a teoria dos sistemas sociais – teríamos as condutas como elementos provenientes do meio, ou de outro sistema, que irritam o sistema jurídico, fazendo com que haja uma seletividade (por meio da seleção dentre as diversas possibilidades de agir – denominado por Luhmann de dupla seletividade) gerando uma reação do sistema jurídico que resulta na produção de uma norma, essa sim regula a conduta.

“O sistema (jurídico) é autopoiético e diferenciado de outros, pois estabelece conexões que conferem sentido (jurídico) a condutas referidas, assim, umas às outras e delimitadas, no sistema, em relação ao ambiente”.

Quando, por exemplo, a conduta que gerou a reação do sistema jurídico ao produzir uma norma reguladora do sistema social, é proveniente de outro sistema, fala-se na necessidade de realizar o acoplamento estrutural do sistema jurídico com outros sistemas sociais, como o político, econômico, etc. Nesse contexto a constituição é a grande responsável pelo acoplamento estrutural ente os sistemas jurídico e político.

A caracterização do sistema jurídico como um sistema social autopoiético se faz por meio da identificação de sua especificidade na realização da forma exclusiva com que nesse sistema, o Direito, se veiculam comunicações.

“Note-se que a autonomia do sistema jurídico não há de ser entendida no sentido de um isolamento deste em face dos demais sistemas sociais, o da moral, religião,

economia, política, ciência, etc., funcionalmente diferenciados em sociedades complexas como as que se têm na atualidade. Essa autonomia significa, na verdade, que o sistema jurídico funciona com um código próprio, sem necessidade de recorrer a critérios fornecidos por algum daqueles outros sistemas, aos quais, no entanto, o sistema jurídico se acopla, através deprocedimentos desenvolvidos em seu seio, procedimentos de reprodução jurídica, de natureza legislativa, administrativa, contratual e, principalmente, judicial

2. Axiologia: estudo dos valores que emanam de uma norma ou de um conjunto normativo.

3. Deontologia: trata-se do estudo dos deveres que se impõem a determinadas pessoas que se encontram em certas posições jurídicas. Aqui entram as questões dos modais deônticos, o proibido, o permitido e o obrigado.

4. Eidética: busca da essência das coisas. Termo muito importante na fenomenologia e em Platão.

5. Epicurismo: corrente mais suavizada do hedonismo. Prega que o homem deve sim procurar o prazer e gozar a vida, pois a felicidade seria a finalidade última da existência. Porém, o prazer seria filtrado pelo sábio, o qual priorizaria o prazer intelectual ao sensível, o sereno ao violento, o ético ao grotesco.

6. Estoicismo: defende que o papel da ética é viver de acordo com a razão, devendo fazer imperar a racionalidade sobre os sentidos, eliminando-se o homem de suas paixões, que o escravizam.

7. Eudemonismo: doutrina que considera a busca por uma vida feliz o princípio e fundamento dos valores morais.

8. Epistemologia: trata-se da doutrina do conhecimento jurídico em todas as suas modalidades. É que, com o constituir-se de novos campos de estudo do Direito, tais como a Sociologia Jurídica, a Etnologia Jurídica ou a Lógica Jurídica, alargaram-se, concomitantemente, os horizontes epistemológicos, os quais não podem mais ficar adstritos às exigências da Ciência Dogmática do Direito, por mais que esta assinale o momento culminante do processo comum de investigação. Uma das tarefas primordiais da Epistemologia Jurídica consiste, aliás, na determinação do objeto das diversas ciências jurídicas, não só para esclarecer a natureza e o tipo de cada uma delas (recorde-se o exposto supra, vol. I, pág. 264 e segs.) mas também para estabelecer as suas relações e implicações na unidade do saber jurídico. Compete-lhe, outrossim, delimitar o campo da pesquisa científica do Direito, em suas conexões com outras ciências humanas, como, por exemplo, a Sociologia, a Economia Política, a Psicologia, a Teoria do Estado etc.

É só graças a essa visão compreensiva que é possível situar com rigor os problemas epistemológicos da Jurisprudência ou Ciência Dogmática do Direito, a qual ocupa o centro do quadro jurídico, não só pela maturidade de seus estudos, devido a uma

tradição mais que bimilenar, mas também porque representa, como já dissemos, o momento culminante da experiênca do Direito.

Muitas são, pois, as questões com que se defronta a Epistemologia Jurídica, que poderia ser definida como sendo a doutrina dos valores lógicos da realidade social do Direito, ou, por outras palavras, dos pressupostos lógicos que condicionam e legitimam o conhecimento jurídico, desde a Teoria Geral do Direito — que é a sua projeção imediata no plano empírico-positivo --— até às distintas disciplinas em que se desdobra a Jurisprudência.

É nessa linha de estudos que caberá ao epistemólogo do Direito determinar, por exemplo, que tipo de experiência é essa que denominamos "experiência jurídica"; qual a natureza e o papel da Lógica Jurídica e a sua situação perante a Ciência Dogmática do Direito; como se põem os problemas de sistematização e integração dos institutos jurídicos: se nos quadros de um único ordenamento ou, ao contrário, numa pluralidade deles; qual a natureza da Hermenêutica Jurídica e os seus pressupostos, em função do papel por ela desempenhado na tela da Teoria Geral do Direito; qual a natureza e a estrutura das normas jurídicas, se elas devem ou não ser concebidas como "bens culturais de suporte ideal" insuscetíveis, portanto, de serem tratadas como simples "proposições lógicas"; se a tradicional teoria das fontes do Direito deve ou não ser atualizada à luz de uma teoria dos "modelos jurídicos", e assim por diante.

Poder-se-ia dizer, em suma, à vista desses exemplos, que a Epistemologia Jurídica recebe da Ontognoseologia Jurídica o conceito de Direito e o desenvolve na multiplicidade de suas projeções e conseqüências, especificando, em função das exigências práticas da vida jurídica, as "categorias regionais da juridicidade", conform a feliz terminologia de Recaséns Siches, tais como as de direito subjetivo, direito objetivo, relação jurídica, fonte do direito, modelo jurídico, instituição, ficção jurídica etc., que são como que as vigas mestras do edifício jurídico, assegurando-lhe validade lógica ou vigência.

Costumamos dizer que a Epistemologia Jurídica, ao estudar o Direito, considera, de maneira prevalecente, o problema da vigência, mas sempre em função da eficácia e do fundamento.

9. Gnoseologia: estudo da capacidade cognitiva do homem, sobre como ele pode chegar ao conhecimento.

10. Hedonismo: doutrina que prega que o papel do homem na terra é ter prazer e fugir da dor.

11. Idealismo: doutrina que prega que a finalidade última do homem é praticar o bem.

12. Lógica apodítica: lógica que distingue entre o verdadeiro x falso (possibilidade de verdade absoluta).

13. Lógica dialética: lógica que distingue entre o verossímel x inverossímel (juízo de probabilidade, certeza construída, e não dada).

14. Neokantismo: novas leituras de Kant após o radicalismo do positivismo jurídico, em que se retomou a discussão do fundamento moral do direito.

15. Virada kantiana: "Kantish wender", é um momento onde o kantismo é retomado no direito, principalmente nas teorias de John Rawls, Robert Alexy, Ronald Dworkin, Konrad Hesse.

16. Revolução copernicana: Antes de Kant, a Filosofia clássica vivia girando em torno de objetos, aos quais se subordinava essencialmente (empirismo, métodos descartianos); enquanto que, no dizer de Kant, quem deve ficar fixo é o sujeito, em torno do qual deve girar o objeto, que somente é tal porque "posto" pelo sujeito. Era isso o que Kant chamava significativamente de revolução copernicana. Assim como Copérnico supera o sistema ptolemaico, colocando não mais a Terra, mas sim o Sol no centro de nosso sistema planetário, afirmava o filósofo germânico ser necessário romper com a atitude gnoseológica tradicional. Em lugar de se conceber o sujeito cognoscente como planeta a girar em torno do objeto, pretende Kant serem os objetos dependentes da posição central e primordial do sujeito cognoscente. Esta referência ao criticismo de Kant visa a mostrar a correlação essencial que existe entre o problema do objeto e o do método, até ao ponto de subordinar-se um problema ao outro: — uma ciência viria a ser o seu método, porque o sujeito que conhece, ao seguir um método, criaria, de certa maneira, o objeto, como momento de seu pensar. Com a revolução copernicana, Kant refutou a Fiolosfia do Objeto (relação sujeito objeto), para mudar o foco para a Filosofia do Sujeito (sujeito-sujeito). É uma concepção transcendental da filosofia, em que o dado não se desenvolve na realidade, mas no intelecto, um modo de perceber a realidade.

17. Metodologia: estudo dos diversos processos que devem disciplinar a pesquisa do real, de acordo com as peculiaridades de cada campo de indagação.

18. Ontognoseologia: doutrina das condições transcendentais e empírico-positivas do conhecimento. Ela tem foco tanto no ser cognoscente quanto no objeto.

19. Ontologia: teoria do conhecimento clássico que se preocupa com o objeto cognitivo

20. Semiótica: a semiótica enquanto ciência geral dos signos é uma linguagem que estuda outras linguagens. Nesse diapasão, a semiótica jurídica é uma metalinguagem que fala da linguagem do Direito e da Ciência do Direito, ou seja, da linguagem utilizada pelos operadores do Direito. Na semiótica jurídica, a exemplo do que ocorre na semiótica, podemos identificar três diferentes dimensões: a semântica, a sintaxe e a pragmática. Portanto, é possível destacar a existência de uma semântica jurídica, de uma sintaxe jurídica e de uma pragmática jurídica. Seguindo este viés de raciocínio, a Ciência do Direito, entendida como metalinguagem que fala de uma linguagem objeto, que é o direito positivo, pode examinar o seu objeto através da sintaxe, da semântica ou da pragmática (a dimensão escolhida vai depender da concepção adotada por cada jurista). Assim, por exemplo, a investigação acerca da validade das normas jurídicas no

pensamento de Hans Kelsen é uma relação sintática. Por outro lado, mister frisar que como metalinguagem, a semiótica jurídica é utilizada para identificar as estruturas lógicas do Direito.

4. Direito, Ética, Cultura, Justiça, Equidade e Moral e Outras Questões de Humanística

4.1. Conceitos de Direito

Émile DurkheimO direito é fato social. Mas não qualquer fato, e sim um que se destaca acima dos demais por ter fundamento social capaz de impor sanções, perda de patrimônio e privação da liberdade, mais contundentes do que as sanções dos outros fatos sociais

Miguel Reale

O Direito é um fato ou fenômeno social; não existe senão na sociedade e não pode ser concebido fora dela. Uma das características da realidade jurídica é, como se vê, a sua socialidade, a sua qualidade de ser social. O Direito, por conseguinte, tutela comportamentos humanos: para que essa garantia seja possível é que existem as regras, as normas de direito como instrumentos de salvaguarda e amparo da convivência social. Direito é fato, valor e norma. Vide o tópico do tridimensionalismo jurídico.

Karl Marx Direito é uma estrutura, parte da superestrutura estatal, que serve à classe dominante, meio oficial de dominar o proletariado.

Corrente clássica

Direito é se confunde com justiça; justiça é dar a cada um o que é seu, aquilo que merece.

Kant

A noção de direito refere-se à relação exterior e prática de uma pessoa com outra, na medida em que as suas ações possam influir sobre outras ações; essa noção diz respeito à relação do arbítrio do agente com o arbítrio do outro. Estabelece-se, assim, uma relação mútua de arbítrios, onde se consideram não as finalidades pretendidas por cada um dos agentes, mas unicamente se a manifestação da vontade de um, expressa em sua ação, constitui um empecilho ao exercício da liberdade do outro, de acordo com uma lei universal ou o princípio universal do direito. O direito em si reporta-se à manutenção da liberdade de cada um segundo uma lei válida para todos. Logo, a injustiça é a perturbação do estado de livre coexistência, pois o impedimento à liberdade de um não pode subsistir com a liberdade de todos, segundo leis gerais.

PositivismoDireito se confunde com poder. É o conjunto de determinações estatais oficiais cogentes, dotadas de heteronomia. O Direito não se caracteriza com base em sua justiça, mas sim em sua oficialidade. Daí a possibilidade, no positivismo, de falarmos em um direito injusto.

4.1.1. Direito em KantO que é o direito? Quid jus? O que é o direito é a pergunta que os juristas não conseguem responder há séculos. Kant diz que quando os juristas procuram compreender o que é o direito eles caem na tautologia – jus est quod justum est, o justo é aquilo que é justo – ou então definem o direito como sendo as leis existentes. Mesmo nos tribunais, o juiz diz o que é o direito conforme as leis positivas de determinado país, numa época histórica. Por essa razão, a decisão judicial não deixa de expressar um relativismo empírico.

A questão não é respondida pelos jurisconsultos, pois ir ao fundo do problema consiste em examinar a pretensão inerente às determinações das condições de legitimidade de um sistema jurídico e em nome do que é legítimo. É preciso, então, saber qual é o critério universal em função do qual o jus é reconhecido como o justum e que preside a toda júris-latio (legislação) e a toda júris- dictio (aplicar o direito).

Torna-se, assim, necessário que se renuncie às perspectivas dogmático-descritivas do empirismo de Hume e do pragmatismo utilitarista, bem como não se satisfaça com a lógica hipotético-dedutiva do jusnaturalismo.

A questão quid juris somente poderá ser respondida quando procurarmos conhecer as condições que tornam justas as normas prescritivas de uma ordem jurídica, de acordo com um “princípio universal de direito” (Kant, Doutrina do Direito, Introdução, §C). Trata-se, assim, de buscarmos a lei universal que torna possíveis não somente a justiça de determinada ação, mas para além dela, a justiça – entenda-se o bem fundamentado ou a legitimidade – das regras que asseguram a obrigatoriedade (você deve) ou a liceidade (você pode).

A doutrina do Direito de Kant efetua uma reflexão transcendental, partindo das leis e das regras de direito como material jurídico e pesquisa as estruturas a priori da razão prática, não ao nível da casuística, como escreve Kant, mas enquanto condições legisladoras e organizadoras do sistema do direito. O Direito enquanto ciência é o conjunto de leis suscetíveis de uma legislação exterior, que forma a ciência do direito positivo. O Direito em si é uma questão que só se resolve reportando-se à razão, como pensa Kant, na Doutrina do Direito: “Uma ciência puramente empírica do Direito (como a cabeça de madeira na fábula de Fedro) é uma cabeça que pode ser bela, mas tem somente um defeito – não tem cérebro”.

Encontra-se na obra de Kant os seguintes pressupostos, a partir dos quais se pode desenvolver a ideia de direito: A NOÇÃO DE DIREITO REFERE-SE À RELAÇÃO EXTERIOR E PRÁTICA DE UMA PESSOA COM OUTRA, NA MEDIDA EM QUE AS SUAS AÇÕES POSSAM INFLUIR SOBRE OUTRAS AÇÕES; ESSA NOÇÃO DIZ RESPEITO À RELAÇÃO DO ARBÍTRIO DO AGENTE COM O ARBÍTRIO DO OUTRO. Estabelece-se, assim, uma relação mútua de arbítrios, onde se consideram não as finalidades pretendidas por cada um dos agentes, mas unicamente se a manifestação da vontade de um, expressa em sua ação, constitui um empecilho ao exercício da liberdade do outro, de acordo com uma lei universal ou o Princípio Universal do Direito. Esse princípio é formulado por Kant da seguinte forma: “é justa toda a ação ou cuja máxima permite à liberdade de todos e de cada um coexistir com a liberdade de todos os outros, de acordo com uma lei universal”.

O princípio universal do direito origina-se desse princípio geral, que lhe antecede: é justa toda ação que por si, ou por sua máxima, não constitui um obstáculo à conformidade da liberdade do arbítrio de todos com a liberdade de cada um, segundo leis universais.

O DIREITO EM SI REPORTA-SE À MANUTENÇÃO DA LIBERDADE DE CADA UM SEGUNDO UMA LEI VÁLIDA PARA TODOS. LOGO, A INJUSTIÇA É A PERTURBAÇÃO DO ESTADO DE LIVRE COEXISTÊNCIA, POIS O IMPEDIMENTO À LIBERDADE DE UM NÃO PODE SUBSISTIR COM A LIBERDADE DE TODOS, SEGUNDO LEIS GERAIS. Kant estabelece, então, a Lei Universal do Direito para que se possa objetivar as determinações do princípio universal do Direito nas relações sociais: “Age exteriormente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos, segundo uma lei universal”.

O direito pretende, assim, limitar a liberdade pessoal irrestrita de cada indivíduo, própria da natureza humana no estado de natureza. Nesse contexto é que Kant desenvolve a teoria da liberdade, ideia angular em todo o sistema do pensamento ético-filosófico e político kantiano.

Para Kant, o conceito de liberdade explicita-se através de dois elementos, que se articulam e complementam um ao outro:

a) Liberdade como coexistência, que consiste na limitação recíproca da vontade de cada e tem como limite a esfera individual do outro; esse aspecto da liberdade torna-se possível na medida em que a liberdade é considerada também como obediência;

b) Liberdade como autonomia, que é a propriedade da vontade graças à qual esta é para si mesma a sua lei, somente sendo livre aquele que se torna, através da vontade própria, fonte das suas próprias leis, ou seja, autônomo.

Kant reconsidera então o conflito entre a possível contradição entre a liberdade como autonomia e a liberdade como coexistência. DE FORMA IMEDIATA, O DIREITO RESTRINGE A AUTONOMIA, OBRIGANDO O INDIVÍDUO A CURVAR-SE DIANTE DE UMA VONTADE QUE NÃO LHE É PRÓPRIA. ESSE POSSÍVEL CONFLITO SERÁ SOLUCIONADO POR KANT COM O USO DA IDEIA DO CONTRATO SOCIAL. ATRAVÉS DO CONTRATO SOCIAL AS AUTONOMIAS INDIVIDUAIS IRÃO REFLETIR-SE NA VONTADE GERAL, QUE ASSEGURA A MANIFESTAÇÃO DA AUTONOMIA E DA COEXISTÊNCIA DE FORMA COMPLEMENTAR. Dessa vontade geral, todos participam na sua elaboração e na submissão aos seus ditames.

A ideia do justo e do injusto insere-se, assim, no quadro de uma teoria da liberdade. Quando o uso de uma liberdade pessoal consubstancia-se em obstáculo ao exercício de outra liberdade pessoal segundo leis universais ocorre uma injustiça. Para Kant a violação da liberdade do outro ocorre porque se rompe a relação de igualdade existente entre os homens, que assegura ao homem a sua humanidade, que se encontra determinada pela liberdade. A igualdade inata ao homem significa para Kant independência de não ser obrigado a aquilo que os outros reciprocamente não obrigados. Trata-se a independência, nas palavras de Kant, “da qualidade do homem ser o seu próprio senhor (sui iuris) e também daquela de um homem ilibado (iusti), porque antes de qualquer ato jurídico nada fez de injusto.”

As consequências dessa argumentação residem na impossibilidade lógica de separação do direito e da faculdade de obrigar, aos que se opõem ao seu livre exercício e a possibilidade de uma obrigação mútua, que se torna universal conforme a liberdade de todos segundo leis gerais. Embora o direito se funde na consciência da obrigação de todos segundo uma lei geral, essa consciência não é seu móbil. Pelo contrário, seu móbil é a possibilidade de uma força exterior conciliável com a liberdade de todos, segundo leis gerais.

4.1.2. Direito em KelsenNa Teoria Pura, Direito é norma (Se A é, B deve ser) e o conhecimento jurídico dirige-se, precisamente, a estas normas que conferem a certos fatos o caráter de atos jurídicos ou antijurídicos (...) (pois) só as normas de Direito podem constituir o objeto do conhecimento jurídico (Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, Saraiva, 1939, p. 11/12). A interpretação restringe-se à fixação do sentido da norma, tendo por resultado a determinação do espaço representado pela norma e, por conseqüência, o conhecimento das várias possibilidades que existem dentro dele (op. cit., p. 80). Estabelecido o âmbito de validez e vigência da norma

aplicada, não há mais nenhum critério jurídico que possa auxiliar na escolha de uma ou outra das possibilidades decisórias: O problema do saber qual das possibilidades existentes no âmbito duma norma é a justa é o problema que, pela sua natureza, escapa ao conhecimento jurídico; não é um problema de teoria, mas de política do Direito

4.1.3. Direito em Carlos CossioDerecho no es norma, sino conduta normada (Cossio, La Teoria Egológica dei Derecho), sendo a conduta o objeto do estudo da ciência jurídica. A superação da concepção racionalista percebe-se advertindo que ao jurista não interessa tanto a lei, senão aquilo a que a lei se refere, quer dizer, a conduta dos homens. Se advierte entonces que ei jurista no interpreta ia iey sino que interpreta ia conduta mediante la /ey (Aftalión, Olano, Vilanova, Introducción aI Derecho, p. 83). O Direito, como objeto, é conduta em interferência intersubjetiva; é um ser cultural (cultura é tudo o que o homem faz com fins valorados), real, está no mundo da experiência, tem valor positivo ou negativo, podendo ser conhecido através de um ato capaz de apreender a realidade que está no mundo da experiência e seu valor. Cossio considera que interpretação é esse ato de compreensão da conduta através de certos esquemas conceituais fornecidos por standards chamados leis, atingível mediante um método empírico-dialético.

4.1.4. Direito no Realismo JurídicoPara os realistas, a ciência jurídica deve ocupar-se de fatos, não entes metafísicos, tais como dever jurídico, direito subjetivo, etc. Toda a palavra que não tenha provisão de fundos no mercado dos fatos à vista, está falida (Cohen). Criticam a ideia de que o Direito cria vínculos (dado o fato x, a conseqüência será y), porquanto isto não está no mundo do ser, não há realidade sensível nessa relação de causalidade. O extraterreno, que observasse o comportamento das pessoas, não perceberia a existência do Direito (Olivecrona, Linguaje Jurídico Y Realidad, p. 7/8). O que existe é o fato x e a conseqüência será o que vier a ser ditado na sentença. Ambos o entes reais: o fato e a sentença. A crença de que o efeito reconhecido na sentença decorre da existência do Direito é mística, servindo apenas para nos tranqüilizar, atendendo aos nossos anseios de segurança. ‘Os direitos e deveres são mais que profecias, predições do que acontecerá com quem praticar certos atos’, dizia Holmes, o iniciador do realismo americano. Afirmar a existência da relação jurídica entre A e B é uma predição do que a sociedade (através do Juiz) irá dizer e fazer a favor de um ou de outro. Nesse contexto, interpretar é conhecer as situações de fato presentes e criar a norma para o caso.

4.2 Ética

4.2.1. Ética X MoralHá quem não distinga ética de moral. Isso por causa de uma antiga confusão realizada na história. A palavra moral vem da palavra latina que significa costumes, e a palavra ética da palavra grega que também significa costumes. Logo, isso induz ao erro de pensar que moral = ética visto que ambas significam costumes. A filologia, entretanto, prova que o pensamento está equivocado.

Ética é um sistema filosófico que tenta extrair de forma geral e abstrata princípios morais em sua unidade a partir das práticas sociais, possuindo uma normatividade externa e passível de impor uma reprovação social ao agente que se comporte de forma antiética.

Em outra definição, ÉTICA É A CIÊNCIA DO COMPORTAMENTO MORAL DOS HOMENS EM SOCIEDADE. O objeto da ética é a moral. A moral é um dos aspectos do comportamento humano. Com exatidão maior, o objeto da ética é a moralidade positiva, ou seja, o conjunto de regras de comportamento e formas de vida através das quais tende o homem a realizar o valor do bem.

A ÉTICA SERIA UMA TEORIA DOS COSTUMES; JÁ A MORAL NÃO É CIÊNCIA, SENÃO OBJETO DA CIÊNCIA. Como ciência, a ética procura extrair dos fatos morais os princípios gerais a eles aplicáveis. A ética deve aspirar à racionalidade e objetividade mais completas, e, ao mesmo tempo, deve proporcionar conhecimentos sistemáticos, metódicos.

A ética é uma disciplina normativa, não por criar normas, mas por descobri-las e elucidá-las. A Ética aprimora e desenvolve o sentido moral do comportamento humano e influencia a conduta humana.

De acordo com Raul Livino (membro da Banca do TRF1), ética começa quando entra em cena o outro, que a impõe. E mais: hodiernamente, a ética é condição indispensável para eficácia econômica e política. E continua:

No confronto entre o todo – algo que é construído com uma parte de cada eu - , temos vários enfoques. Da Grécia, temos em princípio uma ética naturalística, objetivando adequar a conduta humana ao cosmo (pré-socráticos, Sócrates, Platão e Aristóteles), relacionadas neste campo com uma localidade específica.

Com a decadência do modelo exsurge uma ambição por um conhecimento prático, não especulativo, com tendência para produzir resultado na vida pública, ou seja, “tudo é relativo ao sujeito, ao homem, medida de todas as coisas”.

A ética, em Sócrates, é racionalista, contém três elementos e é universal: conhecimento universalmente válido; a natureza do conhecimento é moral; conhecer para agir corretamente.

Em síntese: o homem é feliz, quando conhece o bem e em assim sendo não pode deixar de praticá-lo, tornando-se dono de si próprio. Em Platão, a polis é o terreno adequado para a vida moral. Em Aristóteles, a comunidade social é a ambiência própria da realização moral, embora aquela seja restrita, limitado ficando o agir reto a uma minoria ou elite.

Com a decadência e ruína do mundo helênico, onde operou-se também a queda dos principais impérios (macedônio e romano), os estados gregos perderam suas autonomias e os referidos impérios experimentaram organização, desenvolvimento e queda; a questão moral deslocou-se da polis para a necessidade física natural do mundo. O homem, como tudo no mundo, possui seu destino e somente lhe é dado ter consciência de tal condição (estóicos e epicuistas).

Thomas de Aquino cristianizou Aristóteles, enquanto Santo Agostinho enalteceu a interioridade, da vontade e do amor, valorando a experiência pessoal, criando um posicionamento oposto à ética racional dos gregos.

No mundo moderno, tivemos uma gradual mudança do cenário da ética teocêntrica para a antropocêntrica cujo ponto primordial fora Kant.

Sobre a ética em Kant, assinala Adolfo Sánchez Vasquez Kant – fiel ao seu antropocentrismo ético - empresta assim à moral o seu princípio mais alto, e o faz exatamente num mundo humano concreto no qual o homem, longe de ser um fim em si, é meio, instrumento ou objeto mercadoria, (por exemplo), e no qual, por outra parte, ainda não se verificam as condições reais, efetivas, para transformá-lo efetivamente em fim. Mas esta consciência de que não deve ser tratado como meio, e sim como fim, tem um profundo conteúdo humanista, moral, e inspira, hoje, todos aqueles que desejam a realização desse princípio kantiano, não já num mundo ideal, mas em nosso mundo real.

A ética kantiana é uma ética formal e autônoma. Por ser puramente formal, tem de postular um dever para todos os homens, independente da sua situação social e seja qual for o seu conteúdo concreto . Por ser autônoma (e opor-se assim às morais heterônomas nas quais a lei que rege a consciência vem de fora), aparece como a culminação da tendência antropocêntrica iniciada no Renascimento, em oposição à ética medieval. Finalmente por conceber o comportamento moral, como pertencente a um sujeito autônomo e livre, ativo e criador, Kant é o ponto de partida de uma filosofia e de uma ética na qual o homem se define antes de tudo como ser ativo, produtor ou criador.

Na visão ainda do autor citado, sobre a ética contemporânea, tem se:

No plano filosófico, a ética contemporânea se apresenta em suas origens como uma reação contra o formalismo e o racionalismo abstrato kantiano, sobretudo contra a forma absoluta que este adquire em Hegel. Na filosofia hegeliana, chega a seu apogeu a concepção kantiana do sujeito soberano, ativo e livre; mas, em Hegel, o sujeito é ideia, razão ou espírito absoluto, que é a totalidade do real, incluindo o próprio homem como um seu atributo. A sua atividade moral não é senão uma fase do desenvolvimento do espírito ou um meio pelo qual o espírito – como verdadeiro sujeito – se manifesta e se realiza.

A reação ética contra o formalismo kantiano e o racionalismo absoluto de Hegel é uma tentativa de salvar o concreto diante do formal, ou também o homem real em face da sua transformação, numa abstração ou num simples predicado do abstrato ou do universal.

De acordo com a orientação geral que segue o movimento filosófico, desde Hegel até os nossos dias, o pensamento ético também reage: a) contra o formalismo e o universalismo abstrato e em favor do homem concreto (o indivíduo, para Kierkegaard, o existencialismo atual; o homem social, para Marx); b) contra o racionalismo absoluto e em favor do conhecimento do irracional no comportamento humano (Kierkegaard, o existencialismo, o pragmatismo e a psicanálise); c) contra a fundamentação transcendente (metafísica) da ética e em favor da procura da sua origem no próprio homem (em geral, todas as doutrinas que examinamos, e, com um acento

particular, a ética de inspiração analítica, a qual, para subtrair-se a qualquer metafísica, refugia-se na análise da linguagem moral).

Segundo Sartre, o homem é liberdade. Cada um de nós é absolutamente livre e mostra a sua liberdade sendo o que escolheu ser. A liberdade, além disto, é a única fonte de valor. Cada indivíduo, escolhe livremente e, ao escolher, cria o seu valor. Assim, na medida em que não existem valores objetivamente fundados, cada um deve criar ou inventar os valores ou as normas que guiem o seu comportamento. Mas, se não existem normas gerais, o que é que determina o valor de cada ato? Não é o seu fim real nem o seu conteúdo concreto, mas o grau de liberdade com que se realiza.

Cada ato ou cada indivíduo vale moralmente não por sua submissão a uma norma ou a um valor estabelecido – assim renunciaria à sua própria liberdade -, mas pelo uso que faz da própria liberdade. Se a liberdade e o valor supremo, o valioso é escolher e agir livremente.

Segundo Marx, o homem real é, em unidade indissolúvel, um ser espiritual e sensível, natural e propriamente humano, teórico e prático, objetivo e subjetivo. O homem é, antes de tudo, práxis: isto é, define-se como um ser produtor, transformador, criador; mediante o seu trabalho, transforma a natureza externa, nela se plasma e, ao mesmo tempo, cria um mundo à sua medida, isto é, à medida de sua natureza humana.

Esta objetivação do homem no mundo externo, pela qual produz um mundo de objetos úteis, corresponde a sua natureza de ser produtor, criador, que também se manifesta na arte e em outras atividades.

Em conclusão, trago à colação síntese elaborada pelo Professor Adolfo Sánchez Vasquez em sua obra Ética:

A ideia de que a ética deve ter suas raízes no fato da moral, como sistema de regulamentação das relações entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade, orientou nosso estudo. Por ser a moral uma forma de comportamento humano que se encontra em todos os tempos e em todas as sociedades, partimos do critério de que é preciso considerá-la em toda a sua diversidade, fixando, de maneira especial em suas manifestações atuais. Podemos assim impugnar as tentativas especulativas de tratar a moral como um sistema normativo único, válido para todos os tempos e para todos os homens, assim como rejeitar a tendência de identificá-la com uma determinada forma histórico-concreta de comportamento moral.

Não se confundem ética e moral. Ainda que seja certo que toda moral efetiva supõe certos princípios, normas ou regras de conduta, não é a ética que, em uma comunidade dada, os estabelecem. A ética se encontra com uma experiência histórico-social no terreno da moral, ou seja, uma série de morais efetivas já existentes, e partindo delas, trata de estabelecer a essência da moral, sua origem, as condições objetivas e subjetivas do ato moral, as fontes de valoração, a natureza e função dos juízos morais, os critérios de justificação destes juízos, e o princípio que rege a mudança e sucessão dos sistemas morais.

La ética es la teoría o ciencia del comportamiento moral de los hombres en sociedad. O sea, es ciencia de una forma específica de conducta humana.

En nuestra definición se subraya, en primer lugar, el carácter científico de esta disciplina; o sea, se responde a la necesidad de un tratamiento científico de los problemas morales. De acuerdo con este tratamiento, la ética se ocupa de un objeto propio: el sector de la realidad humana que llamamos moral, constituido —como ya hemos señalado—^ por un tipo peculiar de hechos o actos humanos. Como ciencia, la ética parte de cierto tipo de hechos tratando de descubrir sus principios generales. En este sentido, aunque parte de datos empíricos, o sea, de la existencia de un comportamiento moral efectivo, no puede mantenerse al nivel de una simple descripción o registro de ellos, sino que los trasciende con sus conceptos, hipótesis y teorías. En cuanto conocimiento científico, la ética ha de aspirar a la racionalidad y objetividad más plenas, y a la vez ha de proporcionar conocimientos sistemáticos, metódicos y, hasta donde sea posible, veri-ficables.

Ciertamente, este tratamiento científico de los problemas morales dista mucho todavía de ser satisfactorio, y de las dificultades para alcanzarlo siguen beneficiándose todavía las éticas especulativas tradicionales, y las actuales de inspiración positivista.

La ética es la ciencia de la moral, es decir, de una esfera de la conducta humana. No hay que confundir aquí la teoría con su objeto: el mundo moral. Las proposiciones de la ética deben tener el mismo rigor, coherencia y fundamentación que las proposiciones científicas. En cambio, los principios, normas o juicios de una moral determinada no revisten ese carácter. Y no sólo no tienen un carácter científico, sino que la experiencia histórica moral demuestra que muchas veces son incompatibles con los conocimientos que aportan las ciencias naturales y sociales. Por ello, podemos afirmar que si cabe hablar de una ética científica,

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ÉTICA

no puede decirse lo mismo de la moral. No hay una moral científica, pero sí hay —o puede haber— un conocimiento de la moral que pueda ser científico. Aquí como en otras ciencias, lo científico radica en el método, en el tratamiento del objeto, y no en el objeto mismo. De la misma manera, puede decirse que el mundo físico no es científico, aunque sí lo es su tratamiento o estudio de él por la ciencia física. Pero si no hay una moral científica de por sí, puede darse una moral compatible con los conocimientos científicos acerca del hombre, de la sociedad y, en particular, acerca de la conducta humana moral. Y es aquí donde la ética puede servir para fundamentar una moral, sin ser ella por sí misma normativa o prescriptiva. La moral no es ciencia, sino objeto de la ciencia, y en este sentido es estudiada, investigada por ella. La ética no es la moral, y por ello no puede reducirse a un conjunto de normas y prescripciones; su misión es explicar la moral efectiva, y, en este sentido, puede influir en la moral misma.

Su objeto de estudio lo constituye un tipo de actos humanos: los actos conscientes y voluntarios de los individuos que afectan a otros, a determinados grupos sociales, o a la sociedad en su conjunto.

Ética y moral se relacionan, pues, en la definición antes dada, como una ciencia específica y su objeto. Una y otra palabra mantienen así una relación que no tenían propiamente en sus orígenes etimológicos. Ciertamente, moral procede del latín mos o mores, «costumbre» o «costumbres», en el sentido de conjunto de normas o reglas adquiridas por hábito. La moral tiene que ver así con el comportamiento adquirido, o modo de ser conquistado por el hombre. Ética proviene del griego ethos, que significa análogamente «modo de ser» o «carácter» en cuanto forma de vida también adquirida o conquistada por el hombre. Así, pues, originariamente ethos y mos, «carácter» y «costumbre», hacen hincapié en un modo de conducta que no responde a una disposición natural, sino que es adquirido o conquistado por hábito. Y justamente, esa no naturalidad del modo de ser del hombre es lo que, en la Antigüedad, le da su dimensión moral.

Vemos, pues, que el significado etimológico de moral y de

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ética no nos dan el significado actual de ambos términos, pero sí nos instalan en el terreno específicamente humano en el que se hace posible y se funda el comportamiento moral: lo humano como lo adquirido o conquistado por.el hombre sobre lo que hay en él de pura naturaleza. El comportamiento moral sólo lo es del hombre en cuanto que sobre su propia naturaleza crea esta segunda naturaleza, de la que forma parte su actividad moral.

4. ÉTICA Y FILOSOFÍA

Al definirla como un conjunto sistemático de conocimientos racionales y objetivos acerca del comportamiento humano moral, la ética se nos presenta con un objeto propio que se tiende a

tratar científicamente. Esta tendencia contrasta con la concepción tradicional que la reducía a un simple capítulo de la filosofía, en la mayoría de los casos, especulativa.

En favor de esta posición se esgrimen diversos argumentos de diferente peso que conducen a negar el carácter científico e independiente de la ética. Se arguye que ésta no establece proposiciones con validez objetiva, sino juicios de valor o normas que no pueden aspirar a esa validez. Pero, como ya hemos señalado, esto es aplicable a un tipo determinado de ética —-la norma-tivista— que ve su tarea fundamental en hacer recomendaciones y formular una serie de normas y prescripciones morales; pero dicha objeción no alcanza a la teoría ética, que trata de explicar la naturaleza, fundamentos y condiciones de la moral, poniéndola en relación con las necesidades sociales de los hombres. Un código moral, o un sistema de normas, no es ciencia, pero puede ser explicado científicamente, cualquiera que sea su carácter o las necesidades sociales a que responda. La moral —rdecíamos anteriormente— no es científica, pero sus orígenes, fundamentos y evolución pueden ser investigados racional y objetivamente; es decir, desde el punto de vista de la ciencia. Como cualquier otro tipo de realidad —natural o social—, la moral no puede excluir un tratamiento científico. Incluso un tipo de fenómeno cultural y social como los prejuicios"no es una excepción a este respecto;

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ÉTICA

es cierto que los prejuicios no son científicos, y que con ellos no puede constituirse una ciencia, pero sí cabe una explicación científica (sistemática, objetiva y racional) de los prejuicios humanos en cuanto que forman parte de una realidad humana social.

En la negación de toda relación entre la ética y la ciencia, pretende fundarse la adscripción exclusiva de la primera a la filosofía. La ética se presenta entonces como una pieza de una filosofía especulativa, es decir, construida a espaldas de la ciencia y de la vida real. Esta ética filosófica trata más de buscar la concordancia con principios filosóficos universales que con la realidad moral en su desenvolvimiento histórico y real, y de ahí también el carácter absoluto y apriorístico de sus afirmaciones sobre lo bueno, el deber, los valores morales, etc. Ciertamente, aunque la historia del pensamiento filosófico se halle preñada de este tipo de éticas, en una época en que la historia, la antropología, la psicología y las ciencias sociales nos brindan materiales valiosísimos para el estudio del hecho moral, ya no se justifica la existencia de una ética puramente filosófica, especulativa o deductiva, divorciada de la ciencia y de la propia realidad humana moral.

En favor del carácter puramente filosófico de la ética se arguye también que las cuestiones éticas han constituido siempre una parte del pensamiento filosófico. Y así ha sido en verdad. Casi desde los albores de la filosofía, y particularmente desde Sócrates en la Antigüedad griega, los filósofos no han dejado de ocuparse en mayor o menor grado de dichas cuestiones. Y esto se aplica, sobre todo, al largo período de la historia de la filosofía, en que por no haberse constituido todavía un saber científico acerca de diversos sectores de la realidad natural o humana, la filosofía se presentaba como un saber total que se ocupaba prácticamente de todo. Pero, en los tiempos modernos, se sientan las bases de un verdadero conocimiento científico -^que es, originariamente, físico-matemático—, y a medida que el tratamiento científico va extendiéndose a nuevos objetos o sectores de la realidad, comprendiendo en ésta la realidad social del hombre, diversas ramas del saber se van desgajando del tronco común de la filosofía para constituir ciencias especiales con una materia

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propia de estudio, y con un tratamiento sistemático, metódico, objetivo y racional común a las diversas ciencias. Una de las últimas ramas que se han desprendido de ese tronco común es la psicología —ciencia natural y social a la vez—', aunque haya todavía quien se empeñe en hacer de ella —como tratado del alma—■? una simple psicología filosófica.

Por esa vía científica marchan hoy diversas disciplinas —entre ellas la ética—- que tradicionalmente eran consideradas como tareas exclusivas de los filósofos. Pero, en la actualidad, este proceso de conquista de una verdadera naturaleza científica cobra más bien el carácter de una ruptura con las filosofías especulativas que pretenden supeditarlas, y de un acercamiento a las ciencias que ponen provechosas conclusiones en sus manos. La ética tiende así a estudiar un tipo de fenómenos que se dan efectivamente en la vida del hombre como ser

social y constituyen lo que llamamos el mundo moral; asimismo, trata de estudiarlos no deduciéndolos de principios absolutos o apriorísticos, sino hundiendo sus raíces en la propia existencia histórica y social del hombre.

Ahora bien, el hecho de que la ética, así concebida —-es decir, con un objeto propio tratado científicamente—■, busque la autonomía propia de un saber científico, no significa que esta autonomía pueda considerarse absoluta con respecto a otras ramas del saber, y, en primer lugar, con respecto a la filosofía misma. Las importantes contribuciones del pensamiento filosófico en este terreno —desde la filosofía griega hasta nuestros días—*, lejos de quedar relegadas al olvido han de ser muy tenidas en cuenta, ya que en muchos casos conservan su riqueza y vitalidad. De ahí la necesidad y la importancia de su estudio.

Una ética científica presupone necesariamente una concepción filosófica inmanentista y racionalista del mundo y del hombre, en la que se eliminen instancias o factores extramundanos o suprahumanos, e irracionales. En consonancia con esta visión inmanentista y racionalista del mundo, la ética científica es incompatible con cualquier cosmovisión universal y totalizadora que pretenda situarse por encima de las ciencias positivas o en contradicción con ellas. Las cuestiones éticas fundamentales

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ÉTICA

-^como, por ejemplo, las de las relaciones entre responsabilidad, libertad y necesidad— tienen que ser abordadas a partir de supuestos filosóficos cardinales como el de la dialéctica de la necesidad y la libertad. Pero en este problema, como en otros, la ética científica ha de apoyarse en una filosofía vinculada estrechamente a las ciencias, y no en una filosofía especulativa, divorciada de ellas, que pretenda deducir la solución de los problemas éticos de principios absolutos.

A su vez, como teoría de una forma específica del comportamiento humano, la ética no puede dejar de partir de cierta concepción filosófica del hombre. La conducta moral es propia del hombre como ser histórico, social y práctico, es decir, como un ser que transforma conscientemente el mundo que le rodea; que hace de la naturaleza exterior un mundo a su medida humana, y que, de este modo, transforma su propia naturaleza. El comportamiento moral no es, por tanto, la manifestación de una naturaleza humana eterna e inmutable, dada de una vez y para siempre, sino de una naturaleza que está siempre sujeta al proceso de transformación que constituye justamente la historia de la humanidad. La moral, y sus cambios fundamentales, no son sino una parte de esa historia humana, es decir, del proceso de auto-producción o autotransformación del hombre que se manifiesta en diversas formas, estrechamente vinculadas entre sí: desde sus formas materiales de existencia a sus formas espirituales, a las que pertenece la vida moral.

Vemos, pues, que si la moral es inseparable de la actividad práctica del hombre —material y espiritual—, la ética no puede dejar de tener nunca como fondo la concepción filosófica del hombre que nos da una visión total de éste como ser social, histórico y creador. Toda una serie de conceptos que la ética maneja de un modo específico, como los de libertad, necesidad, valor, conciencia, socialidad, etc., presuponen un esclarecimiento fñosófico previo. Asimismo, los problemas relacionados con el conocimiento moral, o con la forma, significación y validez de los juicios morales requieren que la ética recurra a disciplinas filosóficas especiales como la lógica, la filosofía del lenguaje y la epistemología.

OBJETO DE LA ÉTICA

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En suma, la ética científica se halla vinculada estrechamente a la filosofía, aunque como ya hemos señalado no a cualquier filosofía, y esta vinculación, lejos de excluir su carácter científico, lo presupone necesariamente cuando se trata de una filosofía que se apoya en la ciencia misma.

4.2.2. Conceitos de ÉticaEntendo que o conceito mais adequado está exposto no item anterior. Aqui exponho conceitos específicos, apresentados historicamente por certos importantes filósofos e sociólogos.

Sócrates Ética é ser racional. Através da razão o homem estabelece um comportamento otimizado,

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estabelece a virtude do comportamento. Ele deve levar a racionalidade às últimas consequências e através da razão estabelecer qual o comportamento ideal do ser humano e a virtude do seu comportamento. Sócrates, portanto, estabelece a chamada ética racionalista, porque, segundo Sócrates o que diferencia o homem dos animais é a razão. Ademais, para ele só era possível ser Ético obedecendo às leis da pólis, pois foram construídas pelo homem.

Platão Ética é agir com racionalidade despida de interesse pessoal, cumprindo a virtude com a qual já nasceu o homem.

Aristóteles Ética é ser virtuoso pela razão, praticando-a. Ser virtuoso, por sua vez, é adotar o meio termo dos extremos, ser moderado.

Agostinho e Tomás de Aquino

Ética é o desenvolvimento da ligação entre o ser criado e Deus. Então ser ético é pautar sua conduta aos parâmetros divinos, que representa a perfeição teórica. Há aí uma mistura entre racionalismo platônico e aristotélico, mas a fé e a ligação com Deus agora assumem, a virtude aí assume uma feição menos racional e mais teocrática.

Kant

Em Kant, não há uma separação muito precisa entre ética e moral. Para Kant, através do uso concentrado da razão, o ser humano, sem olhar aspectos externos, sociais, consegue deduzir normas de comportamento obrigatórias, por si mesmo impostas pelo agente como um dever (imperativos categóricos). O imperativo categórico nada mais é do que o comprometimento da própria pessoa com seu comportamento ético.

Georg Hegel

Contrasta o formalismo excessivo de Kant, para o qual a pessoa só atinjiria a ética através do uso concentrado da razão, do ponto de vista individual. E Hegel entendia que a situação não era tão formal assim, porque a ética depende das circunstancias sociais, onde o indivíduo nasceu, as relações sociais e históricas, e, portanto, não tem como cada um estabelecer normas internas, porque não se vai chegar num consenso. Esse formalismo kantiano não permite que se chegue a um consenso ético.

Jürgen Habermas

Não se pode chegar a nenhum padrão de ética sem um discurso democrático. Para que se chegue a um padrão de ética, a um comportamento ético, é necessário que todos os indivíduos da sociedade iniciem um processo de discussão dialético através de argumentos válidos, para que o mais adequado prevaleça (instrumentalismo do discurso). Agir comunicativo: só devemos agir após um processo de comunicação; esgotado todo o processo de comunicação, a dialética dos argumentos, e escolhido o melhor argumento, então a sociedade age. Isso tem uma implicação enorme com a propria aplicabilidade das normas jurídica, porque uma norma jurídica só vai ter validade após o discurso argumentativo (contraditório).

Savater Os seres humanos podem inventar e escolher, em parte, sua forma de vida. Esse saber-viver é o que se chama de ética.

Peter Singer Questiona se é possível chegar a um conceito de ética numa sociedade tão plural como a atual. Entende que sim, desde que o homem se valha da razão e que seja ela convincente.

John Rawls

A pessoa sensível deve determinar quais os princípios de moralidade e justiça nortearão sua vida. Deve-se partir de condições comumente aceitas, a partir da posição original (véu da ignorância) que seria suprida pela racionalidade. A ética é justamente saber discernir entre o devido e o indevido, o bom e o mau, o bem e o mal. Isso cabe aos lúcidos fazer, já que aos doidos e psicopatas de nada adianta falar em ética.

Bauman A moralidade na ética pós-moderna não é universalizável e é aporética.

4.2.2. Ética e Meio AmbienteEsse tema é desenvolvido em profundidade por Peter Singer.

Desde a Antigüidade, as culturas hebraicas e gregas fizeram o ser humano o centro do universo moral, e não somente o núcleo, mas a preferência totalitária das características moralmente significativas do mundo.

Para o antropocentrismo clássico o homem é o centro do mundo, o limite de cada coisa, de onde emanam todos os valores. Tem como base filosófica o humanismo que, de acordo com um dicionário especializado possui dois significados distintos: I) o movimento literário e filosófico que teve suas origens na Itália, na segunda metade do séc. XIV e da Itália difundiu-se para os demais países da Europa, constituindo a origem da cultura moderna; II) qualquer

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movimento filosófico que tenha como fundamento a matéria humana ou os limites e interesses do homem.

Esta posição humana vem sendo questionada e suas práticas consideradas não mais aceitas, trata-se da (tentativa de) superação do paradigma antropocêntrico, por uma nova visão de mundo, com valores recentes.

Contudo, para uma reflexão inicial sobre essas mudanças, faz-se necessária uma análise do conceito de paradigma. Dentro desse exame, Thomas Kuhn, definiu:

Paradigmas (do grego, parádeigma) são realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante um período de tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes da ciência. Nessa concepção, um primeiro sentido sociológico do conceito de paradigma indica toda a constelação de crenças, valores, procedimentos e técnicas partilhadas no consenso de uma comunidade determinada. Num segundo e mais profundo sentido, denota um tipo de elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebracabeças que, empregadas de forma modelar ou exemplar, podem substituir regras explícitas como base para a solução dos demais problemas da ciência normal.

Somente após a devida articulação das experiências e teoria experimental ratificando a novidade relativa aos fatos, ou seja, de descoberta é que a simples teoria dá passagem à nova síntese: o paradigma.

O novo paradigma traz consigo uma ética preocupada com a universalidade, que considera as consequências dos atos humanos em relação ao todo.

E mais, tira o homem do centro das preocupações e quer trazer o ambiente para o foco principal, sem é claro, desconsiderar o primeiro, mas conseguindo definir preocupações que não atinjam-no de modo direto, somente como parte do meio. Nisso encontra-se o grande desafio de como atribuir importância à preservação dos animais, das espécies, das árvores e do ecossistema, sem considerarmos os interesses dos seres humanos, sejam eles econômicos, de lazer ou científicos.

4.2.3. Ética de Princípios e Ética de ResultadosA ética dos princípios julga a ação com base naquilo que está antes, o princípio, a norma, a máxima – não matar, não mentir, observar os pactos estabelecidos.

A ética dos resultados julga a ação com base naquilo que vem depois, isto é, com base nos efeitos da ação. Pela ética de resultados, a ação humana é boa e correta quando atinge os resultados esperados.

Pela ética de princípios, o uso da camisinha, a pesquisa das células-tronco, o aborto de fetos sem cérebro, o divórcio, a eutanásia são questões resolvidas que não requerem decisões: os princípios universais os proíbem. Mas a ética contextual ou de resultados nos obriga a fazer perguntas sobre o bem ou o mal que uma ação irá criar. O uso da camisinha contribui para diminuir a incidência da Aids? As pesquisas com células-tronco contribuem para trazer a cura para uma infinidade de doenças? O aborto de um feto sem cérebro contribuirá para diminuir a

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dor de uma mulher? O divórcio contribuirá para que homens e mulheres possam recomeçar suas vidas afetivas? A eutanásia pode ser o único caminho para libertar uma pessoa da dor que não a deixará?

4.2.4. Eutanásia e Ética/MoralSobre o aspecto ético existem, segundo Nalini, quatro pontos de vista essenciais sobre a admissibilidade ou não da eutanásia.

A primeira, é a doutrina da sagração da vida em sentido estrito, para a qual nenhuma das modalidades de eutanásia é aceitável.

A segunda é a doutrina da sagração da vida em sentido moderado, e corresponde às acepções ético-médicas habituais, ou seja, proíbe-se toda forma de eutanásia direta-ativa, bem como toda forma de assistência ao suicídio, mas, sob certas circunstâncias, permite-se a eutanásia indireta: deixar morrer um paciente no sentido da eutanásia-passiva.

O terceiro ponto de vista é a posição liberal moderada, a permitir a eutanásia indireta-ativa ou deixá-lo morrer no sentido da eutanásia passiva, mas também permite o suicídio do paciente.

O último e o quarto ponto de vista é a posição fortemente liberal, que permite a assistência ao suicídio e também todas as formas de eutanásia, inclusiva a direta-ativa.

Em termos éticos, segundo o autor, apenas as duas primeiras posições seriam admissíveis. As demais colidem com o valor insuperável da vida.

4.3. Conceitos de CulturaCultura, de acordo com Miguel Reale, é o conjunto de tudo aquilo que, nos planos material e espiritual, o homem constrói sobre a base da natureza, quer para modificá-la, quer para modificar-se a si mesmo. É, desse modo, o conjunto dos utensílios e instrumentos, das obras e serviços, assim como das atitudes espirituais e formas de comportamento que o homem veio formando e aperfeiçoando, através da história, como cabedal ou patrimônio da espécie humana.

Não vivemos no mundo de maneira indiferente, sem rumos ou sem fins. Ao contrário, a vida humana é sempre uma procura de valores. Viver é indiscutivelmente optar diariamente, permanentemente, entre dois ou mais valores. A existência é uma constante tomada de posição segundo valores. Se suprimirmos a ideia de valor, perderemos a substância da própria existência humana. Viver é, por conseguinte, uma realização de fins. O mais humilde dos homens tem objetivos a atingir, e os realiza, muitas vezes, sem ter plena consciência de que há algo condicionando os seus atos.

O conceito de fim é básico para caracterizar o mundo da cultura. A cultura existe exatamente porque o homem, em busca da realização de fins que lhe são próprios, altera aquilo que lhe é "dado", alterando-se a si próprio.

Para ilustrar essa passagem do natural para o cultural, - mesmo porque não há conflito entre ambos, pois, como adverte Jaspers, a natureza está sempre na base de toda criação cultural, -

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costuma-se lembrar o exemplo de um cientista que encontra, numa caverna, um pedaço de sílex.

À primeira vista, por se tratar de peça tão tosca, tão vizinha do natural espontâneo, considera-a apenas com olhos de geólogo ou de mineralogista, indagando de suas qualidades, para classificá-la segundo os esquemas do saber positivo.

Um exame mais atento revela, todavia, que aquele pedaço de sílex recebera uma forma resultante da interferência, do trabalho do homem, afeiçoando-se a fins humanos, para servir como utensílio, um machado, uma arma. Desde esse instante, o dado da natureza se converte em elemento da cultura, adquirindo uma significação ou dimensão nova, a exigir a participação do antropólogo, isto é, de um estudioso de Antropologia cultural, que é a ciência das formas de vida, das crenças, das estruturas sociais e das instituições desenvolvidas pelo homem no processo das civilizações.

Esse exemplo, que nos transporta às origens da cultura, tem o mérito de mostrar a vinculação originária da cultura com a natureza, evitando-se certos exageros culturalistas, que fazem do homem um Barão de Münchausen pretendendo arrancar-se pelos cabelos para se libertar do mundo natural, no qual se acha imerso... É, ao contrário, com apoio na natureza, que a cultura surge e se desenvolve.

O sentido ora dado à palavra cultura não deve ser confundido com a acepção corrente da mesma palavra. "Cultura", na acepção comum desse termo, indica antes o aprimoramento do espírito, que possibilita aos homens cultivar todos os valores humanos. Homem culto é aquele que tem seu espírito de tal maneira conformado, através de meditações e experiências que, para ele, não existem problemas inúteis ou secundários, quando eles se situam nos horizontes de sua existência. O homem culto é bem mais do que o homem erudito. Este limita-se a reunir e a justapor conhecimentos, enquanto que o homem culto os unifica e anima com um sopro de espiritualidade e de entusiasmo.

O termo técnico "cultura", embora distinto do usual, guarda o mesmo sentido ético, o que compreenderemos melhor lembrando que a cultura se desdobra em diversos "ciclos culturais" ou distintos "estágios históricos", cada um dos quais corresponde a uma civilização. O termo "cultura" designa, portanto, um gênero, do qual a "civilização" é uma espécie.

4.3.1. Bens Culturais e Ciências Culturais Dissemos que existem duas ordens de fenômenos: os da natureza e os da cultura. No estudo dos fenômenos puramente naturais, o homem chega a uma soma de conhecimentos que forma, em síntese, as chamadas ciências físico-matemáticas, como, por exemplo, a Física, a Química, a Matemática, a Astronomia, a Geologia, e assim por diante.

Essas ciências não podem ser chamadas ciências culturais; elas, entretanto, como ciências que são, constituem "bens da cultura". Elas entram a fazer parte do patrimônio da cultura, mas não são ciências culturais, porquanto o seu objeto é a natureza: são "ciências naturais", e como produto da atividade criadora do homem, integram também o mundo da cultura.

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Se o homem, por um lado, estuda e explica a natureza, atingindo ciências especiais, por outro lado, volta-se para o estudo de si mesmo e da sua própria atividade consciente; ele abre perspectivas para outros campos do saber, que são a História, a Economia, a Sociologia, o Direito etc.

Essas ciências, que têm por objeto o próprio homem ou as atividades do homem buscando a realização de fins especificamente humanos, é que nós chamamos de ciências propriamente culturais. Há, pois, uma distinção bem clara e necessária: todas as ciências representam fatos culturais, bens culturais, mas, nem todas as ciências podem ser chamadas, no sentido rigoroso do termo, ciências culturais.

Ciências culturais são aquelas que, além de serem elementos da cultura, têm por objeto um bem cultural. A sociedade humana, por exemplo, não é só um fato natural, mas algo que já sofreu no tempo a interferência das gerações sucessivas.

Quando uma criança nasce já recebe, através dos primeiros vocábulos, uma série de ensinamentos das gerações anteriores. Herda ela, indiscutivelmente, através da linguagem, um acervo de espiritualidade que se integrou na convivência.

Em seguida, o ser humano vai recebendo educação e adquirindo conhecimentos para, depois, atuar sobre o meio ambiente e, desse modo, transformá-lo, através de novas formas de vida. A sociedade está constantemente em mutação, não obstante ter sua origem na natureza social do homem.

É necessário, pois, esclarecer o valor do ensinamento, que nos vem de Aristóteles, de que "o homem é um animal político" por sua própria natureza, ou seja, um animal destinado a viver em sociedade, de tal modo que, fora da sociedade, não poderia jamais realizar o bem que tem em vista.

É preciso compreender o sentido da palavra "natural" empregada por Aristóteles e seus continuadores. Não há dúvida que existe, na natureza humana, a raiz do fenômeno da convivência. É próprio da natureza humana viverem os homens uns ao lado dos outros, numa interdependência recíproca. Isto não quer dizer que o homem, impelido a viver em conjunto, nada acrescente à natureza mesma, pois ele a transforma, transformando-se a si mesmo, impelido por irrenunciável exigência de perfeição.

A sociedade em que vivemos é, em suma, também realidade cultural e não mero fato natural. A sociedade das abelhas e dos castores pode ser vista como um simples dado da natureza, porquanto esses animais vivem hoje, como viveram no passado e hão de viver no futuro. A convivência dos homens, ao contrário, é algo que se modifica através do tempo, sofrendo influências várias, alterando-se de lugar para lugar e de época para época. É a razão pela qual a Sociologia é entendida, pela grande maioria de seus cultores, como uma ciência cultural.

É evidente que o Direito, sendo uma ciência social, é também uma ciência cultural, como será objeto de estudos especiais.

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4.4. Conceitos de Justiça

Pré-socráticosViam o mundo como o resultado dos feitos e desfeitos dos deuses. A Justiça era baseada nos mitos, alegorias que buscavam explicar os sucedidos terrenos de acordo com caprichos advindos de uma ordem sobrenatural.

Sócrates Justiça seria um valor fundamental, cujo conhecimento somente poderia ser alcançado através do diálogo, no interior da Pólis.

PlatãoPlatão defendia que cada pessoa tinha uma aptidão. Justiça ocorre quando cada um exerce a virtude sua na sociedade, de acordo com sua natural designação. Assim, o papel do homem já era pré-determinado

Aristóteles

Justiça é o agir com cooperação interpessoal (homem é um ser político). Não se trata de algo individual, mas algo essencialmente social, que se manifesta nas relações entre os homens. Como se concretiza a justiça? Pelo alcance da igualdade. Ele via a justiça em duas acepções, justiça particular (justiça na relação entre as partes) e justiça universal (justiça que envolve o todo, ou seja, a legislação e toda comunidade por ela protegida). A justiça particular podia ser:Justiça particular comutativa ou corretiva: trata-se da justiça entre particulares, entre pessoas que atuam com coordenação, sem diferenciações hierárquicas, a qual deve ser concretizada de forma simples ou aritmética. Os ganhos e perdas das partes devem ser iguais, não importando o mérito individual. Esse justo conduz à noção de reciprocidade proporcional das forças dentro da malha social.Justiça particular distributiva: trata-se da justiça entre sociedade e particulares, não devendo ser implementada de forma direta, e sim proporcional. Nela se insere a importância do mérito (avaliação subjetiva do merecimento ou não de benefícios) para se fixar a justiça na distribuição dos bens. Aristóteles reconhecia que o mérito era um valor variável, conforme o sistema político adotado.Para se completar a teoria da justiça em Aristóteles, ele agregou o elemento da equidade em sua concepção. Equidade significaria avaliar o justo no caso concreto, visto que a lei possui um caráter geral e abstrato. Assim, equidade é a correção dos rigores da lei.

Sofistas apontavam a identidade entre a legalidade e a justiça, de modo a favorecer o desenvolvimento de ideias que associavam à inconstância da lei a inconstância do justo.

Jesus Cristo

Justiça é a justificação humana alcançada pela fé em Deus (Jesus); somente pelo conhecimento de Deus, e sendo por Ele justificado, o homem é capaz de praticar a verdadeira justiça. Ser justo é cumprir os dois mandamentos que guardam toda a axiologia do cristianismo verdadeiro: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. A justiça cristã é transcendental, eis que o “assunto” de Deus com o homem se refere à alma, que é eterna, e não ao corpo físico, que é mortal, perecível, do pó veio e ao pó voltará.

Agostinho

Justiça é buscar a correspondência entre a lei humana e a lei divina. A justiça terrena é, na verdade, reflexo da cidade dos homens; essa concepção deverá imperar até o advento da Cidade de Deus, quando então haverá a ruptura com a presente ordem social. Se o homem, por outro lado, se deixar inspirar divinamente, seus atos e instituições prosperarão.

Tomás de Aquino

Justiça consiste na disposição constante da vontade de dar a cada um o que é seu, segundo uma igualdade. Não respondeu, entretanto, o que era devido a quem. Ele é jusnaturalista, admite a existência de uma lei natural, a qual, entretanto, seria mutável.

Maquiavel

Não desenvolveu especificamente o tema sobre a justiça, mas sim sobre o poder. Para ele, o governante tinha que manter o poder para garantir a ordem, e da ordem poderia vir a justiça. O poder poderia vir e ser mantido por várias formas: carisma, competência, força. O importante é ser mantido (

Thomas Hobbes

Contratualista. Ser justo é obedecer ao contrato social firmado com o Leviatã (Estado), ente necessário para impedir que o homem retorne ao estado de natureza, em que o que imperava era a lei do mais forte.

John Locke

Contratualista. Ser justo é obedecer ao contrato social, contrato este muito mais razoável, entretanto, do que o de Hobbes. Antes do Estado, o homem não vivia no caos. O homem se organiza naturalmente. Os homens firmaram o contrato social a fim de permitir a solução de questões que dificilmente poderiam ser solvidas sem a participação de um poder. Em Locke, há direitos pré-contratuais, abrindo-se aí margem para a defesa dos direitos humanos.

Jean-Jacques Rousseau

Contratualista. Rousseau era um jusnaturalista, tendo sua filosofia um aspecto imanentista de justiça, não advinda de Deus, mas dos próprios homens. E a justiça, em Rousseau, é a observância das leis justas que foram elaboradas com base nos direitos naturais pela vontade geral de preservar direitos e liberdades inatos ao homem. Esses direitos os homens já tinham antes, quando viviam na Idade de Ouro, situação originária pré-contratual.

David Hume Empirista e cético, antiracionalista. A justiça não se define por critérios subjetivos, pelo que

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um indivíduo considera justo, mas sim pelo que objetivamente se tem como justo na coletividade. Essas convenções podem mudar com o tempo, razão pela qual a Justiça seria o conjunto de comportamentos juridicamente exigidos em certo espaço/tempo.

Immanuel Kant

A noção de direito refere-se à relação exterior e prática de uma pessoa com outra, na medida em que as suas ações possam influir sobre outras ações; essa noção diz respeito à relação do arbítrio do agente com o arbítrio do outro. Estabelece-se, assim, uma relação mútua de arbítrios, onde se consideram não as finalidades pretendidas por cada um dos agentes, mas unicamente se a manifestação da vontade de um, expressa em sua ação, constitui um empecilho ao exercício da liberdade do outro, de acordo com uma lei universal ou o princípio universal do direito. O direito em si reporta-se à manutenção da liberdade de cada um segundo uma lei válida para todos (imperativo categórico geral). Logo, a injustiça é a perturbação do estado de livre coexistência, pois o impedimento à liberdade de um não pode subsistir com a liberdade de todos, segundo leis gerais. Kant traz como elemento essencial para se caracterizar a justiça a liberdade, o homem dando a si mesmo as suas leis e cumprindo-as por dever pessoalmente imposto A ação somente seria justa se exercida com o máximo de liberdade, respeitada a existência da liberdade alheia.

Alf Ross

“Uma pessoa que sustenta que certa regra ou conjunto de regras – por exemplo, um sistema tributário – é injusto não indica nenhuma qualidade discernível nas regras; não apresenta nenhuma razão para sua atitude. Simplesmente se limita a manifestar uma expressão emocional. Tal pessoa diz: “Sou contra essa regra porque é injusta’. O que deveria dizer é: “Esta regra é injusta porque sou contra ela”. Alf Ross é o que há de mais radical no pensamento a respeito da justiça, porque ele nega a justiça. Para ele não há possibilidade de conhecimento racional a respeito da justiça. Para ele nós nem se quer devemos nos dar ao trabalho de teorizar a respeito da justiça, porque a justiça é fruto das nossas emoções, a justiça é fruto das nossas reações, é como uma criança de 06 anos que diz é injusto, mas criança de 06 anos não tem essa capacidade. Então ele vai dizer, a justiça é uma reação emocional do homem, ele diz que é injusto aquilo que o desagrada. Eu não sou capaz de conhecer a justiça, ele nega a possibilidade de se conhecer a justiça, então justiça não tem nada a ver com direito.

Dworkin

O direito deve ser visto como instrumento que realiza valores e expectativas de justiça que lhe são anteriores. Isso não pode ser feito no modelo positivista propugnado por Kelsen. Para Dworkin, a interpretação no direito é essencial, especialmente mediante sua posição de que o juízo jurídico não pode ser feito sem o juízo moral. Porém, ele não quer, com isso, ir de encontro ao sistema jurídico vigente para afirmar a inexistência de parâmetros judiciais de decisão ou conceder uma carta branca aos juízes para julgar. Para Dworkin, a atividade interpretativa, inerente ao Direito, é essencialmente evolutiva, na medida em que as concepções jurídicas do “ontem” são remanejadas, a cada case, para ser o melhor possível hoje. A satisfação do bem particular privado não pode ser conquistada sem que alguns elementos de justiça (públicos) intervenham para a sua realização. A justiça é entendida como condição de bem estar para a realização dos indivíduos. Seu ideal de justiça é liberal, mas descurar que a liberdade não pode ser confundida com a sorte.

John Rawls

Rawls é completamente antiutilistarista; elaborou uma teoria de justiça voltada para a democracia. A teoria da justiça parte de duas ponderações: a) A equidade rege todas as reflexões sobre a questão da justiça (equidade aqui em nada coincidindo com a concepção aristotélica). Equidade para ele dá-se quando do momento inicial em que se definem as premissas com as quais se construirão as estruturas institucionais da sociedade; mais claramente, quando se fala em equidade em Rawls, fala-se de um momento inicial em que os atores do contrato social discutiram em pé de absoluta igualdade os princípios da justiça; b) Rawls é contratualista (neocontratualista). Como ele cria uma teoria, ele a assenta numa base hipotética, não histórica, para poder desenvolver todo o seu raciocínio.Outro ponto nevrálgico em Rawls é o fato de que a justiça não é estudada com base na ação humana individualmente tomada, mas sim com base nas instituições sociais. É a justiça das instituições humanas (interesses comuns a todos) que beneficia ou prejudica a comunidade que a ela se encontra vinculada.O que são essas “instituições” em Rawls? São as leis fundamentais, regras e preceitos de uma sociedade, não devendo ser compreendidas no sentido organizacional, isto é, de Estado, Igreja etc. Assim, o modelo de Rawls BUSCA, ALÉM DE DETERMINAR O QUE É SOCIALMENTE JUSTO, MOSTRAR QUAIS SÃO OS MODAIS DEÔNTICOS (DEVERES) DAS INSTITUIÇÕES NAS ESTRUTURAS BÁSICAS DE UMA SOCIEDADE. Para apontar o que é justiça, Rawls confere um importante papel às questões relativas à distribuição de direitos e deveres e das oportunidades econômicas e condições sociais, assim como às relativas à participação nessa distribuição.

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Utilitaristas

Justiça é a maximização das possibilidades de se alcançar a felicidade, já que o homem é movido pelo prazer e pela fuga da dor. Trata-se de um ser que age por interesses, interesses na obtenção do bem estar. A justiça utilitaária é ordenar a sociedade de forma que suas instituições mais importantes sejam planejadas de modo a conseguir o maior saldo líquido de satisfação obtido a partir da soma das participações individuais de todos os seus membros. Há justiça, então, se a maioria da sociedade possui bem estar, mesmo que em detrimento do mal causado para uma minoria. Justo é permitir que o homem seja feliz e se realize (conceito super-simplficiado das ideias utilitárias, cuidado).

LibertarianistasJustiça é permitir que cada um realize seu projeto pessoal de vida, sem ingerência estatal e sem pressões exteriores que levem o ideal pessoal a ser diferente do real (conceito super-simplficiado das ideias utilitárias, cuidado).

4.5. Conceitos de MoralA moral é o comportamento que a pessoa adota espontaneamente, independentemente de sanção, por considerar que deve fazê-lo. O ato moral implica a adesão do espírito ao coneúdo da regra. Georg Jellinek dizia que o Direito era um mínimo ético, ou seja, que ele representaria o mínimo de Moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver.

Isso, no entanto, não é correto. Isso porque existem várias questões incorporadas ao direito que podem ser tidas por amorais, ou seja, totalmente indiferentes da moral (exemplo: essa lei começa a vigorar na data de sua pulicação...) e várias questões imorais, mas incorporadas ao Direito, como a delação premiada. De acordo com Reale, por mais que os homens se esforcem por manter relações imorais apartadas do Direito, sempre permanece nele um resíduo de imoral tutelado.

Logo, vê-se que há sim, por evidente, pontos comuns entre o Direito e a Moral, mas daí a dizer que o Direito é um mínimo ético é incorreto. Idealmente, representa-se o Direito e a moral por dois círculos concêntricos, sendo o Direito o círculo do meio. Mas na concepção real ou pragmática, o Direito é melhor representado por dois círculos secantes.

4.5.1. Moral KantianaKant opõe-se ao relativismo, ao ceticismo e ao dogmatismo, do mesmo modo que pensadores contemporâneos, como Rawls, Apel, Habermas e Dworkin.

O julgamento e o ato moral não dependem de sentimentos pessoais, de decisões arbitrárias, de valores sócio-culturais ou de convenções. A ação humana, para Kant, é submetida a obrigações últimas, sendo o homem responsável diante de si mesmo e do outro, sendo que essa ação resulta de uma racionalidade que é própria do homem. Para que se possa justificar racionalmente a ação moral irá obedecer ao princípio último da moral - o imperativo categórico.

Do ponto de vista dos costumes, Kant classifica as ações humanas em ações:

a) contra o dever e, nesse sentido, as subdivide em ações: I) Por interesse pessoal; II) Legalidade simples; III) Por inclinação imediata;

b) De acordo com o dever e;

c) Por dever. Somente as últimas são consideradas como ações morais e, portanto, fazem parte do universo da moralidade.

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Kant explica a ética/moral apelando para o conceito de dever, porque o homem – ser moral – não possui uma boa vontade sempre e naturalmente. O dever é que irá permitir que se torne boa a vontade nos seres finitos. Por sua vez, a boa vontade reside em cumprir o dever pelo respeito ao dever (e não em respeito à legalidade). O critério metaético da moralidade, a bondade incondicional, se realiza quando se faz o que é justo por ser moralmente correto e, portanto, quando a ação materializa o dever mesmo, independente de qualquer causa externa.

Apenas nesses casos, Kant fala de moralidade. A moralidade, portanto, irá dotar a vontade de uma qualidade que irá distinguir os seres humanos dos animais racionais, que agem somente de acordo com as leis da natureza. Escreve Kant que o essencial de toda a determinação da vontade mediante a lei moral é que ela, para ser uma manifestação da liberdade, será determinada unicamente pela lei moral, expressa no imperativo categórico. Essa determinação se realizará “não apenas sem a cooperação das impulsões sensíveis, mas até com a rejeição de todas elas e com a exclusão de todas as inclinações, enquanto elas se poderiam opor àquela lei.” Torna-se necessário, assim de acordo com Kant determinar-se um princípio objetivo, enquanto dirigido à vontade do agente.

Nesse contexto é que Kant demonstra a importância do imperativo categórico.

KANT DIVIDE OS IMPERATIVOS, MÁXIMAS DE QUALQUER AÇÃO HUMANA, EM HIPOTÉTICOS E CATEGÓRICOS. O IMPERATIVO É HIPOTÉTICO, QUANDO A AÇÃO É APENAS BOA, COMO MEIO PARA SE ATINGIR ALGO MAIS, ALGUM FIM. O IMPERATIVO É CATEGÓRICO, QUANDO REPRESENTA UMA AÇÃO COMO, OBJETIVAMENTE, NECESSÁRIA, SEM RELAÇÃO COM QUALQUER FIM; A AÇÃO É REPRESENTADA COMO BOA EM SI MESMA.

Logo, o imperativo categórico é o critério objetivo da moralidade e se articula, em três formulações, todas dirigidas à vontade do agente. Estabelecem máximas ou princípios subjetivos da ação e é passível de generalização, ou seja, exclui, expressamente, a análise das consequências ou do bem-estar imediato da pessoa, pois antes visa o bem-estar dos outros. Kant faz a formulação geral do imperativo categórico nos seguintes termos: “Age segundo a máxima que possa simultaneamente fazer-se a si mesma lei universal”.

1ª. Formulação - “age unicamente de acordo com a máxima que possa se tornar universal”

2ª formulação – “age como se a máxima da tua ação se devesse tornar por tua vontade uma Lei Universal da Natureza’”.

3ª formulação – “age de tal forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e jamais como meio”.

4ª formulação – “age segundo máximas que contenha simultaneamente em si a sua própria validade universal para todo o ser racional”.

O imperativo categórico refere-se a máximas, ou seja, a princípios subjetivos da ação, que diferem de um indivíduo para outro, são princípios que o próprio sujeito reconhece como próprios e que contêm várias normas de orientação para a própria existência em termos

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pessoais e sociais (ex. eu ajo de determinada maneira e não de outra por princípio). As normas práticas são diversas de acordo com a situação e as possibilidades do sujeito, já que essas são também infinitas. Mesmo seguindo a mesma máxima, pode-se agir de forma diferente diante de situações que exigem a sua adoção.

A fórmula racional adotada por Kant para resolver a questão da adequação das máximas ao dever, sem cair no dogmatismo ou no formalismo rígido, consiste no emprego da ideia da razão prática e da autonomia. Autonomia consiste, como o próprio nome indica, na ação realizada de acordo com a lei elaborada pela própria vontade.

Kant argumenta que sendo a lei moral, a única lei estabelecida pela consciência individual, ela será o princípio determinante da manifestação da autonomia. ENCONTRA-SE NESSA CATEGORIA A FUNDAMENTAÇÃO DO CONCEITO DE LIBERDADE: VONTADE LIVRE É VONTADE SUBMETIDA A LEIS MORAIS, PORTANTO, ÀS LEIS QUE EXPRESSAM A AUTONOMIA. O respeito ao dever, imposto pela lei da autonomia será então o único móbil da ação que não torna a vontade heterônoma, ou seja, determinada por fatores alheios ao agente.

O princípio da autonomia implica que se escolham somente aquelas máximas do nosso próprio querer que possam, simultaneamente, serem consideradas como lei universal, ou seja, de acordo com o imperativo categórico.

A moralidade torna-se, assim, como a única condição que torna o homem um fim em si mesmo. O homem torna-se um fim em si mesmo quando participa no reino dos fins, cada homem é um fim nesse reino como um membro legislador.

O homem é um membro legislador desse “reino” quando sua vontade é livre, ou seja, conforme uma lei universal e necessária que determina que o homem nunca seja tratado como meio e sempre como um fim em si mesmo. Como só a lei moral considera o homem como um fim em si mesmo, só em obediência a ela é que os homens podem coexistir livremente, na medida em que a liberdade de um encontra obstáculo na liberdade do outro em seu uso externo. A ausência de moralidade implica que cada um aja segundo as suas próprias inclinações, pois o homem, além do mundo inteligível, faz parte também do mundo sensível, o que o torna suscetível a paixões e inclinações diversas, ou seja, segundo leis que não podem ser universalizáveis, por exemplo, mentir. É a possibilidade de coexistência em um “reino” em que todos são respeitados como fins em si mesmos que acaba produzindo no homem o interesse pela lei moral. E, por isso, a lei moral é a única lei que o homem pode produzir para si mesmo.

Portanto, a heteronomia da vontade, a obediência não à lei moral, mas a determinações externas à nossa consciência, tem como consequência desconsiderar-se o homem como um fim em si mesmo, logo, não podendo ser universalizável, destruindo, assim, a igual liberdade de todos os homens. A autonomia da vontade, por outro lado, permite a liberdade de todos, entendida como coexistência, e, sendo assim, como obediência a uma lei que considera o outro como um fim em si e a não lhe fazer nada que não se deseje para si mesmo.

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A vontade autônoma é aquela que adota uma máxima (que leva à ação) conforme o dever, pois ela toma para si esse dever, como se sua lei fosse, já que somente através dela pode se tornar um homem livre. A heteronomia da vontade, ao contrário, não leva à liberdade, pois o homem estará agindo segundo uma lei (uma determinação) que ele não produziu para si. O conceito de liberdade, em Kant, ao pressupor obediência à lei moral, exclui qualquer forma de consideração egoísta, pois a obediência tem em vista somente o outro, a quem a lei moral manda que se trate como um fim em si mesmo. Esta concepção oferece importantes aportes à construção da ideia de dignidade humana.

A lei moral é universal, pois vale indistintamente para todos os seres racionais, e, além disso, determina que o homem seja tomado, na ação, sempre como um fim em si mesmo. Ao formular o imperativo categórico, o homem torna-se um fim em si mesmo. Como essa condição só é alcançada através da ação moral, a moralidade e a humanidade são as únicas coisas dotadas de dignidade.

Kant afirma que o homem existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio, para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas ações, tanto as direcionadas a ele mesmo, quanto nas que o são a outros seres racionais, o homem deve ser sempre considerado, simultaneamente, como fim.

Tudo tem um preço ou uma dignidade, escreve Kant. Uma coisa caracteriza-se por ter um preço e pode ser substituída por outra coisa que lhe seja equivalente; “mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade”. Ao contrário das coisas que têm um valor meramente relativo, os seres racionais denominam-se pessoas, porque a sua natureza os distingue como fins em si mesmos, ou seja, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por isso, limita todo o arbítrio e é um objeto de respeito. O homem não é, pois, um fim subjetivo para a ação, mas um fim objetivo, isto é, algo cuja existência é, em si mesma, um fim. Por isso, Kant remete à existência de um princípio prático da razão que determina a vontade humana e que pressupõe que a natureza racional existe como fim em si. A submissão a essa lei que ordena que cada homem jamais se trate, a si mesmo ou aos outros, simplesmente como meios, remete a uma ligação sistemática de leis objetivas comuns, isto é, a um “reino dos fins”, ou seja, a um estado no qual cada homem é um fim em si mesmo e somente nesse “reino”, o homem é um ser livre, um ser autônomo, em cuja vontade reside toda obrigação e toda autonomia.

4.5.1.1. Tratamento do Direito em KantAo contrário do que consideram alguns leitores de Kant, na filosofia do direito kantiana não ocorre uma separação conceitual entre a moral e o direito, mas uma separação analítica. Isto significa que ocorre uma necessária complementaridade entre o sistema da moralidade e o sistema jurídico, que se materializa não na esfera da vontade individual, mas da ação do poder público, especificamente, na legislação. O direito à inviolabilidade da pessoa humana, por exemplo, se caracteriza como um direito subjetivo que pertence ao homem como pessoa, antes mesmo do direito estatal.

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A doutrina do direito de Kant reflete, no campo da teoria do direito, a sistemática da metafísica dos costumes, que se apóia sobre os conceitos preliminares da teoria kantiana da moral, a philosophia practica universalis - dever e imperativo categórico, obrigação e coerção - e destaca duas questões fundamentais: a legalidade e a moralidade, e o a priori universal da razão jurídica.

Assim, Kant aborda um aspecto da moral, que a ética contemporânea ignora, pois o sujeito encontra-se ligado a dois tipos de relação, ambos subsumidos numa única e mesma obrigação, que é a lei moral, a saber, a legalidade e a moralidade.

A LEGALIDADE NÃO É UMA SOLUÇÃO CONTRÁRIA À MORALIDADE, MAS SUA CONDIÇÃO NECESSÁRIA. Dessa forma, a tese de Max Weber – os dois tipos weberianos de ética: a ética da responsabilidade e a ética da convicção – e a tese do positivismo da separação absoluta entre a legalidade e a moralidade não se sustentam diante da argumentação implícita no pensamento de Kant.

O ato moral para Kant não disputa com o ato legal, mas representa um reforço de suas exigências. A resposta à pergunta “o quê é o direito?” e não à pergunta “o quê está de acordo com o direito?”, insere-se no quadro geral que constitui as indagações fundamentais da metafísica kantiana:-“ O quê posso saber?” Ou os limites do conhecimento; “O quê devo fazer?”, onde se analisa o problema da ação humana e onde se encontra a quaestio iuris; “O quê posso esperar?”, onde são respondidas as indagações sobre a religião e a história e “O quê é o homem?” ou a antropologia filosófi ca.

A razão prática designa a faculdade de agir independentemente de princípios de determinação, de escolha, a saber, dos desejos, das necessidades e das paixões, dos sentimentos do agradável e do desagradável. O estudo do julgamento estético conduziu Kant a afirmar na Crítica da Faculdade de Julgar que se existe um ser que é o objeto final da natureza, esse ser somente pode ser o homem. Kant repete então a tese do primado teleológico puro da ideia da liberdade e de seu valor regulador. Ao mesmo tempo, Kant procura articular a filosofia teórica com a filosofia prática no edifício de uma filosofia transcendental.

KANT APRESENTA O HOMEM NÃO COMO ELE É, MAS COMO DEVERIA SER. Dentro dessa perspectiva, Kant argumenta como pertence à faculdade de julgar estética realizar a síntese do mundo da natureza e com o da liberdade, ou seja, os requisitos da razão teórica e da razão prática.

A terceira Crítica representa uma virada na reflexão política e jurídica. Isto porque Kant estabelece uma ligação entre o “belo” – objeto do julgamento estético – e o bem – objeto da moralidade. Essa ligação é realizada considerando-se como hipótese do bem, o “belo”, que signifi ca ordem, uma harmonia que o direito, com

vistas a governar a sociedade civil, deve encarnar nas regras jurídicas. Assim, a virada é realizada, pois a ordem jurídica, à semelhança da beleza estética, apresenta-se para Kant como a inscrição da ideia de liberdade na natureza. O PODER LEGAL DA SOCIEDADE CIVIL

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DEVERÁ CONTER A VOCAÇÃO ANÁRQUICA DA LIBERDADE NATURAL. AS LEIS DEVERÃO INSTITUIR UMA ORDEM QUE SE ALGUM DIA, ESPERAVA KANT, PUDER SER PROJETADA EM DIMENSÃO MUNDIAL, CONSTITUIRÁ O DIREITO COSMOPOLÍTICO, O DIQUE CONTRA TODAS AS GUERRAS.

Kant chama de virtude a fortaleza moral do homem que tem em vista a superação de todos os impulsos sensíveis opostos à liberdade. A doutrina das virtudes trata da submissão da liberdade interna a leis, na medida em que a moralidade é a conformidade da máxima da ação

com o dever. Já O DIREITO É A SOMA DAS CONDIÇÕES SOB AS QUAIS O ARBÍTRIO DE UM PODE SER CONCILIADO COM O DE OUTRO, SEGUNDO UMA LEI UNIVERSAL DE LIBERDADE. PELA REALIZAÇÃO DA LIBERDADE EXTERNA, ALCANÇA-SE A LEGALIDADE, QUE É A CONFORMIDADE DE UMA LEI UNIVERSAL DA LIBERDADE.

Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na Introdução à Metafísica dos Costumes, Kant faz a distinção entre “legalidade” e “moralidade’: a “conformidade com o dever” não é o “dever”. “A simples conformidade ou não conformidade de uma ação com a lei, abstraindo-se o móvel de ação, chamamos legalidade (conformidade com a lei); todas às vezes que a Ideia do dever tirada da lei é ao mesmo tempo o móvel da ação, encontra-se aí a moralidade desta (os bons costumes)”. Não se encontra, entretanto, na lei moral o fundamento do direito para Kant.

Tanto para o direito, como para a moral, existem deveres. Tanto num, como noutro, o dever não é definido por seu conteúdo, mas pela sua forma. “Agir por dever” significa que não se leva em conta nem as inclinações do agente, nem a finalidade pretendida. A Fundamentação da Metafísica dos Costumes define o dever como “a necessidade de realizar uma ação por respeito à lei”. O dever, segundo definição contida na Introdução, é aquela ação a que cada um é obrigado, sendo a obrigação a “necessidade de uma ação livre exercida sob a influência do imperativo categórico da razão”. Mas Kant assinala que sendo toda obrigação uma resposta ao imperativo categórico, enunciado pela razão, podemos ser obrigados de diferentes maneiras, pois existem duas legislações da razão prática.

Kant toma o exemplo da promessa para diferenciar os dois tipos ou formas de obrigação encontradas na razão prática. De um lado, a obrigação moral de cumprir uma promessa corresponde a uma determinação do agir que se origina numa pura legislação interior (a obrigação moral obriga in foro interno); a lei do dever moral é aquela dada ao sujeito por si mesmo, ela resulta do exercício de sua autonomia. O cumprimento de uma obrigação jurídica, estabelecida num contrato, é um dever externo, pois diferentemente do imperativo moral ela não integra o motivo do agir de acordo com a lei; ela permanece externa. A legislação jurídica, para o sujeito de direito, significa assim heteronomia, sendo esta a razão do caráter coativo do direito. Dessa forma, para a metafísica dos costumes exigida por uma filosofi a prática que tem por objeto não a natureza, mas liberdade do arbítrio, o dever é o único móvel das ações morais, que determinará os limites do arbítrio; e se nas ações relativas ao direito a ideia do

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dever ocupa o seu lugar, a coatividade legal, acompanhada em caso de desobediência de uma sanção, legalmente prevista e definida, é que irá fornecer o critério de uma ação juridicamente válida.

4.6. Regras Jurídicas, Regras Morais e Regras de Trato SocialRegras jurídicas, regras morais e regras de trato social, de acordo com a sociologia jurídica, se tratam de instrumentos de controle social:

a) Regra moral : orienta a consciência humana em suas atitudes. É unilateral, autônoma, interior, incoercível, sanção difusa;

b) Regra de trato social : padrões de conduta social ditados pela própria sociedade, com o propósito de tornar mais agradável o ambiente social. São seguidas por força do costume, de hábitos consagrados. De acordo com Radbruch e Del Vecchio, as regras de trato social encontram-se entre a Moral e o Direito. Ex: cortesia, etiqueta. Quem desatende a essa categoria de regras sofre uma sanção social, tal como a censura ou o desprezo público, mas não pode ser coagido (legitimamente) a praticá-las. É unilateral, heterônomo, exterior, incoercível, sanção difusa;

c) Regra jurídica : é bilateral, heterônomo, exterior, coercível, sanção prefixada.

REGRA MORAL REGRA DE TRATO SOCIAL REGRA JURÍDICA

Unilateral Unilateral BilateralNão Atributiva Não Atributiva AtributivaAutônoma Heterônoma HeterônomaInterior Exterior ExteriorNão coercitivas Não coercitivas CoercitivasSanção difusa Sanção difusa Sanção pré-fixada

Vejamos:

a) Bilateralidade, alteridade ou intersubjetividade : Miguel Reale chama essa questão de bilateralidade atributiva. Segundo ele, “há bilateralidade atributiva quando duas ou mais pessoas se relacionam segundo uma proporção objetiva que as autoriza a pretender ou a fazer garantidamente (garantia oficial, estatal) algo. Quando um fato social apresenta esse tipo de relacionamento dizemos que ele é jurídico. Onde não existe proporção no pretender, no exigir ou no fazer não há Direito, como inexiste este se não houver garantia específica de tais atos”. Em resumo, trata-se de uma proporção intersubjetiva em função da qual os sujeitos de uma relação ficam autorizados a pretender, exigir ou a fazer, garantidamente, algo.

b) Unilateral : impõe dever, sem previsão de um direito correspondente;

c) Heterônomo : regra (ou dever) cuja fonte criadora é externa ao homem, advindo do Estado ou da sociedade. Em relação ao Direito, significa que suas normas têm validade objetivamente aferida, independentemente da adesão do espírito. Essa

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validade objetiva e transpessoal das normas jurídicas, as quais se põem acima das pretensões dos sujeitos de uma relação, superando-as na estrutura de um querer irredutível ao querer dos destinatários, é o que se denomina de heteronomia.

d) Autônomo : regra que a pessoa se impõe por nela reconhecer espontaneamente uma obrigação, sendo um dever pessoal. Isso é bem próximo ao conceito de imperativo categórico de Kant;

e) Exterior : atuam diretamente nas ações das pessoas em sociedade;

f) Interior : voltada para a consciência da pessoa, como um aconselhamento que pode interferir na conduta;

g) Coercível : refere-se à compatibilidade do Direito com a força, ou seja, que o Direito é a ordenação coercível da conduta humana. A coação no Direito não está sempre presente, não é efetiva, mas potencial. Isso porque a grande maioria dos institutos jurídicos, como, por exemplo, os contratos, são cumpridos espontaneamente. O Direito possui a coerção como recurso para lhe dar efetividade, mas tal atributo permanece latente, se implementando somente quando necessário.

h) Incoercível : quando não há a possibilidade de se ver uma regra cumprida mediante coerção. As regras morais, para serem realmente morais, devem ser cumpridas pelo dever pessoal ao qual se curva a pessoa, e não por imposições de terceiros. Se houver força exterior, deixa a conduta de ser moral;

i) Sanção prefixada : já traz, de antemão, a punição para o descumprimento;

j) Sanção difusa : não traz punição prefixada. No momento da violação é que haverá uma reprovação, uma censura, ao infrator, por diversas formas.

4.7. Realidade, Verdade e ConhecimentoOs termos não são sinônimos, por evidente, mas sob o ponto de vista filosófico estão intimamente entrelaçados. A realidade é a porta de acesso ao conhecimento e este, por sua vez, a porta de acesso à verdade. A verdade é o que busca a filosofia. No dizer de Miguel Reale, filosofia significa amizade ou amor pela sabedoria, reflete no mais alto grau uma paixão pela verdade, o amor pela verdade que se quer conhecida sempre com maior perfeição, tendo-se em mira os pressupostos últimos daquilo que se sabe.

A Filosofia começa com um estado de inquietação e perplexidade, para culminar numa atitude mais crítica diante do real e da vida. Parafraseando Blaise Pascal, diz a respeito do filósofo em relação à verdade: “tu não me procurarias, se já não me tivesses encontrado” e conclui que “a Filosofia não existiria se todos os filósofos culminassem em conclusões uniformes, idênticas”. A Filosofia é, assim, um conhecimento que converte em problemas os pressupostos da ciência. É, portanto, sempre de natureza crítica, dialética.

Não há verdade absoluta, imutável, imune a críticas.

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Por outro lado, é óbvio que, se existem as ciências, é porque é possível conhecer, é porque o homem tem uma conformação tal que lhe é dado conhecer a realidade com uma certa margem de segurança e objetividade, demonstrando o poder – inerente ao espírito – de libertar-se do particular e do contingente, graças às sínteses que realiza. Conhecimento, então, é o processo de explicação e compreensão das distintas esferas da realidade. A realidade é objeto do conhecimento, é aquilo que existe efetivamente e que pode ser percebido com certa margem de segurança e objetividade. Não é por outra razão que a coruja é a ave que simboliza a sabedoria (ave de Athena para os gregos, Minerva para os romanos), símbolo da racionalidade e da sabedoria, a representação de atitude desperta, que procura e que não dorme quando se trata na busca do conhecimento, associada à capacidade de enxergar nas trevas.

4.8. O ValorQuase impossível conceituar-se o valor, como já reconheceu Miguel Reale. Nesse sentido, legítimo que fosse o propósito de uma definição rigorosa, diríamos com Lotze que do valor se pode dizer apenas que vale. O seu “ser” é “valer”. Da mesma forma que dizemos que “ser é o que é”, temos que dizer que o “valor é o que vale”. Por que isto? Porque ser e valer são duas categorias fundamentais, duas posições primordiais do espírito perante a realidade. Ou vemos as coisas enquanto elas são, ou as vemos enquanto valem; e, porque valem devem ser. Não existe terceira posição equivalente. Todas as demais colocações possíveis são redutíveis àquelas duas, ou por elas se ordenam. Reale fornece as características do valor.

O valor é sempre bipolar. A bipolaridade possível no mundo dos objetos ideais, só é essencial nos valores, e isso bastaria para não serem confundidos com aqueles. Se os valores são bipolares, cabe observar que eles também se implicam reciprocamente, no sentido de que nenhum deles se realiza sem influir, direta ou indiretamente, na realização dos demais. Além da bipolaridade, o valor também implica sempre uma tomada de posição do homem e, por conseguinte, a existência de um sentido, de uma referibilidade. Tudo aquilo que vale, vale para algo ou vale no sentido de algo e para alguém. O valor envolve, pois, uma orientação e, como tal, postula uma quarta nota, que é a preferibilidade.

Daí dizermos que fim não é senão um valor enquanto racionalmente reconhecido como motivo de conduta. Toda sociedade obedece a uma tábua de valores, de maneira que a fisionomia de uma época depende da forma como seus valores se distribuem ou se ordenam. É aqui que encontramos outra característica do valor: - sua possibilidade de ordenação ou graduação preferencial ou hierárquica, embora seja, como já foi exposto, incomensurável. Bipolaridade, implicação, referibilidade, preferibilidade, incomensurabilidade e graduação hierárquica são, como se vê, algumas das notas que distinguem o mundo dos valores, a que se devem acrescentar as de objetividade, historicidade e inexauaribilidade.

Para Nalini adquire especial relevo na doutrina da realização de valores a noção do dever ser. É uma noção kantiana suprema e, portanto, indefinível. Todo valor ético deriva da subordinação da vontade ao imperativo categórico. Já Scheler e Hartmann invertem a proposição: o valor moral não se funda no dever, mas ocorre o inverso: todo dever pressupõe a existência dos valores. Para eles, não haveria sentido dizer que algo deve ser, se o que se postula como

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devido não fosse valioso. Caridade, justiça, temperança e outras virtudes deve ser, enquanto vale. Carecessem de valor não deveriam ser.

Da mesma forma que dizemos que “ser é o que é”, temos que dizer que o “valor é o que vale”. Por que isto? Porque ser e valer são duas categorias fundamentais, duas posições primordiais do espírito perante a realidade. Ou vemos as coisas enquanto elas são, ou as vemos enquanto valem; e, porque valem devem ser.

4.9. Por que Estudar as Matérias de Humanística?A razão da introdução de temas ligados à Filosofia do Direito, Psicologia Jurídica, Teoria Geral do Direito e da Política, além de Ética e Estatuto Jurídico da Magistratura, como novos temas a serem objeto de cobrança nos concursos para a carreira de magistrado, nos termos da Resolução 75 do Conselho Nacional de Justiça, busca exigir dos candidatos a juízes uma visão mais científica e humanista da Justiça e do próprio Direito, em decorrência do crescente caráter interdisciplinar resultante da quebra de barreiras entre as diversas áreas do conhecimento humanístico. O novo milênio exige um magistrado que não esteja apegado exclusivamente à técnica, numa postura positivista dentro de um contexto que deixou de sê-lo. Reclama-se um juiz que, além de dominar a técnica, tenha também uma postura ética e humanista, de pessoas com sensibilidade e sensatez suficientes para solucionar as contendas humanas, capaz de reconhecer a falência dos compromissos sociais e a insuficiência dos parâmetros sobre os quais edificou-se a ideia de Democracia ocidental e para reagir a disfunção da Justiça, de reconhecer que a ideia de segurança jurídica não pode abdicar do ideal de realização do justo concreto, de que o juiz não pode ater-se a ao formalismo e ao cumprimento rigoroso aos preceitos de ordem procedimental. Só um magistrado com formação humanística poderá atender a esses reclamos.

5. Sociologia do DireitoConceito de Sociologia Geral

A sociologia geral é uma ciência que estuda os fenômenos sociais e particularmente os modos de organização e de relacionamento dos seres humanos num contexto comunitário. Vale dizer, a sociologia estuda as relações entre os seres humanos e a sociedade, uma relação que se revela fundamental, porque a própria construção do ser humano é feita dentro da sociedade.

Aristóteles escreveu em sua obra fundamental “Política”, uma obra que tem uma grande importância para as ciências humanas, que o homem é um animal político, porque a sua própria condição humana é construída dentro da comunidade política, dentro da sociedade.

Conceito de sociologia do direito

A sociologia do direito é um ramo da sociologia geral que procura estudar as conexões existentes entre a sociedade e a ordem jurídica. Ela estuda as relações biunívocas estabelecidas entre o direito e a sociedade, vale dizer, estuda a influência que os fatores sociais exercem sobre o direito assim como estuda a influência que o direito exerce sobre a sociedade. A sociedade influencia a produção, interpretação, e aplicação das normas

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jurídicas, assim como o ordenamento jurídico, através das suas disposições normativas, influenciam o desenvolvimento da vida social. Trata-se de uma RELAÇÃO BIUNÍVOCA.

Importante que nós percebamos que o direito é muito mais influenciado pela sociedade do que propriamente capaz de interferir no desenvolvimento das transformações sociais.

Pode-se dizer, portanto, que fatores econômicos, políticos e ideológicos a todo momento interferem na produção da normatividade jurídica. Por isso que os romanos já diziam: “ubi societatis ibi jus” (Onde há sociedade, há o direito). Não há como conceber o direito como uma ordem normativa voltada para a regulação da conduta humana fora da sociedade.

Diversos fatores sociais interferem na produção do direito, e eu poderia destacar três fatores ou três subsistemas sociais:

a) O subsistema ideológico : conjunto de concepções, valores e visões de mundo prevalecentes numa dada sociedade.

b) O subsistema político : modo de organização, distribuição, aquisição e exercício do poder na sociedade. Nós sabemos que a sociedade é sempre o palco para as lutas em prol da obtenção do poder, e evidentemente isso tem grande influência na produção da norma jurídica. O direito constitucional, por exemplo, é um ramo muito influenciado pelo subsistema político, pois o sistema constitucional trata do estudo da Constituição, que é a lei de organização fundamental do Estado, que estabelece os direitos fundamentais do cidadão. Então o direito constitucional, assim como os outros ramos do direito, mas sobretudo o direito constitucional, é muito sensível às mudanças que ocorrem no chamado subsistema político.

c) O subsistema econômico : conjunto de fatores de produção que regem e direcionam as economias, como o capital, o trabalho, o poder econômico etc.

Esse é o pensamento de Norberto Bobbio que visualiza a sociedade como um conjunto de subsistemas que se interferem reciprocamente. E esses subsistemas (ideológico, político e econômico) interferem a todo instante na produção do direito.

Por exemplo: toda sociedade é de alguma forma organizada a partir de certos, valores, concepções e visões de mundo, e naturalmente essas ideologias acabam interferindo no chamado “processo normogenético”, vale dizer, no processo de produção do direito.

Por exemplo, durante muito tempo prevaleceu na sociedade ocidental, inclusive no Brasil, uma ideologia patriarcalista, ou seja, uma concepção ideológica que estabelecia a superioridade do homem em face da mulher. E evidentemente essa ideologia patriarcalista acabou interferindo na produção, interpretação e aplicação do direito ocidental e particularmente do direito brasileiro.

Observe como esses fatores sociais interferem na produção do direito. Agora, essa influência é biunívoca, o direito também influencia os fatores, os subsistemas ideológico, político e econômico. Como exemplo, no plano ideológico, pode-se citar a reforma administrativa

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promovida pelo FHC, por meio de seu ministro Bresser-Pereira. Num primeiro momento havia uma grande resistência à política de privatizações, até uma resistência justificada, e poderíamos até criticar algumas privatizações que foram feitas, mas isso foge da nossa proposta, mas a verdade é que a mudança do próprio estado brasileiro, a transição de uma administração burocrática para uma administração gerencial, que se refletiu no âmbito da CR/88 e também no âmbito da legislação e dos atos administrativos, isso também acabou influenciando o nosso próprio modo de pensar. Hoje se percebe, passada a década de 90, que os brasileiros aceitam com menor resistência a ideia de uma maior participação dos particulares na prestação dos serviços públicos. Uma lei como a da “PPP” seria inconcebível em décadas passadas. E isso ocorre porque a própria mudança normativa operada através da EC/19, acabou também influenciando o nosso modo de pensar, os nossos valores, a nossa visão de mundo, enfim, o plano ideológico da sociedade.

O importante é perceber que o objeto mesmo da sociologia do direito, como ramo da sociologia geral, é o estudo das relações biunívocas que se estabelecem entre a sociedade e o direito, entre os subsistemas econômico, político e ideológico e o ordenamento jurídico e sua feição normativa.

Qual seria o papel da sociologia do direito no quadro geral dos saberes jurídicos?

Estilos de abordagens do fenômeno jurídico

Podemos estudar o direito de duas formas, por meio de dois estilos de abordagem do fenômeno jurídico:

a) Estilo de abordagem dogmático : abordagem que prioriza a dimensão normativista do fenômeno jurídico. Vale dizer, quando os juristas estudam o direito dentro de uma perspectiva dogmática, priorizam o estudo do direito em sua dimensão, basicamente, de validade, ou seja, em sua dimensão estritamente normativa, sem que haja espaço para uma dimensão critica, a norma, é portanto um dogma, uma premissa inquestionável de raciocínio.

b) Estilo de abordagem zetético : enfatiza-se a dimensão de efetividade, ou seja, eficácia social ou mesmo de legitimidade, vale dizer, realização da justiça na compreensão do direito, ou seja, quando se estuda o fenômeno jurídico numa perspectiva zetética, busca-se desenvolver uma reflexão crítica sobre a norma jurídica.

E por que é importante diferenciar esses estilos? PORQUE A SOCIOLOGIA DO DIREITO TRATA DO FENÔMENO JURÍDICO A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA ZETÉTICA.

A sociologia do direito é um saber que dentro do quadro geral dos saberes jurídicos prioriza essa dimensão zetética. O sociólogo do direito não está preocupado exclusivamente no estudo do direito em sua dimensão exclusivamente normativa, mas sim está preocupado em estudar o direito em suas conexões com a sociedade. É por isso que se estuda sobretudo a dimensão de efetividade, vale dizer, o sociólogo indaga: Será que o sistema jurídico está em consonância com a sociedade? Será que as normas jurídicas apresentam eficácia social, vale dizer, elas

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estão sendo cumpridas, observadas, pelos atores sociais? Veja que o sociólogo do direito está preocupado não com o sistema jurídico em sua dimensão normativa, como um conjunto de estrutura de ‘dever ser’, mas sim em sua dimensão efetiva, o direito inserido no mundo do ‘ser’.

Exemplo: filme “tropa de elite”. Nele resta clara a distinção entre a ordem jurídica no plano do dever ser e a ordem jurídica no plano do ser. O Direito Penal no plano do dever ser não é observado nas comunidades desfavorecidas do e nos grandes centros urbanos do Brasil. Há uma discrepância entre o mundo do dever e o mundo do ser. O Direito Penal dentro de comunidades favorecidas apresenta um outro perfil. A CR/88, o próprio Código Penal são legislações pouco observadas em tais contextos.

Então a sociologia do direito demonstra muitas vezes essa incongruência do direito no mundo normativo em sua conexão com a sociedade.

Por quê é importante estudar o direito nesta dimensão fática, nessa dimensão de efetividade, nessas conexões com os fatos sociais? PORQUE TODA VEZ QUE O JURISTA, E PARTICULARMENTE AQUI, O SOCIÓLOGO DO DIREITO, ESTUDA A DIMENSÃO DE EFETIVIDADE DO ORDENAMENTO JURÍDICO, O JURISTA CONTRIBUI PARA O APERFEIÇOAMENTO E PARA A PRÓPRIA LEGITIMAÇÃO DESTA ORDEM JURÍDICA. Vale dizer, o sociólogo do direito, ao diagnosticar a perda de efetividade do ordenamento jurídico pode formular propostas capazes de reconectar, religar, reordenar as relações entre direito e sociedade. Veja que, para tanto, não é possível desenvolver uma perspectiva meramente dogmática, baseada naquele brocardo “dura lex sed lex”; é necessário refletir criticamente sobre o sistema jurídico e sua dimensão normativa e indagar se no mundo dos fatos o direito está sendo observado e cumprido pelos atores sociais.

Se os sociólogos do direito constatarem que há uma discrepância entre o direito, como estrutura de dever-ser e as respectivas práticas sociais, poderá formular soluções normativas capazes de restaurar essa filosofia, essa ligação entre o direito e a sociedade.

Pelo exercício da sociologia do direito, os doutrinadores, julgadores, legisladores, administradores, enfim, pelos mais diversos intérpretes do direito, conseguem adaptar o sistema jurídico aos novos fatos e aos novos valores sociais. A preocupação com a efetividade da ordem jurídica é fundamental para que os intérpretes do direito possam contribuir para o aperfeiçoamento da ordem jurídica e para a constante adaptação do sistema normativo à realidade social.

Logo, vejam como a sociologia do direito muito contribui para a abertura do direito aos fatos e aos valores sociais e para a própria legitimação da ordem jurídica.

A interpretação sociológica, é portanto, fundamental, tão fundamental que a própria hermenêutica jurídica contemporânea, superando o positivismo e já visualizando a nova era pós positivista demonstra à saciedade, a necessidade de adaptar o sistema jurídico à realidade social. Daí porque o uso frequente do método sociológico na hermenêutica jurídica é um

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indício, quase que um sinal evidente da importância da sociologia do direito no quadro dos saberes jurídicos.

Concluindo, a sociologia do direito cumpre um papel importantíssimo dentro do conhecimento jurídico porque quebra o dogmatismo puro, a redução normativista do conhecimento jurídico, e permite assim um estudo mais crítico do direito, um estudo mais especulativo do direito, buscando valorizar a dimensão de efetividade, e portanto, buscando enfatizar as conexões das normas jurídicas com os fatos sociais, e a partir do diagnóstico da perda da efetividade e da eficácia social, torna-se possível, através dos estudos sociológicos, a formulação de novas normas, a formulação de e de novas interpretações e aplicações normativas do direito.

As caracterísiticas da sociologia do direito

São elas:

Natureza zetética - que pode ser entendida como crítica ou especulativa.

Natureza empírica: porque a sociologia do direito apresenta natureza empírica? Porque é um conhecimento construído a partir da observação da realidade social, e a partir da observação das efetivas conexões entre direito e os fatos sociais. Vale dizer, o tratamento empírico do plano da teoria do conhecimento busca enfatizar a apreensão da realidade concreta, fenomênica, passível de apreensão através dos chamados órgãos sensoriais. A sociologia do direito não é um conhecimento idealista, é um conhecimento que busca estabelecer as relações fáticas e concretas entre o direito e a sociedade19.

Natureza causal: porque a sociologia do direito apresenta uma natureza causal? É importante aqui o seguinte, existe uma diferença entre imputação e causalidade. Imputação é também conhecida como lógica do dever-ser, e causalidade é chamada lógica do ‘ser’. São duas categorias do pensamento que, embora correlacionadas, não podem ser confundidas. Quando eu penso eu penso utilizando a lógica do dever-ser eu estruturo meu raciocínio da seguinte forma: Dado ‘A’ deve ser ‘B’. Esse é o raciocínio imputativo, em razão da lógica do dever-ser. Agora, quando eu penso de forma causal, eu penso da seguinte forma: Dado “A” é “B”. Ou seja, a causalidade estabelece uma relação necessária entre um antecedente e um conseqüente. Pois bem, vamos tentar explicar isso. Dado “A” deve ser “B”: não preciso lhes dizer que o conhecimento dogmático do direito é um conhecimento que se vale da lógica do dever-ser ou da imputação. Porque a ciência jurídica é uma ciência normativa. Então quando, por exemplo, eu leio o art. 121 do Código Penal, que estabelece o crime de homicídio e que proíbe o ato de matar alguém, naturalmente eu estruturo o seguinte raciocínio: dado A deve ser B, ou, dada a proteção jurídica do direito à vida, deve a vida ser respeitada ou dado o descumprimento do dever jurídico,

19 A filosofia do direito, embora não desconheça um tratamento empírico dos fenômenos, é um saber idealista, porque quando nós discutimos os temas da filosofia do direito, a ontologia, a axiologia, a própria ética, semiótica, nós estabelecemos um plano de reflexão abstrato ou um plano de reflexão num nível abstrato, muitas vezes desvinculado desta realidade concreta que nos circunda.

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ou dado o comportamento de matar alguém, deve ser aplicada uma sanção que, no caso brasileiro, é a privação da liberdade. Então vejam que o conhecimento dogmático do direito, porque conhecimento normativo, vale-se, sobretudo, da lógica do dever-ser, da lógica da imputação. Agora, pensar de forma causal é buscar estabelecer relações fixas e necessárias entre o antecedente e o conseqüente: Dado “A” é “B”. Vejam, a causalidade é muito empregada nas ciências naturais. Eu posso, por exemplo, estudando a física, afirmar que a força da gravidade promoverá a queda dos corpos, dado “A” é “B”, ou seja, a força da gravidade promove a queda dos corpos. Ou no campo da química ou da físico-química eu posso afirmar que o calor promove a dilatação dos corpos (dado “A” é “B”).

Então, para sintetizar, diria que a sociologia do direito, como ramo da sociologia geral, estuda as conexões entre o direito e a sociedade dentro de uma perspectiva zetética, apresentando também como características importantes entre sua natureza empírica e a sua natureza causal.

5.1. Introdução à Sociologia da Administração Judiciária. Aspectos Gerenciais da Atividade Judiciária (Administração e Economia). Gestão. Gestão de Pessoas.

5.1.1. Introdução à Sociologia da Administração JudiciáriaA sociologia do direito só se especializou como segmento da sociologia geral após o advento da segunda guerra mundial, muito embora antes deste período tenha sido ampla e valiosa a produção e as discussões teóricas orientadas por uma perspectiva sociológica do direito em disciplinas como a filosofia do direito, a dogmática jurídica e a história do direito. Percebe-se claramente, nesse período inicial, o predomínio de uma visão normativista e substantivista das ciências jurídicas20, opondo aqueles que defendiam uma concepção de direito que se limitava a acompanhar e a incorporar os valores sociais e os padrões de conduta constituídos na sociedade (“variável dependente”) e os que defendiam uma concepção do direito como promotor de mudança social tanto no domínio material como no da cultura e das mentalidades (“variável independente”). Também assim o debate oitocentista que polarizava os que concebiam o direito como garante da composição harmoniosa dos conflitos por via da qual se maximiza a integração social e realiza o bem comum e os que o viam como um instrumento de dominação econômica e política destinado a operar ideologicamente os interesses da classe dominante.

Essa conjuntura normativo-substantivista só deixa de influenciar decisivamente o pensamento sociológico sobre o direito em meados do século passado, com o surgimento de determinadas condições teóricas e sociais. Destacam-se entre as primeiras, o desenvolvimento da sociologia dos agrupamentos sociais criados para a obtenção de um fim específico, que logo desenvolveu um interesse específico pela organização judiciária; o desenvolvimento da ciência política voltada para os tribunais enquanto instância de decisão e de poder; e o desenvolvimento da antropologia do direito, centrada nos litígios e nos seus mecanismos de prevenção e resolução.

20 Ou seja, as ciências jurídicas eram tidas em conformidade com a concepção científica positivista de enquadramento da realidade na norma, sem influência da realidade NA norma.

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No que se refere às condições sociais, distinguem-se as lutas protagonizadas por agrupamentos sociais, como os negros e as mulheres, que passaram a confrontar a igualdade dos cidadãos perante a lei com a desigualdade da lei perante os cidadãos , e a eclosão da chamada crise da administração da justiça, condição parcialmente relacionada com a anterior. Essas lutas sociais aceleraram a transformação do Estado liberal no Estado assistencial ou providencial, “ativamente envolvido na gestão dos conflitos e consertações entre classes e grupos sociais, que se por um lado significou a expansão dos direitos e a integração de classes trabalhadoras em círculos sociais que até então encontravam-se fora do seu alcance, por outro resultou em um aumento dramático do número de processos ajuizados, entre outras consequências.

Essa explosão de litigiosidade agravou-se ainda mais com a incapacidade financeira do Estado “para dar cumprimento aos compromissos assistenciais e providenciais assumidos”, que inevitavelmente acabou repercutindo na qualidade da prestação jurisdicional. Ora, na medida em que deixou de haver uma “oferta de justiça compatível com a procura”, criou-se um fator adicional da crise da administração da justiça, que propiciou a criação de “um novo e vasto campo de estudos” para a sociologia, passíveis de serem divididos em três grandes grupos temáticos: (a) o acesso à justiça; (b) a administração da justiça enquanto instituição política e profissional; e (c) os conflitos sociais e os mecanismos da sua resolução. Recai sobre esse três temas, portanto, o objeto da sociologia da administração judiciária ramo da administração pública que compreende, além da atividade administrativa do Poder Judiciário, o relacionamento com os demais entes estatais e com as entidades sociais.

A primeira das contribuições da sociologia da administração judiciária foi a de identificar os obstáculos econômicos, sociais e culturais que costumam impedir o efetivo acesso à justiça por parte das classes populares. Quanto aos primeiros, constatou-se que os custos dos litígios são muito dispendiosos e que o custo do processo era inversamente proporcional ao valor da causa, o que, em outras palavras, faz com que a justiça se torne ainda mais cara para os cidadãos economicamente mais débeis, protagonistas e maiores interessados nas ações de menor valor. No tocante aos obstáculos sociais e culturais, que estão, de certo modo, relacionados com as desigualdades econômicas, pôde-se verificar que “a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é o estrato social a que pertencem”. Isso porque falta aptidão aos cidadãos de menores recursos a reconhecer os seus direitos e a partir daí, propor uma ação ou contentar uma demanda. Muitas vezes, nem mesmo o reconhecimento da existência de um problema jurídico é suficiente para que a pessoa se disponha a acionar o Judiciário, seja porque ela já teve uma experiência anterior negativa com a justiça; seja em função do temor de represálias de se recorrer aos tribunais; ou, simplesmente pela falta de disposição psicológica para induzi-lo a procurar assistência judiciária.

A contribuição da sociologia para o estudo da administração da justiça enquanto instituição política teve sua origem na ciência política, que viu nos tribunais uma excelente oportunidade para, de um lado analisar os comportamentos de seus integrantes, as decisões por eles proferidas e as motivações delas constantes, relacionando esses dados com variáveis como, por exemplo, sua formação profissional, sua idade, e, sobretudo, sua ideologia político-social,

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e, de outro desmentir a ideia da administração da justiça como uma “função neutra protagonizada por um juiz apostado apenas em fazer justiça acima e equidistante dos interesses das partes”.

No que diz respeito ao âmbito da administração da justiça enquanto organização profissional, devem ser destacados os ESTUDOS SOCIOLÓGICOS RELACIONADOS COM O RECRUTAMENTO DOS JUÍZES E SUA DISTRIBUIÇÃO TERRITORIAL, além de trabalhos voltados para o conhecimento das atitudes e as opiniões dos cidadãos sobre a administração da justiça, sobre os tribunais e sobre os magistrados.

A análise dos conflitos sociais e dos mecanismos de sua resolução constitui a terceira grande contribuição da sociologia para o estudo da administração judiciária. Empreendidos inicialmente pela antropologia social, OS ESTUDOS NESSA ÁREA REVELARAM A EXISTÊNCIA DE UMA PLURALIDADE DE DIREITOS E PADRÕES DE VIDA JURÍDICA TOTALMENTE DIFERENTES DOS EXISTENTES NAS SOCIEDADES DITAS CIVILIZADAS, PERMITINDO EXTRAIR DUAS CONCLUSÕES QUE INFLUENCIARAM ALGUMAS REFORMAS DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA NOS ÚLTIMOS ANOS: A PRIMEIRA, É QUE, DESDE O PONTO DE VISTA DA SOCIOLOGIA, O “ESTADO CONTEMPORÂNEO NÃO TEM O MONOPÓLIO DA PRODUÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DO DIREITO”; A SEGUNDA, A DE QUE “O RELATIVO DECLÍNIO DA LITIGIOSIDADE CIVIL, LONGE DE SER INDÍCIO DA DIMINUIÇÃO DA CONFLITUALIDADE SOCIAL E JURÍDICA, É ANTES O RESULTADO DO DESVIO DESSA CONFLITUALIDADE PARA OUTROS MECANISMOS DE RESOLUÇÃO INFORMAIS, MAIS BARATOS E EXPEDITOS, EXISTENTES NA SOCIEDADE”. Na atualidade, pode-se afirmar que as contribuições mais promissoras no domínio da sociologia da administração judiciária são percebidas na democratização da vida econômica, relacionada com a constituição interna do processo, e da vida política, que diz respeito ao acesso à justiça.

Os estudos neste domínio têm logrado demonstrar que as reformas do processo ou mesmo do direito substantivo só se revelam úteis se complementadas com uma reforma da organização judiciária, em suas duas vertentes: (a) a racionalização da divisão do trabalho, com a implementação de uma nova gestão dos recursos de tempo e de capacidade técnica; além de (b) uma reforma da formação e dos processos de recrutamento dos magistrados.

5.1.2. Aspectos Gerenciais da Atividade Judiciária (Administração e Economia)A atividade judiciária apresenta algumas particularidades decorrentes de sua natureza pública, ausentes no setor privado, que desaconselham a mera reprodução das diretrizes e ações utilizadas no gerenciamento administrativo da atividade empresarial. Além das diferentes contingências a que estão submetidos os dois setores, como, por exemplo, o perfil da clientela e os limites de autonomia estabelecidos pela legislação, há que se notar que o objetivo da atividade empresarial volta-se para a obtenção do lucro e para a sobrevivência em um ambiente de alta competitividade, enquanto os objetivos da atividade judiciária devem ser imbuídas do ideal democrático de prestar serviços à sociedade, em prol do bem-estar comum; que a preocupação em satisfazer o cliente no setor privado é baseada no interesse, enquanto no setor público essa preocupação tem que ser alicerçada no dever; o cliente atendido no setor privado remunera diretamente a organização, pagando pelo serviço recebido ou pelo

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produto adquirido; que no setor público, o cliente atendido, paga indiretamente, pela via do imposto, sem qualquer simetria entre a quantidade e a qualidade do serviço recebido e o valor do tributo que recolhe; que as políticas voltadas para a qualidade no setor privado referem-se a metas de competitividade no sentido da obtenção, manutenção e expansão de mercado; e, finalmente, que no setor público, a meta é a busca da excelência no atendimento a todos os cidadãos, ao menor custo possível.

Técnicas de gerenciamento como a reengenharia, o programa de qualidade total, a administração participativa, o planejamento estratégico, o “benchmarking”, entre outras, que têm sido desenvolvidas e aplicadas com sucesso na iniciativa privada certamente podem ser úteis ao juiz a fim de que possa proporcionar melhor desempenho nas suas tarefas administrativas. Essas técnicas, entretanto, não podem ser simplesmente transportadas para o Judiciário, sobretudo pela carga ideológica, humanística e ética que a Justiça deve observar e que não necessariamente está presente no universo das atividades empresariais.

Não obstante, uma vez consciente da importância da adoção das técnicas gerenciais apresentadas, o magistrado deve buscar o engajamento dos demais servidores, especialmente do diretor de secretaria e dos supervisores, até o ponto em que todas as pessoas que compõem a unidade jurisidicional estejam plenamente envolvidas na necessidade de modernizar a forma de prestar a jurisdição, bem como conscientes do relevante papel social que desempenham.

5.1.3. GestãoConceitua-se gestão como a “prossecução coletiva e conjugada de determinados objetivos organizacionais, isto é, a tentativa de obter resultados úteis na empresa ou nas organizações em geral, através das pessoas e com as pessoas que aí labutam”, podendo o termo ainda simplesmente ser compreendido como sinônimo de administração, isto é, a coordenação de recursos humanos e materiais com vista a concretizar os desígnios específicos de uma organização qualquer. Os atos de gestão encontram-se normalmente associados a um ou mais elementos do chamado processo administrativo, resultante da interação constante de quatro funções ou elementos fundamentais: planejamento, organização, direção e controle. Cada uma delas pode, a seu turno, ser decompostas em processos menores, a fim de que se possa definir as várias atividades envolvidas no processo gerencial, e seus desdobramentos. Esses princípios-base de gestão são semelhantes em todas as organizações, públicas ou privadas, mas desde que persigam os mesmos objetivos. Isso ocorre porque o modo como uma organização é gerida pressupõe um entendimento especial dos seus objetivos e atribuições, dos meios que tem ao seu dispor e das pessoas que a compõem.

A administração pública, como qualquer outra organização, também recebe insumos, processa-os e gera produtos. Os insumos consistem nos recursos materiais e nos recursos humanos. Entre os primeiros, incluem-se os recursos financeiros, as máquinas, equipamentos, edificações, instalações em geral etc. Os agentes públicos, de outra parte, são os recursos humanos utilizados pela administração pública para atingir seus propósitos institucional. Os produtos da administração pública, por fim, correspondem aos bens e serviços públicos colocados à disposição da coletividade. O problema é que diferentemente do que ocorre no

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setor privado, onde o cliente que consome o bem ou serviço, é, em geral, o mesmo agente econômico que paga por ele, no setor público o produto da ação estatal tem como financiador e como destinatário pessoas ou segmentos sociais distintos. Em face dessa particularidade, o contribuinte precisa ser convencido de que sua parcela de esforço para a manutenção da prestação jurisdicional que não atenda à sua específica demanda está sendo bem aplicada, o que pode não se verificar a depender do modo como é administrada a organização e, consequentemente, o sistema de gestão escolhido.

No âmbito da administração pública, três são os modelos de gestão em confronto: o modelo de administração patrimonialista, o modelo de administração burocrático e o de administração gerencial. O aspecto mais proeminente na caracterização do patrimonialismo na administração pública é a confusão da patrimônio público com o patrimônio particular do dirigente, o que leva o aparelho administrativo do Estado ser percebido como uma extensão do poder do agente político, como ocorre, por exemplo, nas concessões de funções de confiança e nas contratações por prazo determinado, efetivadas na forma do art. 37, IX, da Constituição Federal. Outro atributo característico do modelo patrimonialista de gestão da coisa pública é tendência ao nepotismo, alicerçada na crença de que os laços familiares constituem a mais plena garantia de lealdade; na oportunidade profissional ou riqueza para a família; na garantia de maior probabilidade de convivência com eventuais desvios. Já o modelo de administração burocrático, de inspiração weberiana, contempla a ideia de que a administração deve ter um caráter “racional”: sua atitude encontra-se determinada pela formalização de regras por escrito; pela definição de funções específicas para cada pessoa; pela visão piramidal e hierárquica; pela impessoalidade; pela seleção com base na qualificação e no mérito; pela separação entre propriedade e administração; pela profissionalização dos funcionários; pela completa previsibilidade do comportamento funcional. Por fim, o modelo de administração gerencial, tem sua tônica no na gestão profissional, na fragmentação das unidades administrativas, na competição, na adoção de modelos de gestão empresarial, na clara definição dos padrões de performance, no foco nos resultados, e na importância dada ao uso eficiente dos meios existentes. Segundo essa lógica gestionária, o processo administrativo, isto é, o planejamento da ação, a organização dos recursos necessários, a condução do processo (direção) e o controle devem ter como parâmetro de elaboração e avaliação o resultado das ações.

No Brasil, muitas das características tradicionalmente associadas ao modelo burocrático, como, por exemplo, os regulamentos detalhados que definem as diversas funções existentes, a seleção e a promoção profissional realizada segundo regras impessoais, a centralização das decisões, o isolamento dos níveis hierárquicos e o desenvolvimento de relações paralelas de poder, ainda hoje estão presentes na administração dos tribunais, resultando em dificuldades, morosidade e ineficácia. Esse modelo de gestão afeta os serviços prestados, as técnicas utilizadas, as capacidades dos funcionários, além de dificultar o acesso à justiça. Por conta dessa realidade, o CNJ introduziu na administração pública judiciária o conceito de qualidade total dos serviços. De acordo com essa nova concepção de administração, a qualidade resulta, acima de tudo, de uma liderança: diretiva, em que o líder fornece instruções específicas e controla passo a passo o cumprimento de suas instruções; orientativa, em que o líder não só

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dirige, mas também apoia, elogia e trata com dignidade seus subordinados, procurando mobilizá-los e motivá-los; participativa, que envolve os subordinados com alguma experiência na definição e execução das tarefas; e, finalmente, delegativa, em que o líder supervisiona o trabalho de seus subordinados, dando-lhes alguma liberdade na realização das tarefas, ao delegar a atribuição de responsabilidades.

A filosofia de gestão pela qualidade reconhece ainda a importância da motivação dos funcionários a fim de que se possa alcançar os objetivos previamente definidos. Para tanto, as organizações devem levar em consideração as necessidades sentidas pelos seus próprios funcionários: a necessidade das pessoas sentirem que o trabalho que desempenham é importante; a necessidade de reconhecimento do seu esforço e empenho; a necessidade de curiosidade; de quebrar a rotina através da realização de novas tarefas; a necessidade de segurança de estabilidade no emprego; a necessidade de amizade e convívio, criando laços de proximidade com a organização; a necessidade de realização e prestígio profissional; a necessidade de ter poder, de sentirem que contribuem para o sucesso da organização; e a necessidade de desenvolvimento e de progressão na carreira. Uma vez identificadas essas necessidades, os meios para satisfazê-las devem ser integrados em uma estratégia de desenvolvimento de uma cultura organizacional com responsabilidades e objetivos sociais, que contribuirá ao mesmo tempo para a integração dos funcionários e para a diminuição da distância hierárquica. Por último, o incentivo de diferentes formas de comunicação é de vital importância para essa nova concepção de administração, na medida em que permite ao líder determinar a necessidade de seus funcionários, permite a sua satisfação, bem como o desenvolvimento de uma cultura organizacional forte e homogênea.

Em um sistema de gestão de qualidade, a unidade jurisidicional tem como atribuição a entrega da prestação que lhe é demandada. Esse é o principal produto ou serviço prestado pelo Poder Judiciário, sua atividade-fim. Nesse sentido, a unidade jurisdicional funciona como uma rede interdependente de macroprocessos de trabalho que mostra os principais processos de trabalho, bem como suas interações. O escopo do sistema de gestão passa a se referir à operação integrada da entrega da prestação jurisdicional e ao gerenciamento da secretaria da unidade da organização judiciária.

5.1.4. Gestão de pessoasConcebe-se a gestão de pessoas no setor público como o esforço orientado para o suprimento, a manutenção e o desenvolvimento de pessoas nas organizações públicas, em conformidade com os ditames constitucionais e legais, observadas as necessidade e condições do ambiente em que se inserem. Esse segmento da ciência da administração também se processa segundo as quatro etapas interdependentes do processo administrativo, pois envolve um conjunto de ações preliminares de planejamento das necessidades mútuas entre a organização e as pessoas, o arranjo dos recursos necessários à satisfação dessas necessidades, seguido dos esforços de direção desse conjunto, orientados pelo vetor resultante do produto dos objetivos institucionais e individuais, constantemente balizado pelo cotejo entre o desempenho efetivo e previsto com vistas às correções de curso do processo”. Assim, nas práticas de gestão de pessoas, o planejamento busca produzir e atualizar um diagnóstico que permita estruturar cenários de atuação do setor público e definir as formas e condições de inserção dos agentes.

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Exige a definição dos objetivos institucionais globais e setoriais, e seus desdobramentos no tempo, em face das demais contingências impostas, além da função administrativa de organização, especificamente no caso da gestão de pessoas, implica a configuração não somente das estruturas material e humana afetas à denominada área de recursos humanos ou de pessoal, mas também dos arranjos de processos de trabalho relacionados às demais áreas da administração. Por sua vez, a direção está essencialmente relacionada com a gestão de pessoas, assentando-se a direção organizacional na condução de pessoas por meio de sua influenciação. Por fim, o controle, como função administrativa, pode ser percebido como recurso de gestão, sob uma perspectiva formal (sistemas e procedimentos de controle como manuais, normas, registros de horários, sistemas de aferição de resultados etc.), e o controle sob a ótica das relações de poder, que se estabelecem entre os membros da organização. Note-se que cada uma destas funções administrativas pode ser decomposta em processos menores, a fim de que se possa definir as várias atividades envolvidas no processo gerencial, assim como os seus desdobramentos.

5.2. Relações Sociais e Jurídicas. Controle Social e Direito. Transformações Sociais e Direito.

5.2.1.1. Relações Sociais e JurídicasO Direito estabelece o regramento da vida em sociedade, em última análise, a relação entre os homens. As relações sociais que interessam ao direito, são aquelas relevantes para o atendimento de seus fins, quais sejam: a ordem, a paz, segurança e justiça.

O relacionamento humano se dá através de certos acontecimentos, fatos que podem ser voluntários ou não. E são estes fatos, que acabam influenciando o ordenamento jurídico, a ponto de serem descritos na Lei, gerando inclusive modificações, já que fatos novos acontecem a cada instante e, como tal, influenciam na forma de agir, pensar, enfim, nas relações sociais que por si só poderão gerar novas relações jurídicas.

Conceitos de Relação Jurídica:

É um vínculo entre pessoas, em virtude do qual uma delas pode pretender algo a que outra está obrigada. (Savigny)

É a relação inter-humana, a que a regra jurídica, incidindo sobre os fatos, torna jurídica. (Pontes de Miranda)

Quando uma relação de homem para homem se subsume ao modelo normativo instaurado pelo legislador, esta realidade concreta é reconhecida como sendo relação jurídica.(Miguel Reale)

Conclui-se:

a) As Relações Jurídicas conferem direitos e geram obrigações entre as partes envolvidas.

b) Toda Relação Jurídica é também uma Relação Social. Contudo nem toda Relação social, constitui uma Relação Jurídica.

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Pode-se falar em Relação Jurídica sempre que, em decorrência de certos fatos, as pessoas se ligam, criando, transmitindo e modificando direitos e obrigações, ou ainda, se desvinculam, no momento que extinguem tais direitos e obrigações.

Características e distinções:

Podemos afirmar que a Relação jurídica é o vínculo existente entre as pessoas tendente a criar, transformar, transferir ou extinguir direitos e obrigações.

Para Savigny a relação jurídica é composta por dois elementos:

a) Elemento material- Relação social

b) Elemento formal – Determinação jurídica do fato através da norma do direito.

Vale ressaltar que o Direito se ocupa do fato social relevante, criando para ele uma regra abstrata. O fato social, se amolda à regra, dando ensejo a Relação Jurídica que, por sua vez é o ponto de convergência dos fatos sociais e as regras de Direito.

Elementos da Relação Jurídica:

Pessoas, Partes ou Sujeitos

Sujeitos= Pessoas entre as quais a relação jurídica se estabelece.

Assim, de qualquer dos lados podemos ter um indivíduo ou mais ou ainda, um ente (pessoa jurídica)

Pessoa Jurídica = Entes nos quais o direito reconhece a capacidade para serem sujeitos de direitos e obrigações.

São sujeitos da Relação Jurídica:

Ativo - Titular do direito

Passivo – Responsável pelo cumprimento da obrigação

A bem da verdade, a maioria das relações jurídicas impõem direitos e deveres para ambas as partes. (ex: compra e venda).

Os sujeitos (ativo e passivo) são as partes envolvidas na relação jurídica. As pessoas não envolvidas são conhecidas como terceiros. Estes podem ser interessados ou desinteressados.

Ex: No contrato de locação os sujeitos serão locador e locatário.

O terceiro interessado seria, por exemplo, um sublocatário, e o terceiro desinteressado, qualquer outra pessoa como o dono da padaria.

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Objeto ou bem = Poderá ser uma coisa ( imóvel, carro), como uma pessoa (filho, criança), ou um certo bem imaterial (liberdade, honra, integridade moral), podendo ainda constitui-se numa prestação.

OBS: Na ausência do objeto extingue-se a relação

Objeto imediato= a coisa em si. O bem a que recai o direito do sujeito ativo, o poder da pessoa sobre ele se exerce sem intermediário.

Objeto mediato= é o conteúdo, o fim que o direito garante, exercido por meio de outrem.

3) Fato jurígeno ou jurídico, fato gerador, fato propulsor = Fato que a Lei atribui um especial efeito..

Obs: Alguns autores incluem a garantia como um dos elementos essenciais da relação jurídica, que em última análise esta representada pela norma jurídica ou sanção, servindo como um apoio ao titular do direito para exercer pressão sobre o titular do dever jurídico, a fim de tornar efetivo o seu direito.

4) Vínculo de atributividade = Surge com a ocorrência de um fato gerador conferindo a cada um dos participantes da relação o poder de pretender ou exigir algo de outro.

Nos dizeres de Miguel Reale, quando alguém tem uma pretensão amparada por uma norma jurídica, diz-se que tem título para o ato pretendido ou que esta legitimado para exigir o seu direito.

O vínculo, que gera os títulos legitimadores da posição dos sujeitos de uma relação, pode advir de muitas origens.

Elementos Externos da Relação Jurídica

Vimos que os elementos da relação jurídica são os sujeitos, o objeto, o fato jurígeno, a garantia e o vínculo. Todavia, os sujeitos, o objeto, o fato jurígeno (fato jurídico) e a garantia são tidos como elementos externos da relação, sendo o vínculo um elemento interno.

5.2.1.2. O Processo de Formação da Sociologia JurídicaA sociologia jurídica trata da influência dos fatores sociais na formulação do Direito e ao mesmo tempo da repercussão do Direito na vida social. Pois, como nos diz Rosa (1993, p. 67) “Se o Direito é condicionado pelas realidades do meio em que se manifesta, entretanto, age também como elemento condicionante”.

Sociologia é uma ciência do mundo moderno. No entanto, quando tratamos da Sociologia Jurídica vamos encontrar as primeiras manifestações de um tratamento mais próximo dessas duas ciências – Sociologia e Direito, entre os pensadores gregos – os sofistas. É lógico que não podemos falar de ciência, como passamos a entender tal forma de conhecimento a partir do renascimento. Entretanto os sofistas são considerados os precursores da Sociologia Jurídica. Só é possível entender o surgimento do movimento sofístico na Grécia Antiga a partir da compreensão desse contexto sócio-cultural. Ou seja, por serem estrangeiros e professores

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itinerantes se encontravam em posição privilegiada para criticar toda a estrutura social da pólis. Nesse sentido, o movimento sofístico é resultado de uma dupla crise:

1) Resultado da crítica ao pensamento pré-socrático (desconfiança na capacidade da razão em responder à questão ontológica).

2) Crise provocada pelo sistema social. A guerra contra os Persas colocou lado a lado plebeus e aristocratas na defesa do território grego. Tal situação contribuiu para a transição do sistema aristocrático para o democrático, no século V a. C., período também do apogeu da racionalização grega.

Os sofistas eram céticos, não acreditavam na possibilidade do homem, por meio da razão, chegar a uma verdade universal. Para eles, era impossível se alcançar a verdade. Deste modo, passaram a criticar de forma contundente os valores da cultura grega. Entre os quais a pólis que era considerada para os gregos o oposto da Barbárie e o Nomos (a lei) que era concebida como essencial para garantia da vida civilizada na pólis. E é justamente por se voltarem criticamente para as leis da pólis grega, que os sofistas são considerados os precursores da Sociologia Jurídica. Entre os sofistas, podemos destacar: a) Protágoras – considerado o mais ilustre dos sofistas e o iniciador desse movimento, afirmava: “porque as coisas que parecem justas e belas a cada cidade, o são também para ela, enquanto as creia tais”.

b) Cálicles – personagem utilizado por Platão para criticar o direito positivo. Considerava a lei uma violência contra a natureza, além de uma injustiça. O verdadeiro direito seria aquele que está inscrito na natureza (direito natural) do mais forte sobre os mais fracos. Nesse sentido, a suposta lei democrática da pólis, ao instituir a igualdade quando os seres humanos são por natureza desiguais, demonstra ser um artifício utilizado pelos mais fracos contra os mais fortes. Por atuar como desmascarador das ideologias legais, mesmo se apoiando em uma concepção jusnaturalista, Cálicles é considerado também um dos precursores da Sociologia Jurídica.

c) Hípias de Élis – afirmava que a ideologia igualitária da pólis não podia ser considerada suficientemente justa, uma vez que a natureza faz os homens iguais e a lei supostamente democrática, torna-os desiguais ao serem considerados livres ou escravos, cidadãos ou metecos. A lei era concebida por Hípias como a “tirana dos homens”.

d) Antiphon – defensor do direito natural, considerava a lei como a “cadeia da natureza”. Uma vez, que a lei obriga e constrange os homens a adotá-la sem uma adesão voluntária. e) Crítias – crítico severo, como os demais sofistas, em seu drama Sysifos, considerava os deuses como astutas invenções dos homens de estado para obter o respeito à lei. O medo era considerado como base da estabilidade social e política que as leis pretendiam.

f) Trasímaco da Calcedônia – considerado precursor do marxismo. Representa a expressão mais sociológica do pensamento sofistico. Considerava o direito como fruto dos interesses dos mais fortes.

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Os sofistas sofreram duras críticas, principalmente pelo caráter demolidor de seus pensamentos. Deste modo, os filósofos do período clássico (séc. V e IV a. C.) enfatizavam a importância da formação ética e da política a serviço de toda a sociedade.

Contrários ao ceticismo dos sofistas vamos encontrar:

a) Platão – em A república, atribui à educação o papel de construção da sociedade ideal. Para ele, o poder da educação seria suficiente para a conformação das classes sociais. Não via necessidade das leis, se as classes sociais fossem condicionadas pela educação para se adequarem as suas respectivas funções. Da mesma forma, não considerava importante limitar o poder do filósofo-rei, uma vez que esse sendo considerado, sócraticamente, o melhor, o governante perfeito, seria um mal impor freios à sua atuação. No entanto, viu sua crença no governo ideal cair por terra, ao escrever As Leis. Nesta obra, Platão reformula sua posição sobre o papel e a importância das leis para o governo da cidade. Aprendeu com a experiência de Siracusa que, nem os filósofos como ele chegavam ao governo, nem os tiranos como Dionísio, tinham a mínima disposição para a filosofia.

Passou a considerar então, as leis como imprescindíveis para a constituição das sociedades humanas.

b) Aristóteles – considerado um dos precursores da Sociologia Jurídica. Se utilizou de um empirismo realísticos no tratamento das leis e dos governos. Segundo relatos, Aristóteles teria reunido e estudado 158 constituições de povos da Grécia e de Bárbaros para produzir sua obra a Política. No entanto, mesmo procedendo como um moderno sociólogo do direito, que estuda a realidade, Aristóteles não conseguiu se desvencilhar dos preconceitos e das ideologias legais, afirmando em sua obra, a desigualdade natural entre livres e escravos, quando considera ainda a pólis como forma mais evoluída de organização social e política e, finalmente quando considerou superioridade dos homens sobre as mulheres.

Apesar de todos os avanços, o pensamento clássico da Grécia não favoreceu o tratamento empírico da realidade jurídica. O mesmo vai acontecer durante a Idade Média, em que o conhecimento teológico vai frear qualquer possibilidade de tratamento sociológico do direito.

É com o surgimento do mundo moderno, após o Renascimento e a Reforma Protestante, que vamos assistir a construção de uma nova mentalidade e tratamento da realidade jurídica.

A formação definitiva da Sociologia Jurídica não pode ser atribuída ao fundador da Sociologia Geral, Augusto Comte. É com a escola objetiva francesa e seu principal representante Émile Durkheim (1858-1917) que a Sociologia Jurídica passa a ter uma maior consistência e caráter de ciência. Durkheim vai encontrar na coercitividade do fenômeno jurídico o exemplo mais perfeito do fato social, que é o objeto de estudo da Sociologia.

5.2.1.3. O Direito como Fato SocialPara o sociólogo Francês Émile Durkheim, a sociedade prevalece sobre o indivíduo. A sociedade representa, para esse autor, um conjunto de normas de ação, pensamento e sentimento que são construídos exteriormente, ou seja, fora de cada uma das consciências individuais.

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Dito de outra forma, vivendo em sociedade o homem se defronta com as regras de conduta que não foram exclusivamente criadas por ele, mas que possuem uma existência e são aceitas pela sociedade, devendo por isso ser seguidas e adotadas por todos os indivíduos independentemente de qualquer situação ou condição social. Sem a existência dessas regras, seria impossível viver em sociedade.

Por isso se justifica, em nome da harmonia social, a existência das leis, da moral e das normas do trato social.

As leis são um exemplo perfeito do pensamento desse sociólogo.

Em todas as sociedades existem leis que padronizam a vida em sociedade. O homem individual não cria nem pode modificar essas leis. É o conjunto dos homens, ou seja, o coletivo que vai criando, modificando e transformando para as futuras gerações os códigos e constituições que devem ser adotadas por todos. Se o indivíduo não aceitar e obedecer o que está prescrito nesses ordenamentos jurídicos, sofrerá a coerção e castigo por sua conduta contrária ao modelo padronizado. Para Durkheim, os fatos sociais, ou seja, o objeto de estudo da Sociologia, são essas regras e normas coletivas que orientam e determinam a vida dos homens em sociedade.

ESSES FATOS POSSUEM UMA NATUREZA DIFERENTE DOS FENÔMENOS ESTUDADOS PELAS DEMAIS CIÊNCIAS, EM CONSEQUÊNCIA DE TEREM SUA ORIGEM NA SOCIEDADE E NÃO NA NATUREZA (CIÊNCIA NATURAIS) OU NO INDIVÍDUO (PSICOLOGIA).

Tais fenômenos (fatos sociais) apresentam características específicas que os distinguem dos demais fenômenos estudados por outras ciências: são exteriores, coercitivos e coletivos. Exteriores, porque não foram criados pelo indivíduo isolado e sim pelo coletivo. Coercitivo, porque essas ideias, normas e regras devem ser adotadas por todos os membros da sociedade. Quando isso não acontece, se algum membro da sociedade não obedece a essas regras ele será punido, de alguma forma pelos outros membros da sociedade ou grupo do qual faz parte.

Durkheim considera que a educação é de fundamental importância para garantir a vida social. Segundo o autor, a criança não nasce sabendo quais são as normas de conduta necessárias para determinado grupo social. Deste modo, toda sociedade precisa educar os seus membros para que aprendam as regras necessárias à vida em sociedade. As gerações mais adultas vão transmitindo às crianças aquilo que foi aprendido ao longo de suas vidas. E é esse mecanismo que vai garantir a reprodução e perpetuação da sociedade

5.2.2. Controle Social e DireitoO controle social é exercido em todas as situações sociais, de formas variadas e imprevisíveis. O objetivo comum é adaptar a conduta do indivíduo aos padrões de comportamento dominantes.

A depender do grau de organização, os meios de controle social podem ser formais ou informais. Nas sociedades desenvolvidas e complexas denota-se a existência de meios de controle tanto formais como informais. O controle formal é realizado, principalmente, pelas

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autoridades do Estado. Este pressupõe um processo de institucionalização, como é o caso do controle dos comportamento desviantes, efetuado pelo sistema jurídico.

O controle informal é, ao contrário, difuso, móvel e espontâneo e realiza-se através da dinâmica que se desenvolve no âmbito de pequenos grupos sociais. Os meios de controle informal são próprios de sociedades pequenas e homogêneas, onde não há necessidade de criar instituições específicas para o controle de seus membros. Porém, o controle informal também se manifesta nas sociedades modernas. Neste contexto, este é exercido através da famílias, amigos, colegas de trabalho, entre fiéis da mesma religião etc., que reprovam determinados comportamentos e fazem recomendações.

Dependendo do tipo de atuação, os meios de controle podem ser negativos ou positivos. O CONTROLE NEGATIVO consiste na reprovação de determinados comportamentos através da aplicação de sanções. A intensidade das sanções negativas é variada. Esta pode ser leve ou grave, de caráter intimidador ou de coação. O CONTROLE POSITIVO consiste em premiar e incentivar o “bom comportamento” ou em persuadir os indivíduos, através de orientações e conselhos (sanções positivas). Levando em consideração o critério da intensidade, esse controle pode ser gratificador, orientador ou persuasivo.

O controle social é interno quando indivíduo é, ao mesmo tempo, objeto do controle e seu fiscalizador. Ciente da norma e da eventualidade de sanção, ele opta, em geral, por conformar-se aos requisitos sociais. As razões dessa “autodisciplina” não se encontram na livre vontade do indivíduo, mas sim no condicionamento realizado através de mecanismos de controle social (“socialização”, isto é, aprendizado de regras e submissão a limites). Já o controle social externo se efetua sobre os indivíduos através da atuação dos outros e objetiva restaurar a ordem. Isso acontece, sobretudo, quando falha o controle interno e o indivíduo transgride as normas. O controle externo é, na maior parte dos casos, repressivo: manifesta-se através da aplicação de sanções. Porém, este controle pode ser também preventivo, tendo a finalidade de confirmar o valor das normas sociais e de descobrir eventuais violações.

O DIREITO CONSISTE EM UMA FORMA ESPECÍFICA DE CONTROLE SOCIAL NAS SOCIEDADES COMPLEXAS. TRATA-SE DE UM CONTROLE FORMAL, DETERMINADO POR NORMAS DE CONDUTA, QUE APRESENTAM TRÊS CARACTERÍSTICAS. ESTAS NORMAS SÃO: (A) EXPLÍCITAS, INDICANDO À POPULAÇÃO DE FORMA EXATA E CLARA AQUILO QUE NÃO DEVE FAZER; (B) PROTEGIDAS PELO USO DE SANÇÕES; (C) INTERPRETADAS E APLICADAS POR AGENTES OFICIAIS.

A depender da posição teórica adotada (funcionalista ou conflitiva), podem ser feitas afirmações diferentes sobre a finalidade do direito como espécie de controle social institucionalizado pelas autoridades estatais.

Sob a perspectiva liberal-funcionalista, o controle social exercido pelo direito tem por objetivo impor regras e padrões de comportamento para preservar a coesão social perante comportamentos desviantes. O controle social diminui os conflitos e garante o convívio pacífico, exprimindo o interesse de todos por usufruir uma vida social ordenada. Neste caso,

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o controle é considerado legítimo e necessário para a vida em sociedade (“paz”, “civilização), desde que sejam respeitadas determinadas regras. Uma política liberal e democrática de controle social restringe seu exercício com base em quatro princípios: (a) consecução de um bem-estar maior do que o que existiria sem o uso do controle social; (b) limitação da intervenção ao estritamente necessário (proporcionalidade entre meio e objetivo); (c) criação democrática dos instrumentos de controle; (d) responsabilização dos agentes de controle (controle dos controladores).

Os juristas-sociólogos de formação funcionalista consideram que o sistema jurídico realiza um controle social baseado nas seguintes características: (a) certeza; (b) exigibilidade; (c) generalidade; (d) garantia do bem comum; (e) expansão; (f) uniformidade (f.1) espacial; (f.2) objetiva; (f.3) subjetiva; e (f.4) temporal.

Sob a perspectiva conflitiva, os instrumentos e os agentes do controle induzem as pessoa a se comportarem de forma funcional ao sistema. O que se controla? Quem é controlado? Para que se controla? Estas são as perguntas formuladas pela teoria do conflito social, que afirma que os detentores do poder direcionam o processo de legislação e de aplicação do direito.

O sistema seria fundamentado na concentração do poder econômico e político. Objeto do controle seria o comportamento que agride a ordem estabelecida, sendo que, na maior parte dos casos, o controle seria exercido sobre as camadas mais carentes da população.

Com relação à sua finalidade, o controle social teria por objetivo favorecer os interesses da minoria que detém o poder e a riqueza social (capital, prestígio, bens de consumo), o que demonstraria uma preocupação em condicionar as pessoas a aceitarem uma distribuição desigual dos recursos sociais, ao apresentar a ordem social como “justa”, e ao intimidar os que colocam essa afirmação em dúvida.

As regras sociais não exprimiriam uma “vontade geral” ou interesses comuns de todos os cidadãos. Em outras palavras, OS ADEPTOS DA TEORIA CONFLITIVA NÃO ACEITAM A IDEIA DE QUE É POSSÍVEL REALIZAR UM CONTROLE SOCIAL DEMOCRÁTICO E EM FAVOR DA SOCIEDADE COMO UM TODO, TAL COMO SUSTENTAM OS LIBERAIS. RESUMINDO, AS TEORIAS DO CONFLITO PARTEM DA EXISTÊNCIA DE GRUPOS SOCIAIS DIVERGENTES E CONSIDERAM O CONTROLE SOCIAL COMO MEIO DE GARANTIA DAS RELAÇÕES DE PODER. TAIS RELAÇÕES SÃO SEMPRE ASSIMÉTRICAS. Em outras palavras, constata-se um desequilíbrio permanente entre os grupos sociais, inexistindo o igual tratamento e reciprocidade nas relações sociais.

Os juristas-sociólogos que adotam a abordagem do conflito social concordam parcialmente com a descrição funcionalista do papel do direito no controle social, como, por exemplo, no que tange aos fenômenos de expansão e de uniformização do direito. Os teóricos do conflito discordam, porém, de forma radical, no que se refere às finalidades do controle. Consideram que o controle realizado através do direito exerce funções latentes, diferentes de suas funções declaradas e criticam o funcionalismo por adotar ideias provenientes do “senso comum”. Por não serem dotadas de cientificidade, essas análises possuiriam caráter ideológico, servindo,

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assim, para legitimar o controle social através do direito, de modo a ocultar sua verdadeira função social.

A visão conflitiva pode ser exprimida através de cinco críticas, que indicam quais seriam as funções reais do controle social através do direito: (a) ilegitimidade do poder punitivo; (b) inexistência da distinção ente o bem e o mal (“normalidade do crime”); (c) inexistência da culpabilidade pessoal (pluralidade cultural); (d) impossibilidade de ressocialização; (e) desigualdade na aplicação da lei.

5.2.2.1. Instituições e Controle SocialA vida em sociedade é resultado de nossas experiências nas diferentes instituições. As instituições são estruturadas para regular e controlar a distribuição dos bens sociais e atender à necessidade dos indivíduos e dos diferentes grupos sociais. O filosofo alemão Nietzsche apud Castro (1996) afirmava que “As necessidades geram perspectivas”. Foi das nossas necessidades que nasceram a cultura, a ciência, a política, a economia, o direito, a religião, a civilização (Infelizmente, as “nossas” necessidades são muito mais as dos detentores do poder econômico). O indivíduo, por necessidade de autoafirmação, recorre às instituições para suprir o seu desejo de segurança e realização.

Segundo Castro: “A instituição, portanto, ordena desigualdades biopsíquicas e de estratificação social, impedindo que vigore a ‘Lei da Selva’, sem a utópica pretensão de vencer a natureza, que apresenta diversidades individuais de capacidade e condições corpóreas e mentais, e sem o ilusório pressuposto de nivelamento social.”

Entre as instituições sociais, destacamos:

a) Família: considerada como a mais importante instituição social. É o núcleo responsável pela criação, conservação e reprodução da sociedade. Como instituição social, a família apresenta três funções básicas: procriativa, educativa e econômica.

- A função procriativa é aquela que garante a existência e continuidade do grupo.

- A função educativa é a que busca a socialização e integração e interação dos indivíduos ao grupo social. É a responsável pela transmissão da herança sócio-cultural.

- A função econômica é responsável pela sobrevivência dos membros da família.

A função econômica é responsável pela sobrevivência dos membros da família.

Com o desenvolvimento da sociedade, essas funções vão sendo aos poucos substituídas por outras instituições (por exemplo a criança socializada em creches ou pela empregada doméstica).

b) Escola: é a instituição responsável pela formação profissional dos indivíduos e também, juntamente com a família, pela socialização. É importante salientar que, mesmo tendo como função básica a formação profissional, a escola não pode deixar de lado a formação de cidadãos críticos e conscientes do seu papel na sociedade. A escola não pode ser apenas a fornecedora de mão-de-obra qualificada para o mercado. Ela precisa proporcionar condições

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para que os indivíduos possam atuar com competência técnica, mas ao mesmo tempo, tenham condições políticas de questionar o modelo social no qual estão inseridos.

c) Religião: é a instituição que atende às necessidades humanas diante do desconhecimento do que virá após a vida. É responsável pela conduta dentro de padrões compatíveis com os preceitos religiosos. Atua ainda como elemento de conforto diante da dor, da miséria e da angústia humana.

Para Marx, a religião era considerada como: “consciência é o sentimento do homem que ainda não se encontrou a si mesmo ou que se tornou a perder... é o ópio do povo[...] toda a crítica, qualquer que seja, deve ser precedida de crítica da religião[...] a crítica da religião leva à doutrina de que o homem é o ser supremo para o homem, e ao imperativo de derrubar as relações sociais nas quais o homem é um ser degradado, escravizado, abandonado, miserável.”

d) Justiça: se expressa em leis que obrigam e constrangem o indivíduo em seu relacionamento social. Está ligada a um dever moral, cuja emissão define culpa sancionada por lei. Além dessa justiça legal, temos ainda a justiça social que se situa no plano de possibilidade de construção de uma sociedade mais justa e fraterna. Nesse campo são discutidas questões como o desemprego, a miséria, a violência, a fome e outras mazelas que atingem milhões de indivíduos em todo o mundo.

e) Estado: é considerada a mais complexa das instituições. O Estado existe como instituição dotada de poder, que tem como objetivo a segurança e a justiça. Na visão Marxista, o Estado é produto da sociedade dividida pelos antagonismos de classes. É um poder que existe para amenizar os conflitos entre essas classes. Nesse sentido, o Estado representa os interesses da classe dominante.

5.2.3. Transformações Sociais e DireitoAs transformações sociais têm sido, e são, sem dúvida alguma, um tema central da sociologia, da ciência política e da psicologia social; sua origem e sua tipologias são abordados por diferentes teóricos, que, a seu turno, têm contribuído com distintas opiniões e enfoques para o fim de entendê-las. Embora a bibliografia seja ampla, os tratadistas quase não se detêm em definições; partem de algo que supõem ser um conceito claro, dedicando-se desde logo à análise de suas origens e modelos. Os estruturalistas têm insistido numa definição que, em princípio, parece acertada: toda transformação se reflete na estrutura social; a partir daí, elaboram uma série de critérios para medir a intensidade da mudança. Alguns estimam que a transformação mais importante é a que se dá no campo da axiologia, isto é, dos valores vigentes tidos como os de maior hierarquia em uma sociedade e em uma situação determinada. Outros medem a intensidade da transformação pelos aspectos econômicos, dando prioridade aos fatores que refletem a distribuição da renda e do produto nacional bruto. Os sociólogos efetuam diversas classificações para as transformações; assim, fala-se desde em transformações institucionais até transformações que podem ocorrer nas pessoas que ocupam os postos de comando de um determinado sistema social.

Todas as teorias denominadas clássicas abordam, de uma forma ou outra, o tema das transformações sociais, suas fontes e sua tipologia. Herbert Spencer viu o desenvolvimento da

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sociedade como um processo evolutivo. Auguste Comte considerava a sociedade como um processo de evolução e progresso. Para Oswald Spengler, a existência humana é uma série interminável de vaivéns. Arnold Tonynbee sustentou que uma civilização nasce de uma resposta vitoriosa a um desafio, e atribui a capacidade de conceber essas respostas às “minorias criadoras”. Karl Marx sustentava que o avanço a uma sociedade sem classes se dá mediante conflitos dialéticos nos quais uma classe subordinada derruba a classe governante. Max Weber deu relevância especial ao líder carismático que, ao esgotar a legitimidade de uma velha estrutura, surge e lhe dá o golpe de misericórdia. No âmbito das teorias modernas, Talcott Parsons relacionou as transformações com o equilíbrio, não apenas para aquebrantá-lo, mas também para consolidá-lo. Francesca Cancian os relacionou diretamente com a estabilidade do sistema e ressalta a necessidade do mesmo em conservá-la. C. Wright Mills atribuiu um papel considerável aos fatores políticos, certamente sem desprezar os fatores classistas, refletindo assim suas influências marxistas. David McLelland e Everett E. Hagen afirmaram que a força motriz das sociedades não descansa nos fatores ambientais, nem nos conflitos sociais, nem nas ideias, mas nos indivíduos, fortemente movidos pelo afã de alcançar certos êxitos.

Diversas escolas do pensamento jurídico sustentaram veementemente que o direito é um

simples reflexo da realidade, incapaz de promover transformações sociais . SAVIGNY TALVEZ TENHA SIDO O MAIS DESTACADO DEFENSOR DESSA IDEIA. Ferrenho adversário das tendências racionalizadoras e legisladoras que foram estimuladas pela Revolução Francesa, considerava que o direito não se encontra, se faz. Para Savigny, o corpo legislativo só deveria entrar em ação quando o costume popular tivesse se desenvolvido plenamente. Savigny condenava particularmente a tendência de codificação do direito inaugurada pelos códigos napoleônicos e rapidamente propagada pelo mundo civilizado. Sua obra fala de um “direito vivo do povo [...] produto de forças internas que operam sigilosamente”. Como o idioma, o direito não seria “o produto de uma vontade arbitrária, mas de um crescimento lento, gradual e orgânico”, e como a cultura, seria a “emanação das forças inconscientes anônimas, graduais e irracionais da vida individual de uma nação”.

Puchta manifestou-se partidário de ideia semelhante ao afirmar que “a gênese ou o desenvolvimento do direito, partindo do espírito do povo, é um processo invisível. Quem seria capaz de empreender a tarefa de seguir os caminhos por meio dos quais surge no povo a convicção, como germina, cresce, prospera e se desenvolve? O que vemos é tão só o produto – o direito – tal como surgiu do obscuro laboratório em que foi preparado e fez dele realidade”.

Por outro lado, Herman Kantorowicz, criador e máximo expoente do do direito livre, considera, resumindo sua teoria, que este “movimento tende, com todas as suas forças, à meta mais alta de toda a juridicidade: a justiça. Só se fizermos estourar os estreitos cauços das poucas disposições legais, só se a plenitude do direito fizer possível o dar a cada caso a regulamentação adequada, só onde há liberdade, existirá também justiça. Só se dominarmos sutilezas estéreis e colocarmos em seu lugar a vontade criadora que engendra novos pensamentos, só onde há personalidade, exisitirá também justiça. Só se tirarmos a vista dos

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livros, dirigindo-os à vida, calculando as consequências e as condições mais distantes das nossas ações, só onde há sabedoria, existirá também justiça”.

Segundo W. Friedmann, “a teoria de Savigny é hoje um tema histórico excessivamente fora de tom em relação às condições da sociedade moderna para que possa constituir um motivo sério de discussão. Já a discussão mais sutil e realista, exposta um século depois pelo jurista austríaco Ehrlich é um ponto de partida adequado”. Ehrlich coincide com Savigny ao dar importância ao “direito vivo do povo”, baseado na conduta social e não na norma coercitiva do Estado; concede ao direito certa influência na realidade, mas só no que se refere aos fins do Estado, a saber: a organização militar, a tributação e a administração policialesca; sustenta que, “hoje como sempre, o centro de gravidade do desenvolvimento jurídico, não se encontra na legislação, nem na ciência jurídica, nem na decisão judicial, senão na própria sociedade”. “Sucede, contudo, que a vida é incomparavelmente mais rica que os conceitos e tipos contidos nas normas jurídicas gerais: os interesses na realidade apresentam uma multitude de matizes diferenciais entre si, um número tão grande e em variações tais, que nenhuma norma jurídica nem conjunto de normas jurídicas algum jamais poderia expressar”. Por fim, Gurvitch distingue entre o direito organizado, o qual foi fixado previamente – leis, regulamentos, estatutos dos tribunais – e sói ser relativamente imutável e rígido, e o direito vivo, o espontâneo, o flexível e o inventivo.

Outras escolas do pensamento jurídico vão ainda mais além: não só negam ao direito a capacidade de ser um eficiente instrumento transformador; apontam-no como um obstáculo. Este é o caso, fundamentalmente dos juristas marxistas, que tiram suas próprias conclusões a partir do postulado segundo o qual as relações jurídicas, assim como as formas estatais, não podem ser compreendidas por si mesmas, nem explicadas pelo chamado progresso geral da mente humana, haja vista que tem suas raízes nas condições materiais de vida, modificando-se a estrutura mais ou menos rapidamente com a transformação dos fundamentos econômicos.

Partindo desse ponto, Pachukanis afirmou que “o direito, sobretudo em sua forma mais desenvolvida, é um produto típico da economia e cultura burguesa [...] o direito pressupõe interesses contrapostos que requerem um acordo pacífico. Em uma sociedade coletivista, onde haverá uma unidade de propósito social e uma harmonia de interesses, o direito deixará de ser necessário; será substituído por normas técnicas sociais baseadas na utilidade e conveniências econômicas”.

Outro marxista, Yudin, afirmou que “o direito não é uma força inovadora, e sim um fator estabilizante do fator social. Em 1975, um jurista chileno, Novoa Monreal, escreveu um livro denominado “O direito como obstáculo à transformação social”, cuja principal tese é a de que “não há direito desapegado da concepção política e concreta vivida por uma sociedade. O direito deve ajustar-se ao “projeto concreto de vida social” que anima cada sociedade em um dado momento histórico. O problema é que isto não se concretizou, pelo que nos encontramos na presença de um direito obsoleto que o conservadorismo dos juristas é incapaz de notar e muito menos, de remover”.

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Em seu livro, Novoa Monreal analisa o espírito liberal individualista da legislação latino-americana e o considera influenciado pelo “Code Civil”, que responde, a seu turno, à ideologia política da Revolução francesa “e serve para sancionar o triunfo da burguesia sobre os privilégios feudais, à base da afirmação dos princípios de igualdade pessoal, de respeito a um direito de propriedade privada tido por consagrado e inviolável, de liberdade de contratação e amplo reconhecimento da autonomia da vontade e do direito de herança”.

Novoa Monreal considera que a influência do “Code”, o raciocínio do direito romano e o ideal cristão “permitiram o nascimento e o desenvolvimento do capitalismo moderno, de modo que todo o nosso direito encontra-se atualmente impregnado do espírito capitalista, por ter aceitado e encorajado a produção com vistas à ganância”. O homem das leis é qualificado por Novoa Monreal como um ser eminentemente conservador a partir de afirmações de juristas como Bodenheimer, para quem “o direito, por sua própria natureza, é uma força estática, com tendência ao estancamento e de índole conservadora”; cita, ainda, Vinogradof, de modo a respaldar a sua particular concepção de direito. Assinala uma série de avanços desde a técnica até o intervencionismo estatal e o planejamento, que não foram considerados no direito vigente. Critica Ripert, que, sem negar a necessidade de reformas, não crê numa evolução fatal do direito, devendo-se “prever o perigo de romper com a tradição e destruir direitos respeitáveis”. Ataca as deficiências de uma técnica legislativa obsoleta, assinalando que em certos casos idealizou-se a norma, opinando que em casos outros a promulgação das leis pode igualmente ser “impulsada por afãs populistas de um governo que se sente débil e que espera obter o apoio de grupos numerosos ou politicamente fortes”.

Novoa Monreal cita quais seriam as características de um sistema moderno de normatividade social: (a) inovação que expresse adequadamente as necessidade sociais do momento; (b) integração de todos os seus preceitos em um ordenamento sistemático único, bem articulado e coerente; (c) flexibilidade de seus preceitos a fim de que possam se conformar prontamente com as novas necessidades sociais, tão logo sejam apresentadas; (d) composição por um número reduzido de preceitos, claros, ordenados e precisos. Assinala, na sequência, os limites do direito, negando que o legislador possa tudo; observa que a mesma natureza o circunscreve e que o direito é superado pelo espiritual, pela generalidade da lei e por algo muito importante: o respeito à dignidade humana, e aos direitos fundamentais do homem. Considera vícios individualistas do direito desde a propriedade privada, a qual ataca como fonte de poder pelas poucas limitações que lhe são impostas no direito moderno, até o princípio da liberdade de contratação e da autonomia da vontade, que considera o “símbolo jurídico por excelência da sociedade capitalista”. Também a irretroatividade da lei e a segurança e certeza jurídica seriam mecanismos impeditivos de transformações. Ao analisar as perspectivas do direito moderno, Novoa Monreal assinala as novas funções do Estado e, apoiando-se em Latorre, desconstrói o conceito tradicional de segurança, que se converte em “segurança contra a miséria, contra as enfermidades, o desemprego, a velhice etc., tudo o que hoje é denominado de seguridade social”.

Ocorre que, atualmente, ninguém mais nega a possibilidade de que um sistema possa implantar e levar até as últimas consequências as transformações necessárias, sem que isso

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implique na perda de estabilidade. Esse processo, contudo, dependerá do grau de legitimidade do sistema e das instituições encarregadas especificamente deste mister.

A teoria de Savigny não foi elaborada a partir de bases lógicas e sim com base em um sentimento conservacionista. Ao valorar a escola histórica, não se deve esquecer que Savigny era um nobre conservador que detestava o racionalismo igualitário da Revolução francesa. Era, ademais, um nacionalista alemão adversário do cosmopolitismo implícito na doutrina revolucionária; opunha-se ao Código de Napoleão e tratava de evitar a promulgação de códigos similares na Alemanha. Isso tudo explica sua inimizade com a legislação e a importância que atribuía às “forças silenciosas, anônimas e inconscientes”, verdadeiros elementos do desenvolvimento jurídico com os quais legislador algum deveria interferir. E no que se refere ao pensamento jurídico marxista, nota-se uma “virada” na obra de Engels quando, ao assinalar a interrelação e a mútua influência existente entre as transformações da estrutura e da infraestrutura, menciona a ciência jurídica como um dos principais elementos do ideario, dos costumes e das tradições de uma sociedade, representadas em sua concepção de superestrutura.

É preciso deixar claro que a ideia de que o direito é a expressão da classe dominante fornece uma explicação pobre para o fenômeno jurídico. Os marxistas não se dão conta de que o direito possui uma função permanente na vida humana social; é a resposta para muitas necessidades, assim como também organiza, limita e legitima o poder político. Imaginar que o direito irá desaparecer em um Estado comunista é algo utópico. E ainda que eventualmente fosse possível imaginar uma situação de anarquia na qual desaparecesse o estado de direito, tal situação seria transitória e efêmera. Kelsen, aliás, fez duras críticas à posição marxista ao observar que “a tentativa de se desenvolver uma teoria do direito baseada na interpretação econômica da sociedade de Marx fracassou por completo. Os motivos desse fracasso se devem, em primeiro lugar, à tendência de substituir (ao invés de agregar) uma interpretação normativa do direito por uma análise estrutural de um sistema específico de normas, uma investigação sociológica sobre as condições nas quais se dá e se faz efetivo um sistema normativo”.

A sociologia jurídica norte-americana trouxe luzes quanto à capacidade do direito de servir como instrumento de transformações sociais. Roscoe Pound, por exemplo, compreendia o direito “como uma instituição social voltada para a satisfaçào de necessidades sociais – as pretensões e demandas implícitas na existência da sociedade civilizada – logrando o máximo possível com o mínimo de sacrifício, tanto quanto puderem ser satisfeitas tais necessidades ou realizadas tais pretensões mediante uma ordenação de conduta humana através de uma sociedade politicamente organizada.

O direito deve ser constantemente modificado, conservando, não obstante, certa orientação axiológica. Segundo Friedmann, “seria trágico que direito estivesse tão petrificado que não pudesse responder às incitações das transformações sociais evolutivas e revolucionárias”.

5.2.4. Coerção, Coação e Sanção: DiferençasExcertos do livro do paulo nader (Filosofia do Direito. Rio de janeiro: Forense, 19ª ed., p.93):

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“Enquanto a coação é a força em ato, a coercibilidade é em potência. Tal distinção é básica, pois se a coação se manifesta apenas eventualmente, a coercibilidade é um estado permanente da prdem jurídica. [...] Uma parte do ordenamento jurídico, além de definir a conduta exigida, prevê sanções de diferentes tipos aos seus infratores. A sanção jurídica não se confunde com a coação. Esta é força, enquanto aquela é apenas determinação de penalidade, que pode ser aceita espontaneamente ou não pelos destinatários. Ocorrendo esta última circunstância, o aparato coativo do estado deverá ser acionado”. Assim, o direito é fato social coercitivo (obrigatório) que pode se valer da coação (força) para se afirmar.

5.3. Direito, Comunicação Social e Opinião Pública

5.3.1. Direito, Comunicação Social e Opinião Pública

5.3.1.1. Texto IntrodutórioA característica do Direito de operar a partir de impulsos da sociedade e a ela devolver resultados por meio do controle social faz com que ele seja marcado por uma relação importante com a opinião pública. Por sua possível relação ou identificação à soberania popular, a opinião pública é um recurso simbólico dos mais relevantes para a esfera das relações jurídicas e políticas. Constitui-se, muitas vezes, em um argumento irresistível, a respeito do qual ninguém ousaria discordar, na medida em que seria capaz de expressar a transição das opiniões individuais às coletivas e, por isso mesmo, representaria a síntese do pensamento da sociedade21.

O conceito de opinião pública não pode ser apresentado de forma definitiva, uma vez que encontrou variações ao longo do tempo, como será visto a seguir. Tem-se por consenso na atualidade, contudo, que a opinião pública não se reduz à soma das opiniões individuais, tampouco se identifica com o consenso ou com a unanimidade sobre determinado tema. Pode-se defini-la provisoriamente como um posicionamento favorável ou desfavorável do corpo social a respeito de uma ideia, um fato, uma pessoa um produto etc.22. Segundo João Pissarra Esteves, a opinião pública é “filha da razão” e é manifestada enquanto vontade coletiva através da liberdade de expressão do pensamento, liberdade de associação e, sobretudo, da liberdade de imprensa. É, portanto, o seu caráter racional e a sua forma de comunicação que formam os pilares do sentido moral e ético da opinião pública23.

Referências à opinião pública podem ser localizadas desde o pensamento das civilizações clássicas, como nas expressões “vox populi” (voz do povo), “opinião popular” (Heródoto), “voz pública da pátria” (Demóstenes) ou “apoio do povo” (Cícero). Em sua trajetória histórica, constata-se que o conceito de opinião pública transitou de uma relação com o uso público da razão, com a encarnação do valor da publicidade (isto é, da existência e da fruição de uma esfera pública), em que se consubstanciava no “produto do raciocínio público sobre os assuntos públicos”, para um emaranhado de opiniões parcamente relacionáveis com os

21 CAVALIERI FILHO. Sergio. Programa de sociologia do direito. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 176.22 CASTRO, Celso A. Pinheiro de. Sociologia aplicada ao direito. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 16823 ESTEVES, João Pissarra. A Ética comunicação e os media modernos: legitimidade e poder nas sociedades complexas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, pp. 198-202.

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sujeitos, porquanto mediadas pela atuação dos Mass Media (meios de comunicação de massa)24.

Sem prejuízo das referências remotas acima citadas, as concepções sobre a opinião pública que chegaram à atualidade têm suas raízes no liberalismo político e dos séculos XVII e XVIII. Metaforicamente, Jeremy Bentham falava de um “tribunal da opinião pública”, com o objetivo de desnudar e avaliar o poder político, com o objetivo de torná-lo transparente e controlável, uma vez que o segredo dos assuntos supõe a tirania dos governantes. O julgamento da opinião pública, em Bentham, é “para o exercício pernicioso do poder governamental a única medida (check); para o exercício benéfico, um suplemento indispensável. Os governantes competentes seguem-no; os néscios ignoram-no. No presente estádio da civilização, os seus ditames coincidem, na maior parte dos casos, com o princípio da maior felicidade” 25. Nesta fase, como foi dito acima, o conceito de opinião pública era ainda influenciado pelo ideal kantiano de publicidade e de esclarecimento dos assuntos públicos, próprio do ambiente iluminista, sendo resultante de uma discussão racional e crítica entre os cidadãos ativos.

A partir da segunda metade do século XIX, o conceito de opinião pública começa a ser influenciado cada vez mais fortemente pela inclusão de um contingente cada vez maior de pessoas no contexto democrático (constituindo uma democracia de massas, a partir da explosão demográfica, da universalização do sufrágio e, ainda, do reconhecimento de direitos de participação política quase indistintos), bem como pela evolução da comunicação social por meio de novos veículos tecnológicos de mediação simbólica (da televisão à internet). NAS SOCIEDADES MODERNAS, A OPINIÃO PÚBLICA ESTÁ INTIMAMENTE LIGADA COM A COMUNICAÇÃO SOCIAL DE MASSA, DE SORTE QUE A PERFORMANCE DOS SUJEITOS NA SUA FORMAÇÃO É FRANCAMENTE LIMITADA. Se houve, por um lado, o aumento numérico dos participantes na esfera pública, houve também, de outro lado, a dissolução da opinião pública em opinião publicada, perdendo-se em boa medida sua dimensão efetivamente crítica. Segundo Jürgen Habermas, “à medida que as pessoas privadas se tornavam públicas, a própria esfera pública assumia formas de fechamento privado (…). O debate crítico e racional do público também se tornou uma vítima desta “refeudalização”. A discussão como forma de sociabilidade deu lugar ao fetichismo do envolvimento na comunidade por si só”26.

As contradições que permeiam o conceito de opinião pública, desta forma, residem em fatores externos e internos. Do ponto de vista interno, é extremamente difícil, nas sociedades de massa da atualidade, operacionalizar um efetivo uso público da razão. Do ponto de vista externo, reconhece-se que a influência dos mass media não somente expõe as opiniões retiradas de deliberações sociais, mas em certa medida as constitui. Deste modo, a opinião pública midiatizada não reflete as subjetividades, mas molda as subjetividades a partir dos meios de comunicação de massa27. A imprensa, escreve Adriano Duarte Rodrigues, “veículo da

24 MATEUS, Samuel. A estrela (de)cadente: uma breve história da opinião pública. In: Estudos em comunicação. nº 4. Covilhã. Nov., 2008, pp. 59-80.25 BENTHAM, Jeremy. Constitutional Code. Vol. I. Oxford: Oxford University Press, 1983, p. 36. 26 HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Trad. Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 158.27 MATEUS, Samuel. A estrela (de)cadente: uma breve história da opinião pública. In: Estudos em comunicação. nº 4. Covilhã. Nov., 2008, p. 77.

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opinião publicamente produzida nos espaços de debate e convívio, torna-se pouco a pouco produção de opinião, substituindo-se, assim, ao trabalho de produção coletiva que orientava o projeto iluminista”28.

De outro lado, o aspecto qualitativo da opinião pública oferece desafios, na medida em que a população em geral desconhece os assuntos sobre os quais opina, não raro em matéria de Direito. A mídia brasileira, por outro lado, parece privilegiar aspectos estereotipados e sensacionalistas, deixando de oferecer ao público uma visão do cotidiano normal do sistema político e jurídico29. Não se apresentará livre de distorções, ainda, a consideração estatística da opinião pública. Este enfoque fará apenas com que a problemática aqui tratada, alusiva às condições pelas quais se forma a maioria ou a minoria, seja suplantada pela simples exposição, mediante relatórios baseados em investigações e pesquisas de opinião, da maioria ou da minoria constatada.

Por isso tudo, é seguro dizer que A OPINIÃO PÚBLICA DA MODERNIDADE, DISSOLVIDA NOS MASS MEDIA E COM SEVEROS DÉFICITS QUALITATIVOS, CONQUANTO SEJA UM VALOR SOCIOLÓGICO A SER CONSIDERADO, NÃO DEVE DE NENHUMA FORMA SERVIR COMO BALIZA PARA A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. Antes disso, é função deste último reagir ao quadro atual de dissolução da opinião pública, mormente quando não se sabe se o que está em jogo é efetivamente a vontade majoritária. Neste ponto, é salutar recordar o ceticismo de Hegel quanto à opinião pública: “Em si mesma, não possui ela a pedra de toque ou a capacidade de elevar a um saber o que tem de substancial; e, por isso mesmo, a primeira condição formal para fazer algo grande e racional é ser independente (tanto na ciência como na realidade)”30.

5.3.1.2. ContinuaçãoDentro da sociologia do direito é indispensável examinarmos a percepção que a sociedade nutre em face das instituições jurídicas. Estudar as relações entre opinião pública e o direito é estudar qual é a percepção que a sociedade tem do sistema jurídico normalmente considerado. Isso é indispensável para que nós possamos caminhar para a busca de uma maior efetividade e legitimidade social do próprio direito.

O estudo acerca da opinião pública e dos seus reflexos jurídicos foram desenvolvidos, sobretudo, nos Estados Unidos. São as chamadas pesquisas kol (knowledge and opinion about law).

São muito desenvolvidas nos Estados Unidos e possuem, claro, uma grande importância para a sociologia do direito. Essas pesquisas são pesquisas empíricas, decorrem da sociologia do direito, é uma ciência empírica, e são pesquisas baseadas no uso de questionários e entrevistas. E, particularmente, podem ser observados três níveis de análise sócio-jurídica nas pesquisas kol.

28 RODRIGUES, Adriano Duarte. Estratégias da comunicação: questão comunicacional e formas de sociabilidade. Lisboa: Editorial Presença, 1990, p. 41.29 SABADELL, Ana Lúcia. Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 181.30 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Lima. 2 ed. São Paulo: Ícone, 1997, p. 260.

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a) O primeiro nível é acerca do conhecimento do direito, conhecimento do direito por parte da população, da sociedade. Aí indaga-se se a sociedade conhece o direito.

b) O segundo diz respeito à aceitação do direito. A sociedade, uma vez conhecendo o direito posto, aceita o poder normativo? Ele goza de legitimidade social?

c) O terceiro nível de abordagem busca aferir a opinião pública sobre o funcionamento do sistema jurídico. E aí, indaga-se: será que o sistema jurídico, composto de instituições e de agentes (magistrados, advogados, policiais, promotores, procuradores), apresenta uma imagem positiva dentro da sociedade? Ou seja, a sociedade percebe essas instituições e esses agentes de uma forma positiva?

São três níveis de abordagem sócio-jurídica indispensáveis para a busca de uma maior efetividade e legitimidade social.

Conhecimento do Direito

Quando se examina o primeiro nível de abordagem, que é o conhecimento do direito, nós encontramos estudos sociológicos, indagamos, se os cidadãos efetivamente conhecem o conteúdo do sistema jurídico. E claro, teremos que reconhecer, em sociedades avançadas e, sobretudo, em sociedades periféricas ou semi-periféricas como a nossa, que o grau de desconhecimento do conteúdo das normas jurídicas é muito grande. O que compromete a efetividade do direito, a eficácia social das normas jurídicas. A norma constante da Lei de Introdução do Código Civil, segundo o qual a ninguém é dado alegar a ignorância da lei para eximir-se de obrigação e dever jurídico é uma norma necessária para permitir o funcionamento dogmático do sistema jurídico, mas é uma norma de baixa efetividade e eficácia social. Porque, se nem mesmo nós juristas conhecemos a totalidade das normas que compõem o direito positivo brasileiro, ainda mais um cidadão que não teve acesso à ciência jurídica.

Infelizmente é cada vez maior o desconhecimento da ordem jurídica e o afastamento da ciência jurídica em face do senso comum. As pesquisas sócio-jurídicas desenvolvidas no Brasil, sobretudo no RS e em SC, demonstram que esse desconhecimento varia conforme o ramo do direito. E isso é até perceptível por nós. Por exemplo, as pessoas elas conhecem um pouco mais do direito penal, depois um pouco mais do direito civil e do direito do trabalho, e nada conhecem, quase nada conhecem do direito constitucional, do direito eleitoral, do direito administrativo, e do direito tributário. Direito penal é mais conhecido porque o direito penal é a última barreira no centro de controle social e, portanto, as situações jurídicas são aquelas mais contundentes, mais coercitivas e mais coativas. Daí porque, é também porque o direito penal está muito atrelado à moralidade social, é mais fácil o indivíduo internalizar que matar alguém, que furtar, que mentir perante o juiz, são crimes. Entretanto, esse conhecimento do direito penal é muito rasteiro, e é seguramente, um conhecimento pouco significativo. De modo geral, o direito civil e o direito trabalhista são relativamente conhecidos. Nós temos noções legais do que seja personalidade, capacidade, contrato, obrigações, propriedade, sucessões. Temos uma relativa noção dos direitos trabalhistas, e isso tudo nós internalizamos a partir do conhecimento vulgar da mera observação da realidade social, mas enquanto

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cidadãos temos muita dificuldade de entender direito público. Para nós juristas isso não ocorre, nós temos acesso a esse conteúdo científico, mas o cidadão comum ele tem dificuldade em compreender os ramos do direito público.

Boaventura de Souza Santos afirma ser um grande desafio dentro da sociologia do direito da administração judiciária permitir essa maior aproximação entre sociedade e direito também no sentido de permitir um conhecimento maior do direito. E para tanto, nós precisamos com atenção simplificar a linguagem jurídica. Transformar a linguagem jurídica em uma linguagem mais acessível ao povo. Claro, linguagem jurídica não pode ser a mesma da linguagem vulgar. Mas o legislador precisa produzir leis com linguagem mais simples. Nós, ao escrevermos artigos e livros, precisamos usar também uma linguagem mais acessível para que também as pessoas que não façam parte da comunidade estritamente jurídica possam conhecer os seus direitos. Temos que utilizar cada vez com maio parcimônia o latim, para não incorrer em rebuscamentos linguisticos. Enfim, precisamos romper aquilo que Boaventura Santos chamou de “dominação oracular” através da linguagem que compromete o conhecimento do direito.

Aceitação do Direito

Na dimensão da aceitação do direito, temos que indagar se o direito posto é aceito pela sociedade. Verifica-se que muitas vezes o direito posto carece de legitimidade social. Por exemplo, todos sabem que o voto é obrigatório.

Se nos fizéssemos uma pesquisa kol para aferir a aceitação dessa norma do art. 14 da CR/88, constataríamos, sem sombra de dúvida, que a sociedade não concorda com a obrigatoriedade do voto porque não considera a obrigatoriedade do voto um instituto consentâneo com o Estado Democrático.

Se nós vivemos em uma democracia, porque não estender a facultatividade do voto e assegurar a liberdade do cidadão? Às vezes também a pesquisa kol no campo da aceitação do direito nos remete a resultados um tanto controversos. Pesquisas, por exemplo, sobre a adoção da pena de morte no Brasil apontam que as pessoas são contra a proibição da pena de morte, proibição expressa no art. 5º da Constituição, e são a favor da adoção da pena capital, sobretudo, em crimes hediondos.

E quando nós discorremos sobre a opinião pública acerca do funcionamento do sistema jurídico, nós percebemos que em muitas sociedades avançadas e, sobretudo, em sociedades periféricas e semi-periféricas, como a sociedade brasileira, há uma crença generalizada na seletividade da justiça. Há uma desconfiança por parte da sociedade na atuação de magistrados, promotores, e advogados. E essa percepção negativa acaba erodindo o respeito institucional e afastando a sociedade do Poder Judiciário e comprometendo de forma ampla o próprio acesso à justiça.

As pesquisas sobre opinião pública e seu impacto no direito são criticadas pelas distorções muitas vezes operadas pelos membros da comunicação de massa. De fato, meus amigos, não há como negar, que a mídia, malgrado a sua grande importância para a sociedade, muitas vezes distorce os fatos e muitas vezes antecipa o devido processo legal. Os processos

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midiáticos não respeitam a ampla defesa, não respeitam o contraditório, não respeitam a presunção de culpabilidade. E os processos midiáticos muitas vezes conduzem a opinião pública a posicionamentos equivocados, porque são precipitados, porque são sensacionalistas, porque são muitas vezes movidos por interesses inconfessáveis.

É por isso que Pierre Bourdieu, um autor também francês, autor de um livro chamado “A violência simbólica”, diz: a opinião pública não existe porque ela é o produto das distorções midiáticas, o que muitas vezes afasta a sociedade da busca da verdade.

Enfim, como fica a imagem e a dignidade dessas pessoas depois do processo midiático que não acompanhou o devido processo legal? Então, são questões interessantes, são questões muito importantes. Toda vez que ocorre um crime de notoriedade o Estado responde com leis severas, esquecendo o garantismo penal e buscando implementar o modelo penal; esquecendo Ferrajoli e lembrando de Jakobs, e ideia do direito penal do inimigo. E por que isso ocorre? Porque a produção de leis penais severas procura simbolicamente oferecer respostas à sociedade capazes de acomodar os anseios fugazes e emocionais, passionais da opinião pública, muitas vezes direcionadas pelos meios de comunicação de massa.

5.4. Conflitos Sociais e Mecanismos de Resolução. Sistemas Não Judiciais de Composição de Litígios.

5.4.1. Conflitos Sociais e Mecanismos de ResoluçãoA teoria jurídica caracteriza um conflito por uma quebra na harmonia intersubjetiva, uma insatisfação, decorrente de alguma pretensão pessoal que se choca com a pretensão de outro indivíduo. Esta insatisfação pode surgir porque a posição do outro não permite que minha pretensão seja satisfeita, ou porque o outro apresenta resistência explícita à minha pretensão. Dito de forma mais clara, um conflito surge sempre que meu desejo é limitado pela “resistência de outrem ou pelo veto jurídico à satisfação voluntária”31.

A teoria sociológica encara a problemática dos conflitos e dos métodos de sua resolução na perspectiva da sociologia dos tribunais. As pesquisas realizadas no campo da Etnologia Social e da Antropologia, entre os anos 50 e 70 do século passado, lograram demonstrar a existência de sistemas jurídicos totalmente diferentes dos que são registrados nas sociedades modernas. Estes sistemas concentravam-se na resolução particular de conflitos, sendo marcados pela participação comunitária e pela conciliação, mediada por um discurso eminentemente retórico, tópico-problemático e informal32.

Como reflexos destes avanços da Antropologia, surgiram inquirições sociológicas relativas às sociedades contemporâneas, que buscavam analisar, de um lado, a existência de várias ordens jurídicas gravitando em torno de um mesmo sistema social, e, de outro lado, a razão pela qual uma parcela significativa dos conflitos de interesses é resolvida por meios informais de que a sociedade dispõe. A Sociologia demonstrou, com isso, que a produção jurídica estatal, ainda

31 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo et. alli. Teoria geral do processo. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 20.32 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 10 ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 175.

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que seja prioritária, não é a única presente na sociedade. Demonstrou, igualmente, que a busca de resolução para os conflitos é orientada cada vez mais para fora da jurisdição estatal, dirigindo-se a meios mais baratos e céleres, disponíveis em estruturas sociais independentes33.

Estes resultados da Sociologia, levados a público na segunda metade do século XX, coincidiram temporalmente com o aguçamento do contexto de crise do Poder Judiciário. Com base nisso, foi natural que o estudo dos meios de resolução de conflitos sociais pudesse apresentar algum contributo relativo ao problema do acesso à justiça, no plano da admissão a um sistema de composição dos conflitos, da mudança do perfil deste sistema, ou, de resto, no plano da efetividade e da celeridade das decisões. Entre outros fatores, estas contribuições ajudaram a fomentar, até os dias atuais, mudanças no âmbito da resolução estatal de conflitos, na mesma medida em que foram ampliados os meios alternativos e não-judiciais de composição34.

No âmbito do processo judicial, houve uma sensível mudança no perfil na atividade judiciária. Como exemplos disso, podem ser citados a criação de órgãos judiciários especializados e dotados de maior celeridade e informalidade, a concessão ao magistrado de poderes mais significativos para a tentativa de conciliação ou transação — inclusive na esfera do direito penal —, e, ainda, o desenvolvimento de técnicas diferenciadas de manejo da tutela jurisdicional. Não obstante, estas reformas no plano da justiça estatal, ainda que representem avanços, não foram suficientes para dar conta dos incessantes e cada vez mais complexos conflitos sociais que a pós-modernidade traz consigo35. Foram igualmente importantes, em termos de sociologia judiciária, proposições que levassem em conta os métodos não-judiciais de composição de litígios.

5.4.1.1. Os Conflitos e as suas SoluçõesÉ indiscutível que o homem nasceu para viver em sociedade e para completar-se com outro ser de sua espécie, buscando, dessa forma, realizar seus ideais de vida. Porém conflitos entre os interesses, sejam eles, individuais, coletivos ou difusos, e as necessidades de se proporcionar proteção às prerrogativas naturais, nascem com os seres humanos e sempre foram uma constante na vida social.

É certo que toda a sociedade e seu sistema jurídico deve prover à população modos de solucionar seus conflitos, exercer seus direitos e deduzir suas pretensões, tendo em vista que, por lei, o sistema judicial deve estar ao alcance de todos em condições de igualdade.

No decorrer dos séculos, a humanidade continuamente se preocupou com a criação e o aperfeiçoamento dos meios de pacificação dos conflitos, até atingirmos a etapa referente ao processo judicial, com todas suas garantias constitucionais.

33 SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder: ensaio de sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988, pp. 5-6, nota n. 234 FIGUEIRA JUNIOR. Joel Dias. Manual da arbitragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 60.35 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 10 ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 176.

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No início dos tempos a vingança era o modo de fazer justiça – era chamada de autotutela ou autodefesa. Vigorava a Lei da XII Tábuas, originária da Lei do Talião – olho por olho, dente por dente, em que se limitava a vingança ao tamanho do dano.

Este modelo foi gradativamente substituído pelo autocomposição que ao invés de fazer uso da vingança individual ou coletiva contra o ofensor, a vítima era ressarcida por meio de uma indenização estabelecida por um árbitro, momento em que o Estado começa a intervir obrigando a adoção da arbitragem pelas partes quando estas não resolviam consensualmente, e assegurando a execução da sentença.

O estabelecimento do juiz estatal se deu no momento em que o magistrado romano, até então sem poder jurisdicional, chamou para si a responsabilidade de solucionar o litígio entre as partes em nome do Estado, missão que até então era exercida por um terceiro, particular, árbitro, escolhido pelos próprios contendores ou por indicação do magistrado.

O processo nasceu no instante em que a composição da lide passa a ser função estatal, surgindo a jurisdição em sua feição clássica, ou seja, o poder-dever dos juízes de dizer o direito na composição das pendências. Todavia, se as partes concordassem, era lícito dirimir o conflito mediante a designação de árbitro. Quanto a processualística, esta só se definiu em meados do século passado, e atravessa uma fase de busca por estratégias mais rápidas e eficazes.

Hodiernamente as soluções dos conflitos se realizam às custas da intervenção estatal materializada na decisão judicial, dotada de coerção típica da atuação soberana do Estado, ou à margem de qualquer atividade estatal como ocorre nos meios alternativos de solução de conflitos.

5.4.1.2. A Crise do ProcessoFigueira júnior diz que estamos vivendo uma tendência universal de reestruturação do processo civil, que se prepara para atender às exigências do mundo contemporâneo, através de uma busca incessante de um processo de resultados, um processo que seja um instrumento político de pacificação social que seja hábil a prestar a efetiva tutela perseguida pelos jurisdicionados.

Eduardo Medina por sua vez afirma que há nos dias atuais, um descompasso entre o instrumento processual e a célere e segura prestação da tutela por parte do Estado-juiz. O que os processualistas têm afirmado é que “o processo está em crise!”.

Inúmeros são os fatores que retardam a prestação da tutela jurisdicional pelo Estado, e neste Estudo apontaremos alguns.

O arcaísmo aumenta a lentidão, a ineficiência e a desordem na condução dos processos, fomentando o desprestígio da administração da justiça, que gera a insatisfação e descrédito dos jurisdicionados. Conforme bem ilustrou Rui Barbosa “justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”.

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Para o êxito da utilização do processo como meio de alcançar a justiça há custos que devem ser levados em consideração como o custo econômico da transação; a conformidade mútua das partes com o resultado, ou seja, a satisfação dos interesses e a crença em um resultado justo; o efeito produzido na solução da relação entre as partes; e por fim a reincidência do conflito, ou seja, a durabilidade da pacificação das partes e a possibilidade de que se reitere o conflito no futuro.

Ressalta-se que, para Alvaréz, o termo “Justiça” deve ser utilizado em uma dupla acepção.

Primeiro como valor de equidade político-social e individual, e segundo como meio típico do poder judicial.

Ele destaca que é necessário ainda definir os objetivos públicos em matéria de justiça. Por um lado o objetivo a alcançar pode ser definido como a possibilidade dos sujeitos de direitos obterem a tutela judicial, e por outro lado esse objetivo pode ser definido como a possibilidade de aquiescer, com o menor custo possível, a um procedimento mais efetivo – não necessariamente o judicial – de tutela dos próprios direitos.

A diferença entre ambas as formas se aprecia facilmente, pois a primeira se define como objetivo de política pública com criação de mais tribunais para melhorar a eficiência, a segunda conduz a diversificação das formas de resolução de conflitos através de mecanismos alternativos, desjudicializando a administração da justiça.

Há boas razões para optar pelo segundo objetivo, em busca de uma política de justiça que deve ter como objetivo favorecer o cidadão com a possibilidade de proteção de seus próprios direitos, definindo um objetivo que visa o bem-estar social através da facilitação do acesso a um procedimento mais efetivo; proporcionando mais tutela a um menor custo; diversificando as formas de resolução dos conflitos; desjudicializando o sistema; instaurando a cultura do diálogo e abandonando a cultura do litígio.

O Professor Leonardo Greco em seu texto Acesso ao direito e à justiça alerta para o fato de que “muitos direitos se perdem porque seus titulares não estão dispostos a lutar por eles, conscientes de que nenhum proveito concreto lhes trará a proteção judiciária tardia, ou, até, de que os ônus e sofrimentos da perseguição do direito sobrepujarão o beneficio de sua conquista” e diz ainda que “mais do que em países ricos, acesso a justiça dependerá, em grande parte, da estruturação e fortalecimento de varias modalidades de tutela jurisdicional diferenciada”.

A verdade é que as exigências do mundo contemporâneo não são mais as dos nossos avós e muito menos as da Roma antiga, o que justifica a buscar incessantemente mecanismos diversificados e hábeis à solução dos conflitos fora do sistema judicial tradicional, rompendo-se definitivamente com a quebra do monopólio estatal da jurisdição, a fim de melhor adequar a ação de direito material a ação de direito processual.

Vislumbra-se então, nesse novo cenário mundial, que as cortes estatais de justiça não são os únicos foros para a resolução dos conflitos ou disputas e a busca da satisfação de pretensões

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resistidas ou insatisfeitas, principalmente pela circunstância dos elevados custos e da demora da prestação da tutela jurisdicional oferecida pelo Estado-juiz, dentre outros entraves.

Constata-se que o processo pode se realizar à margem de qualquer atividade estatal como, por exemplo, a chamada mediação, que leva a conciliação espontânea, aparecendo como relevante a atividade dos interessados na busca da solução comum; pode também o processo realizar-se através da intervenção estatal, materializada na decisão judicial; ou ainda, em meio aos dois pólos, de forma paraestatal, isto é, sob os auspícios e garantias do Estado, mas com a decisão delegada a particular, cujas decisões se afirmam, inclusive com sanções típicas da solução estatal.

Sendo assim, verifica-se que os métodos alternativos de solução dos conflitos surgem como novos caminhos a serem trilhados facultativamente pelos jurisdicionados que necessitam resolver seus litígios e são melhor compreendidos quando enquadrados no movimento universal de acesso à justiça.

5.4.2. Sistemas Não Judiciais de Composição de LitígiosOs mecanismos resolução dos conflitos sociais podem ser classificados entre a autotutela, a autocomposição (direta ou assistida) e a heterocomposição. Os mecanismos judiciais ocupam espaço no plano da heterocomposição, ou da autocomposição assistida, mas ainda assim parcialmente. Nos demais casos, e de acordo com a matéria tratada, é possível que as partes em conflito encontrem meios de resolver o caso sem recorrer ao Poder Judiciário, ou mesmo de fazê-lo sem recorrer a ninguém36. Estas possibilidades, em que não há a intervenção da jurisdição estatal, têm recebido a designação genérica de ADR - Alternative Dispute Resolution (resolução alternativa de conflitos)37.

A AUTOTUTELA compreende os procedimentos levados a efeito para garantir a realização de pretensões pelo seu próprio titular, sem um interesse de resolução bilateral do conflito, constituindo uma categoria identificável de forma generalizada somente em períodos primitivos da história da humanidade. Atualmente, a autotutela só é permitida em casos excepcionais, para os quais a própria lei abre exceção, como no caso do desforço imediato, em matéria de direito possessório, ou no caso da legítima defesa, na seara do direito penal38.

A AUTOCOMPOSIÇÃO DIRETA é aquela que ocorre entre as partes, sem a intervenção de um terceiro imparcial. A dinâmica da autocomposição direta demanda que seja vislumbrada alguma vantagem, material ou imaterial, que possa convencer as partes de que a geração de um consenso seria mais vantajosa do que a disputa. Fala-se, nestes casos, em transação, conciliação ou, simplesmente, em acordo. O termo transação é utilizado tecnicamente para definir o acordo que previne ou extingue obrigações através de concessões mútuas, ao passo 36 COSTA, Alexandre Araújo. Cartografia dos métodos de composição dos conflitos. In: AZEVEDO, André Gomma de (org.). Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. 1 ed. Vol. 3. Brasília: Editora Grupos de Pesquisa, 2003, pp. 161-20137 Para um comentário sobre as ADR´s em espécie, vide FIGUEIRA JUNIOR. Joel Dias. Manual da arbitragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, pp. 63-67. 38 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo et. alli. Teoria geral do processo. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 29.

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que o termo conciliação significa “a composição amigável sem que se verifique alguma concessão por quaisquer das partes, a respeito do pretenso direito alegado ou extinção de obrigação civil ou comercial” (por meio de desistência da pretensão ou reconhecimento de procedência à pretensão do outro)39.

Da AUTOCOMPOSIÇÃO ASSISTIDA seguem os mesmos efeitos da autocomposição direta, com a diferença de que existe a figura de um terceiro imparcial, que auxilia as partes a encontrar uma solução amigável para o conflito que protagonizam. Aqui incluem-se todas as técnicas identificadas sob o título de mediação, nas quais, ressalte-se, a solução resulta de consenso das próprias partes, embora com auxílio do mediador. A conciliação ou a transação podem ter lugar, como se viu acima, de forma direta ou assistida, sendo neste último caso, resultado de uma mediação (como ocorre com os conciliadores nos Juizados Especiais, que são, nos termos aqui expostos, mediadores judiciais). Não há, contudo, que se confundir os dois termos: transação ou conciliação são efeitos da mediação ou da autocomposição direta40.

Por fim, cumpre referir a HETEROCOMPOSIÇÃO, que se caracteriza pela resolução heterônoma (exterior) do conflito. É neste plano, portanto, que está localizada a atividade jurisidicional. No plano da HETEROCOMPOSIÇÃO NÃO-JUDICIAL, de que ora se cuida, a ARBITRAGEM surge como principal meio alternativo, desde que se trate de direitos patrimoniais disponíveis. Na arbitragem, as partes submetem a questão à avaliação de um árbitro, dentro de certas condições legais e convencionais41, para que ele exerça a jurisdição e solucione o conflito. Esta modalidade tem os auspícios do Estado, porquanto encontra-se regulamentada por lei e está dotada de “sanções típicas de solução estatal” — assim, fala-se em juízo arbitral —, sendo um instituto de natureza paraestatal42. Deste modo, embora a adoção do procedimento de arbitragem seja realizada de forma livre pelas partes, sua implementação é feita de forma compulsória, assim como a imposição de seus efeitos.

5.4.2.1. Meios Alternativos de Resolução de Conflitos e Operadores do DireitoOs advogados têm o dever ético de orientar o cliente sobre as diversas formas de solução do conflito, e em função da pressão dos próprios clientes, dos juízes e da realidade da morosidade da justiça muitos escritórios estão organizando e divulgando serviços de meios alternativos em alguns países.

Porém, inúmeros são os obstáculos ao envolvimento dos advogados no Brasil, dentre eles: a não familiaridade, por falta de educação ou interesse, e o medo do desconhecido combinado com medo de perda de receita.

Eduardo Medina aponta outros fatores que são a escassa literatura especifica sobre o assunto no Brasil e o reduzido número de cursos jurídicos que tenham em seus conteúdos programáticos disciplinas deste tema.39 FIGUEIRA JUNIOR. Joel Dias. Manual da arbitragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 72. 40 COSTA, Alexandre Araújo. Cartografia dos métodos de composição dos conflitos. In: AZEVEDO, André Gomma de (org.). Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. 1 ed. Vol. 3. Brasília: Editora Grupos de Pesquisa, 2003, pp. 161-20141 Sobre as condições e termos da arbitragem, vide CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei n. 9.307/96. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006.42 FIGUEIRA JUNIOR. Joel Dias. Manual da arbitragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 68.

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Ocorre que a cultura jurídica brasileira tem como fundamento que, pela tradição, só o Estado é capaz de resolver os litígios entre as partes, e temem a solução originária de particulares, além de pré-estabelecerem que as partes nunca poderão se conciliarem, mas sempre serão contendores, donos de uma única verdade, e assim, os operadores do direito, em especial os advogados, saem em busca da “Justiça!” e não da simples solução do conflito.

Ressalta-se que código de disciplina da Ordem dos advogados do Brasil prevê o dever do advogado “estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios”.

Assim, os advogados, como possuem o primeiro contato com as partes, são de fundamental importância, pois no momento da orientação jurídica, deverão, ao nosso entender, fazê-la demonstrando a escolha do melhor método alternativo ao seu cliente, bem como continuar atuando durante o desenvolvimento do processo alternativo em busca da solução mais satisfatória oferecendo mais atenção aos efetivos interesses e necessidades dos seus clientes, enfim, utilizando os meios alternativos para o real acesso à justiça do jurisdicionado.

5.4.2.2. Empecilhos à Aplicação dos Meios Alternativos de Solução de ConflitosPara se atingir escopos de socialização do processo e de justiça participativa faz-se mister que haja uma mudança da postura da mentalidade dos operadores (advogados, magistério, Ministério público e serventuários) e dos consumidores do direito (os destinatários das normas, os jurisdicionados), arraigadas nos nossos costumes.

Não basta apenas a previsão normativa constitucional e principiológica do acesso à justiça; faz-se mister a existência de mecanismos geradores da efetivação dos direitos subjetivos, cuja realização verifica-se por intermédio de instrumentos que possibilitem a consecução dos objetivos perseguidos pelo autor com rapidez, isto é, dentro de um período de tempo razoável e compatível coma complexidade do litígio, proporcionando ao beneficiário da medida a concreta satisfação do escopo perseguido.

Em um primeiro aspecto, é necessário reconhecer a crise não somente do processo, mas de toda a estrutura estatal de solução de conflitos, uma vez que o judiciário é complexo, lento, caro e quase sempre inacessível aos hipossuficientes, e que as iniciativas tomadas no intuito de melhorar o desempenho da jurisdição estatal, como, por exemplo, a Lei nº 9.099/95 e a lei que instituiu a arbitragem vêm colaborando nesse sentido de melhorar a prestação jurisdicional do Estado, porém são ainda insuficientes.

Há que se dizer, ainda, que a consagração da arbitragem não contraria a regra – essencial aos Estados Democráticos de Direito – de monopólio estatal da jurisdição . Este monopólio continua existindo, mesmo com a aprovação da lei de arbitragem. É de se afirmar, porém, que se o estado tem o monopólio da jurisdição, não tem o monopólio da realização da justiça. Esta pode ser alcançada por vários meios, sendo a jurisdição apenas um deles.

Eduardo Medina aponta um segundo aspecto que é o mito da imposição de grupos econômicos fortes e do neoliberalismo econômico, que buscam os meios alternativos para afastar da tutela estatal os consumidores e as pessoas mais frágeis.

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Porém não prospera tal razão, pois sabemos que meios alternativos como a arbitragem, existiam desde a babilônia há 3.000 anos a.C., com a presença de juizes particulares, sendo anterior ao liberalismo, além de ser uma ofensa ao trabalho dos juristas que se manifestam sobre o tema, e elaboram textos como o da lei nº 9.307/96.

Dentre vários outros óbices utilizados como obstáculos à utilização dos meios alternativos destacamos outro mito que diz respeito à privatização do Processo.

Vitório Dentis citado por Cappelletti diz que os movimentos conciliatórios tendem a perseguir duas finalidades: a) maior eficiência do aparelho da justiça e b) “privatização” através da atividade mediadora.

Em contrapartida Cappelletti diz que tal análise pode ser correta, mas não compartilha as valorações negativas do fenômeno, alegando que a decisão judicial emitida em sede contenciosa, presta-se a resolver relações isoladas, relativa a um episódio do passado, não destinado a perdurar.

Ao contrário, a justiça coexistencial dos meios alternativos não visa decidir, mas “remendar” uma ruptura, em preservação do bem mais duradouro, a convivência pacifica de sujeitos que fazem parte de um determinado grupo.

E diz ainda que a razão que acentua a forma coexistencial consiste justamente na privatização criticada por Denti, onde aparenta a história dos últimos anos o progresso onde se verifica a oportunidade de por um limite às intervenções Estatais, que com frequência se revelou demasiadamente lenta, formal, rígida, e burocraticamente opressiva.

Sendo assim, não há que prosperar qualquer pretensão de valoração negativa da privatização da solução dos conflitos sociais através dos meios alternativos.

Convictos estamos de que esses empecilhos ou mitos poderão ser superados através da instituição de órgãos de planejamento permanente, criando escolas de formação e aperfeiçoamento, promovendo conclaves nacionais e internacionais, investindo em pesquisas e meios alternativos de resolução de conflitos, fazendo com que seja superada a insatisfação generalizada dos jurisdicionados, em dimensões mundiais, com a ineficiência da jurisdição estatal.

5.5. Extratificação SocialO termo estratificação é usado na geologia para indicar a estrutura das rochas que são compostas por diversas camadas ou estratos.

As ciências sociais usam o termo metaforicamente, para indicar que a sociedade é dividida em vários grupos sociais, constatando-se um fenômeno de superposição ou hierarquização dos mesmos.

A sociologia mostra que existem classes sociais e indica as grandes diferenças entre elas.

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Para Sabadell, o Direito ignora as classes sociais, pois é, com poucas exceções, “neutro”, considerando todos os indivíduos livres e iguais, cabendo à sociologia jurídica as consequências disso. Para ela, existem duas tendências principais da abordagem da estratificação social, a marxista e a weberiana.

A análise marxista considera que as classes resultam do modo de produção predominante em cada sociedade, de forma que, nas sociedades atuais, existiriam apenas duas classes principais, os capitalistas e os proletários.

Já os sociólogos que seguem a linha weberiana, admitem, ao contrário, a existência de uma multidão de “estamentos” ou “grupos” de status. Nesta perspectiva é importante especificar a localização do indivíduo na estratificação social segundo critérios múltiplos, como grau de educação, nível de renda, tipo de profissão, religião, espaço de moradia (rural ou urbano), comportamento, prestígio e mentalidade.

Apesar de utilizar múltiplos critérios, em última análise, prevalece na linha weberiana o critério da renda dos indivíduos, já que os outros critérios, como a profissão, o nível educacional e o prestígio social, são estreitamente relacionados com a renda. A diferença, segundo Sabadell, é que os marxistas utilizam o critério econômico de forma qualitativa (posse ou não dos meios de produção), sendo que os weberianos realizam um uso quantitativo, de forma que podemos dizer que existem duas linhas principais de definição das classes sociais na sociologia: a perspectiva qualitativa (marxista) e a perspectiva quantitativa (weberiana).

6. Ética e Estatuto Jurídico da Magistratura Nacional

6.1. IntroduçãoO Código de ética da magistratura nacional se dirige a todos os magistrados, sem distinção alguma e impõe normas de comportamento tidas como ideais, a conduta ideal dos magistrados.

Todo aquele que ingressar na magistratura receberá, no momento da posse, um exemplar do código de ética da magistratura.

De onde surgem os parâmetros éticos de comportamento dos magistrados? As próprias consideranda, ou seja, as considerações, as fundamentações do Código de Ética já desenvolvem uma noção, eles invocam o artigo 35 da LOMAN. O artigo 35 da LOMAN estabelece os deveres do magistrado. Depois, no próprio corpo do Código de Ética se encontra afirmação de que ele procura esmiuçar os deveres dos magistrados; então note que o Código de Ética da Magistratura buscou subsídios na legislação existente, nos deveres estabelecidos para os magistrados.

O código de ética é só uma exortação a um comportamento ético ou ele tem validade vinculativa, vale dizer, se o magistrado não se portar eticamente nos termos do código de ética, haverá consequências?

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O código de ética nasce de um dever já existente, apenas ampliando os conceitos já previstos na LOMAN. O código de ética nada mais faz portanto, do que ampliar, explicitar os deveres dos magistrados já existentes na legislação.

Então, de fato, O CÓDIGO DE ÉTICA TEM CARÁTER SIM VINCULATIVO, DECORRE DE EXIGÊNCIA LEGAL, MAS NADA MAIS É DO QUE UMA AMPLÍSSIMA INTERPRETAÇÃO DA REGRAS ATINENTES AOS DEVERES DOS MAGISTRADOS JÁ EXISTENTES NA LEGISLAÇÃO.

O código de ética, por ter origem legal vincula o magistrado no seu comportamento, na sua conduta funcional; não se trata de mera exortação ética, mas sim dever funcional . Isso significa que o juiz que quebra o comportamento ético, quebra também a sua conduta funcional e, portanto, poderá está sujeito a responsabilização administrativa, sanção penal e até civil.

O código de Ética fala claramente que o juiz ético é o juiz que contribui para a consecução dos direitos fundamentais e também para a democracia. Então há passagens do código de ética que faz essa afirmação. Como é que o magistrado pode contribuir para a consecução dos direitos fundamentais e para a concretização da democracia no país ao mesmo tempo sendo ético? Ou seja, ele é ético quando contribui para a consecução dessas categorias jurídicas e quando ele não contribui ele é antiético? Para responder a essa pergunta vamos ao artigo 3º da CR. Veja, a CR/88 traz um núcleo protetivo e que encerra o interesse público do Estado.

Todos nós sabemos que o fim do estado é o atendimento geral do interesse público, daí surjem diversos princípios, como impessoalidade, eficiencia etc., mas existe um núcleo fundamental na CR que estabelece os objetivos fundamentais para a constituição da República Federativa do Brasil. Então o artigo terceiro esclarece quais são esses objetivos.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O Poder Judiciário exerce parcela do poder estatal; se ele exerce parcela do poder estatal, ele está atrelado aos objetivos do Estado. O Estado cria o Poder Judiciário e o Poder Judiciário tem que agir conforme os seus objetivos. E quais são os objetivos do Estado? Eles estão inseridos no artigo 3º da CR.

Esse núcleo protetivo diz, em linhas gerais, que a igualdade substancial deve ser atingida mediante a erradicação da pobreza, diminuição das desigualdades sociais, desenvolvimento

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nacional. Para se obter a igualdade substancial, é necessário que sejam atendidos certos direitos de conteúdo social, que estão previstos no artigo 5º, especialmente no artigo 6º, e outros artigos da CR.

Garantindo e efetivando direitos sociais o Estado promove a igualdade substancial, atendendo o artigo 3º da CR. A concessão de direitos fundamentais sociais não é atribuição primária do Poder Judiciário, mas é atribuição primária das demais formas de expressão do poder do Estado, ou seja, Poder Legislativo e Poder Executivo, que desenvolvem as chamadas políticas públicas.

O que são políticas públicas? Políticas públicas são um conjunto de atos que o estado pratica para atender ao interesse público, para atender os direitos fundamentais sociais.

Então, na verdade, o comportamento do Poder Judiciário tem um caráter mais eventual, porque, ao legislativo e executivo cumprem prioritariamente atender políticas publicas, agora quando eles não cumprem políticas publicas, residualmente, o judiciário vai ter que examinar a inconstitucionalidade dessa omissão.

Então, voltando à indagação, como é que o juiz pode ser ético e ao mesmo tempo atender a democracia e aos direitos fundamentais? Ética, segundo o professor Goffredo da Silva Telles, nada mais é do que a satisfação e o cumprimento ou satisfação do bem soberano da humanidade.

Existem certos bens que a sociedade reputou de maior importância. Depois da segunda guerra mundial, em que no ano de 1945 foram devastadas as cidades de Hiroshima e Nagasaki com artefato atômico, a humanidade ficou aniquilada, tendo o valor humano sido simplesmente desmanchado. A declaração de direitos humanos de 1948 veio como uma restauração ética, como diz o prof Fábio Konder Comparato, na sua reconstrução dos direitos humanos. A ética surge agora como uma nova vestimenta, impulsão de caráter internacional, os Estados se reúnem para declararem que os direitos, os valores mais importantes da sociedade são os direitos humanos, direitos individuais, direitos de primeira, segunda, terceira e outras gerações; então há uma restauração à ética.

Então essa progressiva internacionalização dos direitos humanos produziu a precipitação dos direitos fundamentais no bojo das constituições. Aquilo que se chamava direitos humanos, segundo a doutrina portuguesa, passou a se chamar direitos fundamentais, porque inseridos no bojo de uma constituição e merece integral proteção do Estado.

Ora, se ao Poder Judiciário cabe atender aos objetivos do Estado, que é uma forma de expressão do poder estatal, ao Poder Judiciário cumpre atender o disposto no artigo 3º da CR. E para que se atenda o disposto no artigo 3º é necessário que se atenda o disposto no artigo 6º da CR, direitos fundamentais sociais. Quando as demais formas de expressão do poder, legislativo e executivo, são omissas, aí intervém o Poder Judiciário, para atingir esse objetivo.

Então, todas as vezes que o Poder Judiciário concede direitos fundamentais, principalmente de caráter social, ele está igualando os desiguais, criando igualdade substancial, e assim o

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fazendo ele torna a democracia mais forte, porque não é possível que alguém delibere na democracia quando nem mesmo a sobrevivência está garantida; como é que eu posso optar pelo destino de um Estado, uma democracia, exercer o meu direito de voto, quando eu estou com fome? É nesse momento que há arbitrariedade, o uso do dinheiro, o uso dos valores econômicos para compra de votos, para a compra da dignidade humana, para a compra do direito à cidadania. Então o cidadão, infelizmente, ele troca o seu direito de cidadão por um pedaço de pão. Então se o Estado não pode deixar isso acontecer, se o Estado permitir que isso ocorra, se a omissão dos demais poderes chegar a tal ponto que os demais poderes manipulem as massas através de concessões através de concessões de sobrevivência, de mera subsistência biológica, então acabou-se a democracia, nós temos um factóide, uma democracia formal, como diz o professor José Afonso da Silva, não é uma democracia substancial.

ENTÃO A DEMOCRACIA SUBSTANCIAL EXIGE QUE O CIDADÃO SEJA EFETIVAMENTE CIDADÃO, o Estado tem que permitir que o cidadão tenha condições econômicas de administrar o seu voto; nós temos hoje uma grande margem de pessoas que estão afastadas da possibilidade de deliberação como cidadão porque não possuem condições econômicas. E aí o Poder Judiciário vem como ultimo recurso para a restauração disso. Daí porque o código de ética faz essa afirmação de que atua eticamente, ou seja, renovação ética da carta de 1948 ela é efetivamente implementada quando o juiz concede e protege os direitos fundamentais, e assim garante uma democracia material, substancial, porque garante a igualdade substancial, e por via de consequência atende os objetivos do estado.

Então o juiz ético é o juiz que atua de acordo com o artigo 3º da CR, com plena independência, é aquele que realmente, com a sua independência e imparcialidade examina e concede direitos fundamentais e por via de consequência está garantindo a democracia no país. Isso é importantíssimo, mas não se faz isso para se mostrar, para dizer que está realizando, faz de forma silenciosa e dentro dos limites de sua atuação e de forma residual.

Vamos agora começar examinar os direitos previstos no artigo 35 da LOMAM, vamos ser agora mais pontuais sobre a matéria específica, vamos ver agora esses deveres dos magistrados, nos quais surgiram as regras de comportamento ético do código de ética da magistratura nacional.

6.2. Deveres dos Magistrados

6.2.1 Deveres Previstos na LOMAN (art. 35)O art, 35 da LOMAN tem que ser lido com bastante cuidado, porque tem sido questionado algumas coisas na prova sobre isso.

São deveres do magistrado, ou seja, ele deve cumprir dessa forma.

Dos Deveres do Magistrado

Art. 35 - São deveres do magistrado:

I - Cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício;

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Cumprir e fazer cumprir significa não só os atos judiciais examinados, como também as atividades dos escrivães e fazer cumprir significa não só da escrivaninha, mas também as suas decisões, o juiz não pode produzir um provimento jurisdicional e se calar depois quando for o momento de sua execução, é seu dever funcional fazer cumprir; daí porque a execução deve ser tratada com o maior carinho pelo magistrado para fazer com que a coisa julgada efetivamente se projete para o exterior.

II - não exceder injustificadamente os prazos para sentenciar ou despachar;

A regra, infelizmente, tem sido o extrapolamento dos prazos, porque o volume de processos hoje é muito grande, está muito além daquilo que o legislador infraconstitucional imaginava que iria. Quando do primeiro Código Civil não se imaginava que a CR ia produzir tantas demandas assim, então o que temos hoje é uma quantidade enorme de demandas. Os tribunais, até por questões orçamentárias, estão procurando novas formas de suprir essas dificuldades. O ideal, segundo a organização mundial da saúde, seria que cada magistrado trabalhasse com certa com 500.000 feitos distribuídos por ano, mas isso não vai existir aqui no Brasil nunca, a não ser em determinadas varas de muito pouca movimentação. Então os magistrados atuam com uma carga muito superior à que a Organização Mundial da Saúde indica pra trabalhar. Daí porque isso é alvo eventualmente de indagação em concurso, porque o proprio CNJ com a resolução própria assim o definiu. Existem certas técnicas de organização judiciária e de racionalização do trabalho que precisam ser utilizadas.

O que nós temos hoje em matéria de tecnologia judicial para atender as demandas de números elevados de processos em todo país?

Uma das soluções é possibilitar que os atos de mero expediente sejam delegados aos escrivães. Essa hipótese que já era prevista no CPC foi explicitamente consignada na CR. Então como alternativa para a impulsão desses processos de forma mais automatizada, despacho de mero expediente pode ser conduzido pela escrivaninha; isso significa que o juiz pode realizar uma disciplina dessa matéria através de portaria por exemplo. Os estados, as corregedorias podem estabelecer normas que disponha sobre isso. Então aquele funcionamento como vista às partes, junta de documento, isso não precisa voltar para o magistrado, isso pode ser feito de forma normal pela serventia, é uma tecnologia que deve ser estimulada e deve ser usada como forma de diminuir a quantidade de conclusões. Então essa alteração da CR promovida pela EC nº 45/04 veio a atingir isso; a primeira forma de racionalização a própria CR traz, que é através da DELEGAÇÃO DE ATOS À SERVENTIA.

Mas há mais, hoje se discute o PROCESSO DIGITAL, e essa é uma realidade, isso é um fato, isso vai ocorrer, é irreversível, todos os estados da federação já estão se preparando, e no futuro, num prazo médio, o processo digital será uma realidade. E o processo digital tem uma virtude, ele acaba com aquela pilha de processos. Quem já viu uma escrivaninha de processos físicos, principalmente nos juizados, fica boquiaberto porque aquela quantidade de processos todos espalhados pelo cartório, aquilo é substituído por alguns micros que ficam em determinado departamento. Então o que acontece é que a escrivaninha fica no próprio micro, e o juiz despacha através das vias de comunicação. Então, as vezes um foro regional inteiro fica dentro

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de uma sala no tribunal de justiça, ou as vezes vários foros regionais ficam de uma mesma sala. Então, até a questão de espaço fica otimizado, o numero de funcionários diminui também.

Mas, mais do que isso, o STJ pela enorme carga de demanda, tem utilizado um SISTEMA DE FUNDAMENTAÇÃO ADEQUADA, MAS NÃO EXAUSTIVA; significa dizer que os acórdãos são redigidos de forma extremamente bem elaborada mas dentro daquela extensão necessária para a resolução do litígio.

Hoje se exige que o magistrado, o CNJ tem exigido isso, que o magistrado tenha um conhecimento administrativo da atividade jurisdicional. Como assim? Antes só se imaginava o magistrado como um receptor de conclusões a aí ele prolatava sua decisão, hoje, com tantas conclusões, com um numero tão grande de processos, o magistrado precisa organizar administrativamente sua serventia, então ele precisa estar de acordo, examinando o comportamento da serventia e resolvendo problemas da serventia que criam obstáculos, então, mais do que nunca exige-se do magistrado um comportamento administrativo.

O magistrado excelente hoje é aquele que detém conhecimento, não só jurídico e ético, mas em especial detém conhecimento de administração, capaz de organizar e resolver problemas dentro do cartório.

O juiz, na verdade, é chamado para o conhecimento de informática, porque hoje em função das inúmeras demandas repetitivas, as sentenças são produzidas em série; um dos recursos existentes são as tabelas processuais unificadas, utilização de certas classificações comuns nos processos que permitem a identificação de causas semelhantes, prolatando-se sentenças de igual teor, apenas com pequenas adaptações para o caso concreto.

O prazo máximo admissível pelo CNJ para que uma sentença seja prolatada é de 100 dias.

III - determinar as providências necessárias para que os atos processuais se realizem nos prazos legais;

É intuitivo esse dever.

IV - tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça, e atender aos que o procurarem, a qualquer momento, QUANDO SE TRATE DE PROVIDÊNCIA QUE RECLAME E POSSIBILITE SOLUÇÃO DE URGÊNCIA.

O que é tratar as partes e todos os figurantes do processo com urbanidade? A educação e a cortesia, isso está no nosso código de ética. O juiz presta um serviço de alta relevância, direito fundamental para o cidadão, o juiz não está fazendo favor para ninguém, e isso é um postulado ético básico. Então tratar com urbanidade é cortesia.

A urbanidade faz parte da ética, o juiz tem que estar preparado para escutar inclusive críticas da sua atuação, isso está no código de etica; então se fizerem pergunta para você nesse sentido, você tem que ter tranquilidade escutar a crítica e absorver aquilo, desde que não haja extravasamento, não haja excesso.

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Mas ainda consta na segunda parte do inciso: “...e atender aos que o procurarem, a qualquer momento, quanto se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência”. Essa questão é polêmica e pode ser alvo de indagação mesmo, porque não raras vezes nós temos o seguinte problema, o magistrado é procurado pela parte para atender um caso urgente e às vezes ele se recusa a atender. Há possibilidade de recusa a atendimento? A regra geral é atender àqueles que procurarem. O juiz tem que ir com muita tranquilidade para gerir esse contato que a própria lei orgânica da magistratura estabelece e o código de ética também. Agora é claro que não se pode chegar aos excessos.

V - residir na sede da Comarca salvo autorização do órgão disciplinar a que estiver subordinado;

Trata-se de dever funcional que está escrito inclusive na CR. Então o juiz tem o dever funcional de residir na comarca onde atua. Agora a EC diz o seguinte, salvo autorização do órgão competente. O que tem de mais novo a respeito disso é que resolução do CNJ determinou que os tribunais regulamentem os critérios para essa autorização. Então, cada tribunal tem critérios específicos para a regulamentação dessa autorização. Então é a distancia? É uma circunstancia especial? Quem vai determinar é o tribunal. Então em termos de autorização, os tribunais estão baixando normas que regulamentam as possibilidades de residência fora da comarca.

VI - comparecer pontualmente à hora de iniciar-se o expediente ou a sessão, e não se ausentar injustificadamente antes de seu término;

Esse dever é intuitivo.

VII - exercer assídua fiscalização sobre os subordinados, especialmente no que se refere à cobrança de custas e emolumentos, embora não haja reclamação das partes;

O juiz, no exercício da jurisdição, é o responsável direto por aplicar as sanções administrativas em face de faltas funcionais dos servidores que lhes estão vinculados. Ele não pode se omitir, se houver falta funcional, ele deve instalar sindicância e processo administrativo disciplinar e levar a cabo.

No que tange a CUSTAS E EMOLUMENTOS, custas e emolumentos são modalidades de tributos, são taxas. Então se perguntarem para vocês na prova objetiva qual a natureza jurídica de custas e emolumentos trata-se de taxas, segundo o STF. Há uma diferença entre custas e emolumentos. As custas são exigidas para o custeio das atividade dos escrivães judiciais, ou seja, são exigidas no processo judicial, é o que você paga para o processo ter andamento. E emolumentos são valores devidos aos agentes delegados do foro extrajudicial, registradores de notas, tabelionato de notas, protestos. Para eles a designação é emolumentos, para os escrivães, custas. despesas processuais são os dispêndios que não constituem custas nem emolumentos, que são feitos para saldar determinados eventos processuais, como por exemplo, o deslocamento do oficial de justiça, que é pago através de despesas processuais.

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Em todos esses casos o magistrado tem o dever funcional de velar pela exata cobrança, ou seja, se houver cobrança excessiva ou a menor, ou irregular cobrança, o magistrado tem o dever funcional de apurar os fatos, determinar o recolhimento correto e ainda apurar administrativamente uma falta funcional.

VIII - manter conduta irrepreensível na vida pública e particular.

Esse inciso VIII talvez tenha sido o inciso mais importante para a construção do código de ética da magistratura, porque manter conduta irrepreensível é uma clausula aberta, que permite amplíssima interpretação, que varia conforme o momento histórico e social. Daí a dificuldade de se chegar a um bom termo do que seja manter conduta irrepreensível na vida pública e particular.

Quando o magistrado que se apresenta em público, e todos nós juízes tivemos esse primeiro impacto, chega em uma subseção judiciária menor, é comum que as pessoas tentem “se socorrer” do juiz, todos querem saber onde o juiz mora, onde o juiz foi, o que o juiz fez. Agora conforme as entrâncias vão se ampliando a figura do juiz vai diminuindo o seu impacto e o chamarisco, então é uma questão da carreira que tem que ser enfrentada por todos.

Então eu recomendo que vocês façam uma leitura do código ética à vista do artigo 39. Mas não se esqueçam de outros deveres do magistrado que não foram consignados no artigo 35.

6.2.2. Outros Deveres dos MagistradosArt. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

[...]

IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

O juiz tem o dever de fundamentar suas decisões, art. 93, IX. A ausência de fundamentação constitui quebra de dever funcional.

Não confundir ausência de fundamentação com fundamentação suficiente. Suficiente é aquilo necessário ao entendimento da decisão e a sua exequibilidade, e ausência de fundamentação é a completa ausência de nexo entre o fundamento e a consequência existente na decisão.

Art. 39 - Os juízes remeterão, até o dia dez de cada mês, ao órgão corregedor competente de segunda instância, informação a respeito dos feitos em seu poder, cujos prazos para despacho ou decisão hajam sido excedidos, bem como indicação do número de sentenças proferidas no mês anterior.

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Outro dever funcional do magistrado é prestar as informações aos órgãos de segunda instancia a respeito de suas atividades e dos processos que excederam carga.

Dos Poderes, dos Deveres e da responsabilidade do Juiz

Art. 125, CPC. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe:

I - assegurar às partes igualdade de tratamento;

II - velar pela rápida solução do litígio;

III - prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da Justiça;

IV - tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes.

Declarar-se suspeito ou impedido de ofício, quando ocorrer alguma das hipóteses para tanto:

Art. 137, CPC. Aplicam-se os motivos de impedimento e suspeição aos juízes de todos os tribunais. O juiz que violar o dever de abstenção, ou não se declarar suspeito, poderá ser recusado por qualquer das partes (art. 304).

Tratamento igualitário das partes previsto no artigo 125 do CPC.

Art. 5º, CR/88 [...]

LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

E talvez o dever de maior importância do magistrado seja a observância da razoável duração do processo – art. 5, LXXVIII da CR.

Significa que o juiz deve conduzir o processo da forma mais célere possível, evitando delongas. Isso pode constituir falta funcional, agora baseado no artigo 5º. Como é que se examina isso? Tem se desenvolvido uma tecnologia para prever a duração razoável do processo. Qual o prazo que o CNJ considera razoável? Foi tirada uma conclusão pela meta dois de nivelamento, ou seja, aqueles processo distribuídos até 31.12.2005 e não julgados até 31.12.2009, considera-se prazo não razoável, outras palavras, 4 anos. Então o CNJ considera prazo irrazoável, ou não razoável, aquele que ultrapassa a medida da meta 2. Então a meta 2, na medida do possível, está sendo aplicada por todos os tribunais do país, e esse é o conceito de razoável duração do processo atualmente, mas não há nenhuma vinculação científica ou metodológica para esse critério, de fato que ninguém revelou até o momento, como é que se chegou a essa conclusão.

6.3. O Estatuto da MagistraturaO que o estatuto da magistratura? A CR/88 estabeleceu que o regime jurídico da magistratura será definido pelo estatuto da magistratura. Esse estatuto da magistratura vai substituir a LOMAM. Hoje o regime jurídico da magistratura é disciplinado pela LOMAM à luz da CR. Várias foram as disposições constitucionais que implicaram revogação parcial de dispositivos da LOMAM.

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Então o estatuto da magistratura tem que se adaptar à CR, em especial o artigo 93. O estatuto da magistratura segundo o caput do artigo 93 deverá na sua redação, observar os parâmetros constitucionais do artigo 93.

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

Qual a natureza jurídica do Estatuto? O artigo 93 da CR dispõe que será elaborado através de Lei Complementar de iniciativa do STF. Então há uma reserva de iniciativa do STF, porque nenhuma matéria que disponha sobre regime jurídico da magistratura pode ser aprovada se não for via lei complementar e por iniciativa do STF.

É constitucional a criação de órgãos de fiscalização por lei estadual? Não, é inconstitucional, já que nenhum diploma normativo que diga respeito a regime jurídico da magistratura poderá ser editado por lei que não seja da iniciativa do STF. Daí porque qualquer ato administrativo ou legal que não siga esse parâmetro do artigo 93 é inconstitucional. Nós estamos cheios de atos provavelmente ou pretensamente inconstitucionais que estão dispondo sobre o regime jurídico da magistratura através de ato administrativo, através de legislação infraconstitucional que não observaram a reserva constitucional do STF e nem a natureza jurídica de lei complementar.

Outro ponto que é questionado também: qual é o quorum de aprovação do estatuto da magistratura? Se é lei complementar, é só por maioria absoluta (art. 69, CR).

Outra pergunta de concurso que foi formulada, qual a amplitude do estatuto da magistratura? O estatuto da magistratura vai desde a observância dos princípios do artigo 93 da CR, até o estabelecimento das atribuições do CNJ.

Como é que anda o estatuto da magistratura? Hoje nós temos alguns projetos. Há o projeto de lei complementar 144 que está sendo discutido, e o STF tem realizado os estudos junto com o Congresso nacional, através das comissões, para a votação desse importantíssimo diploma do regimento da magistratura. O que vai tratar? Tratar de tudo, direitos da magistratura. Quem pretende ser magistrado tem que estar por dentro disso. Quais são os direitos da magistratura? Quais são as prerrogativas do magistrado? Quais são os impedimentos, quais são os deveres? Tudo isso vai ser inserido, aliás vai inclusive dispor sobre regras importantíssimas, como o processo de eleição nos tribunais. Como é que vai ser essa eleição nos tribunais? Continua sendo pelo critério da antiguidade previsto na LOMAM, ou agora parte para o critério democrático pela escolha através do voto? Como sinaliza a CR para a alteração da composição do órgão especial? Então tudo isso vai ser discutido no estatuto da magistratura.

E até que não seja aprovado o estatuto da magistratura, nós vamos trabalhando com a LOMAM, que foi recepcionada em grande parte pela CR, embora alguns artigos tenham sido revogados.

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6.4. Regime Jurídico da Magistratura

6.4.1. Garantias do Poder JudiciárioSão basicamente duas as garantias da magistratura:

Garantias institucionais;

o Autonomia orgânico-administrativa;

o Autonomia financeira.

Garantias funcionais

o Independência do magistrado;

o Imparcialidade do magistrado.

6.4.1.1. Garantias InstitucionaisSão garantias previstas na lei, necessárias à independência do Poder Judiciário como instituição.

6.4.1.1.1. Autonomia Orgânico-Administrativa

Os tribunais têm a prerrogativa constitucional de se autocomporem, estabelecerem as regras de concessão de licenças, férias etc., ou seja, de se auto-organizarem administrativamente. Isso nasce do pacto federativo, porque assegura-se a autonomia dos estados-membros e assegura-se também a autonomia dos tribunais de justiças, além, evidentemente, dos próprios Tribunais Regionais Federais.

ma das vedações ao CNJ diz respeito a essa autonomia orgânico-administrativa, porque é uma autonomia constitucional.

Art. 96. Compete privativamente:

I - aos tribunais:

a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;

Tudo completamente que trate de ato jurisdicional, de organização administrativa do tribunal, é de competência privativa dos tribunais.

b) organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados, velando pelo exercício da atividade correicional respectiva;

Atividade correcional é estabelecida na legislação estadual, também é disposto no regimento interno, porque isso é da autonomia do tribunal. Serviços auxiliares também, como funciona uma escrivaninha, como ela se comporta, qual o quador de servidores, isso tudo só o tribunal pode decidir.

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c) prover, na forma prevista nesta Constituição, os cargos de juiz de carreira da respectiva jurisdição;

Ou seja, ninguém pode prestar concurso em nível nacional para juiz federal, cada Tribunal de cada Região deve fazer o seu.

d) propor a criação de novas varas judiciárias;

e) prover, por concurso público de provas, ou de provas e títulos, obedecido o disposto no art. 169, parágrafo único, os cargos necessários à administração da Justiça, exceto os de confiança assim definidos em lei;

f) conceder licença, férias e outros afastamentos a seus membros e aos juízes e servidores que lhes forem imediatamente vinculados;

6.4.1.1.2. Autonomia FinanceiraAUTONOMIA FINANCEIRAA garantia da autonomia financeira significa que cada tribunal elabora sua proposta orçamentária. E como se elabora isso? Basicamente através de uma análise das diretrizes orçamentárias. Os demais poderes também elaborarão suas propostas orçamentárias e tudo isso deve ser harmonizado dentro das diretrizes orçamentárias. Quem faz essa elaboração? No âmbito federal, o presidente do STF, após receber e consolidar a proposta dos TRF´s e demais tribunais federais, assim como dos tribunai superiores. Se não houver o encaminhamento, a consequência vai ser a consideração do orçamento do exercício atual. É possível que o Poder Executivo faça correções em caso de excesso? Sim, o Poder Executivo pode fazer as correções em caso de excesso.

Agora há uma garantia também de que haja o repasse através de duodécimos de verbas orçamentárias ao Poder Judiciário, até o dia 20 de cada mês (art. 168, CR). Então ele tem direito de receber esses duodécimos para fazer frente às suas despesas, sob pena de intervenção estadual ou federal.

Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:

[...]

§ 2º As custas e emolumentos serão destinados exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da Justiça.

Essa previsão é importantíssima, porque antes havia uma discussão a respeito dos valores recolhidos a titulo de custa e emolumentos, se eram devidos ao estado e portanto poderiam ser objeto de outra destinação. O § 2º estabeleceu que esses valores devem ser destinados a atividades especificas da justiça, ou seja, não pode haver quebra da destinação, tudo que for arrecadado deve ser utilizado para o custeio das atividades judiciais.

No plano das atividades exclusivamente jurisdicional, importantíssimo, é o artigo 31 do ADCT. Esse artigo 31 do ADCT estabelece o seguinte:

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Art. 31. Serão estatizadas as serventias do foro judicial, assim definidas em lei, respeitados os direitos dos atuais titulares.

São duas espécies de serventias: foros judiciais e foros extrajudiciais.

Serventias dos foros judiciais – trata das atividade dos escrivães. São estatizadas, trata-se de atividades dos escrivães.

Serventias do foro extrajudicial – tratam das atividades dos agentes delegados. São privatizadas, trata-se das atividades dos agentes delegados.

Assim que forem estatizadas todas as serventias do foro judicial (existem serventias do foro judicial não estatizadas em vários estados), todas as custas judiciais serão vertidas para um fundo para o custeio dessas atividades.

E a serventia do foro extra judicial? O que se tem hoje é a possibilidade exclusiva de exploração da área privada através de delegação. Mas como emolumentos serão destinados ao custeio das atividades jurisdicionais? É que essas atividades estatais dos agentes delegados, devem ser custeadas pelos emolumentos e também servirão como remuneração dos próprios agentes delegados. E mais ainda, há percentuais em lei estaduais em todo o país que aplicam determinado percentual e taxam essas atividades dos foros extra judiciais. Então esses valores também vão para fundos específicos.

- Artigos – ADCT 31 e 236 da CR.

Pergunta: como podem coabitar os poderes de fiscalização do CNJ com essa autonomia orgânico administrativa dos tribunais previsto no artigo 96, e essa possibilidade fiscalizatória ampla do CNJ?

Resposta: Na verdade essa autonomia orgânica administrativa é de construção desse poder, ou seja, através da legislação é que vai se dispor sobre a organicidade do poder. Então quando a CR passou a ter vigência, imediatamente as constituições estaduais se adaptaram para modelar o Poder Judiciário local ao ditame da CR. por sua vez os presidentes dos tribunais de justiça, os órgãos especiais, encaminharam mensagem de projeto do código de organização judiciária para a assembléia legislativa, que por sua vez votaram a criação dos órgãos internos do TJ e os cargos de juízes e diversas funções ali estabelecidas e ao mesmo tempo, o TJ cria o seu RI disciplinando a atividade desses órgãos que foram criados pelas leis de organização judiciária. Então por exemplo, quando a lei de organização judiciária se remete a existência de uma corregedoria, é o regimento interno que disciplina qual o âmbito da sua atribuição, da sua competência. Tudo isso, essa auto-organização administrativa se dá no plano legislativo, que vai desde a CE, passando pela lei de organização judiciária, até o Regimento Interno. Então, o ataque a esses atos se faz exclusivamente através de controle de constitucionalidade desses atos. Então nesse ponto essa estrutra não pode ser maculada pelo CNJ.

Agora, o CNJ pode fazer a fiscalização orçamentária, ou seja, o uso do dinheiro público, fiscalização quanto à forma de estruturação que está sendo dada, em algumas serventia isso

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pode também porque é um fator correcional, a estrutura, o comportamento dos tribunais em geral, a forma de despesa pública realizada.

6.4.1.2. Garantias FuncionaisSão garantias dos magistrados enquanto no exercício do cargo, daí porque também são conhecidas como garantias dos órgãos, funcionais dos órgãos.

6.4.1.2.1. Garantias Relativas à Independência do Magistrado

Independência é a capacidade ou aptidão do órgão de produzir seus julgamentos sem que dependa de qualquer fator externo. Isso é muito importante, independência do magistrado é algo que deve ser observado, porque quando lutamos pela independência do juiz, estamos lutando pela democracia e pelos direitos fundamentais.

Embora isso seja um processo longo e demorado, aos poucos o Poder Judiciário vai se afirmando com independência e toda conduta que importe na supressão da independência do juiz é uma conduta antidemocrática, é uma conduta que labora contra os direitos fundamentais e contra o próprio Estado.

Então, quando se fala em juízes independentes, PENSA-SE EM UMA GARANTIA DE QUE A SOCIEDADE VAI TER UM AMPARO DEMOCRÁTICO, DE QUE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS VÃO SER CONCEDIDOS, QUE HÁ O CONTROLE DO PODER.

Essa independência dos magistrados, ela se expressa em três espécies de garantias, previstas no artigo 95 da CR: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios.

VITALICIEDADE – art. 95, I da CR.

Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:

I - vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado;

Assim, o juiz não vitaliciado pode perder o cargo por decisão do tribunal. Quem é o juiz vitaliciado? É o juiz de primeiro grau que entrou por concurso público, após dois anos de EFETIVO exercício do cargo, e o juiz que ingressou na magistratura pelo quinto constitucional, que já é vitalício desde a posse.

Durante o período de vitaliciamento o que ocorre é que o magistrado fica sob o exame dos tribunais. Alguns tribunais criaram a figura do juiz formador, juiz ao qual o juiz substituto fica atrelado e que vai examinando o comportamento e a conduta do magistrado. O que se observa no juiz vitaliciando? A qualidade da atividade jurisdicional em primeiro lugar; em segundo lugar a sua produtividade; ainda a sua conduta privada e pública, todos os elementos necessários que um juiz experiente ou o tribunal poderá observar.

Pergunta: digamos que o juiz substituto, durante o período de 2 anos, faça um monte de besteiras, e aí o tribunal vai avaliando se está bom ou não, e passa o prazo de dois anos, e

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quando dá 2 anos e meio o tribunal resolve não vitaliciar, isso é possível? Tanto para o STF quanto para o STJ, o prazo de vitaliciamento é um prazo peremptório e constitucional . Significa que o único requisito previsto na constituição é o prazo de dois anos, se o tribunal não tomar as providencias necessárias para iniciar o procedimento administrativo disciplinar e afastar o magistrado de suas funções, então automaticamente o magistrado se torna vitalício. Então esse entendimento do Superior Tribunal impõe ao tribunal que realize as diligências para a análise da conduta do magistrado antes que se complete os dois anos, porque se completar os dois anos e o tribunal nada deliberar, automaticamente ele se vitalícia

Mas se dentro dos dois anos o juiz cometer faltas graves? Ele é afastado por deliberação do tribunal, ou seja, administrativamente, por simples deliberação. Esse é o entendimento sedimentado no STJ. Isso aí nos termos da resolução 30 do CNJ, ou seja, processo administrativo contra vitaliciando deve ser disciplinado pelos tribunais. Ou seja, EXISTE UM PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO PARA VITALICIANDO E EXISTE UM PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO PARA JUIZ VITALÍCIO. Os tribunais devem disciplinar sobre esse procedimento no regimento interno, no qual deve ser assegurado contraditório e ampla defesa.

Art. 94. Um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos Estados, e do Distrito Federal e Territórios será composto de membros, do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes.

Parágrafo único. Recebidas as indicações, o tribunal formará lista tríplice, enviando-a ao Poder Executivo, que, nos vinte dias subseqüentes, escolherá um de seus integrantes para nomeação.

Em prova escrita perguntaram como funciona o quinto constitucional. A resposta é assim:

Os órgãos e classes (OAB e MP) indicam 06 pessoas com os requisitos constitucionais;

O tribunal reduz para 03;

O chefe do Poder Executivo reduz para 01.

E se na lista sêxtupla não existir candidato que se enquadre dentro dos requisitos constitucionais, o tribunal pode devolver a lista para complementação ou reformulação pelos órgãos de classe? Segundo o STF pode. Vide:

EMENTA: I. Mandado de Segurança: processo de escolha de candidatos a cinco vagas de Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, correspondente à cota no "quinto constitucional" da advocacia: composição de lista sêxtupla pelo Tribunal de Justiça que, desprezando a lista sêxtupla específica organizada pelo Conselho Seccional da OAB para a primeira das vagas, substituiu os seus integrantes por nomes remanescentes das listas indicadas para as vagas subseqüentes e, dentre eles, elaborou a lista tríplice:

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contrariedade ao art. 94 e seu parágrafo único da Constituição Federal: declaração de nulidade de ambas as listas, sem prejuízo da eventual devolução pelo Tribunal de Justiça à OAB da lista sêxtupla apresentada para a vaga, se fundada em razões objetivas de carência, por um ou mais dos indicados, dos requisitos constitucionais, para a investidura e do controle jurisdicional dessa recusa, acaso rejeitada pela Ordem. II. O "quinto constitucional na ordem judiciária constitucional brasileira: fórmula tradicional, a partir de 1934 - de livre composição pelos tribunais da lista de advogados ou de membros do Ministério Público - e a fórmula de compartilhamento de poderes entre as entidades corporativas e os órgãos judiciários na seleção dos candidatos ao "quinto constitucional" adotada pela Constituição vigente (CF, art. 94 e parágrafo único). 1. Na vigente Constituição da República - em relação aos textos constitucionais anteriores - a seleção originária dos candidatos ao "quinto" se transferiu dos tribunais para "os órgãos de representação do Ministério Público e da advocacia"-, incumbidos da composição das listas sêxtuplas - restando àqueles, os tribunais, o poder de reduzir a três os seis indicados pelo MP ou pela OAB, para submetê-los à escolha final do Chefe do Poder Executivo. 2. À corporação do Ministério Público ou da advocacia, conforme o caso, é que a Constituição atribuiu o primeiro juízo de valor positivo atinente à qualificação dos seis nomes que indica para o ofício da judicatura de cujo provimento se cogita. 3. PODE O TRIBUNAL RECUSAR-SE A COMPÔR A LISTA TRÍPLICE DENTRE OS SEIS INDICADOS, SE TIVER RAZÕES OBJETIVAS PARA RECUSAR A ALGUM, A ALGUNS OU A TODOS ELES, AS QUALIFICAÇÕES PESSOAIS RECLAMADAS PELO ART. 94 DA CONSTITUIÇÃO (v.g. mais de dez anos de carreira no MP ou de efetiva atividade profissional na advocacia.) 4. A questão é mais delicada se a objeção do Tribunal fundar-se na carência dos atributos de "notório saber jurídico" ou de "reputação ilibada": a respeito de ambos esses requisitos constitucionais, o poder de emitir juízo negativo ou positivo se transferiu, por força do art. 94 da Constituição, dos Tribunais de cuja composição se trate para a entidade de classe correspondente. 5. Essa transferência de poder não elide, porém, a possibilidade de o tribunal recusar a indicação de um ou mais dos componentes da lista sêxtupla, à falta de requisito constitucional para a investidura, desde que fundada a recusa em razões objetivas, declinadas na motivação da deliberação do órgão competente do colegiado judiciário. 6. NESSA HIPÓTESE AO TRIBUNAL ENVOLVIDO JAMAIS SE HÁ DE RECONHECER O PODER DE SUBSTITUIR A LISTA SÊXTUPLA ENCAMINHADA PELA RESPECTIVA ENTIDADE DE CLASSE POR OUTRA LISTA SÊXTUPLA QUE O PRÓPRIO ÓRGÃO JUDICIAL COMPONHA, ainda que constituída por advogados componentes de sextetos eleitos pela Ordem para vagas diferentes. 7. A SOLUÇÃO HARMÔNICA À CONSTITUIÇÃO É A DEVOLUÇÃO MOTIVADA DA LISTA SÊXTUPLA À CORPORAÇÃO DA QUAL EMANADA, PARA QUE A REFAÇA, TOTAL OU PARCIALMENTE, CONFORME O NÚMERO DE CANDIDATOS DESQUALIFICADOS: dissentindo a entidade de classe, a ela restará questionar em juízo, na via processual adequada, a rejeição parcial ou total do tribunal competente às suas indicações.

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(MS 25624, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 06/09/2006, DJ 19-12-2006 PP-00036 EMENT VOL-02261-05 PP-00946 RTJ VOL-00207-02 PP-00617)

Pois bem.

Como visto, se o juiz não é vitalício ele pode ser exonerado por deliberação do tribunal, mas se o juiz é vitalício ele só pode ser exonerado por sentença judicial transitada em julgado. Há uma diferença, portanto, entre os cargos de servidores estáveis, que adquirem sua estabilidade com 3 anos de exercício no cargo e poderão ser exonerados por sentença judicial transitada em julgado, processo administrativo disciplinar que se lhe garanta contraditório e ampla defesa e ainda por insuficiência de desempenho. Essa comparação entre o juiz vitaliciando e os servidores do estado cai sempre em concurso.

Os servidores do Estado adquirem vitaliciedade após 03 anos de exercício e são 3 as hipóteses de exoneração, enquanto o magistrado adquire vitaliciedade com dois anos e aí só com a sentença transitada em julgado. De onde vem a sentença transitada em julgado? Pode vir da área civil e pode vir da área criminal, como efeito secundário da sentença penal condenatória.

NUNCA USE O TERMO EFETIVO PARA JUÍZES! O JUIZ NUNCA SE TORNARÁ EFETIVO, ELE SE TORNARÁ VITALÍCIO.

Houve um caso, PCA nº 267 do CNJ em que se propôs o seguinte, que o CNJ exonerasse o magistrado que ingressou na carreira. Chegou-se à seguinte conclusão: o magistrado já tinha cumprido os dois anos de vitaliciamento. E aí se peguntou o seguinte, o CNJ poderia exonerar por deliberação sua o juiz que acabou de ingressar? ENTENDEU-SE QUE CASO O JUIZ FOSSE VITALICIANDO, NÃO COMPLETADO O PERÍODO DE DOIS ANOS, O CNJ PODERIA DELIBERAR SOBREPONDO O ÓRGÃO ESPECIAL DO TRF OU DO TJ ADMINISTRATIVAMENTE, DESDE QUE GARANTIDO O PROCESSO ADMINISTRATIVO COM AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO.

DESSE MODO, EM QUE PESE A REGRA PARA DECIDIR SOBRE O NÃO VITALICIAMENTO SEJA DO TRIBUNAL, SE O PROCESSO ADMINISTRATIVO TIVER SIDO AVOCADO PELO CNJ, ELE

PODERÁ DELIBERAR EM DESFAVOR DO ATO.

Existe alguma exceção à regra de que o juiz vitalício só pode ser exonerado por sentença judicial transitada em julgada? Existem duas hipóteses:

1 – ministros do STF podem ser exonerados por irresponsabilidade perante o senado federal e podem ser destituídos do cargo, artigo 52, II da CR.

2 – os membros do CNJ. Os membros do CNJ possuem as mesmas prerrogativas dos magistrados por conta do seu regimento interno. E possuindo estas prerrogativas, também estaria aí a impossibilidade de exoneração a não ser por sentença judicial transitada em julgado, e também estão sujeitos a julgamento perante o senado federal por crime responsabilidade, artigo 52, II.

INAMOVIBILIDADE – ART 95, II, CR/88

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Art. 95, C/88 [...]

II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII;

Quando o juiz ingressa na magistratura ele pode escolher para onde ele vai se deslocar na entrância, de acordo com os critérios de remoção estabelecidos pelo Tribunal. Acontece que o juiz tem a opção de escolher permanecer no local. Isso existe para obstar que o juiz seja constantemente removido com base em criptocausas políticas, a fim de que ele não analise tal ou qual demanda relevante. Então essa é uma garantia, mas é uma garantia que admite exceção.

A exceção está na possibilidade de remoção compulsória no interesse público, artigo 93, VIII da CR.

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

[...]

VIII o ato de remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado, por interesse público, fundar-se-á em decisão por voto da maioria absoluta do respectivo tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada ampla defesa;

Por voto da maioria absoluta do tribunal. A anterior redação do inciso VIII falava em 2/3 do tribunal. Essa é uma alteração doa EC 45, a remoção por interesse público, ou a aposentadoria ou a disponibilidade, se fazem por maioria absoluta.

Estabeleceu a possibilidade também de o CNJ por maioria absoluta decidir pela remoção compulsória ou aposentadoria do magistrado. O CNJ já produziu algumas decisões administrativas colocando em disponibilidade magistrados até da cúpula dos tribunais e até remoção compulsória também. Existe um procedimento dentro do regimento interno do CNJ que estabelece como se faz isso.

A inamovibilidade se aplica somente aos juízes titulares ou também aos substitutos? Também a estes, de acordo com o STF:

Ementa: MANDADO DE SEGURANÇA. ATO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA QUE CONSIDEROU A INAMOVIBILIDADE GARANTIA APENAS DE JUIZ TITULAR. INCONSTITUCIONALIDADE. A INAMOVIBILIDADE É GARANTIA DE TODA A MAGISTRATURA, INCLUINDO O JUIZ TITULAR E O SUBSTITUTO. CONCESSÃO DA SEGURANÇA. I – A inamovibilidade é, nos termos do art. 95, II, da Constituição Federal, garantia de toda a magistratura, alcançando não apenas o juiz titular, como também o substituto. II - O magistrado só poderá ser removido por designação, para responder por determinada vara ou comarca ou para prestar auxílio, com o seu consentimento, ou, ainda, se

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o interesse público o exigir, nos termos do inciso VIII do art. 93 do Texto Constitucional. III – Segurança concedida.

(MS 27958, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 17/05/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-170 DIVULG 28-08-2012 PUBLIC 29-08-2012)

IRREDUTIBILIDADE DE SUBSÍDIOS – ART. 95, III, CR/88

Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:

[...]

III - irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I.

O que é irredutibilidade de subsídios? O magistrado ele tem uma imposição, o próprio CNJ reconhece isso, e o STF também reconhece isso nos seus julgados. Ele tem a obrigatoriedade de se dedicar à jurisdição. O juiz não pode deixar as suas atividades jurisdicionais e dar prioridade, por exemplo, às atividades de magistério43.

Essa imposição legal impõe que os subsídios sejam compatíveis para que ele possa se dedicar somente a essa atividade. Então a irredutibilidade de subsídios significa o seguinte: uma vez fixado o subsídio em lei, o magistrado tem o direito constucional de ter remuneração compatível.

Entretanto, o próprio STF, embora diga que a magistratura deve ter a irredutibilidade de subsídio para que não se ocupe com outra atividade, tem o posicionamento a meu modo de ver equivoco, e é o posicionamento que cai na prova, que a irredutbilidade dos subsídios é uma irredutibilidade nominal e não real.

Outro ponto importante é que os vencimentos de magistrados foram transformados em subsídios. Por quê? Porque a expressão vencimentos incorporava verba de representação, salários e outros adicionais, isso ia incorporando e acrescentando valor.

E com o subsídio foi estabelecido um teto remuneratório. Ninguém pode ganhar mais que ministro do STF. Temos a primeira figura, teto remuneratório. O teto remuneratório deve ser mais do que o subsidio do ministro do STF . Agora existem os sub tetos. Quais são os sub tetos?

Sub teto dos tribunais superiores – que recebem 95% do valor reservado a membro do STF.

43 Código de Ética da Magistratura NacionalArt. 21. O magistrado não deve assumir encargos ou contrair obrigações que perturbem ou impeçam o cumprimento apropriado de suas funções específicas, ressalvadas as acumulações permitidas constitucionalmente.§ 1º O magistrado que acumular, de conformidade com a Constituição Federal, o exercício da judicatura com o magistério deve sempre priorizar a atividade judicial, dispensando-lhe efetiva disponibilidade e dedicação.

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Sub teto dos desembargadores , que recebem 90,25% do ministro do STF. Então o subsidio máximo estadual é de 90,25% do valor do subsidio dos ministros do STF.

É possível extrapolar o teto remuneratório?

Se por acaso os desembargadores, além dos 90,25%, ganharem, por exemplo, subsidio em função de atividade eleitoral, se somar outras gratificações previstas em lei, ele pode perceber esse valor? Sim, só que limitado ao teto máximo, então ele chega no teto e para.

Agora, existe uma previsão no § 11 do artigo 37 da CR, que fala de parcelas indenizatórias. Então as parcelas de caráter indenizatório podem ultrapassar o teto, aquelas previstas no artigo 37, § da CR, por exemplo, ausência de pagamento de valores que eram devidos e depois são complementados. Então, primeiro o STF e STJ decidem o que sejam parcelas de caráter indenizatórias, se forem indenizatórias podem sobrepujar o teto, se não for não podem.

Art. 37, CR/88 [...]

§ 11. Não serão computadas, para efeito dos limites remuneratórios de que trata o inciso XI do caput deste artigo, as parcelas de caráter indenizatório previstas em lei.

Só lembrando que a remuneração dos magistrados é escalonada, ou seja, parte do sub teto e vai descendo, de 10 em 10% ou de 5 em 5%, conforme o numero de entrância (na justiça estadual). NA JUSTIÇA FEDERAL SÓ HÁ DIFERENÇA REMUNERATÓRIA ENTRE JUIZ FEDERAL SUBSTITUTO, JUIZ FEDERAL TITULAR (geralmente 10% a mais do que aquele) E DESEMBARGADORES.

6.4.1.2.2. Garantias Relativas à Imparcialidade do Magistrado

Previstas no art. 95, p. u. da CR.

Imparcialidade significa que o juiz é equidistante, ou seja, que o juiz não pende nem para um lado nem para outro, ele julga com total isenção.

Qual é o vício processual quando o juiz é parcial? O juiz que perde a imparcialidade pode ser dado como suspeito ou impedido. Isso vai gerar uma nulidade dentro do processo, e essa nulidade se refere a pressuposto processual positivo relativo ao juiz, que é a imparcialidade.

O processo será relativamente nulo se houver suspeição;

E será absolutamente nulo se houver impedimento.

Quais são essas garantias de imparcialidade? Art. 95, p. u. da CR.

Parágrafo único. Aos juízes é vedado:

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I - exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério;

A respeito disso existe uma resolução do CNJ que estabelece que os cargos da justiça desportiva não podem ser exercidos por magistrados; isso era comum antigamente, mas eles exerciam as atividades com muita assiduidade e atrapalhava a atividade jurisdicional. O STF chamado a examinar a questão decidiu:

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. RESOLUÇÃO N. 10/2005, DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. VEDAÇÃO AO EXERCÍCIO DE FUNÇÕES, POR PARTE DOS MAGISTRADOS, EM TRIBUNAIS DE JUSTIÇA DESPORTIVA E SUAS COMISSÕES DISCIPLINARES. ESTABELECIMENTO DE PRAZO PARA DESLIGAMENTO. NORMA PROIBITIVA DE EFEITOS CONCRETOS. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA N. 266 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. IMPOSSIBILIDADE DE ACUMULAÇÃO DO CARGO DE JUIZ COM QUALQUER OUTRO, EXCETO O DE MAGISTÉRIO. 1. A proibição jurídica é sempre uma ordem, que há de ser cumprida sem que qualquer outro provimento administrativo tenha de ser praticado. O efeito proibitivo da conduta - acumulação do cargo de integrante do Poder Judiciário com outro, mesmo sendo este o da Justiça Desportiva - dá-se a partir da vigência da ordem e impede que o ato de acumulação seja tolerado. 2. A Resolução n. 10/2005, do Conselho Nacional de Justiça, consubstancia norma proibitiva, que incide, direta e imediatamente, no patrimônio dos bens juridicamente tutelados dos magistrados que desempenham funções na Justiça Desportiva e é caracterizada pela auto-executoriedade, prescindindo da prática de qualquer outro ato administrativo para que as suas determinações operem efeitos imediatos na condição jurídico-funcional dos Impetrantes. Inaplicabilidade da Súmula n. 266 do Supremo Tribunal Federal. 3. As vedações formais impostas constitucionalmente aos magistrados objetivam, de um lado, proteger o próprio Poder Judiciário, de modo que seus integrantes sejam dotados de condições de total independência e, de outra parte, garantir que os juízes dediquem-se, integralmente, às funções inerentes ao cargo, proibindo que a dispersão com outras atividades deixe em menor valia e cuidado o desempenho da atividade jurisdicional, que é função essencial do Estado e direito fundamental do jurisdicionado. 4. O art. 95, parágrafo único, inc. I, da Constituição da República vinculou-se a uma proibição geral de acumulação do cargo de juiz com qualquer outro, de qualquer natureza ou feição, salvo uma de magistério. 5. Segurança denegada.

(MS 25938, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 24/04/2008, DJe-172 DIVULG 11-09-2008 PUBLIC 12-09-2008 EMENT VOL-02332-02 PP-00370 RTJ VOL-00207-01 PP-00276)

Pois bem. Continuemos.

II - receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo;

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Veja que isso já vem desde a época da revolução francesa; o juiz não pode receber nenhuma participação em custas ou processo. Isso seria uma forma de se apropriar da coisa pública, já que o magistrado acabaria revertendo em seu proveito os resultados financeiros das atividades jurisdicionais.

III - dedicar-se à atividade político-partidária.

O juiz tem uma independência de natureza político partidário, ele não se envolve com partido, mas ele tem uma vinculação política estatal, ele se envolve com os direitos fundamentais e com a democracia. O envolvimento partidário certamente seria ameaçador para sua imparcialidade. Claro que isso não significa que, como pessoa, ele não possa ter suas ideologias políticas. Tanto tem que é, assim como todas as demais pessoas, obrigado a votar.

IV - receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei;

Exceções previstas em lei, praticamente não há. O que poderia haver é alguma possibilidade de uso desses valores com fim público ou com fim de interesse público.

V - exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração.

É a famosa QUARENTENA DE SAÍDA. Essa quarentena de saída é muito importante, porque há desembargadores, infelizmente, que assim que se aposentam retornam ao tribunal para advogar, e como tem acesso livre aos demais colegas causam constrangimento aos demais membros do tribunal ao levar as suas considerações diretamente a eles. Isso causa um grande constrangimento aos demais advogados, que não tem o mesmo tratamento que são dispensados a essas pessoas. Essa quarentena de saída é uma excelente medida que foi adotada pelo legislador.

6.4.2. Provimento do Cargo de JuizO provimento é, regra geral, por concurso público de provas e títulos. Somente nos Tribunais há provimento originário diferenciado, que é sem concurso, mas também pela via da nomeação.

O provimento originário é aquele de quem ainda não faz parte do quadro.

E provimento derivado é aquele de quem já está no quadro, e vai se movimentar dentro do quadro. E nessa movimentação no quadro, ele pode se movimentar de forma horizontal ou de forma vertical.

Então veja só, provimento originário se dá através do ingresso na carreira da magistratura.

O provimento derivado, ou seja, quando você já está na carreira da magistratura, ele se dá de forma horizontal de duas formas, através de uma remoção ou através de uma permuta.

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É horizontal porque eu fico na mesma linha, você fica na mesma entrância. Você tem as entrância, inicial, intermediária e final. Você simplesmente vai transitar, vai para a comarca ou varas da mesma entrância. Então você pode ajustar com alguém, você vem para minha comarca e eu vou para a sua, isso é plenamente possível. E remoção? Abriu uma vaga está na mesma entrância então eu peço para ir.

O vertical é quando você sai de uma entrância para outra, então aí estamos diante de duas hipóteses também, promoção e acesso.

6.4.2.1. Provimento OriginárioO ingresso na magistratura de carreira pressupões concurso público de provas e títulos, com a participação em todas as fases da OAB.

Art. 78 - O ingresso na Magistratura de carreira dar-se-á mediante nomeação, após concurso público de provas e títulos, organizado e realizado com a participação do Conselho Secional da Ordem dos Advogados do Brasil.

§ 1º - A lei pode exigir dos candidatos, para a inscrição no concurso, título de habilitação em curso oficial de preparação para a Magistratura.

§ 2º - Os candidatos serão submetidos a investigação relativa aos aspectos moral e social, e a exame de sanidade física e mental, conforme dispuser a lei.

§ 3º - Serão indicados para nomeação, pela ordem de classificação, candidatos em número correspondente às vagas, mais dois, para cada vaga, sempre que possível.

É possível, segundo a LOMAM, artigo 78, § 1º, que se estabeleça curso preparatório. Então é possível que os tribunais criem o curso, que será tido como uma etapa do processo seletivo . Em SC já funciona dessa forma.

Agora, além dos requisitos normais, que é concurso público de provas e títulos, a CR, por intermédio da EC 45, fixou 3 anos de atividade jurídica. O CNJ regulamentou a matéria na resolução numero 11. E a atividade jurídica é considerada a atividade de bacharel de direito, em outras palavras, não se tem admitido atividades antes da conclusão do curso de direito. Então admite-se toda aquela atividade que é passível de ser exercida por bacharel em direito, então o STF tem admitido, por exemplo, que escrivão de polícia se exercer atividade jurídica possa contar o prazo, oficial de justiça também.

Há uma discussão a respeito do momento no qual se conta esse prazo, dies a quo. Segundo a resolução 11, artigo 5º, do CNJ, deve-se completar esse prazo com a inscrição definitiva no concurso. Atualmente, o entendimento do STF está no sentido de que a contagem é feita desde a conclusão do curso de Direito (e não da colação de grau) até a data da inscrição definitiva. Vide:

EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário. Concurso público para ingresso na magistratura do trabalho. Comprovação de tempo de atividade jurídica. Ato da inscrição no concurso. Precedentes. 1. Esta Corte

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firmou o entendimento de que o momento para a comprovação do exercício de três anos de atividade jurídica se dá no ato da inscrição definitiva no concurso público. 2. Agravo regimental não provido.

(RE 630515 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 04/09/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-191 DIVULG 27-09-2012 PUBLIC 28-09-2012)

É possível uma investigação moral, social e pessoal do candidato? Sim, é o que dispõe o artigo 78, § 1º da LOMAM. Geralmente isso é feito através de consulta a pessoas com as quais o candidato tenha trabalhado, que possam servir de subsídios ao tribunal, para verificar se tem experiência, se é uma pessoa de confiança.

Isso é determinante? Não, mas é um apoio a mais para que se saiba se o magistrado tenha condições de exercer as suas atividades.

6.5. Sistema de Controle Interno do Poder JudiciárioO Poder, sendo de titularidade exclusiva do povo, deve ter seu exercício controlado, já que nas mãos de agentes públicos aos quais confiadas funções públicas indisponíveis. Isso é uma máxima que já vem desde (e antes mesmo de) a Revolução Francesa, que é conceito muito acatado.

Em primeiro lugar é evidente que só pode controlar o poder o próprio Estado. Se o Estado está manifestado e determinado política e juridicamente na Constituição, é da própria Constituição que devem ser extraídos os mecanismos de autolimitação às suas instituições.

Então o Estado faz o contole e esse controle se dá através dessa estrutura primordial do Estado prevista na Constituição da República. Então nós vamos buscar o sistema de controle do poder, leia-se Poder Executivo, Legislativo e Judiciário na CR. Esse é um ponto fundamental da matéria.

CADA ESPÉCIE DE ATO RECEBE UM SISTEMA DE IMPUGNAÇÃO ESPECIFICO.

Para impugnar um ato legislativo tem um mecanismo, para o ato administrativo tem um mecanismo e para o ato judicial tem outro mecanismo.

Para controlar os atos legislativos, como se trata de atos genéricos e abstratos, geral, então os atos legislativos são impugnados via controle de constitucionalidade, seja ele concentrado ou difuso.

Já os atos administrativos têm um sistema próprio de controle. O primeiro controle é o próprio recurso administrativo criado pela legislação federal e pelas legislações estaduais. Controla-se o ato administrativo em primeiro plano através do recursos administrativos previstos na legislação federal e na legislação estadual.

Mas eu também controlo os atos administrativos através de ações judiciais ou através de sucedâneos recursais. Então se pode controlar o ato administrativo, exemplificativamente, através de ações anulatórias, que segue o procedimento comum. Além das ações anulatórias,

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pelo procedimento comum, eu ainda encontro a impugnação desses atos via ação civil publica e na ação popular.

Mas talvez o mecanismo de maior controle do ato administrativo no âmbito judicial seja o Mandado de Segurança. Então o MS talvez seja o sucedâneo mais utilizado para o controle dos atos administrativos.

Temos também diversos atos judiciais que são produzidos constantemente pelos magistrados, que também são alvo de controle. No processo civil estuda-se que o juiz pratica três espécies de atos, ou seja, em atividade eminentemente jurisdicional, jurisdição: despachos, decisões interlocutórias e sentença.

É fundamental que nós saibamos que todas as vezes que o magistrado produz um despacho, uma decisão interlocutória ou uma sentença, existe um mecanismo próprio de controle, embora o despacho não esteja sujeito a nenhuma espécie de recurso, as decisões interlocutórias são atacadas por agravo e a sentença por apelação, via de regra.

Em linhas gerais, em processo civil, se você perguntar qual a diferença entre despacho e decisão interlocutória, a jurisprudência torrencial dirá o seguinte: será decisão interlocutória aquele ato do magistrado que, não constituindo sentença, possa causar prejuízo às partes. Então mesmo aquilo que parece despacho, por exemplo, aquele famoso despacho ao Ministério Publico, se causar, pelo menos em tese, prejuízo as partes, será considerado como decisão interlocutória, e, portanto, atacado mediante agravo. Então a jurisprudência considera que é decisão interlocutória, passível de impugnação por recurso de agravo, qualquer ato judicial que, não sendo sentença, possa causar prejuízo as partes, mesmo que em tese, então ai faz a distinção entre despacho e decisão interlocutória.

Então a jurisprudência considera que é decisão interlocutória, passível de impugnação por recurso de agravo, qualquer ato judicial que, não sendo sentença, possa causar prejuízo às partes, mesmo que em tese.

Agora notem que nesses três casos, a forma de impugnação do ato é o recurso. Assim, pode-se afirmar o seguinte com certa tranquilidade: os atos legislativos são atacados pelo controle de constitucionalidade, concentrado ou difuso; os atos administrativos, há aquele controle decorrente do poder hierárquico, o próprio poder revisor dos atos da administração, ainda pode ser controlado por recurso administrativo e as ações especificas, e os atos judiciais são controlados através dos recursos.

É por isso que a doutrina de direito processual civil mais atualizada aponta que a forma do controle democrático do Poder Judiciário em matéria jurisdicional é o recurso. Até uma repercussão interessante é no que tange as preclusões. Assim que foi protocolizada a petição inicial, por iniciativa da parte, art. 2º e 262 do CPC, o procedimento se desenvolve por impulso oficial (principio do impulso oficial - art. 262, 2ª parte).

Art. 2o Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e forma legais.

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Art. 262. O processo civil começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial.

Logo, ainda que o processo somente se inicie por ato da parte, ele se desenvolve obrigatoriamente por ato de ofício do magistrado. Isso significa que o magistrado deve utilizar um mecanismo que faz com que esses atos atinjam obrigatoriamente a sentença. Isso é o que nós chamamos de PRECLUSÃO. A preclusão, portanto, é o mecanismo que o juiz utiliza para fazer com que o processo obrigatoriamente atinja o ponto final, a sentença.

6.5.1. Distinção entre Controle Interno e Controle ExternoO Poder Judiciário pratica atos de cunho jurisdicional, administrativo e muitas vezes até legislativo.

Mas quando ele atua de forma administrativa, ele atua de forma imprópria, por isso se trata de ato administrativo impróprio. Quando o Poder Judiciário pratica esses atos administrativos, as impugnações serão feitas através dos meios administrativos à disposição, ou seja, recurso administrativo, controle interno da administração, ou por meio de ação popular, ação civil publica, MS.

E quando o juiz atua na modalidade jurisdicional, ou seja, atividade judicial strito sensu, o controle se dá pelo recurso.

Ainda como eu afirmei para vocês, os tribunais possuem um certo poder de produções legislativas. Um exemplo mais contundente da produção legislativa dos tribunais é em torno daquelas situações com as quais eles auto regulamentam seu funcionamento.

Exemplo: A Constituição Federal, estabelece no art. 125 que os Estados tem autonomia para constituir os seus tribunais, regular a justiça estadual. Daí porque a Constituição Estadual cria os tribunais estaduais e as leis de organização judiciárias dispõem sobre a estrutura estrutura básica dos tribunais e do Judiciário estadual, e aí remetem ao Regimento Interno a disciplina do funcionamento desses órgãos.

Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.

Assim, a CR (art. 125) dispõe que são os Estados quem vão criar as suas justiças, dão autonomia e o art. 96 + o 99 deixam clara essa autonomia, financeira e administrativa.

Art. 96. Compete privativamente:

I - aos tribunais:

a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;

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b) organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados, velando pelo exercício da atividade correicional respectiva;

c) prover, na forma prevista nesta Constituição, os cargos de juiz de carreira da respectiva jurisdição;

d) propor a criação de novas varas judiciárias;

e) prover, por concurso público de provas, ou de provas e títulos, obedecido o disposto no art. 169, parágrafo único, os cargos necessários à administração da Justiça, exceto os de confiança assim definidos em lei;

f) conceder licença, férias e outros afastamentos a seus membros e aos juízes e servidores que lhes forem imediatamente vinculados;

Por sua vez as Constituições Estaduais criam os Tribunais de Justiça e as Leis de Organização Judiciária criam a estrutura básica, ou seja, dizem quais são os órgãos. Por exemplo, diz que o Tribunal de Justiça é composto por esses órgãos: Presidência, Corregedoria, Vice-Presidência, Órgão Especial, Conselho da Magistratura, é onde esses órgãos residem. Então as linhas básicas do funcionamento e para que serve cada um desses órgãos. Mas a disciplina, ou seja, o funcionamento disciplinado, a forma de condução dos procedimentos, a atuação e as atribuições de cada órgão, será feito no Regimento Interno do Tribunal. Esse Regimento Interno do Tribunal é um ato administrativo do Tribunal, mas com força normativa. Tanto que o Supremo Tribunal Federal considera a força normativa desses Regimentos Internos como uma expressão genérica abstrata passível inclusive de impugnação geral.

NO ÂMBITO DA JUSTIÇA FEDERAL, A REGULAÇÃO GERAL É DADA PELA LEI Nº 5.010/66, ABSOLUTAMENTE ULTRAPASSADA EM UMA SÉRIE DE PONTOS. CADA TRF POSSUI, POR SUA VEZ, SEU REGIMENTO INTERNO, QUE POSSUI NATUREZA JURÍDICA

DE ATO ADMINISTRATIVO NORMATIVO.

Feitas as devidas separações, esclarece-se: nenhum ato jurisdicional estará sujeito a controle administrativo salvo nas hipóteses especificas do art. 41 da LOMAN.

Art. 41 - Salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir.

Ou seja, não se pode avocar caráter jurisdicional através de ação fiscalizadora administrativa da Corregedoria e do próprio CNJ. Então as decisões judiciais estão, como diz o Supremo Tribunal Federal, imunizadas. Elas não estão sujeitas ao controle sensório dos órgãos de controle interno do Poder Judiciário.

Então é claro que quando falamos de sistema de controle interno do Poder Judiciário, nos refrimos especificamente ao controle interno dos atos administrativos impróprios praticados pelos magistrados.

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Então, a primeira afirmação que nos podemos fazer para as provas objetivas é que o sistema de controle interno do Poder Judiciário se refere aos atos administrativos praticados pelos membro do Poder Judiciário. Em outras palavras, esse controle não se faz em relação aos atos de cunho normativo e tão pouco em relação aos atos que tenham cunho jurisdicional.

Pedro Lessa, citando lição do direito francês, dizia que o Poder Judiciário é o poder fora do Estado. Como assim fora do Estado? Ele é um poder tão especial, tão específico que ele deveria ser considerado como um poder fora do Estado, porque ele tem como objetivo o controle de constitucionalidade, da regularidade, da moralidade de todos os atos praticados pelo Estado. Então ele teria esse perfil e daí a conduta do magistrado estar ligada a esse perfil de serenidade, de seriedade que se diz do magistrado.

Partindo desse principio então, esse sistema de controle interno, ele vai ter alguma repercussão. Primeiro, é um controle interno. Se é um controle interno, pergunta-se: é possível o controle externo do Poder Judiciário? O STF já tratou disso. Alguns estados resolveram criar Conselhos Estaduais de Justiça que tinham mais ou menos o mesmo perfil do Conselho Nacional de Justiça.

Então, a Procuradoria Geral da República ingressou com uma ação direta de inconstitucionalidade dizendo que seria interferência indevida no Poder Judiciário e a existência de órgãos externos ao Poder Judiciário dentro desses órgãos de controle feria gravemente a separação de poderes. O STF diante das situações julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade e declarou inconstitucionais esses Conselhos Estaduais de Justiça afirmando que os Conselhos Estaduais de Justiça são inconstitucionais e que não é possível controle externo do Poder Judiciário:

EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Conselho Estadual de Justiça integrado por membros da magistratura estadual, autoridades pertencentes aos outros Poderes, advogados e representantes de cartórios de notas de registro e de serventuários da Justiça. - A criação, pela Constituição do Estado, de Conselho Estadual de Justiça com essa composição e destinado à fiscalização e ao acompanhamento do desempenho dos órgãos do Poder Judiciário é inconstitucional, por ofensa ao princípio da separação dos Poderes (art. 2º da Constituição Federal), de que são corolários o auto- governo dos Tribunais e a sua autonomia administrativa, financeira e orçamentária (arts. 96, 99 e parágrafos, e 168 da Carta Magna). Ação direta que se julga precedente, para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 176 e 177 da parte permanente da Constituição do Estado do Pará, bem como a do artigo 9º e seu parágrafo único do Ato das Disposições Transitórias dessa mesma Constituição.

(ADI 137, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 14/08/1997, DJ 03-10-1997 PP-49226 EMENT VOL-01885-01 PP-00001)

Nem mesmo se o Conselho fosse criado sob a forma de órgão de controle interno haveria constitucionalidade na prática. Isso porque os Estados membros carecem de competência constitucional para instituir, como órgão interno ou externo do Judiciário, conselho destinado ao

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controle da atividade administrativa, financeira ou disciplinar da respectiva Justiça (vide julgado mais abaixo, sobre a constitucionalidade do CNJ)

E o Conselho Nacional de Justiça dentro desse aspecto, como é que ele fica? Então é por isso que ele foi criado através da EC 45, inciso I-A, no art. 92 da CR, que diz o seguinte, que o CNJ é órgão do Poder Judiciário:

Art. 92. São órgãos do Poder Judiciário:

I - o Supremo Tribunal Federal;

I-A o Conselho Nacional de Justiça; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

II - o Superior Tribunal de Justiça;

III - os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais;

IV - os Tribunais e Juízes do Trabalho;

V - os Tribunais e Juízes Eleitorais;

VI - os Tribunais e Juízes Militares;

VII - os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.

Então quando se afirma que o Conselho Nacional de Justiça é órgão do Poder Judiciário, então o legislador constituinte derivado simplesmente adequou a existência desse órgão ao posicionamento sumular do STF. E o STF foi consultado em nova Ação Direta de Inconstitucionalidade, agora pela associação dos magistrados, e julgou improcedente a ADI entendendo que o CNJ é sim constitucional porque órgão interno do Poder Judiciário:

EMENTAS: 1. AÇÃO. Condição. Interesse processual, ou de agir. Caracterização. Ação direta de inconstitucionalidade. Propositura antes da publicação oficial da Emenda Constitucional nº 45/2004. Publicação superveniente, antes do julgamento da causa. Suficiência. Carência da ação não configurada. Preliminar repelida. Inteligência do art. 267, VI, do CPC. Devendo as condições da ação coexistir à data da sentença, considera-se presente o interesse processual, ou de agir, em ação direta de inconstitucionalidade de Emenda Constitucional que só foi publicada, oficialmente, no curso do processo, mas antes da sentença. 2. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Emenda Constitucional nº 45/2004. Poder Judiciário. Conselho Nacional de Justiça. Instituição e disciplina. Natureza meramente administrativa. Órgão interno de controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura. Constitucionalidade reconhecida. Separação e independência dos Poderes. História, significado e alcance concreto do princípio. Ofensa a cláusula constitucional imutável (cláusula pétrea). Inexistência. Subsistência do núcleo político do princípio, mediante preservação da função jurisdicional, típica do Judiciário, e das condições materiais do seu exercício imparcial e independente. Precedentes e súmula 649. Inaplicabilidade ao caso.

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Interpretação dos arts. 2º e 60, § 4º, III, da CF. Ação julgada improcedente. Votos vencidos. São constitucionais as normas que, introduzidas pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, instituem e disciplinam o Conselho Nacional de Justiça, como órgão administrativo do Poder Judiciário nacional. 3. PODER JUDICIÁRIO. Caráter nacional. Regime orgânico unitário. Controle administrativo, financeiro e disciplinar. Órgão interno ou externo. Conselho de Justiça. Criação por Estado membro. Inadmissibilidade. Falta de competência constitucional. Os Estados membros carecem de competência constitucional para instituir, como órgão interno ou externo do Judiciário, conselho destinado ao controle da atividade administrativa, financeira ou disciplinar da respectiva Justiça. 4. PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justiça. Órgão de natureza exclusivamente administrativa. Atribuições de controle da atividade administrativa, financeira e disciplinar da magistratura. Competência relativa apenas aos órgãos e juízes situados, hierarquicamente, abaixo do Supremo Tribunal Federal. Preeminência deste, como órgão máximo do Poder Judiciário, sobre o Conselho, cujos atos e decisões estão sujeitos a seu controle jurisdicional. Inteligência dos art. 102, caput, inc. I, letra "r", e § 4º, da CF. O Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, sendo esse o órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a que aquele está sujeito. 5. PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justiça. Competência. Magistratura. Magistrado vitalício. Cargo. Perda mediante decisão administrativa. Previsão em texto aprovado pela Câmara dos Deputados e constante do Projeto que resultou na Emenda Constitucional nº 45/2004. Supressão pelo Senado Federal. Reapreciação pela Câmara. Desnecessidade. Subsistência do sentido normativo do texto residual aprovado e promulgado (art. 103-B, § 4º, III). Expressão que, ademais, ofenderia o disposto no art. 95, I, parte final, da CF. Ofensa ao art. 60, § 2º, da CF. Não ocorrência. Argüição repelida. Precedentes. Não precisa ser reapreciada pela Câmara dos Deputados expressão suprimida pelo Senado Federal em texto de projeto que, na redação remanescente, aprovada de ambas as Casas do Congresso, não perdeu sentido normativo. 6. PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justiça. Membro. Advogados e cidadãos. Exercício do mandato. Atividades incompatíveis com tal exercício. Proibição não constante das normas da Emenda Constitucional nº 45/2004. Pendência de projeto tendente a torná-la expressa, mediante acréscimo de § 8º ao art. 103-B da CF. Irrelevância. Ofensa ao princípio da isonomia. Não ocorrência. Impedimentos já previstos à conjugação dos arts. 95, § único, e 127, § 5º, II, da CF. Ação direta de inconstitucionalidade. Pedido aditado. Improcedência. Nenhum dos advogados ou cidadãos membros do Conselho Nacional de Justiça pode, durante o exercício do mandato, exercer atividades incompatíveis com essa condição, tais como exercer outro cargo ou função, salvo uma de magistério, dedicar-se a atividade político-partidária e exercer a advocacia no território nacional.

(ADI 3367, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 13/04/2005, DJ 17-03-2006 PP-00004 EMENT VOL-02225-01 PP-00182 REPUBLICAÇÃO: DJ 22-09-2006 PP-00029)

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6.5.2. Órgãos de Controle Interno do Poder JudiciárioViu-se que o controle interno do Poder Judiciário se faz sob a ótica administrativa, exclusivamente. Então, alguns órgãos administrativos são constituídos para o exercício dessa fiscalização interna pelo próprio Poder Judiciário. Esses órgãos são: a Corregedoria, a Ouvidoria, e o Conselho Nacional de Justiça.

6.5.2.1. CorregedoriaA Corregedoria nada mais é que um órgão do Poder Judiciário encarregado da fiscalização:

i) Da atividade jurisdicional e administrativa prestada pelos juízes;

ii) Da atividade dos órgãos auxiliares da justiça, escrivãs, ..juizado especial, oficial de justiça, perito, técnicos, enfim os auxiliares;

iii) Dos agentes delegados do foro extrajudicial, registradores de imóveis, oficiais de protesto, distribuidores.

Então, o âmbito de fiscalização da Corregedoria, baseia-se nesses três elementos. E a fiscalização se dá em relação ao comportamento administrativo desses órgãos que já dissemos.

Então em relação aos magistrados o que a Corregedoria vai examinar é se o magistrado está atuando de acordo com os deveres: i) constitucionalmente estabelecidos; ii) os deveres estabelecidos na LOMAN; iii) os deveres estabelecidos no CPC, art. 125; iv) os deveres estabelecidos no CPP e v) os deveres estabelecidos no Código de Ética.

Então, se alguém perguntar para você na prova oral: onde se encontram os deveres do magistrado? OS DEVERES SE ENCONTRAM NA CR, NA LOMAN, NO CPC, NO CPP E NO CÓDIGO DE ÉTICA. É ali que eu busco os meus deveres e vou cumpri-los rigorosamente.

A fiscalização sobre os órgãos auxiliares se dá com base nos deveres estabelecidos, se for em nível federal, na Lei nº 8.112/91, se for em nível estadual nós vamos encontrar os estatutos estaduais dos servidores e nas leis de organização e divisão judiciária.

Em relação aos agentes delegados do foro extrajudicial, os deveres estarão especificamente cominados na Lei nº 8.935/94, a lei dos registradores e notários (a Justiça Federal não tem atribuição de fiscalizar os foros extrajudiciais, já que são órgãos estaduais).

Então vejam que a Corregedoria é um órgão do Poder Judiciário. As leis de organização judiciária estabelecem qual o âmbito de fiscalização que a Corregedoria exerce e são os Regimentos Internos dos tribunais que estabelecem exaustivamente as atribuições das Corregedoria (no caso da Justiça Federal, ao menos no TRF1, o regimento interno da Corregedoria foi estabelecido por Provimento - PROVIMENTO/COGER 38, DE 12 DE JUNHO DE

2009) .

ASSIM, QUEM ESTABELECE AS ATRIBUIÇÕES DA CORREGEDORIA É O PRÓPRIO TRIBUNAL.

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Qual é a atuação fiscalizatória da Corregedoria? O que a Corregedoria faz? Bom, a Corregedoria inicialmente faz uma fiscalização, como se fosse uma varredura dos atos praticados, dos atos administrativos, da regularidade dos atos administrativos praticados pelos magistrados, auxiliares e agentes delegados.

Não há uma nomenclatura uniforme sobre os atos das corregedorias. No âmbito do TRF1, estão previstos os seguintes procedimentos (há outros, selecionei apenas os fiscalizatórios/punitivos):

a) Sindicância : será aberta quando o corregedor-geral tomar conhecimento, por meio que não decorra da representação, de erros, abusos ou faltas cometidas, por servidor, que atentem contra o interesse das partes, o decoro das suas funções, a probidade e a dignidade dos cargos que exercem.

b) Procedimento administrativo disciplinar : se contra servidor, obedecerá às disposições legais sobre a matéria. O procedimento administrativo disciplinar instaurado contra juiz federal ou juiz federal substituto obedecerá ao disposto na Lei Complementar 35/79 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), no Regimento Interno do Tribunal e às disposições pertinentes do Conselho Nacional de Justiça, aplicando-se, ainda, subsidiariamente, no que couber, a legislação própria do serviço público federal.

c) Procedimento avulso : deverá ser utilizado para a atividade investigativa preliminar do órgão correcional.

d) Justificação de conduta : o juiz cuja conduta funcional tenha sido ou venha sendo motivo de censura ou comentários poderá requerer justificação de sua conduta perante o Tribunal.

e) Representação : contra erros, abusos ou faltas cometidas, por servidor ou juiz, que atentem contra o interesse das partes, o decoro das suas funções, a probidade e a dignidade dos cargos que exercem, será dirigida ao corregedor-geral.

f) Correição parcial : contra ato ou despacho de juiz de que não caiba recurso, bem como de omissão que importe erro de ofício ou abuso de poder.

g) Correição ordinária : para verificação da regularidade de funcionamento na distribuição da justiça e nas atividades administrativas. A correição objetiva a busca da eficiência e do aprimoramento dos juízos e serviços administrativos, judiciários e cartorários que lhes são afetos, bem assim a troca de experiências. No âmbito do TRF1, ocorre de dois em dois anos.

h) Correição extraordinária : em decorrência de indicadores, informações, reclamações ou denúncias que apontem para a existência de situações especiais de interesse público que as justifiquem, ou em decorrência de fundadas suspeitas ou reclamações que indiquem prática de erros, omissões ou abusos que prejudiquem a prestação jurisdicional, a disciplina judiciária, o prestígio da Justiça Federal ou o regular funcionamento dos serviços de administração da justiça.

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i) Inspeções ordinárias : objetiva a busca da eficiência e do aprimoramento dos juízos e serviços administrativos, judiciários e cartorários que lhes são afetos, bem assim a troca de experiências. A inspeção deve procurar o esclarecimento de situações de fato, a prevenção de irregularidades, o aprimoramento da prestação jurisdicional, a celeridade nos serviços cartorários e, se for o caso, o encaminhamento para apuração de suspeitas ou faltas disciplinares.

Assim, OBSERVA-SE QUE A CORREIÇÃO ORDINÁRIA TEM O FITO DE VERIFICAR A REGULARIDADE, ENQUANTO A INSPEÇÃO ORDINÁRIA BUSCA O APRIMORAMENTO E A EFICIÊNCIA DOS JUÍZOS. ENQUANTO A PRIMEIRA BUSCA ENCERRAR EVENTUAIS IRREGULARIDADES CONSTATADAS, A SEGUNDA BUSCA FOMENTAR BOAS PRÁTICAS NO SERVIÇO JURISDICIONAL.

Durante essas fiscalizações o que pode ocorrer são duas ordem de situações. A primeira: pode se constatar uma mera irregularidade passível de correção imediata. Então, por exemplo, é uma forma de proceder do magistrado na condução do processo, são atrasos pontuais na prestação jurisdicional, é uma forma que não foi observada pelo agente delegado. Então isso é passível da chamada recomendação.

A RECOMENDAÇÃO nada mais é do que uma orientação para o servidor ou magistrado no sentido de que ele tem que atuar de determinada forma. O não atendimento dessa recomendação poderá gerar uma apuração disciplinar.

Agora também nas correições nos podemos observar a existência de faltas funcionais. Se a falta funcional for observada, for detectada, então cumpre à Corregedoria apurar esta falta mediante sindicância e de mediante processo administrativo disciplinar.

Bom, a última atividade da Corregedoria, que é também uma atividade administrativa, é a auto-organização dos serviços judiciais. Assim que o candidato ingressa na magistratura, além dele ganhar um exemplar do Código de Ética, ele também ganha o Código de Norma, que nada mais é que uma disposição normativa geral da Corregedoria Geral da Justiça (NO TRF1, É CHAMADO DE CORREGEDORIA REGIONAL DE JUSTIÇA. CREIO SER IGUAL NOS DEMAIS TRF´S), que dispõe sobre o serviço judiciário, que é a organização dos cartórios, a forma de condução dos serviços, dispõe também a respeito daquelas matérias que o CPP e o CPC não dispuseram.

Logo, essas disposições normativas gerais objetivam a disciplina daquelas questões que não foram especificamente investigadas ou disciplinadas na legislação federal. Então por exemplo, a utilização da audiência digital, da gravação digital de som e imagem. Essa possibilidade ela é só permitida pela legislação federal, mas não é disciplinada. Então vocês vão encontrar uma instrução normativa da Corregedoria exatamente como é que funciona isso, se carta precatória pode, se carta precatória não pode, enfim, todas essas questões.

Quantos Corregedores podem ter um tribunal? A resposta esta na LOMAN, art. 103, § 2º:

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Art. 103 - O Presidente e o Corregedor da Justiça não integrarão as Câmaras ou Turmas. A Lei estadual poderá estender a mesma proibição também aos Vice-Presidentes.

§ 1º - Nos Tribunais com mais de trinta Desembargadores a lei de organização judiciária poderá prever a existência de mais de um Vice-Presidente, com as funções que a lei e o Regimento Interno determinarem, observado quanto a eles, inclusive, o disposto no caput deste artigo.

§ 2º - Nos Estados com mais de cem Comarcas e duzentas Varas, poderá haver até dois Corregedores, com as funções que a lei e o Regimento Interno determinarem.

Então vejam que há possibilidade de existência de até dois Corregedores com aquelas funções que a lei e o regimento interno determinarem.

O Corregedor Geral de Justiça ele é considerado um órgão de cúpula do Poder judiciário.

Quais são os órgãos de cúpula do Tribunal? Quem responde essa pergunta é o STF. Diz o STF que são órgãos de cúpula: o Presidente do Tribunal, o Vice Presidente do Tribunal e o Corregedor Geral da Justiça. Então esses são os órgãos de cúpula. Quem dá essa resposta é o STF à luz da LOMAN.

E por servir como órgão de cúpula, ou seja, é órgão vigente do TRF. Quando se fala que trata-se de órgão de cúpula é porque ele vige no TRF, como também o Presidente do Tribunal e o Vice Presidente.

O CORREGEDOR REGIONAL DE JUSTIÇA NÃO IMPÕE PENALIDADE A MAGISTRADO, MAS PROPÕE A INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR PERANTE A CORTE ESPECIAL ADMINISTRATIVA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL (há outras nomenclaturas em outras Regiões).

Síntese do que visto até aqui.

1. O sistema de controle interno do Poder Judiciário é feito apenas sob a ótica administrativa. A atividade jurisdicional só tem controle através de recurso civil ou criminal.

2. São órgãos que participam dessa fiscalização do controle interno: a Corregedoria, a Ouvidoria e o Conselho Nacional de Justiça.

Em relação à Corregedoria:

* A Corregedoria é um órgão do Poder Judiciário criada pela legislação estadual.

* A Lei de Organização Judiciária e as atribuições do Corregedor são todas estabelecidas pelo Regimento Interno.

* O Regimento Interno é um ato de cunho normativo.

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* O Corregedor Geral de Justiça exerce fiscalização sobre três agentes especificamente: o magistrado, auxiliares da justiça e agentes delegados.

* Os deveres do magistrado estão na Constituição Federal, na LOMAN, no CPC, no CPP e no Código de Ética.

* Os deveres dos servidores estão no Estatuto dos Servidores Federais e nas Leis de Organização Judiciárias. E os deveres de notários e registradores, na Lei de notários e registradores.

* O Corregedor exerce dois tipos de fiscalização básicas: quanto a regularidade das atividades e quanto a existência de falta funcional.

Se a atividade é meramente irregular e passível de correção ele determina uma recomendação, que deve ser atendida sob pena de instauração de processo administrativo disciplinar contra o recalcitrante.

Se detectada uma falta funcional o Corregedor instaura sindicância e depois pode então instaurar processo administrativo disciplinar.

Em relação ao magistrado compete ao Corregedor única e exclusivamente apurar a existência da falta funcional e propor ou não ao Órgão Especial a instalação de processo administrativo disciplinar.

* Os Tribunais poderão estabelecer ate dois Corregedores, cujas atribuições deverão estar previstos no Regimento Interno do Tribunal de Justiça.

3. O STF tem algumas afirmações importantes nessa matéria:

a) O Poder Judiciário é de âmbito nacional e, portanto, há de se ter nivelamento dos tribunais de todo país.

b) O Conselho Nacional de Justiça é um órgão constitucional porque é um órgão interno do Poder Judiciário.

c) Quaisquer Conselhos Estaduais de Justiça são inconstitucionais porque violam o principio da separação de poderes. Não se trata de órgão interno do Poder Judiciário e sim externo e não é possível controle externo da magistratura.

d) Mesmo se os Estados quisessem criar Conselhos Estaduais de Justiça dentro da estrutura do Poder Judiciário não poderiam fazê-lo, visto que não possuem competência para isso.

e) Compõem os órgãos de cúpula dos tribunais: o Presidente e o Vice Presidente e o Corregedor Geral de Justiça.

6.5.2.2. OuvidoriaArt. 103-B, CR/88 [...]

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§ 7º A União, inclusive no Distrito Federal e nos Territórios, criará ouvidorias de justiça, competentes para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, ou contra seus serviços auxiliares, representando diretamente ao Conselho Nacional de Justiça.

As ouvidorias são uma criação da União, ela tem objetivo muito específico de fazer o contato direto entre a Justiça e a população. Por quê? Não é que não existam mecanismos para receber reclamações ou denuncias, é claro que existem. As corregedorias sempre fizeram isso e não só as corregedorias, os juízes também faziam.

Os juízes, antes mesmo da corregedoria, já tem o dever funcional de receber as reclamações ou denuncias, processá-las e encaminhá-las de acordo com as atribuições administrativas de cada órgão. As Corregedorias sempre tiveram uma contribuição. É que se entendeu, num momento político histórico do Brasil, que seria interessante criar esse órgão que é o órgão de ouvidoria, então o único objetivo desse órgão é receber as denuncias.

ELA NÃO FAZ NENHUMA ESPÉCIE DE FILTRO, NÃO CONVOCA MANIFESTAÇÃO DA PARTE CONTRÁRIA, DAQUELE QUE ESTA SENDO DENUNCIADO, NADA DISSO É FEITO. SIMPLESMENTE É O RECEBIMENTO E O ENCAMINHAMENTO DIRETO AO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA.

A Ouvidoria recebe a denuncia ou reclamação e representa diretamente ao CNJ, ou seja, não há uma manifestação prévia relativamente àquele que está sendo denunciado. Esse é o primeiro ponto.

Por questão de política, resolveram criar um órgão especifico para coleta dessas reclamações ate para se garantir uma ausência de eventual corporativismo.

Então com a impessoalidade no órgão de recebimento, ele não agaveta as questões dos tribunais federais e vai direto para o órgão de fiscalização, garantindo uma grande impessoalidade.

Segunda questão sobre essas Ouvidorias. Na leitura do artigo diz o seguinte. A União, inclusive no Distrito Federal e Territórios, criará ouvidorias. E os Estados? Veja que na redação do artigo não estão inseridos os Estados, PORTANTO OS ESTADOS NÃO TEM O DEVER DE CRIAR OUVIDORIAS, embora a proposta da EC discutisse essa possibilidade. Discutiu-se inclusive a possibilidade de se estarem criando Ouvidoria em nível estadual. Mas isso não foi inserido no texto da Constituição Federal. A União, inclusive no Distrito Federal e Territórios, tem o dever constitucional de constituir ouvidorias..

6.5.2.3. Conselho Nacional de Justiça

6.5.2.3.1. Introdução e Composição

O terceiro órgão de controle interno do Poder Judiciário é o Conselho Nacional de Justiça.

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O CNJ é um órgão relativamente recente que vem produzindo inúmeros atos, atos estes que tem uma implicação nos comportamento dos tribunais e, portanto, tem causado inúmeras questões jurídicas em função dessa atuação do CNJ.

E em função da atuação do CNJ no controle da legalidade, muitas vezes os próprios atos do CNJ são impugnados.

Desde logo, ressalte-se algo pacífico no STF: o CNJ nunca poderá realizar revisão de decisão jurisdicional. É controle interno, administrativo, e não controle de mérito de decisões judiciais:

MS 28611 MC/MA

RELATOR: Min. Celso de Mello

EMENTA: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). CORREGEDOR NACIONAL DE JUSTIÇA. ATO QUE SUSPENDE A EFICÁCIA DE DECISÃO CONCESSIVA DE MANDADO DE SEGURANÇA EMANADA DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA. INADMISSIBILIDADE. ATUAÇÃO “ULTRA VIRES” DO CORREGEDOR NACIONAL DE JUSTIÇA, PORQUE EXCEDENTE DOS ESTRITOS LIMITES DAS ATRIBUIÇÕES MERAMENTE ADMINISTRATIVAS OUTORGADAS PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, NÃO OBSTANTE ÓRGÃO DE CONTROLE INTERNO DO PODER JUDICIÁRIO, PARA INTERVIR EM PROCESSOS DE NATUREZA JURISDICIONAL. IMPOSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL DE O CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (QUE SE QUALIFICA COMO ÓRGÃO DE CARÁTER EMINENTEMENTE ADMINISTRATIVO) FISCALIZAR, REEXAMINAR E SUSPENDER OS EFEITOS DECORRENTES DE ATO DE CONTEÚDO JURISDICIONAL, COMO AQUELE QUE CONCEDE MANDADO DE SEGURANÇA. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MAGISTÉRIO DA DOUTRINA. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA.

Então vejam. O CNJ é um órgão de fiscalização? É. Mas também está sujeito ao controle. Então não poderia, em hipótese nenhuma, criar um órgão, com superpoderes para controle e fiscalização do Poder Judiciário sem que houvesse uma válvula de controle do próprio órgão. Numa democracia, é principio basilar que nenhum órgão escape de qualquer forma de controle. Todo órgão tem que ter uma forma de controle, uma forma de intervenção e contenção do poder.

Podemos ver isso em relação ao Presidente da Republica que esta sujeito a impeachment. Então, nem mesmo o Presidente da Republica ele esta imunizado de controle do poder. Também não estaria o Conselho Nacional de Justiça.

O CNJ será presidido por membro do STF, tendo como Ministro-corregedor o membro do STJ. Ele é composto por 15 membros, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, para mandato de dois anos, permitida uma única recondução sucessiva, com idade entre 35 e 66 anos. São membros do CNJ:

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Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de 15 (quinze) membros com mandato de 2 (dois) anos, admitida 1 (uma) recondução, sendo: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 61, de 2009)

I - o Presidente do Supremo Tribunal Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 61, de 2009)

II - um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, indicado pelo respectivo tribunal;

III - um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, indicado pelo respectivo tribunal;

IV - um desembargador de Tribunal de Justiça, indicado pelo Supremo Tribunal Federal;

V - um juiz estadual, indicado pelo Supremo Tribunal Federal;

VI - um juiz de Tribunal Regional Federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça;

VII - um juiz federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça;

VIII - um juiz de Tribunal Regional do Trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho;

IX - um juiz do trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho;

X - um membro do Ministério Público da União, indicado pelo Procurador-Geral da República;

XI um membro do Ministério Público estadual, escolhido pelo Procurador-Geral da República dentre os nomes indicados pelo órgão competente de cada instituição estadual;

XII - dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;

XIII - dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.

§ 1º O Conselho será presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal e, nas suas ausências e impedimentos, pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 61, de 2009)

§ 2º Os demais membros do Conselho serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 61, de 2009)

O Conselho será presidido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, que votará em caso de empate, ficando excluído da distribuição de processos naquele tribunal. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA NÃO NOMEARÁ OS MINISTROS DO STF, OS QUAIS SÃO NOMEADOS DIRETAMENTE PELA CONSTITUIÇÃO. SÓ NOMEARÁ OS DEMAIS MEMBROS. Logo, é falsa a assertiva de prova que disser que todos os membros do CNJ serão nomeados por ele após aprovação do Senado Federal (vide § 2º acima).

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Ao CNJ compete o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, não se tratando de órgão de controle externo e podendo suas decisões, sempre, ser impugnadas perante o STF.

O STF rejeitou, em julgamento de ADIN, a alegação de que o CNJ representava afronta ao pacto federativo, já que não representa controle da União sobre os Estados, por não se tratar ele de órgão da União, e sim de órgão do Poder Judiciário Nacional (já visto em julgado acima colacionado).

O STF reconheceu também o PODER NORMATIVO PRIMÁRIO do CNJ para regulamentar as matérias que lhe são afetas.

6.5.2.3.2. Atribuições do CNJ

São atribuições do CNJ:

Art. 103-B [...]

§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

Fazer o controle da atuação administrativa e financeira dos tribunais significa fazer uma fiscalização sobre as atividades administrativas dos tribunais, ou seja, na sua organização, produção de atos administrativos. Então, exemplificativamente, naqueles tribunais em que ainda não se adotou determinada postura tida como indispensável à eficiência da justiça, por exemplo, a implantação do processo virtual, é possível que o CNJ insira mecanismos ordenando ao tribunal de justiça que produza os atos de adequação desse perfil.

Financeiramente, isso já ocorre através até de medidas normativas, o CNJ tem feito já o controle, editando algumas resoluções que dispõem, por exemplo, sobre questões financeiras, a resolução que trata das diárias dos magistrados, e da resolução que trata dos cargos oficiais.

Nos dois casos o CNJ regulamentou patamares de gastos com diárias e as formas pelas quais as diárias dos magistrados são concedidas e os valores a serem pagos. E também dispôs sobre a forma desse direito e o uso desse direito. Então, essas determinações, embora genéricas e aplicadas a todos os tribunais através de Resoluções, acabam impondo uma alteração nas disposições financeiras dos tribunais. E o CNJ tem legitimidade constitucional, inclusive, para invadir outras esferas de gastos dos tribunais, readequando-os ao principio da eficiência e da moralidade administrativa.

É possível que não só de forma genérica através de resoluções seja feita, mas concretamente através de atos de fiscalização in loco. Como assim? Talvez vocês já tenham ouvido falar que o corregedor nacional de justiça tenha feito inspeções nos tribunais, e não raras vezes essa inspeções resultam em determinações e até apuração de faltas funcionais dos magistrados, quando não dos desembargadores. É exatamente nesse momento de inspeções que a equipe

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do corregedor nacional de justiça se desloca de Brasília e vai até o estado, e lá tem amplíssimos poderes para inspecionar todo o tribunal. Isso significa que eles têm, pelo regimento interno, inclusive, poderes para ter acesso a todos os órgãos, todos os departamentos e repartições do tribunal, e assim fazendo, examinarão livros, examinarão despesas realizadas, gastos, contas, enfim uma farão auditoria financeira e administrativa e poderá resultar eventualmente na punição de alguma prática irregular.

Sobre o tema:

“A segunda modalidade de atribuições do Conselho diz respeito ao controle ‘do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes’ (art. 103-B, § 4º). E tampouco parece-me hostil à imparcialidade jurisdicional.Representa expressiva conquista do Estado democrático de direito, a consciência de que mecanismos de responsabilização dos juízes por inobservância das obrigações funcionais são também imprescindíveis à boa prestação jurisdicional. (...).Entre nós, é coisa notória que os atuais instrumentos orgânicos de controle ético-disciplinar dos juízes, porque praticamente circunscritos às corregedorias, não são de todo eficientes, sobretudo nos graus superiores de jurisdição (...).Perante esse quadro de relativa inoperância dos órgãos internos a que se confinava o controle dos deveres funcionais dos magistrados, não havia nem há por onde deixar de curvar-se ao cautério de Nicoló Trocker: ‘o privilégio da substancial irresponsabilidade do magistrado não pode constituir o preço que a coletividade é chamada a pagar, em troca da independência dos seus juízes’. (...).TEM-SE, PORTANTO, DE RECONHECER, COMO IMPERATIVO DO REGIME REPUBLICANO E DA PRÓPRIA INTEIREZA E SERVENTIA DA FUNÇÃO, A NECESSIDADE DE CONVÍVIO PERMANENTE ENTRE A INDEPENDÊNCIA JURISDICIONAL E INSTRUMENTOS DE RESPONSABILIZAÇÃO DOS JUÍZES QUE NÃO SEJAM APENAS FORMAIS, MAS QUE CUMPRAM, COM EFETIVIDADE, O ELEVADO PAPEL QUE SE LHES PREDICA. (...).” (grifei) (STF, MS 28.801/DF)

i. Zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;

Como o CNJ zela pela atuação do Poder Judiciário? Em primeiro lugar, o STF, nos termos da LOMAM, sempre zelou pela autonomia do Poder Judiciário. Então o órgão que sempre zelou pela autonomia do Poder Judiciário nos termos da LOMAN sempre foi o STF, inclusive quando não há repasse de verbas orçamentárias é o STF que gerencia essa situação.

Agora a CR inova e estabelece também o CNJ para zelar por essa autonomia. E zelar por essa autonomia significa tomar providencias necessárias para que o Poder Judiciário exercite a sua atividade com plena independência funcional, ou seja, que o Poder Judiciário, os órgãos do Poder Judiciário, os juízes, exerçam a sua atividade com plena independência, esse é o sentido da expressão zelar pela autonomia. E essa independência vai desde uma interferência indevida no julgamento dos magistrados, o que pode ferir essa independência, por exemplo pode haver uma tentativa de interferência política nas decisões judiciais, o que é muito grave, ou pode ter

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uma tentativa de interferência na decisões judiciais até por ato de membros do próprio Poder Judiciário, o que também é gravíssimo, e isso merece uma imediata correção. E finalmente pode haver uma interferência na supressão de verbas orçamentárias, daí porque é legitimo ao CNJ gestionar com os demais poderes da federação para que se busque um ajuste orçamentário, um diálogo entre o CNJ e as demais instituições para que se atinja um ajuste orçamentário indispensável para que o Poder Judiciário possa aprimorar suas atividades.

Outra atribuição é o cumprimento do estatuto da magistratura. O estatuto da magistratura é iniciativa do Supremo, por lei complementar e o CNJ vela por seu cumprimento. Mas é só o CNJ que vela pelo cumprimento do estatuto da magistratura? Não, velam pelo comprimento do estatuto da magistratura o magistrado, as corregedorias, os tribunais e o CNJ. Agora, as repercussões de ordem financeira e administrativa terão a fiscalização hierárquica superior do CNJ.

Outra atribuição do CNJ e que fundamenta vários de seus atos é a expedição de atos regulamentares. Exemplos de atos regulamentares: resoluções, recomendações e instruções. O ato regulamentatorio do CNJ segue a mesma linha dos atos regulamentares do direito administrativo. Não há possibilidade, portanto, de que o CNJ edite atos regulamentares autônomos, não é possível que o CNJ edite atos regulamentares sem embasamento legal, criando normas no ordenamento jurídico, porque a mesma regra dos atos administrativos para os atos regulamentares da administração se aplicam ao CNJ. Então como conclusão direta que

podemos fazer, O CNJ NÃO EDITA REGULAMENTOS AUTÔNOMOS. Então essa regulamentação do CNJ deve ser para esclarecer, para disciplinar a própria legislação existente, as regulamentações não poderão violar a legislação.

a) Resolução : ato do CNJ que objetiva encaminhar orientações de caráter normativo geral e abstratos, para os tribunais e todos os órgãos jurisdicionais. A resolução, portanto, tem caráter geral, genérico, abstrato e dirigida a todos os órgãos do Poder Judiciário, como a resolução para concurso público de ingresso na magistratura e tantas outras.

b) Recomendações : orientações destinadas a todos os órgãos jurisdicionais ou para alguns especificamente. O conselho faz recomendação dirigida a todos os tribunais, como é a recomendação número 24 do CNJ que dispõe sobre o aceleramento dos processo criminais que tratam matéria de júri. Todos os tribunais vão obedecer àquela recomendação específica naquela área. Como pode também haver uma recomendação de caráter individual, destinado a um tribunal específico, por exemplo a que se destina a determinada área, ou magistrado, para que passe a observar determinada atitude, determinada conduta.

c) Instrução : objetiva normatizar uma conduta, um comportamento dos órgãos jurisdicionais ou auxiliares descrevendo os procedimentos a serem adotados. então, não é simplesmente uma exortação genérica, é uma regulamentação dos procedimentos que vão ser adotados pelos órgãos do Poder Judiciário, inclusive pelos

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órgãos auxiliares. Então, a descrição do procedimento, como se conduz o comportamento daqueles órgãos do Poder Judiciário.

Sobre a recomendação de providências:

É válida a determinação do CNJ que estabeleceu ser necessário o registro no BACEN JUD por parte dos magistrados, para que efetuem a penhora online. No caso, o impetrante, juiz federal, sustentava, em síntese, que o ato apontado como coator implicaria afronta à independência funcional; significaria desvio da principal função dos juízes, a julgadora, de modo a reduzi-los a simples meirinhos. O CNJ poderia instituir condutas e impor a toda magistratura nacional o cumprimento de obrigações de essência puramente administrativa, como a que determinaria aos magistrados a inscrição em cadastros ou sítios eletrônicos com finalidades estatística e fiscalizatória ou, para materializar ato processual. Destacou-se que a inscrição no BACEN JUD, sem qualquer cunho jurisdicional, preservaria a liberdade de convicção para praticar atos processuais essenciais ao processamento dos feitos de sua competência, bem como julgá-los segundo o princípio da persuasão racional, adotado pelo direito processual pátrio. Esse cadastro permitiria ao magistrado optar pela utilização dessa ferramenta quando praticasse certo ato processual e, logicamente, se esse fosse o seu entendimento jurídico. MS 27621/DF, rel. Min. Cármen Lúcia, red. p/ o acórdão Min. Ricardo Lewandowski, 7.12.2011

Continuando.

ii. Zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União;

O CNJ zela pelo artigo 37, caput da CR, ou seja, pelos princípios administrativos ; isso é importantíssimo, porque, além da publicidade, legalidade, impessoalidade e eficiência, ainda o CNJ deve primar pelo principio da moralidade, e esse principio da moralidade é amplíssimo, de tal forma que esse controle causou a maior discussão entre os tribunais. Exemplo: há um caso no STF no qual o CNJ anulou um concurso público para ingresso na carreira da magistratura em determinado estado da federação, sob o fundamento de que dois candidatos aprovados, seriam do corpo de assessores de desembargadores que participaram da banca examinadora, então, por esse fato exclusivo, eles anularam o concurso. Vejam, se os aprovados, eram assessores dos desembargadores, e os desembargadores estavam na banca examinadora, então houve um pressuposto de que houve quebra da moralidade administrativa. O STF em mandado de segurança desconstituiu a decisão do CNJ por entender que a má-fé e a ausência de impessoalidade não pode ser presumida, deve ser demonstrada, então, não há nenhuma conotação de caráter moral por parte de alguém que seja assessor de desembargador e seja aprovado, mesmo que esse desembargador seja componente da banca. Há necessidade de demonstrar concretamente se houve influencia ou não, e ainda foram citados vários precedente no STF nesse sentido. Então, o CNJ também examina essas questões e tem se manifestado sobre anulação de editais de concurso, anulação de editais para contratação

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pelos tribunais, tem também se manifestado sobre provimento de cargos na área de foro judicial e extrajudicial, sobre a oficialização da serventia, sobre a privatização dos agentes delegados, todas as atividade abrangidas pelos princípios administrativos.

Uma discussão que se travou no STF, embora a CR deixe claro foi o seguinte: o CNJ pode, de oficio, fazer o controle de legalidade dos atos administrativos dos tribunais? Ou há necessidade de uma provocação? Embora a CR deixe claro nesse sentido, há possibilidade de que seja feito de oficio, o STF reafirmou essa possibilidade. Isso foi inclusive decidido da ADI 4.638, abaixo comentada.

iii. Receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, PODENDO AVOCAR PROCESSOS DISCIPLINARES EM CURSO E DETERMINAR A REMOÇÃO, A DISPONIBILIDADE OU A APOSENTADORIA COM SUBSÍDIOS OU PROVENTOS PROPORCIONAIS AO TEMPO DE SERVIÇO E APLICAR OUTRAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS, ASSEGURADA AMPLA DEFESA;

O que é essa avocação de processo e como ela ocorre está no regimento interno do CNJ. A avocação se dá tanto de oficio, por iniciativa das partes, ou até por provocação do PGR. Isso vai significar um interesse público em que o CNJ examine aquela matéria que está sendo tratada. A necessidade de busca, de atração desses autos, faz com que o CNJ decida, ao invés de deixar que o tribunal se manifeste sobre aquele assunto. Como é que provoca isso? Como se processa a avocatória? Uma vez provocada a avocação, ou seja de oficio, seja por provocação do PGR ou da parte, esse pedido de avocação será dirigido ao plenário do CNJ, e o plenário julga se haverá ou não caso de avocação. Não sendo caso de avocação é arquivado e sendo caso de avocação, há uma comunicação direta e formal ao tribunal e a requisição dos autos que passarão a ter trâmite perante o CNJ. É o próprio CNJ que avoca de plenário e depois é o próprio CNJ pelo plenário que vai julgar o processo que foi avocado.

Sobre essa competência, O STF JÁ A COMPLEMENTOU, DIZENDO TER O CNJ TAMBÉM PODERES PARA OBSTAR PROCESSAMENTO DE SINDICÂNCIA EM SEDE INFERIOR, COM BASE NA TEORIA DOS PODERES IMPLÍCITOS:

CNJ: dispensa de sindicância e interceptação telefônica – 2A Min. Ellen Gracie, relatora, denegou o writ. Preliminarmente, reconheceu a competência do STF para o exame da matéria e a possibilidade de o Presidente do CNJ delegar a sua atribuição de presidir as sessões plenárias e de se licenciar (RICNJ, artigos 3º, 4º, III, IV, XXVI, 5º, 6º, IV e 23, I). Acrescentou, inclusive, recente alteração regimental para permitir ao Vice-Presidente do Supremo substituir o Presidente do CNJ. Ressaltou, todavia, que na época do julgamento da reclamação disciplinar a regra ainda não estaria em vigor. No mérito, aduziu competir ao CNJ o controle do cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados brasileiros, cabendo-lhe receber e conhecer de reclamações contra membros do Poder Judiciário (CR, art. 103-B, § 4 º, III e V). Consignou que, tendo em conta o princípio da hermenêutica constitucional dos “poderes implícitos”, se a tal órgão

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administrativo fora concedida a faculdade de avocar processos disciplinares em curso, de igual modo, PODERIA OBSTAR O PROCESSAMENTO DE SINDICÂNCIA EM TRAMITAÇÃO NO TRIBUNAL DE ORIGEM, MERO PROCEDIMENTO PREPARATÓRIO. Ademais, realçou que, no caso, o CNJ concluíra pela existência de elementos suficientes para a instauração de processo administrativo disciplinar, com dispensa da sindicância.MS 28003/DF, rel. Min. Ellen Gracie, 16.3.2011. (MS-28003)

CNJ: dispensa de sindicância e interceptação telefônica - 6No mérito, aduziu-se competir ao CNJ o controle do cumprimento dos

deveres funcionais dos magistrados brasileiros, cabendo-lhe receber e conhecer de reclamações contra membros do Poder Judiciário (CF, art. 103-B, § 4 º, III e V). Consignou-se que, TENDO EM CONTA O PRINCÍPIO DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL DOS “PODERES IMPLÍCITOS”, SE A ESSE ÓRGÃO ADMINISTRATIVO FORA CONCEDIDA A FACULDADE DE AVOCAR PROCESSOS DISCIPLINARES EM CURSO, DE IGUAL MODO, PODERIA OBSTAR O PROCESSAMENTO DE SINDICÂNCIA EM TRAMITAÇÃO NO TRIBUNAL DE ORIGEM, MERO PROCEDIMENTO PREPARATÓRIO. Ademais, realçou-se que, no caso, o CNJ concluíra pela existência de elementos suficientes para a instauração de processo administrativo disciplinar, com dispensa da sindicância. Rechaçou-se, ainda, a alegação de invalidade da primeira interceptação telefônica. Registrou-se que, na situação em apreço, a autoridade judiciária competente teria autorizado o aludido monitoramento dos telefones de outros envolvidos em supostas irregularidades em execuções de convênios firmados entre determinada prefeitura e órgãos do governo federal. Ocorre que a impetrante teria mantido contatos, principalmente, com o secretário municipal de governo, cujo número também seria objeto da interceptação. Assim, quando das degravações das conversas, teriam sido verificadas condutas da impetrante consideradas, em princípio, eticamente duvidosas — recebimento de vantagens provenientes da prefeitura —, o que ensejara a instauração do processo administrativo disciplinar. Acresceu-se que a descoberta fortuita ou casual do possível envolvimento da impetrante não teria o condão de qualificar essa prova como ilícita. Dessa forma, reputou-se não ser razoável que o CNJ deixasse de apurar esses fatos apenas porque o objeto da citada investigação criminal seria diferente das supostas irregularidades imputadas à impetrante. Discorreu-se, ademais, não poder o Judiciário, do qual o CNJ seria órgão, omitir-se no tocante à averiguação de eventuais fatos graves que dissessem respeito à conduta de seus magistrados, ainda que colhidos via interceptação de comunicações telefônicas judicialmente autorizada em inquérito instaurado com o fito de investigar outras pessoas e fatos diversos. MS 28003/DF, rel. orig. Min. Ellen Gracie, red. p/ o acórdão Min. Luiz Fux, 8.2.2012. (MS-28003)

Continuando.

iv. Representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade;

v. Rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano;

Enquanto a avocação é um expediente que se dá em procedimento administrativo em curso, ele ainda não acabou, a revisão do processo disciplinar se dá em procedimento disciplinar já

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encerrado. O procedimento disciplinar já foi encerrado; o mesmo procedimento adotado na avocação vai ser adotado também agora na revisão, ou seja, leva ao plenário, o plenário julga, e se julgar procedente o pedido, o processo vai para o CNJ, e depois é inserido em pauta novamente, depois do relatório, é inserido em pauta novamente e o CNJ poderá não rever a decisão. Então, primeiro o CNJ decide se é o caso de revisão, e depois ele promove a revisão ou não.

Uma pergunta que pode ser feita em relação a essa questão é a seguinte: essa revisão equivale a um recurso administrativo perante o CNJ? A resposta, prevista no regimento interno do CNJ, é negativa. Nele, há a separação entre a revisão administrativa disciplinar e recurso administrativo. O recurso administrativo é contra ato de autoridade do CNJ interposto perante o plenário. E das decisões do plenário cabe recurso administrativo? Não, o regimento interno do CNJ impede, ou inviabiliza recurso contra decisão do plenário. Então, não há recurso contra a decisão do plenário do CNJ, somente de membro isolado do órgão.

O STF tem competência prevista no artigo 102, I, letra r da CR, pela qual as ações contra o CNJ e o CNMP serão julgadas nele. Evidentemente, entretanto, que tal competência não de natureza recursal administrativa recursal, cingindo-se apenas ao controle judicial dos atos administrativos do CNJ.

vi. Elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário;

vii. Elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa.

6.5.2.3.3. Atuação do PGR e do Presidente do Conselho Federal da OAB

Atuam perante o CNJ o procurador geral da república e o presidente do conselho federal da ordem dos advogados do Brasil.

A ausência do procurador geral da república ou do presidente da conselho federal da OAB nas sessões do CNJ é causa de nulidade da sessão ou ato praticado? Segundo o STF não:

EMENTA: I. Mandado de segurança contra ato do Conselho Nacional de Justiça: arquivamento de petição que pretendia a anulação de decisão judicial, por alegado vício processual atribuído aos Ministros do Superior Tribunal de Justiça: indeferimento. 1. Ainda que disponha o art. 103-B, § 6º, da Constituição Federal que "junto ao Conselho oficiarão o Procurador-Geral da República e o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil", a ausência destes às sessões do Conselho não importa em nulidade das mesmas. 2. A dispensa da lavratura do acórdão (RICNJ, art. 103, § 3º), quando mantido o pronunciamento do relator da decisão recorrida pelo Plenário, não traduz ausência de fundamentação: II.

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Conselho Nacional de Justiça: competência restrita ao controle de atuação administrativa e financeira dos órgãos do Poder Judiciário a ele sujeitos.

(MS 25879 AgR, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 23/08/2006, DJ 08-09-2006 PP-00034 EMENT VOL-02246-01 PP-00200 RTJ VOL-00200-01 PP-00110 LEXSTF v. 28, n. 334, 2006, p. 202-207 RT v. 96, n. 855, 2007, p. 184-186)

6.5.2.3.4. CNJ e o Princípio da Subsidiariedade

MS 28.801/DF

EMENTA: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. JURISDIÇÃO CENSÓRIA. APURAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DISCIPLINAR DE MAGISTRADOS. LEGITIMIDADE DA IMPOSIÇÃO, A ELES, DE SANÇÕES DE ÍNDOLE ADMINISTRATIVA. A RESPONSABILIDADE DOS JUÍZES: UMA EXPRESSÃO DO POSTULADO REPUBLICANO. CARÁTER NACIONAL DO PODER JUDICIÁRIO. AUTOGOVERNO DA MAGISTRATURA: GARANTIA CONSTITUCIONAL DE CARÁTER OBJETIVO. EXERCÍCIO PRIORITÁRIO, PELOS TRIBUNAIS EM GERAL, DO PODER DISCIPLINAR QUANTO AOS SEUS MEMBROS E AOS JUÍZES A ELES VINCULADOS. A QUESTÃO DAS DELICADAS RELAÇÕES ENTRE A AUTONOMIA CONSTITUCIONAL DOS TRIBUNAIS E A JURISDIÇÃO CENSÓRIA OUTORGADA AO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. EXISTÊNCIA DE SITUAÇÃO DE TENSÃO DIALÉTICA ENTRE A PRETENSÃO DE AUTONOMIA DOS TRIBUNAIS E O PODER DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA NA ESTRUTURA CENTRAL DO APARELHO JUDICIÁRIO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE COMO REQUISITO LEGITIMADOR DO EXERCÍCIO, PELO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, DE UMA COMPETÊNCIA COMPLEMENTAR EM MATÉRIA CORRECIONAL, DISCIPLINAR E ADMINISTRATIVA. PAPEL RELEVANTE, NESSE CONTEXTO, PORQUE HARMONIZADOR DE PRERROGATIVAS ANTAGÔNICAS, DESEMPENHADO PELA CLÁUSULA DE SUBSIDIARIEDADE. COMPETÊNCIA DISCIPLINAR E PODER DE FISCALIZAÇÃO E CONTROLE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA: EXERCÍCIO, PELO CNJ , QUE PRESSUPÕE, PARA LEGITIMAR-SE, A OCORRÊNCIA DE SITUAÇÕES ANÔMALAS E EXCEPCIONAIS REGISTRADAS NO ÂMBITO DOS TRIBUNAIS EM GERAL (HIPÓTESES DE INÉRCIA, DE SIMULAÇÃO INVESTIGATÓRIA, DE PROCRASTINAÇÃO INDEVIDA E/OU DE INCAPACIDADE DE ATUAÇÃO). PRESENÇA CUMULATIVA, NA ESPÉCIE, DOS REQUISITOS CONFIGURADORES DA PLAUSIBILIDADE JURÍDICA E DO “PERICULUM IN MORA”. SUSPENSÃO CAUTELAR DA EFICÁCIA DA PUNIÇÃO IMPOSTA PELO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, CONSISTENTE EM APOSENTADORIA COMPULSÓRIA DO MAGISTRADO, POR INTERESSE PÚBLICO (CR, ART. 93, VIII, c/c O ART. 103-B, § 4º, III). MEDIDA LIMINAR DEFERIDA.

a sujeição dos magistrados às consequências jurídicas de seu próprio comportamento revela-se inerente e consubstancial ao regime republicano, que constitui, no plano de nosso ordenamento positivo, uma das mais relevantes decisões políticas fundamentais adotadas pelo legislador constituinte brasileiro.A forma republicana de Governo, analisada em seus aspectos conceituais, faz instaurar, portanto, como já o proclamou esta Suprema Corte (RTJ

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170/40-41, Rel. p/ o acórdão Min. CELSO DE MELLO), um regime de responsabilidade a que se devem submeter, de modo pleno, dentre outras autoridades estatais, os magistrados em geral.O princípio republicano, que outrora constituiu um dos núcleos imutáveis das Cartas Políticas promulgadas a partir de 1891, não obstante sua plurissignificação conceitual, consagra, a partir da ideia central que lhe é subjacente, o dogma de que todos os agentes públicos - os magistrados, inclusive - são responsáveis perante a lei

Não se questiona, por tal razão, até mesmo em respeito ao dogma republicano, a possibilidade constitucional de o Conselho Nacional de Justiça fazer instaurar, em sede originária, procedimentos disciplinares contra magistrados locais nem se lhe nega a prerrogativa, igualmente constitucional, de avocar procedimentos de natureza administrativo-disciplinar.Impõe-se, contudo, ao Conselho Nacional de Justiça, para legitimamente desempenhar suas atribuições, que observe, notadamente quanto ao Poder Judiciário local, a autonomia político-jurídica que a este é reconhecida e que representa verdadeira pedra angular (“cornerstone”) caracterizadora do modelo federal consagrado na Constituição da República.

Não obstante a dimensão nacional em que se projeta o modelo judiciário vigente em nosso País, não se pode deixar de reconhecer que os corpos judiciários locais, por qualificarem-se como coletividades autônomas institucionalizadas, possuem um núcleo de autogoverno que lhes é próprio e que, por isso mesmo, constitui expressão de legítima autonomia que deve ser ordinariamente preservada, porque, ainda que admissível, é sempre extraordinária a possibilidade de interferência, neles, de organismos posicionados na estrutura central do Poder Judiciário nacional. É por tal motivo que se pode afirmar que o postulado da subsidiariedade representa, nesse contexto, um fator de harmonização e de equilíbrio entre situações que, por exprimirem estados de polaridade conflitante (pretensão de autonomia em contraste com tendência centralizadora), poderão dar causa a grave tensão dialética, tão desgastante quão igualmente lesiva para os sujeitos e órgãos em relação de frontal antagonismo.Em uma palavra: a subsidiariedade, enquanto síntese de um processo dialético representado por diferenças e tensões existentes entre elementos contrastantes, constituiria, sob tal perspectiva, cláusula imanente ao próprio modelo constitucional positivado em nosso sistema normativo, apta a propiciar solução de harmonioso convívio entre o autogoverno da Magistratura e o poder de controle e fiscalização outorgado ao Conselho Nacional de Justiça.DISSO RESULTA QUE O EXERCÍCIO, PELO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, DA COMPETÊNCIA DISCIPLINAR QUE LHE FOI ATRIBUÍDA DEPENDERIA, PARA LEGITIMAR-SE, DA ESTRITA OBSERVÂNCIA DO POSTULADO DA SUBSIDIARIEDADE, DE TAL MODO QUE A ATUAÇÃO DESSE ÓRGÃO DEVESSE SEMPRE SUPOR, DENTRE OUTRAS SITUAÇÕES ANÔMALAS, (A) A INÉRCIA DOS TRIBUNAIS NA ADOÇÃO DE MEDIDAS DE ÍNDOLE ADMINISTRATIVO-DISCIPLINAR, (B) A SIMULAÇÃO INVESTIGATÓRIA, (C) A INDEVIDA PROCRASTINAÇÃO NA PRÁTICA DOS ATOS DE

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FISCALIZAÇÃO E CONTROLE OU (D) A INCAPACIDADE DE PROMOVER, COM INDEPENDÊNCIA, PROCEDIMENTOS ADMINISTRATIVOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A RESPONSABILIDADE FUNCIONAL DOS MAGISTRADOS.Isso significaria que o desempenho da atividade fiscalizadora (e eventualmente punitiva) do Conselho Nacional de Justiça deveria ocorrer somente nos casos em que os Tribunais – havendo tido a possibilidade de exercerem, eles próprios, a competência disciplinar e correcional de que se acham ordinariamente investidos – deixassem de fazê-lo (inércia) ou pretextassem fazê-lo (simulação) ou demonstrassem incapacidade de fazê-lo (falta de independência) ou, ainda, dentre outros comportamentos evasivos, protelassem, sem justa causa, o seu exercício (procrastinação indevida).

6.5.2.3.5. A ADI 4638 e a Tentativa de Esvaziar os Poderes Investigatórios do CNJ

Premissas extraídas dos informativos 653 e 654. No julgamento, houve a análise do referendo ou não da medida cautelar que havia sido deferida pelo Ministro Marco Aurélio para acabar sustar poderes do CNJ.

1. O CNJ integra a estrutura do Poder Judiciário, mas não é órgão jurisdicional e não intervém na atividade judicante.

2. Este conselho possuiria, à primeira vista, caráter eminentemente administrativo e não disporia de competência para, mediante atuação colegiada ou monocrática, reexaminar atos de conteúdo jurisdicional, formalizados por magistrados ou tribunais do país.

3. Embora os magistrados respondam disciplinarmente por ato caracterizador de abuso de autoridade, a eles não se aplicariam as penas administrativas versadas na Lei nº 4.898/65, porquanto submetidos à disciplina especial derrogatória, qual seja, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional - Loman. Ela estabelece, em preceitos exaustivos, os deveres e as penalidades impostos aos juízes.

4. O respeito ao Poder Judiciário não poderia ser obtido por meio de blindagem destinada a proteger do escrutínio público os juízes e o órgão sancionador, o que seria incompatível com a liberdade de informação e com a ideia de democracia. Ademais, o sigilo imposto com o objetivo de proteger a honra dos magistrados contribuiria para um ambiente de suspeição e não para a credibilidade da magistratura, pois nada mais conducente à aquisição de confiança do povo do que a transparência e a força do melhor argumento. Nesse sentido, a Loman, ao determinar a imposição de penas em caráter sigiloso, ficara suplantada pela Constituição . Asseverou-se que a modificação trazida no art. 93, IX e X, da CF pela EC 45/2004 assegurara a observância do princípio da publicidade no exercício da atividade judiciária, inclusive nos processos disciplinares instaurados contra juízes, permitindo-se, entretanto, a realização de sessões reservadas em casos de garantia ao direito à intimidade, mediante fundamentação específica.

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5. O CNJ poderia exigir informações acerca do andamento de processos disciplinares em curso nos tribunais, mas não caberia ao órgão definir quem seria a autoridade responsável pelo envio dos dados, sob pena de contrariedade aos artigos 96, I, e 99 da CF.

5. O Plenário, por maioria, negou referendo à liminar contra o art. 12 da Resolução 135/11, e

MANTEVE A COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA E CONCORRENTE DO CNJ PARA INSTAURAR PROCEDIMENTOS ADMINISTRATIVOS DISCIPLINARES APLICÁVEIS A MAGISTRADOS. Não se pode conferir poder meramente subsidiário a órgão hierarquicamente superior, que teria a prerrogativa de tomar para si decisões que, em princípio, deveriam ser tomadas por órgãos hierarquicamente inferiores. Ademais, o aludido órgão superior teria o poder de agir de ofício, em campo de atuação em princípio demarcado para a atividade de órgão inferior, de modo que jamais se poderia entender que a competência daquele seria subsidiária, salvo sob mandamento normativo expresso.

6. O CNJ não teria sido criado para substituir as corregedorias, mas deveria trazer à luz da nação os casos mais relevantes, bem como decidir quais processos deveriam permanecer nos tribunais locais. Ressurtiu que se estaria a defender a possibilidade de ampliação da atividade do CNJ, sem, entretanto, retirar a autonomia dos tribunais.

7. A cautelar de afastamento do magistrado do cargo previsto no art. 15, § 1º44, da Resolução, que havia sido suspenso pela cautelar, teve suspensão referendada pelo colegiado sob o argumento de que “eventual restrição às garantias da inamovibilidade e da vitaliciedade exigiria a edição de lei em sentido formal e material, sob pena de ofensa aos princípios da legalidade e do devido processo”.

6.5.2.3.6. Ações Judiciais em Face do CNJ

O art. 102, II, r, da CR/88 estabelece que compete originariamente ao STF julgar:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I - processar e julgar, originariamente:

r) as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho Nacional do Ministério Público; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).

Qual o âmbito desse competência do STF? O STF somente admite analisar judicialmente atos do CNJ, ações contra esse órgão, mas não examina a conduta individual de cada conselheiro . Isso tem uma repercussão importante. Quando o conselheiro pratica um ato em nome do conselho nacional de justiça, o ato é do CNJ, então é passível de exame, mas o ato propriamente dito do conselheiro estaria sujeito a alguma espécie de impugnação, não como órgão CNJ, mas como Conselheiro? Perante o STF não:

44 O afastamento do Magistrado previsto no caput poderá ser cautelarmente decretado pelo Tribunal antes da instauração do processo administrativo disciplinar, quando necessário ou conveniente a regular apuração da infração disciplinar.

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EMENTA: Competência originária do Supremo Tribunal para as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho Nacional do Ministério Público (CF, art. 102, I, r, com a redação da EC 45/04): inteligência: não inclusão da ação popular, ainda quando nela se vise à declaração de nulidade do ato de qualquer um dos conselhos nela referidos. 1. Tratando-se de ação popular, o Supremo Tribunal Federal - com as únicas ressalvas da incidência da alínea n do art. 102, I, da Constituição ou de a lide substantivar conflito entre a União e Estado-membro -, jamais admitiu a própria competência originária: ao contrário, a incompetência do Tribunal para processar e julgar a ação popular tem sido invariavelmente reafirmada, ainda quando se irrogue a responsabilidade pelo ato questionado a dignitário individual - a exemplo do Presidente da República - ou a membro ou membros de órgão colegiado de qualquer dos poderes do Estado cujos atos, na esfera cível - como sucede no mandado de segurança - ou na esfera penal - como ocorre na ação penal originária ou no habeas corpus - estejam sujeitos diretamente à sua jurisdição. 2. Essa não é a hipótese dos integrantes do Conselho Nacional de Justiça ou do Conselho Nacional do Ministério Público: O QUE A CONSTITUIÇÃO, COM A EC 45/04, INSERIU NA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FORAM AS AÇÕES CONTRA OS RESPECTIVOS COLEGIADO, E NÃO, AQUELAS EM QUE SE QUESTIONE A RESPONSABILIDADE PESSOAL DE UM OU MAIS DOS CONSELHEIROS, como seria de dar-se na ação popular.

(Pet 3674 QO, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 04/10/2006, DJ 19-12-2006 PP-00037 EMENT VOL-02261-04 PP-00856 RT v. 96, n. 860, 2007, p. 170-174)

Basicamente o STF admite três espécie de impugnação contra ato do CNJ perante ele:

a) Ação anulatória de atos administrativos : é possível ingressar com ação anulatória de ato administrativo perante o STF para anular o ato administrativo do CNJ. Essa ação anulatória é regida pelo procedimento comum ordinário, e é possível até a concessão de tutela antecipatória, nos termos do artigo 273 do CPC, mas até agora não foi utilizado porque é muito lenta, e muitas vezes os atos administrativos praticados pelo CNJ produzem efeitos imediatos.

b) Mandado de Segurança : é o instrumento mais utilizado contra ato do CNJ, como por exemplo, aquela decisão liminar concedida pelo conselheiro, ele é sorteado como relator, se manifesta liminarmente, e aí então se impetra mandado de segurança contra essa decisão.

c) Ação direita de inconstitucionalidade : admitida por várias vezes perante a Corte. Exemplo:

EMENTA: MAGISTRATURA. Remuneração. Limite ou teto remuneratório constitucional. Fixação diferenciada para os membros da magistratura federal e estadual. Inadmissibilidade. Caráter nacional do Poder Judiciário.

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Distinção arbitrária. Ofensa à regra constitucional da igualdade ou isonomia. Interpretação conforme dada ao art. 37, inc. XI, e § 12, da CF. Aparência de inconstitucionalidade do art. 2º da Resolução nº 13/2006 e do art. 1º, § único, da Resolução nº 14/2006, ambas do Conselho Nacional de Justiça. Ação direta de inconstitucionalidade. Liminar deferida. Voto vencido em parte. Em sede liminar de ação direta, aparentam inconstitucionalidade normas que, editadas pelo Conselho Nacional da Magistratura, estabelecem tetos remuneratórios diferenciados para os membros da magistratura estadual e os da federal.

(ADI 3854 MC, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 28/02/2007, DJe-047 DIVULG 28-06-2007 PUBLIC 29-06-2007 DJ 29-06-2007 PP-00022 EMENT VOL-02282-04 PP-00723 RTJ VOL-00203-01 PP-00184)

Atos do CNJ que produzem efeito gerais, abstratos, com conteúdo normativo e vinculativo têm sido contestados via ADIN. Atos que produzem efeitos concretos, mais individualizados, têm sido impugnados via MS.

É possível ao relator do CNJ produzir uma decisão em caráter liminar? Existe tal previsão no regimento interno do CNJ, que permite ao relator, nos casos de urgência, conceder provimento liminar. O STF, no entanto, já cassou decisão dessa espécie, já que não tem atividade jurisdicional e, portanto, não poderia de forma alguma conceder liminar, porque a liminar é uma figura de jurisdição.

Não cabe ação civil pública nem ação popular para atacar ato do CNJ:

EMENTA: Competência originária do Supremo Tribunal para as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho Nacional do Ministério Público (CF, art. 102, I, r, com a redação da EC 45/04): inteligência: não inclusão da ação popular, ainda quando nela se vise à declaração de nulidade do ato de qualquer um dos conselhos nela referidos. 1. Tratando-se de ação popular, o Supremo Tribunal Federal - com as únicas ressalvas da incidência da alínea n do art. 102, I, da Constituição ou de a lide substantivar conflito entre a União e Estado-membro -, jamais admitiu a própria competência originária: ao contrário, a incompetência do Tribunal para processar e julgar a ação popular tem sido invariavelmente reafirmada, ainda quando se irrogue a responsabilidade pelo ato questionado a dignitário individual - a exemplo do Presidente da República - ou a membro ou membros de órgão colegiado de qualquer dos poderes do Estado cujos atos, na esfera cível - como sucede no mandado de segurança - ou na esfera penal - como ocorre na ação penal originária ou no habeas corpus - estejam sujeitos diretamente à sua jurisdição. [...].

(Pet 3674 QO, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 04/10/2006, DJ 19-12-2006 PP-00037 EMENT VOL-02261-04 PP-00856 RT v. 96, n. 860, 2007, p. 170-174)

EMENTA: PETIÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA CONTRA DECISÃO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. INCOMPETÊNCIA, EM SEDE ORIGINÁRIA, DO

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. I- Nos termos do art. 102 e incisos da Magna Carta, esta Suprema Corte não detém competência originária para processar e julgar ações civis públicas. II - Precedentes. III - Agravo desprovido.

(Pet 3986 AgR, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 25/06/2008, DJe-167 DIVULG 04-09-2008 PUBLIC 05-09-2008 EMENT VOL-02331-01 PP-00032)

O juiz de primeiro grau pode examinar, subtrair os efeitos, reconhecer a inconstitucionalidade incidenter tantum dos atos praticados pelo CNJ? Dispõe o artigo 106 do regimento interno do CNJ:

Art. 106. As decisões judiciais que contrariarem as decisões do CNJ não produzirão efeitos em relação a estas, salvo se proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.

Esse artigo dispõe que o artigo 102, I, r da CR, estabeleceu como único orgão passível de exame dos atos do CNJ o STF. Entretanto, quer me parecer que há que se analisar a compatibilidade desse artigo à luz do nosso sistema de controle de constitucionalidade, no qual não só o STF faz controle de constitucionalidade via concentrada, mas é dado aos magistrados em geral fazer o controle de constitucionalidade via difusa. Penso que tal disposição do regimento interno é altamente inconstitucional, por subtrair a ampla legitimidade jurisdicional de exercício de tal controle.

Para finalizar esse tópico, certo é que o CNJ é órgão da União. Assim, praticamente só se permite, em se tratando de ações de caráter subjetivo, MS em face de seus atos. Caso o sujeito queria impugnar, por exemplo, um ato interno, de gestão, do CNJ praticado em uma licitação sem ser pela via do MS, deverá ajuizar ação ordinária em face da União, já que é este o ente que possui personalidade judiciária.

6.5.2.3.7. Colaboração do CNJ para o Aprimoramento do Judiciário

Além das funções corretivas e punitivas, que buscam preservar o Poder Judiciário como um todo (banir a “banda podre”, como dizia a Min. Eliana Calmon), duas atribuições constitucionais caminham no sentido de aprimorar a jurisdição.

A apresentação de relatórios anuais e a apresentação de relatórios estatísticos. A Constituição foi bem clara ao estabelecer, primeiro, que o Poder Judiciário deve passar por um novo patamar de organização administrativa.

Nas organizações administrativas há os chamados índices de desempenho, indicadores de desempenho. O indicador utilizado na administração em geral, seja na administração privada ou na administração publica, decorre de uma análise estatística de comportamento dos agentes que estão sendo analisados. Isso é importantíssimo que se saiba. O Poder Judiciário hoje é um poder que trabalha com estatística, o que não era feito antes das alterações da EC 45. Esse mapeamento estatístico só ficou obrigatório na CR com a alteração da EC 45.

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Significa que o CNJ tem que produzir dados estatísticos do desempenho do Poder Judiciário . Isso o CNJ está fazendo, inicialmente de uma forma mais rudimentar e hoje está se especializando mais ainda. E muito recentemente foi lançado pelo CNJ um concurso de estatística dos tribunais, então hoje o próprio CNJ através desse concurso está compilando, está colhendo através desse concurso a pratica de estatística nos tribunais.

Além desse critério estatístico, o Poder Judiciário também pode auxiliar no aprimoramento do Poder Judiciário com seus relatórios anuais. O que são relatórios anuais? O CNJ após análise do desempenho dos tribunais, após análise dos dados advindos de diversos grupos de estudos que o compõem, elaborou estudos específicos sobre determinadas áreas da atividade jurisdicional.

Após esses levantamentos ele faz um relatório anual e apresenta esses relatórios para o presidente do STF, inclusive propondo alterações legislativas ao congresso nacional, para que haja um melhor aperfeiçoamento do Poder Judiciário. Esse é talvez o instrumento mais importante para a restauração democrática do Poder Judiciário na atualidade. Essa remessa ao STF com a propositura de soluções, se feita de uma forma profissional, de uma forma administrativa, uma visão de conjunto, é possível que distorções sejam eliminadas através de soluções legislativas. Então, talvez esse seja o maior atributo que o CNJ possa proporcionar ao Poder Judiciário. E é isso que o Poder Judiciário tem esperado do CNJ. ou seja, quais são os problemas e quais são as soluções.

6.6. Responsabilidade Administrativa, Civil e Penal dos Magistrados

6.6.1. Responsabilidade Criminal do MagistradoO magistrado, no uso das suas atribuições legais e no exercício das suas funções judicantes, pode acabar praticando ilícitos, e esses ilícitos podem ser civis, administrativos e criminais, simultaneamente, ou só uma repercussão administrativa ou uma repercussão criminal que reverbera na responsabilidade administrativa.

Linhas gerais vigora o principio pelo qual há uma independência das instancias administrativas, civil e penal, ou seja, a esfera criminal é conduzida através do processo criminal, independentemente da esfera administrativa e também independemente da esfera civil. Mas pode ocorrer algumas situações em que a decisão na esfera criminal repercuta na decisão da esfera civil e na esfera administrativa, por exemplo, quando o juiz é absolvido por inexistência do fato ou por provada a não autoria.

Então, mesmo que haja uma condenação no nível administrativo essa condenação perde os efeitos em função da decisão na esfera criminal. Essa é a lógica para os atos administrativos em geral. Logo, em que pese vigorar o princípio da independência das instâncias, poderá haver uma comunicação com a prevalência do sistema processual penal.

Como funciona a responsabilidade criminal do magistrado? Com a notícia da prática de um crime por um juiz federal, a investigação deverá ser presidida pelo Tribunal Regional Federal. Não pode a Polícia Federal, muito menos a militar, desenvolver todo o procedimento

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preliminar à sorrelfa do TRF, sob pena de absoluta nulidade do inquérito e das provas nele produzidas, que serão inservíveis. Art. 33, p. único da LOMAN:

Art. 33 - São prerrogativas do magistrado:

[...]

Parágrafo único - Quando, no curso de investigação, houver indício da prática de crime por parte do magistrado, a autoridade policial, civil ou militar, remeterá os respectivos autos ao Tribunal ou órgão especial competente para o julgamento, a fim de que prossiga na investigação.

Porque disso? Porque a competência para o julgamento do magistrado é do tribunal ao qual ele está vinculado; se for desembargador, STJ. Logo, com a prática do crime, a autoridade responsável pela condução das investigações é o próprio tribunal, daí porque esses elementos de convicção devem ser encaminhados ao tribunal para que prossiga ali a investigação.

O Tribunal evidentemente não irá promover atos de polícia. Ele presidirá a instrução prévia, promovendo o controle das diligências e podendo eventual e subsidiariamente requisitá-las, sempre com a participação de um Procurador-Regional da República, que é o titular da ação penal pública.

Pelo mesmo motivo citado no parágrafo anterior, evidentemente que o MPF não precisará de aguardar nenhum procedimento investigatório caso já possua elementos de convição suficientes para a propositura da ação penal, eis que dispensável e instrumental o inquérito originário.

Ademais, é possível ao Tribunal avocar o inquérito policial para preservar a sua competência. Logo, se o magistrado estiver sendo investigado perante o MPF ou mesmo perante a autoridade policial e esses autos não foram remetidos ao TRF, é possível o requerimento ao TRF para que avoque.

E a prisão do magistrado, quando pode ocorrer? A prisão em flagrante somente é permitida para crimes inafiançáveis.:

Art. 33 - São prerrogativas do magistrado:

[...]

II - não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do órgão especal competente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação e apresentação do magistrado ao Presidente do Tribunal a que esteja vinculado (vetado);

Então o juiz só pode ser preso em flagrante de crime inafiançável, se não for por ordem do tribunal. Nenhum juiz pode ser preso em flagrante a não ser que o crime seja inafiançável. Agora a autoridade que prender em flagrante fará a apresentação do magistrado ao

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presidente do tribunal a que ele esteja vinculado, ou seja, se prendeu em flagrante, a comunicação e apresentação do magistrado é imediata.

Quais são os crimes que não permitem a fiança?

NÃO CABIMENTO DE MEDIDA CAUTELAR DE FIANÇACONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA

RacismoTortura

Tráfico de entorpecentesTerrorismo

Crimes hediondosAção de grupo armado contra o Estado Democrático de Direito

Assim, fora desses casos, inexiste a hipótese de flagrante por parte da autoridade policial. Qualquer prisão cautelar de magistrado somente poderá ser decretada pelo próprio Tribunal.

O magistrado preso em flagrante ficará à disposição do presidente do tribunal, jamais à disposição da autoridade policial.

Logo: PRISÃO DE MAGISTRADO: POR FLAGRANTE DE CRIME INAFIANÇÁVEL OU POR ORDEM ESCRITA DO TRIBUNAL.

Daí em diante o processo criminal contra o magistrado vai ter seu curso normal que teria qualquer processo criminal perante o tribunal, vai ter a deliberação sobre o recebimento da denuncia, o sorteio do relator, instrução processual e julgamento colegiado.

6.6.2. Responsabilidade Civil do Magistrado Dentro de responsabilidade civil do magistrado, alguns pontos importantes temos que tocar. A primeira regra sobre a responsabilidade civil do magistrado está no artigo 133 do CPC:

Art. 133. Responderá por perdas e danos o juiz, quando:

I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;

II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte.

Parágrafo único. Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas no no II só depois que a parte, por intermédio do escrivão, requerer ao juiz que determine a providência e este não Ihe atender o pedido dentro de 10 (dez) dias.

No caso de dolo ou fraude não há necessidade desse requerimento, mas no caso desse retardamento de ato de ofício há.

Nesse caso, havendo recusa ou retardamento, o juiz responde pessoalmente pelo dano causado à parte? Ele tem responsabilidade civil direta? Não, o juiz não reponde pessoalmente, quem responde é o Estado, é uma responsabilidade objetiva, nos termos do

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art. 37, § 6º da CR, cabendo ao Estado eventual ação regressiva com a prova do elemento subjetivo.

Há uma espécie de RESPONSABILIDADE CIVIL ENVOLVENDO ATIVIDADE JURISDICIONAL PREVISTA DIRETAMENTE NA CONSTITUIÇÃO, o chamado erro judiciário, artigo 5º, LXV. A CR dispõe que é possível a indenização por erro judiciário e naquelas hipóteses em que o réu ficar preso além do limite estabelecido na sentença.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

LXXV - o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença;

Em ambos os casos a responsabilidade será objetiva, é o Estado quem responde, não o juiz.

Mais simples é o caso do excesso de prazo na prisão além do fixado na sentença. A jurisprudência reconhece essa decisão de indenização, porque se a sentença estabeleceu que ele fique 2 anos preso, e ele ficar 2 anos e 6 meses, portanto tem que ser indenizado. Então nessa hipótese a responsabilidade objetiva do estado é indiscutível, todos tribunais superiores adotam plenamente a possibilidade de indenização nessa hipótese.

Vide:

EMENTA: Erro judiciário. Responsabilidade civil objetiva do Estado. Direito à indenização por danos morais decorrentes de condenação desconstituída em revisão criminal e de prisão preventiva. CF, art. 5º, LXXV. C.Pr.Penal, art. 630. 1. O direito à indenização da vítima de erro judiciário e daquela presa além do tempo devido, previsto no art. 5º, LXXV, da Constituição, já era previsto no art. 630 do C. Pr. Penal, com a exceção do caso de ação penal privada e só uma hipótese de exoneração, quando para a condenação tivesse contribuído o próprio réu. 2. A regra constitucional não veio para aditar pressupostos subjetivos à regra geral da responsabilidade fundada no risco administrativo, conforme o art. 37, § 6º, da Lei Fundamental: a partir do entendimento consolidado de que a regra geral é a irresponsabilidade civil do Estado por atos de jurisdição, estabelece que, naqueles casos, a indenização é uma garantia individual e, manifestamente, não a submete à exigência de dolo ou culpa do magistrado. 3. O art. 5º, LXXV, da Constituição: é uma garantia, um mínimo, que nem impede a lei, nem impede eventuais construções doutrinárias que venham a reconhecer a responsabilidade do Estado em hipóteses que não a de erro judiciário stricto sensu, mas de evidente falta objetiva do serviço público da Justiça.

(RE 505393, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 26/06/2007, DJe-117 DIVULG 04-10-2007 PUBLIC 05-10-2007 DJ 05-10-

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2007 PP-00025 EMENT VOL-02292-04 PP-00717 LEXSTF v. 29, n. 346, 2007, p. 296-310 RT v. 97, n. 868, 2008, p. 161-168 RDDP n. 57, 2007, p. 112-119)

O problema maior está no erro judiciário, porque afinal de contas o que é o erro judiciário? Há alguns precedentes do STF falando que o Estado não responde por erro judiciário quando se tratar de atividade jurisdicional estrito sensu. O que é atividade estrito sensu? É a atividade do magistrado normal de jurisdição, por exemplo, quando ele condena na sentença, quando o acórdão mantém a sentença, quando o juiz absolve e o acórdão condena, quando o juiz conduz o procedimento da forma que dever ser conduzido, tudo isso aqui não é passível de indenização, ou seja, a atividade jurisdicional em si não é passível de indenização. Se fosse possível nos teríamos a seguinte situação: se o juiz condenasse, fosse decretada a preventiva e o tribunal absolvesse, haveria indenização. Isso não pode porque a prisão provisória decorreu de uma atividade tipicamente jurisdicional. Isso não é erro judicial. Exemplo:

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. PRISÃO TEMPORÁRIA. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. INOCORRÊNCIA. 1. O autor pretende a responsabilização civil da União pelo pagamento de reparação de danos morais e materiais, por ter sido preso de forma, supostamente, ilegal e arbitrária. 2. O erro judiciário a que alude o inciso LXXV pressupõe que o ato judicial seja eivado de ilegalidade, abuso ou arbitrariedade por parte do agente estatal. 3. O Supremo Tribunal Federal entendeu que •o decreto judicial de prisão preventiva, quando suficientemente fundamentado e obediente aos pressupostos que o autorizam, não se confunde com o erro judiciário a que alude o inciso LXXV do art. 5 da Constituição da República, mesmo que o réu ao final do processo venha a ser absolvido ou tenha a sua sentença condenatória reformada na instância superior– – (RE 429518 SC, AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO, Órgão julgador: Segunda Turma, Relator: Ministro Carlos Velloso, Fonte: DJ de 28/10/2004). 4. Não se vislumbra no procedimento de constrição da liberdade do autor qualquer vício que padeça de indenização. Os atos foram procedidos dentro das formalidades cabíveis e havia, na ocasião da prisão do autor, certeza do crime e indícios de autoria conforme descrito nas Informações da Divisão de Auditoria da Corregedoria Geral da Receita Federal (fls.133/169) e na Representação formulada pelo Delegado da Polícia Federal (fls. 112/131) que deflagrou a prisão. 5. Não se pode cogitar, portanto, de reconhecimento de responsabilidade civil do Estado, decorrente de ato judicial revestido de legalidade, tão somente pela posterior decretação de inocência do sujeito. 6. Desta forma, se havia indícios suficientes da autoria e materialidade delitiva no momento da decretação da prisão do investigado, a sua posterior revogação por ausência de provas, não torna o ato judicial ilegal ou abusivo de forma a gerar reparação civil por danos morais e materiais. 7. A despeito da grande repercussão do caso PROPINODUTO II na mídia, colocando em risco a integridade da vida privada e a honra dos envolvidos, o autor, detentor do ônus da prova, não logrou demonstrar a existência de excesso ou abuso de autoridade, bem como de qualquer vício na decretação da prisão temporária, razão pela qual não restam configurados os pressupostos

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da responsabilidade civil objetiva do Estado. 8. Recurso conhecido e desprovido.

(TRF2, AC 200651010228720, Desembargador Federal JOSE ANTONIO LISBOA NEIVA, SÉTIMA TURMA ESPECIALIZADA, E-DJF2R - Data::30/03/2011 - Página::410/411.)

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. RECEBIMENTO DE DENÚNCIA. AÇÃO PENAL EM CURSO. EVENTUAIS MEDIDAS EM DESFAVOR DO RÉU DEVEM SER ENFRENTADAS VIA DE RECURSO PRÓPRIO. PREMATURA BUSCA DE INDENIZAÇÃO NA ESFERA CÍVEL. FALTA DE INTERESSE DE AGIR. APELO IMPROVIDO. I. Certo é que o ordenamento jurídico pátrio prevê a indenização por erro judiciário, comando expresso no art. 5º, LXXV da Carta Política. II. No processo penal eventuais medidas em desfavor do réu devem ser enfrentadas via de recurso próprio. III. O Estado detem a primazia da persecução penal, apresentando-se na espécie, devidamente fundamentado o decreto de prisão preventiva. IV. Exsurge como prematura a busca de indenização na esfera cível. V. Apelação improvida.

(TRF3, AC 00014296820044036005, DESEMBARGADORA FEDERAL SALETTE NASCIMENTO, QUARTA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:05/07/2011 PÁGINA: 711 ..FONTE_REPUBLICACAO:.)

O que é então erro judiciário? Para explicar erro judiciário vou dar um exemplo que ocorreu e foi veiculado na mídia, foi um caso de um individuo que ficou muito tempo preso por homicídio e depois descobriu que na verdade ele não era a pessoa que deveria ser condenada. Então nesse caso há responsabilidade? Sim, houve erro judiciário, alguém que não era aquela pessoa, foi condenada por erro na identificação, mas isso não é responsabilidade do magistrado, porque não foi intencional, não houve dolo, não houve culpa, mas houve efetivamente um erro. Então essa espécie de erro sim, poderá gerar eventualmente uma indenização do estado, responsabilidade decorrente de responsabilidade objetiva, mas só que por vezes não é decorrência da atividade jurisdicional estrito sensu, mas é decorrente do sistema.

Há uma outra espécie de responsabilidade civil que a doutrina aponta. A primeira manifestação da doutrina é a possibilidade de indenização cível por denegação de jurisdição. É considerada denegada a jurisdição quando a prestação jurisdicional é tão demorada, mas tão demorada, que os direitos da parte praticamente perecem45. Então por exemplo, é o caso de alguém que esteja com uma doença gravíssima, não prevista nos itens da saúde pública e porventura venha carecer de remédios não incluídos na tabela do ministério da saúde e o juiz não aprecia a liminar e a pessoa vem e falece. Esse é um caso de indenização contra o estado, objetivo, desde que a demanda seja inadmissível. Quem responde? não, volto a dizer responde o estado, salvo se o juiz agir por dolo ou culpa, aí somente por ação regressiva.

Então a delegação de jurisdição seria uma outra possibilidade responsabilidade civil do estado.

45 Isso, inclusive, é hipótese de responsabilização no âmbito internacional, tanto a denegação de justiça quanto o atraso irrazoável e injustificado.

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6.6.3. Responsabilidade Administrativa do MagistradoResolução nº 30 do CNJ.

Nós vamos ver quais as implicações da lógica dessa resolução e vamos fazer uma leitura em casa.

Quais são as espécies de pena aplicáveis aos magistrados? Vamos para o artigo 1º da resolução:

Art. 1° São penas disciplinares aplicáveis aos magistrados da Justiça Federal, da Justiça do Trabalho, da Justiça Eleitoral, da Justiça Militar, da Justiça dos Estados e do Distrito Federal e Territórios:

I - advertência;

II - censura;

III - remoção compulsória;

IV - disponibilidade;

V - aposentadoria compulsória;

VI - demissão.

§ 1º Aos magistrados de segundo grau não se aplicarão as penas de advertência e de censura, não se incluindo nesta exceção os Juízes de Direito Substitutos em segundo grau.

§ 2º As penas previstas no art. 6º, § 1º, da Lei nº. 4.898, de 9-12-1965, são aplicáveis aos magistrados, desde que não incompatíveis com a Lei Complementar nº. 35, de 1979.

§ 3º Os deveres do magistrado são aqueles previstos na Constituição Federal, na Lei Complementar n° 35, de 1979, no Código de Processo Civil (art. 125) e no Código de Processo Penal (art. 251).

§ 4º Na instrução do processo serão inquiridas no máximo oito testemunhas de acusação e até oito de defesa.

§ 5º O magistrado que estiver respondendo a processo administrativo disciplinar só será exonerado a pedido ou aposentado voluntariamente após a conclusão do processo ou do cumprimento da pena.

Esses incisos estão na ordem de gravidade.

Advertência – é aquela admoestação para que o juiz não faça mais aquilo. A advertência faz diferença quando o magistrado vai receber uma promoção por merecimento e o seu colega não tem advertência.

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Na censura – já é mais grave, é na reiteração daquela conduta em que houve advertência, mas o magistrado não parou. Mas ainda não é grave o suficiente para a aplicação de uma remoção compulsória.

Advertência e censura não são aplicáveis aos magistrados de segundo grau de jurisdição, apesar de a elas estarem sujeitos os juízes convocados para substituição.

Remoção compulsória – o juiz tem inamovibilidade. Por interesse publico, pode o tribunal mandar o juiz para outro local, removê-lo de uma vara para outra. E qual é o critério disso? Interesse público. Se houver interesse público o tribunal remove o magistrado de uma vara para outra, por exemplo, por incompatibilidade, digamos que o juiz seja um juiz mais truculento, que goste mais da área criminal, que tenha um comportamento assim mais ativo e esteja em uma vara de criança de juventude e aí naquela vara da infância e juventude e naquela vara de infância e juventude ele seja um tanto truculento, então por interesse publico recomenda-se sua remoção para uma vara criminal e deixa um juiz com outro perfil naquela vara. ou quando o juiz causou tantos problemas sociais ali naquela comunidade que ele não tem mais condições de ficar lá, então ele é removido para que haja possibilidade de manutenção da ordem e da imagem do Poder Judiciário. O CNJ pode aplicar remoção compulsória do magistrado.

Disponibilidade – essa é uma pena que afasta o juiz de suas funções; por interesse público o juiz simplesmente é tirado da atividade jurisdicional pelo tempo que o tribunal achar necessário para que se restaure a dignidade do Poder Judiciário. Então com a disponibilidade, simplesmente o tribunal retira o juiz da atividade, o juiz continua recebendo seus proventos de forma proporcional e aí se restaura a ordem da atividade jurisdicional.

Qual magistrado não está sujeito a pena de disponibilidade? Os juízes não vitalícios não estão sujeitos a pena de disponibilidade, ou seja, aqueles que não concluíram o prazo de vitaliciamento, porque se a gravidade chegue a tal ponto o caso não é de disponibilidade, mas sim é o caso de demitir o juiz.

Após a remoção compulsória e a disponibilidade a situação mais grave é da aposentadoria compulsória.

A aposentadoria compulsória representa o afastamento definitivo do magistrado das suas funções e é a pena mais grave para o magistrado vitalícios.

Vejam, na disponibilidade o juiz pode voltar, mas a aposentadoria compulsória tira o juiz de sua atividade jurisdicional definitivamente e ele recebe os proventos proporcionalmente. Muita gente fala, que injustiça, o juiz que participou de formação de quadrilha e é corrupto e ainda prevaricou, por exemplo, e ele ainda vai se aposentar compulsoriamente e ainda vai ganhar. O fato é que ele embora tenha sido aposentado compulsoriamente, ele efetivamente contribuiu com os cofres públicos, pagando a sua aposentadoria, então tem esse direito, enquanto não sobrevier a condenação criminal com os efeitos secundários da sentença penal ou acórdão, que poderão subtrair também os vencimentos decorrentes de aposentadoria ou a ação civil pública por improbidade administrativa na qual se decrete a perda não só do cargo

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mais do beneficio previdenciário. Mas isso poderá ocorrer num segundo momento. Se prevalecer a condenação administrativa, a solução é a aposentadoria compulsória. Então, em linhas gerais respondendo a pergunta do concurso, os magistrados vitalícios estão sujeitos a pena máxima de aposentadoria compulsória.

E a pena de demissão? Aplica-se tão somente ao juiz não vitalício. Se o tribunal entender que ele não tem condições de atuar como juiz, após assegurada ampla defesa e contraditório, ele é demitido.

Como funciona a responsabilidade administrativa do magistrado?

Art. 19. O Corregedor, no caso de magistrados de primeiro grau, ou o Presidente do Tribunal, nos demais casos, que tiver ciência de irregularidade é obrigado a promover a apuração imediata dos fatos.

§ 1º As denúncias sobre irregularidades serão objeto de apuração, desde que contenham a identificação e o endereço do denunciante e sejam formuladas por escrito, confirmada a autenticidade.

§ 2º Apurados os fatos, o magistrado será notificado para, no prazo de cinco dias, prestar informações.

§ 3º Mediante decisão fundamentada, a autoridade competente ordenará o arquivamento do procedimento preliminar caso não haja indícios de materialidade ou de autoria de infração administrativa.

§ 4º Quando o fato narrado não configurar evidente infração disciplinar ou ilícito penal, a denúncia será arquivada de plano pelo Corregedor, no caso de magistrados de primeiro grau, ou pelo Presidente do Tribunal, nos demais casos.

Segundo a resolução 30, se alguém denunciar ou se o corregedor tiver conhecimento da pratica de falta funcional do magistrado, ele é obrigado a apurar, art. 19.

Se for magistrado, quem apura é o corregedor, se for desembargador quem apura é o presidente. Então, se o desembargador praticou alguma falta funcional quem apura é o presidente do tribunal de justiça.

Então diz o artigo 19, que cientificado do fato, o corregedor deverá apurar o fato, corregedor geral da justiça ou o presidente, se for desembargador. Essa apuração é sumaria, examina os elementos de convicção, ouve algumas pessoas, e depois de apurado o corregedor abre o prazo de 05 dias para que o magistrado apresente a sua defesa.

Apresentado a defesa pelo magistrado, isso aqui é o que nos chamamos de sindicância, o corregedor tem duas possibilidades, ele pode arquivar o procedimento, porque entendeu, por exemplo, que a matéria era jurisdicional, art. 41 da LOMAN, ou ele poderá propor a instauração de processo administrativo disciplinar perante o órgão especial.

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Art. 41 - Salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir.

IMPORTANTÍSSIMO: a CR/88 expressamente determina que os atos punitivos dos magistrados, de caráter administrativo, somente poderão ser tomados pela maioria absoluta do Tribunal ou do CNJ, estabelecendo, então, diretamente o quórum decisório, não podendo nenhum diploma infralegal estabelecer quórum mais ou menos rígido.

Art. 93 [...]

VIII o ato de remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado, por interesse público, fundar-se-á em decisão por voto da maioria absoluta do respectivo tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada ampla defesa; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

[...]

X as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

Se ele resolver propor, então ele comunica o fato ao presidente, que por sua vez abrirá o prazo de 15 dias pra que o magistrado apresente defesa. Apresentada essa defesa, o presidente convoca uma sessão e o órgão especial delibera sobre a instalação ou não do processo administrativo disciplinar. Ele poderá arquivar esse procedimento, ou ele poderá instaurar o processo administrativa disciplinar. Veja que antes era uma sindicância, aqui já é um processo administrativo disciplinar.

Porque é importante saber sobre a instauração? Porque no momento em que o processo administrativo disciplinar é instaurado interrompe-se o prazo prescricional.

O prazo prescricional fica interrompido com a instalação do processo administrativo disciplinar. Então diz, inclusive, a lei 8112 que é a lei utilizada em analogia para a condução do procedimento administrativo disciplinar do magistrado.

Ora, se interrompe a prescrição, não suspende, mas interrompe, por quanto tempo ficará interrompido? Segundo o STJ a interrupção se esgotará 140 dias após o prazo máximo para conclusão do processo administrativo disciplinar. Se o processo administrativo disciplinar que tem que ser encerrado em 180 dias, não terminar, quando terminar os 180 dias, começa a contar o prazo de 140 dias. Encerrado os 140 dias, volta contar o prazo prescricional.

Qual a hipótese em que haja possibilidade da interrupção da prescrição mesmo após esse prazo? Há, quando ficar evidenciado que a delonga do processo decorre de atos de defesa do magistrado. Então ele com seus atos de defesa vai causando delonga no procedimento, então o próprio CNJ na sua resolução e o STJ disse que nesse caso, se houver delonga pela defesa do acusado, então esse prazo pode ser dilatado mais ainda.

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2Quais são os prazos prescricionais? Os prazos prescricionais para magistrados estão no artigo 142 da lei 8.112 de 90.

Art. 142. A ação disciplinar prescreverá:

I - em 5 (cinco) anos, quanto às infrações puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão;

II - em 2 (dois) anos, quanto à suspensão;

III - em 180 (cento e oitenta) dias, quanto á advertência.

§ 1o O prazo de prescrição começa a correr da data em que o fato se tornou conhecido.

§ 2o Os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime.

§ 3o A abertura de sindicância ou a instauração de processo disciplinar interrompe a prescrição, até a decisão final proferida por autoridade competente.

§ 4o Interrompido o curso da prescrição, o prazo começará a correr a partir do dia em que cessar a interrupção.

Instaurado o processo administrativo disciplinar, na instauração duas coisas devem acontecer:

Primeiro, o tribunal vai deliberar sobre o afastamento preventivo do magistrado. Ele delibera se o magistrado vai ser afastado preventivamente ou não, é esse o momento em que o tribunal defere ou não o afastamento preventivo;

Depois, o órgão que instalar o processo administrativo disciplinar deverá descrever o fato imputável ao magistrado, porque é em relação este fato que o magistrado vai se defender agora no processo administrativo disciplinar. Depois disso aqui a acusação está concretizada e a partir daí o magistrado começa a se defender dos fatos no processo administrativo disciplinar, que vai se sortear relator, que vai haver instrução, que vai haver manifestação e depois vai haver votação por maioria absoluta de votos.

Para arrematar, eu posso dizer para vocês o seguinte, existe o posicionamento do STF no seguinte sentido, digamos que depois que for terminada a sindicância, o corregedor não só propõe a instauração de processo disciplinar, como propõe já o afastamento do magistrado, e o órgão especial afasta o magistrado, só que aí, o que se percebe é que na sindicância não se permitiu ao juiz a produção de prova, ampla defesa, mas ele foi afastado, há nulidade nesse caso? Segundo o STF, sindicância em geral não há necessidade de ampla defesa, ampla produção de prova, há necessidade de contraditório. Então, não existindo a necessidade de ampla produção de prova, a sindicância então se esgota (1:08;10)...instauração do processo administrativa disciplinar, salvo quando os elementos contidos na sindicância servirem de fundamento para o afastamento do magistrado. Nesse caso, como houve uma subtração de

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direitos do magistrado, então seria necessário que se permitisse uma ampla produção de provas aqui porque houve aqui o afastamento, desde que o fundamento seja a sindicância. Então, para que a sindicância possa sustentar um afastamento é necessário contraditório e ampla defesa. Agora se a sindicância não tiver ampla defesa, oitiva de testemunha, e for decretado o afastamento, ai sim há nulidade, esse é o entendimento do STF.

E o magistrado que está sendo investigado e resolve se aposentar ou pedir exoneração, pode? Não, uma vez iniciado o processo administrativo disciplinar a aposentadoria ou exoneração só vão ser deferidas ao magistrado se eventualmente houver encerramento do processo ou cumprimento da pena. então, se o processo é instaurado o magistrado não pode mais pedir exoneração nem aposentadoria, terá que aguardar o termino do processo administrativo disciplinar, processo administrativo disciplinar, não sindicância, e ou o cumprimento da pena.

Em relação aos juízes não vitaliciados o que acontece se for instalado processo administrativo disciplinar? Nos termos da resolução há suspensão do prazo de vitaliciamento, artigo 6º da resolução.

Art. 13. O recebimento da acusação pelo Tribunal Pleno ou pelo Órgão Especial suspenderá o curso do prazo de vitaliciamento.

Entretanto , STJ entendendo que o prazo não está sujeito a suspensão, porque é prazo constitucional, e se o processo não terminar antes dos dois anos, então automaticamente o magistrado será vitaliciado automaticamente. Então, ou o tribunal delibera antes do prazo de dois anos, ou o juiz será vitaliciado automaticamente.

7. Teoria Geral do Direito e da Política

7.1. Direito Objetivo e Direito Subjetivo

7.1.1. Texto IntrodutórioDa palavra direito podemos tirar vários significados semânticos para exprimir diversas situações. Podemos usá-la para apontar uma determinada conduta que não se encontra de acordo com os bons costumes, por exemplo, quando dizemos: "isto não é direito!"ou quando nos referimos a um conjunto de normas que regem a vida em sociedade – o direito constitucional brasileiro, por exemplo – e também quando queremos expressar um poder que nos é inerente: "eu tenho direito à propriedade, à vida, à saúde etc."

É neste contexto que encontramos a definição do direito subjetivo; ou seja, o direito subjetivo nada mais é do que um poder e uma faculdade advindos de uma regra interposta pelo Estado na proteção dos interesses coletivos. Por isso podemos afirmar, a exemplo de Washington de Barros Monteiro que o direito objetivo é o conjunto das normas jurídicas; direito subjetivo é o meio de satisfazer interesses humanos (hominum causa omne jus constitutum sit). O segundo deriva do primeiro.

Direito objetivo corresponde à norma agendi, enquanto o direito subjetivo à facultas agendi, em outros termos, este último apresenta-se como uma faculdade que seu titular tem de usá-lo

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ou não na proteção do bem jurídico garantido pela norma agendi, podendo até mesmo dispô-lo, pois este tipo de direito tem como prerrogativa a potencialidade de uso ou não pelo seu titular (ISSO NÃO ESTÁ CORRETO. NÃO SE CONFUNDEM DIREITO SUBJETIVO E FACULDADE DE AGIR. ESTA É UM ATRIBUTO DAQUELE, UMA OPÇÃO POSTA AO TITULAR DO DIREITO SUBJETIVO DE EXERCÊ-LO OU NÃO). Assim como o direito subjetivo está na sua possibilidade e potencialidade de uso, está também no seu exercício efetivo; neste diapasão, segundo Luiz Antônio Rizzatto Nunes, surge uma discussão doutrinária que trata da possibilidade do exercício do direito subjetivo através da ameaça feita pelo seu titular, pois segundo o doutrinador: "Entende a doutrina, fundamentada no Código Civil, que a ameaça de exercício efetivo de direito subjetivo não constitui ato ilícito, sendo considerada exercício regular de direito. Leia-se o teor do art. 160, I, do CC (No Código Civil de 2002 corresponde ao art. 188, I): Não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido".

"Pode-se, por isso, ampliar o conceito para dizer que o direito subjetivo é não só a potencialidade e o exercício como também o uso da ameaça deste".

Tais conceitos, todavia, não podem ser estudados separadamente, fazem parte de um todo, de um único fenômeno, os dois ângulos de visão do jurídico. Um é o aspecto individual, outro o aspecto social, como bem define Caio Mário. Entretanto, devemos ter cautela ao afirmar que o direito subjetivo apresenta-se como a facultas agendi em si. Quem melhor nos alerta para esta questão é Maria Helena Diniz ao afirmar que as faculdades humanas não são direitos, e sim qualidades próprias do ser humano que independem de norma jurídica para a sua existência.

A tarefa da norma agendi apenas seria regulamentar o uso dessas faculdades, segundo a eminente professora; logo, o uso dessas faculdades é lícito ou ilícito, conforme for permitido ou proibido. Neste caso, o direito subjetivo apresentar-se-ia como a permissão para o uso das faculdades humanas, ou seja, a facultas agendié anterior ao direito subjetivo. Segundo a mesma autora, estas permissões – dadas por meio de normas jurídicas – podem ser explícitas ou implícitas. As primeiras são identificáveis quando as normas de direito as mencionam expressamente, por exemplo, o consentimento dado aos maiores de idade para praticarem atos da vida civil; as segundas são quando as normas de direito não se referem a elas de modo expresso, todavia regula o seu uso, tomemos como exemplo dessas últimas as permissões de fazer, de não fazer, de ter e de não ter.

O direito subjetivo apresenta-se como um produto das relações intersubjetivas e das situações jurídicas subjetivas. As tantas teorias que tentaram explicar sua natureza contribuíram de uma certa forma para se chegar à conclusão acerca do atual conceito do direito assim como sobre a sua natureza jurídica. O direito subjetivo também não pode ser considerado como um instituto distinto do direito objetivo, atribuindo a este último a única existência decorrente do mundo jurídico como defende Hans Kelsen; também não pode ser considerado apenas como uma situação jurídica, vez que ele possui íntima ligação com o direito objetivo, pois o direito subjetivo está condicionado a uma exigibilidade de prestação.

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Pretensão e exigibilidade de prestação fazem parte deste instituto do direito, o direito subjetivo, que sem elas - as situações jurídicas subjetivas - não se concretizam, o que implica dizer que o direito subjetivo não se consubstanciará no âmbito de determinada relação jurídica intersubjetiva. Sujeito, objeto e relação jurídica fazem parte deste que chamamos direito subjetivo constituindo em elementos essenciais à sua existência, vez que, como ficou claro em nossa pesquisa, não existe direito se não houver sujeito, nem direito se houver um bem a ser almejado (o objeto) como também um meio para a consecução desta finalidade (a relação jurídica).

Em última análise, são capazes aqueles que têm o poder de exerce-los, todavia, todo ser que detém a chamada personalidade jurídica está apto a possuir tais direito e reivindicá-los, mesmo que seja através de outrem detentor de capacidade. Pessoas jurídicas, assim como as pessoas naturais, também têm personalidade porque da mesma forma que estas, são detentoras de direitos e deveres, pois perseguem um objetivo da mesma maneira que as ditas pessoas naturais sendo também reconhecidas pelo ordenamento jurídico como pessoas.

7.1.2. O Que é Direito Subjetivo (Dicotomia entre Direito Subjetivo e Direito Objetivo)Encerrando a nossa conceituação de direito subjetivo, devemos fazer menção a uma classificação feita deste direito de forma oportuna por Caio Mário da Silva Pereira.

Dentre as diversas classificações acerca deste direito, feita pelo autor, a que mais nos chama a atenção é a relacionada à generalidade e à restrição dos efeitos dos direitos subjetivos. Os direitos subjetivos, considerados intrinsecamente, conforme leciona o autor, são absolutos e relativos. ABSOLUTOS são aqueles direitos subjetivos os quais traduzem uma relação oponível à generalidade dos indivíduos, sem a especificação de sua exigibilidade contra um sujeito determinado, apresentando como um dever geral negativo; RELATIVOS são os direitos subjetivos quando o dever jurídico, ao contrário dos absolutos, é imposto a um determinado sujeito passivo, não importando ser este sujeito uma única pessoa ou um grupo de indivíduos, contanto que sejam estes determinados ou passíveis de determinação.

Podemos citar aqui alguns exemplos de ambas classificações como o direito de propriedade, por exemplo, que se constitui em um direito subjetivo absoluto; ou como o direito de crédito, apresentando-se como um direito subjetivo relativo.

(Aparte: lembrar que inexiste hoje em dia qualquer direito absoluto, mormente em decorrência da função social do Direito).

7.1.2.1. O Dever SubjetivoO conceito de dever subjetivo não pode ser estudado em apartado ao conceito de obrigação. Giuseppe Lumia define obrigação como o dever jurídico de ter aquele comportamento que alguém está legitimado a pretender de nós; obrigação e pretensão para ele caminham juntas e são oriundas de uma mesma fonte: o ordenamento jurídico, o qual ao atribuir a um sujeito uma pretensão (isso está errado. O ordenamento não impõe uma pretensão, ele confere direitos. A pretensão surge apenas com o descumprimento de um dever subjetivo), impõe ao outro o dever (jurídico, e não somente moral) de ter um comportamento conforme à

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pretensão do primeiro. O mesmo autor fala a respeito das obrigações naturais, que são aquelas não tuteladas por via do direito de ação, mas por via de exceção, ou seja, obrigações sobre as quais não pairam nenhum dever legal de prestação.

Um e outro – dever e obrigação – correspondem ao sentido oposto de direito subjetivo, se assim podemos dizer, mas com significados diferentes os quais analisaremos mais adiante; inicialmente, cabe-nos diferenciar, sinteticamente, o dever do direito subjetivo.

Primordialmente, para todo direito subjetivo existe outro que o limita, e é desta afirmação que se percebe o linguajar popular: "Seu direito termina quando começa o meu". Neste caso, trata-se de um dever comum, qual seja, respeitar os direitos alheios; em contrapartida, o que nos interessa é identificar um dever subjetivo, e este tem como fonte as normas jurídicas objetivas. Já dizia Rizzatto Nunes "A noção de dever, e, o que nos interessa, dever subjetivo, é imanente ao conjunto de normas jurídicas objetivas". Tal dever corresponde a um limite intrínseco a cada direito subjetivo. Se excedermos tais limites, este direito subjetivo pode vir a ser taxado de abusivo. Em outros termos, O DEVER SUBJETIVO TEM SUA GÊNESE NA NORMA A QUAL EXPÕE OS LIMITES AO EXERCÍCIO DO DIREITO SUBJETIVO.

A palavra dever, segundo os ensinamentos de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, serve para expressar a obrigação como um vínculo, ou em termos de uma força moral. Por esse motivo é que não podemos nos desvencilhar do conceito de obrigação no estudo do dever.

Ainda de acordo com Ferraz Júnior, a ideia de dever atua como um motivo para o comportamento lícito que se cumpre, primariamente, não por temor de sanções, mas por respeito desinteressado ao direito.

Portanto, esta afirmativa vem a reforçar o nosso entendimento transcrito em linhas anteriores a respeito do dever comum e do dever subjetivo. O primeiro constitui um respeito desinteressado ao direito de outrem enquanto o dever subjetivo é um dever imposto pela norma e tem o intuito de não tornar o uso do direito subjetivo de forma abusiva, limitando-o desta maneira. Um exemplo claro desta diferença podemos encontrar no direito de propriedade. É dever comum nosso respeitar o direito subjetivo à propriedade de terceiros; por outro lado é dever subjetivo do titular deste mesmo direito usa-lo dentro dos limites impostos pela norma para evitar possíveis abusos no seu exercício; por exemplo, é um dever subjetivo usar da propriedade para buscar os fins sociais a que ela se destina (Art. 5º, XXIII – CF/88; Art. 1.228, §§ 1º e 2º/CC). (AQUI ELE FAZ UMA CONEXÃO ENTRE O DIREITO SUBJETIVO E O DEVER SUBJETIVO: O DEVE SUBJETIVO DO TITULAR DO DIREITO É ESSENCIALMENTE NEGATIVO, OU SEJA, O DE EXERCER SEUS DIREITOS DENTRO DOS LIMITES PERMITIDOS PELO ORDENAMENTO).

7.1.3. Alguns Conceitos Essenciais da Teoria Geral do DireitoDever jurídico é a necessidade imposta a todos os indivíduos de observar os comandos do ordenamento jurídico, com a possibilidade de se demandar sua execução coercitivamente por intermédio do Estado. Ele é fundado nas relações que subsistem entre o sujeito ativo, que exige o adimplemento da obrigação, e aquele que a deve cumprir.

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Dever livre é a obrigação de caráter moral, sendo voluntariamente assumida e não gerando, em caso de descumprimento, qualquer consequência jurídica em face de quem se obrigou, tão-somente consequências indiferentes ao Direito, de cunho social ou religioso, entre outros.

Já obrigação é o dever jurídico qualificado pela análise do próprio objeto prestacional, consistente numa conduta de dar, fazer ou não fazer.

Responsabilidade é a consequência do descumprimento de um dever jurídico, quando a pessoa passa a ter a obrigação de reparar por ter infringido uma norma.

A sujeição é a situação de necessidade em que se encontra o adversário de ver-se produzir forçosamente uma consequência em seu patrimônio. Ou seja, está em estado de sujeição a pessoa que possui em seu desfavor um direito potestativo de outrem. Ela também pode recair sobre objetos, como ocorre com os Direitos Reais, no qual o sujeito ativo da obrigação estabelece verdadeira situação de submissão da coisa à sua vontade.

Interesse legítimo é o que resulta do próprio interesse de agir. Numa análise processual, preenchida a condição de ação “interesse de agir”, o interesse se mostraria legítimo. É o interesse que se liga ao próprio direito e que se mostra protegido legalmente , do qual possa resultar ou no qual assente qualquer vantagem de ordem econômica, ou mesmo de ordem moral.

Obrigação potestativa46, por sua vez, é a obrigação em que o sujeito ativo da relação pode satisfazer seu direito unilateralmente, decorrente do simples exercício de sua vontade, sem sofrer por parte do devedor qualquer oposição legítima apta a afastar-lhe o direito, tal qual a obrigação potestativa que tem o devedor de aceitar a escolha do credor nas obrigações alternativas, se tal cláusula tiver sido pactuada no contrato.

Ônus jurídico é a necessidade que uma parte tem de adotar uma determinada conduta, não por imposição legal ou obrigacional, mas como condição de defesa de um interesse próprio. É uma situação passiva em que inexiste correspondência ativa, como, v.g., a necessidade de recorrer da sentença para que a parte tenha sua situação melhorada. A parte sofrerá um prejuízo se não arcar com o ônus, o qual, entretanto, não significa uma sanção prevista no ordenamento jurídico.

Direito subjetivo é o poder de agir do indivíduo, concedido e tutelado pelo ordenamento, a fim de que possa satisfazer um interesse próprio, pretendendo de outra pessoa um determinado comportamento. Em outras palavras, é a possibilidade que a norma dá a um indivíduo de exercer determinada conduta descrita na lei, vista do ponto de vista do titular do direito. É algo incorporado ao patrimônio jurídico do sujeito.

46 Se o direito potestativo não admite violação, se ele só depende do titular, o direito potestativo é exemplo de interesse público. E por que é de interesse público? Porque quando o titular manifesta a sua vontade, os efeitos decorrem para todos. Quando o titular exerce seu direito potestativo, os efeitos decorrem automaticamente para todos, daí a frase de que todo direito potestativo traz consigo interesse público dos efeitos que decorrem da vontade do titular.

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Se o comportamento esperado é dirigido a uma pessoa certa e determinada, pode-se dizer que aquele é um direito subjetivo relativo. Mas se o comportamento esperado é exigido da coletividade, aí se trata de direito subjetivo absoluto. Outro detalhe de grande importância é saber se esse comportamento tem ou não estimativa econômica. Se é assim, estamos falando de direito subjetivo patrimonial. Se não tem estimativa econômica é direito subjetivo extrapatrimonial.

Todo direito subjetivo assim classificado (relativo, absoluto, patrimonial, extrapatrimonial) confere ao titular uma pretensão de exigir de alguém um comportamento.

Direito objetivo ou norma agendi é o direito posto nas normas jurídicas e vigente durante certo lapso de tempo, o direito analisado sob um ponto de vista estritamente normativo, sem que se perquira sobre os destinatários da norma. O direito objetivo é a fonte dos direitos subjetivos.

Tutela jurisdicional representa a espécie de provimento judicial aplicado em cada caso concreto com o escopo de solucionar o conflito de interesses que ensejou a propositura da demanda. A delimitação da tutela, que permite a caracterização da espécie de ação utilizada pelo autor, pressupõe a procedência do pedido. A improcedência, como acertadamente anotou Pontes, indica que a sentença prolatada será de natureza declaratório-negativa, ainda que o pedido seja declaratório positivo, constitutivo, condenatório, executivo ou mandamental.

Faculdade de agir ou facultas agendi é a permissividade de atuação do titular representada pela liberalidade do detentor do direito subjetivo em exigi-lo, ou não, em juízo ou fora dele, de maneira alguma se confundindo, pois, com o direito subjetivo. Ou seja, é o poder de decisão que tem o titular de um direito subjetivo sobre se irá ou não exercê-lo.

“Direito subjetivo desprovido de pretensão não passa de uma mera faculdade jurídica.”

Eu tenho o direito subjetivo de exigir um determinado comportamento de Juliana. Juliana, espontaneamente não se comportou da forma esperada. Surgiu para mim uma pretensão, a pretensão de judicialmente exigir um comportamento ou a reparação do dano causado. Se eu não tivesse a pretensão significaria que eu teria o direito subjetivo, eu poderia esperar de Juliana um comportamento, mas se ela não se comportasse, não aconteceria nada. E se é assim, significa: ela se comportaria assim, se quisesse e aquilo que se faz quando se quer, não passa de uma mera faculdade jurídica. Portanto, a frase acima: direito subjetivo desprovido de pretensão não passa de uma mera faculdade jurídica. E é assim por um motivo simples: o direito subjetivo é caracterizado, fundamentalmente, pela pretensão. O direito subjetivo é, na sua essência, a pretensão. A pretensão é a marca registrada do direito subjetivo. Daí a frase: sem pretensão, ele não passa de uma mera faculdade jurídica.

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7.1.4. As Teorias Acerca do Direito SubjetivoTrês são as teorias, formuladas pelos juristas Jellinek, Windscheid e Ihering, que tentaram explicar a natureza jurídica do direito subjetivo, todavia nenhuma delas conseguiu esgotar satisfatoriamente as discussões sobre o que vem a ser o direito subjetivo e de que fonte o mesmo surgiu. Em conformidade com Ferraz Júnior, a questão em torno da qual se empenham é saber se o direito subjetivo constitui também um dado por si (a exemplo do direito objetivo) ou se, contrariamente, é elaborado ou se faz nascer do direito objetivo.

Vejamos agora a essência de cada teoria bem como as suas respectivas críticas quanto à formulação de um conceito preciso acerca do direito subjetivo.

7.1.4.1. A Teoria da Vontade de WindscheidPara os adeptos desta corrente o direito subjetivo seria o poder da vontade humana garantido pelo ordenamento jurídico. Esta vontade corresponde ao que Ferraz Júnior chama de "um dado existencial", sendo parte integrante da natureza humana o poder de escolha ao mesmo tempo em que se apresenta como sendo o ponto diferenciador do homem em relação aos demais animais. No entanto, esta vontade não pode ser elemento único de diferenciação entre homens e animais irracionais, pois mesmo sem possuir vontade própria por vezes, o ser humano não deixa de ter esse adjetivo – o humano – pela ausência da vontade. Diante desta afirmação nos questionamos: os loucos, os surdos-mudos e os menores incapazes para a prática da vida civil, não são sujeitos de direitos?

A eles não são reconhecidos, por exemplo, os direitos subjetivos da propriedade, de ação etc? Obviamente que são, embora sejam protegidos por outrem.

É exatamente neste ponto que reside a principal crítica a esta teoria. Em conformidade com a teoria da garantia citada na obra de Ferraz Júnior, o direito subjetivo não teria por base a vontade, mas a possibilidade de fazer a garantia da ordem jurídica tornar efetiva a proteção do direito. Para o renomado professor, esta teoria garantista torna o direito subjetivo algo semelhante com a proteção da liberdade conferida pelo direito objetivo.

Outras objeções a esta teoria foram feitas, além da supra mencionada. Dentre elas está aquela que defende a existência do direito subjetivo independentemente da vontade do seu titular, por exemplo, o direito de propriedade decorrente de herança, onde o herdeiro ignora a abertura da sucessão pela morte do descendente; ou até mesmo a propriedade mediante testamento.

Existe também uma confusão que é feita entre o próprio direito e o exercício do mesmo, esclarecida por Maria Helena Diniz. Segundo a autora, só para este (o exercício do direito) é que a vontade do sujeito será indispensável.

Admitindo a pertinência destas críticas, o próprio Windscheid, mentor desta teoria, procurou dar uma outra roupagem ao termo vontade esclarecendo que este não deve ser empregado no sentido psicológico, mas sim em sentido lógico, como vontade normativa, ou seja, como poder jurídico do querer.

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ASSIM: TEORIA DA VONTADE PECA POIS CONFUNDE O DIREITO SUBJETIVO COM O SEU PRÓPRIO EXERCÍCIO; ADEMAIS, POR ELA, AQUELES QUE POR UM OU OUTRO MOTIVO NÃO TEM/NÃO PODEM EXPRIMIR SUA VONTADE, NÃO TERIAM DIREITO SUBJETIVO.

7.1.3.2. A Teoria do Interesse de IheringEsta teoria afirma que a natureza jurídica do direito subjetivo está no interesse juridicamente protegido.

Contrária à teoria de Windscheid, a ideia de Ihering é calcada em dois elementos constitutivos do princípio do direito subjetivo.

O primeiro elemento em caráter substancial que, de acordo com Caio Mário, se situa na sua finalidade prática, ou seja, na sua utilidade, sua vantagem ou no interesse. O elemento subsequente tem caráter formal, o qual apresenta-se como o meio para a efetivação do primeiro, correspondendo à proteção judicial por meio da ação.

Crítica ferrenha à teoria da vontade, a teoria do interesse ressalta a possibilidade de haver interesse em determinados direitos mesmo sem existir o elemento volitivo, como o já citado exemplo dos surdosmudos, loucos e menores (Item 3.1). Todavia, esta crítica à teoria em comento tem lá suas falhas, pois como dizia Washington de Barros Monteiro "Direitos existem que dificilmente se ligarão a um interesse, assim como também interesses há que logram obter tutela e proteção do direito".

Na concepção de Caio Mário, esta teoria peca no sentido de que para o autor: "Existe, então, no direito subjetivo um poder de ação que está à disposição do seu titular, e que não depende do exercício, da mesma forma que o indivíduo capaz e conhecedor do seu direito poderá conservar-se inerte, sem realizar o poder de vontade, e, ainda assim, é portador dele".

Da mesma maneira, como bem lembra Maria Helena Diniz, há interesses protegidos pela lei que não constituem direito subjetivo e direitos subjetivos nos quais não existe interesse do seu titular como os direitos do tutor ou do pai em relação ao pupilo e aos filhos são instituídos em benefício dos menores e não do titular.

De todo modo, Caio Mário ressalta que esta crítica é procedente quanto ao seu fator teleológico, pois, sendo o direito subjetivo uma faculdade do querer dirigida a determinado fim, o poder de ação isolado torna-se incompleto, corporificando-se, conforme suas lições, no instante em que o elemento volitivo encontra uma finalidade prática de atuação, onde esta finalidade é o interesse de agir. É a partir desta concepção que surge a teoria da qual trataremos a seguir.

SÍNTESE:

Para a Teoria dos Interesses, o direito subjetivo seria o interesse (aquilo que importa, que é útil, que traz algum proveito para alguém) tutelado pela norma jurídica. Possui, pois, dois elementos:

a) Material : representado por um interesse;

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b) Formal: consubstanciado na proteção desse interesse pelo direito objetivo.

Críticas: confunde o objeto do direito com seus elementos constitutivos: o interesse não é elemento, é objetivo do direito. Por outro lado, assevera J. Flóscolo da Nóbrega, o interesse é todo subjetivo, varia com as valorações da pessoa em cada fase da existência; aquilo que hoje apresenta interesse, amanhã pode não mais tê-lo.

Entretanto, o direito subjetivo permanece o mesmo, ainda quando tenha perdido todo interesse para o seu titular, o que demonstra que direito e interesse são coisas diferentes (ob. cit., p. 145). Por outro lado, também analisando a teoria de Ihering, o Prof. Paulo Nader adverte que os incapazes, não possuindo compreensão das coisas, não podem chegar a ter interesse, nem por isso ficam impedidos de gozar de certos direitos subjetivos.

Considerando o elemento interesse sob o aspecto psicológico, é inegável que essa teoria já estaria implícita na da vontade, pois não é possível haver vontade sem haver interesse.

7.1.3.3. A Teoria Mista de JellinekComo a própria nomenclatura sugere, trata-se de uma miscelânea das duas teorias discorridas anteriormente.

Para seus teóricos o direito subjetivo apresenta-se como sendo poder da vontade ao mesmo tempo em que é protegido pelo ordenamento jurídico, ou seja, a vontade, qualificada por um poder de querer, não se realiza se não for com o intuito de buscar uma finalidade, ao êxito na realização de um interesse.

Miguel Reale tenta explicar a intenção de Jellinek ao elaborar esta teoria ao mesmo tempo em que tece críticas em relação à mesma: "Jellinek achou que havia um antagonismo aparente entre a teoria da vontade e a do interesse, porque, na realidade, uma abrange a outra. Nem o interesse só, tampouco apenas a vontade, nos dão o critério para o entendimento do que seja direito subjetivo”.

A prevalência de um elemento sobre outro – vontade ou finalidade – não tem muita importância segundo a lição de Caio Mário; para ele, "uma e outra se acham presentes, e pois, a definição há de conter o momento interno, psíquico; e o externo, finalístico".

No nosso entendimento, esta teoria, por não ter inovado em nada a natureza jurídica do direito subjetivo fazendo apenas uma mescla das teorias já estudadas, não deve prevalecer, uma vez que ela é passível das mesmas críticas e objeções das outras demais que lhe deram origem. O professor Miguel Reale vem a reforçar o nosso entendimento quando dispôs em sua obra sua crítica a esta teoria da seguinte maneira:

"Essa teoria, entretanto, não vence as objeções formuladas contra cada uma de suas partes. O ecletismo é sempre uma soma de problemas, sem solução para as dificuldades que continuam nas raízes das respostas, pretensamente superadas. As mesmas objeções feitas, isoladamente, à teoria da vontade e à do interesse, continuam, como é claro, a prevalecer contra a teoria eclética de Jellinek".

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7.1.3.4. Teoria do Autorizamento ou da Autorização da Norma JurídicaA teoria do autorizamento ou autorização da norma jurídica, do Prof. Goffredo Telles Jr.

Para este eminente professor, somente há direito subjetivo quando a norma de direito objetivo se subjetiva, se individualiza em alguém, mediante uma autorização. Por isso, deve ser dito que a norma jurídica é uma imperativa autorizante.

Certas normas, bem como outras de caráter meramente programático, como as dos arts. 203 e 205 da CF, não são propriamente normas jurídicas, embora tenham aparência semelhante. Não são jurídicas porque não são autorizantes (O Direito Quântico, 5ª ed., São Paulo, 1980, pp. 360 e segs.).

Quando a norma jurídica autoriza ou não proíbe uma conduta, temos o direito subjetivo. Já se percebe que a faculdade de agir não se confunde com o direito subjetivo. Por que não se confunde? Não se confunde porque a faculdade existe com ou sem o direito subjetivo.

O direito subjetivo não é a facultas agendi a que se referia o direito romano, porque as faculdades humanas são inerentes à personalidade, são atribuídas pela própria Natureza ao ser humano e, portanto, existem com ou sem interferência da norma jurídica. As faculdades são potencializadas, potências ativas que predispõem um ser a agir. A potencialidade não é um ato, mas a aptidão para produzir um ato. As faculdades humanas são potências inerentes ao ser humano. Sua existência independe das normas jurídicas. Enfim, o que cabe à norma jurídica é ordenar, colocar em ordem aquilo que ao homem é dado pela natureza. Ao realizar esta tarefa, a norma jurídica autoriza ou proíbe certas condutas. Então, o direito subjetivo não é uma faculdade humana, mas sim a permissão para o exercício de uma faculdade. Ter faculdade não significa ter direito subjetivo.

7.1.4.5. As Teorias Negativistas do Direito Subjetivo de Hans Kelsen e Léon DuguitTanto Leon Duguit como Hans Kelsen negam a existência do direito subjetivo, porém seus argumentos se diferem um do outro. Sabemos que as origens da dicotomia entre direito objetivo e direito subjetivo não são do direito romano, embora houvesse no Jus romano algo que não se confundia com a Lex.

Teoria da Regra de Direito e das Situações Jurídicas (Leon Duguit)

Esta dicotomia é construção dos tempos modernos. Neste sentido, Leon Duguit volta-se contra esta bipartição defendendo a tese de que somente existe o direito objetivo, negando, portanto, a existência do direito subjetivo. Para este teórico crítico, o indivíduo não detém um poder de comando sobre outro indivíduo ou sobre membros do grupo social, ou seja, somente o direito objetivo, para ele, poderá dirigir o comportamento dos membros de uma sociedade. Dessa forma, Duguit substitui o conceito de direito subjetivo pelo de "Situação Jurídica Subjetiva".

Para o autor, esta situação jurídica é um fato sancionado pela norma jurídica, hipótese em que se tem a situação jurídica objetiva, ou a situação dentro da qual se encontra uma pessoa beneficiada por certa prerrogativa ou obrigada por determinado dever como bem define Maria Helena Diniz em sua obra de introdução ao direito.

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Léon Duguit afirma que o direito subjetivo se assenta na vontade, mas esta, conceito metafísico, refoge ao Direito. O homem, diz ele, vivendo em sociedade, tem direitos que não constituem, porém, prerrogativas inerentes à sua qualidade de homem, mas poderes que lhe competem, porquanto, sendo o homem social, tem um dever a cumprir e em consequência deve ter o poder de cumprir tal dever (Rubem Rodrigues Nogueira, São Paulo, 1979, p. 189).

A doutrina de Duguit se mostra menos radical do que a de Kelsen, porque, além de não identificar Estado e Direito, afirma a limitação das funções do Estado, admitindo a preexistência de uma regra social anterior à jurídica, e submetendo ao crivo da opinião pública o exercício de tais funções.

Por estas explanações podemos notar que as situações jurídicas são disciplinadas pelo direito objetivo – o dado e pronto – não criando para ninguém um poder individual contra todos os integrantes do meio social.

Posteriormente teremos a oportunidade de demonstrar com mais clareza algumas situações subjetivas, sendo de toda importância estudá-las para podermos entender melhor a pretensão de Duguit, uma vez que a partir do surgimento de sua teoria, a disciplina Teoria Geral do Direito teve de repensar o conceito sobre direito subjetivo conforme esclarece Miguel Reale, cujos ensinamentos a esse respeito passaremos a transcrever agora: "A Teoria Geral do Direito hodierna, partindo dessas e outras críticas às antigas teses que já examinamos, reelaborou os estudos sobre o direito subjetivo, fixando alguns pontos essenciais. Um deles se refere exatamente ao conceito de situação subjetiva que, a princípio, passou a ser sinônimo de direito subjetivo para, mais acertadamente, ser vista, depois, como o gênero no qual o direito subjetivo representa a espécie".

Teoria Normativista (Hans Kelsen)

Na ótica Kelseniana, o direito subjetivo é apenas uma expressão do dever jurídico, como leciona Miguel Reale, pois para Kelsen a não prestação corresponde a uma sanção segundo a sua teoria pura; ou mesmo uma confusão entre direito e Estado de acordo com a definição de Caio Mário.

Este Estado impõe aos indivíduos uma gama de normas as quais devem ser obedecidas por todos, não se admitindo prerrogativas individuais em relação ao Estado. "Se este determina uma dada conduta individual, agirá contra o ofensor da norma no propósito de constrange-lo à observância, sem que o fato de alguém reclamar a atitude estatal de imposição se traduza na existência de uma faculdade reconhecida", conforme leciona o mesmo Caio Mário.

Em outros termos, para Kelsen o direito subjetivo será, como conceito oposto ao dever jurídico, pois o direito subjetivo de um pressupõe o dever subjetivo de outro, parte integrante do direito objetivo ou norma, como bem resume A. L. Machado Neto.

Entretanto, tais concepções negativistas do direito subjetivo pecam, segundo Caio Mário, pois "não conseguem os eminentes juristas abstrair-se da existência de um aspecto individual do jurídico, que será o substitutivo do direito subjetivo ou compreenderá a denominada ‘situação

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jurídica’, já que a existência da norma em si, ou do direito objetivo só, conduz à existência de deveres exclusivamente".

Na nossa opinião, o professor Caio Mário tem razão ao criticar o objetivismo puro desta teoria, uma vez que torna-se impossível imaginar um sistema normativo onde o homem, subordinado a uma regra, não seja considerado como um elemento individual dotado de poder, o qual pela obediência dos demais sujeitos, torna-se pleno.

Aquilo que, erroneamente, chamam de direito subjetivo, diz Kelsen, não passa do reflexo de um dever jurídico. A situação de direito provocada, aparentemente, por uma declaração individual de vontade ainda não constitui um direito subjetivo, porque, de uma situação tal, decorre um dever de obediência imposto a alguém. Tenho um suposto direito de propriedade unicamente porque todos têm o dever de respeitar a integridade de meus bens. Como assinala o Prof. Vicente Ráo, ao analisar a doutrina de Kelsen, se não existem direitos subjetivos no sentido de poder da vontade asssegurado pela lei, ou no sentido de interesses juridicamente protegidos, e se o que se chama direito subjetivo não é senão uma norma concreta e individual, conseqüentemente também não existem sujeitos de direitos subjetivos, investidos de poderes da vontade, ou de interesses. A personalidade, ela própria, é objetiva e consiste em um sistema de normas (O Direito e a Vida dos Direitos, 2º v., São Paulo, 1958, p. 43).

ASSIM, AS TEORIAS NEGATIVISTAS SUBMETEM O HOMEM TOTALMENTE AO ESTADO, COLOCANDO ELE NUMA CONDIÇÃO DE OBJETO DE DIREITO, E NÃO DE SUJEITO DE DIREITO.

7.1.5. A Relação Jurídica, seus Elementos e sua Ligação com o Direito SubjetivoA relação jurídica corresponde às relações intersubjetivas que acontecem sempre entre dois ou mais sujeitos.

Ela existe pois o homem, por ser um animal social, necessita estar sempre se relacionando com o próximo para a garantia de sua própria sobrevivência.

Neste contexto, o direito exerce um papel fundamental, pois é ele quem vai regular estas relações jurídicas, atuando, dessa forma, como um apaziguador social e como uma forma de controle deste mesmo meio. No entanto, para melhor nos situarmos no tema, somos forçados a distinguir relação factual de relação jurídica.

As primeiras correspondem a determinadas relações sobre as quais não incide uma norma jurídica (FATO NATURAL OU NÃO JURÍDICO); são, portanto, exemplos desta categoria as relações que possuem uma finalidade moral, artística, religiosa etc.

Enfim, qualquer relação que não seja regulada por uma norma ou que seja dirigida para um determinado fim pretendido por ela.

A par destas explicações fica claro agora conceituarmos a chamada RELAÇÃO JURÍDICA, a qual, nos ensinamentos de Miguel Reale, possui dois requisitos necessários para o seu surgimento. Segundo o eminente professor: "Em primeiro lugar, uma relação intersubjetiva, ou seja, um vínculo entre duas ou mais pessoas.

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Em segundo lugar, que esse vínculo corresponda a uma hipótese normativa, de tal maneira que derivem consequências obrigatórias no plano da experiência".

As relações jurídicas hoje em dia não são mais encaradas como um produto de relações sociais apenas reconhecidas pelo Estado. Atualmente prevalece uma concepção operacional do direito onde o Estado tem a incumbência de instaurar modelos jurídicos que condicionem e orientem a constituição das relações jurídicas.

Qualquer relação que tenha este adjetivo – jurídica – possuirá quatro elementos tidos como essenciais para a sua formação, são eles: os sujeitos, o objeto, a forma e o que Miguel Reale chama de VÍNCULO DE ATRIBUTIVIDADE.

Giuseppe Lumia resume de forma sucinta e precisa e essência destes elementos da seguinte forma:

"No âmbito das relações jurídicas são considerados os sujeitos entre os quais a relação se instaura, a posição que ocupam na relação e o objeto a propósito do qual a relação se estabelece. Os sujeitos que concorrem para constituir a relação jurídica são chamados partes, para distingui-los dos terceiros, isto é, dos sujeitos estranhos à relação, mesmo que dela possam obter, indiretamente, vantagem ou prejuízo. A posição de qualquer das partes no seio da relação jurídica define a chamada (não sem alguma incerteza terminológica na doutrina) situação jurídica daquelas. O termo de referencia externa da relação jurídica consiste, enfim, o seu objeto".

Os sujeitos da relação jurídica ainda se dividem em ativos e passivos; os primeiros correspondem àqueles que possuem direitos oriundos da relação; os segundos são aqueles sobre os quais recai um dever decorrente da obrigação assumida pela relação (essa classificação tem pouquíssima importância hoje em dia, já que toda relação jurídica possui, para todas as partes, direitos e deveres, ainda que sejam somente os deveres anexos).

Miguel Reale fala ainda em um outro elemento da relação jurídica, trata-se do chamado vínculo de atributividade que nada mais é do que a concreção da norma jurídica no âmbito do relacionamento. É o vínculo mediante o qual uma parte na relação adquire legitimidade para exigir do outro algo – o objeto da relação.

Toda essa descrição acerca da relação jurídica e seus elementos serviram para que pudéssemos fazer uma análise mais profunda a respeito do direito subjetivo. Pela doutrina de Caio Mário, o direito subjetivo se decompõe nesses três elementos essenciais estudados até agora, o sujeito, o objeto e a relação jurídica.

Por cada um desses elementos entende-se, segundo os ensinamentos do professor Caio Mário que sujeito é aquele a quem a ordem jurídica confere a faculdade de agir, é o destinatário da norma jurídica, que corresponde ao homem; objeto é o bem jurídico pretendido pelo sujeito da relação; e relação jurídica (elemento ideal) é o meio pelo qual o direito subjetivo realiza-se, é o vínculo que impõe a submissão do objeto ao sujeito.

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Portanto, inseparáveis são os conceitos de direito subjetivo, relação jurídica, sujeitos e objeto. Por estas conclusões ousamos até dizer que sem estes elementos não há que se falar em direito subjetivo, uma vez que estes elementos, conforme já mencionamos anteriormente, são componentes do direito subjetivo. O próprio professor Caio Mário compartilha com nossa opinião quando defende a existência do direito subjetivo como uma interação destes elementos sempre.

7.1.5.1. A Subjetividade e a Capacidade de ter DireitosDissemos anteriormente que o sujeito corresponde a um dos elementos essenciais do direito subjetivo e o conceituamos como sendo o destinatário da norma jurídica, o ser que através de uma garantia da ordem jurídica possui a faculdade de agir; em outros termos, são os entes que através da relação jurídica buscam a obtenção de determinados. Todavia, um questionamento acerca deste conceito vem à tona quando realizamos o estudo dos sujeitos, este questionamento é: quem pode ser sujeito de direitos?

Para responder essa pergunta, vamos certamente esbarrar nos conceitos de pessoa, subjetividade – que é a mesma coisa que personalidade – e capacidade.

A palavra pessoa designa o sujeito em si, o homem, tendo sua origem no cristianismo, que, como nos mostra Tércio Sampaio, "aponta para a dignidade do homem insusceptível de ser mero objeto. A personificação do homem foi uma resposta cristã à distinção, na Antigüidade, entre cidadãos e escravos. Com a expressão pessoa obteve-se a extensão moral do caráter do ser humano a todos os homens, considerados iguais perante Deus". (41) A palavra "pessoa" tem origem também no teatro antigo, onde um único indivíduo com uma só máscara – a persona – desenvolvia vários papéis na peça, semelhante ao que acontece conosco na nossa vida em sociedade. Nos dizeres de Tércio Sampaio "o que chamamos de pessoa nada mais é do que feixe de papéis institucionalizados. Quando esses papéis se comunicam, isto é, o pai é simultaneamente o trabalhador em seu emprego, o pagador de impostos, o sócio de um clube, numa palavra, o agente capaz para exercer vários papéis e as atividades correspondentes (políticas, sociais, econômicas etc.), temos uma pessoa física".

Existe também uma outra espécie de pessoa, a pessoa jurídica, que constitui, pelos ensinamentos de Tércio Sampaio, um feixe desses papéis isolados dos demais papéis sociais e integrados pelo estatuto num sistema orgânico, com regras jurídicas próprias.

Giuseppe Lumia por sua vez define assim a pessoa jurídica: "As pessoas jurídicas são constituídas por um conjunto de pessoas físicas ou por um conjunto de bens, aos quais confere unidade o fato de serem organizados em vista do atingimento de um objetivo, e que o ordenamento jurídico considera da mesma maneira que as pessoas físicas, como sujeitos de direito, titulares de poderes juridicamente garantidos e de obrigações juridicamente sancionadas".

Ambos os tipos de pessoa podem ser considerados sujeitos de direitos e não apenas a pessoa física, o homem, vez que esta visão unitária é produto da influência da definição de pessoa pela doutrina cristã comentada em linhas anteriores. Tanto a pessoa física como a pessoa jurídica porque possuem, igualmente, direitos e deveres.

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Mas o nosso conceito de sujeito de direito ainda não está completo, resta-nos falar a respeito da subjetividade e da capacidade.

Subjetividade e capacidade são conceitos interligados um ao outro, poderíamos dizer que a segunda constitui um elemento da primeira, contudo, este elemento não é essencial da personalidade pois, como veremos mais adiante, pode existir sujeitos dotados de personalidade mas carentes de capacidade. A subjetividade é manifestada na capacidade jurídica, ou seja, como define Lumia, na capacidade de serem titulares de poderes e deveres jurídicos. (45)Sem querer, acabamos de dar uma ideia do que seja capacidade, todavia, como podemos perceber, a capacidade possui um duplo sentido; ora significa capacidade no sentido de ação que corresponde à aptidão para agir, e ora significa a capacidade no sentido jurídico que é aquela a qual corresponde à aptidão do sujeito ser detentor de direitos e obrigações. No mais, há a possibilidade de um sujeito ser titular de direitos e, ao mesmo tempo, não ter a capacidade plena de exercício dos mesmos, conforme alertamos anteriormente. São os casos dos surdos-mudos, loucos e menores, a eles não se nega a existência de direitos, porém, seu exercício fica dependente da capacidade de outro sujeito para se realizar a sua concretização.

Tendo a definição de capacidade em mãos, poderemos agora conceituar com mais facilidade a subjetividade.

Subjetividade, ou personalidade, nada mais é do que a resultante de poderes exprimidos pela capacidade.

"Capacidade exprime poderes ou faculdades; personalidade é a resultante desses poderes; pessoa é o ente a que a ordem jurídica outorga esses poderes".

A par destas explicações, temos agora condições de responder àquela indagação feita nas primeiras linhas deste item. São sujeitos de direitos aqueles que, embora por vezes não possuam aptidão para exercer seus direitos pessoalmente, possuem personalidade jurídica; ou seja, são detentores de direitos e deveres.

Todos esses conceitos são dependentes um do outro. Exemplificando com maior simplicidade, um determinado ser é sujeito de direitos porque tem personalidade jurídica; onde tem personalidade jurídica tem-se a capacidade (lembre-se sempre que muitas vezes esta capacidade falta ao sujeito, mas isso não significa que não possa ser sujeito de direitos); tem capacidade porque é pessoa; e, por fim, é pessoa porque tem direitos e obrigações.

7.1.5.2. A Relação do Direito Subjetivo com as Situações Jurídicas SubjetivasA situação jurídica subjetiva de um sujeito dentro de uma relação jurídica corresponde ao papel assumido por cada um deles. Na lição de Miguel Reale, ocorre a situação jurídica subjetiva "toda vez que o modo de ser, de pretender ou de agir de uma pessoa corresponder ao tipo de atividade ou pretensão abstratamente configurado numa ou mais regras de direito". (47)Através das situações jurídicas é que se estabelece uma relação; por exemplo, se um determinado sujeito "A" realiza um contrato de compra e venda com o sujeito "B", operou-se uma relação jurídica, onde a situação jurídica de "A" que adquiriu um bem de "B" é a de credor se este pagou o preço acertado entre eles; e a situação jurídica de "B" é a de devedor até

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omomento de entrega do bem em questão. Pelas explicações de Lumia, iremos observar melhor o conceito de situação subjetiva: "Dado que o poder de um corresponde o dever do outro, a relação jurídicas surge como a correlação de duas situações jurídicas de sentidos opostos e de igual conteúdo. Todavia, é muito freqüente ocorrer que da mesma relação surjam poderes e deveres recíprocos nos sujeitos entre os quais ela se estabelece". (48)Ou seja, há situações jurídicas passivas (devedor) e ativas (credor); à pretensão de um corresponde à obrigação do outro, ou ao poder de um corresponde à sujeição do outro.

Se quisermos compreender melhor as situações jurídicas subjetivas devemos ter em mente os conceitos de normas de conduta e normas de competência, as quais vão definir dois modelos de relação jurídicas surgidas a partir de cada conceito deste.

Primeiramente, diz-se que normas de conduta são atribuições a um sujeito para a realização do interesse de outro; para o sujeito cujo interesse deve ser resguardado dizemos que ele tem a pretensão em relação ao outro sujeito que tem uma obrigação. Por exemplo, o sujeito "A" tem a obrigação de abster-se de turbar a posse de "B", neste caso existe uma norma direcionada diretamente ao sujeito "A", o qual agindo dessa forma, realizará o interesse de "B". Quando, porém, ausente a pretensão de um sujeito, surgirá para o outro uma faculdade.

Entretanto, quando uma norma é editada não para regular comportamentos, mas outras situações jurídicas, estamos diante de uma situação jurídica originada por normas de competência. Neste, caso não se fala mais em pretensão e obrigação, as duas situações jurídicas passam a ser de poder e sujeição; por exemplo, quando um sujeito dita as normas de uma relação jurídica sobre outro sujeito. O exemplo citado por Miguel Reale quanto ao pátrio poder é bastante ilustrativo e esclarece muito este conceito: "O pátrio poder não é um direito subjetivo sobre os filhos menores. Estes sujeitam-se ao poder paterno ou materno nos limites e de conformidade com um quadro de direitos e deveres estabelecido no Código Civil; não no interesse dos pais, mas sim em benefício da prole e da sociedade. Só se pode falar em sujeição dos filhos aos pais enquanto estes se subordinam ao quadro normativo, em razão do qual o pátrio poder é atribuído.

Por outro lado, ao poder dos pais não corresponde uma prestação por parte dos filhos, nem aqueles possuem, em relação a estes, uma pretensão exigível". (49) Todavia, quando este poder não gera uma sujeição ao outro sujeito surge a situação da imunidade.

Essas situações jurídicas elementares fazem surgir várias figuras jurídicas complexas, entre elas o direito subjetivo como diz Giuseppe Lumia. Segundo o autor: "O direito subjetivo apresenta-se como um conjunto unitário (e unificador) de situações jurídicas elementares: isso indica um conjunto de faculdades, pretensões, poderes e imunidades que se encontram em um estado de habitual e constante ligação, e que são inerentes a um determinado sujeito em relação a um determinado objeto".

Para as demais situações jurídicas subjetivas como a obrigação, a sujeição, a ausência de poder e a ausência de pretensão, pensamos serem correspondentes ao chamado dever subjetivo. Portanto, a relação do direito subjetivo com a situação jurídica subjetiva está evidente, pois a existência do primeiro está condicionada à segunda quando a mesma, segundo Miguel Reale

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"implica a possibilidade de uma pretensão, unida à exigibilidade de uma prestação, unida à exigibilidade de uma prestação ou de um ato de outrem".

7.1.6. Direitos Públicos SubjetivosCapítulo extraído do livro “Lições Preliminares de Direito”, de Miguel Reale.

7.1.6.1. Direitos Públicos Subjetivos - Perspectivas Históricas Até época bem recente, nem sequer passava pela cabeça dos tratadistas esta ideia, hoje fundamental, da existência de direitos públicos subjetivos. É esse um dos assuntos magnos da Teoria do Estado. O eminente Vittorio Emmanuele Orlando apontava-o como sendo "il formidabile argomento", por envolver toda uma série de questões de ordem jurídica entre as relações do Estado com o Direito, e mais ainda, entre o indivíduo e as forças políticas, pondo em xeque o problema essencial da liberdade.

Já dissemos que só recentemente surgiu e se determinou o conceito de direito público subjetivo. Trata-se de uma conquista da época moderna, que atinge a sua força teórica e doutrinária tão-somente na segunda metade do século XIX. O reconhecimento de direitos públicos subjetivos começa a ser feito quando se constituem as primeiras formas de governo representativo. Conhecem os senhores, pelos estudos de História, aquele episódio fundamental na vida política que foi a "Magna Cartha Libertatum", que é um pacto feudal, mediante o qual os chefes de maior prestígio fizeram valer perante o Rei da Inglaterra determinadas prerrogativas, que passaram a constituir limites à ação do Poder público. Entre essas prerrogativas figurava uma concernente à legislação tributária, de maneira tal que nenhum imposto pudesse ser lançado sem a prévia audiência dos contribuintes. Eis aí um caso típico de direito público subjetivo, ainda não declarado como tal, mas que reúne todos os seus requisitos.

Posteriormente, tivemos na História um período de absolutismo quando o monarca proclamava o seu poder soberano. Não há prova de que Luís XIV tenha dito que o Estado era ele, mas jamais teria contestado semelhante afirmação. Ela se encontra mesmo na obra de Bossuet, que foi o intérprete do direito divino dos reis, ao proclamar: "Tout l'État est en lui", o que correspondia à afirmação paralela atribuída ao próprio Luís XIV: "L'État c'est moi". Ora, se o Estado é o príncipe, não há que falar em direitos públicos subjetivos. O indivíduo teria para si apenas o que o Estado lhe destinasse.

A TEORIA DO DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO É, POIS, UMA TEORIA FUNDAMENTAL, PORQUANTO IMPLICA A AFIRMAÇÃO DE QUE O INDIVÍDUO POSSUI UMA ESFERA DE AÇÃO INVIOLÁVEL, EM CUJO ÂMBITO O PODER PÚBLICO NÃO PODE PENETRAR. Não foi, pois, por mera coincidência que, no processo liberal do século XVIII e no individualismo que prevaleceu na Revolução Francesa, essas ideias tenham começado a adquirir contornos mais nítidos. É que, no fundo, todos os direitos públicos subjetivos pressupõem o direito fundamental de liberdade, entendida em sua dupla valência, como poder autônomo de ser e agir na esfera privada (liberdade civil) e na esfera pública (liberdade política).

As primeiras Declarações de Direitos, que aparecem, no século XVIII, nos Estados Unidos e na França, são diplomas solenes em que se proclamam os direitos públicos subjetivos. A

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Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, na França, representa um marco fundamental na experiência jurídica e política, assim como, em nossos dias, tivemos, logo após a 2ª Grande Guerra, a Declaração Universal dos Direitos da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948.

Entre uma e outra transcorreu o período de um século e meio, mas foi o bastante para que se operasse uma profunda alteração. A primeira Declaração era de cunho essencialmente político, cuidava mais dos direitos públicos do homem enquanto cidadão, ao passo que a segunda não só os amplia, como acrescenta aos direitos políticos os direitos sociais dos indivíduos, e, mais ainda, os direitos dos povos, como por exemplo, o de autodeterminação.

7.1.6.2. Os Direitos Subjetivos Públicos na Constituição Brasileira Onde, no Brasil, encontramos primordialmente declarados os direitos públicos subjetivos?

Matéria tão relevante não podia ser disciplinada através de leis ordinárias, mas figura no texto constitucional, como uma de suas partes básicas. O mesmo ocorre, aliás, na quase-totalidade das constituições contemporâneas, muito embora varie de umas para outras a extensão dos direitos declarados e suas formas e processos de garantia.

Quem, no Brasil, quiser saber quais são os nossos direitos públicos subjetivos fundamentais não tem outra coisa a fazer senão identificá-los no Título II da Constituição, sobretudo nos Capítulos 1, II e IV. Nenhuma Carta Constitucional consagra, mais do que a nossa, tão extenso e minucioso elenco de direitos e deveres individuais e coletivos, assim como de direitos sociais e políticos, enunciando as respectivas salvaguardas. Pode-se mesmo dizer que há certo exagero em conferir dignidade constitucional a vários direitos mais próprios da legislação ordinária.

Não é preciso, aqui, enumerar as múltiplas formas de direito público subjetivo, porquanto qualquer brasileiro deve ter o cuidado de conhecer o art. 5.° e seguintes da Constituição, que se referem à sua própria personalidade política e à sua atividade individual e social enquanto membro da comunidade nacional.

Tais Declarações de Direitos durante muito tempo tiveram apenas um sentido jurídico-político, limitando-se a estabelecer garantias de ação aos indivíduos contra o Estado ou no Estado. No decorrer do século XX, porém, em continuação a um processo histórico iniciado nas épocas anteriores, as Declarações de Direito passaram a ter sim caráter mais social e econômico.

Hoje em dia não se reconhece apenas o direito de livre pensamento ou direito de reunião, como já acontecia na Constituição de 1891 ou na Constituição do Império, porque se reconhece o direito ao trabalho, ou o direito à subsistência, que são esteios da chamada socialização do Direito. Especial destaque é dado aos chamados direitos fundamentais da pessoa humana, tais como os relativos à tutela da intimidade e dos meios indispensáveis à realização dos valores da liberdade e de uma existência condigna.

O legislador constituinte de 1988 não se contentou, porém, com a extensa lista de direitos consagrados na Secção supralembrada, porquanto, na linha seguida pelas Constituições

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anteriores, dedicou títulos especiais para disciplina da ordem econômica e financeira e da ordem social, assegurando novos direitos públicos subjetivos no plano da atividade empresarial, da saúde, da previdência e assistência sociais, da educação, da cultura etc.

O direito ao trabalho e o dever do trabalho, por exemplo, são expressões da compreensão do Estado de Direito como Estado da Justiça social e da cultura, ao contrário do que ocorria com a Constituição de 1891, de feitio liberal clássico, adstrita à disciplina dos direitos políticos.

OS DIREITOS SUBJETIVOS PÚBLICOS PODERIAM, POR CONSEGUINTE, SER DISCRIMINADOS EM DUAS GRANDES CATEGORIAS: DIREITOS SUBJETIVOS PÚBLICOS DE NATUREZA POLÍTICA E DIREITOS SUBJETIVOS PÚBLICOS DE CARÁTER SOCIAL.

Todavia, ao lado dessas duas categorias fundamentais, uma terceira deve ser acrescida, a dos direitos públicos subjetivos de natureza estritamente jurídica.

É também no texto constitucional que se encontra a sedes materiae, muito embora possa ou deva ser completada por leis complementares e especiais. Discriminar tais direitos seria antecipar os estudos de Direito Constitucional, mas, nesta nossa visão de conjunto do mundo jurídico, cabe dizer algo sobre assunto de tamanha relevância.

Note-se que não pretendemos apresentar exemplos de direitos fundamentais juridicamente puros, pois todos eles apresentam uma dose razoável de qualificação política ou social. A discriminação das três apontadas categorias atende às notas prevalecentes ou dominantes de cada figura estudada.

Esclarecido esse ponto, podemos apresentar os seguintes exemplos de direitos fundamentais de ordem jurídica:

a) o relativo à preservação ou inviolabilidade das situações jurídicas já adquiridas;

b) o da liberdade de ir e vir, amparada por "habeas corpus";

c) o da defesa de direitos líquidos e certos contra abusos de autoridade, através do mandado de segurança;

d) o direito de ação, isto é, de exigir, quando cabível, a prestação jurisdicional do Estado;

e) o de promover ação popular para declarar a nulidade de atos lesivos à Fazenda Pública;

f) o direito à informação administrativa sobre questões de interesse próprio, com tutela do habeas data.

7.1.6.3. Fundamento dos Direitos Públicos Subjetivos Ventilar o problema dos direitos públicos subjetivos é discutir a questão do valor do homem no Estado ou perante o Estado. O assunto empolgou grandes mestres do pensamento moderno. Em primeiro lugar, cabe uma referência à doutrina segundo a qual o indivíduo é anterior ao Estado, sendo já portador de direitos públicos subjetivos como algo de inerente à sua própria existência. São os jusnaturalistas, sobretudo do século XVIII, que sustentam que os

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indivíduos possuem direitos naturais públicos subjetivos em virtude do "contrato social" por eles concluído para sua própria garantia.

Se o Estado é precedido de um "estado de natureza", no qual cada homem era livre, não pode o Poder Público constituir-se com esquecimento, e muito menos com repúdio desses direitos, que são inerentes à natureza mesma do homem.

Dentro dessa maneira de pensar, elaborou-se a Declaração dos Direitos de 1789, onde se proclama, à luz do Direito Natural racionalista, que os homens nascem e devem permanecer livres e iguais.

Embora tenha desempenhado grande papel na história do Estado Moderno, essa doutrina está de há muito superada, tanto como a ideia, que está em sua base, da existência de direitos naturais anteriores à organização política. Muitos autores sustentam que não há direitos individuais enquanto o indivíduo não se alia a outros ou não se compõe com outros em forma estatal, mesmo que incipiente. O indivíduo não tem direitos senão quando o Estado surge, - declaram os partidários da doutrina que se contrapõe ao jusnaturalismo.

Feita a afirmação de que o indivíduo só tem direitos no Estado, porque o Direito implica sempre a existência de um poder político, surge uma questão básica: se o indivíduo e os grupos têm direitos tão-somente no Estado, e se o Estado é a expressão da maior força, como explicar a existência de direitos subjetivos?

Uma das teorias destinadas a explicar esta matéria, e que teve larga aceitação, não lhe faltando adeptos hoje em dia, é a chamada teoria da AUTOLIMITAÇÃO DA SOBERANIA.

Já tivemos ocasião de dizer que, segundo a nossa maneira de conceber o problema, a soberania é juridicamente o poder originário de decidir em última instância sobre a positividade do direito.

Mesmo concebendo a soberania da maneira estrita, como o fazemos, não há dúvida de que ela é sempre um poder que fala por último, ou seja, um poder inapelável, motivo pelo qual é também definida como sendo "a competência da competência", segundo a afirmação concisa de Laband.

Ora, se a soberania é o poder de decidir em última instância, caberá sempre ao Estado delimitar aquilo que pertence privativamente ao indivíduo? Como explicar, dentro da teoria estatal, essas ilhas em que o indivíduo situa a sua personalidade política e a sua capacidade econômica ou jurídica? A Constituição declara direitos e garantias, mas vários deles podem ser suspensos por motivo de segurança nacional ou de guerra. Outros também sofrerão eclipses em caso de intervenção federal nos Estados. Como explicarmos então, o valor próprio, autônomo, dos direitos fundamentais?

Os jusnaturalistas, - isto é, os adeptos do Direito Natural, como uma entidade de razão, ou um protótipo ideal, como prevaleceu no século XVIII, - os jusnaturalistas, idealizando a matéria, ligam tais direitos à própria pessoa humana, e então declaram que há direitos naturais subjetivos, que o Estado deve respeitar porque o Estado surge para respeitá-los. Essa

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explicação, entretanto, não satisfaz, porque, em verdade, basta um exame perfunctório da história política para se verificar que estamos diante de uma conquista da cultura, cada vez mais renovada em seus valores.

O primeiro autor que tratou deste assunto com grande profundidade foi Rudolf von Jhering em sua obra clássica O Fim no Direito. Nesse livro que o grande romanista deixou incompleto, e no qual desejava sintetizar toda a sua concepção do Direito, ele sustenta que a soberania, para poder atuar, precisa ir discriminando esferas de ação entre os indivíduos e os grupos. É o Estado que se limita a si mesmo.

Essa teoria de Jhering foi desenvolvida por aquele que devemos reputar o consolidador da Teoria do Estado, Georg Jellinek. Nos seus dois grandes livros, Sistema dos Direitos Públicos Subjetivos e Doutrina Geral do Estado, JELLINEK DEFENDE A TEORIA DA AUTOLIMITAÇÃO DA SOBERANIA DIZENDO, EM SUMA, QUE OS DIREITOS PÚBLICOS SUBJETIVOS EXISTEM NA MEDIDA EM QUE O ESTADO NÃO PODE DEIXAR DE TRAÇAR LIMITES A SI PRÓPRIO, ENQUANTO ESTADO DE DIREITO.

A teoria da autolimitação provocou várias criticas. Em primeiro lugar, uma tão antiga como a cogitação sobre essa matéria, e que consiste na pergunta: "quis custodiet custodes"? (quem guardará os guardiães?)

O Estado autolimita-se para declarar e reconhecer direitos. Mas, então, os indivíduos ficam à mercê do Estado!? Haverá direitos subjetivos maiores ou menores, conforme o arbítrio daqueles que, no momento, encarnam e representam a pessoa jurídica do Estado.

A Constituição da República Federativa do Brasil enuncia os direitos subjetivos públicos, na ordem política e na ordem social e jurídica, com certa largueza, mas não poderia ter feito declaração diversa? Não poderia ter estabelecido princípios completamente diferentes daqueles que hoje constituem o nosso Direito Público fundamental? Quem teria poderes para impedir o arbítrio do Poder Constituinte?

Jhering, com a sua costumeira penetração, não desconhecia esse problema. Respondeu ele, entretanto, que aí a questão já não é mais jurídica, mas sim política. A seu ver, a garantia única e exclusiva da existência de direitos públicos subjetivos está na consciência popular, na educação cívica do povo, na força da opinião pública. Por mais arbitrária que seja uma Assembléia Constituinte e por mais dotado de força que seja um órgão de Estado, eles pautarão a sua concepção em torno dos direitos públicos subjetivos conforme a resistência do meio cultural e do meio social em que atuem. O problema da autolimitação do poder do Estado é um problema da história política. Para o jurista, o que existe, segundo o prisma específico do Direito, é o Estado se autolimitando.

Em nosso livro Teoria do Direito e do Estado, apreciamos diversas doutrinas e chegamos à conclusão de que a teoria da autolimitação aprecia apenas o aspecto jurídico do problema. Talvez haja equívoco em falar-se em autolimitação. A EXPRESSÃO AUTOLIMITAÇÃO É INFELIZ PORQUE DÁ A IDEIA DE QUE É O ESTADO QUE TRAÇA A SI PRÓPRIO OS SEUS LIMITES, QUANDO, NA REALIDADE, TEMOS DIANTE DE NÓS UM PROCESSO DE NATUREZA HISTÓRICO-

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CULTURAL, QUE IMPLICA UMA DISCRIMINAÇÃO PROGRESSIVA DE ATIVIDADES, PARA OS INDIVÍDUOS OU PARA A SOCIEDADE CIVIL, DE UM LADO, PARA O PODER PÚBLICO, DO OUTRO.

A nosso ver, houve engano ao se apreciar separadamente o problema do indivíduo perante o Estado, quando o Estado não é senão expressão do processo histórico de integração da vida política e jurídica.

Para nós, os direitos públicos subjetivos são momentos desse processo de organização da vida social, de tal sorte que não apenas existem direitos e deveres para os indivíduos, como também, concomitante e paralelamente, direitos e deveres para o Estado: é algo que resulta da natureza mesma da evolução histórica. É tão essencial ao Estado, no mundo contemporâneo, o reconhecimento de esferas primordiais de ação aos indivíduos e grupos, que, embora os direitos públicos subjetivos possam sofrer redução, grande número deles sempre subsiste, até mesmo nos Estados totalitários. A estrutura mesma da sociedade atual impõe esse reconhecimento, que tende progressivamente a alargar-se, como uma exigência da razão histórica, isto é, como fruto da própria experiência histórica.

NÃO PODEMOS, PORÉM, - E NESSE PONTO TINHA RAZÃO JHERING - PRETENDER UMA PURA TEORIA JURÍDICA PARA EXPLICAR UM FENÔMENO COMPLEXO QUE É DE NATUREZA POLÍTICA, SOCIOLÓGICA, ECONÔMICA ETC. O que devemos reconhecer é que a sociedade, quanto mais progride, quanto mais se desenvolve, mais precisa de centros diretores, e, ao mesmo tempo e paralelamente, de autodescentralização, de autodiscriminação na maneira de ser e de agir, a que correspondem situações subjetivas para os indivíduos e os grupos. O problema dos direitos públicos subjetivos é um problema histórico-cultural, porquanto representa um momento de ordenação jurídica, atendendo a uma exigência social que se processa independentemente do arbítrio e da vontade daqueles que, transitoriamente, enfeixem em suas mãos o poder político.

Estão vendo, portanto, que o problema não poderá, jamais, ser explicado com teorias puramente jurídicas. Todas as teorias que pretenderam examinar o assunto, como se a matéria fosse de Direito Constitucional, estão fadadas a insucesso. Este é um assunto de Teoria do Estado, a qual não pôde deixar de examinar o problema sob três prismas ou três aspectos distintos: o sociológico, o jurídico e o político.

É só sob esse tríplice aspecto que poderemos apreciar a matéria que diz respeito ao que há de mais essencial ao homem, que é a sua posição jurídico-politíca no seio da comunidade e do Estado, como expressão de sua liberdade.

Certo é, todavia, que o reconhecimento de direitos públicos subjetivos, armados de garantias eficazes, constitui uma das características basilares do Estado de Direito, tendo eles como fundamento último o valor intangível da pessoa humana, o que demonstra que, como em todo problema relativo ao fundamento de um instituto jurídico, não podemos deixar de elevar-nos até o plano da Filosofia.

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Situada a questão dos direitos públicos subjetivos no plano histórico-cultural, como acabamos de fazer, podemos dizer que eles se impõem ao reconhecimento e ao respeito do Estado sobretudo quando correspondem ao que temos denominado invariantes axiológicas, isto é, a valores universalmente proclamados e exigidos pela opinião pública como absolutamente essenciais ao destino do homem na face da Terra. Passa-se mesmo a falar em um Direito planetário consagrador de valores transnacionais e transestatais que conferem novo fundamento aos direitos públicos subjetivos no plano do Direito Interno e do Direito Internacional.

A partir da invariante axiológica primordial representada pela pessoa humana configura-se todo um sistema de valores fundantes, como o ecológico e o de uma forma de vida compatível com a dignidade humana em termos de habitação, alimentação, educação e segurança etc., em função dos quais se impõem imperativamente deveres ao Estado, com a correspondente constelação de direitos subjetivos públicos. Somente assim se realiza o Estado de Direito.

7.2. Fontes do Direito Objetivo. Princípios Gerais de Direito. Jurisprudência. Súmula Vinculante.

7.3. Eficácia da Lei no Tempo. Conflito de Normas Jurídicas no Ttempo e o Direito Brasileiro: Direito Penal, Direito Civil, Direito ConstitucionalConsiderações sobre a validade, a vigência e a eficácia das normas jurídicas

Texto extraído do Jus Navigandi

http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=21

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Reinaldo de Souza Couto Filho

advogado da União, mestre em Direito Econômico pela Universidade Federal da Bahia, professor de Direito Constitucional

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Sumário: 1- Introdução; 2- Conceitos; 3- As consequências da tripartição dos poderes; 4- A validade, a vigência e a eficácia da norma jurídica sob o manto do positivismo; Notas; Referências bibliográficas.

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1-INTRODUÇÃO

A qualidade de qualquer estudo realizado no âmbito das ciências humanas depende basicamente da exata formulação dos conceitos que serão utilizados como premissas zetéticas. Apesar da dogmática conceitual representar um valioso ponto de partida, o estudioso não pode aceitar a verdade imposta como imutável, mas também não pode negar a absoluta necessidade de um corte inicial no sistema. Assim, até os dogmas possuem o seu valor, ainda que, após o estudo, o pesquisador conclua que as suas premissas são totalmente diferentes dos conceitos iniciais.

Não há, nas ciências sociais, qualquer possibilidade de um estudo hermeticamente cerrado, ou seja, até para que se estabeleça uma discussão baseada em afirmação e justificação, deverão estar presentes as influências do meio.

Assim, a adoção de uma ou outra teoria depende apenas da capacidade de compreensão e justificação do agente. No presente estudo, o autor adotará a teoria do positivismo analítico, mas isso não significa que tal teoria seja melhor ou pior do que as suas opositoras, inclusive a teoria do realismo; significa apenas que o autor do presente estudo, com base na clara adoção do sistema positivo pelo Direito nacional, compreende e justifica, de certa forma, a facção adotada. Ressalte-se, porém, que diversos aspectos da teoria oriunda dos países de língua inglesa serão expostos durante a abordagem do presente tema.

As críticas a uma determinada teoria, forma de expressão ou busca da "verdade" não podem prescindir do conhecimento profundo e sistemático do alvo da discórdia. O agente de uma desconstrução deve conhecer todos os "tijolos" e a estrutura do que será atacado. Assim, de qualquer forma, sempre haverá, como já foi dito, um corte vestibular, que terá para o contestador feições de dogma, a fim de que o discurso contrário seja bem sucedido.

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No presente estudo, serão retirados alguns "tijolos" da teoria realista, observando-se que o ponto de comparação será o ordenamento jurídico nacional, vez que em outros ordenamentos a citada teoria pode mostrar-se irrefutável.

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2-CONCEITOS

A afirmação do jurista Diego Martin Farrell, no seu livro "Hacia un criterio empírico de validez", ilustra a elasticidade dos conceitos, pois o citado autor toma como ponto básico do conceito de validade de uma proposição jurídica "o critério adotado pelo jurista", o que não se aplica ao ordenamento nacional, pois, no Brasil, a doutrina não é considerada fonte do Direito, mas apenas uma forma de interpretação. Eis os seus dizeres:

"Las normas jurídicas se consideran válidas cuando concuerdan con el criterio adoptado por el jurista. Puede decirse, entonces, que la validez no es una propiedad de las normas, sino una relación entre la norma y el criterio elegido: cuando la norma se ajusta al criterio se la considera válida".

No ordenamento jurídico nacional, a validade de uma norma jurídica depende do critério adotado pelo titular do Poder Constituinte, seja originário ou derivado, não pelo jurista que representa apenas um agente interpretador dos critérios de validade adotados pela norma jurídica, sem qualquer poder real de criação do Direito. Os que têm uma visão do Direito como linguagem afirmam que o jurista tem um papel fundamental no preenchimento do conteúdo semântico de uma norma, mas, ainda assim, o mesmo não tem o poder de criar, pois ninguém nega que o Direito, hodiernamente, se origina basicamente do Estado.

A validade da norma jurídica pode ser vista como o vínculo estabelecido entre a proposição jurídica, considerada na sua totalidade lógico-sintática e o sistema de Direito posto, de modo que ela é válida se pertencer ao sistema, mas para pertencer a tal sistema dois aspectos devem ser observados: a adequação aos processos anteriormente estabelecidos para a criação da proposição jurídica (exceto no caso da recepção pela Constituição) e a

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competência constitucional do órgão criador. Por isso, o jurista não tem o condão de criar uma norma jurídica válida.

Outro aspecto do modelo Kelseniano de aferição de validade de uma proposição jurídica é a dedutibilidade. Assim, oportuna se faz a invocação de alguns aspectos da dinâmica jurídica, vez que a dedução acontece quando o sistema atesta a validade de uma proposição jurídica quando aquela é conseqüência lógica das normas hierarquicamente superiores. Tal método tem sempre como parâmetro final de validade a norma fundamental hipotética ou, nas palavras do jurista Hebert L. A. Hart, a regra de reconhecimento.

Assim, para o professor Paulo de Barros Carvalho, a validade é uma relação de pertinência da proposição jurídica com o sistema, sendo que de tal afirmação podem ser deduzidos dois aspectos já tratados, a dedutibilidade extraída da dinâmica jurídica e a conformidade com os processos e órgãos estabelecidos pela Norma Maior.

A corrente magistral do positivismo analítico, muito bem defendida pelo italiano Norberto Bobbio, ilustra que a validade de uma norma prescinde do fato da mesma ser ou não efetivamente aplicada na sociedade, vez que na definição de um Direito posto pelo Estado, atualmente tido como legítimo, não se induz o elemento eficácia.

Observe-se que o presente trabalho deve abstrair as outras ciências da análise do seu objeto e observar apenas a Teoria Geral do Direito, prescindindo, assim, da Sociologia jurídica. Apesar da teoria realista mesclar o estudo do Direito com o estudo da citada matéria.

A validade não se confunde com a vigência, posto que pode haver uma norma jurídica válida sem que esteja vigente, isso ocorre claramente quando se vislumbra a vacatio legis(1) ou quando o dispositivo legal é revogado, embora continue vinculante para os casos pretéritos.

A vigência representa a característica de obrigatoriedade da observância de uma determinada norma, ou seja, é uma qualidade da norma que permite a sua incidência no meio social.

A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro trata da vigência da lei, estabelecendo de forma pragmática os critérios que determinam o início da vigência. Afirma que, salvo

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disposição em contrário, a lei começa a vigorar em todo o território nacional quarenta e cinco dias após a sua publicação. Observe-se que, nos Estados estrangeiros, a obrigatoriedade da lei brasileira, quando admitida, se inicia três meses depois de oficialmente publicada.

A maioria das leis, porém, traz em seu texto a data em que passará a viger. Em geral, o início da sua vigência coincide com a data da sua publicação.

Por vezes, faz-se necessária a concessão de um período de adaptação, para que os destinatários da nova disposição legal possam conhecer e compreender o que fora disciplinado.

A norma jurídica perde a vigência quando outra a modifica ou a revoga, salvo nos casos em que a norma se destina à vigência temporária, estipulada no próprio texto legal ou em uma norma de hierarquia superior.

A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro não traçava qualquer distinção entre vigência e eficácia quando afirmava que:

"Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral. Não atingindo, entretanto, salvo disposição expressa em contrário, as situações jurídicas definitivas e a execução do ato jurídico perfeito".

Ressalte-se que essa redação original foi alterada, em 1957, para:

"Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

§1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.

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§2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalteráveis, a arbítrio de outrem.

§3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso".

Assim, pode-se concluir sintaticamente que a vigência está dividida em positivação e obrigatoriedade.

O ilustre professor da Universidade de Copenhague, Alf Ross, afirma, com base em sua influência realista, que um sistema de normas é vigente se for capaz de servir como um esquema interpretativo de um conjunto correspondente de ações sociais, de maneira que se torne compreensível para a sociedade esse conjunto de ações como um todo coerente de significado e motivação. Por fim, Ross afirma que tal capacidade do sistema se baseia no fato das normas jurídicas serem acatadas porque são sentidas como socialmente(2) obrigatórias.

Voltando à distinção entre validade e vigência, o professor da Universidade de Munique, Karl Larenz, afirma, mostrando que não vê inicialmente distinção entre vigência e eficácia, que:

"Se o jurista pergunta se uma lei é válida, não tem em vista se a lei é sempre observada ou o é na maioria dos casos, mas se a pretensão de validade enquanto norma lhe é conatural se encontra justificada, de acordo com os preceitos constitucionais relativos à produção legislativa das normas".

A conceituação da eficácia da norma jurídica é o aspecto mais importante e difícil do presente trabalho, posto que, enquanto alguns afirmam que vigência e eficácia se confundem (positivistas), há outros que alegam inexistir diferença entre validade e eficácia (realistas). A maioria distingue os três institutos e alguns, como o professor Paulo de Barros Carvalho, subdividem a eficácia em: a) técnica; b) jurídica; e c) social.

As variáveis apresentadas não serão analisadas nesse item reservado apenas à conceituação, visto que cada uma das colocações acima enseja discussões doutrinárias baseadas nas teorias que serão expostas no corpo do presente ensaio. Ainda assim, será exposto um conceito sintético de eficácia jurídica que se mostra adequado à fase inicial,

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mesmo que tal conceito seja desconstruído ou reafirmado durante a presente exposição. Observe-se que a colocação dos conceitos nas primeiras linhas do estudo tem um caráter meramente didático, pois os mesmos somente podem ser construídos com a devida precisão após a análise da natureza jurídica do instituto jurídico pesquisado.

A eficácia de uma norma jurídica é a sua idoneidade para provocar, através da sotoposição de um fato aos fatos jurídicos descritos pela citada norma, as reações prescritas no seu conseqüente ou no ordenamento jurídico. A eficácia deriva diretamente dos efeitos da imputação normativa, partindo-se logicamente de uma relação de "dever-ser".

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3- AS COSEQUÊNCIAS DA TRIPARTIÇÃO DOS PODERES SOBRE O PODER LEGISLATIVO

O jurista Charles Secondat Montesquieu, na sua célebre obra O espírito das leis, que trata também da História e da Ciência Política da sua época, deixa, em apenas oito páginas, explícito que o Poder Legislativo, o Poder Judiciário e o Poder Executivo devem ser exercidos por órgãos diversos.

A divisão de poderes, que foi defendida também por Aristóteles, fundamenta-se basicamente em dois elementos: a) a especialização funcional; e b) a independência orgânica.

A Constituição Federal de 1988 deixa claras as funções dos três Poderes, inclusive limitando o campo de atuação de cada Poder. A função fim atribuída ao Poder Judiciário é julgar, a função precípua do Poder Legislativo é criar normas gerais e abstratas e a função primordial do Poder Executivo é executar as leis. Logo, o órgão incumbido da criação do ordenamento jurídico nacional infraconstitucional e constitucional derivado é o Poder Legislativo, salvo quando parte dessa função é atribuída a outro Poder Constituído.

A questão da distinção entre vigência e eficácia passa pela análise das funções precípuas dos Poderes Legislativo e Judiciário, portanto é claramente uma questão Constitucional e qualquer decisão que se afaste do que fora determinado pela CF/88 é inconstitucional. Assim,

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o Poder Judiciário quando passa a legislar fora dos casos determinados na Lei Maior está praticando um ato inconstitucional.

Os atos fundamentais emanados do Poder Legislativo são as fontes do Direito pátrio, pois representam mandamentos gerais, vinculantes e de observância obrigatória tanto para os encarregados da aplicação do Direito, quanto para os cidadãos. Já os atos praticados pelo Poder Judiciário podem ser vistos apenas como formas de aplicação e interpretação do Direito, ressaltando-se que aos atos produzidos pelo citado Poder não vinculam as decisões posteriores tomadas pelos seus membros.

A decisão do juiz deve ser uma reprodução ajustada ao caso concreto do que fora produzido pelo legislador como Direito válido e vigente, posto que ao magistrado não deve ser deixada qualquer liberdade para o exercício da sua fantasia legislativa. Se os juízes pudessem modificar o Direito posto pelo órgão legitimado com base em critérios eqüitativos - observe-se que o subjetivismo exagerado gera contradições - os juízes de diferentes competências territoriais, mas subordinados à mesma jurisdição (a jurisdição é una e a competência é a sua medida), poderiam exarar decisões completamente diferentes em casos idênticos. Além disso, o princípio da separação dos poderes, dogma adotado pela Constituição Federal de 1988, seria negado pela presença de dois legisladores. A obrigatória observância da lei tende a garantir dois valores absolutamente importantes para o sistema jurídico nacional: 1) a segurança jurídica; e 2) a democracia.

O cidadão precisa saber de modo claro e absoluto se a sua conduta está ou não de acordo com a lei, não podendo, portanto, ficar ao livre arbítrio do juiz o que pode ou não ser aplicado como lei, visto que, além do subjetivismo já tratado e da disformidade da fonte, haveria o risco da concentração de poderes, que representa um dos meios de condução ao regime absolutista. A questão da legitimação também deve ser observada. O Poder Legislativo é o único órgão legitimado pela sociedade para, em regra, produzir as suas normas oficiais de convivência. Tal legitimação é o principal fundamento da democracia representativa adotada como pilar do Estado, onde todo poder emana do povo e em seu nome será exercido. A CF/88 estabeleceu, como cláusulas pétreas, a separação dos poderes e o sufrágio universal e determinou que o Poder Legislativo deve ser exercido pelo Congresso Nacional, vide art.44, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, ressalvando-se que a primeira Casa abriga os representantes eleitos do povo e a segunda Casa os representantes eleitos dos Estados e Distrito Federal.

A Constituição Federal de 1988 deixa claro que os juízes estão vinculados à lei produzida segundo os processos estabelecidos e vigentes, caso contrário estariam violando a legitimação

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popular outorgada aos mandatários do povo, representantes no Congresso Nacional, e o princípio constitucional da separação dos poderes.

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4- A VALIDADE, A VIGÊNCIA E A EFICÁCIA DA NORMA JURÍDICA SOB O MANTO DO POSITIVISMO.

A teoria do positivismo jurídico é baseada em 6 aspectos, quais sejam:

a) forma coativa do Direito;

b) forma legislativa do Direito;

c) forma imperativa do Direito;

d) forma coerente do ordenamento jurídico;

e) forma completa do ordenamento jurídico;

f) interpretação mecanicista do Direito.

As críticas às três primeiras formas do Direito são inconsistentes, portanto as mesmas não foram atacadas de forma coerente e permanecem válidas na sua essência, podendo, inclusive, ser notadas até nos ordenamentos jurídicos anglo-saxônicos.

As normas de competência não denotam, por vezes, no seu próprio enunciado sintático a conseqüência gerada pela sua violação, mas tal resultado pode ser extraído do ordenamento

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jurídico como sistema, qual seja, a invalidade dos atos irregularmente produzidos. Se o interlocutor utilizar um conceito mais amplo do vocábulo "competência", estendendo-o ao estágio dos Poderes Constituídos, o ato produzido com esse vício seria considerado inexistente. Assim, mesmo quando é utilizada a classificação triangular kelseniana, o legislador ao permitir, ao ordenar ou ao conferir competência, não pode esquecer o elemento coativo do Direito, que se materializa, em última análise através da força física.

Observe-se que o inverso nem sempre é verdadeiro, a coação é gênero e a força utilizada pelo Direito é uma espécie. Assim, quando os juristas afirmam que Direito é coação, há uma impertinência terminológica, visto que a coação pode ser considerada um meio ou um instrumento da realização do Direito. O próprio Hans Kelsen dá um exemplo brilhante de um caso onde há coação ilegal:

"Então, atribuímos ao comando do órgão jurídico, e já não ao salteador de estradas, o sentido objetivo de uma norma vinculadora do destinatário. Quer dizer: interpretamos o comando de um, mas não o comando do outro, como uma norma objetivamente válida. E, então, num dos casos, vemos na conexão existente entre o não acatamento do comando e um ato de coerção uma simples ´ameaça´, isto é, a afirmação de que será executado um mal, ao passo que, no outro, interpretamos essa conexão no sentido de que deve ser executado um mal. Assim, neste último caso, interpretamos a execução efetiva do mal como a aplicação ou a execução de uma norma objetivamente válida que estatui um ato de coerção; no primeiro caso, porém, interpretamo-lo – na medida em que façamos uma interpretação normativa – como um delito, referindo ao ato de coerção normas que consideramos como o sentido objetivo de certos atos que, por isso mesmo, caracterizamos como atos jurídicos".

A forma legislativa do Direito já foi abordada em um dos capítulos anteriores, quando foram estudados a fonte máxima do Direito e o seu produtor legitimado.

As normas jurídicas representam imperativos hipotéticos e, como tais, expressam comandos com maior ou menor grau de determinação, têm um conteúdo sintático heterônomo de observância obrigatória.

As três últimas formas listadas foram duramente atacadas; entretanto, os ataques se mostraram coerentes. Um ordenamento não é necessariamente coerente, pois podem coexistir no mesmo ordenamento duas normas incompatíveis e ambas podem ser válidas, porém somente uma será aplicada. Um ordenamento não é completo, posto que a completude deriva da norma geral exclusiva, que, em regra, não existe; a interpretação

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mecanicista do Direito não pode ser adotada como o principal instrumento do aplicador do Direito, pois a dinâmica social não permite que o fato social com repercussões jurídicas seja reduzido a um axioma matemático.

O ilustre jurista Paulo de Barros Carvalho traça um esquema conceitual para os institutos tratados que se encaixa perfeitamente à teoria do positivismo analítico. Eis os conceitos:

"Firmemos estes conceitos: ‘validade’ é a relação de pertinencialidade de uma norma ‘n’ com o sistema jurídico ‘s’. ‘Vigência’ é atributo de norma válida (norma jurídica), consistente na prontidão de produzir os efeitos para os quais está preordenada, tão logo aconteçam os fatos nela descritos, podendo ser plena ou parcial (só para fatos passados ou só para fatos futuros, no caso de regra nova). ‘Eficácia técnica’ é a qualidade que a norma ostenta, no sentido de descrever fatos que, uma vez ocorridos, tenham aptidão de irradiar efeitos jurídicos, já removidos os obstáculos materiais ou as impossibilidades sintáticas (na terminologia da Tércio). ‘Eficácia jurídica’ é o predicado dos fatos jurídicos de desencadearem as conseqüências que o ordenamento prevê. E, por fim, a ‘eficácia social’, como a produção concreta de resultados na ordem dos fatos sociais. Os quatro primeiros são conceitos jurídicos que muito interessam à Dogmática, ao passo que o último é do campo da Sociologia, mais precisamente da Sociologia Jurídica".

A análise da causalidade, considerando o seu procedimento interno apenas, leva a três etapas: a) a conduta; b) o nexo causal; c) o resultado, o evento, a conseqüência ou o efeito. Paulo de Barros Carvalho utilizou, nos conceitos de vigência e eficácia jurídica, os vocábulos "efeitos" e "conseqüências" e os verbos "produzir" e "desencadear". A desconstrução analítica dos conceitos apresentados, levando-se em conta o procedimento causal, leva à conclusão de que os conceitos de vigência e eficácia jurídica expostos pelo jurista citado são muito semelhantes, diferem apenas quando é traçada a diferença entre os efeitos ou conseqüências produzidas pelo "preceito secundário" da norma jurídica (de forma contextual) e pelo ordenamento jurídico (de forma exógena).

Tal semelhança conceitual se justifica pelos seguintes aspectos: 1) o juiz está adstrito à norma jurídica, visto que a norma está posta como uma prescrição; 2) o juiz é o órgão certificador da eficácia da norma jurídica.

Nesse estágio do trabalho, se faz imperioso o retorno à questão da fonte máxima do Direito e à questão do órgão legitimado.

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Em regra, o Poder Legislativo é o órgão apto para determinar o início e o término da vigência de uma norma jurídica, sendo que tais determinações encontram-se sempre normativadas, seja na mesma lei (início da vigência e fim da vigência, no caso e vigência temporária), seja em outra lei (revogação). Assim, o juiz está fadado a observar também essas determinações, que, como já foi dito, fazem parte da norma, isto é, o magistrado não pode afastar a vigência de uma norma jurídica que fora criada obedecendo aos procedimentos formais de elaboração e emanada de um órgão constituído.

Portanto, se o julgador está obrigado a aplicar as normas válidas e vigentes, os conceitos de vigência e eficácia se confundem, posto que ele jamais poderá afastar a aplicabilidade da norma jurídica.

A reiterada violação de uma norma jurídica não caracteriza a sua ineficácia, vez que tanto a sociedade, quanto o titular do direito em questão, não podem atestar a eficácia da norma. A violação gera a conseqüência descrita pela norma ou pelo ordenamento jurídico, pois a sua produção tem como escopo obrigar, permitir ou atribuir competência, estabelecendo um dever ser baseado nos valores positivados pelos legitimados. Logo, por ser uma prescrição, um imperativo hipotético, não é facultado ao cidadão o cumprimento ou não de determinada ordem. Já o titular do direito tem a faculdade de exercer ou não o seu direito, mas a sua inércia jamais poderia atestar a ineficácia de uma norma positivada.

O ilustre professor Alf Ross, apesar da sua posição realista, esclarece de forma brilhante, expondo da seguinte forma o seu ponto de vista:

"A efetividade que condiciona a vigência das normas só pode, portanto ser buscada na aplicação judicial do direito, não o podendo no direito em ação entre os indivíduos particulares. Se, por exemplo, proíbe-se o aborto criminoso, o verdadeiro teor do direito consistirá numa diretiva ao juiz segundo a qual ele deverá, sob certas condições, impor uma pena ao aborto criminoso. O fator decisivo que determina que a proibição é direito vigente é tão somente o fato de ser efetivamente aplicada pelos tribunais nos casos em que transgressões à lei são descobertas e julgadas. Não faz diferença se as pessoas acatam a proibição ou com freqüência a ignoram. Esta indiferença se traduz no aparente paradoxo segundo o qual quanto mais uma regra jurídica é acatada na vida jurídica extrajudicial, mais difícil é verificar se essa regra detém vigência, já que os tribunais têm uma oportunidade muito menor de manifestar a sua reação".

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A discussão sobre a aplicação pragmática do Direito pode, através de exemplos, ilustrar a semelhança entre vigência e eficácia jurídica. As pessoas físicas e jurídicas, além de alguns entes despersonalizados, podem ser titilares de direitos, que fundamentalmente se dividem em duas espécies, são elas: 1) Direito subjetivo, que surge de uma lesão a um direito material, ocasionando uma pretensão; e, 2) Direito potestativo, que representa um poder de sujeição, onde a vontade do titular se sobrepõe à vontade de outrem, independente da intervenção e vontade desse último e pode ser exercido judicialmente ou extrajudicialmente. Nos dois casos, o titular tem a faculdade de exigir ou fazer com que outro se sujeite, ou seja, uma titular de um Direito subjetivo pode ou não utilizar os instrumentos que lhe foram ofertados pela lei, o que vale também para o titular de um Direito potestativo. Embora, quando o titular de um direito está disposto a exercê-lo e a sujeição ou a prestação não se apresentam espontaneamente, o mesmo tem que buscar a tutela judicial, para que o magistrado constitucionalmente competente possa aplicar o Direito ao caso concreto, através das normas jurídicas postas pelo órgão idôneo. Assim, a faculdade outorgada ao titular de um direito não pode servir de parâmetro para a aferição da eficácia de uma determinada norma. Caso contrário, o controle da eficácia das normas seria executado de forma intersubjetiva, pois uns poderiam, ao exercer a sua faculdade, considerar determinada norma eficaz e outros ineficaz, o que causaria uma tensão entre a autonomia e a heteronomia (unidade) exigida pela forma de estatuto externo do ordenamento jurídico(3). O sistema que se utiliza da aferição social da eficácia tende ao anarquismo, vez que retira do Estado o poder de impor de forma absoluta o Direito, que nos regimes democráticos é posto pela própria sociedade. Isto não quer dizer que, na aplicação da lei, os valores eleitos pela sociedade sejam afastados, pois a sociedade está em constante evolução e, na maioria dos casos, não conserva de forma irrestrita os mesmos valores da época da produção da norma jurídica. Logo, a aplicação da norma deve considerar os fins sociais e o bem comum. Ressalte-se a utilização do vocábulo "aplicação", que atesta a lei como fonte máxima do Direito.

A exigibilidade de um direito que não foi observado de forma espontânea pelo sujeito que deve prestar ou sujeitar-se gera duas conseqüências, são elas: a) a inércia do titular; ou, b) a sua ação. A inércia é um fato irrelevante para o presente trabalho, visto que, como já foi dito, não pode servir como fundamento de aferição da eficácia. A ação representa um dos melhores argumentos para a hipótese e o objetivo do presente estudo, pois o titular, ao buscar a tutela judicial, estará exercendo um direito subjetivo publico contra o Estado-juiz, que, segundo a Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro e a Constituição Federal de 1988, está adstrito à norma jurídica posta pelo legitimado. Assim, ao decidir, nos casos de violação e sujeição, o juiz deve inevitavelmente, sob pena de produzir um ato ilegal ou, em última instância, inconstitucional, observar a lei produzida através dos procedimentos formais constitucionais e posta por um órgão legitimado. Logo, o magistrado deve, segundo o ordenamento jurídico, aplicar indistintamente as normas vigentes, conseqüentemente, o jurista pode chegar a conclusão de que a norma jurídica eficaz é aquela aplicada pelo aferidor da eficácia e aplicador definitivo do Direito, o magistrado. Após esta argumentação, a conclusão indubitável que pode ser retirada do presente estudo e do ordenamento jurídico nacional é que vigência e eficácia são institutos

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conceitualmente homogêneos, sem qualquer diferença significante, seja sob o aspecto pragmático, seja sob o aspecto teórico.

Validade da norma é a sua adequação ao ordenamento jurídico em que se insere. Por ter sido criada pelo processo legislativo próprio.Vigência, é a força que tem a norma cumprindo com sua finalidade, regular condutas, gerando efeitos, sobre os eventos a que se refere seu antecedente, tão logo ocorram no âmbito dos fatos. Pode ocorrer de uma lei válida não ter vigência, quando está em curso o interregno previsto na Lei de Introdução ao Código Civil, de quarenta e cinco dias no território nacional ou noventa dias fora dele, entre a publicação da lei e sua entrada em vigor. Porém, se no texto houver previsão diversa, até mesmo de entrada imediata em vigor, será observado o termo inicial expressamente previsto. Convém anotar que em termos de tributos, há necessidade de respeito ao princípio da anterioridade, corolário do princípio da segurança jurídica, a que se referem o artigo 105, III, “b”, bem como artigo 195, § 6º,ambos da CF/88, conforme a espécie tributária de que se esteja tratando. Refira-se, ainda, que a norma tributária, com de regra as demais normas jurídicas, são irretroativas, excete quando em benefício do contribuinte, possam ser aplicadas, conforme o artigo 104, III, do CTN. Uma última anotação sobre a vigência do texto legal reside na ultratividade da norma revogada, a qual mesmo sem ter mais vigência, poderá ser aplicada para reger eventos situados no lapso temporal de sua vigência, em homenagem ao princípio segundo o qual tempus regit actum.Eficácia Jurídica – é a aptidão que apresenta o fato jurídico (evento previsto no antecedente da norma) de fazer instalar a relação jurídica no momento de sua ocorrência. É atributo do fato jurídico e não da norma propriamente dita.Eficácia Técnica – Capacidade de que a regra se reveste, de poder jurisdicizar acontecimentos descritos em seu antecedente, de modo que através de sua ocorr~encia no mundo dos fatos, sejam gerados efeitos jurídicos. Poderá ser obstada pela inocoerência da regra em relação aos demais dispositivos do ordenamento que lhe sirvam de fundamento de validade (ineficácia técnico-sintática) ou por pela existência de u`a norma válida inibidora de sua incidência. A título de exemplo dessa última figura, citaria a própria fase da “vacatio legis”, período em que uma norma já existente no ordenamento inibe provisoriamente a incidência da norma nova, caso não prevista sua vigência imediata.Eficácia Social da normageral e abstrata - É o fenômeno verificado quando do descumprimento reiterado e geral, pelos sujeitos destinatários das normas, dos preceitos nelas contidos, revelando uma ausência histórica de acatamento.

CONFLITO DE NORMAS JURÍDICAS NO TEMPO E O DIREITO BRASILEIRO: DIREITOS PENAL, CIVIL, CONSTITUCIONAL E DO TRABALHO:

O chamado Direito Intertemporal é o ramo da ciência jurídica que tenta responder às questões mais freqüentes que envolvem a entrada em vigor de uma nova lei e o regramento das relações jurídicas pretéritas. Quais relações jurídicas iniciadas sob o pálio da lei anterior já serão reguladas pela lei posterior e quais delas permanecem regidas pela lei revogada ?

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O conflito de leis, decorrente da coexistência de duas normas distintas regulando uma mesma relação jurídica, surge a partir do momento em que são violados os limites temporais ou espaciais de aplicação de determinados preceitos jurídicos. Tais limites são dados, por um lado, pelo território, e de outro, pelo tempo. Assim é que normas procedentes de um determinado Estado soberano não podem disciplinar relações formadas no território de outro, enquanto que as relações jurídicas constituídas sob o manto de norma cuja vigência se expirou não poderão, em regra, sofrer os efeitos da lei sucessora.

Entretanto, esses limites não são absolutos, “exigindo as necessidades das relações internacionais que as relações formadas num Estado sejam às vezes disciplinadas pelas normas de outro, e as da vida interna que às relações constituídas sob o império de um preceito se aplique retroativamente um preceito posterior, além de que a complexidade dos elementos de que se constituem todas as relações não permite sempre aplicar a cada uma a norma do lugar ou do tempo em que surgiu, devendo ter-se em conta o lugar ou o tempo em que ela se torne perfeita ou deva produzir os seus efeitos. Surgem, assim, os conflitos de leis, na dupla figura de colisões entre as leis ao tempo vigentes em territórios diversos ou de colisões entre leis que emanam da mesma soberania mas vigorando em tempos diversos, para resolução dos quais há regras particulares, ditadas expressamente pelo legislador, concebidas pela ciência ou deduzidas da natureza das relações a que se referem “1.

Da primeira ordem de conflitos se ocupa o Direito Internacional Privado, enquanto que o segundo tipo de conflito de leis constitui o móvel do Direito Intertemporal. Nele vamos encontrar os parâmetros definidores dos limites de vigência de duas normas que se sucedem cronologicamente. Ou , como ensina Campos Batalha, onde haveremos de buscar as “soluções adequadas a atenuar os rigores da incidência do tempo jurídico com o seu poder cortante e desmembrador de uma realidade que insta e perdura”2.

Registre-se que a denominação “Direito Intertemporal” , atribuída a Fr. Affolter3, que começou a empregá-la em 1897, prevaleceu sobre outras (Teoria dos Direitos Adquiridos, Teoria da Retroatividade das leis ou Direito Transitório)4 exatamente por ser a mais representativa do que seja esse direito, “disciplinador das relações jurídicas surgidas ou reinantes no tempo intermédio entre o domínio de uma norma e o império da subseqüente” 5. Muito embora, também seja bastante prestigiada a expressão “Conflito de Leis no Tempo”, utilizada por Roubier, e segundo José Eduardo Martins Cardozo, a única a “permitir, com êxito, a identificação dos limites exatos do fenômeno causado pela ‘colisão ‘ de normas ao longo do fluir da temporalidade jurídica” 6.

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Além dos princípios e regras gerais que compõem o Direito Intertemporal, destinados a municiar o intérprete de elementos para solucionar os conflitos da lei no tempo, pode suceder que o próprio legislador queira também dar uma determinada solução ou mesmo evitar o possível conflito de leis, regulando casuisticamente os problemas que provavelmente decorrerão do advento da nova lei e revogação da anterior. Explica SERPA LOPES que “ por dois modos podem esses conflitos ser solucionados ou regulados: a) por meio de uma lei de conflito; b) por meio de uma lei de transição. No primeiro caso, a lei tem por objeto direto solucionar os conflitos num ou noutro sentido, decidindo se se aplicará a lei antiga ou a nova, ou em qual proporção se aplicará cada uma delas. No segundo caso – lei de transição – estabelece-se um regime intermediário entre as duas leis, para dar lugar aos interesses particulares se conciliáveis com a nova legislação.” 7.

O novo Código Civil, inovando em relação ao seu antecessor revogado, não deixou ao talante exclusivo da doutrina e da jurisprudência a escolha das normas aplicáveis às relações em curso, estabelecendo, no próprio texto normativo, um conjunto de regras destinadas a conciliar, por meio de critérios fundados na eqüidade e nos princípios gerais de direito, a lei posterior com as relações já definidas pela anterior, indicando ao Juiz qual o sistema jurídico sobre o qual devem estar lastreadas as decisões judiciais. Trata-se de verdadeira “lei de conflito”, onde o legislador procurou solucionar os eventuais conflitos, determinando quando se aplicará o CC/16 ou o CC/2002, ou em qual proporção se aplicará cada uma deles.

Essas regras, dispostas entre os artigos 2.028 e 2.046, compõem o chamado “Livro Complementar - Das Disposições Finais e Transitórias", e destinam-se, exatamente, à prevenção e solução do conflito de leis no tempo, que poderia resultar da aplicação da lei posterior a situações constituídas sob a regência da lei anterior. São normas de caráter temporário e excepcional, cuja vigência e eficácia se vinculam à subsistência das próprias situações por elas definidas. São normas “não autônomas”, como prefere denominá-las SERPA LOPES, pois “não possuem, por si mesmas, nenhum sentido, o qual só adquirem quando servem ao fim geral do Direito, quando entram na relação com outras normas” 8.

Na elaboração dessas disposições, ateve-se o legislador aos preceitos gerais do Direito Intertemporal, aplicáveis às diferentes ordens jurídicas e que têm servido para determinar os limites do domínio de antigos e novos preceitos desde os tempos mais remotos,9 sempre lembrando que, no Brasil, o Direito Intertemporal encontra-se rigidamente vinculado a dois

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comandos normativos: o art. 5º , inciso XXXVI da Carta Magna 10 e o art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil.

A análise específica dessas novas regras codificadas, com a tentativa de apontar qual foi a intenção do legislador na sua elaboração, constitui o cerne da obra “Problemas de Direito Intertemporal no Código Civil” , recém publicada pela Editora Saraiva, e onde discorremos sobre os principais artigos que integram o Livro Complementar, especialmente aqueles mais propensos a gerar controvérsias, procurando mostrar o sentido e o âmbito de sua abrangência, à luz dos princípios da retroatividade, da eficácia imediata e da irretroatividade das normas, ao tempo em que demonstramos a sua absoluta compatibilidade com as construções doutrinárias e com as cláusulas constitucionais e infraconstitucionais que explicam e protegem o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada,.

Sustentamos que o novo Código, em determinadas situações, poderá regular os efeitos futuros de fatos ou situações jurídicas que já existiam antes do início de sua vigência, bem como modificar determinados efeitos produzidos no passado ou mesmo permitir que se criem novas situações com base em fatos acontecidos anteriormente.

Esperamos que a referida obra constitua efetiva a contribuição para todos aqueles preocupados em solucionar os diversos problemas de ordem intertemporal surgidos a partir da entrada em vigor do novo Código Civil.

Mas não nos esqueçamos que, ao conflito temporal existente entre CC/1916 e CC/2002, não poderá dar a ciência, jamais, uma solução única, podendo, apenas, na síntese lapidar de RUGGIERO, “ditar alguns princípios de diretrizes; nem o próprio legislador, a quem soberanamente incumbe decidir sobre os limites de eficácia das próprias normas, a podia dar com uma disposição universal que tivesse a pretensão de disciplinar todas as espécies de conflitos, fosse qual fosse o campo de aplicação da norma, a natureza do instituto ou a configuração especial da relação” 11

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7.4. O Conceito de Política. Política e Direito

7.4.1. Ciência Política: Alguns Conceitos BásicosPODER. O conceito de poder varia no tempo e em função da corrente de pensamento abraçada pelos diferentes autores. A fim de exemplificar a complexidade de que se reveste o conceito, são referidos, a seguir, alguns posicionamentos que inspiraram toda uma série de teorias em ciência política.

Nicos Poulantzas, a partir de Marx e Lênin, e da teoria da luta de classes, chama de poder “a capacidade de uma classe social de realizar os seus interesses objetivos específicos”. É uma definição corrente entre os adeptos da teoria política marxista.

Para Lasswell, poder é “o fato de participar da tomada das decisões”. Essa visão do poder tem sido corrente para todas as teorias de decision-making process, e é criticada pelo fato de apresentar-se como uma concepção muito voluntarista do processo de tomada de decisões.

Max Weber conceituou poder como sendo “a probabilidade de um certo comando com um conteúdo específico ser obedecido por um grupo determinado”. A concepção weberiana de poder parte da visão de uma sociedade-sujeito, resultado dos comportamentos normativos dos agentes sociais. Do conceito de Weber sobre o poder emergem as concepções de “probabilidade” e de “comando específico”.

Talcot Parsons, partindo da concepção funcionalista e integracionista do sistema social, definiu o poder como “a capacidade de exercer certas funções em proveito do sistema social considerado no seu conjunto”.

POLÍTICA. A palavra política é originária do grego pólis (politikós), e se refere ao que é urbano, civil, público, enfim, ao que é da cidade (da pólis). É uma forma de atividade humana relacionada ao exercício do poder. No dizer de Julien Freund, é “a atividade social que se propõe a garantir pela força, fundada geralmente no direito, a segurança externa e a concórdia interna de uma unidade política particular...”. Essa possibilidade de fazer uso da força distingue o poder político das outras formas de poder.

CIÊNCIA POLÍTICA. Segundo Norberto Bobbio, entende-se por ciência política “qualquer estudo dos fenômenos e das estruturas políticas, conduzido sistematicamente e com rigor, apoiado num amplo e cuidadoso exame dos fatos expostos com argumentos racionais. Nesta acepção, o termo ‘ciência política’ é utilizado dentro do significado tradicional como oposto à ‘opinião’”.

Gaetano Mosca a definiu como o estudo da formação e organização do poder. Ele entendia que a ciência política desenvolveu-se muito, a partir do século XIX, como resultado da evolução das ciências históricas. Em consequência, o método da ciência política era o de recolher o maior número possível de fatos históricos, a partir do estudo das várias civilizações. O cientista político, para Mosca, deveria conhecer muito bem a história de toda a humanidade. Sobre o objetivo da ciência política, Mosca afirmou que era estudar as tendências que determinam o ordenamento dos poderes políticos, examinar as leis reguladoras da organização social, descobrir e conhecer as leis reguladoras da natureza social do homem e do

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ordenamento político das diversas sociedades humanas. Quanto ao problema central a ser investigado pela ciência política, Mosca colocava o problema do poder.

ESTADO. A definição de Bluntschli, segundo a qual Estado é a nação politicamente organizada, tornou-se trivial. Para compreender essa assertiva, porém, é preciso discernir entre Estado, país, povo e nação. Por país entende-se o território que abriga uma coletividade. A população, elemento humano do Estado constitui o povo. Mas, como ensina Darcy Azambuja, em seu conhecido livro Teoria Geral do Estado, não é sempre que o povo constitui uma nação. Esta só aparece quando um grupo de indivíduos, tendo a mesma origem ou religião, ou os mesmos interesses econômicos e morais, mas principalmente um passado comum de tradições, unem-se em torno de ideais e aspirações comuns. Os judeus, mesmo quando inexistia o Estado de Israel, nunca deixaram de constituir uma nação, embora fisicamente dispersos, espalhados por muitos países. É um dos mais palpáveis exemplos de que a nação pode sobreviver mesmo sem o Estado. A Iugoslávia, ao contrário, mostrou ser um Estado dividido em raças, religiões e interesses divergentes. Com a morte de Tito, e em face das transformações ocorridas no Leste europeu, desde o fim do socialismo real, essas nações despontaram, e ainda hoje lutam para obter, cada uma, o seu próprio Estado.

GOVERNO. Conjunto de pessoas que governam o Estado. Historicamente, o governo existiu antes do Estado. Já na Antigüidade, assim como na Idade Média, é possível encontrar um governo das cidades-Estado e dos impérios feudais como formas pré-estatais de organização política. O Estado, propriamente dito, tem sua origem na Idade Moderna. Na interpretação que fez Darcy Azambuja do livro La Démocratie, de Rodolphe Laun, os governos podem ser classificados quanto à origem, quanto à organização e quanto ao exercício do poder. O quadro abaixo dá uma visão sintética dessa interpretação.

Quanto à Origem Governos Democráticos ou PopularesGovernos de Dominação

Quanto à OrganizaçãoGovernos de Fato

Governos de DireitoHereditariedadeEleição

Quanto ao Exercício AbsolutosConstitucionais

SOBERANIA. Poder de supremacia que o Estado tem sobre os indivíduos e os grupos que forma sua população, e de independência com relação aos demais Estados. Sem soberania inexiste Estado. Para alguns autores, a soberania não seria propriamente um poder, mas uma qualidade superior do poder do Estado. Normalmente, a soberania é entendida como tendo um caráter interno e outro externo. A soberania externa tem a ver com a independência e as relações de igualdade entre os Estados. A interna com o poder de normatizar as relações que se estabelecem entre os indivíduos e grupos que habitam o interior do Estado.

Das doutrinas sobre a soberania, destacam-se as teocráticas e as democráticas. Segundo a teoria do Direito divino sobrenatural, Deus é a origem do poder, e por sua vontade é que existe uma hierarquia separando governantes e governados. Referendada historicamente pela Igreja Católica Apostólica Romana, ao longo da Idade Média, esta teoria enfatizava o fato de

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que, sendo indicados pelo próprio Deus para exercer o poder aqui na Terra, os reis exerciam o poder por delegação dos céus, e prestavam contas de seus atos diretamente a Deus.

Na Idade Moderna surgiram as doutrinas democráticas, que conferem ao povo ou à nação o poder soberano. Estas teorias tornaram-se conhecidas a partir das obras de Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).

Para Thomas Hobbes, a humanidade, antes de criar a vida em sociedade, vivia em anarquia e violência, no chamado estado de natureza, no qual inexistia qualquer hierarquia entre os indivíduos. Essa vida “solitária, sórdida e brutal” terminou quando a humanidade criou, por meio de um contrato, a sociedade política. A soberania, que estava dispersa, residindo em cada indivíduo, passou a ser exercida pela autoridade criada em razão daquele contrato político. Hobbes entendia que o contrato que criou o Estado não poderá ser jamais revogado, sob pena de a humanidade retroceder ao estado de natureza. O Estado, tal como o representou Hobbes, é um monstro alado – Leviatã – que “abriga e prende para sempre o

homem”. Na interpretação de Darcy Azambuja, “Hobbes partiu da doutrina da igualdade dos homens e terminou preconizando o absolutismo do poder e, nesse sentido, suas ideias se acham no extremo da concepção da soberania, que ele considera ilimitada, colocando a política por cima da moral e da religião”.

O ponto de partida de John Locke difere do de Hobbes. No estado de natureza não teria havido caos, mas ordem e razão. Ele concorda com Hobbes que um contrato entre os indivíduos criou a sociedade política, mas o Estado surgiu para assegurar a lei natural, bem como para manter a harmonia entre os homens. Neste sentido, diz Locke, inexiste qualquer cessão dos direitos naturais ao Estado. Por isso, este deve ser exercido pela maioria, bem como respeitar os naturais direitos à vida, à liberdade, à propriedade.

Foi Locke quem primeiro mencionou os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário como três funções essenciais do Estado. Em termos de preferência, Locke defendia a democracia como forma de governo, aceitando como boa a monarquia na qual a o Poder Legislativo, órgão supremo do Estado, fosse independente do rei.

Jean Jacques Rousseau também partiu do princípio de que houve um estado de natureza. Este, porém, não era nem o caos de Hobbes e nem apenas ordeiro e racional, como queria Locke. Mais do que isso, no estado de natureza os homens eram livres e felizes. Foi o progresso da civilização, com a divisão do trabalho e da propriedade que criaram ricos e pobres, poderosos e fracos. Assim, a sociedade política surgiu como um mal necessário, para manter a ordem e evitar o recrudescimento das desigualdades. Ao criar o Estado, mediante um contrato social, o indivíduo cedeu parte de seus direitos naturais para que fosse criada uma entidade superior a todos, detentora de uma vontade geral. Ao participar das decisões tomadas pelo Estado, porém, o indivíduo recupera a parcela de soberania que transferiu por força do contrato social que formou a sociedade política.

Para Rousseau, o titular do poder de Estado é o povo.

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As teorias de Hobbes, Locke e Rousseau exerceram grande influência. Hobbes inspirou o poder absoluto dos reis. Locke teve suas ideias aplicadas nas declarações de independência e nas Constituições dos Estados Americanos, bem como na formação do pensamento democrático e individualista. Rousseau deu o fermento ideológico da fase radical da Revolução Francesa.

FINALIDADE DO ESTADO. As discussões a respeito do Estado incluem o debate sobre se ele é um fim em si mesmo, ou é o fim do homem e da sociedade, ou é um meio para que o homem alcance a felicidade. Darcy Azambuja concorda com Ataliba Nogueira, ao dizer que o Estado “é um dos meios pelos quais o homem realiza o seu aperfeiçoamento físico, moral e intelectual, e isso é que justifica a existência do Estado”.

No plano jurídico, o fim do Estado é a promoção do bem público, entendendo-se por esta expressão os meios e elementos indispensáveis a que a população possa satisfazer suas legítimas necessidades.

Dentre as doutrinas que tratam da finalidade do Estado, a abstencionista, também conhecida como do laissez-faire, ligada à corrente de pensamento econômico dos fisiocratas, reserva ao Estado a função única de manter a ordem (interna e externa), deixando praticamente tudo à livre iniciativa. Nesse Estado de tipo gendarme, poucas devem ser as leis e normas regulamentadoras, e livre o direito de propriedade.

A doutrina socialista, ao contrário, quer o Estado como não só como representante da coletividade, mas atuante em todos os ramos de atividade. Os mais radicais consideram que o Estado deve deter a propriedade de tudo o que interessa ao conjunto da população, distribuindo a cada um segundo critérios fixados a partir do Estado. O objetivo é o fim da propriedade privada e, no limite, do próprio Estado.

Uma terceira doutrina, que poder-se-ia denominar eclética, busca um meio termo entre o laissez-faire e o socialismo. O lema dos ecléticos, segundo G. Sortais, seria: ao invés de fazer tudo, como defendem os socialistas, ou de fazer o mínimo, como pregam os abstencionistas, melhor é ajudar a fazer. Os ecléticos querem o Estado realizando competências de caráter supletivo, só fazendo aquilo que os indivíduos não podem fazer. A corrente eclética admite a parceria entre o Estado e os particulares, em áreas como o ensino e a assistência social. Dessas ideias, e da crítica ao Estado forte dos socialistas e ao Estado mínimo do laissez-faire, emerge a proposta do Estado regulador e fiscalizador.

OS PODERES DO ESTADO. A História nos ensina que, nas sociedades primitivas, o poder de Estado concentrava-se em uma pessoa ou em um grupo. As atividades eram exercidas por intermédio de um só órgão supremo, que cuidava da defesa externa, da ordem interna, do controle dos bens e serviços de caráter coletivo, inclusive das funções religiosas. A extensão territorial e a diversificação crescente das atividades, dentre outros fatores, exigiu uma desconcentração do poder, cujo exercício começou a ser dividido entre várias pessoas.

Desde a antiguidade, a função de julgar foi sendo delegada a funcionários do rei. Ao longo da Idade Média, outras funções foram se especializando, e órgãos especiais surgiram para desempenhar essas funções. O caso da Inglaterra é exemplar. A função legislativa, por um

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processo de negociação e lutas, passou das mãos do rei para uma representação autônoma dos cidadãos: o Parlamento.

Aristóteles, discorrendo sobre a organização do Estado, ressaltou três funções principais: a deliberante, exercida pela assembléia dos cidadãos, que ele reputava como o verdadeiro poder soberano; a da magistratura, exercida por cidadãos designados pela assembléia para realizar determinadas tarefas; e a judiciária.

O tema passou despercebido por outros escritores, até que, no século XVIII, Locke o retomou, fornecendo os elementos de que se serviria Montesquieu, mais tarde, para elaborar sua famosa teoria que dividiu os Poderes em Legislativo, Executivo e Judiciário.

TEORIAS DA SEPARAÇÃO DAS FUNÇÕES (PODERES)47

Aristóteles

Deliberativo Assembleia que deliberaria sobre os negócios do Estado

Executivo Teria prerrogativas e atribuições determináveis em cada caso

Judiciário Administrador da Justiça

John Locke

Legislativo Elaborar as leis que disciplinariam o uso da força na comunidade civil

ExecutivoAplica as leis aos membros da comunidade, tanto na esfera judicial quanto na administrativa

Federativo Função de relacionamento com outros Estados

MontesquieuLegislativo LegislarExecutivo Exercer atividades executivasJudiciário Exercício da jurisdição

REGIME DE GOVERNO. As diferentes relações que se estabelecem entre os Poderes Executivo e Legislativo resultam em distintos regimes representativos, a saber: governo parlamentar, governo presidencial, governo diretorial.

O governo parlamentar resulta não propriamente de um equilíbrio entre os Poderes Legislativo e Executivo, mas da confiança de que este goza junto ao primeiro. Também conhecido como governo de gabinete, ou parlamentarismo, este regime pressupõe que o gabinete (Executivo) seja formado com pessoas escolhidas entre o partido que tem a maioria no Parlamento. O modelo surgiu na Inglaterra, depois de uma longa evolução histórica. No Brasil, foi adotado no II Reinado, com D. Pedro II, e entre 1961 e 1963, com João Goulart, no curto interregno que vai da renúncia de Jânio Quadros às vésperas do golpe militar de 1964. No parlamento, o Chefe do Estado é o rei ou o presidente da República, enquanto que o Chefe

47 Há várias outras teorias de separação das funções do Poder do Estado. Oliver Cromwell dizia que as funções eram o Protetor, O Conselho de Estado e o Parlamento; Romagnosi defendia o Poder Determinante (Legislativo), Poder Operante (Executivo), Poder Moderador, Poder Postulante (fiscal dos interesses públicos), Poder Judicante (Judiciário); Luigi Palma defendia o Poder Eleitoral, Poder Representativo (Câmara dos Deputados), Poder Moderador (Senado), Poder Governante (Ministérios), Poder Judiciário e Poder Real; Benjamin Constant considerava o Poder Executivo, Poder Legislativo, Poder Judiciário, Poder Real, Moderador ou Neutro, Poder Representativo da Assembleia Hereditária.

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do Governo é o Primeiro-Ministro. Nem a legislação, nem a doutrina, dão conta das formas que o parlamentarismo assumiu na prática, nos diferentes países. O parlamentarismo adotado na Inglaterra, na França, em Portugal, diferem muito quando analisados comparativamente.

O presidencialismo, ou governo presidencial, surgiu nos Estados Unidos, em 1787. A teoria estabelece que é presidencialista o regime em que o Executivo predomina sobre o Legislativo, lhe é completamente autônomo.

KANT E A QUESTÃO DA LIBERDADE – Os autores contemporâneos entendem a palavra liberdade em dois sentidos distintos. Do ponto de vista da doutrina liberal clássica, ser livre é poder agir sem qualquer impedimento por parte do Estado. Do ponto de vista da doutrina democrática, é a faculdade de obedecer tão-somente as normas impostas a si mesmo, pela auto-regulação. Em consequência, no Estado liberal a interferência do Poder Público é mínima, enquanto que, no Estado democrático, não são poucos os órgãos de autogoverno.

Ambos os sentidos dão, entretanto, à palavra liberdade, um significado comum, possível de ser compreendido por uma só palavra: autodeterminação. De fato, se cada um determina sua própria esfera de ação, livre das limitações do Estado, ou se o indivíduo (ou o grupo ao qual ele pertence) obedece somente as normas fixadas por ele mesmo (indivíduo ou grupo), nos dois casos o que ressalta é o aspecto comum da autodeterminação da própria conduta.

Retomando os dois pontos de vista do qual emergem os distintos sentidos da palavra liberdade, poder-se-ia afirmar que a doutrina liberal clássica dá ênfase ao poder individual de autodeterminação, ao passo que a doutrina democrática valoriza, sobretudo, a autodeterminação coletiva. Em outras palavras, a questão da liberdade é vista, na doutrina liberal, a partir do cidadão em sua individualidade, e na democrática, a partir do cidadão como membro de uma coletividade.

Em seu processo histórico de desenvolvimento, os Estados modernos se formaram a partir da integração, cada vez maior, das duas doutrinas. A ideia é a de que tudo o que o cidadão puder decidir por si deve ser determinado por sua própria vontade. E o que depender de regulação coletiva deve contar com a participação do cidadão, a fim de assegurar que a decisão tomada represente, em alguma medida, a expressão da vontade individual.

Pensamento Político de Kant

Em sua obra, Kant emprega os conceitos de liberdade que haviam já aparecido em Montesquieu e em Rousseau. Ao dizer que liberdade “é o direito de fazer tudo o que as leis permitem”, Montesquieu evocou o ponto de vista que mais tarde denominou-se de liberal (vide introdução, acima), enquanto que Rousseau foi um dos ideólogos da doutrina democrática. No Contrato Social, obra que o consagrou, Rousseau afirmou que liberdade é “a obediência à lei que nos prescrevemos”, querendo significar que, no âmbito do Estado, os cidadãos, coletivamente, devem formular as leis.

Kant, ao utilizar a palavra liberdade, deixa de distinguir claramente qual dos dois sentidos do termo está querendo empregar. Norberto Bobbio defende a tese de que Kant, “deixando crer,

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por meio de uma definição explícita, que emprega o termo no sentido de Rousseau (liberdade como autonomia, autodeterminação coletiva), não esclarece que a liberdade que invoca e eleva à posição de fim da convivência política é a outra – liberdade como ausência de impedimento, a liberdade individual”.

A considerar-se o ideal rousseauniano, o pensamento político de Kant é pouco democrático. Veja-se, a propósito, a seguinte passagem, extraída dos seus Escritos Políticos e de Filosofia da História e do Direito: “[o contrato originário...] é ...uma ideia simples da razão, mas que tem sua dúvida sua realidade (prática), a qual consiste em obrigar todo legislador a fazer leis como se devessem refletir a vontade comum de todo um povo e, em considerar cada súdito, enquanto cidadão, como se tivesse dado seu consentimento a tal vontade”. Logo, no Estado prescrito por Kant, a vontade coletiva não é, necessariamente, um fato institucional, mas uma ficção ideal.

Em termos de classificação das formas de governo em “boas” ou “más”, Kant chama de despotismo a má forma, e de república a boa. “República”, na linguagem kantiana, é sinônimo de governo “não despótico”, podendo ser tanto uma república quanto uma monarquia. Para Kant, os reis têm o dever de governar de “modo republicano”, quer dizer, o monarca deve “tratar o povo segundo princípios conformes com o espírito das leis de liberdade (isto é, leis que um povo de razão madura prescreveria), ainda que não lhe peça literalmente sua aprovação”.

Kant não poderia ser considerado um democrata. Por suas ideias, ele pode ser considerado, no máximo, um liberal moderado. Basta referir que, em sua opinião, o direito de votar e ser votado não deveria ser estendido a todos, mas tão-somente aos que houvessem conquistado já sua independência econômica. Assim, seu sistema eleitoral excluía da cidadania os trabalhadores.

O pensamento kantiano trouxe à tona a teoria do antagonismo. O progresso da humanidade, para Kant, consistia no desenvolvimento das faculdades naturais dos indivíduos. A natureza promove esse desenvolvimento ao gerar no ser humano sentimentos de vaidade, inveja, emulação, poder.

Essas inclinações naturais são incompatíveis com a convivência em sociedade, daí originando-se um antagonismo que jamais termina, porque se o homem quer a concórdia, a natureza prefere a discórdia, porque sabe o que é melhor para a espécie, e o melhor é o conflito.

Em conclusão, Kant inspirou a doutrina liberal. Sua filosofia concebia a história como sendo a história do progresso do direito como garantia da máxima liberdade individual.

7.4.2. Relação Entre Política e DireitoRelação entre Ética, Direito e Política

A vivência em sociedade surgiu devido às necessidades de sobrevivência humanas. Para além disso, os homens só podem ser felizes vivendo em sociedade.

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A cidade faz parte do Homem, porque ele é um ser de natureza social. O insocial ou está muito acima do Homem (Deus) ou muito abaixo (animais). O Homem é diferente dos animais que também vivem num determinado sítio em comunidade, porque é capaz de comunicar muito mais do que apenas a dor e o prazer. Só ele tem o sentido do que é justo e do que é injusto, do que é bom e do que é mau.

A sociedade está na base da família e do indivíduo, porque as pessoas só se constroem e se tornam autônomas na relação com os outros. As pessoas só surgem dentro da própria comunidade. O homem é um animal político, porque é da sua natureza viver em sociedade. O que distingue a sociabilidade humana da sociabilidade animal é a linguagem, esta permite a identificação do bem e do mal, do justo e do injusto.

A sociedade e a política tem como função aplicar a ética, portanto é óbvio que é essencial que respeitem os valores éticos, visto que se isto não acontecer não será possível as pessoas serem felizes. Eles permitem aos indivíduos realizar-se e viver como pessoa

O Direito é o conjunto de regras, normas ou leis que regulam a convivência social dentro do Estado; ele é, em suma, o ordenamento jurídico do Estado. E a sua existência justifica-se pela sua finalidade: dirimir e tentar resolver pacificamente os conflitos entre os indivíduos e os grupos sociais e promover o bem comum da sociedade. As normas jurídicas têm de possuir as seguintes características, que as diferem das normas sociais: racionalidade, reciprocidade, universalidade, publicidade, validade e coercibilidade.

O Estado de Direito é inseparável dos regimes democráticos: os únicos que respeitam o homem, a pessoa humana e os seus direitos fundamentais.

A política é a ciência (porque exige o uso da inteligência e de um método, exige conhecimento) e a arte (porque requer sensibilidade e imaginação) da governação e direcção dos Estados. Tem um carácter profundamente realista: o regime político (mais desejável) é aquele que, procurando servir a totalidade das áreas relacionadas com o ser humano e todo o homem, melhor se adapte, aqui e agora, às realidades de um povo ou de uma comunidade. A política deve ser parte integrante da realidade do dia-a-dia.

Por isso ela exige necessariamente uma reflexão filosófica, uma ética, visto que apenas ela pode indicar os princípios racionalmente válidos e universalizáveis susceptíveis de fundamentar a razão humana. Inclusive os filósofos gregos não distinguiam ética de política.

É a política que cria o Direito e este deve ser justo: por isso exigimos regimes políticos legítimos, eticamente fundamentados e orientados. Apenas os regimes democráticos, e mais especificamente os regimes democráticos participativos, preenchem esta condição. A democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo.

7.5. IdeologiasIdeologia é um termo que possui diferentes significados e duas concepções: a neutra e a crítica. No senso comum o termo ideologia é sinônimo ao termo ideário (em português) , contendo o sentido neutro de conjunto de ideias, de pensamentos, de doutrinas ou de visões

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de mundo de um indivíduo ou de um grupo, orientado para suas ações sociais e, principalmente, políticas. Para autores que utilizam o termo sob uma concepção crítica, ideologia pode ser considerado um instrumento de dominação que age por meio de convencimento (persuasão ou dissuasão, mas não por meio da força física) de forma prescritiva, alienando a consciência humana.

Para alguns, como Karl Marx, a ideologia age mascarando a realidade. Os pensadores adeptos da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt consideram a ideologia como uma ideia, discurso ou ação que mascara um objeto, mostrando apenas sua aparência e escondendo suas demais qualidades. Já o sociólogo contemporâneo John B. Thompson também oferece uma formulação crítica ao termo ideologia, derivada daquela oferecida por Marx, mas que lhe retira o caráter de ilusão (da realidade) ou de falsa consciência, e concentra-se no aspecto das relações de dominação.

Desenvolvimento do termo

A origem do termo ocorreu com Destutt de Tracy, que criou a palavra e lhe deu o primeiro de seus significados: ciência das ideias. Posteriormente, esta palavra ganharia um sentido pejorativo quando Napoleão chamou De Tracy e seus seguidores de "ideólogos" no sentido de "deformadores da realidade". No entanto, os pensadores da antiguidade clássica e da Idade Média já entendiam ideologia como o conjunto de ideias e opiniões de uma sociedade.

Karl Marx desenvolveu uma teoria a respeito da ideologia na qual concebe a mesma como uma consciência falsa, proveniente da divisão entre o trabalho manual e o intelectual. Nessa divisão, surgiriam os ideólogos ou intelectuais que passariam a operar em favor da dominação ocorrida entre as classes sociais, por meio de ideias capazes de deformar a compreensão sobre o modo como se processam as relações de produção. Neste sentido, a ideologia (enquanto falsa consciência) geraria a inversão ou a camuflagem da realidade, para os ideais ou interesses da classe dominante. (Fonte: Marx, Karl e Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo: Hucitec, 2002.)

Entretanto, não é apenas n'A Ideologia Alemã que Marx trata do tema ideologia e, devido às inconsistências entre seus escritos sobre o tema, não seria correto afirmar-se que Marx possui uma única e precisa definição sobre o significado do termo ideologia. O sociólogo John B. Thompson faz uma análise minuciosa sobre três desenvolvimentos encontrados ao longo da obra de Marx sobre o termo ideologia, com convergências e divergências entre si, batizados por Thompson como (1) polêmica, (2) epifenomênica e (3) latente.

Depois de Marx, vários outros pensadores abordaram a temática da ideologia. Muitos mantiveram a concepção original de Marx (Karl Korsch, Georg Lukács), outros passaram a abordar ideologia como sendo sinônimo de "visão de mundo" (concepção neutra), inclusive alguns pensadores marxistas, tal como Lênin. Alguns explicam isto graças ao fato do livro A Ideologia Alemã, de Marx, onde ele expõe sua teoria da ideologia, só tenha sido publicado em 1926, dois anos depois da morte de Lênin. Vários pensadores desenvolveram análises sobre o conceito de ideologia, tal como Karl Mannheim, Louis Althusser, Paul Ricoeur e Nildo Viana.

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Concepção crítica

O uso crítico do termo ideologia pressupõe uma diferenciação implícita entre o que vem a ser um "conjunto qualquer de ideias sobre um determinado assunto" (concepção neutra sinônima de ideário), e o que vem a ser o "USO DE FERRAMENTAS SIMBÓLICAS VOLTADAS À CRIAÇÃO E/OU À MANUTENÇÃO DE RELAÇÕES DE DOMINAÇÃO" (concepção crítica). A partir deste ponto-de-partida comum a todos os significados do termo ideologia que aderem à concepção crítica, o que se tem são variações sobre a forma e o objetivo da ideologia. A principal divergência conceitual da concepção crítica de ideologia está na necessidade ou não de que um fenômeno, para que seja ideológico, necessariamente tenha de ser ilusório, mascarador da realidade e produtor de falsa consciência. A principal convergência conceitual, por outro lado, está no pré-requisito de que para um fenômeno ser ideológico, ele necessariamente deverá colaborar na criação e/ou na manutenção de relações de dominação. Ainda, no que se refere às relações de dominação, há diferentes olhares sobre quais destas relações são alvo de fenômenos ideológicos: se apenas as relações entre classes sociais, ou também relações sociais de outras naturezas. Alguns questionamentos neste sentido possuiriam respostas diferentes a depender do autor crítico:

Para que algo possa ser concebido como ideológico, deve necessariamente haver ilusão, mascaramento da realidade e falsa consciência? Marx responderia que sim. Thompson responderia que estas são características possíveis, mas não necessárias, para a existência de ideologia.

A única dominação à qual se refere a ideologia é aquela que ocorre entre classes sociais? Marx novamente diria que sim. Thompson complementaria com uma lista de outras formas de dominação também existentes na sociedade: entre brancos e negros, entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, entre pais/mães e filhos(as), entre chefes e subordinados, entre nativos e estrangeiros.

PARA AQUELES QUE ADOTAM O TERMO IDEOLOGIA SEGUNDO A CONCEPÇÃO CRÍTICA, NÃO FAZ SENTIDO DIZER QUE UM INDIVÍDUO OU GRUPO POSSUI UMA IDEOLOGIA; QUE EXISTEM IDEOLOGIAS DIFERENTES; QUE CADA UM TEM A SUA PRÓPRIA IDEOLOGIA; que cada partido tem uma ideologia; que existe uma ideologia dos dominados. Ideologia, pela concepção crítica, não é algo disseminável como é uma ideia ou um conjunto de ideias; ideologia, neste sentido crítico, é algo voltado à criação/manutenção de relações de dominação por meio de quaisquer instrumentos simbólicos: seja uma frase, um texto, um artigo, uma notícia, uma reportagem, uma novela, um filme, uma peça publicitária ou um discurso.

John B. Thompson em seu livro Ideologia e cultura moderna (Petrópolis: Vozes, 2007) procurou fazer uma análise crítica sobre as formulações para o termo ideologia propostas por diferentes autores, que ele classificou segundo duas concepções: neutras e críticas. Neste sentido, Thompson considerou as formulações propostas por Destutt de Tracy, Lênin, Georg Lukács e a "formulação geral da concepção total de Mannheim" como concepções neutras de ideologia; já as formulações de Napoleão, Marx (concepções polêmica, epifenomênica e latente) e a

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"concepção restrita de Mannheim" viriam a ser concepções críticas de ideologia. Ele próprio (Thompson), finalmente, ofereceu a seguinte formulação (crítica), apoiada na "concepção latente de Marx": "ideologia são as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação". (p. 75-76) Esta formulação proposta por Thompson é carregada de significados:

a) Sentido : diz respeito a fenômenos simbólicos, que mobilizam a cognição, como uma imagem, um texto, uma música, um filme, uma narrativa; ao contrário de fenômenos materiais, que mobilizam recursos físicos, como a violência, a agressão, a guerra;

b) Serve para : querendo significar que fenômenos ideológicos são fenômenos simbólicos significativos desde que (somente enquanto) eles sirvam para estabelecer e sustentar relações de dominação;

c) Estabelecer : querendo significar que o sentido pode criar ativamente e instituir relações de dominação;

d) Sustentar: querendo significar que o sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação por meio de um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas;

e) Dominação : fenômeno que ocorre quando relações estabelecidas de poder são sistematicamente assimétricas, isto é, quando grupos particulares de agentes possuem poder de uma maneira permanente, e em grau significativo, permanecendo inacessível a outros agentes.

Discurso

O discurso tem uma dimensão ideológica que relaciona as marcas deixadas no texto com as suas condições de produção, e que se insere na formação ideológica. E essa dimensão ideológica do discurso pode tanto transformar quanto reproduzir as relações de dominação. Para Marx, essa dominação se dá pelas relações de produção que se estabelecem, e as classes que estas relações criam numa sociedade. Por isso, a ideologia cria uma "falsa consciência" sobre a realidade que tem como objetivo suprir, morder, reforçar e perpetuar essa dominação. Já para Gramsci, a ideologia não é enganosa ou negativa em si, mas constitui qualquer ideário de um grupo de indivíduos; em outras palavras, poder-se-ia dizer que Gramsci rejeita a concepção crítica e adere à concepção neutra de ideologia. Para Althusser, que recupera a ótica marxista, a ideologia é materializada nas práticas das instituições, e o discurso, como prática social, seria então “ideologia materializada”.

7.5.1. Ideologias Políticas ModernasA matéria é sobre as ideologias políticas contemporâneas, que são o Conservadorismo, o Liberalismo, o Socialismo, o Anarquismo e o Nacionalismo. Antes de vermos as especificidades de cada uma, vamos definir o que é ideologia. Ideologia, seja ela voltada para a política, para a economia ou para a sociedade, é um conjunto de valores e/ou regras que tem como objetivo guiar a sociedade a um status considerado ideal, seja ele no âmbito político, econômico ou social (ou todos eles). Sendo assim, os defensores de uma certa ideologia acreditam que

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apenas a sua ideologia pode transformar efetivamente a sociedade (por isso, muitas vezes, defensores de ideologias diferentes entram em choque ideológico).

Estando definida uma ideologia, aqueles que a defendem acreditam plenamente em seus ideais, embora na maioria das vezes tais ideais sejam impossíveis de ser postos em prática, o que os torna utópicos (ex: por mais que o totalitarismo acredite no controle total da sociedade, isso é impossível). Mas, utópicas ou não, tais ideologias existem e acreditam nas próprias utopias.

As ideologias que veremos agora são todas contemporâneas, o que nos induz a pensar que tenham surgido com a Idade Contemporânea. E o fato que marcou o início da Idade Contemporânea é também o que gerou a maior parte das ideologias: a Revolução Francesa. E por que foi tão importante esse evento para instaurar uma nova fase na História e novas ideologias? Porque foi uma ruptura quase que completa com os valores e instituições anteriores – tanto na política, quanto na economia e na sociedade. Diz-se que ela foi uma “tripla revolução”: nos seus valores de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, ela traz imbutidas as raízes do Liberalismo, do Socialismo e do Nacionalismo. Além disso, a Revolução em si fomenta o aparecimento de ideologias contra-Revolucionárias (ou reacionárias), como foi o caso do Conservadorismo. Também o Anarquismo se inspirou na Revolução: afinal, se o povo pode derrubar o governo, qual a serventia de um governo?

Além da Revolução Francesa, serviram de base para algumas ideologias a Revolução Americana (que é inclusive anterior à Francesa), a Revolução Industrial e a situação de crise na Europa do século XX (Guerras Mundiais).

Estamos estudando principalmente as ideologias que focam na vida política de uma sociedade, chamadas portanto de ideologias políticas.Vejamos agora as especificidades de cada um dessas ideologias políticas contemporâneas:

Conservadorismo: surgiu como reação à modernização da sociedade, na época do Iluminismo, e valoriza a manutenção do Status Quo social (ou seja, é a favor de manter as coisas como estão), valorizando as tradições da sociedade – entre elas o governo tradicional (em especial o governo monárquico). Essa vertente anti-moderna pode ser chamada de Conservadorismo Tradicionalista. Na época do surgimento do Capitalismo, vendo que não seria possível barrar os avanços da modernidade, surge uma nova vertente de pensamento conservador – o Neo-Conservadorismo, que apóia a modernidade, mas vê que as mudanças devem ser feitas de forma gradual, mantendo-se os valores morais/religiosos da sociedade (em especial a moral cristã da Civilização Ocidental).

Liberalismo: criada na sua visão política no século XVII pelo inglês John Locke, a ideologia baseia-se na liberdade e nos direitos naturais de cada indivíduo (jus naturalis), começando pela igualdade jurídica (todos são iguais perante a Lei) e pela tolerância ideológica (cada um pensa como quer). Tais valores foram essenciais para a elaboração da Constituição Americana e para a insurreição da burguesia contra a nobreza na Revolução Francesa. O Liberalismo divide-se em duas vertentes: uma mais burguesa, defendida por Locke, e outra mais popular/universal. O Liberalismo Clássico, de Locke, fala de liberdade econômica (Adam Smith), de um Estado

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mínimo e de uma participação restrita da população na vida política (voto censitário masculino). O Liberalismo Democrático ou Radical opõe-se ao Clássico à medida que defende maior soberania popular (voto universal), maior intervenção estatal na economia e um governo com poderes controlados pelo povo (o que lembra as ideias de Rousseau).

Socialismo: crê numa sociedade igualitária e fraterna em prol dos trabalhadores (ideal coletivista) e é dividido em duas galeras muito doidas – os socialistas utópicos e os socialistas científicos. O socialismo utópico baseia-se numa transição pacífica e gradual para o socialismo através da implantação de pequenas propriedades coletivas e numa posterior expansão dos ideais igualitários. Em 1848, com revoluções em toda a Europa (Primavera dos Povos), Marx e Engels publicam seu Manifesto Comunista, chamando os socialistas anteriores de “utópicos” e convocando todo o proletariado do mundo a se unir para combater, de forma violenta e repentina, as classes dominantes. Marx auto-denominou sua tese como sendo o Socialismo Científico pois ele fez estudos profundos sobre a sociedade capitalista e sobre a origem da desigualdade entre as classes – desigualdade tal que só seria desfeita com uma luta violenta e uma revolução dos oprimidos contra os opressores. Sua ideologia (o Marxismo) se dividiu ainda em duas frentes: a Social-Democracia, que é a instalação gradual da Ditatura do Proletariado (acompanhada de um Estado democrata, que estabelecesse o Bem-Estar Social – Welfare State); e o Comunismo, que é a Revolução armada nos moldes do que aconteceu na Rússia de Lênin e Stálin.

Anarquismo: é a ausência total de governo. Sua origem é desconhecida, mas seus ideais podem ser divididos em coletivistas (Anarquismo Anticapitalista) ou individualistas (AnarcoCapitalismo). O Anarquismo Anticapitalista é coletivista no sentido de acabar com qualquer tipo de governo e instaurar uma sociedade fraterna na qual todos dividem tudo (como uma grande tribo; similar ao Socialismo). O Anarcocapitalismo, ao contrário, se adequa ao capitalismo – sem governo, mas considerando as individualidades de cada pessoa e permitindo a existência do comércio.

Nacionalismo: é a defesa dos “direitos” da nação, da raça ou dos costumes de um povo. Surge com a criação dos Estados nacionais e com a identificação do povo com seu país. Uma vertente conhecida é o Fascismo – ultranacionalismo em prol da reconstrução dos antigos Impérios Romano e Alemão em detrimento das outras nacionalidades. Por mais que não tenham conseguido plenamente ser instauradas, tais ideologias servem de base para muitos governos e para muitas outras ideologias (econômicas, sociais e até mesmo políticas).

Agora um pequeno quadro resumindo (mais ainda) as ideologias:

Ideologia Principais Ideias Vertentes OrigemConservadorismo Manutenção do Status

Quo, da ordem social; contrário ao avanço da modernidade

Tradicionalista: contra a modernidade, reacionária

Séc. XVII (surgimento do Iluminismo)

Neo-conservadorismo: modernização gradual + preservar valores

Séc. XIX (surgimento do Capitalismo)

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Liberalismo Luta pelos direitos naturais e pela liberdade, seja ela econômica, ideológica ou política do indivíduo

Clássico: Estado mínimo, voto censitário (sociedade burguesa)

Séc. XVIII (EUA e Revolução Francesa)

Radical ou Democrático: intervenção estatal, soberania popular, voto universal

Revolução Francesa (2ª fase: popular e democrática)

Socialismo Criação de uma sociedade igualitária e fraterna (coletivista) em prol do proletário

“Utópico”: revolução pacífica e gradual

Séc. XVIII (Rev. Francesa)

Científico ou Marxista: base científica (estudos, divide-se em Social-Democracia (gradual) e Comunismo (luta de classes)

Séc. XIX (Primavera dos Povos e Manifesto Comunista de Marx em 1848)

Anarquismo Sociedade igualitária e sem governo; o povo se “auto-governa”

Anticapitalista: sociedade coletivista, quase tribal

Desconhecida

Anarco-capitalismo : sociedade individualista, comércio (capitalista)

Desconhecida

Nacionalismo Defesa dos “direitos nacionais”: unidade (fraternidade), raça forte, costumes tradicionais

Fascismo: ultranacionalismo, engrandecimento dos antigos impérios (Romando e Alemão)

Formação dos Estados Nacionais

7.6. A Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU)

7.6.1. IntroduçãoA Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada pela ONU em 10 de dezembro de 1948 (A/RES/217). Esboçada principalmente por John Peters Humphrey, do Canadá, mas também com a ajuda de várias pessoas de todo o mundo - Estados Unidos, França, China, Líbano entre outros, delineia os direitos humanos básicos.

Abalados pela barbárie recente e ensejosos de construir um mundo sob novos alicerces ideológicos, os dirigentes das nações que emergiram como potências no período pós-guerra, liderados por URSS e Estados Unidos estabeleceram na Conferência de Yalta, na Inglaterra, em 1945, as bases de uma futura “paz” definindo áreas de influência das potências e acertado a criação de uma Organização multilateral que promova negociações sobre conflitos internacionais, objetivando evitar guerras e promover a paz e a democracia e fortaleça os Direitos Humanos.

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Embora não seja um documento que representa obrigatoriedade legal, serviu como base para os dois tratados sobre direitos humanos da ONU, de força legal, o Tratado Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e o Tratado Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Continua a ser amplamente citado por acadêmicos, advogados e cortes constitucionais. Especialistas em direito internacional discutem com frequência quais de seus artigos representam o direito internacional usual.

A Assembléia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.

A Declaração de 1.948 e os documentos subsequentes, no contexto da ONU, inscrevem-se no movimento de busca da recuperação da dignidade humana, após os acontecimentos funestos da segunda guerra mundial, mudando o enfoque de proteção dos direitos fundamentais para o nível internacional.

De início, o tema era bastante controvertido, por não se ter uma definição precisa do que seria direitos humanos. Parte dos juristas entendia tratar-se apenas de princípio, com extremamente abstrata concretização fática.

A Declaração consolida a afirmação de uma ética universal AO CONSAGRAR UM CONSENSO SOBRE VALORES DE CUNHO UNIVERSAL A SEREM SEGUIDOS PELOS ESTADOS. Ela se caracteriza pela amplitude (conjunto de direitos e faculdades sem as quais um ser humano não pode desenvolver sua personalidade física, moral e intelectual) e pela universalidade (é aplicável a todas as pessoas de todos os países, raças, religiões e sexos).

Ela objetiva delinear uma ordem pública mundial fundada no respeito da dignidade humana, ao consagrar valores básicos fundamentais.

Ela ainda ressalta a indivisibilidade dos direitos humanos, ao conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o dos direitos econômicos, sociais e culturais.

A Declaração não é um tratado, foi adotada pela Assembleia Geral da ONU sob a forma de resolução, que, por sua vez, não apresenta força de lei. Logo, de acordo com boa parte da doutrina, ela não é vinculativa e nem obrigatória.

PORÉM, PARTE DA DOUTRINA CONSIDERA QUE ELA TEM FORÇA JURÍDICA VINCULANTE, SEJA POR SER UMA INTERPRETAÇÃO AUTORIZADA DA CARTA (ART. 55), SEJA POR CONSTITUIR DIREITO CONSUETUDINÁRIO

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INTERNACIONAL, ALEGANDO NÃO SER LEGÍTIMO DAR A ELA UM ENFOQUE ESTRITAMENTE LEGALISTA.

O TRF3 já cobrou sobre ela, afirmando que possui força obrigatória por ser norma do jus cogens internacional.

Por isso, foi formado o entendimento de que a Declaração deveria ser juridicizada sob a forma de tratado internacional, o que culminou, em 1.966, na elaboração de dois tratados: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

ESSES DOIS PACTOS FORMAM, JUNTO À DECLARAÇÃO, A CARTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS.

Há vários outros tratados com escopo específico, tais como:

a) Convenção sobre a Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio (1948);

b) Convenção sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra a Tortura e outras Penas e Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984);

c) Convenção e Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados (1951);

d) Convenção Relativa aos Direitos da criança (1990);

e) Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação racial (1965);

f) Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1980);

g) Vários outros.

7.6.1.1.Pacto Internacional dos Direitos Civis e PolíticosTrata-se de um ROL DE DIREITOS AUTOAPLICÁVEIS, que impõe ao Estado-parte estabelecer um sistema legal capaz de responder com eficácia às violações de direitos civis e políticos, seja por meio de obrigações positivas ou negativas.

Os principais direitos e liberdades cobertos pelo Pacto são:

a) Direito à vida;

b) Direito de não ser submetido a tortura ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes;

c) Direito de não ser escravizado;

d) Direito de não ser sujeito à prisão ou detenção arbitrários;

e) Direito de igualdade perante a lei;

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f) Direito de liberdade de movimento;

g) Direito a uma nacionalidade.

Porém, o Pacto prevê um rol de direitos e garantias mais amplo do que o previsto na Declaração. Não há nele direitos sociais, econômicos e culturais, já que incorporados no outro Pacto.

O PACTO PERMITE, ENTRETANTO, LIMITAÇÕES EM RELAÇÃO A DETERMINADOS DIREITOS NELE PREVISTOS, QUANDO NECESSÁRIOS À SEGURANÇA NACIONAL OU À

ORDEM PÚBLICA.

Para assegurar o cumprimento de suas disposições, ele prevê os seguintes instrumentos:

a) Criação do Comitê de Direitos Humanos, para o qual devem ser enviados relatórios periódicos sobre os problemas internos dos Estados-membros;

b) Comunicações interestatais, pela qual um Estado-membro pode alegar haver outro Estado incorrido em violação dos direitos humanos enunciados no Pacto (o acesso a esse mecanismo é condicionado ao prévio reconhecimento de ambos os Estados, denunciador e denunciante, acerca da competência do Comitê para receber e examinar as denúncias);

c) Há também o sistema de petições individuais, que depende de protocolo facultativo.

7.6.1.2. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e CulturaisO seu maior objetivo foi incorporar os dispositivos da Declaração sob a forma de preceitos juridicamente obrigatórios e vinculantes. Esse Pacto criou obrigações legais aos Estados-membros, ensejando responsabilização internacional em caso de violação dos direitos que enuncia.

Ele traz um extenso catálogo de direitos que inclui:

a) Direito ao trabalho e à justa remuneração;

b) Direito a formar e a associar-se a sindicatos;

c) Direito a um nível de vida adequado;

d) Direito à moradia, saúde, previdência e educação;

e) Direito à participação na vida cultural da comunidade.

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RELATÓRIOS PARA O COMITÊ DE DIREITOS HUMANOSCOMUNICAÇÕES INTERESTATAIS

PETIÇÕES INDIVIDUAIS

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ENQUANTO O PACTO DOS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS ESTABELECE DIREITOS ENDEREÇADOS AOS INDIVÍDUOS, ESTE PACTO ESTABELECE DIREITOS (DEVERES)

ENDEREÇADOS AOS ESTADOS.

ENQUANTO OS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS TÊM AUTOAPLICABILIDADE – DEVEM SER ASSEGURADOS DE PLANO – OS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS APRESENTAM REALIZAÇÃO PROGRESSIVA, ESTÃO CONDICIONADOS À ATUAÇÃO DOS ESTADOS E AOS RECURSOS DISPONÍVEIS.

Ele também apresenta uma sistemática de acompanhamento, a qual, porém, é distinta do Pacto de Direitos Civis e Políticos.

Ele possui a sistemática dos relatórios a serem enviados pelo próprio Estado-membro; não estabelece, entretanto, o mecanismo de comunicação interestatal ou de comunicação individual48.

Da obrigação da progressividade na implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais decorre a chamada cláusula de vedação ao retrocesso (efeito cliquet), na medida em que é vedado aos Estados retroceder no campo da implantação desses direitos.

7.6.2. História O Cilindro de Ciro é considerado a primeira declaração dos direitos humanos registrada na história.As ideias e valores dos direitos humanos são traçadas através da história antiga e crenças religiosas e culturais ao redor do mundo. O primeiro registro de uma declaração dos direitos humanos foi o Cilindro de Ciro, escrito por Ciro, o grande, rei da Pérsia (atual Irã) por volta de 539 a.C.. Filósofos europeus da época do iluminismo desenvolveram teorias da lei natural que influenciaram a adoção de documentos como a Declaração de Direitos de 1689 da Inglaterra, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 da França e a Carta de Direitos de 1791 dos Estados Unidos.

Durante a Segunda Guerra Mundial os aliados adotaram as Quatro Liberdades: liberdade da palavra e da livre expressão, liberdade de religião, liberdade por necessidades e liberdade de viver livre do medo. A Carta das Nações Unidas "reafirmou a fé nos direitos humanos, na dignidade, e nos valores humanos das pessoas" e convocou a todos seus estados-membros a

48 Manual prático de direitos humanos do MPF: “Por muito tempo, discutiu-se na ONU a respeito das comunicações individuais com o objetivo de promover o reconhecimento da equivalência dos direitos civis e sociais. Nesse contexto, pode ser visto como uma grande vitória que a Assembleia Geral tenha compreendido, em 10/12/2008, com a resolução A/RES/63/117, um Protocolo Facultativo ao Pacto Social, que dá poder ao Comitê de receber e decidir comunicações individuais sobre violações de direitos econômicos, sociais e culturais. Os Estados podem assiná-lo e ratificá-lo a partir de 2009. Assim será mostrado se os países, além de meras declarações de intenção, também estão prontos para continuar a judicialização dos direitos sociais. Essa exigência é principalmente direcionada aos países industrializados, que frequentemente se escondem atrás do caráter pragmático dos direitos sociais”

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promover "respeito universal, e observância do direitos humanos e liberdades funamentais para todos sem distinção de raça, sexo, língua, ou religião".

Quando as atrocidades cometidas pela Alemanha nazista tornaram-se aparentes depois da Segunda Guerra Mundial, o consenso entre a comunidade mundial era que a Carta das Nações Unidas não tinha definido suficientemente os direitos a que se referia. Uma declaração universal que especificasse os direitos individuais era necessária para dar efeito aos direitos humanos.

O canadense John Peters Humphrey foi chamado pelo Secretário Geral da Nações Unidas para trabalhar no projeto da declaração. Naquela época, Humphrey havia sido recém indicado como diretor da divisão de direitos humanos dentro do secretariado das Nações Unidas. A comissão dos direitos humanos, um braço das Nações Unidas, foi constituída para empreender o trabalho de preparar o que era inicialmente concebido como Carta de Direitos. Membros de vários países foram designados para representar a comunidade global: Austrália, Bélgica, República Socialista Soviética da Bielorrússia, Chile, China, Cuba, Egito, França, India, Irã, Líbano, Panamá, Filipinas, Reino Unido, Estados Unidos, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Uruguai e Iugoslávia. Membros conhecidos incluiam Eleanor Roosevelt dos Estados Unidos, que era presidente, Jacques Maritain e René Cassin da França, Charles Malik do Líbano, e P. C. Chang da China, entre outros. Humphrey forneceu o esboço incial que tornou-se o texto de trabalho da comissão.

A Declaração Universal foi adotada pela Assembléia Geral no dia 10 de dezembro de 1948 com 48 votos a favor, nenhum contra e 8 abstenções (todas do bloco soviético, Bielorússia, Tchecoslováquia, Polônia,Ucrânia, USSR e Iugoslávia, além da África do Sul e Arábia Saudita).

7.6.2. Significado de Direitos Humanos Definir o que são direitos humanos não é tarefa das mais simples. Para alguns filósofos e juristas, os direitos humanos equivalem a direitos naturais, ou seja, aqueles que são inerentes ao ser humano. Outros filósofos preferem tratar os direitos humanos como sinônimo de direitos fundamentais, conjunto normativo que resguarda os direitos dos cidadãos.

Nos textos produzidos em comemoração aos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Agência de Notícias do Supremo Tribunal Federal (STF) optou por não adentrar nesse debate e adotou a definição de direitos humanos feita pelo cientista político e jurista italiano Norberto Bobbio em seu Dicionário de Política, Volume I (A-K), publicado pela Editora UnB.

No texto, Bobbio resgata as raízes históricas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, evidenciando seu reflexo nas constituições e os problemas políticos e conceituais impostos pelo novo paradigma civilizatório que surgia.

Segundo Bobbio, o constitucionalismo tem, na Declaração, “um dos seus momentos centrais de desenvolvimento e conquista, que consagra as vitórias do cidadão sobre o poder”. Ele lembra que os direitos humanos podem ser classificados em civis, políticos e sociais, destacando que, para serem verdadeiramente garantidos, “devem existir solidários”.

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“Luta-se ainda por estes direitos porque após as grandes transformações sociais não se chegou a uma situação garantida definitivamente, como sonhou o otimismo iluminista”, reflete o jurista, alertando que as ameaças não vêm somente do Estado, como no passado, mas também da sociedade de massas e da sociedade industrial.

7.6.2.1. Direitos Humanos – Texto de Norberto BobbioO constitucionalismo moderno tem, na promulgação de um texto escrito contendo uma declaração dos Direitos Humanos e de cidadania, um dos seus momentos centrais de desenvolvimento e de conquista, que consagra as vitórias do cidadão sobre o poder.

Usualmente, para determinar a origem da declaração no plano histórico, é costume remontar à Déclaration des droits de l’homme et du citoyen, votada pela Assembléia Nacional francesa em 1789, na qual se proclamava a liberdade e a igualdade nos direitos de todos os homens, reivindicavam-se os seus direitos naturais e imprescritíveis (a liberdade, a propriedade, a segurança, a resistência à opressão), em vista dos quais se constitui toda a associação política legítima. Na realidade, a Déclaration tinha dois grandes precedentes: os Bills of rights de muitas colônias americanas que se rebelaram em 1776 contra o domínio da Inglaterra e o Bill of right inglês, que consagrava a gloriosa Revolução de 1689. Do ponto de vista conceptual, não existem diferenças substanciais entre a Déclaration francesa e os Bills americanos, dado que todos amadureceram no mesmo clima cultural dominado pelo jusnaturalismo e pelo contratualismo: os homens têm direitos naturais anteriores à formação da sociedade, direitos que o Estado deve reconhecer e garantir como direitos do cidadão. Bastante diverso é o Bill inglês, uma vez que nele não são reconhecidos os direitos do homem e sim os direitos tradicionais e consuetudinários do cidadão inglês, fundados na common law. Durante a Revolução Francesa foram proclamadas outras Déclarations (1793, 1795): interessante a de 1793 pelo seu caráter menos individualista e mais social em nome da fraternidade, e a de 1795, porque ao lado dos “direitos” são precisados também os “deveres”, antecipando assim uma tendência que tomará corpo no século XIX (podemos pensar nos Doveri delI’uomo, de Mazzini); a própria Constituição italiana tem como título da primeira parte “Direito e deveres do cidadão”.

A declaração dos direitos colocou diversos problemas, que são a um tempo políticos e conceptuais. Antes de tudo, a relação entre a declaração e a Constituição, entre a enunciação de grandes princípios de direito natural, evidentes à razão, e à concreta organização do poder por meio do direito positivo, que impõe aos órgãos do Estado ordens e proibições precisas: na verdade, ou estes direitos ficam como meros princípios abstratos (mas os direitos podem ser tutelados só no âmbito do ordenamento estatal para se tornarem direitos juridicamente exigíveis), ou são princípios ideológicos que servem para subverter o ordenamento constitucional. Sobre este tema chocaram nos fins do século XVIII, de um lado, o racionalismo jusnaturalista e, de outro, o utilitarismo e o historicismo, ambos hostis à temática dos direitos do homem. Era possível o conflito entre os abstratos direitos e os concretos direitos do cidadão e, portanto, um contraste sobre o valor das duas cartas. Assim, embora inicialmente, tanto na América quanto na França, a declaração estivesse contida em documento separado, a Constituição Federal dos Estados Unidos alterou esta tendência, na medida em que hoje os direitos dos cidadãos estão enumerados no texto constitucional.

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Um segundo problema deriva da natureza destes direitos: os que defendem que tais direitos são naturais, no que respeita ao homem enquanto homem, defendem também que o Estado possa e deva reconhecê-los, admitindo assim um limite preexistente à sua soberania. Para os que não seguem o jusnaturalismo, trata-se de direitos subjetivos concedidos pelo Estado ao indivíduo, com base na autônoma soberania do Estado, que desta forma não se autolimita . Uma via intermediária foi seguida por aqueles que aceitam o contratualismo, os quais fundam estes direitos sobre o contrato, expresso pela Constituição, entre as diversas forças políticas e sociais. Variam as teorias mas varia também a eficácia da defesa destes direitos, que atinge seu ponto máximo nos fundamentos jusnaturalísticos por torná-los indisponíveis. A atual Constituição da República Federal alemã, por exemplo, prevê a não possibilidade de revisão constitucional para os direitos do cidadão, revolucionando assim toda a tradição juspublicista alemã, fundada sobre a teoria da autolimitação do Estado.

O terceiro problema refere-se ao modo de tutelar estes direitos: enquanto a tradição francesa se cingia à separação dos poderes, e sobretudo à autonomia do poder judiciário, e à participação dos cidadãos através dos próprios representantes, na formação da lei, a tradição americana, desconfiada da classe governante, quis uma Constituição rígida, que não pudesse ser modificada a não ser por um poder constituinte e um controle de constitucionalidade das leis aprovadas pelo legislativo. Isto garante os direitos do cidadão frente ao despotismo legal da maioria. Os Países que a experiência do totalitarismo, como a Itália e a Alemanha, inspiraram-se mais na tradição americana do que na francesa para a sua Constituição.

Finalmente, estes direitos podem ser classificados em civis, políticos e sociais. Os primeiros são aqueles que dizem respeito à personalidade do indivíduo (liberdade pessoal, de pensamento, religião, de reunião e liberdade econômica), através da qual é garantida a ele uma esfera de arbítrio e de liceidade, desde que seu comportamento não viole o direito dos outros. Os direitos civis obrigam o Estado a uma atitude de impedimento, a uma abstenção. Os direitos políticos (liberdade de associação nos partidos, direitos eleitorais) estão ligados à formação do Estado democrático representativo e implicam uma liberdade ativa, uma participação dos cidadãos na determinação dos objetivos políticos do Estado Os direitos sociais (direito ao trabalho, à assistência, ao estudo, à tutela da saúde, liberdade da miséria e do medo), maturados pelas novas exigências da sociedade industrial, implicam, por seu lado, um comportamento ativo por parte do Estado ao garantir aos cidadãos uma situação de certeza.

O teor individualista original da declaração, que exprimia a desconfiança do cidadão contra o Estado e contra todas as formas do poder organizado, o orgulho do indivíduo que queria construir seu mundo por si próprio, entrando em relação com os outros num plano meramente contratual, foi superado: pôs-se em evidência que o indivíduo não é uma mônada mas um ser social que vive num contexto preciso e para o qual a cidadania é um fato meramente formal em relação à substância da sua existência real; viu-se que o indivíduo não é tão livre e autônomo como o iluminismo pensava que fosse, mas é um ser frágil, indefeso e inseguro. Assim, do Estado absenteísta, passamos ao Estado assistencial, garante ativo de novas liberdades. O individualismo, por sua vez, foi superado pelo reconhecimento dos direitos dos grupos sociais: particularmente significativo quando se trata de minorias (étnicas, lingüísticas e religiosas), de marginalizados (doentes, encarcerados, velhos e mulheres). Tudo

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isto são conseqüências lógicas do princípio de igualdade, que foi o motor das transformações nos conteúdos da declaração, abrindo sempre novas dimensões aos Direitos Humanos e confirmando por isso a validade e atualidade do texto setecentista.

A atualidade é demonstrada pelo fato de hoje se lutar, em todo o mundo, de uma forma diversa pelos direitos civis, pelos direitos políticos e pelas direitos sociais: fatualmente, eles podem não coexistir, mas, em vias de princípio, são três espécies de direitos, que para serem verdadeiramente garantidos devem existir solidários. Luta-se ainda por estes direitos, porque após as grandes transformações sociais não se chegou a uma situação garantida definitivamente, como sonhou o otimismo iluminista. As ameaças podem vir do Estado, como no passado, mas podem vir também da sociedade de massa, com seus conformismos, ou da sociedade industrial, com sua desumanização. É significativo tudo isso, na medida em que a tendência do século atual e do século passado parecia dominada pela luta em prol dos direitos sociais, e agora se assiste a uma inversão de tendências e se retoma a batalha pelos direitos civis.”

7.6.3. Fundamento Axiológio dos Direitos Humanos e sua Vigência UniversalAxiologicamente, os direitos humanos estão relacionados a ideia de dignidade humana, a qual foi estruturada por Kant, na Idade Moderna, apesar de, até mesmo em princípios religiosos, "como não fazer aos outros o que não queremos que nos façam", podermos encontrar a noção de direitos humanos.

DIGNIDADE HUMANA SIGNIFICA, PARA KANT, A IMPOSSIBILIDADE DE SE ATRIBUIR VALORES, PREÇOS, AOS SERES HUMANOS. ASSIM, NÃO PODEMOS MENSURAR UM SER HUMANO, RELATIVIZANDO-O E, PORTANTO, PODENDO-O UTILIZAR COMO MEIO.

A dignidade que portamos consiste em um valor íntimo, ou seja, em um valor não passível de troca. Por isto, um ser humano é um fim em si mesmo, não um meio, o que faz com que cada um de nós seja singular, único, ao mesmo tempo que fazemos parte de uma dimensão universal que nos dá o elemento de humanidade. No vocabulário jurídico, a noção de dignidade deve ser compreendida ao lado da noção de infungibilidade.

Ocorre que não basta reconhecer os direitos humanos; não basta reconhecer que todo e qualquer indivíduo, por ser humano, comporta direitos inerentes a sua pessoa, que não podem ser separados (porque constitutivamente juntos estão com o indivíduo); é preciso proteger os direitos humanos, consistindo nesta proteção a vigência de tais direitos e, consequentemente, a vigência do respeito a dignidade humana, cujo mero reconhecimento racional não implica em sua garantia.

Hannah Arendt nos mostrou que os apátridas da Segunda Guerra, por terem deixado de ser cidadãos, deixaram de ter seus direitos humanos protegidos. Por isto, a temática dos direitos humanos encontra-se relacionada intimamente com a temática da cidadania e da soberania. Os órgãos internacionais, como o Tribunal Penal Internacional, também são um exemplo de proteção dos Direitos Humanos; em vez da proteção se concretizar apenas em um nível

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nacional, com os órgaos internacionais, a proteção dos direitos humanos acaba por se concretizar, também, em um nível global.

Portanto, pautados em Kant e Arendt, podemos dizer que (i) axiologicamente, os direitos humanos residem na ideia de dignidade humana, a qual reflete a singularidade de cada indivíduo; e (ii) que, historicamente, os direitos humanos precisam ser não apenas reconhecidos, mas, acima de tudo, garantidos, pois dar vigência a eles e, consequentemente, para a dignidade humana, significa, justamente, tornar a proteção de tais direitos viável.

Por fim, vale fazer a ressalva de que é possível dizer que os valores não são imutáveis, como no esquema kantiano, mas que eles são construídos no tempo, sendo afirmados historicamente, como no esquema da Filosofia do Direito de Miguel Reale (historicismo axiológico).

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