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DO QUE RIU O REI? – AS CANTIGAS DE ESCÁRNIO E MAL-DIZER DO REI DOM DINIS DE PORTUGAL (1279-1325) Autor: Otacílio Evaristo Monteiro Vaz Orientadora: Profa. Dra. Marcella Lopes Guimarães A elaboração desta monografia permitiu um exercício de interpretação de fontes que se mostraram fecundas para apontar características dos costumes, da religiosidade, dos códigos morais e principalmente de como funcionou o humor na sociedade portuguesa dos séculos XIII e XIV. Através do estudo das cantigas de escárnio e mal-dizer, foi possível perceber esses aspectos e levantarmos algumas reflexões para estudos posteriores sobre o tema. O estudo das fontes, escritas pelo rei português D. Dinis (1279-1325), revelou ainda que, apesar dos problemas de ordem pessoal, as crises com seu irmão e com seu filho, já ao final de seu reinado, e de ordem política, como o interdito papal e as negociações para manter os bens da Ordem dos Templários em solo português, o monarca ainda encontrou incentivo para a produção de cantigas nos seus variados estilos. Suas fontes líricas revelaram um grande potencial para o campo historiográfico por nos trazerem informações sobre a sociedade medieval da Península Ibérica, sobretudo em relação ao riso. Palavras-chave: Cantigas; Dom Dinis; Idade Média. 1 – Introdução e contexto Este trabalho é o resultado de duas experiências pelo menos: o interesse despertado pela Idade Média a partir da disciplina de História Medieval I e as pesquisas feitas sobre a produção literária do rei português Dom Dinis (1279-1325), mais especificamente das canções de escárnio e mal-dizer. O que foram as cantigas trovadorescas, o que foram as cantigas de escárnio e mal-dizer e como elas reagiram a elementos da sociedade circundante foram questionamentos orientadores dos primeiros exercícios desta pesquisa. Entretanto, mais especificamente, voltamos o nosso olhar a como o rei Dom Dinis se posicionou nessa mesma sociedade. Quem era esse rei, como foi sua criação, quais foram as suas influências, como era essa sociedade portuguesa e européia do século XIII, do que Dinis riu nas suas cantigas de escárnio e mal-dizer, quais eram seus alvos? Essas questões mais específicas são as principais do presente trabalho. As cantigas de escárnio e mal dizer são um subgênero dentro das composições poéticas dos três cancioneiros galego-portugueses que nos restam. 1 Produção literária e musical do período medieval português e europeu, criadas e executadas por trovadores presentes nas cortes, “as cantigas de escárnio e mal-dizer, por sua vez, distinguem-se das duas outras (de amigo e de amor) pela sua ‘intenção ofensiva’, que pode ser mais ou menos evidente: se usam palavras encobertas, isto é, equívocas, são de escárnio; se, ao contrário, ofendem abertamente, são de mal-dizer.” 2 Mas, no caso da presente monografia, as fontes analisadas não foram escritas por um trovador que gravitava meramente na corte, mas por um rei português e foi nesse ponto que residiu o maior interesse e motivação para esta pesquisa. Rei português da virada do século XIII para o XIV, filho de Afonso III (1248-1279) e neto do grande rei castelhano Afonso X, o Sábio, Dom Dinis foi um dos reis portugueses mais cultos de sua época. Grande incentivador das artes e do conhecimento, beneficiou todo o reino, foi grande político não apenas em solo português, mas solicitado por reis europeus, devido ao reconhecimento de sua capacidade intelectual e governativa. 1 Os cancioneiros que chegaram aos nossos dias são: o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, o Cancioneiro da Vaticana e o Cancioneiro da Ajuda. 2 VIEIRA, Yara Frateschi. Poesia medieval: literatura portuguesa. São Paulo: Global, 1987. p. 14.

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DO QUE RIU O REI? – AS CANTIGAS DE ESCÁRNIO E MAL-DIZER

DO REI DOM DINIS DE PORTUGAL (1279-1325)

Autor: Otacílio Evaristo Monteiro Vaz

Orientadora: Profa. Dra. Marcella Lopes Guimarães

A elaboração desta monografia permitiu um exercício de interpretação de fontes que se mostraram fecundas para apontar características dos costumes, da religiosidade, dos códigos morais e principalmente de como funcionou o humor na sociedade portuguesa dos séculos XIII e XIV. Através do estudo das cantigas de escárnio e mal-dizer, foi possível perceber esses aspectos e levantarmos algumas reflexões para estudos posteriores sobre o tema.

O estudo das fontes, escritas pelo rei português D. Dinis (1279-1325), revelou ainda que, apesar dos problemas de ordem pessoal, as crises com seu irmão e com seu filho, já ao final de seu reinado, e de ordem política, como o interdito papal e as negociações para manter os bens da Ordem dos Templários em solo português, o monarca ainda encontrou incentivo para a produção de cantigas nos seus variados estilos. Suas fontes líricas revelaram um grande potencial para o campo historiográfico por nos trazerem informações sobre a sociedade medieval da Península Ibérica, sobretudo em relação ao riso. Palavras-chave: Cantigas; Dom Dinis; Idade Média. 1 – Introdução e contexto

Este trabalho é o resultado de duas experiências pelo menos: o interesse despertado pela Idade Média a partir da disciplina de História Medieval I e as pesquisas feitas sobre a produção literária do rei português Dom Dinis (1279-1325), mais especificamente das canções de escárnio e mal-dizer. O que foram as cantigas trovadorescas, o que foram as cantigas de escárnio e mal-dizer e como elas reagiram a elementos da sociedade circundante foram questionamentos orientadores dos primeiros exercícios desta pesquisa. Entretanto, mais especificamente, voltamos o nosso olhar a como o rei Dom Dinis se posicionou nessa mesma sociedade. Quem era esse rei, como foi sua criação, quais foram as suas influências, como era essa sociedade portuguesa e européia do século XIII, do que Dinis riu nas suas cantigas de escárnio e mal-dizer, quais eram seus alvos? Essas questões mais específicas são as principais do presente trabalho. As cantigas de escárnio e mal dizer são um subgênero dentro das composições poéticas dos três cancioneiros galego-portugueses que nos restam.1 Produção literária e musical do período medieval português e europeu, criadas e executadas por trovadores presentes nas cortes, “as cantigas de escárnio e mal-dizer, por sua vez, distinguem-se das duas outras (de amigo e de amor) pela sua ‘intenção ofensiva’, que pode ser mais ou menos evidente: se usam palavras encobertas, isto é, equívocas, são de escárnio; se, ao contrário, ofendem abertamente, são de mal-dizer.”2 Mas, no caso da presente monografia, as fontes analisadas não foram escritas por um trovador que gravitava meramente na corte, mas por um rei português e foi nesse ponto que residiu o maior interesse e motivação para esta pesquisa.

Rei português da virada do século XIII para o XIV, filho de Afonso III (1248-1279) e neto do grande rei castelhano Afonso X, o Sábio, Dom Dinis foi um dos reis portugueses mais cultos de sua época. Grande incentivador das artes e do conhecimento, beneficiou todo o reino, foi grande político não apenas em solo português, mas solicitado por reis europeus, devido ao reconhecimento de sua capacidade intelectual e governativa. 1 Os cancioneiros que chegaram aos nossos dias são: o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, o Cancioneiro da Vaticana e o Cancioneiro da Ajuda. 2 VIEIRA, Yara Frateschi. Poesia medieval: literatura portuguesa. São Paulo: Global, 1987. p. 14.

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Destacamos seu talento para gerenciar crises, como a que existiu com o seu irmão, o infante D. Afonso, que reclamou o trono português alegando ser Dinis fruto de matrimônio, na altura de seu nascimento, ilegítimo. Mais tarde, ao fim do seu reinado, teve de administrar uma crise familiar envolvendo seu filho legítimo, o futuro Afonso IV, e seu filho bastardo e preferido, D. Afonso Sanches. Embora as cantigas de D. Dinis tenham sido estudadas por autores das áreas de História e Letras, portugueses e brasileiros, existe espaço para novas visões de um assunto tão estimulante. As fontes para o presente trabalho encontram-se na edição clássica de Manuel Rodrigues Lapa - Cantigas d’escarnho e de mal dizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses. D. Dinis escreveu torno de 124 cantigas, destas 10 são de escárnio e mal-dizer. Estas últimas compõem o nosso corpus. Foi indispensável para a elaboração desta monografia, a contribuição das obras pertencentes à área de Letras, onde encontramos autores como Yara Frateschi Vieira e Rodrigues Lapa, que, reunidos aos historiadores, tornaram o presente trabalho mais rico. Obra fundamental foi a História

da Literatura Portuguesa, de Antônio José Saraiva, onde são tratadas questões do desenvolvimento da Língua Portuguesa, da produção literária portuguesa e elementos da poesia dos Cancioneiros e das canções satíricas, nosso objeto.

Joaquim Veríssimo Serrão, em História de Portugal, oferece-nos um panorama português, dos séculos XI ao XV em seu volume I. Aspectos da literatura, arte, a organização política e militar no governo de D. Dinis, os conflitos com a Igreja (legado de seu pai, D. Afonso III), as lutas com seu irmão D. Afonso por questões de direito ao trono, as ações de D. Dinis pelas terras portuguesas, principalmente nas zonas do interior também são contempladas. Serrão nos fala da criação da Ordem de Cristo, como estratégia de manter a tradição (e riqueza) dos Templários em Portugal, a criação da Marinha de Guerra, onde há a figura destacada de Manuel Pessanha como grande responsável pela segurança do litoral português. Podemos destacar essa iniciativa de Dinis também como pequeno germe das grandes navegações que ocorreriam dois séculos depois.

Na parte cultural, Serrão nos mostra o Rei Letrado. Deve-se a ele o fato de que os documentos oficiais, onde se incluem atos e processos judiciais, terem passado a ser redigidos em Português e não mais em Latim. O favorecimento que o rei Dinis teve, ao nascer e crescer em um ambiente onde havia um incentivo à atividade poética, tanto por parte de seu pai, D. Afonso III, como de seu avô, Afonso de Castela, o Sábio, foram fatores que colaboraram para que o português incentivasse a cultura em seu reino.

Em Instituições, Poderes e Jurisdições, I Seminário Argentina, Brasil, Chile, de História

Antiga e Medieval, de Marcella Lopes Guimarães e Renan Friguetto, no capítulo “Alianças matrimoniais como estratégias políticas na Península Ibérica”, de José Carlos Gimenez, vemos a importância das alianças matrimoniais como peça fundamental no jogo de poderes que ocorria não apenas na Península Ibérica, mas em toda a Europa. Uma ferramenta que ia além das questões religiosas e jurídicas, uma prática que servia como forma de consolidação do poder, servindo para acordos econômicos, definições de território e fundamental no processo de paz entre reinos. Na obra História de Portugal – a monarquia feudal – vol II, de José Mattoso, a partir do capítulo “O triunfo da monarquia”, vemos a consolidação do poder do rei Afonso III, pai de D. Dinis, através das várias estratégias que nos são apresentadas, as relações com o reino de Castela, a administração régia, a política centralizadora e os grandes conflitos com os bispos, que levaram o reino a sofrer um interdito por ordem do papa.

Coube ao rei Dinis a difícil negociação para suspender esse interdito papal, que só foi conseguido em 1290. Questões relacionadas à administração peninsular, o próprio casamento com a infanta Isabel de Aragão, como estratégia de afirmação política na Península Ibérica, realçam a importância do rei Dinis no processo de definição do território português. Mattoso também analisa a criação de uma força militar que complementava a presença já existentes dos cavaleiros, a Ordem de Cristo, como estratégia para evitar a alienação dos bens dos templários em Portugal. O autor ainda comenta a centralização de poder exercida pelo rei Dinis como um combate ao poder senhorial que resultaria em um conflito entre os dois poderes, evento característico do seu reinado. A guerra civil ocorrida na etapa final, tendo como principal personagem seu filho, o infante Afonso, que acusava o pai de favorecimentos ao seu outro filho bastardo, Afonso Sanches, é evidência disso. O príncipe Afonso iniciou uma revolta dentro do território português que foi

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combatida e condenada pelo rei D. Dinis. Nesta contenda, vemos a rainha Isabel envolvida e terminando por também ser atingida pela ofensiva de seu marido. Além dos autores clássicos, como António José Saraiva e Manuel Rodrigues Lapa, para as contribuições na Área de Letras, e de José Mattoso e Veríssimo Serrão para a História de Portugal, congregamos outros historiadores para evidenciar elementos da paródia na Idade Média, como José Rivair de Macedo. Ao lado desses nomes abalizados, fizemos questão de convocar novos pesquisadores, como José Carlos Gimenez, Professor da Universidade Estadual de Londrina, Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná, e especialista no reinado de D. Dinis. E buscar, entre colegas que já defenderam monografias na área, como Adriana Fernandes Morais Martins, contribuições relevantes.

2 – O riso medieval e as cantigas satíricas

Podemos notar no imaginário medieval uma característica marcante: os extremos. Segundo José Rivair Macedo, o comportamento emocional da Idade Média circulava com muita facilidade e rapidez entre o humor aberto e a forte tristeza. Esse seria, portanto, o tipo de riso característico da Europa Medieval, o riso típico desta cultura, diferente do riso contemporâneo. Um temperamento medieval, muito próprio, com suas oscilações bruscas entre a violência e a compaixão, não separava temas sérios dos jocosos, os de grandeza espiritual dos de explícita baixaria e escatologia. Antes de precisar o que são as cantigas de escárnio e mal-dizer, há que se considerar alguns aspectos da produção literária da Península Ibérica entre os séculos XIII e XIV. A tradição literária ibérica nos conduz às produções orais que circularam pela região muito antes do período analisado aqui. Elas tinham no entretenimento o seu objetivo, sendo recitadas ou cantadas. Mas é apenas a partir desse período que surgem os registros escritos daquelas produções literárias.3

Existiram alguns tipos de executantes desses gêneros poéticos e entre eles destacamos três: o Jogral, o Trovador e o Segrel. O Jogral era uma espécie de intérprete dos gêneros de cantigas existentes. Sua profissão era a de recitar tais cantigas, um serviço que era prestado nas cortes, em troca de pagamentos ou favores. Os Trovadores merecem maior destaque, pois esses compunham as cantigas. Geralmente seus autores eram fidalgos e clérigos que tinham mais acesso às letras. Esses não faziam das composições o seu sustento, mas mero prazer.

Já o Segrel, que circulava a cavalo pelas cortes alugando os seus serviços, cantando suas composições, poderia ser também Trovador. O Segrel pode ser definido como uma espécie de híbrido entre o Jogral e o Trovador.4

Invariavelmente veremos as cantigas registradas no idioma da região entre Portugal e a Galiza, o galego-português. Quanto aos estilos, existem três classificações para elas, onde há uma variação tanto na intenção como no eu que a recita. Os gêneros de cantigas são: de amor, de amigo e escárnio e mal-dizer. Nas cantigas de amor temos o eu masculino, que canta o seu amor, às vezes não correspondido. Vemos o elogio da dama e a coita5 também presente nesse gênero. Há nas composições desse estilo uma idéia de prazer na própria impossibilidade de realização de tal amor, o que não quer dizer que sempre ele se apresente irrealizado. As cantigas de amigo são faladas pelo eu feminino, que geralmente é uma campesina, lamentando a ausência do seu amigo, ou amado, por motivos que podem ser uma guerra, uma proibição familiar, ou até mesmo a morte do namorado. Neste estilo, o eu feminino trama sempre um encontro com o amigo e o sujeito poético pode ter como cúmplices suas amigas ou suas irmãs.6 Embora o eu lírico seja feminino, a voz autoral é sempre masculina. Já as cantigas de escárnio e mal-dizer são de natureza satírica e buscam criticar aspectos da sociedade circundante. Elas são narradas por um eu masculino. Podem criticar tanto um grupo social como o clero ou a nobreza, ou também podem ter um alvo individual, adotando para esse, um nome real ou fictício. Seu objetivo é a ironia, o ridículo, a situação cômica, mas também podem se revestir de caráter moral ou religioso.

3 SARAIVA, Antônio José, LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto Editora: Porto, 2000. p. 46. 4 VIEIRA, Yara Frateschi. Poesia medieval: literatura portuguesa. Global: São Paulo, 1987. p. 11. 5 Coita = sofrimento amoroso. 6 VIEIRA, Yara Frateschi. , Op. Cit., p. 15.

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Podemos ver nas cantigas deste gênero representações da sociedade medieval: o cavaleiro medroso ou desastrado; o padre que é efeminado ou namorador; o homem falastrão; o outro que é azarado; ou aquele que é uma pessoa má “por natureza”. Nas cantigas de escárnio e mal-dizer, vemos esta sociedade no seu estado mais autêntico, mostrando suas várias faces. O trágico e o cômico, a brincadeira e a seriedade, o moral e o imoral, fatores antagônicos que, como vimos, caracterizam o riso do período.

3 – Um exemplo de ciclo satírico “AS DESVENTURAS DE JOÃO BOLO” No texto integral da monografia analisamos três ciclos satíricos7, mas para esse resumo, colhemos um, em que o personagem João Bolo se vê em diversas situações ridículas: Joan Bolo jouv’en ua pousada

ben des ogano que da era passou,

con medo do meirinho, que lh’achou

u amua que tragia negada;

pero diz el que, se lhi for mester,

que provará ante quel juiz quer

que a touxe sempre, des que foi nada.

Esta mua pod’el provar por sua,

que a non pod’ome dele levar

pelo dereito, se a non forçar;

ca moran ben cento naquela rua,

per que el poderá provar mui ben

que aquela mua, que ora ten,

que a teve sempre, mentre foi mua.

Nõna perderá, se ouver bon vogado,

pois el pode per enquisas põer

como lha viron criar e trager

en cas sa madr[e], u foi el criado;

e provará, per maestre Reinel,

que lha guardou ben dez meses daquel

cerro, ou ben doze, que trag’ inchado.8

Cantiga protagonizada pelo personagem João Bolo. Este se diz com medo de um meirinho, que desejava subtrair-lhe uma mula, a qual João afirma ter sido sempre sua. O mesmo diz poder provar perante qualquer juiz que o dito animal sempre fora seu, desde nascido.

Por esta cantiga não parece que o personagem pertença a uma condição de prestígio social, pois este tipo de situação talvez não fosse vivenciado pela alta nobreza.

De Joan Bolo and’eu maravilhado:

u foi sen siso ome tan pastor

e led’e ligeiro cavalgador,

que tragia rocin bel’ e loução,

e disse-m’ ora aqui un seu vilão

que o avia por mua cambiado.

E deste câmbio foi el anganado:

d’ir dar [un] rocin feit’e corredor

por ua muacha revelador,

que non sei oj’ome que tirasse

fora da vila, pero o provasse:

se x’el non for, non será tan ousado.

Mais non foi esto seu pecado,

que el mereceu a Nostro Senhor:

7 “Nas cantigas de escárnio e mal-dizer podemos ver tipos de perseguições a determinados personagens, que podem ser

vistos em seqüências de três ou mais cantigas. A essas perseguições é dado o nome de Ciclo Satírico.” LOPES, Graça Videira. “os ciclos satíricos nos cancioneiros peninsulares” in Ondas do Mar de Vigo, Actas do Simpósio Internacional sobre a Lírica Medieval Galego- Portuguesa. University of Birmingham, 1998. p. 2 8 Cantiga n. 90, p. 149.

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ir seu rocin, de que el gran sabor

avia, dar por mua mal manhada,

que non queria, pero mi a doada

dessen, nen andar dela ambargado.

Melhor fora dar o rocin doado

ca por tal muacha remusgador,

que lh’ome non guardará, se non for

el, que x’a vai já quanto conhecendo;

mais se el fica, per quant’eu entendo,

sen cajon dela, est’aventurado.

Mui mais queria, besta nona vendo,

ant’ir de pé ca del’ encavalgado.9

Na segunda cantiga protagonizada pelas desventuras de João Bolo, o eu lírico se diz

informado de que o personagem teria trocado seu belo cavalo por uma mula muito teimosa. O eu se diz surpreso por saber de tal troca, pois considera João um cavaleiro e parece não acreditar em uma atitude estúpida como essa. O eu ainda satiriza a situação de João Bolo em relação à mula, ao dizer que prefere andar a pé a estar em uma mula teimosa e manhosa como a de João. Por ser apresentado em um enredo embaraçoso pela segunda vez, podemos ver reforçada a idéia de que não se trata de indivíduo da alta nobreza, mas ele possuía cavalo e era um “ligeiro cavalgador”, ou seja mais perto de uma nobreza de segunda. O dístico final desta cantiga poderia nos remeter ao mote aproveitado depois por Gil Vicente, para sua Farsa de Inês Pereira. Joan Bol’ anda mal desbaratado

e anda trist’e faz muit’t aguisado,

ca perdeu quant’t avia guaanhado

e o que lhi deixou a madre sua:

uu rapaz, que era seu criado,

levou-lh’o rocin e leixou-lh’a mua.

Se el a mua quisesse levar

a Joan Bol’ e o rocin leixar,

non lhi pesara tant’, a meu cuidar,

nen ar semelhara cousa tan crua;

mais o rapaz, por lhi fazer pesar,

levou-lh’o rocin e leixou-lh’a mua.

Aquel rapaz, que lh’o rocin levou,

se lhi levass’a mua que lhi ficou

a Joan Bolo, como se queixou,

non se queixar’, andando pela rua;

mais o rapaz, por mal que lhi cuidou,

levou-lh’o rocin e leixou-lh’a mua.10

Na última cantiga desse ciclo, temos novamente uma situação embaraçosa para João Bolo, que teve o seu cavalo, herança de sua mãe, roubado por um criado seu, que deixa no lugar uma mula. Notamos que nas três cantigas do ciclo, João Bolo sempre está envolvido em situações onde aparece ou um cavalo ou uma mula. A insistência não teria o efeito satírico esperado se não se remetesse a uma situação reconhecível aos ouvintes, ou seja, a uma situação compreensível ou possível no contexto. O personagem é ingênuo e atrapalhado, pois se vê novamente em uma situação complicada em que mais uma vez é passado para trás em algum tipo de negociação ou trapaça. Desta vez, João Bolo é vítima de um criado seu. 4 – Do que riu o rei?

As cantigas de escárnio e mal-dizer provocavam o riso, através de situações reais ou imaginárias que invariavelmente tinham por personagens os grupos sociais dominantes na Idade Média: clero e nobreza. Mas, no caso das produções do rei D. Dinis, que chegaram aos dias de

9 Cantiga n. 91, p. 151. 10 Cantiga n. 92, p. 153.

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hoje, percebemos a ausência do clero. Já sabemos que, da trajetória tanto de D. Dinis quanto de seu pai, Afonso III, sobressaem desavenças oriundas de desacertos com a Igreja ao longo dos dois reinados. O segundo casamento de Afonso III não foi reconhecido pela Igreja, o que causou uma longa crise política.

Portugal chegou a sofrer interdito também devido às estratégias políticas de Afonso III com relação à apreensão de bens pertencentes à Igreja para serem transferidos para a Coroa Portuguesa. A própria legitimidade de D. Dinis como rei foi questionada por ter nascido em um período em que o segundo casamento de seu pai estava invalidado. Outra questão a ser relembrada nas relações com a Igreja foi no momento em que D. Dinis promoveu a nacionalização das ordens militares de Portugal, antes vinculadas ao reino de Castela, quando conseguiu junto ao Papa Nicolau IV, a transferência do cargo de mestre provincial para os cavaleiros do reino de Portugal e Algarve. Outro fator de envolvimento entre D. Dinis e a Igreja ocorre no momento da criação da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando o rei português consegue junto à Igreja, que os bens pertencentes à Ordem dos Templários que existiam em Portugal permanecessem em solo luso. Conquista esta, também, fruto de longas negociações. Por esses motivos, surpreende que D. Dinis não tenha elaborado cantigas de escárnio e mal-dizer tendo como mote membros pertencentes à Igreja, o que não vemos pelo menos nas produções que chegaram aos nossos dias. A bibliografia sobre D. Dinis ressalta-o como homem religioso, casado com a Rainha Isabel, que mais tarde se transformaria na Rainha Santa dos portugueses. Fica a dúvida se houve produções satíricas sobre a Igreja feitas por D. Dinis, ou se realmente foi um tema evitado pelo rei, por motivos religiosos e políticos que poderiam envolver o próprio rei e também sua esposa. Do cancioneiro que constituiu o rol de fontes dessa monografia, percebemos que D. Dinis não riu de negócios eclesiásticos. Entretanto, a religiosidade em D. Dinis pode ser comprovada em alguns dos ciclos satíricos que foram analisados, no momento em que o eu lírico condena certos comportamentos tidos como não-cristãos, exemplo de Melion Garcia. O eu condena os personagens presentes em suas cantigas, afirmando inclusive que alguns deles “não verão a face de Nosso Senhor”, em outras a acusação de “pessoa infernal”, e em outros casos, há a crença em uma punição divina por atitudes condenadas.

O que facilmente pode ser detectado na totalidade das cantigas de escárnio e mal-dizer produzidas por D. Dinis é a presença da nobreza, sendo satirizada na criação ou relato de diferentes situações que circulam entre o humor e a condenação moral. Membros de uma nobreza de segunda e também pertencentes a uma alta nobreza surgem como personagens dotados, ora de uma falta de caráter, de comportamento cristão, ou destituídos de razão e discernimento das coisas, de uma certa estupidez, devido ao tipo de situações ridículas em que o eu lírico os envolve.

Através dos versos, dos tipos de situações apresentadas, vemos no que esta sociedade achava motivos para o riso. A poesia satírica foi uma das formas para retratar traços de comportamento, de atitudes e de questões de fundo moral. Criações literárias da época, que nos ajudam a entender melhor o período. Enquanto que as cantigas de amigo e de amor seguiam a atitude do amor cortês, fruto da mudança de comportamento social na passagem da Alta para a Baixa Idade Média, as cantigas de escárnio e mal-dizer eram o contra-ponto dessa linha de comportamento. Na produção de D. Dinis vemos, assim, que o mesmo segmento que protagoniza a criação, a trama e a inspiração nas cantigas de amor e de amigo, aparece aqui ridicularizado por certos hábitos.S através dos seus diversos alvos comoabemos também que D. Dinis não foi o único rei a fazer tais tipos de cantigas, ;seu avô Afonso X, o Sábio, rei de Castela, também foi um grande trovador e amante da cultura. Este rei compôs cantigas de escárnio e mal-dizer a partir de diversos temas, entre eleseles podemos destacar o momento que ele cria ciclos satíricos sobre os soldados do reino, pela sua covardia nas campanhas de Reconquista na Península Ibérica.11 D. Dinis não riu, dpoderíamos destacar a Igreja, aPelas razões analisadas anteriormente, não faltariam a ele motivos para composições que atacassem o clero. Não verificamos também de forma clara, como nas cantigas de seu avô, um ataque explícito aos cavaleiros de forma geral. Em algumas

11 LOPES, Graça Videira, Op. Cit., p. 9.

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cantigas satíricas é possível deduzir que a vitima talvez seja um cavaleiro, mas não de forma evidente. A Reconquista é um tema também ausente nas cantigas satíricas de D. Dinis.

. D. Dinis riu do quotidiano, das situações simples que o eu era testemunha ou cuja informação chegava aos ouvidos. Estas situações poderiam ser: o homem que falava demais; o que teve seu cavalo trocado por uma mula; o que teve a herança da mãe perdida por causa de um criado mal intencionado; a visita mal desejada ou o mal administrador de seu dinheiro. São temas podem nos servir de um testemunho de época sobre determinados tipos de comportamentos da sociedade medieval dos séculos XIII e XIV na Península Ibérica. Nos parece que D. Dinis quis provocar o riso nessas situações corriqueiras, em que outros também poderiam se ver nestas. Dentre os personagens não satirizados pelo rei Dinis, há a figura feminina. As soldadeiras12, personagens presentes em várias cantigas de escárnio e mal-dizer do período, por exemplo, não são vistas nas composições do rei que chegaram aos nossos dias. iÉ foinecessário partir para duas possibilidades: ou existiram cantigas que trataram de outros temas produzidas por D. Dinis mas não chegaram aos dias de hoje, ou de uma forma ou de outra, não houve interesse de sua parte, na produção de cantigas fora dos temas que foram apresentados. Sabemos que Dinis foi tido como um dos reis mais importantes que Portugal teve. De seu talento administrativo nas ações que foram desenvolvidas no seu reinado, ajudando no processo de consolidação do reino na Península Ibérica. Sobre as suas medidas que incentivaram a implantação da Língua Portuguesa na documentação oficial do reino, e. Do seu incentivo a cultura, ao criar a primeira universidade de Portugal, na cidade de Coimbra. Percebemos se tratar de um rei bem preparado e suficientemente esclarecido para sua época. Em meio a todo esse preparo intelectual, o que o fazia rir eram as situações mais corriqueiras e com personagens que poderiam pertencer, em alguns casos, à alta nobreza com quem privava na corte ou a condições menos prestigiadas.

5 – Considerações finais

Com relação ao riso medieval, uma das conclusões a que chegamos é a de que o tipo de

humor produzido, com a sua carga de dramaticidade apropriada do ritual do clero; de sua escatologia; da valorização do fálico; do mundo às avessas, e de todos os outros elementos que o completavam, evidencia uma sociedade com uma grande carga de criatividade e, ao mesmo tempo, com um nível de liberdade que surpreende devido ao forte controle que o clero exercia sobre esta. Com D. Dinis, vemos uma sociedade que ri de si mesma, dos principais atores da vida real, que cria mecanismos para que as pressões sociais sejam aliviadas, como vemos na festividade do Carnaval, uma festa de permissividade temporária e controlada.

É desse universo que brotam os trovadores, aqueles que traduziam esses diversos sentimentos nas suas cantigas, que poderiam circular entre o amor cortês, angustiante e sublime, à sátira, onde esse universo cede lugar a um outro, onde não há espaço para as qualidades ou virtudes, mas para os defeitos, os medos, o mau caratismo, o pecado e a doença. D. Dinis, com a visão desse mundo em que viveu, nos deixa seu legado poético. Um homem que liderou um reino, mas que não abriu mão de querer enxergá-lo à sua maneira. Um rei poeta, um rei trovador.

12 Dançarinas que geralmente acompanhavam as execuções das cantigas em público.