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278 Estilos clin., São Paulo, v. 17, n. 2, jul./dez. 2012, 278-289. RESUMO Muitas críticas são feitas à teo- ria kleiniana. Ela tem sido criticada por conferir espaço pri- vilegiado ao mundo interno, ne- gligenciando o papel que o mun- do externo – os pais reais – teria sobre o desenvolvimento da cri- ança. O que pretendo explorar neste trabalho é como, especial- mente a partir do conceito de identificação projetiva, a pessoa real dos pais e do analista pas- sa a ser primordial na teoria e na técnica de orientação kleiniana. Descritores: Melanie Klein; relação mãe-bebê; identificação projetiva; técnica psicanalítica; objeto real. Dossiê EXISTE UM LUGAR PARA OS PAIS REAIS: RELEXÕES SOBRE O LUGAR DOS PAIS E DO ANALISTA REAL NA PSICANÁLISE DE ORIENTAÇÃO KLEINIANA Audrey Setton Lopes de Souza uitas críticas são feitas à teoria kleiniana. Ela tem sido criticada por conferir espaço privile- giado ao mundo interno, negligenciando o papel que o mundo externo – os pais reais – teria sobre o de- senvolvimento da criança. O que pretendo explorar neste trabalho é como, especialmente a partir do conceito de identificação projetiva, a pessoa real dos pais e do analista passa a ser primordial na teoria e técnica de orientação kleiniana. Para Klein, o sujeito constitui-se pela relação dialética entre modos fundamentalmente diferen- M Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, SP, Brasil.

RESUMO EXISTE UM LUGAR PARA OS PAIS REAIS: RELEXÕES …pepsic.bvsalud.org/pdf/estic/v17n2/v17n2a07.pdf · EXISTE UM LUGAR PARA OS PAIS REAIS: RELEXÕES SOBRE O LUGAR DOS PAIS E DO

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278 Estilos clin., São Paulo, v. 17, n. 2, jul./dez. 2012, 278-289.

RESUMO

Muitas críticas são feitas à teo-

ria kleiniana. Ela tem sido

criticada por conferir espaço pri-

vilegiado ao mundo interno, ne-

gligenciando o papel que o mun-

do externo – os pais reais – teria

sobre o desenvolvimento da cri-

ança. O que pretendo explorar

neste trabalho é como, especial-

mente a partir do conceito de

identificação projetiva, a pessoa

real dos pais e do analista pas-

sa a ser primordial na teoria e

na técnica de orientação

kleiniana.

Descritores: Melanie Klein;

relação mãe-bebê; identificação

projetiva; técnica psicanalítica;

objeto real.

Dossiê

EXISTE UM LUGAR PARAOS PAIS REAIS:

RELEXÕES SOBRE OLUGAR DOS PAIS E DO

ANALISTA REAL NAPSICANÁLISE DE

ORIENTAÇÃOKLEINIANA

Audrey Setton Lopes de Souza

uitas críticas são feitas à teoria kleiniana.Ela tem sido criticada por conferir espaço privile-giado ao mundo interno, negligenciando o papel queo mundo externo – os pais reais – teria sobre o de-senvolvimento da criança. O que pretendo explorarneste trabalho é como, especialmente a partir doconceito de identificação projetiva, a pessoa real dospais e do analista passa a ser primordial na teoria etécnica de orientação kleiniana.

Para Klein, o sujeito constitui-se pela relaçãodialética entre modos fundamentalmente diferen-

M

Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e

do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes

Sapientiae, São Paulo, SP, Brasil.

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tes de atribuir significados às experiências emocionais. Sua teoriadas posições traz a marca e o impacto da concepção de um serpautado pelo temor a sua pulsionalidade, sentida como ameaçado-ra, e por um contínuo processo de clivagem e dispersão que, em umprimeiro momento, visa a permitir a vivência do ódio e da frustra-ção: seu vértice de observação, ao descrever uma teoria do desen-volvimento, centra-se na experiência emocional, particularmente noselementos que dão o colorido a essas experiências. Ao estudar aspulsões, seu enfoque é sobre a relação que elas estabelecem com oobjeto e a experiência emocional subjacente. Para ela, as experiênci-as emocionais não podem ser pensadas como constituídas somentepela relação com os objetos reais, pois, devido ao papel desempe-nhado na vida psíquica pela projeção e pela introjeção, o objetointernalizado não é uma cópia do objeto externo, mas sim comoeste foi constituído em uma sucessão de projeções e introjeções.Assim, cada vivência emocional adquire um significado de acordocom as características destes objetos internos. Sua teoria vai desta-car o papel que esse mundo interno desempenha sobre todas asnossas reações e formas de lidar com as situações internas e exter-nas, determinando sobremaneira a forma de viver cada experiência.Tal perspectiva não exclui, mesmo nos textos kleinianos iniciais, aimportância das experiências reais de gratificação e frustração, masaponta para o fato de que elas serão tingidas pelas cores decorren-tes destas combinações.

A teoria de desenvolvimento mental formulada por ela, quan-do compreendemos o sentido dado ao conceito de posição, é umateoria da mente e de seus modos predominantes de funcionamento;uma teoria de como as pessoas usam suas mentes para perceber,negar, alterar ou refletir sobre a realidade. Rocha Barros (1989) des-taca que, com a teoria das posições, Klein passa a privilegiar umaespécie de ótica a partir da qual certas estruturas mentais sãoestabelecidas; uma ótica que norteia a percepção de si mesmo e dasexperiências: trata-se de um certo modo de organizar-se frente àsvivências que faz com que estas adquiram sentidos diferentes de-pendendo da ótica usada. As posições esquizoparanoide e depressivasão, assim, conceituações sobre as organizações psíquicas que ge-ram formas de ser e experienciar o mundo.

Estas formas de organização psíquica não são nunca superadasou deixadas para trás: o que é possível, com maior ou menor suces-so, é manter uma relação dialética entre elas, na qual cada estadocria, preserva ou nega o outro.

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O bebê kleiniano é um bebê con-frontado com a experiência internados impulsos de vida e de morte, comas exigências instintuais satisfeitas ounão, com o prazer proporcionado pelasatisfação e com o desprazer eagressividade decorrente da frustra-ção. Para organizar-se e sentir-se se-guro frente à ameaça de caos, advindade sua fragilidade para significar es-sas experiências, o ego recorre aosmecanismos primitivos de defesa dosquais dispõe, a saber: a cisão ousplitting, a projeção, a identificaçãoprojetiva e a introjeção. O desenvol-vimento destas concepções permitiuperceber de que forma os objetosexternos reais podem facilitar ou obs-truir aquele processo, como veremosadiante.

O conceito de posição como ummodo específico de ver o mundo estádeterminado, do ponto de vista psí-quico, por uma constelação de ansie-dades, defesas, fantasias e formas dese relacionar que criam um modo deperceber e de compreender a realida-de. Conceber o desenvolvimentocomo operando com duas posiçõesbásicas é pensá-lo como duas atitu-des mentais diferentes a partir dasquais as experiências podem ser vivi-das. Para Klein, existe uma flutuaçãoentre as duas posições, dependendosempre da capacidade do ego de su-portar as angústias decorrentes dosaspectos ambivalentes da experiência.Na concepção da autora, a posiçãoesquizoparanoide (Klein, 1946/1991a), com toda a multiplicidade de

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emoções ali constituída, seria o pri-meiro instrumento do bebê paraestruturar suas experiências. As des-crições de Klein tentam dar conta decomo o bebê busca usar as capacida-des rudimentares de seu ego para or-ganizar as percepções do mundo.

Ela sustenta como hipótese que,ao nascer, a criança já seria capaz dealgumas funções de ego, tais como:experimentar ansiedade, utilizar me-canismos de defesa e estabelecer re-lações de objeto primitivas tanto narealidade quanto na fantasia. Esse egorudimentar estrutura o mundo inter-no com um modo de funcionamentomais próximo ao que, no adulto, en-contramos nos pesadelos ou na re-gressão psicótica. Trata-se de ummundo no qual nossa discriminaçãoentre realidade e fantasia, interno eexterno, verdade e ilusão deve serdeixada de lado para podermoscompreendê-lo.

A fantasia de não ser capaz dedar conta das exigências pulsionais ede conviver com os aspectos contra-ditórios de si mesmo e do objeto fazcom que, em fantasia, haja uma ten-dência a expulsar as experiências más,localizando-as fora de si e, ao mesmotempo, a tentar incorporar e identifi-car-se com as experiências sentidascomo boas. Assim, a ansiedade pre-dominante é a persecutória(paranoide) e o estado do ego é frag-mentado e cindido (esquizo). No en-tanto, Klein (1946/1991a) destaca quehá uma tendência à integração do egoque alterna com uma desintegração

defensiva, um movimento de vida queleva à integração e um de morte queleva à desintegração defensiva.

Essa forma de organização per-mite, devido ao predomínio das gra-tificações e da identificação com oobjeto que gratifica, construir umaconfiança em um objeto interno, sen-tido como mais capaz e mais fortepara lidar com as frustrações e asemoções delas decorrentes. Com istoquero destacar o papel, estruturantee organizador, desse modo de cons-tituição das vivências emocionais paraa sobrevivência do ego no momentode fragilidade, bem como sublinhar afunção da confiança neste bom obje-to interno para estimular os movi-mentos de integração e a capacidadede suportá-la. A questão que se colo-ca é como conquistar tal confiança.

Uma experiência da ordem des-crita por Klein para a posiçãoesquizoparanoide é um modo de serno qual o conhecimento de si mes-mo e do mundo real é muito precá-rio, na medida em que os aspectosdolorosos de si e do mundo não po-dem ser reconhecidos. Ao mesmotempo, ao projetar sobre o mundofora de si esses aspectos, a experiên-cia do mundo é distorcida: nos mo-mentos de prazer e gratificação esteé sentido como perfeito e idealizado,e nos momentos de frustração passaa ser vivido como ameaçador epersecutório.

De maneira geral, neste modo deviver não é possível pensar na exis-tência de alguém, dentro de si mes-

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mo, capaz de interpretar a experiência vivida; não há subjetividadecapaz de exercer mediação; é como se a pessoa fosse vivida pelasexperiências boas ou más, como forças que se impõem, aparecem edesaparecem, contaminam e transformam sem que o sujeito possainterpretá-las. Perde-se uma possibilidade de perceber a causalidadee a temporalidade, que só seriam alcançadas com os movimentos deintegração da posição depressiva.

Ogden (1996) descreve a posição esquizoparanoide como umaforma de organizar as experiências na qual estas são sempre impes-soais e não reflexivas, com um modo quase automático de reagir eno qual pensamentos e sentimentos não são percebidos como cria-ções pessoais e, sim, como acontecimentos factuais.

A cisão como forma predominante de reagir ao perigo permiteao sujeito amar e odiar com segurança, protegido das angústias de-correntes da ambivalência, pois um aspecto da experiência está sem-pre fora do alcance. Perigo e segurança são manejados de forma talque a experiência é vivida de maneira descontínua, como resultadodo splitting; o desagradável não é sentido como próprio e as experi-ências, de frustração e de prazer, são sentidas como descontínuas,o que torna impossível a percepção de que podem provir do mes-mo objeto. A mãe que frustra passa a ser vivida como outra, dife-rente da que gratifica, o que permite odiá-la com mais segurança epropriedade. O que ainda não é possível perceber é que existe um“eu” que sente coisas diferentes e aparentemente contraditórias emrelação a um mesmo objeto, o que gera uma falta de percepção deque a historicidade e a subjetividade afetam a forma de viver a expe-riência.

O conceito de identificação projetiva introduzido por Kleinem 1946 começa a delinear um lugar para o objeto real neste pro-cesso, uma vez que insere um componente interpessoal nesta dialéticade dispersão e integração dos afetos. Ela propõe a existência, desdeos estágios iniciais, de um processo psíquico em que aspectos doself não são simplesmente projetados sobre o objeto, mas sim, comoela destaca, “para dentro do objeto”, gerando efeitos sobre ele. Emsuas descrições, Klein privilegiava as fantasias das crianças de con-trolar, possuir e dominar o objeto, mas suas ideias permitiram queautores como Bion explorassem o conceito em sua dimensãointerpessoal.

O fascinante é perceber como a inclusão deste conceito de iden-tificação projetiva coloca a mãe (ou o objeto que acolhe a identifica-

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ção projetiva) como parte do proces-so que permite desenvolver a capaci-dade de conter e significar a experi-ência emocional. A continênciamaterna, que acolhe a identificaçãoprojetiva do bebê, torna-se modelo eapoio para as experiências deintegração e para alcançar a estabili-dade emocional que é a base para oprocesso de subjetivação e de cons-trução do eu. A leitura cuidadosa dostextos kleinianos deixa claro que elanunca negligenciou o papel dos paisno desenvolvimento da criança. Umexemplo desta perspectiva pode servisto na descrição do caso Dick (Klein1930/1991b), no qual ela aponta aimportância do distanciamento ma-terno e da afetividade da babá sobreo comportamento da criança. Toda-via, o conceito de identificaçãoprojetiva permitiu compreender deque forma este processo pode ser sig-nificado dentro do sistema kleiniano.As novas formulações propostas porBion a respeito da revêrie materna e acolaboração dos autores que estuda-ram a identificação projetiva e seusefeitos na contratransferência suge-rem que o uso das emoções desper-tadas como efeito da identificaçãoprojetiva poderia fornecer mais uminstrumento para a compreensão dopaciente.

Observemos o conceito der evêrie, termo adotado por Bion(1962/1988a) para referir-se a um es-tado mental de receptividade da mãeque lhe permite acolher as emoçõesprojetadas por seu bebê e dar-lhes sig-

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nificado. A partir da introjeção destamãe receptiva e compreensiva, a cri-ança será capaz de desenvolver a ca-pacidade de refletir sobre seus pró-prios estados mentais. Trata-se deuma mãe que se permite ser habitadapelo bebê e, em sua continência erevêrie, pode nomear, dar forma, sig-nificar, tranquilizar, digerir, transfor-mar a experiência sentida como ca-tastrófica pelo bebê. Tal capacidadeimplica que esta mãe tenha um espa-ço interno para acomodar a dor e asangústias.

Este conceito é assim descritopor Segal (1982):

Quando o bebê sente uma ansiedade intole-rável, ele lida com ela projetando-a na mãe.A resposta da mãe é reconhecer esta ansie-dade e fazer o que quer que seja necessáriopara aliviar a aflição do bebê. A percepçãodo bebê é que projetou algo intolerável so-bre o objeto, mas o objeto foi capaz de contê-lo e lidar com isto. Pode então reintrojetarnão só a sua ansiedade original, mas uma an-siedade transformada por ter sido contida.Introjeta também um objeto capaz de contere lidar com a ansiedade. A contenção da an-siedade por um objeto interno capaz de com-preender é um início da estabilidade mental.(p. 183)

Diz Bion (1959/1988b), referin-do-se a este processo:

a identificação projetiva lhe possibilita [aobebê] investigar seus próprios sentimentosdentro de uma personalidade vigorosa o bas-tante para contê-los. A negativa ao uso destemecanismo, seja pela recusa da mãe em ser-vir como receptáculo dos sentimentos dobebê, ou pelo ódio e inveja do paciente, que

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não pode permitir que a mãe exerça esta função, leva à destruição do elo deligação entre bebê e o seio e, conseqüentemente, a uma grave desordem do im-pulso de ser curioso, de qual depende toda aprendizagem. (p. 98)

Ao estudar a importância do conceito de identificação projetivae a forma como Bion o reinterpretou, Ogden (1996) destaca que obebê desenvolve sua capacidade de vivenciar seus próprios senti-mentos e pensamentos por meio de uma experiência com a mãe,em que esta se empresta psiquicamente, experimentando os pensa-mentos impensáveis e os sentimentos intoleráveis projetados nelapelo bebê. Esta mãe sensível ao processo é evocada para tornar-sepsicologicamente disponível, para ser usada desta forma.

Assim, a identificação projetiva para Bion não é somente uma fantasia inconsci-ente de projetar um aspecto próprio no outro e controlá-lo desde dentro; repre-senta um acontecimento psicológico interpessoal no qual o projetor, por via deuma interação interpessoal real com o recipiente da identificação projetiva, exer-ce pressão sobre o Outro para que se vivencie e se comporte de forma congruentecom a fantasia projetiva onipotente. (Ogden, 1996, p. 39)

Tal perspectiva da identificação projetiva retrata, segundoOgden, uma conceituação de um sujeito descentrado de seu lugarexclusivo, pois trata-se de um sujeito concebido como emergindode uma dialética (um diálogo) do self e do Outro, uma subjetivida-de que depende da existência de dois sujeitos que, juntos, criamuma intersubjetividade por meio da qual tem origem o sujeito indi-vidual.

A integração deste processo permite a introjeção de um bomobjeto, um objeto capaz de conter, de significar e de simbolizar asexperiências, o que faz com que novas formas de percepção domundo estejam acessíveis, tornando possível viver o mododepressivo de organizar-se. Este desenvolvimento representa umgrande avanço do ponto de vista psíquico e do ponto de vista daexperiência emocional, pois implica a possibilidade de viver a subje-tividade e a historicidade – tal mudança permite acompanhar a con-tinuidade da experiência de si mesmo e do outro. Um elementoimportante na posição depressiva é a possibilidade de elaborar aculpa. Novamente, devemos destacar a importância de um objetoexterno que sobreviva à destrutividade do bebê e que possa tam-bém apresentar um mundo real – e não mágico e onipotente –,ampliando a percepção do outro e do mundo externo e interno.

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Esta perspectiva traz ao trabalhoanalítico a importância da figura realdo analista como aquele capaz deexercer tal função, pois o conceito deidentificação projetiva propõe que aprojeção pode dar-se para dentro doobjeto, alterando sua identidade: “Oencontro analítico passa a ser vistocomo uma relação e um processo decomunicação que produz um impac-to mútuo, independentemente davontade do paciente ou do analista”(Rocha Barros, 1989, p. 20).

O trabalho com crianças, porexemplo, coloca-nos muitas vezes nolugar ou da aluna incompetente, oudaquele que sempre perde no jogo,ou do que sabe tudo, ou do curioso eintrometido, ou do controlador emoralizador, ou do que está sempreerrado - formas de comunicação daexperiência da criança. O que está emjogo é a possibilidade de examinar aexperiência pela qual passa o analistaem seu aspecto perturbador e fazer otrabalho mental necessário para su-perar a perturbação. Logo, quandofalamos em transferência, devemostambém considerar a capacidade doanalista de vivenciá-la. Ao finalizar suaanálise comigo, um pequeno pacien-te de 6 anos, que aterrorizava seus paise a escola com ameaças de destruiçãode si mesmo e dos outros, assim defi-niu sua visão do processo: “Você era a

única que não ficava louca comigo, acho que

por isso você conseguiu me ajudar.”

Vários autores da atualidade des-tacam que se o paciente podevivenciar o analista como alguém que

suporta, compreende, contém e semantém pensando, mesmo quando éinduzido, na situação criada pelo pa-ciente, a viver as emoções, os impul-sos ou os sentimentos que ela viveuem suas relações de objeto iniciais,estão criadas as condições para queseja possível a introjeção não só doconteúdo que é interpretado pelo ana-lista, mas também das próprias fun-ções do analista como perceber, su-portar e pensar. A partir do exposto,propomos pensar o processo analíti-co como o processo de uma dupla -duas pessoas que vivem, juntas, den-tro do setting, uma história analítica. Éno desenrolar dessa história compar-tilhada que se desenvolve a análise(Favilli, 1998).

Esta visão do adoecer e do so-frimento humano inclui a dimensãorelacional, tanto na sua articulaçãocom o papel do objeto externo (fa-mília) na constituição do sujeito, quan-to na inclusão da pessoa do analistano processo.

Conceber o papel do objeto ex-terno no adoecer humano e o papelda revêrie materna na etapa inicial dodesenvolvimento do bebê expandiuo espaço para intervenções psicanalí-ticas nos primeiros momentos do re-lacionamento pais-bebês, valendo-sedo referencial kleiniano.

O fato de poder oferecer conti-nências às angústias dos pais na rela-ção com seus bebês tem-se reveladoeficaz para ajudá-los a digerir emo-ções sentidas como insuportáveis eque eram depositadas em seus filhos.

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Acolher estas identificações projetivase nomeá-las têm sido uma possibili-dade de intervenção que permite aemergência de novos sentidos e orompimento de barreiras que estejambloqueando o desenvolvimento (Sil-va, Mendes de Almeida & Marconato,2004).

Incluir esta dimensão implicapensar uma clínica na qual a revêrie e afigura real do analista são elementosprimordiais para qualquer proposta deintervenção psicanalítica, o que, porsua vez, dá lugar a intervenções cadavez mais iniciais e efetivas, como oatendimento focado na relação pais-bebê. Estamos frente a novos enqua-dres, ou enquadres diferenciados, quepermitem atingir, fundamentados napsicanálise, manifestações do fenôme-no humano antes inexploradas pelaintervenção psicanalítica.

Reconhecer a importância e apertinência de intervenções nesta fai-xa etária é reconhecer como sintoma,como grito e pedido de ajuda, mani-festações muito iniciais relativas a fun-ções vitais como comer e dormir, emesmo aquelas mais precoces, comoa constituição de vínculo em famíliascom bebês prematuros. Trata-se douso do método psicanalítico em en-quadres diferenciados, nos quais aten-ção flutuante, interpretação, transfe-rência, contratransferência permitemuma escuta, um movimento de ges-tação de sentidos – intervenções quepermitem a abertura para novos sen-tidos e desarmam as amarras que im-

pedem o movimento do fluxo de de-senvolvimento.

Ancorados em experiências derevêrie, emoções insustentáveis, antes“splitadas”, projetadas e negadas, po-dem ser digeridas, possibilitandoencontros transformadores que, napresença do outro, podem ser ressig-nificados e acolhidos. Isso permiteque crianças barradas em seu desen-volvimento possam recuperar ouencontrar pais que as ajudem a de-senvolver sua subjetividade.

Trabalhar com famílias que, de-vido a conflitos internos dos pais,apresentam fantasmas que rondam arelação com seus filhos e que os im-pedem de um contato com o bebêreal, contribui para que estes confli-tos encontrem formas menostanáticas de expressão. Inundadaspelas identificações projetivas de seuspais, estas crianças pedem socorroatravés de seus sintomas, e a interven-ção psicanalítica auxilia a abertura denovos sentidos.

Procurei mostrar, neste trabalho,como o conceito kleiniano de identi-ficação projetiva não só permitiu va-lorizar o papel do objeto externo noprocesso de constituição do sujeito,como também alavancou modifica-ções técnicas que passaram a consi-derar a figura do analista como partedo processo psicanalítico, além deoferecer ferramentas para interven-ções em momentos iniciais do desen-volvimento, agindo no interior da re-lação pais-bebê.

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THERE IS A PLACE TO THE REALPARENTS: SOME THOUGHTS ABOUTTHE PLACE OF PARENTS ANDREALITY IN THE KLEINIAN’SPSYCHOANALYSIS

ABSTRACT

Many criticisms are made to Klein’s theory. It hasbeen criticized for giving privileged space to the internalworld by neglecting the role that the external world –the real parents – would have on child development.What I intend to explore in this paper is how,especially since the concept of projective identification,the real person of the parents and the psychoanalistbecames crucial in the kleinan’s theory and technique.

Index terms: Melanie Klein; mother-infantrelationship; projective identification; psychoanalytictechnique; the real object.

HAY UN LUGAR PARA LOS PADRESREALES: REFLEXIONES SOBRE ELLUGAR DE LOS PADRES Y DE LAREALIDAD EN EL PSICOANÁLISISKLEINIANO

RESUMEN

Muchas críticas se hacen a la teoría de Klein, que hasido criticada por dar un espacio privilegiado para elmundo interior y descuidar el papel que el mundoexterior – los padres reales – tendría en el desarrollodel niño. Lo que me propongo explorar en este trabajoes cómo, sobre todo desde el concepto de identificaciónproyectiva, la persona real de los padres y del analis-ta se convierte en crucial en la teoría y en la técnica deorientación kleiniana.

Palabras clave: Melanie Klein; relación madre-hijo; identificación proyectiva; técnica psicoanalítica;objeto real.

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REFERÊNCIAS

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[email protected]. Prof. Mello Morais, 1721 – Bloco A – sala 204

05508-030 – São Paulo – SP – Brasil.

Recebido em agosto/2011.Aceito em dezembro/2011.

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