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o CONFLITO DE DOIS PARADIGMAS: Habermas e Heidegger RESUMO Bartolomeu Leite da Silva' Este trabalho aborda a noção de paradigma de Heidegger e Habermas, comparando-os na sua estrutura e aplicabilidade a uma leitura razoável de problemas filosóficos. Mostra-se, assim, que estes paradigmas estão atrelados às concepções de razão que cada qual defende. Mostra, a seguir, algumas inconseqüências da concepção de Habermas perante o paradigma de Heidegger. Palavras-cbave: Paradigma, Fundamentação, Teoriado conhecimento. ABSTRACT This paper shows the conception of paradigm in Habermas and Heidegger works. It compares its structure and applicability to a reasonable lecture on philosophic problems. It shows, in this way, that such paradigms are linked to particular reason conceptions. At following, it shows some inconsequences of the Habermas' conception of reason. Key words: Paradigm, Foundation, Knowledge Theory. 1 INTRODUÇÃO Este artigo poderia receber o seguinte subtítulo: "Considerações críticas sobre a compreensão habennasiana de Heidegger na obra 'O discurso filosófico da modemidade', capoVI: A corrosão crítico-metafisica do racionalismo ocidental: Heidegger". É sobre ele que versa o trabalho como um todo. Este texto habermasiano se apresenta grosso modo em duas partes: . Professor do Departamento de Filosofia da UFMA. 22 na primeira parte Habermas tenta reconstruir os passos fundamentais do discurso heideggeriano acerca da metafísica. Baseia-se para tal, sobretudo na obra "Was ist Metaphysik?" de Heidegger. Para completar esta tarefa, Habennas vai buscar algumas citações de Ser e Tempo a fim de fundamentar suas desconfianças reconstrutivas do pensamento que propõe uma desconstrução da metafísica. Na Cad. Pesq., São Luís, v. 13, n. 1, p. 22-30,jan./jun. 2002.

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o CONFLITO DE DOIS PARADIGMAS:Habermas e Heidegger

RESUMO

Bartolomeu Leite da Silva'

Este trabalho aborda a noção de paradigma de Heidegger e Habermas,comparando-os na sua estrutura e aplicabilidade a uma leitura razoávelde problemas filosóficos. Mostra-se, assim, que estes paradigmasestão atrelados às concepções de razão que cada qual defende.Mostra, a seguir, algumas inconseqüências da concepção de Habermasperante o paradigma de Heidegger.

Palavras-cbave: Paradigma, Fundamentação,Teoriado conhecimento.

ABSTRACT

This paper shows the conception of paradigm in Habermas andHeidegger works. It compares its structure and applicability to areasonable lecture on philosophic problems. It shows, in this way,that such paradigms are linked to particular reason conceptions. Atfollowing, it shows some inconsequences of the Habermas'conception of reason.

Key words: Paradigm, Foundation, Knowledge Theory.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo poderia receber oseguinte subtítulo: "Consideraçõescríticas sobre a compreensãohabennasiana de Heidegger na obra 'Odiscurso filosófico da modemidade',capoVI: A corrosão crítico-metafisicado racionalismo ocidental: Heidegger".É sobre ele que versa o trabalho comoum todo. Este texto habermasiano seapresenta grosso modo em duas partes:

. Professor do Departamento de Filosofia da UFMA.

22

na primeira parte Habermas tentareconstruir os passos fundamentais dodiscurso heideggeriano acerca dametafísica. Baseia-se para tal,sobretudo na obra "Was istMetaphysik?" de Heidegger. Paracompletar esta tarefa, Habennas vaibuscar algumas citações de Ser eTempo a fim de fundamentar suasdesconfianças reconstrutivas dopensamento que propõe umadesconstrução da metafísica. Na

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1 INTRODUÇÃO

Este artigo poderia receber o se-guinte subtítulo: "Considerações críti-cas sobre a compreensão habermasianade Heidegger na obra 'O discurso filo-sófico da modernidade', capo VI: Acorrosão crí tico-metafísica doracionalismo ocidental: Heidegger". Ésobre ele que versa o trabalho comoum todo. Este texto habermasiano seapresenta grosso modo em duas par-tes: na primeira parte Habermas tentareconstruir os passos fundamentais dodiscurso heideggeriano acerca dametafísica. Baseia-se para tal, sobre-tudo na obra "Was ist Metaphysik?" deHeidegger. Para completar esta tare-fa, Habermas vai buscar algumas cita-ções de Ser e Tempo a fim defundamentar suas desconfiançasreconstrutivas do pensamento que pro-põe uma desconstrução da meta física.Na segunda parte do texto Habermasaplica as categorias reconstruídas dodiscurso de Heidegger ao contexto doFührer - Social-Democracia na Ale-manha dos anos 30, numa vinculaçãoexplícita com o movimento fascista.

O objetivo deste texto não é re-construir nenhum dos dois discursosnem apresentar alternativa. Isto porquea forma de leitura embargada porHabermas no texto em estudo apareceum tanto problemática, impossível, por-tanto, de reconstrução e reconciliaçãocom uma leitura razoável de Ser e Tem-po. Nosso objetivo é, pois mostrar aforma com que Habermas lê o discur-so heideggeriano acerca da metafísica,

mostrando o erro grave da leitura e apobreza da interpretação. Faremos issocomparando os paradigmas que cadaqual segue, bem como suas concepçõesde razão, para mostrar algumas incon-seqüências da concepção de Habermasperante o paradigma de Heidegger, afim de mostrar a aceitabilidade doparadigma heideggeriano frente aoparadigma habermasiano.

2 O PARADIGMA FILOSÓFICODE HABERMAS E SUACOMPREENSÃO DEHEIDEGGER

Habermas situa-se dentro da tra-dição do idealismo alemão, melhor dito,dentro do racionalismo ocidental mo-demo]. Seu paradigma de leitura e crí-tica de Heidegger é a filosofia daconsciência, embora ele não o admitaexplicitamente, preferindo falar de umarazão comunicativa como paradigma.Concordemos, no momento, por con-veniência de discurso. Neste sentido, arazão comunicativa é apresentadacomo uma superação crítica dosubjetivismo característico da filosofiada consciência, sobretudo na formaapresentada por Kant na formulaçãodo imperativo categórico. Admitido,pois, este paradigma da razão comuni-cativa, Habermas começa situandoHeidegger dentro do discurso filosófi-co da modernidade. Heidegger teriaefetuado mais uma tentativa fracassa-da de transpor o solipsismo do sujeitoem relação ao objeto para um campode interação mediada pelo ser e pelotempo. Com isso, Heidegger estaria

'Herbanas pretende, no Prefácio a Conhecimento e Interesse, galgar os degraus abandonados da reflexão ele.

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mais próximo do nihilismo de Nietzschedo que de uma filosofia com sentidopróprio e inaugurador de um novoparadigma. Aqui Habermas opera comuma compreensão historicista, resquí-cios de sua reconstrução do materialis-mo histórico, do sonho perdido, cujacompreensão nega, a contra desejo, umpossível horizonte humano para a ra-zão comunicativa (esfera do mundo davida), no sentido em que ele não con-segue enxergar o movimento do pen-samento de Heidegger e da própriafilosofia fora da linhagem do idealismoalemão da modernidade. Ele não acei-ta que Heidegger tenta redirecionar odestino da filosofia para um lugar quelhe é próprio e que até então não foraassumido desde uma perspectiva hu-mana do tempo e do ser. Uma espéciede pecado eurocêntrico de Husserl: es-clarecimento e Europa coincidem. Fi-losofia como um todo. e modernidadecoincidem.

Habermas lê Heidegger às aves-sas e contra as intenções programáticasde Ser e Tempo, que se apresenta comuma arquitetônica impossível de serconsiderada em suas partes: em Seisestudos sobre Ser e Tempo, ErnildoStein apresenta a obra como tendo umaestrutura interna impossível de ser ig-norada, cuja estruturação passa peloparágrafo da Cura, a nova metáforacom que Heidegger vai coroar a análi-se preparatória do ser-aí, e ao mesmotempo ponto de passagem para a fim-dação de uma ontologia que exclui afundamentação de modelo teológico efundação do tipo sujeito-objeto. Segun-do nossa compreensão do texto deStein, se a leitura não consegue chegar

a estabelecer essa ligação, ou tomar aCura como pano de fundo, pouco seconseguirá ver dos reais objetivos deHeidegger, pelo que, como Habermas,compreende-se mal a sua obra.Habermas lê Heidegger a partir do ide-alismo alemão, ignorando a possívelcompreensão que Heidegger tentouesboçar acerca deste discurso filosófi-co, como de outros. Ainda que estacompreensão estivesse enredada emum beco sem saída, Habermas teriacometido no mínimo um errometodológico. Fica fácil, dessa forma,de acuar o discurso heideggeriano numbeco sem saída, da forma comoHabermas o entende em O DiscursoFilosófico da Modernidade (Cap.Sobre Heidegger). Ou seja, em rela-ção à filosofia da consciência de fato aproblemática geral de Ser e Tempo ficadesprovida dos mecanismos clássicos(parece um discurso arbitrário) queconferem a ligação real entre sujeito eobjeto. Isto acontece pelo fato de queHeidegger entende a filosofia de foradas formas clássicas até então apre-sentadas pela história dá filosofia, inau-gurando com isso uma nova fase paraa filosofia da história e para a históriada filosofia. Habermas labora em errono sentido em que sujeito e objeto sãovistos por Heidegger apenas comomodos de ser do ente que conhece oser, uma totalidade possível, quer dizer,a teoria do conhecimento não é a cha-ve de acesso ao mundo da consciêncianem à consciência do mundo, mas elaé uma possibilidade antes da efetividade,um modo de ser do ser.

Usando agora uma linguagem fi-gurativa, diríamos que se Heidegger

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estivesse se afogando Habermas ten-taria salvá-lo puxando-o para o fundodo mar, crente de que ali seria a super-ficie. Habermas, portanto, faz uma lei-tura suicida de Heidegger aointerpretá-I o a partir da tradição Kant-Hegel. Habermas sente saudade e nãoconsegue ler Heidegger sem o deslizedialético (interação lingüística, diria ele!)característico da filosofia do sujeito,deslize esse que o empurra para umterreno escorregadio do qual jamais eleconsegue sair, quando compreendeu amodernidade como um projetoinacabado. A razão esperançada (prag-mática universal) que reaparece comHabermas é uma razão que se ilude asi própria e não consegue ir adiante dodestino irônico e fatal que Adorno eHorkheimer lhe predisseram, pois quenão compreende o mundo como hori-zonte de possibilidade do ser, mas comopropriedade do próprio ser, o mundoobjetificado.

Habermas atribui a Heidegger umerro que é só seu: permanecer no mes-mo modelo de fundamentação da filo-sofia do sujeito; é só de Habermasporque este muda apenas a feição doparadigma, mas não o próprioparadigma, fato que para Heideggerestá muito claro desde o início. O mo-delo de fundamentação habermasianosegue o modelo de fundamentação te-ológico, como Hegel colocara em rela-ção a Kant, segundo o próprioHabermas: "O iluminismo é apenas a

outra face da ortodoxia. Tal como estapersiste na positividade das doutrinasaquela insiste na objetividade dos man-damentos da razão ..."2. Teológico por-que Habermas enxerga esse modelonos outros, e tenta sair dele propondo oparadigma da razão comunicativa, aointroduzir o conceito deintersubjetividade, mas acaba caindopara aquém das pretensões da filosofiatranscendental de Kant, no terror prá-tico' como chamará LOPARIC (1990,p.112).

A expressão maior de Habermasque resume a sua compreensão deHeidegger está na ligação entre odionisíaco nietzscheano, figurado peloser-aí, diferença ontológica, indo aoencontro do ser para formar uma tota-lidade perdida, recuperar o sonho, ca-paz de salvar o sentido da vida e domundo do ser-aí. Habermas chama oser-aí "pastor do ser". Ora, primeiroHabermas identifica implicitamente, esem nenhuma mediação, a compreen-são de ser-aí com o "existente", comosendo o homem. Essa identificação nãoé possível, pois ela faz parte do univer-so da filosofia do sujeito objetificadoradas coisas. Identificar objetificar [ohomem]. E objetificar o homem só épossível pela única consciência no mun-do capaz disso. O próprio homem seobjetificar é impossível; seria algo comona situação em que consigo enxergarmeu próprio olho, ou fechar uma gave-ta e trancar a chave. Eis um dos traços

'Ver Heidegger, M. Ser e Tempo. § 42. Ver também Stein, E. Seis Estudos sobre Ser e Tempo, 5°. capo'Terror prático: é uma expressão criada por' Welmer, e aparece em HABEMAS (1999, p.105ss). Elaexpressa o fracasso das teorias marxianas frente às suas suas realizações práticas. LOPARlC (1990) a usanum debate com Haberrnas, e ironicamente refere-se a uma autocontradição no pensamento deste autor,no sentido em que a ética do discurso, dada a sua insuficiência kantiana, não conduzirá a uma sociedadedemocrática, como o supõe Habermas, mas a uma ditadura do melhor argumento.

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com que Heidegger inaugura um novoparadigma para a filosofia, cuja percep-ção é por Habermas totalmente igno-rada. O ponto mais importante da obrade Heidegger, do qual falaremos adi-ante, passa despercebido porHabermas, motivo que ironicamentediríamos que ele só leu, sem muitasevidências de que tenha compreendi-do, a primeira parte de Ser e Tempo,visto que não faz referências explícitasaos parágrafos 42 e 45 de Ser e Tem-po, segundo Stein, respectivamente oparágrafo conclusivo da primeira par-te, o novo ponto de fundação para umaontologia fundamental, e o parágrafo dacircularidade hermenêutica, que colo-ca o homem, enquanto ser-aí, o algoenquanto algo, como ponto de passa-gem - ponto de chegada e ponto departida - para uma compreensão dosentido do ser.

O conceito de "cuidado" constituium novo ponto de partida para a fun-dação da ontologia fundamental,ou umaantropologia dogmática; uma teoria dohomem a partir da sua própria condi-ção humana, do mundo e de seu co-nhecimento do mundo se dá a partirdesse conceito', sem o qual toda a obraSer e Tempo perde sua magnitude.Habermas parece não compreenderisso e julga Heidegger de assassinar ametafisica "com boas intenções", aoconfundir os conceitos de ôntico (ser-aí) e ontológico (o ser).

Naturalmente Habermas entendeo conceito de metafísica diferentementede Heidegger, embora não perceba nemo admita, e atribua sua própria concep-ção a Heidegger. Metafísica compre-endida ainda aristotelicamente no

sentido de uma razão-substância. Tudoque Heidegger desejaria que fosse es-clarecido de uma vez por todas era aquestão não apenas da razão-substân-cia, mas também da razãoobjetifícadora,ou, para falar como Kant,responder à questão "o que é homem".Para isso, Heidegger procura instaurarum novo ponto de partida que não seapóie em pressupostos que provoquemconseqüências desastrosas para o entehumano. Quer dizer, um novo modelode fundamentação isento de pressupos-tos suspeitos, diferente, portanto, dosmodelos aceitos pela metafísica clássi-ca e pela filosofia do sujeito.

3 O PARADIGMAFILOSÓFICO DEHEIDEGGER

Ao discutirmos o paradigma filo-sófico de Habermas, tivemos a dificul-dade em situá-lo ou na filosofia daconsciência ou na filosofia da lingua-gem, e mediante esta dificuldade opta-mos por falar na razão comunicativacomo paradigma. Esta dificuldade de-veu-se, sobretudo, ao fato de queHabermas se .ressente ainda de umaespécie de filosofia primeira, uma filo-sofia fundamental, natural de quem semove no espaço da filosofia da consci-ência. Para a exposição do paradigmaheideggeriano, trazemos em conta estaquestão, visto que em Heidegger nãohá esse ressentimento pela filosofia fun-damental, (pelo fundamento, sim), mashá uma tentativa explícita deredirnensionar a questão do fundamen-to não mais no sentido da tradiçãometafisica de Aristóteles, mas numa

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direção que aponta para o sentido doser. Dizemos assim que também emHeidegger (ainda) há a preocupaçãocom o fundamento, mas um fundamentoque tenta colocar-se a si mesmo, pôr-se a si mesmo, sem ficar devedor dequaisquer pressupostos (alienáveis) doser, cujo fundamento se dá mediante acondição (relação) do ser com (no) otempo. Isto se tomará possível na me-dida em que Heidegger postula o sercomo "acontecimento", "ser no mun-do", 'jogado no mundo", que gera a suacondição de possibilidade e dela depen-de em forma de circularidadeclarificadora da sua relação com omundo.

Tomaremos como base de nossaexposição a obra Ser e Tempo (M.Heidegger), e a obra Seis Estudos so-bre Ser e Tempo (E. Stein). Heideggertem o cuidado de no início da exposi-ção da questão ser e tempo distinguirentre ente e ser, ôntico e ontológico,(§§ 2-4). Trata-se daquilo que paraAristóteles se dá como evidência (oser se diz de várias maneiras).Heidegger não se move dentro da evi-dência, mas dentro da circularidade"própria do ser que sempre mais oexplicita. Grosso modo, para Aristóteleshá ainda diferença ontológica entre entee ser (Tomás de Aquino diz melhor:essência e existência), ao passo que em

Heidegger haverá umacomplementaridade de sentido e estru-tura de interdependência explícita, nosentido em que ela não é pressuposta,mas real, atual e necessária. A essainterdependência E. Stein chamará "cír-culo hermenêutico", nos Seis estudos,assumindo este círculo hermenêutico acondição de "teorema da frnitude" jun-tamente com a "diferença ontológica"que dão suporte à questão do ser". Fun-damentalmente o que está emjogo nãoé mais uma fundamentação como nafilosofia da consciência e na metafisica,tendo em vista que nestas a forma defundamentação se dá exclusivamentepela postulação (criação) de uma ins-tância exterior que sirva de base desustentação ao modelo fundacionalistaque se pretende, onde sobretudo o ra-ciocínio se efetua por meio daobjetificação. Primeiro se cria o mode-lo, arbitrariamente, depois nele tenta secolocar a questão do ser e sua origem,numa tentativa fraca de explicitá-Io.

Por exemplo, em Kant oTranscendental pretende explicar todoo universo do ser e do conhecimento{responder a questão "o que o homem"= o ser), mas primeiro ele é pressupos-t06. O fato novo que Heidegger nos trazé quando o ser é questionado a partirdo tempo, ficando-nos clara assim apossibilidade de uma resposta à ques-

'Evidência e Circularidade parecem termos correlatos. Evidência é um termo empregado pela filosofiada consciência, principalmente em Descartes, onde opera uma espécie de método dedutivo. Pressupõe,portanto, separação entre consciência e mundo, sujeito e objeto. Circularidade é um termo empregado porHeidegger para indicar o movimento hermenêutico com que se compreende o ser. Veja nota adiante sobreo § 45 de ST.5''Ver Stein, E.. "Possibilidades da antropologia filosófica a partir da analítica existencial". Revista Verilas.,pág. 35.'Não queremos aqui avaliar o potencial de fundamentação do Transcendental, mas tanto ou quanto suaforma. Pois é sabido dos ganhos que a forma de fundamentação kantiana trouxe para a filosofia, apesar daperda de mundo, fato que com sucesso Heidegger recupera com a questão Ser e Tempo.

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tão que desde sempre incomodou a fi-losofia: o ser. Portanto Heidegger ten-ta não pressupor nada, mas partir dopróprio ser e sua condição, (pressupos-to real, apriorístico e não apofântico),sua estrutura no mundo, na sua relaçãocom a temporalidade, a finitude. Paraesta tarefa, será preciso o recurso deum novo método, a fenomenologiahermenêutica transcendental', que nabase de suas análises sobre o ser traráo Dasein (cura), o ser aí na sua condi-ção no mundo. A estrutura de ser dodasein será a estrutura do mundo, nãocomo puro espelho, mas no sentido deque o mundo é aquilo que o ser nosmostra através deste ente especial, acura (Dasein), donde o teorema dacircularidade hermenêutica; Ou seja:compreendendo-me como ser no mun-do compreendo ao mesmo tempo o sere só compreendendo o ser é que consi-go compreender-me como ser no mun-do. Poderíamos aqui falar num enteespecial, o homem, e num ente geralcomo ser, o mundo, mas esta forma decompreensão assassina o pensamentode Heidegger e a sua pretensão deexplicitar a questão ser e tempo. Seria,noutras palavras, uma tremenda perdade espaço, visto que esta forma de pen-samento remete ao modelo de funda-mentação objetivista das tradiçõesfundamentalistas. A este espaço novoonde se move o ser na sua compreen-

são STEIN (1990, p.39) chamará deencurtamento hermenêutico. Assimestá definido:

A compreensão do ser nos levaa um caminho de duas mãos: semcompreensão não há ente. Nos-so acesso aos entes só nos épossível porque o Dasein com-preende o ser e não porquetemos um outro fundamentopara o conhecimento dos entes.

Cremos que com essa forma decompreensão do pensamento deHeidegger evita-se o fundamento pri-meiro ao mesmo tempo em que não seisenta da questão de fundamento. Se-gundo Stein (1990, p.39):

quando Heidegger introduz umente privilegiado, o Dasein, apa-rece um novo nível deproblematização do ser. O sernão se dá mais isolado como ob-jeto a ser conhecido; mas ele fazparte da condição essencial doser humano.

Para evitar controvérsias, falarí-amos de um fundamento originário,o ser no mundo em sua condição inevi-tável. Ou seja, não mais se explica oser como no objetivismo metafísico,categorizado e temporalizado, comofundamentado em algo que lhe justificaa existência, como Deus, por exemplo,mas como espontaneidade da existên-cia. Essa espontaneidade não é casual

'Em suas discussões em Seis Estudos, pág. 83, Stein não nomeia um método, preferindo apenas falar deuma circu/aridade hermenêutica. "O § 45 se constitui no § do método. É nele que se prepara a questão queST arrasta consigo irrespondida desde o início. Qual o método com que opera ST? ... O § 45 é o § dasituação hermenêutica. Ele é o ponto de chegada e o ponto de partida, estranhamente situado no meio dotexto." Na evolução do .pensamento deste autor observamos que esta dificuldade pareceu resolvida aofalar das "possibilidade de uma antropologia filosófica a partir da analítica existencial", num artigopublicado em Veritas, pág. 43, onde o método é nomeado como "fenomenologia hermenêuticatranscendental"

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nem causal, mas se evidencia a si pró-pria através da circularidadehermenêutica.

O espaço hermenêutico, lugaronde se mostra e acontece o ente, re-velando com isso o ser e o si mesmo(selbst), mostrou o ser na suaradicalidade, na sua frnitude (infrnita?),na sua relação com a temporalidade nomundo, a situação do ser no mundo.Temos agora um ser despido e jogadona sua nudez, não no sentido do castigobíblico "jogado fora do paraíso", mascolocado no mundo da realidade quese constitui como único horizonte depossibilidade de sua existência, semescolha, paraíso ou inferno, gerando-se a si mesmo. O ser apenas jogado nomundo. A sua opção pelo mundo é omundo, ou seja, o mundo é sua condi-ção. É claro que apanhamos aqui mui-to grosseiramente os passos de toda apreparação da analítica existencial queHeidegger executa, a análise prepara-tória da questão do ser, mas tambémnão queremos "reconstruir" passo apasso Heidegger". Apenas salientar asua "compreensão de razão" -racionalidade capaz de contrapor-se àconcepção de Habermas, conformenosso objetivo inicial no capítulo.

4CONCLUSÃOA leitura da questão ser e tem-

po de Heidegger feita por Habermas éfeita em conformidade com oparadigma da filosofia da consciência,fato que para Heidegger desde muito

tempo lhe pareceu problemático (oparadigma). Habermas se movimentadentro do campo da objetivação eHeidegger quer exatamente superareste paradigma visto que se toma pro-blemático no tratamento dispensado aoser, por colocar ainda a separaçãoepistemológica e ontológica entre o sere o ente. É, assim, uma leitura duvido-sa e arriscada, pois este paradigma doqual parte Habermas é não apenas cro-nologicamente inviável, mas sobretudoum paradigma considerado vencido porHeidegger, fato pressuposto na elabo-ração de Ser e Tempo. Toma-se incon-veniente a leitura de Habermas pelo fatode ele introduzir elementos que a prioriHeidegger já os exclui do seu campode discussões, e mesmo tentou traba-lhar prescindindo de tais elementos. Ofato de Heidegger ainda não ter se li-bertado das muitas terminologias da tra-dição, que certamente lhe angustiara,não significa a falta de clareza quantoaos seus objetivos, acertos e ganhos queefetuou em relação ao pensamentoobjetificador. O fato de ainda Heideggerse mover no terreno terminológico datradição não autoriza, por isso, aHabermas, afirmar que ele ainda estápreso ao discurso ontológico dametafisica clássica ou ao discurso mo-derno; isto constitui uma conclusãoapressada, portanto, desautorizada.

Como elemento que nos autorizaesta afirmação, tomamos a nova com-preensão heideggeriana do ser, o sercomo Cuidado (Sorge), Cura. Estaleitura só é possível de ser feita se to-

'A esse respeito Stein se pronuncia que radicalmente não é possível essa possibilidade, visto que não podehaver sinonímia perfeita. Uma argumentação aparece num artigo seu, intitulado: "Não podemos dizer asmesmas coisas com outras palavras" gentilmente cedido em sala de aula.

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mannos Ser e Tempo no seu conjuntoe nas suas intenções programáticas, enão apenas parar na primeira parte doTratado. Certamente o § 42, parágrafoda Cura, com que Heidegger coroa aanálise preparatória da questão do sere aponta para a nova etapa da elabora-ção da questão do ser, um parágrafode passagem obrigatória, já constituiindício suficiente para perceber o quan-to foi projeto de Heidegger superar odiscurso comum e ingênuo acerca doser. Heidegger inaugura de fato umnovo paradigma, pois neste se excluiqualquer fundamento exterior ao ser,qualquer adjetivo que lhe indique ori-gem exterior, seja Deus ou Mundo.Segundo Stein (1990, p.85):

A definição de homem comocuidado, que é o resultado da

analítica existencial provisória,já supõe um corte que denomi-no, na falta de um termo maisadequado, de encurtamentohermenêutico. Ao definir o ho-mem como cuidado, Heideggerjá praticou a exclusão do mundoteológico e a forclusão do mun-do natural de sua filosofia.

Dessa forma, pode parecer pro-blemático, inicialmente, o novoparadigma inaugurado por Heidegger,mas com certeza bastante recuperadordos espaços perdidos com a filosofiamoderna, ou com o pensamentoobjetificador em geral, onde tudo é re-duzido a uma das esferas do conheci-mento, de tal modo que não se podecompreender uma parte sem excluirtantas outras.

REFERÊNCIAS

HABERMAS, Jurgen. Conhecimento e. interesse. Tradução de José N. Heck.Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. 368p .

.Discurso Filosófico daModernidade. Lisboa: Dom Quixote,1990. 325p.

.Teoría de Ia acción comunicati-va, r. Madrid: Taurus Ediciones, 1999.520p.

HEIDEGGER, M. EI·Ser y el TiempoTradução de José Gaos. México: Fondode Cultura Económico, 2000. 480p.

LOPARlC, Z. "Habermas e o terror prá-tico". Revista Manuscrito, [S.L], v.13,n.2, p.l11-116, 1990.

STEIN. Emildo. Seis estudos sobre Sere Tempo. 2.ed., Petrópolis: Vozes, 1990.136p.

__ ."Possibilidades da antropologia fi-losófica a partir da analítica existencial".Revista Veritas. Departamento de Fi-losofia da PUCRS, Porto Alegre, v.45,n.l , p.37-50, mar. 2000.

30 Cad. Pesq., São Luís, v. 13, n. 1,p. 22-30,jan./jun. 2002.