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NOVOS DESAFIOS PARA AS CIÊNCIAS HUMANAS RESUMO Elizabeth Maria Beserra Coelho' Reflexão sobre a crise nas ciências sociais. Discute alguns movimentos teóricos do final do século, apontando para um equlíbrio paradigmático entre as aparentes dicotomias sujeito/objeto, ordem/desordem, razão/ sentimento, ciência/arte. Palavras-chave: ciências sociais, paradigmas, crise. SUMMARY Reflexion on the crisis ofthe Social Sciences. It discusses some ofthe theoretical movements ofthe end ofthe century, pointing to a balance of paradigms among apparent dichotomies subject!object, order! disorder, reason/felling, science/art. Key-word: social sciences, crisis, paradigms 1 INTRODUÇÃO As ciências humanas e sociais são marcadas por um recorrente estado de "crise". Como afirmou Schwartzman (1991), ninguém está contente com as ciências sociais. Alguns questionam o excesso de abstração, o fato de estas não contribuírem para a resolução de problemas sociais, outros queixam-se da secura dos conceitos abstratos, da frieza dos números e buscam resgatar a força da sensibilidade artística e lite- rária. Há também os que deploram o vale-tudo da intuição e muitos outros poderiam ser citados no que tange a essa insatisfação, cada um apresentan- do diferentes ângulos da questão. Des- sa forma, o que hoje poderíamos chamar de "crise" das ciências sociais talvez fosse melhor definido como os novos desafios que se colocam para essas ciências. As ciências sociais sempre vive- ram em um estado mais ou menos per- manente de "crise" e isto pode ser visto como um dado que tem contribuído para o seu processo de amadurecimen- to enquanto uma versão privilegiada do social. Entretanto, foi a partir da publicação do livro de Thomas Kuhn, "A estrutura das revoluções científi- cas", que a noção de crise passou a ser mais presente nas ciências sociais. O que se assiste hoje, não exclusi- vamente nas das ciências sociais mas na ciência de um modo geral, é um pro- cesso de reflexão que põe em dúvida 'Professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA. Doutora em Sociologia. Cad. Pesq., São Luís, v. 11, n. 1, p. 65-74, jan./jun. 2000. 75

RESUMO - pppg.ufma.br 6(11).pdf · publicação do livro de Thomas Kuhn, ... O ponto central de Latour é que o que dá ou não consistência e va- ... Entende que a Sociologia é

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NOVOS DESAFIOS PARA AS CIÊNCIAS HUMANAS

RESUMO

Elizabeth Maria Beserra Coelho'

Reflexão sobre a crise nas ciências sociais. Discute alguns movimentosteóricos do final do século, apontando para um equlíbrio paradigmáticoentre as aparentes dicotomias sujeito/objeto, ordem/desordem, razão/sentimento, ciência/arte.

Palavras-chave: ciências sociais, paradigmas, crise.

SUMMARY

Reflexion on the crisis ofthe Social Sciences. It discusses some ofthetheoretical movements ofthe end ofthe century, pointing to a balanceof paradigms among apparent dichotomies subject!object, order!disorder, reason/felling, science/art.

Key-word: social sciences, crisis, paradigms

1 INTRODUÇÃO

As ciências humanas e sociais sãomarcadas por um recorrente estado de"crise". Como afirmou Schwartzman(1991), ninguém está contente com asciências sociais. Alguns questionam oexcesso de abstração, o fato de estasnão contribuírem para a resolução deproblemas sociais, outros queixam-seda secura dos conceitos abstratos, dafrieza dos números e buscam resgatara força da sensibilidade artística e lite-rária. Há também os que deploram ovale-tudo da intuição e muitos outrospoderiam ser citados no que tange aessa insatisfação, cada um apresentan-do diferentes ângulos da questão. Des-sa forma, o que hoje poderíamos

chamar de "crise" das ciências sociaistalvez fosse melhor definido como osnovos desafios que se colocam paraessas ciências.

As ciências sociais sempre vive-ram em um estado mais ou menos per-manente de "crise" e isto pode ser vistocomo um dado que tem contribuídopara o seu processo de amadurecimen-to enquanto uma versão privilegiadado social. Entretanto, foi a partir dapublicação do livro de Thomas Kuhn,"A estrutura das revoluções científi-cas", que a noção de crise passou aser mais presente nas ciências sociais.

O que se assiste hoje, não exclusi-vamente nas das ciências sociais masna ciência de um modo geral, é um pro-cesso de reflexão que põe em dúvida

'Professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA. Doutora em Sociologia.

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as grandes matrizes que nortearam opensamento científico por muito tem-po.

As contribuições mais recentes dasociologia da ciência têm esmaecido aslinhas demarcandas dos limites entre asciências sociais e as chamadas ciênci-as exatas, assim como os limites entrea ciência e a filosofia.

Latour Apud Schwartzman(1991), afirmou que o conhecimentocientífico se desenvolve pela progres-siva construção de "fatos científicos"que são como caixas pretas cuja ver-dade ou adequação é dada como certapara os que as utilizam como ponto departida para outros estudos, mas cujanatureza problemática pode sempre serressaltada quando examinadas em suasorigens. O ponto central de Latour éque o que dá ou não consistência e va-lidade a estas caixas pretas não são

./ tanto suas qualidades intrínsecas inici-ais, mas seu uso progressivo atravésdo tempo e do espaço, por um númerocada vez maior de pessoas.

Para alguns autores, os métodos eprocedimentos das ciências exatas sãomuito próximos daqueles das ciênciassociais, o que reduz as diferenças en-tre as duas. Há aqueles que insistemno fato de que a prática das ciênciasnaturais e tecnológicas pode serdistinguida da prática simbólica,interpretativa e hermenêutica das ciên-cias sociais, e da própria vida social.Esta é uma das questões fundamentaisque estão hoje em pauta.

Neste artigo, pretendo examinar osaspectos mais significativos destas dis-cussões.

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2 OSNOVOSMOVIMENTOSTEÓRICOS: balanço de finalde século?

Dentre as ciências sociais, a An-tropologia é a que melhor tem sinaliza-do um deslocamento ocorrido nosparadigmas . Construída que foi, comoas demais ciências sociais, sob a égidedo modelo da ordem, engloba hoje emseus quadros teóricos proposições quedivergem do que tradicionalmente eraconsiderado o "espírito científico". Es-sas proposições, geradas no modelo da"desordem" , remetem para uma An-tropologia alternativa., comumente cha-mada de Antropologia Interpretativa. Oque significa de fato esse deslocamen-to?

A princípio, esse deslocamentopode ser identificado com ainteriorização da categoria tempo e osdesdobramentos que ela implica: histó-ria, indivíduo, subjetividade. Alguns fi-lósofos já haviam, de certa maneira,indicado o caminho que foi trilhado porGeertz (1978). Trata-se então de ad-mitir que a condição histórica do pes-quisador jamais pode ser anulada, masdeve, ao contrário, ser resgatada comocondição do conhecimento.

Esse deslocamento significa tam-bém não temer a aproximação com afilosofia. Em outras palavras, podemosfalar, parafraseando Bourdieu, da So-ciologia enquanto disciplina reflexiva,portanto bem mais próxima da filoso-fia. Significa ainda relativizar a prima-zia do conhecimento científico tido comoexato, verdadeiro e absoluto.

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Geertz concebe a ideologia, o sen-so comum e a ciência como sistemasculturais. As diferenças entre ciênciae ideologia, devem ser procuradas nasespécies de estratégia simbólica queenglobam situações que elas represen-tam, respectivamente. A ciência nomeiaa estrutura das situações de tal formaque revela, no conteúdo de sua atitude,seu desinteresse. Seu estilo é contido,parcimonioso, resolutamente analítico,evitando os artifícios semânticos queformulam de maneira mais efetiva osentimento moral. A ideologia o faz demaneira tal que revela em sua atitudeum compromisso com as situações. Seuestilo é ornamental, vívido, deliberada-mente sugestivo, objetivando o senti-mento moral através dos mesmos arti-fícios que a ciência evita. Ela procuramotivar a ação.

A ciência não necessariamente seconfronta com a ideologia e o sensocomum. São formas diferentes de res-postas à falta de informações neces-sárias.

"Um ideálogo é apenas umpobre cientista social e umcientista social é um pobreideólogo." (GEERTZ,1978, p.203).

A ideologia está livre das amarrasda ciência, é de uma outra ordem.

Do senso comum, afirma que háinúmeras razões para trata-lo como umconjunto relativamente organizado depensamento reflexivo:

"Si le sens commun estautant une interprétationdes caracteres peinture,I'epistémologie, ou quoi quisoit, alors il est comme eux,

historiquement construit et,comme eux, soumis à desnormes de jugementhistoriquement définies. "(Geertz, 1986, p.97)

Afirma ainda que o senso comumpretende uma explicação das coisas queatinja o coração das coisas. Seria comobuscar atingir a verdade para além dailusão, atingir as coisas como elas são.

O senso comum, por apresentar ascoisas diferentemente, representa omundo como um mundo familiar, quecada um pode e deve reconhecer, e nointerior do qual cada um encontra-se,por SI mesmo.

O senso comum seria aquilo queresta quando todas as formas mais ar-ticuladas de sistemas simbólicos têmesgotadas suas tarefas, o que perma-nece da razão, quando suas realizaçõesmais sofisticadas são postas de lado

Essas colocações de Geertzrelativizam sobremaneira o lugar da ci-ência face a outras formas de explica-ção da realidade. Rompem com aconcepção positivista e originária deciência. Elegem a significação comofoco privilegiado da investigação e su-gerem, por outro lado, algumas preo-cupações. Uma delas seria como evitaro risco do interpretativismo?

Quéré (1992), ao tentar especifi-car o lugar e a natureza da interpreta-ção em sociologia, põe em questão aidentidade dessa disciplina. Entende quea Sociologia é uma ciência que, por umlado, tem por objeto uma realidade quese auto interpreta e que se organiza ese mantem na e pela interpretação desi mesma ; por outro lado não alcançao domínio de seu objeto a não ser por

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intermédio da compreensão e da inter-pretação.

Admite Louis Quéré que devidoao fato de ser uma ciência que produz,quase exclusivamente, interpretações eestas interpretações serem elas mes-mas sujeitas à interpretação, há umagrande tendência a engendrar o disenso.Entretanto, reconhece Quéré, que a tra-dição sociológica aderiu, por muito tem-po, à tese da unidade da ciência,tomando para si os preceitos das ciên-cias exatas. Mas, esse movimento nãose deu de forma hegemônica pois,como tem sido constatado, desde o sé-culo passado, vozes se levantavam emdefesa da especificidade das ciênciasdo homem. Reclamava-se justamenteo reconhecimento do caráter auto-interpretativo e auto-descritivo da rea-lidade social, recomendando-se que asciências do homem e da sociedade fos-sem concebidas como "ciências da in-terpretação". Outras vozes, levandoem conta o caráter significante da ati-vidade social, entendiam ser tarefa daSociologia compreender, pela interpre-tação, a atividade social e explicar, deforma causal, seu encadeamento e seusefeitos.

Entretanto, esse novo movimentoque, a cada dia adquire mais adeptos, équestionado por Quéré. A favor do ar-gumento hermenêutico ele situa o fatode que o sentido "experimentado" ficacompletamente truncado no momentoem que é reduzido às reações"descoloridas"de uma realidade objeti-va, ou ainda, às realidades substanciaissituadas na mente das pessoas. O sen-tido "experimentado"fica desprovido desua natureza intersubjetiva e de sua di-

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mensão constitutiva; o senso comumtoma-se um simples caso de conver-gência de crenças e de valores dosindivíduos.Situa ainda que a observa-ção, por si só, comporta uma interpre-tação: implica determinar o que está emquestão em uma dada ocorrência, im-plica considera-Ia uma coisa ou outrae, em última instância, identifica-Ia.Contra a hermenêutica Quéré situa orisco de uma nova redução:

"Aquele que quer compre-ender a atividade socialatravés da interpretação,tomando como modelo aexegese textual, se vê obri-gado a demonstrar que épossível transferir para aação os traços essenciaisde um texto, isto é, trataressencialmente a açãocomo um objetivação dosentido.suscetivei de seranalisada da mesma manei-ra que a objetiv ação desentido que constitui umtexto. Mas essa identifica-ção da ação com o textotem, ao meu ver, um grandeinconveniente: o de abor-dar a ação sob o aspectode seu acabamento, comoobjeto quase autônomo,disponível para uma com-preensão por interpretaçãoe, portanto, o inconvenien-te de subtrair à análise omovimento de realizaçãodessa ação pelos protago-nistas que agenciamconjuntamente seus deta-lhes, no quadro de uma

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interação que organizamconjuntamente sob a basede interpretações de seusatos e falas respectivas."(Quéré, 1992, p.57).

Ainda contra o argumento herme-nêutico, Quéré levanta a questão do ris-co de se ver proliferar, de forma ilimi-tada, os discursos e comentários, semque seja possível fazer referência a umcritério partilhado intersubjetivamentepara avaliar sua pertinência ou justeza.Isso porque o específico de uma inter-pretação é não poder ser verificável.Levanta também o alerta com relaçãoà renúncia, sempre contida no argumen-to hermenêutico, à toda intenção deconhecimento objetivo e teórico domundo social.

E propõe uma alternativa. Afirmaque o fato de que a atividade socialsignificante só possa ser apreendidapela compreensão e pela interpretaçãonão implica fixar para a Sociologia umatarefa de interpretação. Sugere, então,uma Sociologia que se encontra no pro-grama da etnometodologia: um corres-pondente sociológico-empírico da críti-ca hermenêutica ao positivismo, quereconhece a "situação hermenêuticafundamental"sem conceber-se comouma ciência da interpretação. Essamaneira de tematizar sociologicamen-te a situação hermenêutica fundamen-tal implica um certo tipo de tratamentoda dimensão significante da ação quese caracteriza por três traços: primei-ro, o fato de que sentido e racionalida-de estão estreitamente vinculados,ouseja, compreender o sentido de umaação é apreender sua racionalidade in-terna, que é sempre local, determiná-

vel a partir de seu lugar na ordem tem-poral e organização seqüencial do cur-so da ação; segundo, que o sentido éuma realidade pública e não algo ocul-to que deva ser revelado; terceiro, quequando se deixa de lado o ponto de vis-ta da realização em curso, o sentidotransforma-se em algo oculto, fugidio,de difícil especificação e variável se-gundo a situação.

Alguns argumentos foram levan-tados contra essa proposição. Um de-les sublinha o limite constitutivo, argu-mentando que ao se buscar dar contado mundo social apenas sob o aspectodas propriedades que ele possui enquan-to objeto de experiência dos sujeitos,elacondena-se a excluir de seu campo deanálise tudo que possa determinar doexterior a esfera de ação mediatizadapor uma "Lebenswelt". Outro argu-mento qualifica essa proposição comoum positivismo que ignora a si mesmo,que implica novamente a redução daação significante a comportamentosobserváveis.

Quéré insiste que essa maneira detomar a dimensão significante e racio-nal da ação como um fato público pos-sui uma importante vantage!ll: permiteobjetivar a experiência sob o aspectode propriedades formais da ação, re-enviando às operações de organizaçãoda interação e a um saber social, frutoda experiência.

3 RUMO A UMA ESTÉTICACOGNITIVA PARA A SO-CIOLOGIA

Menezes (1995), ao referir-se àstransformações que têm marcado opensamento científico nos últimos tem-

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pos, remete para a elaboração de umaimagem infinitamente mais complexa doreal e de uma consciência da pluralida-de dos modos de produção dos conhe-cimentos e das significações. Esse pro-cesso substituiria a concepção do uni-verso como uma imensa máquina, cujacomposição e cujo funcionamento po-dem ser traduzidos em leis determinís-ticas expressas na linguagem das ma-temáticas clássicas e o modelo da dis-função que encara o conhecimentocomo racionalidade que opera com adicotomia sujeito/objeto, ordernldesor-dem, certeza/ erro, razão/fantasia, neu-tralidade/paixão, ciência/ética etc.

Afirma entretanto, que em cadaépoca histórica operamos e convivemoscom antigos arquétipos que subsistemou deixam traços nos modelos domi-nantes. Convivemos também com ar-quétipos atuais, em plena vigência e comarquétipos que estão em gestação e cujoalcance ainda não percebemos, masque já átuam na ultrapassagem dos ve-lhos e na organização de novos mode-los e novas concepções. Admite que atransformação do pensamento ociden-tal não conseguiu incorporar inteiramen-te o novo arquétipo de ciência em viasde constituição que assimilarádialeticamente as noções tradicional-mente opostas e excludentes de caos ecosmos.

Critica os burocratas da ciênciaque ainda estão atrelados ao dogmaclássico da separação entre ciência efilosofia. Entende que a ciência preci-sa reatar suas relações orgânicas coma filosofia, do mesmo modo que a filo-sofia deve engajar-se no diálogo comas ciências.

"Ciência sem consciênciaou consciência sem ciênciaconstituem projetos insufi-cientes e mutiladores. Umaatividade científica que sepretenda exclusivamenteempírica ou uma reflexãofilosófica puramenteespeculativa são ambasineptas." (MENEZES, 1995,p.29).

Ao admitir que um novo arquéti-po de ciência anuncia-se nas brechasdo velho paradigma, levanta a questãosobre quais os ideais que surgirão emseu bojo.

É ainda Bezerra de Menezes que,propõe uma estética cognitiva para aSociologia. Essa proposta pretende su-gerir uma alternativa epistemológica eum recurso teórico para a Sociologia,ao situar a superação, via dialetizaçãodos termos, das dicotomias radicais datradição positivista: sujeito/objeto, ra:zJio/sentimento, extrínseco/intrínseco, ciên-cia/arte.

Nesta perspectiva, a fronteira en-tre as artes e as ciências pode serabolida. Não há um mundo tal comoele é. Existem tantos mundos quantassão as maneiras plausíveis de descrevê-10, vê-lo, pinta-lo. Nos sistemas de re-presentação científicos ou artísticos, oque existe só pode ser apreendidomediante um quadro de referência par-ticular. Conclui afirmando que toda in-vestigação científica, artística oureligiosa deve apoiar-se necessariamen-te, pelo menos em parte, numa crençapessoal e num sentido não-racional. Poroutro lado, todo estudo é sempre em-preendido a partir de um ponto de vista

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particular. E se for bem conduzido nãoserá uma redução, mas sim uma trans-posição para um outro sistema simbóli-co.

4 O LUGAR DA TEORIAGERAL

Diante da insatisfação frente apossibilidade de construção de uma te-oria geral, Alexander (1987) desenvol-ve uma argumentação interessante, queparte das tensões entre ação/estrutura,sujeito/objeto, micro/ e macro/teoria.Seu propósito é defender o projeto deuma teoria geral.

Ao enfatizar o disenso que carac-teriza as ciências sociais argumenta quetal disenso não precisa levar aorelativismo radical pois a possibilidadede conhecimento racional permanece,mesmo se se abandona o ideal de obje-tividade empiricista. Essa perspectivanão nega, necessariamente, nem a pos-sibilidade de construção de leis geraisde processos sociais, nem a busca depredições relativamente acertadas.

Entende Alexander que os objetosde estudo nas ciências sociais são es-tados mentais ou condições que envol-vem estados mentais.Por essa razão, apossibilidade de confusão entre os es-tados mentais do observador e os doobservado é endêrnica. A resistênciaao simples acordo sobre referentesempíricos também emana do caráterdistintivamente valorativo das ciênciassociais. É por causa desse desacordo,empírico e teórico, que as ciências so-ciais dividem-se em tradições e esco-las.

Por todas essas razões o discurso,e não apenas a explicação, toma-se um

traço importante no campo dessas ci-ências. O discurso, no seu entender, _visa à persuasão pelo argumento maisdo que à predição. O campo real dodiscurso das ciências sociais oscila en-tre o discurso racionalizante deHabermas (1973) e o discurso arbitrá-rio de Foucault (1970). Essa onipresençado discurso e as condições que a cri-am, geram a sobredeterrninação da ci-ência social pela teoria e suasubdeterminação pelo que é tomadocomo fato.

Situa as tradições sociológicas nadicotomia entre referência interna ereferência externa da ação. Essadicotomia opõe posições individualis-tas e coletivistas. Os teóricos da Soci-ologia, sejam individualistas oucoletivistas estão, como qualquer cida-dão, comprometidos com a autonomiado indivíduo. É a independência do in-divíduo que toma a ordem problemáti-ca, e é essa problematização da ordemque toma a Sociologia possível.

Ao negar radicalmente o poder daestrutura social, a teoria individualistanão presta um serviço a liberdade. Elaencoraja a ilusão de que os indivíduosnão têm necessidade de outros ou dasociedade como um todo. Também ig-nora que as estruturas sociais podemser indispensáveis à liberdade. A teo-ria coletivista, por reconhecer a exis-tência do controle sobre o social, podesubmetê-l o à análise explícita. Nessesentido representa um avanço teóricosobre a posição individualista. Existem,entretanto, muitos tipos de teoriascoletivistas, que variam segundo a for-ma de compreender a racionalidade daação.

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Jeffrey Alexander remete ao focometodológico e empírico da disciplina arenovação maciça da teoria individua-lista, que tem sido considerada comoum renascimento da "micro sociologia".Mas, por outro lado, ele aponta paraum movimento igualmente forte nos tra-balhos tipo macro, coletivista. Entretan-to, nos últimos tempos, começou a to-mar forma um movimento marcadopelo esforço de juntar novamente a te-oria sobre a ação e a estrutura.

Desenvolvimentos no sentido desistematizar as relações entre atores esistemas sociais ganharam corpo. Essefoco de transformação tem levado ostécnicos a não mais considerarem asações individuais como objetos de aná-lise em si mesmos,mas como condiçõesiniciais para a operação de mecanis-mos estruturais.

Para Alexander, o novo movimen-to teórico na Sociologia avança em di-versas frentes e sob vários nomes. Eacredita que continuará a fazê-lo en-quanto não se extinguir a energia deseu movimento pendular. De seu pontode vista, a chave para esse avanço con-tinuado está num reconhecimento maisdireto da centralidade do significado dacultura. No entanto, a teorização sobrea cultura não poderá degenerar em ca-muflagem para o idealismo.Nem deveser cercada por uma aura de objetivi-dade que esvazia acriatividade e a re-belião contra as normas.

5 CONCLUSÃO

As colocações situadas ao longodeste artigo apontam nitidamente paraum repensar sobre o lugar das ciências

sociais, seu objeto, suas teorias, seusmétodos. Como havia afirmado na in-trodução, muito embora alguns autoresinsistam em falar de uma crise das ci-ências sociais, reafirmo a posição deque se trata de um desafio que permiteaflorarem novos enquadramentos.

Bruni (1988), por exemplo, admiteque possamos falar em umacrise,exclusivamente,da Sociologia, cri-se esta relacionada aos impasses domarxismo, que desde a década de ses-senta tomou-se parte integrante dessadisciplina e, ainda, aos desgastes dofuncionalismo e aos problemas levan-tados pelos novos movimentos sociais.A grande questão que se coloca é anecessidade de uma flexibilização doobjetivismo, de modo a pensar a socie-dade como pluralidade de dimensõesintercruzadas, que não possuem essên-cia própria e fixa, mas que se fazem edesfazem ao sabor das 'múltiplas açõesde sujeitos individuais e coletivos, queassim se afirmam na luta, mas que nãomais constituem para a teoria uma fi-gura plena, homogênea, estruturada,racional e integrada. Na sua concep-ção, por não se prender a esquemastotalizantes e abstratos, tal como temsido o caso da Sociologia, a Antropolo-gia não tem vivido essa crise. Ao ten-tar recuperar a visão interna dos sujei-tos sobre si próprios,o mundo e a soci-edade, privilegiando suas falas, procu-rando construir a visão do mundo cul-turalmente articulada a partir dos seuspróprios depoimentos, e não a partir deuma concepção de sociedade externae acabada, a Antropologia tem obtidoprestígio e sucesso.

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De fato, muito mais que a Antro-pologia, a Sociologia atrelou-se a mo-delos generalizantes. Sua incursão peloespecífico, o particular, tem sido insig-nificante face ao peso das grandes te-orias. Essa constatação contem umparadoxo pois, exatamente por não sesubmeter totalmente aos modelos ge-neralizantes a Antropologia foi por mui-to tempo relegada a categoria de não-ciência. Hoje, essa mesma disciplina éprestigiada por essa razão, na medidaem que há um novo movimento no ar,um movimento que não se restringe aomundo das ciências. sociais,mas queatinge todo o modelo de ciência que seconstruiu ao longo do tempo. Esse mo-vimento parece ser unânime no questi-onamento do cientificismo positivista.

Alexander e Quéré preocupam-se em encontrar alternativas que me-lhor equacionem a tensão entre ação eestrutura, particular e geral. Para Ale-xander o conceito de cultura seria umaopção pelo fato de que a cultura é cria-ção e remete para o inusitado. ParaQuéré, a tentativa de captar o estrutu-ral através do singular pode ocorrer viaetnometodologia.

As colocações de Geertz (1986) eas de Menezes (1995) apontam paraum mesmo rumo: a ciência é um siste-ma cultural e portanto situado histori-camente. A noção de história aí estádesvinculada dos princípios naturalistasque a transformavam em história "semsujeito". Apontam ainda para uma ne-gação do discurso cientificista pautadona razão positivista,trazendo à tona a

subjetividade que assume sua formasocializada de inter-subjetividade. Intro-duzem o caráter parcial e particular dasteorias, percebendo-as como constru-ções simbólicas, quiçá ,metafóricas.Aproximam a ciência da arte e da filo-sofia.

A percepção de Bezerra de Me-nezes implica numa tentativa de inte-gração entre as teorias da correspon-dência, que pretendem dar conta dosprocessos que artistas e cientistas utili-zam para copiar ou imitar a realidade,com as teorias formalistas ou estrutu-ralistas que exploram as propriedadesendógenas das teorias científicas ou dasobras de arte ,transcendendo-as na pers-pectiva de uma estética cognitiva.

A percepção de Geertz pareceapontar unicamente para a questão dosignificado descartando, portanto, apossibilidade da construção de uma te-oria geral da cultura.

O contato com o posicionamentosdesses autores permitiu perceber que,defato, o que ocorre hoje nas ciênciassociais é muito mais um "equilíbrio pa-radigmático", que significa a convivên-cia de paradigmas simultâneos, do queum crise de paradigmas. Ao lado disso,alguns dos autores apontam para a ina-dequação de algumas teorias às reali-dades ou problemas investigados. Poroutro lado, todos assumem uma críticaao modelo tradicional de ciência, COllS-

truído com base na razão positivista.Buscam apontar alternativas que, nemsempre são suficientemente explicita-das.

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