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RETRATO DO ARTISTA COMO CATAsTROFE Simone Curi Tres cisnes, e mais alguns indiscernfveis, nadam em uma lagoa cercada de rochas, com uma ilha central onde despontam arbustos ressequidos. Tudo aparece af como deve ser. As imagens do primeiro e dos ultimos cisnes se embarac;:am com ados troncos, enroscadas por serpentes e tentclculos, escoradas como um rel6gio mole. Quanto ao cisne do meio, nao ha duvida, 0 pescoc;:o f1exfvel parece uma tromba e a penugem das asas se reproduz em rugosas orelhas. 0 espelho d'agua opera a miragem: 0 cisne e um elefante. A descric;:ao e de um quadro de Salvador Dali que, lido por Barbara Cassin, ilustra um dos dois destinos da identidade 1 Ou se triunfa no progresso dialetico, perdendo-se na alteridade - do identico e do nao-identico, isto ou aquilo, unidade do Absoluto, ou bem, se reproduz, se repete, se reitera, e...e...e. Um cisne de brancura alva, deus grego sedutor, canto de morte, encarnac;:ao da poesia e outro, de pele espessa, ex6tico, barbaro, sabio em sua indiferenc;:a. Corpos de extrema exponibilidade capturados pelo olho, ou melhor, pela palavra, em recurso soffstico e catastr6fico, dizendo: "Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu"2. Mas como diz Virilio, 0 reflexo luminoso nao e um limite, mas um lugar de passagem 3, acrescenta Clarice: mas "Quem se aprofunda num espelho, quem ve mais do que a superffcie do espelho, esta querendo outra coisa"4. Na micro-percepc;:ao, olhar de grande alcance, revelando 0 que se perdeu na imensidao dos atos automatizados, instrumentalizados na economia objetivadora do que se deve ver. Aquilo que 0 olho esqueceu, e que todavia esta nele, uma sensac;:ao perdida, um outro m'odo de olhar: Antes do aparecimento do espelho a pessoa nao conhecia 0 pr6prio rosto senao refletido nas aguas de um lago. Depois de certo tempo cada um e responsavel pela cara que tem. Vou olhar agora a minha. Eum rosto nu. Equando pense que inexiste um igual ao meu no mundo, fico de susto alegre. Nem nunca havera s . Af esta a pessoa, presente, inteligfvel, onde ela acontece: materia organica, com forma e cor, tensao de musculos, textura da pele, em ac;:ao contfnua. A condic;:ao da face e essencial, de onde se olha, escuta, fala. Face, facies e, sobretudo, vultus, significam 0 aspecto, 0 que se mostra ou aparece. Existe para adiante, vetorial, de carater projetivo, programatico, nele se ve a intenc;:ao imediata: a expressao, representando um estado de animo, se coaduna com uma significac;:ao, fundamento biogrMico, a vida pessoal, 0 projeto vital. ja a etimologia do rosto, rostrum, e bico das aves e, secundariamente, 0 focinho dos animais, e por extensao, a proa do navio. Muri 10 Mendes, na especie de autobiografia que e A Idade do serrote (1965-66), canta suas 'obsessoes' mftico-femininas. 0 olhar precoce do menino experimental retalha as cabec;:as, rostos e corpos, re-montando suas divindades naquilo que mostram em superffcie: Cedo atrafram-me esfinges, as gargulas, as medusas, as mascaras, as mascarilhas, as gigantas, as figuras de proa, as demonias, as participantes das metamorfoses de Siva ou Vishnu, as secerdotisas; paralelamente as pessoas em carne e osso, via figuras e pessoas mfticas 6. I/ha de Santa Catarina - 1 0 semestre de 2005 49

Retrato do artista como catástrofe

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RETRATO DO ARTISTA COMO CATAsTROFE

Simone Curi

Tres cisnes, e mais alguns indiscernfveis, nadam em uma lagoa cercada de rochas, comuma ilha central onde despontam arbustos ressequidos. Tudo aparece af como deve ser. Asimagens do primeiro e dos ultimos cisnes se embarac;:am com ados troncos, enroscadas porserpentes e tentclculos, escoradas como um rel6gio mole. Quanto ao cisne do meio, naoha duvida, 0 pescoc;:o f1exfvel parece uma tromba e a penugem das asas se reproduz emrugosas orelhas. 0 espelho d'agua opera a miragem: 0 cisne e um elefante.

A descric;:ao e de um quadro de Salvador Dali que, lido por Barbara Cassin, ilustra umdos dois destinos da identidade1 • Ou se triunfa no progresso dialetico, perdendo-se naalteridade - do identico e do nao-identico, isto ou aquilo, unidade do Absoluto, ou bem,se reproduz, se repete, se reitera, e...e...e. Um cisne de brancura alva, deus grego sedutor,canto de morte, encarnac;:ao da poesia e outro, de pele espessa, ex6tico, barbaro, sabio emsua indiferenc;:a. Corpos de extrema exponibilidade capturados pelo olho, ou melhor, pelapalavra, em recurso soffstico e catastr6fico, dizendo: "Nem meu espelho reflete mais umrosto que seja meu"2.

Mas como diz Virilio, 0 reflexo luminoso nao e um limite, mas um lugar de passagem 3,

acrescenta Clarice: mas "Quem se aprofunda num espelho, quem ve mais do que a superffciedo espelho, esta querendo outra coisa"4. Na micro-percepc;:ao, olhar de grande alcance,revelando 0 que se perdeu na imensidao dos atos automatizados, instrumentalizados naeconomia objetivadora do que se deve ver. Aquilo que 0 olho esqueceu, e que todavia estanele, uma sensac;:ao perdida, um outro m'odo de olhar:

Antes do aparecimento do espelho a pessoa nao conhecia 0 pr6prio rosto senao refletidonas aguas de um lago. Depois de certo tempo cada um e responsavel pela cara que tem.Vou olhar agora a minha. Eum rosto nu. Equando pense que inexiste um igual ao meuno mundo, fico de susto alegre. Nem nunca haveras.

Af esta a pessoa, presente, inteligfvel, onde ela acontece: materia organica, com forma e cor,tensao de musculos, textura da pele, em ac;:ao contfnua. A condic;:ao da face e essencial, deonde se olha, escuta, fala. Face, facies e, sobretudo, vultus, significam 0 aspecto, 0 que semostra ou aparece. Existe para adiante, vetorial, de carater projetivo, programatico, nele seve a intenc;:ao imediata: a expressao, representando um estado de animo, se coaduna comuma significac;:ao, fundamento biogrMico, a vida pessoal, 0 projeto vital. ja a etimologia dorosto, rostrum, e bico das aves e, secundariamente, 0 focinho dos animais, e por extensao,a proa do navio.

Muri 10 Mendes, na especie de autobiografia que e A Idade do serrote (1965-66), canta suas'obsessoes' mftico-femininas. 0 olhar precoce do menino experimental retalha as cabec;:as,rostos e corpos, re-montando suas divindades naquilo que mostram em superffcie:

Cedo atrafram-me esfinges, as gargulas, as medusas, as mascaras, as mascarilhas, as gigantas,as figuras de proa, as demonias, as participantes das metamorfoses de Siva ou Vishnu, assecerdotisas; paralelamente as pessoas em carne e osso, via figuras e pessoas mfticas 6.

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Gargula e puro rosto, ja Medusa tem todo seu poder concentrado na cabe<;a e rosto, cabelose olhos terrificantes. Murilo traz imagens que consagraram 0 feminino como bestial, voraz,depredador do masculino. Entre as representa<;oes c1assicas se poderia agregar a esfinge- monstro feminino que abra<;a matando, cruel cantora 7. As sereias simbolizam 0 inferiorda mulher e a mulher como 0 inferior. As harpias - horrlveis aves avidas de sangue e sexo­sugam 0 sangue dos grossos pesco<;os masculinos e Ihes arrancam as entranhas. As serpentes- basta dizer, genese do pecado. As amazonas unem-se somente com estrangeiros, a quemmatam logo fecundadas, somente criam as filhas, mutilando e descartando os filhos. Asbacantes - lascivas, apaixonadas por Dionisio, entregues ao culto orgiastico - seres entre 0

humano e 0 animalesco, descritas por Euripides como verdadeiras cadelas raivosas.

Tantas outras, figuras presentes nas antigas lendas, em atualfssimas legendas. Elasrepresentam almas - inconsciente - (nascidas nas profundezas do seio de Gaia), por efeitode determinados Ilquidos, recuperam, ao menos por instantes, sua consciencia: 0 vinho,o mel, a agua, mas, sobretudo 0 esperma, 0 sangue - porque neles esta a vida. Mulheresmalditas, ambfguas, espectrais, nelas confundidas a vida e a morte, como descreve Baudelaireem "As metamorfoses do vampiro":

A meu lado, em lugar de manequim altivo,No qual julguei ter visto a cor do sangue vivo,Pendiam do esqueleto uns farrapos poierentos,Cujo grito lembrava a voz dos cata-ventos 8

Toda sorte de mascaras e feiticeiras lidas nas personas do teatro do poeta prosador. EstariaClarice Lispector entre aquelas - rebatizada, por Murilo, de Hortensia, camuflada emmulher-flor (nao outra, senao, Lis pector)? Explica, ela, "a musa secreta da pre-historia" (ado poeta mesmo), "irma gemea do Mascara de Ferro ou de H6Iderlin-Scardanelli" (do poetada maquina do mundo, do poeta em louco e derradeiro pseudonimo) "ou talvez ainda umadas confidentes secretas deJulien Green e de Lucio Cardoso"9 (mais biografico imposslve!!).Semi-secreta em seu silencio, uma figura de proa, melhor, uma das "musas inquientantes"pintada por De Chirico, um dos seus "manequins de um mundo neoplatonico", como dizMurilo 10.

a retrato que pinta De Chirico de Clarice, ja muito distante daquela sua primeira fase depintura metaffsica (data de 1945), e mascara alheia em rela<;ao a quem Ihe concede vidae sustenta<;ao. Nele, todo 0 complexo relato das mudan<;as, de fortuna e de infortunio,transcendido. Entretanto, nesse rosto se pode reconhecer a mais Intima e recondita identidade.Dramatis personae, do latim "mascara": aquela atraves da qual ressoa a voz do ator ouprotagonista, personare. Ganhando voz pos-fato, numa carta dirigida as irmas, 0 retrato "sode cabe<;a, pesco<;o e um pouquinho de ombros. Tudo diminuldo". Relata ainda indefectlvelsegredo, a esfinge num "vestido de veludo azul da Mayflower" 11. A fala da esfinge a tornahumana, humano no entanto que a Esfinge nao cabe decifrar 12.

Em exflio de suas dimensoes imediatas e naturais, um rosto desligado de tudo, pousandoassim no nada, para Dali, espectral, a mulher desmontavel que ganha um programa:

Hoje anuncio que todo novo atrativo sexual das mulheres procedera da posslvelutilizac;ao de suas capacidades e recursos espectrais, e dizer, de sua posslvel dissociac;ao,decomposi<;ao carnal e luminosa. 13

Assim pois se 0 rosto e referencia - nele se podendo ver, rever, perder - construc;ao, eigualmente anulac;ao, ainda que simbolica, instantanea. Ja 0 animal se tem expressaofacial, nao e significativa. Ausencia de significa<;ao tem a ver com a carencia de futuridadee projeto vital. Porem, se essas caracterlsticas pertencem ao humano, ha contamina<;oes,absorc;ao das feic;oes do homem no animal, quando tambem acontece 0 inverso. Nao paracaso escreve 0 narrador-Kafka: "um estilha<;o feriu Gregor no rosto" 14, a referencia e umaquebra humana no processo de animalizac;ao de Gregor. Aqui, na aparencia de domestica<;ao- ou bestial izac;ao - atendendo por nome humano, na abdica<;ao de qualquer projeto vital,esta a macaca Lisette que

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Tinha saia, brincos, colar e pulseira de baiana. Eum ar de imigrante que ainda desembarcacom 0 traje tfpico de sua terra (...) era mulher em miniatura 15.

Menos que devir-mulher do animal, ou devir-animal da mulher, a remissao e antes em direc;aoapropria historia, fabula biografica, suficientemente lembrada pelas imagens simiescas. Amulher-miniatura, com dois meses de vida que chega a um porto brasileiro, que se ve, evista como um outro: "nada sei sobre essa viagem de imigrantes: devfamos todos ter a carados imigrante de Lasar Segall"16. Estrangeiros, desterrados, como 0 pequeno animal, caras deoutros costumes, olhares em suspensao. Segall, assim como a macaquinha, inspira a visaode chegada. Uma crianc;a futura, leitora, reencontra no rosto de hoje, 0 da mae-narradora,um fundo que a leva constatar: mamae, "Voce parece tanto com Lisette!" 17. Fundindo numrosto as imagens que conhece, e as que ignora. Oeste modo, 0 prindpio de identidade - si­mesmo - com a entrada no outro, catastrofa.

Uma outra vez:

Vejo a nordestina se olhando ao espelho e - um ruflar de tambor - no espelho aparecemeu rosto cansado e barbudo. Tanto nos nos intertrocamos la.

Rodrigo SM reescreve Rimbaud: je est un autre de I'autre. Relac;ao que aparece em antigorelato c1ariceano, dos anos 40, "Obsessao", no qual compreende Cristina:"Se abolisse Daniel,seria um espelho branco" 19. Apagamento levado ao plano de morte, confirmado em "Ele mebebeu" (A Via crucis), ou ao nfvel escatologico, quando a bela e convertida em inesperadachaga, aberta, amorfa. Ou na saga de uma persona, Loreley em sua Aprendizagem. 0 maisfamiliar transformado em algo monstruoso, desprovido de sentido: 0 rosto, assim comoespelho, em opacidade, desidentifica. Em repentino descredito aos contornos, estranham­se naquilo onde melhor se reconhecem. Perda total da abreviatura da realidade pessoal,minuciosamente construfda, arrasta, ja muito cedo, as meninas, em seus devires.

Ofelia, a menina seria, desconhece a vida que nao domesticada, calculada, enclausurada.Diz a personagem-narradora, mulher que recorda: "ela dava-me conselhos, com seus oitoanos altivos e bem vividos". Universo da praticidade que nao e 0 que faz a menina devir­mulher, mas tal absorc;ao traz a imagem cristalizada do bloco-mulher, dona de um saberque a legitima junto a uma linhagem: a correta empanada de legumes e sem tampa, a justaquantidade de verduras a ser compradas ate a pr6xima feira, etc. Para Ofelia, deparar-se como pinto de Pascoa, no chao da cozinha, e deixar ver em si "a grande tendencia arapina" 20- 0 que poe em crise sua pr6pria domesticidade. Do mesmo modo, a imitac;ao para Laura,prindpio que internaliza como perigo, a tentac;ao do outro: a perfeic;ao da rosa, a feic;aode Cristo.

Na aquisic;ao dessa consciencia estetica do rosto, da iconografia crista21 - que soube juntara experiencia da imagem com a experiencia mfstica - espiritualiza-se, e dizer, demoniza:no rosto impressos 0 vfcio e a virtude. A primeira imagem impressa e justamente a da facede Cristo, gravada em sangue - imagem perfeita e verdadeira - vera icon. Jogo de palavrasque acaba por atribuir amulher anonima que oferece 0 pano a Jesus, um nome, Veronica.

Portanto, a grande pretensao e tentar imitar esses rastros, qualidades do impossfve!. Ascese,desejo de esvaziamento que, numa, fara encontrar a crianc;a (na morte do pinto, a morte darazao herdada por Ofelia), noutra, a pr6pria desrazao, Laura perde 0 contorno, linha soltade um trem que descarrilha. Cada qual com seu totem, a perda das definic;oes do rosto deantes diz sobre 0 acontecer (se), do traumatico e doloroso dar-se conta (de ser, de nao poderser, de estar sendo). Hecatombe permanentemente re-atualizada no relato.

Ainda assim, um centro, de certezas e verdades, de um corpo-rosto, sempre retorna,reproduzindo 0 padrao do desejavel, do aceitavel, do subordinavel. Espelho que coloca osprindpios do aceito e do desviante:

GI6ria era toda contente consigo mesma: dava-se grande valor. Sabia que tinha 0 sestromolengole de mulata, uma pintinha marcada junto da boca, s6 para dar uma gostosura, eum buc;o forte que ela oxigenava. Sua boca era loura. (...) Gloria tinha um traseiro alegree fumava cigarro mentolado para manter um hal ito bom nos seus beijos interminaveis

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com Olfmpico. Mas la um dia pos-se a olhar e a olhar e a olhar Macabea. De repentenao aguentou e com um sotaque levemente portugues disse:

- Oh mulher, nao tens cara? 22

Montavel e oxigenada, como uma boneca, Gloria so pode conceber uma cara como asua. Gilberto Freyre, sobre a influencia dessa loirice na cultura brasileira, assinala que, noseculo passado, como presente de aniversario, as meninas ganhavam uma boneca que "eraa glorifica<;ao do alvo e louro como insfgnias de um tipo superior de pessoa". Aparenciaeuropeia, Gloria, Ariana, contra Macabea, "sol amorenizante. Brasilerizante" 23. No quetange especificamente a boneca, primeira identifica<;ao da menina na infancia, se sabe queMacabea, mulher-infante, jamais teve uma - boneca e infancia. Como avisa seu narrador,e a Iiteratura de cordel se pronuncia: Macabea

Entao costumava fingir que corria pelos corredores de boneca na mao atras de uma bola erindo muito. A gargalhada era aterrorizadora porque acontecia no passado e so a imagina<;aomalefica a trazia para 0 presente, saudade do que poderia ter sido e nao foi 24.

Ja Pequena Flor, pigmeia africana, a menor mulher do mundo, e tomada como boneca pelasociedade industrializada, quando surge em imagem, colorida, de corpo inteiro, no jornal dedomingo. Assim, esse pequeno ser vivente desperta1cobi<;a nos leitores, um menino espertodiz (se pudesse te-Ia): - "E a gente entao brincava com ela! A gente fazia dela 0 brinquedoda gente, heinl". A mae, entao, ouvindo isso, lembra da historia que uma empregada Ihecontara dos tempos de orfanato:

Nao tendo boneca com que brincar, e a maternidade ja pulsando terrfvel no cora<;aodas orfas, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas.Guardaram 0 cadaver num armario ate a freira sair, e brincaram com a menina morta,deram-Ihe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois beija-Ia,consolando-a 25.

Nessa mesa de disseca<;ao, microscopicamente, e descrito um corpo velado-desvelado emespreitas, mutila<;oes, viola<;oes. Tal obsessao com 0 corpo e suas possibilidades se entende narela<;ao deste com a Iinguagem, como sentencia Jancovici sobre as bonecas de Bellmer:

o corpo e comparavel a uma frase que nos convida a desarticula-Ia para que serecomponha em uma serie de anagramas sem fim, seus conteudos verdadeiros 26.

Em Clarice, as series de palavras projetam representa<;oes nas quais 0 rosto reaparece, pro­Iiferado e fragmentario: como pianos de um sistema vertiginoso. Sem memoria organizadora,descentrado, nao hierarquico, nao significante. Desloca-se segundo 0 ponto da superffciea ser observado. Eesse, definido unicamente por uma circula<;ao que possibilita conjuntosabertos aplicaveis a series heterogeneas - como ora relevadas em leitura. A unica realidadee a que a rede das palavras configura em sua constela<;ao imaginaria. Deste modo, nao setrata de decifrar, mas de deslindar, de percorrer a rede ou a teia, 0 espa<;o da escrita-rosto,que e outros, rostros.

Na aboli<;ao dos tra<;os individuais, as figura<;oes sao maquinas atuantes sobre a propriaanatomia, seccionam, salientam, exp6em partes do corpo como pe<;as-membros. Corpodestitufdo de um organismo, dando sempre origem a novos re-agrupamentos. Descri<;aode uma opera<;ao reconhecidamente c1ariceana. Como se sabe, 0 corpus textual de ClariceLispector se constitui de infinitos membros, fragmentos que migram, dilatam-se, ondulamelasticos, em movimentos semelhantes aos da respira<;ao. Coagula<;oes de uma obra que,escoando por regioes, artes, cotidianidades, atualiza-se - entre diferentes conexoes, emodalidades de discurso, 0 que implica dizer, inclusive consigo mesma. Sem limites, inces­santemente recome<;ada: "0 que te escrevo nao tem come<;o: e uma continua<;ao" 27.

Composi<;ao de pe<;as rebeldes aos espa<;os determinantes, as c1assifica<;oes, aos sentidosunificantes. Trechos, canonicos ou nao, despregados do livro, refuncionalizam-se emartigos, contos, cronicas, romances - nomenclaturas que se aderem as pe<;as textuais.Produzidos especificamente para outros meios de produ<;ao, jornal e revista, as novasseries, logo, se recomp6em ao conjunto. Amputa<;ao, auto-mutila<;ao, sacriflcio, tematica

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ou esquematicamente, a reproduC;ao textual e lograda na montagem e desmontagem desseimenso corpus. Oriundo de prciticas diversas, labor coletivo de absorc;oes, integrac;oes,depurac;oes, tornando-se um corpo assumidamente despessoalizado: "Por honestidadecom uma verdadeira autoria, eu cito 0 mundo, eu 0 citava, ja que ele nao era nem eu nemmeu" 28.

Se, tacitamente, os referenciais sao necessarios para se fazer a vida, os saberes da ordemdo necessario, 0 desejo, quando entendido como particular, de cada um (a), nada mais eque efeito de uma subjetividade padronizada no sistema capitalista, na ordem do Estadoinstituinte. Mas se desejo eexatamente produC;ao, nao havendo sujeito ou objeto do desejo,se ha alguma abjetividade, encantra-se nos fluxos - produzidos por signos a-significantes,da ardem do campo social, nao a do sujeito, da carencia essencial. Carencia fundadora deuma subjetividade enfraquecida, dependente dos referenciais identitarios, baseada nas leisde bom comportamento, expectativas socia is, imagens semelhantes, mitos identicos, enfim,fixidez de afetos totalmente controlados por um poder hegemonica. Na contramao, do ouista au aquila, a acumulo, a deslocamento, Bela e fera e infinitas canexoes. Confidencia:

Fui moldada em tantas estatuas e nao me imobilizei. ..29

NOTAS

1 CASSIN, B. "Identidade e catastrofe ou como um cisne se torna elefante". Ensaios soffsticos. Trad. Ana Luciade Oliveira e Lucia Claudia Leao. Sao Paulo: Siciliano, 1990, p. 23.

2 L1SPECTOR, C. "0 Ovo e a galinha", Felicidade c1andestina. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 65.

3 VIRILlO, P. Guerra e cinema. Trad. Paulo Roberto Pires. Sao Paulo: Editora Pagina Aberta, 1993, p. 45.

4Loreley, no espelho, "se via como um objeto a ser olhado". L1SPECTOR, C. Uma Aprendizagem ou 0 Livrodos Prazeres. Rio de janeiro: Francisco Alves, 1980, 1980, p. 13.

5 L1SPECTOR, C. Agua viva. Sao Paulo: Cfrculo do Livro, 1973, p. 40.

6MENDES, M. "Olho precoce". A idade do Serrote. Poesia completa e prosa. Org. Luciana Stegagno Picchio.Rio de janeiro: Nova Aguilar, p. 974.

7 Excepcionalmente, a esfinge torna-se atrativa e inteligente, mais que isso, cantora. S6focles, em Edipo Rei,391, chama-a de cadela cantora, que obrigava suas vftimas a cantarem ou cantava para encanta-Ias. Propondoo enigma cantado. Cf. BRANDAO, j. Dicionario mftico-etimoI6gico. Vol I. 4' ed. Petr6polis: Vozes, 1991.

8 BAUDELAIRE, C. "As metamorfoses do vampiro". As flores do mal. Poesia e prosa poetica. Org. Iva Barroso.Rio de janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 241.

9 MENDES, M. "Hortensia". A Idade do Serrote. Poesia completa e prosa, p. 954.

10 MENDES, M. "Ferrara". Carta Geografica. Poesia completa e prosa, p. 1095.

11 Carta de 9 de maio de 1945 dirigida as irmas. Cf. BATTELLA GOTLlB, N. Clarice uma vida que se conta.Sao Paulo: Atica, 1995, p. 211.

12 L1SPECTOR, C. "Minha pr6xima e excitante viagem pelo mundo", 10 de abril de 1972. A Descoberta domundo. 3' ed. Rio de janeiro: Francisco Alves, 1992, p. 440.

13 DALI. Si. Trad. Gloria Martinengo, Barcelona: Ariel, 1977, p. 53.

14 KAFKA, F. A Metamorfose. Trad. Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2002, p. 70.

15 L1SPECTOR, C. "Macacos". A Legiao estrangeira. 12'. ed. Sao Paulo: Siciliano, 1992, p. 52. Texto queparticipa dessa coletanea de 1964, assim como integra Felicidade c1andestina, 1971, alem de sair publicadono jornal do Brasil, em 31 de marc;o de 1973, com a modificac;ao do tftulo, "Meus sfmios", e nao inclufdoem A Descoberta do mundo.

16 L1SPECTOR, C. "Viajando por mar", 5 de junho de 1971, ADM, p. 377.

17 L1SPECTOR, C. "Macacos". A Legiao estrangeira, p. 53. As conjugac;Oes com 0 animal, revelam a moc;a,nos olhos do rapaz, com "rosto com um grunhido", "viu-a subir no onibus como um macaco de saia curta"."A mensagem". A Legiao estrangeira, pp. 45, 47.

18 L1SPECTOR, C. A Hora da estrela. 23' ed. Rio de janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 37.

19 L1SPECTOR, C. "Obsessao". A Bela e a fera, 2'. ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1979, p. 65.

20 L1SPECTOR, C. "A Legiao estrangeira", A Legiao estrangeira, p. 130.

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21 A primeira imagem impressa e esta, a da face de Cristo, gravada com sangue num pano - imagem perfeitae verdadeira - vera icon - jogo de palavras que acaba por atribuir amulher anonima que oferece 0 pano aJesus, um nome, Veronica.

22 L1SPECTOR, C. A Hora da estrela, p. 82.

23 FREYRE, G. "0 impacto da boneca loura". Modos de homem & modas de mulher. 2" ed. Rio e Janeiro:Record, 1987, p. 149.

24 L1SPECTOR, C. A Hora da estrela, p. 48.

2S lISPECTOR, C. ·A menor mulher do mundo". La"os de familia. 22" ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,1990, p. 9l.

26 JANCOVICI, H. Bell mer. Dessins et sculptures. Paris: L'Autre Musee, Paris, 1983, p. 15 (tradu"aoaproximadaj ..

27 L1SPECTOR, C. Agua viva, p. 55.

26 L1SPECTOR, C. A Paixao segundo G.H. Edi"ao critica. Org. Benedito NUNES. Cole"ao Arquivos, 1988,p.2l.

29 lISPECTOR, C. 0 relato e ·Obsessao". A Bela e a fera, p. 77.

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