Retrato Equestre de Filipe IV- Velázquez para Garrido

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    Retrato equestre de Filipe IV de Espanha

    Esboo preparatrio para a execuo do retrato de 1625

    Diego da Silva Velzquez

    Introduo

    Durante as ltimas trs dcadas, o estudo da pintura antiga e os critrios da suaatribuio foram objecto de desenvolvimentos inesperados, determinados peloinvestimento na utilizao de dispositivos e procedimentos tecnolgicos de anlise e

    observao remota, nomeadamente do espectro e dos componentes no visveis de umaobra.Procedimentos como a observao e registo fotogrfico microscpicos de cortesestratigrficos da pelcula cromtica e da preparao, determinando a sua espessurarelativa, a sua seqncia e os seus componentes cromticos qumicos, minerais eorgnicos, as anlises de espectrometria de florescncia de RX ou de IV paraidentificao dos componentes minerais dos pigmentos, as anlises de FTIR paradeterminao de componentes orgnicos, nomeadamente media e aglutinantes, astcnicas de anlise radiogrfica e microscpica, coadjuvadas pela elaborao de tabelasexaustivas de capacidade de absoro de RX por parte dos diversos componentes,sobretudo minerais, o registo fotogrfico com exposio a raios UV e IV, estes ltimos

    permitindo a penetrao em camadas subjacentes para deteco de traos de desenho oucomposio preparatria ou de alteraes da composio, equiparam os peritos einvestigadores de meios tcnicos revolucionrios e de eficcia inquestionvel. (1)Munido deste aparato tcnico, o investigador pode hoje deduzir, da anlise de resultadosobjectivos sobre os componentes fsicos e qumicos de uma obra, os materiais aplicadose os procedimentos da sua aplicao e manipulao, concluses que obrigaram a reverinmeros preconceitos que fundamentavam atribuies ou contraditrios que notinham outro suporte seno a especulao, embora esta, muitas vezes, se sustentasse emdados da observao emprica acumulada por vezes muito consistentes.A obra dos grandes mestres foi sucessivamente sujeita a anlises em srie com recurso a

    estes mtodos e recursos, nos museus e instituies de acolhimento de colecesprivadas milhares de obras foram sujeitas a manipulaes exaustivas, os investigadorespublicaram centenas de milhares pginas apresentando os resultados das suas operaes.Ora, quando apresentavam os resultados das suas investigaes o que pretendiam? Oreconhecimento pblico da eficcia dos novos recursos e procedimentos, sem dvida.Mas tambm colocar disposio do pblico e de outros investigadores os paradigmas ecritrios que permitiam identificar e atribuir uma obra. Se assim no fora, a publicaodos resultados dos seus trabalhos teria que ser reconhecido como mera expresso desoberba ou ostentao.Por outro lado, o investimento realizado na crtica dos aparatos documentais respeitando biografia e ao contexto de produo da obra dos grandes mestres, bem como ao

    enriquecimento progressivo dos universos documentais, complementaram de formarelevante ou determinante o esforo feito no domnio da anlise material. Como

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    exemplo, citamos simplesmente o trabalho ciclpico desenvolvido por Leslie Carlyle,na pesquisa de registos documentais sobre preparadores, fornecedores de materiais einovadores de procedimentos que suportaram os momentos cruciais de ruptura na

    pintura inglesa nos Sculos XVIII e XIX. Mas devemos citar tambm os estudos queenriqueceram consecutivamente a avaliao do contexto cultural, social, poltico e

    esttico em que uma obra se insere. (2)A publicao sucessiva de corpora de aparatos documentais, manuscritos ou impressos,inditos ou recorrentes, constitui hoje em dia uma ferramenta indispensvel de trabalho,sociabilizou o acesso informao e alargou o alcance da habilitao do crtico ou doinvestigador como entidade apta a pronunciar-se sobre uma obra munido da autoridadeque lhe confere a iseno e adequao da documentao a que recorre e sobre que sefundamenta.O valor dos dados objectivos alegados sobrepe-se, obviamente, ao da autoridade dosnomes ou dos estatutos. um louvvel progresso no percurso de sociabilizao dacultura, irreversvel, que fez desmoronar muitos dos pressupostos sobre que sealicerou, durante muito tempo, a utilizao em exclusivo benefcio prprio, ou de

    algumas elites, muitas vezes perversamente promiscudas com os mais poderososagentes do mercado, de um saber acumulado, em grande medida suportado pelacomunidade, sem desprimor para a emulao individual custa de que muitosinvestigadores realizaram as suas obras.Tornou-se hoje em dia insustentvel que um investigador que publicou os resultados damanipulao de duas dezenas de obras de Rembrandt, identificando suportes,

    preparaes, pigmentos, procedimentos de aplicao, caligrafia pictrica, tudoconfrontado com os dados respeitantes ao contexto cultural e social de produo da obrado mestre, possa pronunciar-se, perante uma pintura, alegando simplesmente que a suaexperincia lhe permite atribuir ou contradizer a atribuio.

    No o pode fazer em contradio com todos os dados que apresentou publicamente.Mais, no o poder fazer seno recorrendo, de forma sistemtica e coerente a essesdados. O facto de os ter recolhido no tolera que os contrarie ou que alegue a suaautoria, o seu nome e o seu estatuto para se pronunciar seno em exaustiva refernciaqueles.Passamos a fazer un conjunto de citaes literais de Carmen Garrido, extradas docaptulo Un Gnio trabajando; Materiales y tcnica, de Velzquez. La Tcnica delGnio, que publicou juntamente com Jonathan Brown, citado na nota 1.Importa frisar que este captulo sintetiza os resultados de dcadas de trabalho e deinvestigao, j reunidos em obra anterior de anlise exaustiva, Velzquez, tcnica yevolucin, citado na mesma nota.

    Velzquez sola emplear como soporte la tela, material cuyo uso haba idoextendindose desde comienzos del Siglo XVI, por ser un medio ms eficaz que lastablas para el desarrollo de las nuevas ideas artsticas y estticas y de las diferentestcnicas necesarias para la realizacin de grandes composiciones. Como muchos

    pintores de su poca, Velsquez escoga sus lienzos cuidadosamente y saba que lasdiferentes texturas podan alterar el efecto de la obra terminada. Prefera el lino y elcaamo, empleando el primero en la etapa media de su carrera y ambos, ms o menos

    por igual, tanto en los primeros como en los ltimos aos de la misma.(...)Velsquez tambin cambi las preparaciones durante esta etapa inicial en Madrid,haciendo a veces dos aplicaciones. Cuando se trabaja con dos capas, la primera es decarbonato de calcio impregnado por la cola del aglutinante. La segunda, que en

    muchas ocasiones se utiliza por s sola, es una tierra roja llamada tierra de Esquvias,habitual entre los pintores de la escuela madrilea. La tonalidad rojiza de estas capas

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    tiene una funcin de preparacin-imprimacin, ya que en ella se asientan lastonalidades oscuras de las colores.(...)

    Nos pargrafos seguintes Carmen Garrido centra-se na anlise monogrfica de umconjunto seleccionado de realizaes do pintor, demonstrando que as suas opes noque respeita aos suportes e preparaes no apresentam um ciclo evolutivo consequente.

    Embora a primeira viajem a Roma encaminhe o pintor para a experimentao eutilizao de opes inovadoras, como o aumento da densidade dos suportes e autilizao preferencial do branco de chumbo nas preparaes, aps a anlise dosindcios de mudana sbita de opo na preparao deLa fragua de Vulcano:Como indica este ejemplo, no se puede encasillar la producin de Velsquez en lo que

    poderamos llamar una tcnica constreida. Es imprescindible que los datos tcnicosvayan unidos al examen del estilo y del mtodo pictrico del artista. Como regla

    general, y a pesar de algn ejemplo contra, se ha constatado que el pintor no vuelveatrs en su evolucin. Cuando, por ejemplo, se decide por un nuevo tipo de tela o poruna forma concreta de preparacin, deja imediatamente de utilizar la anterior.Todavia, a observao mais assertiva de Carmen Garrido neste caso refere-se paleta de

    Velzquez:La paleta de Velzquez es muy reducida. Salvo algunas excepciones, utiliz los mismospigmentos durante toda su carrera.(...)El nmero de pigmentos utilizados en esa poca es realmente reducido, y an ms en elcaso de Velsquez, que slo empleaba los siguientes:

    BLANCO ,compuesto de blanco de plomo e carbonato de calcio. AMARILLO, xido dehierro amarillo, amarillo de plomo y estao y, excepcionalmente amarillo de Npoles;

    NARANJA, xido de hierro naranja y bermelln de mercurio; ROJO, xido de hierrorojo, bermelln de mercurio y laca orgnica roja; AZUL, azurita, lapislzuli y esmalte;

    MARRN, xido de hierro marrn y xido de manganeso; NEGRO, negro orgnico deorigen animal o vegetal. Mezclas: VERDE, azurita, xido de hierro, amarillo de plomoo estao; MORADO, laca orgnica roja y azurita.Para l destas caractersticas, Carmen Garrido destaca a ausncia de desenho

    preparatrio nas pinturas de Velzquez, substitudo pelo esboo da composiodirectamente sobre a preparao, aproveitando esta em grandes superfcies deexposio, sobre a qual vai colorindo com uma delgada camada cromtica, sobretudo na

    primeira fase madrilena. Destaca ainda o significado de La fragua de Vulcano paraidentificar alteraes profundas nas suas tcnicas de preparao e de execuo,caracterizando exaustivamente o perodo madrileno anterior sua viajem a Roma,Agosto de 1629 a Janeiro de 1631.Devemos todavia concluir que a eficcia dos resultados das mais sofisticadas operaes

    tcnicas respeitantes anlise e caracterizao dos aspectos materiais de uma obra dearte, s se valida no cruzamento com os dados documentais respeitantes caracterizao do contexto social e cultural da produo do seu autor, noaprofundamento da compreenso das suas ideias estticas e culturais, na anliseexaustiva da sua expresso esttica e da individualidade da sua caligrafia pictrica. neste domnio louvvel a documentao que nos fornece Carmen Garrido sobre osaspectos de pormenor de detalhe da caligrafia pictrica de Velzquez, nomeadamentequando se debrua sobre a representao de detalhes de elementos vegetais da

    paisagem, sobretudo a partir da Viajem a Roma e documentados logo nosapontamentos de ar livre da Villa Medicis e emBachus ouLos Borrachos.As concluses deste estudo so o resultado de quase um ano de intensa relao, no s

    com o objecto, mas tambm com a documentao que o informa e com os

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    procedimentos da sua anlise tcnica. Documentao recolhida no prprio objecto edocumentao recolhida para informar o contexto da sua realizao.Tivemos, por vezes, que alterar radicalmente o nosso ponto de vista e at o nosso pontode partida, como se compreender adiante.Partamos, por razes que oportunamente documentaremos, de pressupostos

    inabalveis.Podemos com toda a convico apresentar hoje este estudo seguros de que, pese todaviaainda o seu carcter esquemtico e a necessidade de o aprofundar, o essencial no nos

    parece passvel de contestao. Mas, como investigadores disciplinados, sabemos que acontestao, vlida e fundamentada ou no, sempre um estmulo para progressivosaprofundamentos.

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    paisagem, o que vir a ser relevante para a nossa posterior anlise. O retrato despertoutal entusiasmo na corte, que ficou exposto no passeio pblico que atravessava oConvento de So Filipe, onde foi admirado e ovacionado pela elite madrilena. Da obrafinal perdeu-se absolutamente o paradeiro, pelo que as atenes se concentraramexclusivamente no retrato equestre que Velzquez pintaria em 1645/35, destinado ao

    Grande Salo dos Reinos do recm edificado Palcio do Bom Retiro.(3)O retrato do Museu do Prado tem suscitado sucessivas polmicas acerca daapresentao actual, dado que se sabe que teve que ser restaurado e repintado aps oincndio de 1640, provavelmente com algumas alteraes na dimenso, no se podendogarantir que o trabalho de recuperao tenha sido executado pelo prprio Velzquez,sendo certo que certos pormenores de acabamento e detalhe no parecem enquadrar-senos cnones velazquianos, como sustentaremos adiante.(4)O esboo aqui apresentado corresponde na composio ao retrato do Museu do Prado,salvo as dimenses. Todavia apresenta uma paleta de coloridos, um jogo de luz e umaliberdade espontnea de trao e pincelada indiscutivelmente velazquianas.O estudo da documentao radiogrfica no revela traos de desenho preparatrio, o

    que comprova que o pintor executou a obra de relance, como tpico tambm na obrade Velzquez e coincidente com a referncia de Pacheco, isto ,pintado do natural. Sotpicos tambm a preparao utilizada, bem caracterizada nas anlises j realizadas,

    pigmentada com um castanho que realiza algumas das superfcies expostas da pelculacromtica visvel, bem como o reduzido espectro de coloraes e pigmentos.(5)O quadro esboado com duas cores, o negro carbnculo e o branco de chumbo, com ascorrespondentes gradaes, o que tambm indubitavelmente confirmado peladocumentao radiogrfica, sobre a preparao castanha, aproveitando esta quando acor se revela adequada. Foi depois colorido, em apontamentos de pormenor, comtonalidades graduadas a partir do vermelho e do ocre amarelo. No cu foi utilizada uma

    pigmentao azul (azurite).Sabe-se, atravs dos inventrios realizados aps a sua morte, que existia no atelier do

    pintor pelo menos um esboo preparatrio do retrato equestre do Rei, designado comobosquejo ou metido en colores, que, de acordo com Francisco Pacheco (El Arte de la

    Pintura, II, Sevilha, 1649), corresponde rigorosamente aos procedimentos empreguesneste quadro. (Lopez-Rey, Jos, Velzquez. Le Peintre des peintres. Catalogue

    Raisonn, Vol. I e II, Taschen, Wildenstein Institute, 1996). Em 1840, a mesma obra,aparentemente, j com as medidas rigorosamente coincidentes com as do esboo queestamos a estudar, aparece referida no inventrio e avaliao da coleco do magnatemadrileno D. Serafin de Huerta.(6)A documentao j produzida, nomeadamente radiogrfica e fotogrfica, com exposio

    a radiao ultra-violeta, garante no s a correspondncia do suporte, tcnicas deexecuo e pigmentos utilizados, nomeadamente a pigmentao da preparao e aexiguidade do universo cromtico, com a poca pressuposta e os procedimentosutilizados no atelier de Velsquez, como tambm o estado de excelente conservao da

    pintura e seu suporte, protegidos por resistente camada de verniz coevo.

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    Estado actual de documentao

    Esto realizados at ao momento os seguintes exames e documentao:

    Fotografia de exposio a Raios UV. Manuel Jos Palma.Repertrio fotogrfico com exposio a iluminao razante. Manuel Jos Palma.Repertrio fotogrfico com exposio a iluminao de incidncia angular, 45 graussuperior direita. Manuel Jos Palma.Radiografia de exposio. Departamento de Conservao e Restauro da Universidade

    Nova de Lisboa, com assistncia de Manuel Jos Palma.Anlise qumica de pigmentos e estratigrafia da pelcula cromtica e preparao, anlisequmica do suporte, anlise por espectrometria de fluorescncia de RX de pigmentos,Instituto Portugus de Conservao e Restauro, realizada sob orientao da EngenheiraIsabel Ribeiro, com assistncia de Manuel Jos Palma.

    Da documentao j realizada pode deduzir-se o seguinte:

    A pintura foi executada sobre tela em fibra vegetal de cnhamo de produo artesanal,conforme concluso extrada do Relatrio IPCR, pgina 4, apresentando claramente as

    deformaes decorrentes da tenso a que foi sujeita no bastidor primitivo, conformeradiografia DCR da UNL. De acordo ainda com rigorosa anlise da referida radiografia,a pintura apresenta-se actualmente na sua dimenso original, sendo claramentecalculveis os pontos de ancoragem no bastidor de origem. Estes dados concorreminequivocamente para a atribuio cronolgica compatvel com a atribuio de

    provenincia oficinal e autoria propostas.A tcnica de execuo corresponde aos requisitos do que geralmente se designa comorasa, tendo em conta a espessura tnue da pelcula cromtica, que permite observar, aolho nu, a textura da tela. H ainda que destacar o papel da preparao pigmentada, com

    predominncia de castanho ocre, na composio cromtica da superfcie visvel,servindo mesmo de fundo a vrios elementos da composio, nomeadamente o corpo do

    cavalo. Tais aspectos foram devidamente registados no Relatrio e Anexos do Estudorealizado pelo IPCR, pginas 2 e 6.Verifica-se tambm que a pelcula cromtica s encorpa e adquire espessura nas brevesreas em que incidem pormenores, mesmo no caso em que estes se realizam atravs doempastelamento do branco de chumbo, de forma a realizar jogos de sombra e luz, mastambm com os ocres amarelos ou os vermelhos. A pelcula em caso algum ultrapassatodavia dois estratos sobre a preparao. Estes aspectos, ainda que fceis de constataratravs de uma observao directa detalhada, foram tambm devidamentedocumentados no Relatrio do IPCR.A preparao constituda por ocre, ocre vermelho, carvo animal, branco de chumbo ecr. Apresenta uma espessura mdia entre os 90 e os 70 mcrones, podendo atingir um

    mnimo de 40 mcrones em reas especficas em que o estrato sequente ter sidoesboado por incorporao da prpria preparao. Em todos os casos constitui cerca de

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    metade da espessura da pelcula, ressalvando um caso pontual em que apenas sedetectam restos, que devem corresponder a irregularidades na aplicao, pgina 6,Amostra 2, do Relatrio IPCR. Tais irregularidades, como se demonstrar adiante,concorrem para consolidar a atribuio proposta.Como j se havia notado no relatrio de observao preliminar, anterior aos resultados

    da anlise estratigrfica de pigmentos, a sobreposio de motivos praticamente nula,apenas se notando no realce de pormenores, registados na estratigrafia IPCR no chapu,nos cales e faixa, vermelhos. De notar que a designao faixa dos cales noRelatrio IPCR est incorrectamente aplicada, dado que o panejamento esvoaantesobre a garupa do cavalo faz parte integrante da faixa peitoral. Malogradamente no foirealizada anlise estratigrfica nos pormenores dos arreios do cavalo ou na sela, onde sedeveria registar sobreposio de motivos com ocre amarelo. Todavia estes elementosreforam a doutrina de que se trata de um bosquejo, seja um estudo realizado com umespectro exguo de coloraes, branco negro e aul, sobre uma preparao pigmentadacom ocres, aproveitada para realizar gradaes de fundo, trabalhado depois com brevesapontamentos de pormenor, a amarelo e vermelho, ou carmesim. A preparao parece

    pois servir de base massa cromtica do corpo do cavalo e outros elementos ondepredomina o castanho.O universo dos pigmentos identificados constitudo por: castanho ocre castanho;amarelo ocre amarelo; branco branco de chumbo; azul ndigo, azurite; preto carvo animal; vermelho ocre vermelho, cochinilha; creme cr.O exguo espectro de pigmentos identificados, bem como a natureza da preparao,esto exaustivamente de acordo com a identificao da paleta elementar de Velzquez,tal como a caracteriza, documentada por anos de manipulao laboratorial, CarmenGarrido nas obras j citadas, para o primeiro perodo madrileno do pintor. Na linguagemtcnica do relatrio do IPCR deve-se fazer equivaler a denominao cr denominaocarbonato de clcio de Garrido, as denominaes ocre castanho e ocre vermelho denominao xidos de ferro de Garrido e a denominao cochinilha denominaolaca orgnica vermelha, uma vez que Garrido opta por uma nomenclatura qumica e oIPCR pela nomenclatura tradicional, ainda que referida s equivalncias qumicas e doscomponentes qumicos. Importa todavia fazer aqui um reparo, laca orgnica podereferir-se a vria procedncias de uma similar, ou de uso similar, substncia, cochinilha bem mais explcita relativamente a um determinado tipo de laca orgnica. Isto ,Carmen Garrido no explcita o tipo de laca orgnica usada por Velzquez como

    pigmento vermelho, com mais propriedade carmim. Quanto ao ndigo, ou anil,surpreende o facto de Carmen Garrido no o registar na paleta de Velzquez, sendotodavia um dos mais universais pigmentos utilizados desde a antiguidade.

    Isto , do ponto de vista da anlise e observao dos materiais identificados e dosprocedimentos tcnicos empregues na sua aplicao, a pintura apresenta-se emconformidade com os requisitos de uma atribuio a Velzquez, presumindo umacronologia de execuo entre 1623 e 1628. Mais, apresenta-se em conformidade com oque se pode presumir acerca do que seria um esboo tirado do natural, ao ar livre, tendoem vista os recursos e equipamentos que o pintor poderia mobilizar para um espontneoexterior, que serviria de base ao trabalho de atelier. Reforando a referncia de Pacheco,quando relata que a pintura, incluindo a paisagem,foi pintada do natural.

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    Anlise detalhada da composio e do contexto de execuo

    De ora em diante, a referncia s diversas obras de Velzquez a que faremos apelo paraanalisar este esboo passar a cotar-se pelo nmero de inventrio do Catlogo

    Razonado de Lpez-Rey, j citado.Em nosso entender, pese a convico com que muitos investigadores, incluindo CarmenGarrido, atestam a autoria velazquiana integral da execuo e composio do retratoequestre de Filipe IV destinado ao Grande salo dos Reinos do Palcio do Bom Retiro,tal como se apresenta hoje em dia no Museu do Prado (Razonado 71), incluindo nestaatribuio as transformaes visveis que o quadro original sofreu durante o restauroaps o incndio incndio de 1640, vrios dados documentais e outros decorrentes deuma observao criteriosa continuam a suscitar algumas reservas. Continua a ser

    bastante difcil conceber o que seria a pintura original, incluindo, naturalmente, as suasmedidas e propores, seja o seu formato.As contradies documentais saltam vista quando se confrontam os inventrios de1701 e de 1716 do Palcio do Bom Retiro, com os de 1772, 1794 e 1814 do PalcioReal Novo. A estas contradies documentais acresce o facto de o nmero de inventrioinscrito a branco nos cinco retratos equestres registados no Palcio Novo provenientesdo Bom Retiro, atribudo incontestadamente ao inventrio de 1772, se encontrar, pelomenos em dois dos retratos, Filipe III e a Rainha Margarida (Razonado 68 e 69),

    inseridos no canto inferior esquerdo do que seria o formato original. De resto tambmclaro, segundo nota Lpez-Rey, que, de inventrio para inventrio, as medidascorrespondentes altura e base se apresentam invertidas ou ambiguamentedesignadas.(7)Esta questo, que ser pontualmente reinvocada adiante, todavia pouco relevante parao nosso tema.Apresentava-se relevante durante um perodo de impasse na nossa investigao, quandochegmos a formular a ideia de que este esboo fosse o preparatrio para o retrato doBom Retiro. A idade que o Rei aparenta e a ausncia de bigode colocavam-nos todaviaalgumas reservas de difcil superao. A hiptese alternativa era a de que este esboo serelacionasse com o retrato de 1625, mas parecia-nos difcil de aceitar que o retrato do

    Bom Retiro, realizado no apogeu da carreira do Mestre, reproduzisse no essencial acomposio do retrato do debutante.Ora, tivemos que nos despir de preconceitos para aceitar sem reservas essa ideia.Uma breve conversa em Madrid com Carmen Garrido em Agosto de 2007, foi essencial

    para que revssemos a matria. A consagrada investigadora alegava com fundamentosdificilmente contestveis que este esboo no se apresentava em conformidade com astcnicas, os materiais e os procedimentos usados por Velzquez depois de 1629, emborativesse sempre admitido a ideia de que em determinados contextos Velzquez podiareutilizar vrios critrios na execuo de uma obra posterior a essa data. CarmenGarrido, a recuperar de uma enfermidade que a tolhera em casa durante alguns meses,

    profundamente impressionada com a imagem radiogrfica, no conseguia formular uma

    opinio conclusiva e props a observao directa da pintura em Lisboa durante o ms deOutubro. A bem dizer, o seu bloqueio na anlise da documentao em cuja posse estava

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    desde Junho de 2007, fora induzido pela associao imediata que propnhamos entreeste esboo e o retrato do Bom Retiro.Mas a associao no era imediata, era mais subtil.Porque razo o retrato debutante, de 1625, impressionara de tal forma o Rei, a corte e aelite madrilena, ao ponto de suscitar muita inveja, a exposio pblica num espao

    consagrado e as lautas compensaes reais?Porque o retrato do debutante, na sua concepo e composio, era j o retrato do gnio.No se justifica aqui, dadas as centenas de pginas j escritas sobre o assunto,escalpelizar seno sumria e concisamente as razes porque o retrato equestre de FilipeIV (e referimo-nos agora ao de 1634/35 para o Palcio do Bom Retiro, presumindo odesconhecimento absoluto do que seria o de 1625) capturou as atenes dos coevos e detoda a crtica de arte posterior, como monumento de ruptura dos cnones darepresentao ulica de um monarca, mormente em pose equestre, que a consagraoiconogrfica do seu triunfo ou do exerccio do imperium, uma tradio que sefundamenta na antiguidade clssica sobretudo alexandrina e romana.(8) unnime que a solido do monarca estampado sobre uma paisagem indiferenciada,

    onde no se regista qualquer indcio de humanizao, nem sequer um povoadoesfumado no horizonte, a ausncia de qualquer outro atributo ou insgnia seno acouraa e o basto de comando, a direco do olhar do rei perdido no infinito, nemdirigido ao pintor nem ao observador, a posio de perfil, sem pose seno a de parecersuspender o galope da montada executando uma sbita corbeta, a ausncia de qualquerapontamento explicitamente alegrico, sintetizam a doutrina subjacente sua execuo,que motivou o desapreo de uns, mas sobretudo a consagrao por parte de quase todos. o monarca do universo porque o no de lugar algum explcito, uma sbita aparioou passagem efmera num espao fsico real mas indeterminado, brevemente suspensa,um episdio quase imaginrio consagrado todavia pela expresso tirado do natural.(9)A concepo teolgica da monarquia subjacente a esta representao, em referncia aosubtil cuja presena tutela todo o universo porque no se revela em qualquer lugardeterminado ou determinvel, em contraposio representao do monarca visvel e

    presente, est ainda por explorar at s ltimas consequncias nos seus fundamentosideolgicos como expresso do absolutismo.(10)Mas no que respeita tradio iconogrfica da pintura maneirista, esta concepo darepresentao trazia um antecedente e um paradigma, da autoria de um gnioconsagrado, oRetrato Equestre de Carlos V em Muhlberg, de Ticiano, 1548. provvelque Velzquez pudesse ter admirado a obra de Ticiano em 1622 no Palcio Real, nas

    primeiras visitas aps a sua instalao em Madrid. De certo que conviveu quasediariamente com ele desde que entrou formalmente ao servio do Rei em Setembro de

    1623.(11)Na pintura de Ticiano, o Imperador parece sair subitamente do bosque para umaclareira, numa paisagem incaracterstica sem qualquer referncia a qualquer tpico dehumanizao, passando do invisvel para o fugazmente visvel, segurando a lana emriste na mo direita e as rdeas na esquerda visvel sobre o garrote do cavalo, indiferenteao observador, de perfil ligeiramente deslocado para a direita. Se atentarmos commincia, apenas trs detalhes da composio distinguem este retrato do de Velzquez. ORei segura na mo direita o basto de comando, uma insgnia, o Imperador a lana,simultaneamente uma insgnia e um instrumento de interveno num episdio blico; oImperador torce o corpo mais direita, sendo visvel o brao esquerdo, pelo que temque torcer ligeiramente a cabea esquerda para se aproximar do perfil; o Imperador

    prossegue indiferente no seu movimento, a passo quase de emboscada, sem suspender acarreira, o Rei realiza uma sbita manobra de suspenso do galope, corbeta, como se se

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    expusesse deliberadamente ao espontneo, indiferente todavia ao observador e aopintor, como se subitamente tomasse conscincia de que passara fugazmente doinvisvel para o visvel.(12)Mas h ainda um pormenor a que temos que prestar ateno. O Imperador surgesubitamente de um bosque para uma clareira, enquanto o Rei, na verso original

    documentada pelo nosso esboo, se estampa livremente numa paisagem aberta. Ser quea adio dos carvalhos no bordo esquerdo da pintura recomposta, por Velzquez ou no,teria como objectivo reforar a associao da representao do Rei ao seu arqutipo, arepresentao do Imperador por Ticiano?(13)A expresso pictrica desta ideia, uma vez concebida, fcil de realizar de relance paraum pintor genial na mestria da utilizao do claro-escuro. Basta depositar a luz e algumdetalhe sobre o essencial, o retratado em primeiro plano, e esbater em fundo uma

    paisagem deserta, apenas insinuada com breves apontamentos de luz tnue.O retrato de 1635 destinava-se a um espao ulico de magnnimo estatuto, tinha que serformulado em gigantescas dimenses e talvez o claro-escuro, que domina o primeiro

    perodo madrileno do pintor, no fosse a soluo adequada. Para l do mais, na sua

    viajem a Roma, Velzquez apercebera-se de que a pintura parda e tenebrista de tradioflamenga perdia terreno em relao pintura da luz e do brilho, que inundaria o barrocoe mobilizara j os mais consagrados mestres cortesos como Rubens e Van Dick.Com um golpe de gnio, Velzquez conseguir num pice transportar para aespecificidade da sua caligrafia pictrica essas novidades, que aplicar sobretudoquando se trata de obras de grandes dimenses ou de marcado carcter corteso. Masretomar energicamente o seu singular claro-escuro sempre que a liberdade do tema edo destino da obra lhe permita.Mas os prprios retratos reais e demais obras cortess de grande formato, at 1928,mesmo quando finamente acabadas no registo do detalhe, obedecem aos cnones doclaro-escuro, quase como um compromisso entre a obra final e o esboo. Retrato deFilipe IV de 1624 (Razonado 29), retrato de Filipe IV de 1623/28 (Razonado 36),retrato do Infante Don Carlos de 1628 (Razonado 37).

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    Uma cpia e um esboo

    Que critrios objectivos poderamos utilizar para distinguir o que pudesse ser uma cpiade uma obra consagrada, mesmo que realizada por um grande mestre, de um esboo

    preparatrio para a realizao de um original?Esta questo exige ento uma anlise e reflexo exaustiva.Temos que partir da presuno de que um pintor que executa uma cpia tem vista ooriginal, ou, pelo menos, uma outra reproduo. O seu registo extrado do que v, nodos procedimentos preparatrios que o autor do original realizou no processo deconcepo e execuo da obra. No voltaria para trs, porventura adicionar-lhe-iaalguns pormenores de sua lavra e inveno. Uma cpia raramente recessiva.

    E insistimos na expresso raramente, porque, para que uma cpia fosse recessiva, teriaque se tratar do trabalho de anlise do processo construtivo, do desmanche, simaginvel se se tratasse de outro mestre. Poderamos citar alguns casos, consagradosna histria da pintura como momentos de glria de alguns gnios, mas basta-nos citar osexerccios de Van Gogh sobre Millet.(14)Mas a anlise ou o desmanche que um impressionista faz de uma obra consagrada,embora possa considerar-se um procedimento recessivo, ou a tentativa de um

    procedimento recessivo, jamais se confunde com qualquer estdio de concepo ouexecuo do original. Porque o impressionista retoma o esboo, ou a sua presuno,

    partindo de pressupostos tcnicos e estticos que jamais poderiam ser equacionadospelo autor do original. todavia absurdo pensar que, no Sculo XVII, um grande mestre se aplicasse adesmembrar o processo construtivo de um retrato original de Velzquez, realizando umaobra que, temos que o aceitar, na sua simplicidade de esboo, no despojamento deexcrescncias acessrias composio, na liberdade do trao e na espontaneidade daliberdade do movimento do pincel, ultrapassa, ou pode emparelhar na sua dimensoesttica com o original acabado.Ora, para analisarmos, do ponto de vista da sua qualidade artstica e esttica esta obra,temos que introduzir aqui outro tema. Embora sempre tratado como episdio anedtico

    biogrfico, sabido que o desapreo dos despeitados em relao pintura de Velzquezse exprimiu muitas vezes no comentrio de que o gnio do pintor se consumava na sua

    habilidade para pintar caras, ou seja retratos. Velzquez responderia com indiferena ebonomia que todavia ningum as pintava to bem.(15)Mas este comentrio logo se torna numa consagrada expresso de apreo, em vriaslaudatrias coevas, registando que os retratos de Velzquez exprimiam tanta fora, que

    parecia que os modelos no estavam no quadro, mas se houveram introduzido noambiente do observador, pareciam vivos e cohabitar com ele.Porqu? Porque Velzquez despreza os fundos e os ambientes, muitas vezes ausentes,ou apenas insinuados em apontamentos esboados ou esfumados, descritivamentesumrios, onde raramente a luminosidade incide.Mesmo quando trata assuntos de gnero, ou de episdio, como em Los Borrachos, aateno do observador de tal forma atrada para os rostos e para a luz que sobre eles

    incide, que s depois de ultrapassado esse impacto consegue passar para a dimenso doambiente e dos seus sumrios registos.

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    Quando o estatuto da obra e do seu destino impe ao pintor o respeito pelos cnones narepresentao do detalhe, do tema estruturador ou do seu envolvimento, como o casodas obras de grandes dimenses destinadas a locais de culto ulico, o pintor conseguegenialmente ultrapassar tais imposies, respeitando o seu poder sinttico na descriodo ambiente, como no caso da Rendio de Breda, ou mesmo deAs Meninas e aLenda

    de Arachn.(16) no poder sinttico da linguagem, ou da caligrafia, pictrica que reside o gnio deVelzquez. Foi por esse motivo que apaixonou os impressionistas.Quase diramos que cada obra de Velzquez um esboo. Trabalhando sobre o esboo,avivando cores e definindo detalhes, o mestre conseguiria realizar a obra acabada.Quase que poderamos afirmar que, salvas as dimenses, sobre o esboo que estamos aanalisar, no mesmo suporte, o mestre, com um ligeiro espessamento da pelculacromtica, avivando algumas cores e definindo alguns detalhes, poderia realizar umaobra acabada com a apresentao da obra final.Se atentarmos na apresentao do cu neste esboo, poderamos associ-la ao queCarmen Garrido identifica como as preparaes que se tornaro tpicas no perodo ps-

    romano de Velzquez, quase como uma preparao base de branco de chumboaplicada esptula, ou por arrastamentos de pincel de cerda grossa, com ligeira

    pigmentao de azurite, um pr-pintado sobre o qual o pintor elaboraria o acabamentofinal. Em certas reas, como por detrs do brao direito do Rei, ou sobre o chapu,notam-se tentativas de correco do contorno prvio da mancha, que so umacaracterstica singular de certo universo de obras de Velzquez, no Sebastin de Morrado Marqus de Carpio (Razonado 104), ou na Cabea de Veado do Museu do Prado(Razonado 33), para citarmos apenas dois exemplos imediatamente visveis. Constituemaspectos incontestveis de registo da singularidade da caligrafia pictrica de Velzquez.O que difcil de conceber que um copista, mesmo que trabalhasse lado a lado com omestre, fosse capaz de desmanchar a obra final para atingir o estdio preliminar esingelo do esboo. S se, num contexto apenas admissvel no domnio da especulaoretrica, se aplicasse ao exerccio de copiar, vista, o prprio esboo.Mas detenhamo-nos um pouco a analisar o processo construtivo desta pintura.Se confrontarmos a pintura, tal como visvel directamente sujeita a luz razante, com aradiografia e ainda com os dados adquiridos por anlise microscpica de cortesestratigrficos, parece-nos bvio que o pintor esboou previamente, com duas cores, oessencial da composio, o branco de chumbo e o negro. Com estas duas corescontornou o corpo do Rei e o cavalo e traou a linha do horizonte. Estes traos so tovisveis, que podemos at observar as alteraes que o pintor introduziu no recorte e

    pormenor do chapu e da sua emplumagem, previamente esboados com branco de

    chumbo, que se observam claramente em espectro, tanto na radiografia como naobservao directa. De resto, as delicadas mas espontneas pinceladas, ou espatuladas,que se observam claramente sob a camada vermelha da emplumagem, tm a funo jassinalada por Garrido de transportar o espectro subjacente de luz e sombra para asuperfcie da rea posteriormente colorida. O mesmo poderamos dizer da faixaesvoaante sobre a garupa do cavalo.Para realizar a massa do corpo do cavalo, o pintor de pouco mais necessitava para l da

    preparao, aplicando simplesmente um breve velatura de negro nos detalhes que asombra pe em destaque, empastos de branco onde a incidncia da luz define e destacaa forma. De resto, numa composio em que a sombra predomina, a forma como o

    pintor distribui e aplica a luz, quer os brancos puros de chumbo, quer os tons mais

    abertos de amarelo, creme, vermelho e carmim, que transmite a toda a realizao uma

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    fora e profundidade singular. O azul nunca se evidencia aberto em tonalidades claras,pois parece servir para graduar o branco, criando as reas de profundidade da atmosfera.O pintor domina j eximiamente essa tcnica e cincia, sabe que, para que o observador

    possa ser iludido, sugerindo-lhe que o retratado parea sair do seu prprio ambiente parao do observador, para que parea sair vivo do quadro, necessrio depositar a luz no

    essencial, esquematicamente, e nem necessita de investir muito no detalhe, pois aprpria luz, em contraste com a sombra, o sugere.(17) o gnio na pujana do seu perodo pr-romano, manifestando, em todos os

    pormenores, os procedimentos que tornam a sua obra singular no seu contexto.Para concluir, nesta fase de aprofundamento do estudo, podemos propor com seguranaque, tratando-se da obra de um mestre, num esboo identifica-se com mais segurana oexerccio do seu gnio do que na obra acabada. Embora seja preliminar ao ser acabado,apresenta-se ao analista como o cadver dissecado se apresenta ao anatomista.Apresenta-se como o estdio essencial da inteno discursiva, reduzida ao essencial edespojada da excrecncia do detalhe.E o gnio de Velzquez, como um mestre do claro-escuro, percursor do

    impressionismo, consiste, em nosso entender, no facto de, salvo raras excepes a que oestatuto impe outro cnone, apresentar a obra acabada como um estdio do esboo. Emesmo quando o estatuto lhe impe outro cnone, domina o artefcio atravs do qual oesboo simula a obra acabada.Um boceto, como assinalam os tratadistas coevos, incluindo Francisco Pacheco sogro emestre de Velzquez, um esboo a preto e branco sobre uma dada preparao,

    posteriormente colorido no essencial, metido en colores.

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    O que uma corbeta

    De onde provir a ideia de que o Rei, na pintura actualmente exposta no Prado, executacom mestria uma corbeta? Ainda retomaremos este assunto assistidos por um mestre deequitao.Mas atentemos no retrato de Filipe III (Razonado 68). A o Rei executa obviamente umacorbeta.O que caracteriza a corbeta, no que respeita atitude do cavaleiro e do cavalo?Quando executa uma corbeta, o cavaleiro tem que baixar sensivelmente o calcanharabaixo do nvel do estribo, firmando-se solidamente na ponta bota, para contrariar omovimento de inrcia que o empurra para a frente e manter verticalidade do tronco,

    alinhado com o centro de gravidade do conjunto. As rdeas tm que se apresentartensas, pois o castigo do ferro de boca, associado ao comando das esporas, que obrigao cavalo a erguer-se sobre os quartos traseiros. Para isso, os cascos traseiros tm queavanar sob o ventre, quase sob o estribo do cavaleiro, o garrote tem que se elevarsensivelmente sobre o nvel da garupa e a expresso visvel de um esforo mtuo docavaleiro e da montada, esta sujeita vontade daquele, mesmo que a destreza eexperincia equestre do equitador lhe permita iludir a tenso. A postura da cabea e aexpresso facial do cavalo exprime todavia sempre a resistncia e rebeldia. O pescooenrola-se, porque o castigo da boca obriga a ponta do focinho a recuar. Eis a expressode toda a graa enrgica da raa do cavalo ibrico.Se atentarmos no esboo que estamos a analisar, logo constatamos que o cume dacabea da montada est alinhada, na latitude, com a base do pescoo do cavaleiro,

    porque o cavalo recuou a cabea para resistir ao castigo das rdeas, sendo obrigado aelev-la. Para mais, se traarmos uma linha vertical ascendente que saia do calcanhar da

    bota, ela passa pelo centro de gravidade do corpo do Rei e pelo eixo da fronte do seurosto, o que no se constata na pintura do Prado em que o calcanhar da bota estalinhado na vertical com a mo que segura as rdeas. A expressividade da corbeta imediata e toda linguagem da composio converge para a representao do drama da

    pose.Isto , toda expressividade que transmite a composio deste esboo, para l de outrosaspectos de pormenor da caligrafia pictrica, reside na serenidade do rosto do equitador,

    na elegncia da verticalidade do seu tronco, confrontada com a tenso dramticainerente pose e relao de sujeio da montada pelo cavaleiro. No seu sentido maisastuto, o Rei sujeita o seu trono, que a metfora dos seus domnios.H de resto um movimento estrutural de ascenso da massa constituda pelo cavaleiro ea montada, que permite ao pintor enquadrar o tema no formato de retrato.Depois do que foi j referido, no se justificam mais especulaes sobre o significadoideolgico derradeiro deste registo iconogrfico, ou iconolgico.Podemos apenas, como breve apontamento, chamar a ateno do leitor para o facto deque, no retrato do Prncipe Baltazar no Picadeiro Real, o debutante realiza com a mesmadestreza a mesma habilidade equestre, com a mesma elegncia e serenidade, dandomostras, ao olhar vigilante dos circunstantes, que se prepara para suceder ao Rei.

    Mas se estas duas composies so estruturadas pela verticalidade da massa constitudapelo cavaleiro e a montada, num movimento de ascenso, a composio da pintura do

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    Prado parece estruturar-se na horizontalidade. Se tivermos como inquestionvel aanlise feita pelos investigadores e tcnicos at ao presente, concluindo que mesmo osrestauros da pintura e as correces visveis em espectro so da autoria de Velzquez,h uma subverso bvia na inteno discursiva do pintor cujo significado nos pareceainda inatingvel. Mas o que nos parece que no assim to bvio que, na pintura do

    Prado, o Rei execute uma corbeta, no sentido dramtico da relao equestre que anomenclatura atribui pose.Ento de onde surge a ideia de que a singularidade da pintura do Prado reside nacorbeta que o Rei executa?Do nosso ponto de vista essa ideia reminiscente e recorrente. Surge da associao doretrato do Bom Retiro, de 1635, ao retrato de 1625.(18)

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    Concluses

    Independentemente do prosseguimento deste estudo e do seu carcter ainda provisrio,podemos desde j concluir o seguinte:

    1. A pintura em anlise no pode ser considerada uma cpia. No obedece aosrequisitos requeridos por uma cpia, seja, a prvia relao com a obra final, deque constariam pormenores de acabamento que aqui no se registam. Aliberdade da execuo, que a transforma, pela espontaneidade, numa realizaosuperior, prpria de um esboo. Uma cpia no retrocede, na forma deapresentao, em relao obra concluda. Muito menos pode ser uma cpia do

    retrato de 1634/35, dada a idade apresentada pelo retratado.2. O Rei apresenta uma idade incompatvel com a data de realizao do retrato

    executado para o Bom Retiro. inquestionavelmente um jovem com cerca devinte anos, sem bigode, em conformidade com os outros retratos coevos.

    3. Executado por Velzquez ou no seu atelier, como procedimento preliminar paraa realizao do retrato equestre de 1625, este esboo constitui o documentoindito mais notvel revelado durante as ltimas cinco dcadas para oaprofundamento do itinerrio artstico de Velzquez e da gnese da concepo ecomposio de uma das obras de arte universalmente consagradas, o RetratoEquestre de Filipe IV destinado ao Grande Salo dos Reinos do Palcio do BomRetiro, em Madrid.

    4. S face a argumentos tcnica e documentalmente fundamentados se podecontestar a autoria velazquiana deste esboo. Tal contestao teria ainda que

    justificar ou delinear o contexto em que qualquer outro pintor, mesmo discpulodo mestre, executaria este esboo. Sumariando, se isto no o esboo, da mode Velzquez, para o retrato equestre de 1625, ento o que ?

    5. Resta cobrir alguns iatos na reconstruo do itinerrio de posse desta obra,nomeadamente entre 1840 e cerca de 1910/20, cronologia que atribumos aoregisto de entrada no Museu de Arnhem, em circunstncias ainda no apuradas.Os dados j adquiridos so todavia consistentes. Esperamos em breve preencheralgumas falhas.

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    Notas

    1.Coincidentemente com o tema que estamos a tratar, uma das entidades percursorasneste itinerrio de inovao de recursos e procedimentos tecnolgicos foi o GabineteTcnico do Museu do Prado e a sua actual Directora Carmen Garrido. Destainvestigadora importa, para alm de outros ttulos, previamente citar: Techniqueradiographique grand format applicable in situ sur les tableaux exposs actuellementau Muse du Prado, ICOM, Copenhague, 1985 ; Velzquez, tcnica e evolucin, Museudel Prado, Madrid, 1985 ; Carmen Garrido e Jonatham Brown Velzquez. La tcnica del

    gnio, Yale e Madrid, 2002.

    Um excelente repertrio com referncias histricas acerca das operaes tcnicascientificamente consagradas, continua a ser Joyce H Townsend and Dr Katrien Keune,

    Microscopical techniques applied to traditional paintings, Tate Sudies, 54, London2005. Em geral, toda a obra de Joyce Townsend e seus colaboradores, bem como otrabalho de dcadas que lhe serve de suporte recorrente.En referncia ao nosso assunto, interessa-nos ainda a documentao tcnica produzidano contexto de intervenes de limpeza e restauro, nomeadamente a vasta obra, singulare em associao, de Enriqueta Harris.2. Leslie Carlyle, The Artist's Assistant: Oil Painting Instruction Manuals and

    Handbooks in Britain 1800-1900 with Reference to Selected Eighteenth-CenturySources, Archetype, 2001.Como obras de referncia, para o desenvolvimento progressivo na rea das recolhasdocumentais e de estudo de contexto scio-cultural da produo da obra artstica,

    podemos citar, em correspondncia ao tema que estamos a abordar, a recente publicaode Corpus Velazqueo, por Jos Manuel Pita Andrade y Angel Aterrido, Ministrio deEducacin, Cultura y Deporte, Madrid, 2000, edio actualizada dos dois volumes deVaria Velazquea, preparada por Antnio Gallego y Buris em 1960; Bassegoda iHugas, Bonaventura, edicin critica de El Arte de Pintura de Francisco Pacheco,Madrid, 1990; Aguill Y Cobo, Mercedes, Documentos para la historia de la pinturaespanla, I, Madrid, 1981; a obra genrica de Jonathan Brown, quer em autoriasingular, quer em co-autoria. Restantes referncias sero introduzidas recorrentemente,

    de acordo com o desenvolvimento do tema.3. Para certificao da referncia na sua verso original, acompanhada da crticaexaustiva de Bassegoda y Hugas, Francisco Pacheco, El Arte de la Pintura, 1990,citado. Referncias ainda em Corpus Velazqueo, tambm citado.Para complementar o xito que o retrato equestre do Rei suscitou na corte e a inveja oudespeito que suscitou em outros meios, sobretudo concorrentes, Carducho, Vincencio,

    Dilogos de la Pintura, Madrid, 1634, edio recente de Calvo Serraller, Madrid, 1979.Ainda Instituto Diego Velzquez, Velzquez: biografias de los siglos XVII y XVIII. Subiografa a travs de cartas y documentos contemporneos. Autgrafos. Facsmiles dedocumentos y impresos. Homenaje en el tercer centenario de su muerte , Madrid, 1960.Uma importante coleco documental a edio de Varia Velazquea, Volume I

    Madrid, 1960. Ainda a edio de Gloria Fernndez Bayton, Museo del Prado,Inventrios Reales, Madrid, 1974.

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    Tem sido proposto que uma gravura aberta a buril da autoria de Juan de Courbes, cujanica reproduo pertence Hispanic Society of Amrica, New York, tenha comomatriz o retrato de Velzquez d 1625. A peregrina ideia, primitivamente proposta porWilliam Stirling a quem pertenceu, foi recentemente retomada por Jos Manuel Matilla,no artigo com que contribui para a colectnea da Exposio Velzquez a Blanco y

    Negro, Museo do Prado, 2000. Como bvio, a gravura um pastiche que recolheelementos de vrias representaes equestres, mas sobretudo do retrato executado porRubens em 1628 e reproduzido por Velzquez em 1645 (Razonado 101).A ideia to absurda que entra em contradio com a referncia, sempre citada, dePacheco, relativamente ao retrato de 1625, que foi pintado do natural, mesmo a

    paisagem, pelo que os motivos histricos, melhor dizendo alegricos, introduzidos napaisagem da gravura no fariam qualquer sentido, porque o que Pacheco quer pr emdestaque exactamente o carcter singular do retrato, o Rei estampado numa paisagemdeserta, sem qualquer aluso de contexto.Mas a este propsito convm consultar Jos Lus Sancho, En torno al retrato ecuestrede Felipe IV por Velzquez, una hiptese, em Velzquez y su tiempo, V Joranadas de

    Arte, Departamento de Historia del Arte Diego Velzquez, Centro de EstdiosHisricos, CSIC Madrid, 1991.4. Ver nota 7.5. Garrido, Carmen, obras citadas.6. Para a consulta do original do texto do inventrio, remetemos para o CorpusVelazqueo. No texto do inventrio a pintura corresponde entrada 734,El Rey nuestroSeor en un caballo castao, de bara de alto. Da referncia bara de alto deduz-se aaltura cerca de 84 cm. Associa-se expressamente a outro representando El pincipe nroSr a cavallo, en bosquejo. Lpez-Rey remete para Pacheco, que refere que a expressobosquejo equivale a metido en colores, seja, pintado a leo sobre madeira ou tela, ou a

    preto e branco, ou utilizando a gama completa da paleta do pintor, sobretudo quando setrata da figura humana e das suas carnaes tirada do natural. Uma vez mais, no setornando muito explcito o contexto em que a medida tirada, com ou sem moldura, porexemplo, no ser de excluir a hiptese de esta referncia nomear o esboo que estamosa apresentar. Presumiramos ento uma esquadria de moldura com a largura de cerca de14 cm., admissvel sem reservas.Em 1840, o pintor Jos Bueno taxou as pinturas que integravam a coleco de D.Serafin Garcia de Huerta, magnate madrileno, fazendo delas inventrio. Com o nmero973 registou Felipe IV a caballo, boceto de Velzquez, dos tercias de alto por doscuartas de ancho, en mil reales. Dando a vara com 84 cm, o quadro apresentaria cercade 55 cm de altura por 42 de largura, as medidas do nosso esboo. difcil colocar em

    dvida esta coincidncia absoluta. de destacar que o pintor Jos Bueno distingue, aolongo de todo o inventrio, o que presume serem os originais e as cpias de Velzquez.Jos Bueno parece utilizar um critrio muito bem sustentado para as atribuies,identifica muitas cpias e seus autores, registando mesmo cpias recentes,nomeadamente de Goya. Jos Bueno recorria a uma experincia objectiva para os seus

    juzos, pois, como sabido, participara em campanhas de restauro das pinturas doPalcio Real, ao servio de Fernando VII. A coleco de Serafn Garcia de Huerta,

    parece integrar vrias obras de Velzquez que se dispersaram pouco depois para vriosdestinos, inclusive o n 906 Cabeza de San Antnio Abad, de Velzquez, tres cuartascoartas de alto por dos de ancho(...), que parece ser a que aparece em 1866 em posse deGil Moreno, hoje em coleco particular em Nova York. curioso notar que integrava

    vrios bocetos e bosquejos.

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    Todavia, para sermos exaustivos, temos ainda que citar a referncia 654 de CorpusVeazqueo, relao dos bens deD. Maria Francisca de Alarejos de 1745, outra pinturade Phelipe IV a caballo, de dos quartos y mdio de vara de cada y media vara deancho, com su marco dorado, original de Juan Bauptista del Mazzo . Sem dvida, asmedidas correspondem com relevante proximidade. Se se tratasse da mesma pintura,

    admitimo-lo com reservas, a atribuio no teria sentido, porquanto haveria dela quededuzir que o retrato do Bom Retiro era uma cpia de Velzquez sobre um original deMazzo. A atribuio a Mazzo advir, neste caso, de total incompreenso do estdio deapresentao da pintura, da recordao no muito remota da provenincia, uma vez queMazzo entrara na sua posse provavelmente por sucesso nos bens que ficaram no atelierde Velzquez, e do desconhecimento do contexto em que fora realizado este esboo.Mas esta referncia pode incidir numa das rplicas de mais difcil anlise, dada a mapresentao da obra sujeita a sucessivos repintes, que hoje integra as coleces doCourtald Institute, em Inglaterra, com as medidas de 61 X 46 cm.Para completarmos exaustivamente o corpus de referncias a registos de pequenoformato do retrato equestre de Filipe IV, ainda devemos registar a taxao das pinturas

    de D. Andrs Gonzlez de Bricianos por Jernimo Ezquerra, em 1702, outro (retrato)del rey Phelipe IV a caballo, com su marco negro, vara de alto y tres quartas de ancho,copia de Velzquez. Sem atribuir relevncia denominao de cpia, regressamos medida de altura do registo de inventrio dos bens do pintor, uma vara de altura,referindo-se agora explicitamente uma moldura negra, includa ou no nela.Um dos mais polmicos episdios no domnio da atribuio de uma obra a Velzqueztem decorrido em torno do retrato do Prncipe Baltazar no Picadeiro Real(Razonado,78). Tem sido posta em causa, nomeadamente, a qualidade da execuo, semequacionar, dadas mesmo as dimenses (144 X96 cm), de se tratar de um bosquejo.Chegou a ser atribuda a Mazzo. Lpez-Rey contesta, embora a insira no Razonado. Donosso ponto de vista, a obra genial, quer do ponto de vista de concepo ecomposio, quer de execuo. Talvez a mais notvel expresso do Velzquez percursordo impressionismo. A obra impressionou todavia o ambiente coevo de forma a motivarcpias, Wallace Gallery. Ser a esta obra que se refere o inventrio realizado aps ofalecimento do pintor?Harry, Enriqueta and Elliot, John, Velzquezs portrait of of Prince Baltazar on the

    Riding School, The Burlington Magazine, Janeiro de 1976.O itinerrio de posse e provenincia da obra parece muito difcil de estabelecer at1806, em que aparece em Londres, na posse de Lord Grosvenor. Todavia, a publicaoda exaustiva obra Collections of Paintings in Madrid, 1601-1755, da autoria de MarcusB. Burke e Peter Cherry, edio de Documents for the History of Collections, The

    Provenance ndex of the Getty Information Institute, Fondazione dellInstitutoBancrio, San Paolo di Torino, 1997, regista a obra na posse de Dom Gaspar Haro deGuzmn, Marqus de Carpio e de Eliche, num inventrio de 1687, com a entrada 330,Un Rettratto del Prncipe Dn Balthazar a Cavallo vestido de negro com sombreronegro y plumas blancas com un banda colorida y com el Duque, original de DiegoVelzquez de dos varas poco menos de cada e vara y terzia de ancho, com marconegro em quinientos ducados 5.500. De notar que a pintura que pertence hoje ao Duquede Westminster apresenta as medidas de 144 cm de altura por 96 de largura. Mas amedida do inventrio pode ter sido tirada com a referida moldura negra. matria sobre a qual nos pronunciaremos oportunamente.Sobre os problemas de anlise do itinerrio de posse de muitas obras atribudas a

    Velzquez, ver ainda Glendining, Nigel, Nineteenth Envoys in Spain and the Taste forSpanish Art in England, The Burlington Magazine, 1031, 1989. Brigstocke, Hugh, El

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    descubrimiento del arte espaol en Gran Bretaa , in En Tono a Velsquez, Pinturaespaola del Siglo de Oro, Oviedo, 1999.Lpez-Rey, Jos, On the matter of attribuition, Museologia, IV, Fiorenza, UIA, 1976.7. Nas correpondentes notas descritivas que acompanham as entradas do Catlogo

    Razonado, em particular na entrada do n 7, Lpez-Rey regista com alguma surpresa as

    incongruncias que se registam nas medidas atribudas aos diversos retratos do BomRetiro, de inventrio para inventrio. curioso registar que, citando o inventrio de1794, nota que as medidas atribudas ento aos retratos de Filipe III e da RainhaMargarida so aproximadas das com que se apresenta hoje o retrato do Conde deOlivares. Convm todavia por em destaque que parece manifestar-se uma ambiguidaderecorrente e consecutiva, com confuso entre a medida da base e do lado, nos registosdos inventrios. Algumas outras incongruncias menos relevantes podem advir de amedida ser tirada com ou sem moldura. Obra de referncia para recompor a topografiada disposio original dos retratos no Palcio do Bom Retiro, Gallegos, Manuel, SilvaTopogrfica, Madrid, 1637. Ainda de Jonathan Brown,A Place for a King. The Buen

    Retiro and the Court of Philip IV, Yale University Press, 1980.

    Existe no entanto um dado que raramente foi ponderado. Um dos mais consagradosdocumentos acerca do quadro em questo a gravura de Goya de 1778, que apresenta a

    pintura no formato de retrato, com propores coincidentes com as do esboo queanalisamos, razo de excesso de 1.2 da altura sobre a largura, seja, 370 X 210 mm.Outros pormenores, como a ausncia de arvoredo, a posio da rdea sada do ferro de

    boca, a joelheira da bota e o estribo, apresentam tambm toda a concordncia com esteesboo e dissonncia relativamente apresentao actual do quadro do Prado.Ora, em 1871, Bartolom Maura publica uma nova gravura em que o quadro tem aapresentao actual.Ser possvel que a pintura que Goya de facto reproduziu fosse o retrato de 1625,embora com breves alteraes recorrentes do de 1635, como por exemplo o penacho dochapu? Se atentarmos em alguns pormenores do Retrato Alegrico da Galeria Uffizi,como a posio do p sobre o estribo, o desenho da bota e dos cales, ou at mesmo o

    penacho vermelho que ornamenta o chapu do Rei, ou mesmo certos pormenores doscales, parecem recorrer ao prottipo registado no nosso esboo. Ora, o retrato daGaleria Uffizi considerado como uma encomenda ao atelier de Velzquez peloMarqus de Eliche, como reproduo de um outro pintado por Rubens em 1628, hojedesaparecido. Na gravura de Goya correspondem com o nosso esboo, a posio do pno estribo, o formato da bota, os cales, a ausncia dos motivos silvestres, para l das

    propores entre altura e largura.Sobre as operaes de restauro e recomposio que sofreram vrios quadros no Sculo

    XVIII, Sevllano, Maria Lusa Barreno, La restauracin de las pinturas reales en elsiglo 18, Archivo Espaol de Arte, LIII, 1980.8. A posio ideolgica de Velzquez em relao pintura ulica alegrica de tradiorubeniana encontra-se magistralmente exposta em Brown, Jonathan, Enemies of

    flattery: Velzquez portraits of Philip IV, Journal of Interdisciplinary History, 17, 1987.9. Importa aqui recalcitrar que a expresso tirado do natural significa que no se compsem estdio, mesmo utilizando e associando elementos dispersos de registos do natural,mas que se comps in situ, mesmo que a obra final possa ser depois objecto deexecuo em estdio. A referncia de Paccheco a que pintura foi tirada integralmente donatural, incluindo a paisagem, significa que o pintor esboou no exterior, emespontneo, executando a pintura definitiva em estdio. A maior arte dos retratos de

    interior so tirados do natural, sendo certo que o prprio ambiente domstico onde serealiza a pose se transforma provisoriamente em estdio.

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    Em termos de caligrafia pictrica, o que caracteriza este esboo exactamente oespontneo exterior, que o aproxima, de forma contundente, dos registos da VillaMdicis.10. Em termos de teologia poltica, a ideia que se expressa a de que, como prncipe dacristandade, o monarca absoluto, se constitui numa fugaz apario material, na terra, do

    Deus celeste invisvel. A mais notvel expresso literria coeva desta ideia dePolticade Dos, Gobierno de Christo, de Francisco Quevedo, Madrid, 1626. Quevedo erantimo de Pacheco.11. Para o itinerrio desta obra de Tiziano e sua estncia no Plcio do Alcazar, Madrazo,Pedro de, Catlogo descriptivo e histrico de los cuadros del Museo del Prado, Madrid,1872; Museo del Prado, Catlogo de las pinturas, Madrid, 1972. Acerca da iconografiasingular do retrato de Titiano, Carlos V, e do de Rubens, Filipe II, expresso cannicade uma concepo ulica tradicional apelativa alegoria, que de resto modelou aderradeira composio equestre de Velzquez, Retrato Alegrico de Filipe IV daGaleria Uffizi (Razonado, 101), de 1645, Larry, Ligo, Two seventeenth-century poemswich link Rubens equestrian portrait of Philipe IV to Titians equestrian portrait of

    Charles V, GAZETTE DES BEAUX ARTS, Junho de 1970.12. O que caracteriza todos os retratos masculinos de Velzquez, incluindo os do CondeDuque e do Prncipe Baltazar, que os retratados no se apresentam em pose equestre,mas parecem ter suspendido momentaneamente o movimento, para que o pintor registeo espontneo. As rainhas so retratadas em passage, ou seja, pose equestre. Aimportncia deste pormenor na concepo ser oportunamente desenvolvida. Masdevemos desde j dar destaque ao facto de que, enquanto todos os outros retratadossuspendem a cavalgada para olhar de frente o pintor, ou o observador, o Rei mantm oseu olhar altivo, indiferente ao pintor e ao observador. A ambiguidade que daqui resulta

    poderia interpretar-se da seguinte forma: o retratado no foi surpreendido pelo pintor epor essa razo suspendeu a carreira, mas o pintor foi surpreendido por uma sbita eacidental imobilizao do fluir contnuo do Rei, manifestao terrestre do Deus celeste,que o tornou momentaneamente visvel e perceptvel.13. Mau grado as teses que atribuem a Velzquez a recomposio do retrato, realizandoas suas extenses laterais, as anlises tcnicas do suporte documentam exausto que atela apresentava originalmente dimenses proporcionais a este esboo, excluindo o

    bosque do lado esquerdo, sendo manifestas no tardoz as correspondentes costuras.Garrido, Carmen, obras citadas.14. Referimo-nos, explicitamente, a uma srie consequente recorrente deLes Glaneusesde J. F. Millet, cujos expoentes consagrados so as referncias 176 e 178, de Van Gogh.Catalogue Complet, Gionano Testori e Lusa Arrigoni, Bordas, 1991. Mas poderamos

    referir ainda os nmeros 178 e 176 do mesmo catlogo, como exemplos explcitos deexerccio de anlise de pormenores de Velzquez, atravs dos quais o mestre holandstenta dissecar a metodologia de procedimentos que subjaz tradio castelhana dosbodegones.15. A mais pitoresca recolha de episdios anedticos transmitidos pela tradio Cumberland, Richard,Anecdotes of eminent painters in Spain during the sixteenth and

    seventeenth century, London, 1787. Mas a referncia mais expressiva, do ponto de vistalaudatrio, refere-se a um retrato do Rei que a crtica nunca conseguiu identificar, emrealao ao qual Daz del Valle, comenta que figura do retratado era to viva que nolhe faltava mais seno falar. Lzaro Daz del Valle de la PuertaEplogo y nomenclaturade algunos artfices (...), 1656, recolhido em Cantn, Francisco Xavier Snchez,

    Fuentes Literarias para la Histria del Arte Espaol, II, Madrid, 1933.

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    16. Na Rendio de Breda, por exemplo, o pintor recorre a um elaboradssimo artefciopara conseguir, num quadro inundado de luz e brilho, o efeito que sempre prosseguira.Ao colocar o episdio temtico numa posio elevada, como se fora um morro, o pintorremete a paisagem de fundo para um plano inferior ao do percurso das linhas de fuga,conseguindo um genial efeito de longinquidade, que lhe permite tratar todos os detalhes

    dos planos intermdios de forma sumariamente esquemtica. Para reforar este artefcioo pintor ainda coloca entre o primeiro plano e os planos descritivos da paisagem onde oscombates prosseguem, a cortina de lanas, como que para dificultar que a ateno doobservador trespasse o episdio temtico para explorar o detalhe do ambiente

    paisagstico. Talvez porque este artefcio foi desde logo entendido, a pintura foitradicionalmente intituladaLas Lanzas.Em Arachn, o pintor cria um extenso plano de vazio de luz entre o primeiro plano e oltimo; ao atirar o episdio temtico para o plano derradeiro, inundando-o todavia deluz, pode trat-lo com um esquematismo essencial sem que ele deixe de captivar aateno imediata do observador.

    No retrato equestre do Rei de 1635, o pintor utliza um artefcio muito semelhante ao da

    Rendio de Breda, permitindo-lhe que, mesmo inundada de luz, a paisagem possa seresquematicamente sugerida, porque a sua inteno, recorrente de acordo com arevelao deste esboo indito do retrato de 1625, que a paisagem no represente localalgum.17. Referindo-se ao retrato do Rei, de p, de 1628 (Razonado 36), Lpez-Rey nota que,no novo retrato, o solo no se apresenta marcado e os planos so sugeridos pela relaoentre a luz e a sombra. Poderamos fazer a mesma observao sobre o retrato do InfanteDom Carlos de 1628 (Razonado 37), mas, na verdade, tambm sobre o Conde Duque de1624 (Razonado 30), bem como em obras da ltima dcada de produo, como oBarbeiro do Papa de 1650 (Razonado 113) o prprio retrato do Papa Inocncio Xigualmente de 1650 (Razonado 114), ou mesmo Marte de 1639, no apogeu da pintura

    palaciana do mestre, com a sua sugesto rembrandtiana percursora.18. Na nomenclatura da equitao de tradio hispnica costumam-se distinguir doisexerccios de corbeta, la alta y la baja. A diferena consiste em que a corbeta baja um passo intermdio ou preparatrio para o pinote, um difcil exerccio mas um tantocaricato, com intensas razes andaluzas, em que o cavalo, aps saltitar sucessivamenteerguendo as mos e apoiado nas traseiras, projecta subitamente as traseiras para arectaguarda. O cavalo nunca se apresenta num equilbrio estvel sobre as traseiras, massim numa espcie de galope sem projeco frontal, como o piaf est para o trote ou o

    passo.Na corbeta alta, o cavalo apoia-se nas traseiras, conseguindo um momento, mais ou

    menos breve, de perfeito equilbrio estvel, podendo mesmo conseguir realizar algunsmovimentos livres com as mos.A nossa interpretao da pose equestre do Rei no retrato do Prado, tal como se apresentaaps as correces visveis, que executa uma corbeta baja, um exerccio hbil, massem o sentido iconolgico que atribumos corbeta alta do esboo que apresentamos.Assim sendo, se o tema consagrasse simplesmente a habilidade equestre do Rei, serianatural que as referncias consagradas pela tradio incidissem no pinote, que o Rei

    prepara, mais do que na corbeta.

    Lisboa, Novembro de 2007.

    Manuel de Castro Nunes

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    Retrato equestre de Filipe IV de Espanha

    Esboo preparatrio para a execuo do retrato de 1625

    Diego da Silva Velzquez

    Desenvolvimento

    A ausncia de contestao das concluses deduzidas no estudo que concluramos emNovembro de 2007, aps a incisiva confrontao de Carmen Garrido, do GabineteTcnico e da Direco do Museu do Prado com o seu contedo, reforou obviamente anossa convico de que a matria no vir a suscitar objeces fundamentadas.Algumas observaes, todavia, pronunciadas verbalmente por Carmen Garrido noPorto, quando teve oportunidade para observar presencialmente a pintura, bem como anecessidade que qualquer investigador rigoroso sente em aprofundar um assunto,reclamam-nos um investimento contnuo no desenvolvimento das matrias j abordadas.Ora, nessa ocasio dirigimos a Carmen Garrido contestao formal do seu juzo, que,uma vez mais, no obteve rplica. As questes objectivas que lhe colocvamos eraminultrapassveis.Estamos absolutamente convictos de que, com os dados apresentados em Novembro de2007, as premissas que formulmos ento em concluso eram j inabalveis.Os dados e observaes que fazemos agora acrescer apenas concorrem para o seureforo.

    Cpias e esboos

    Previamente ao retomar deste tema, estabeleamos uma nomenclatura operacional, deresto j consagrada na sua especificidade de utilizao em Histria da Arte, para que

    possamos interpretar o registo de um especialista quando identifica uma obra como umacpia. (1)Por norma, utilizamos quatro figuras de nomenclatura quando pretendemos identificaruma obra em referncia a um autor.Um original a obra acabada e como tal apresentada pelo seu autor, na sua primeira eoriginal realizao.Preliminarmente realizao do original, o autor pode ter realizado vrios estudos ouesboos, do todo ou de partes e componentes da composio, mais ou menos

    coincidentes com a apresentao final original, utilizando vrios procedimentos emateriais.

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    Se a obra tem um relevante impacto no ambiente scio-cultural em que o pintor seinsere, por sua prpria iniciativa ou por encomenda, o autor pode realizar, na suaoficina, com a sua maior ou menor interveno, ou simplesmente por encargo a umdiscpulo prximo, uma cpia do original que por norma se denomina rplica, para adistinguir das cpias alheias interveno do autor, ou mesmo posteriores aos limites da

    cronologia em que se baliza a sua actividade.Utilizamos a denominao de cpia para denominar uma reproduo, mais ou menosexacta, de um original do autor, realizada fora do contexto da sua interveno. A cpia

    pode ser em alguns raros casos coeva, mas geralmente posterior ao perodo daactividade do autor do original. Dependendo da excelncia do seu autor, a cpia pode-seaproximar, mais ou menos, da qualidade do original, ou mesmo raramente exced-la.Quando um autor segue os procedimentos e o estilo de um mestre j consagrado, narealizao de temas no recenseados na sua obra, hbito utilizar-se a denominao aoestilo de ou seguidor de fulano. Estas realizaes so, por norma, muito aproximadasda cronologia em que se desenvolveu a actividade do mestre, uma vez que o contextoscio-cultural de absoro ou aceitao de um estilo tende para caducar.

    Quando um mestre consagrado, no seu itinerrio de estudo, ou mesmo no contexto deenunciao das suas fontes de inspirao, replica um tema ou a tcnica e composio deoutro mestre anterior, como o caso de alguns impressionistas ou pr-impressionistasrelativamente a Velzquez, como Goya, Manet e Whistler, por exemplo, tornou-sehbito utilizar o termo francs remarque, a que equivaleria o portugus reminiscncia.A reminiscncia pode manifestar-se num exerccio de reproduo ou verso de umoriginal alheio, de acordo com a sua integrao num contexto esttico renovador, ou narecorrncia inspirao numa criao original. (2)A esta nomenclatura h que acrescentar o termo falso, ou contra-faco, aplicvel a umtrabalho que pretende passar por original atribuvel a um mestre consagrado e realizadocom essa inteno explcita. Um falso nunca reproduz todavia uma obra consagrada deum mestre, como bvio. Por outro lado, a atitude de falsificar ou contra-faccionarremonta, nos seus limites extremos, ao fim do Sculo XIX.Interessa-nos ento superar com significativos desenvolvimentos o tratamento quedramos ao assunto no estudo concludo em Novembro de 2007.A disputa acerca de rplicas, cpias e verses sem identificao conclusiva de obras deVelzquez constitui, por si s, uma disciplina. Para um pintor com menos de cento e dezobras conclusiva e unanimemente atribudas, a questo tem que ser entendida nocruzamento dos critrios de identificao com o processo que edificou e continua aidentificar o estatuto dos especialistas em Velzquez, assunto a que recorreremosadiante. Mas o mnimo que se pode afirmar que o corpus de obras em contencioso

    excede em nmero o das obras conclusivamente atribudas. Entre aquelas que seencontram ainda em contencioso, mais ou menos aceso, encontram-se obras geniais decriao artstica, como o caso da Santa Rufina recentemente adquirida pela FundaoAbengoa.O itinerrio de posse das obras de Velzquez, como de muitos outros mestres da pinturaespanhola do Sculo XVII, outra disciplina. A mobilidade destas obras est

    profundamente associada primeiro instabilidade poltica e social que o Reino viveudurante o Sculo XIX e os apetites dos legados franceses e ingleses, depois com asangria patrimonial que se verificou durante a Guerra Civil no Sculo XX. Constitui umacumulado de episdios mais ou menos identificado, todavia ainda polvilhado de hiatos.Por exemplo, o destino dado a muitas das obras velazqueas registadas em 1840 na

    coleco de Don Serafn Garcia de Huerta est ainda longe de estabelecer.Particularmente interessante o registo de representaes de paisagens (pases)

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    referenciadas literalmente autoria de Velzquez, em vrias coleces inventariadasatravs dos sculos, a quem actualmente no se atribui alguma.As rplicas, cpias, ou composies e temas mais ou menos fundamentadamenteatribudos disseminam-se por museus e coleces privadas, em Inglaterra, EstadosUnidos da Amrica, ustria, muitas ignoradas ou silenciadas pelos mais reputados

    investigadores, na maioria dos casos sem suporte tcnico e documental consistente.Mas recenseemos as verses que hoje subsistem, identificadas, do retrato equestre deFilipe IV, na composio mais ou menos similar do retrato do Prado de 1635.Em geral so citadas trs. Duas de pequenas dimenses, uma pertencente ao CourtaldInstitute de Londres, outra guardada no Museu da Fundao Cerralbo em Madrid. Umae outra divergem em detalhes relevantes do retrato de 1635 tal como hoje se apresentano Prado, recomposto aps o incndio de 1640. (3)Outra guarda-se no Palcio Pitti em Florena, a mais evidentemente replicada do retratode 1635, excepto no formato. Celebrizou-se, para l do mais, pelo exerccio de cpia deestudo que na sua presena realizou Manet.

    Nas primeiras edies do seu Catlogo Razonado, Lpez-Rey invoca o juzo de Allende

    Salazar, segundo o qual, as rplicas Cerralbo e Courtald teriam sido pintadas antes de1640, dada a posio das patas traseiras do cavalo, uma vez que se encontram na

    posio visvel em espectro no retrato do Prado, mais avanadas sob o ventre damontada. (4)Lpez-Rey, na edio de 1978, prope sem restries que estas duas rplicas devem tersido pintadas tendo como modelo o retrato do Rei montado num cavalo castanho, que

    jazia no atelier de Velzquez aps o seu falecimento, e que, em sua opinio, seria umesboo. Todavia, sobre esta verso nada se sabe, para l do seu registo documental noinventrio.Todas estas especulaes esbarram com um facto incontornvel. A rplica do CourtaldInstitute apresenta-se hoje num estado bastante degradado, com vrios repintes bvios,muito afectada por oxidaes intensas de vernizes, que dificultam uma observaodetalhada. O mesmo acontece com a rplica de Cerralbo. Sobre qualquer delas noexiste recolha de documentao tcnica laboratorial que permita superar estesobstculos. De igual modo, o seu itinerrio de posse nunca foi aprofundado. (5)Mas o que parece tambm difcil de contornar que existia um esboo no atelier do

    pintor, fosse do retrato de 1635 ou do de 1625. Parece tambm incontornvel que esseou outro esboo estava na posse de Don Garcia de Huerta em 1840.Uma anlise atenta da rplica Courtald, tal como possvel observ-la afectada porintensa degradao, sustentaria a hiptese de se tratar do esboo da soluo para oretrato de 1635, o que significaria que estaria para o retrato do Prado, como o nosso

    esboo estaria para o desaparecido retrato de 1625. (6)O que todavia no tolera dvidas que a verso da Galeria Pitti replica o retrato de1635, excepto no formato, na sua formulao acabada.A questo do formato original do retrato de 1635 para o Palcio do Bom Retiro tem sidoabordada sem questionar um dado elementar que nunca captivou,incompreensivelmente, a ateno dos especialistas. Todas as reconstrues dadisposio original das pinturas que ornamentavam o Grande Salo dos Reinos doPalcio do Bom Retiro colocam os retratos do Rei Filipe IV e da Rainha Isabel suamulher ladeando o prtico nobre de entrada no salo. O Retrato do Prncipe BaltazarCarlos, no alto, sobre o lintel. (6)Ora esta deve ter sido a disposio decorrente da reordenao do espao aps o incndio

    de 1640, razo pela qual os retratos de Filipe IV e da Rainha tiveram que serredimensionados. Porque em 1637, na sua Silva Tipogrfica, Manuel Gallegos , quanto

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    localizao do retrato do Rei, conclusivo:Entra en el Saln; y alegre mira / la copiade Felipo, que pendiente / adorna desta puerta el eminente / (...). A expresso bvia,adorna o eminente, seja, o retrato do Rei ornamentava o paramento sobre o lintel da

    porta, no local onde, depois de 1640, seria colocado retrato do Prncipe. (7)Se compararmos a rplica Pitti com o original do Prado, h um detalhe que salta bem

    vista. O espectro do contorno original do carvalho que remata o bordo esquerdo dacomposio, no retrato do Prado, avana sensivelmente em direco garupa do cavalo,exactamente como se apresenta na rplica Pitti. A sensao que se colhe a de que orecuo do tronco foi possvel com a extenso lateral da pintura, presumidamente aps orestauro posterior a 1640.Da mesma forma, se traarmos um prumo que passe pela ponta dos cascos das patastraseiras da rplica Pitti, ele vai passar sobre o eixo do rosto do Rei, o que acontece serealizarmos a mesma operao fazendo passar o prumo pela ponta dos cascos emespectro no retrato do Prado. Tal prumo passa ainda frente da mo enluvada quesegura o basto.Se fizermos passar tal prumo pela ponta dos cascos do retrato j corrigido do Prado, ela

    recua sensivelmente em relao a estes detalhes. Esta operao faz presumir que arplica Pitti reproduz o retrato de 1635 antes das correces introduzidas aps oincndio de 1640. A rplica Pitti apresenta-se no formato original do retrato, tal comofoi colocado originalmente sobre o prtico do Grande Salo dos Reinos em 1635. Noseramos os primeiros a, com ou sem propsito, formular a hiptese de a rplica Pitti sera que foi enviada de Madrid a Florena para servir de modelo esttua equestre doescultor Pietro Tacca. (8)A verso Cerralbo apresenta grande similaridade com a verso Pitti, pelo que, em vrioslivros de divulgao corrente, aparece reproduzida em substituio do retrato do Prado.(9)Ora, se realizarmos ainda a mesma operao sobre o retrato Courtald, verificamos queeste prumo passa agora frente do rosto Rei, denunciando um intenso avano doscascos traseiros sob o ventre do cavalo, tornando a elevao da corbeta muito maisbvia. Tambm a cabea do cavalo apresenta ainda o perfil acentuadamente convexo docavalo andaluz, o pescoo mais recolhido, em aproximao ao nosso esboo, com umaraa e rebeldia expressivas.Todavia, se os componentes da paisagem vegetal prxima, tronco e folhagem decarvalho no bordo esquerdo, esto ainda ausentes nesta verso, a Courtald, so bvios jdetalhes de aproximao ao retrato de 1635. A idade do Rei; o recuo do tronco do Rei,que se senta firmemente na sela, descarregando os estribos, perdendo a verticalidadebvia no nosso esboo; os ornamentos do chapu e vrios detalhes dos arreios.

    Comunga todavia com o nosso esboo, precisamente, a sua intensa expressividade quelhe advm da apresentao em esboo.Se propusssemos pois uma sequncia entre todas estas verses seria:O nosso esboo o do retrato pintado em 1625. A verso Courtald uma soluointermdia, o esboo para a transformao da composio de 1625 no retrato destinadoao Bom Retiro de 1635. As verses Cerralbo e Pitti so rplicas do retrato de 1635antes das intervenes posteriores a 1640. Como veremos, abonar em favor da nossa

    proposta a anlise dos dados documentais alusivos a verses deste retrato em vrioscontextos de posse. Como abona em favor da proposta de que as verses Courtald eCerralbo tiveram como modelo, ou foram modelo no caso da verso Courtald, o retratode 1635 antes das alteraes introduzidas aps 1640 a opinio desde sempre formulada

    pelos estudiosos e recolhida por Lpez-Rey, sbita e inexplicavelmente rasurada nasedies recentes da sua obra.

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    Concentremo-nos agora numa anlise detalhada do nosso esboo, tendo em referncia,por razes operacionais de simplificao, as razes verbal e informalmente alegadas porCarmen Garrido para fundamentar a sua opinio de que se trata de uma cpia incipientedo retrato de 1635, realizada fora do contexto scio-cultural do mestre, durante o SculoXVII, ou, possivelmente, XVIII. (10)

    Para l de registos que consideramos despropositados e inconsistentes aquando da breveobservao de alguma documentao a que procedeu na minha presena, em Madrid,em relao aos dados registados no Relatrio de Anlise de Pigmentos e Estratigrafiarealizado pelo Instituto Portugus de Conservao e Restauro, que abordaremos emseguida, Carmen Garrido, na presena fsica da pintura, fez no Porto, em 23 de

    Novembro de 2007. os seguintes juzos e no mais:1. O aparato documental que informa a anlise da obra, tanto o tcnico e

    laboratorial como o arquivstico e bibliogrfico, no assumem qualquerrelevncia face aos dados extrados da observao directa, a olho nu, por umespecialista da craveira de Carmen Garrido.

    2. A pintura, sem qualidade tcnica nem esttica, uma cpia tardia do Sculo

    XVII ou mesmo do Sculo XVIII.3. Concorrem para o desapreo pela realizao tcnica e artstica a indefinio do

    recorte do brao direito do Rei, bem como distores de perspectiva que nele seregistam, tambm no lanamento da perna visvel. Para l destes detalhes esobretudo, as pinceladas que no solo sugerem motivos vegetais.

    Ora Carmen Garrido comungou a opinio de Prez Sanchez, no que respeita atribuioinquestionvel a Velzquez da Santa Rufina adquirida em Maro de 2007 pelaFundao Abengoa. sabido que uma forte corrente de opinio contestou desde sempreessa atribuio, encabeada por nomes como Jonathan Brown e Calvo Serraller, ex-Director do Museu do Prado. (11)Em declaraes proferidas contra o juzo de Calvo Serraller, Prez Sanchez repetiu umrecorrente e permanente argumento. As pinceladas desordenadas que se revelaram nofundo, no quarto superior direito, aps a limpeza recente do quadro, constituem marcasde limpeza do pincel, hbito registado em muitas obras do mestre, muitas vezesaproveitadas para sugerir motivos menos definidos da composio, sobretudo emdetalhes esboados. Prez Sanchez acrescenta que a presena de tais marcas, ou

    pinceladas indefinidas, constituem, para um observador experiente, o equivalente a umaassinatura do mestre.

    Na sua vasta obra, Carmen Garrido regista correntemente este pormenor singular dacaligrafia pictrica de Velzquez. (12)Este procedimento, visvel em muitas obras de pequena dimenso que denotam uma

    execuo espontnea, quase com a natureza de um esboo, como o caso do retrato deDon Diego Acedo, El Primo, revelam-se sobretudo em descargas e limpezas depigmentos ou coloraes escuras, nomeadamente os verdes velazquianos, sobre fundosmais ou menos claros, aproveitadas para sugerir detalhes indefinidos. Como a passagemdo pincel, para descarga de limpeza, mais agressiva, o efeito visvel que tende a criar de um rebordo escuro, constitudo pelas excrecncias do pigmento ou da tonalidaderestante no pincel, bordejando uma rea mais clara, provocada pelo atingir da camadasubjacente. Este procedimento manifesta-se genial para sugerir um elemento vegetaldifusamente iluminado, podendo depois ser ou no alvo de retoque posterior. Mas se adescarga for mais suave, apresentar-se- como um trao mais ou menos espesso detextura e colorao uniforme, sugerindo espectros de detalhes remotos e indefinidos,

    que o podero vir a ser ou no.(13)

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    Admitindo a autoria velazquiana da Santa Rufina, teramos que concluir que a obra nochegou a ser acabada e que as descargas de limpeza visveis no quarto superior direitoseriam aproveitadas pelo mestre para compor a sugesto de um motivo de fundo. Deoutra forma, manifestar-se-iam mais esteticamente perturbantes do que as descargas queno nosso esboo serviram para sugerir vegetao herbcea no primeiro plano. (14)

    Mas, neste caso, estamos sem qualquer dvida na presena de um esboo, em que asdescargas servem para assinalar na composio o lugar onde o mestre deveria depositaros detalhes do solo. Com a mesma liberdade com que trata, em tonalidade creme, quaseem impasto, mas descarregando intensamente o pincel para criar texturas, sugerindo

    jogos de luz e sombra, a rea clara do solo contgua e por detrs daquela em que amontada do retratado se colocou.Recorrendo pois ao argumento de Prez Sanchez, poderamos at alegar que nestedetalhe do nosso esboo, que serviu de contestao a Carmen Garrido, se deveriareconhecer a assinatura do mestre.Passemos ao recorte do brao direito e pressuposta distoro de perspectiva.Se observarmos com detalhe a rea do horizonte contgua ao brao e ombro direito do

    Rei, bvia a sucessiva correco da posio do brao, que baixa at soluo final,com pelo menos trs registos bem delimitados por contornos em branco de chumbo. Talregisto, bem documentado radiograficmente, tambm visvel por observao directa.Diramos mesmo que, ao deixar bem visvel em espectro as trs posies, a mente do

    pintor se iluminou, ao perceber que essa sucesso de correces transmitia aoobservador a sensao de movimento postero-anterior do brao do Rei. bastantecurioso registar, que o mesmo movimento, registado por espectros de correces, tambm visvel, a olho nu, no retrato equestre de Filipe III. visvel na radiografia do retrato de Filipe IV do Prado, mas no se regista a olho nu.Ora, como se pode explicar, admitindo que este esboo uma cpia do retrato do Prado

    posterior a 1640, que o copista, em presena do modelo, revelasse, com tanta evidncia,tais hesitaes na posio do brao? No faria qualquer sentido. Nunca se trataria deuma de hesitao na reproduo de um detalhe de um original vista, sem dvida a

    procura, no acto da criao, de insero de um componente estrutural da composio.Esta procura de soluo no contorno do desenho de um componente estrutural dacomposio, provocou uma rea de impasto de branco de chumbo perfeitamente visvela olho nu, criando a sugesto de movimento ou de espontneo to caracterstico numcerto universo das mais geniais obras do mestre. Esta indefinio do contorno, de resto,contribui em nossa opinio para consagrar a mais louvada das habilidades do pintor, acriao da sugesto de que o modelo do retrato est vivo e se move. Ela regista-se,tambm, em muitos outros detalhes da composio deste esboo, nomeadamente em

    torno da cabea do Rei e da emplumagem do seu chapu.A sua evidncia neste esboo pode explicar-se por duas razes. Porque, tratando-se deum esboo, tornava-se irrelevante rasurar as marcas de pesquisa do contorno definitivo.Porque, se o esboo avanasse para um estado mais acabado, a sua presena em estratosubjacente, dada a densidade e luminosidade do branco de chumbo, manteria o seuefeito, emboscado todavia sob as camadas de acabamento. , ao fim e ao cabo, a snteseda caracterizao que Carmen Garrido faz da caligrafia e dos processos caligrficos da

    pintura de Velzquez.

    Itinerrio de posse

  • 7/27/2019 Retrato Equestre de Filipe IV- Velzquez para Garrido

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    A pintura apresenta no tardoz, colada no membro horizontal superior do bastidor, nocanto esquerdo, uma etiqueta em papel, com a designao dos campos a preencherimpressa, que regista a sua passagem pelo Gemeentmuseum Arnhem (MuseuMunicipal de Arnhem). esquerda dispem-se sucessivamente trs campos: Schider

    (Autor), Titel (Ttulo ou Assunto), Eigenaar (Dono ou Proprietrio).Do uso da designao Eigenaar deduz-se que estas etiquetas se destinavam ao registode objectos que no se encontravam na posse definitiva do Museu nem integravam o seu

    patrimnio, mas estavam a depositadas a ttulo precrio. Tal pressuposto reforado,como veremos, pelo nmero de registo a atribudo pintura.O campo para registo do nome do Autor apresenta-se ilegvel, por rasura outraumatismo, intencional ou no, que descascou a camada superficial do papel. Ocampo que regista o Assunto refereMan te paard, seja Homem a cavalo, ou Cavaleiro.O campo para registo do Proprietrio refereMer Cavaere de Stuers.Partiremos do pressuposto de que esteMer Cavaere de Stuers , nem mais nem menos oSenhor (Meneer) Chevalier de Stuers, ou Chevalier Alphonse de Stuers, personalidade