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Retórica e Argumentação Paulo Serra Universidade da Beira Interior Ano lectivo 1995/96 Índice 1 Introdução 1 2 Da retórica à teoria da argumentação 3 3 Ducrot: a argumentação na língua 7 4 Análise de umtexto de Platão 15 5 Conclusão 24 6 Bibliografia 25 7 Anexo 26 1 Introdução É um lugar comum, hoje em dia, dizer-se que o século XX é o "século da linguagem". Factores como o desenvolvimento das no- vas tecnologias de informação e comunica- ção (mediante as quais toda a experiência hu- mana tende a tornar-se linguagem e comuni- cação), a consolidação dos regimes demo- cráticos (em que a palavra, e não a violência ou a força, se assume como instrumento da actividade política), a "crise de fundamen- tos"que sacudiu as Matemáticas nos princí- pios do século, o desenvolvimento científico e técnico em geral, vêm trazer para primeiro plano a necessidade de estudar os fenómenos da comunicação e da linguagem. Como re- sultado desta necessidade, a problemática da linguagem "invadiu as ciências humanas e a filosofia."(Meyer, 1992: 5). Mas, se a "invasão"das ciências humanas e da filosofia pela problemática da linguagem é um fenómeno (relativamente) recente, a preocupação prático-teórica do homem com a linguagem é bem mais antiga. Mais pre- cisamente, ela remonta aos Gregos, à filo- sofia grega. Com efeito, segundo Kristeva, "a filosofia grega forneceu (...) os princípios fundamentais segundo os quais a linguagem foi pensada até aos nossos dias."(Kristeva, s/d:149). Toda a filosofia teve (tem), desde o seu início, de confrontar-se com esse fe- nómeno tipicamente humano que é a lin- guagem. A etimologia confirma-nos, jus- tamente, essa ligação entre filosofia e lin- guagem: a palavra grega logos, que cos- tuma traduzir-se por "razão", pode também traduzir-se por "discurso"(a Filosofia apa- rece, desde o seu início, como um "discurso racional"ou uma "razão discursiva"). Assim, tem todo o sentido que, na Grécia, os estu- dos sobre a linguagem sejam inseparáveis da filosofia (da linguagem) - situação que, no Ocidente, se vai manter até ao aparecimento de Peirce, no século XIX. (ver Ducrot e To- dorov, 1978: 66). A partir dos finais do século XIX, a pro- blemática da linguagem vai interessar espe- cialmente três disciplinas:

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Retórica e Argumentação

Paulo SerraUniversidade da Beira Interior

Ano lectivo 1995/96

Índice

1 Introdução 12 Da retórica à teoria da argumentação33 Ducrot: a argumentação na língua 74 Análise de umtexto de Platão 155 Conclusão 246 Bibliografia 257 Anexo 26

1 Introdução

É um lugar comum, hoje em dia, dizer-se queo século XX é o "século da linguagem".

Factores como o desenvolvimento das no-vas tecnologias de informação e comunica-ção (mediante as quais toda a experiência hu-mana tende a tornar-se linguagem e comuni-cação), a consolidação dos regimes demo-cráticos (em que a palavra, e não a violênciaou a força, se assume como instrumento daactividade política), a "crise de fundamen-tos"que sacudiu as Matemáticas nos princí-pios do século, o desenvolvimento científicoe técnico em geral, vêm trazer para primeiroplano a necessidade de estudar os fenómenosda comunicação e da linguagem. Como re-sultado desta necessidade, a problemática dalinguagem "invadiu as ciências humanas e afilosofia."(Meyer, 1992: 5).

Mas, se a "invasão"das ciências humanas eda filosofia pela problemática da linguagemé um fenómeno (relativamente) recente, apreocupação prático-teórica do homem coma linguagem é bem mais antiga. Mais pre-cisamente, ela remonta aos Gregos, à filo-sofia grega. Com efeito, segundo Kristeva,"a filosofia grega forneceu (...) os princípiosfundamentais segundo os quais a linguagemfoi pensada até aos nossos dias."(Kristeva,s/d:149). Toda a filosofia teve (tem), desdeo seu início, de confrontar-se com esse fe-nómeno tipicamente humano que é a lin-guagem. A etimologia confirma-nos, jus-tamente, essa ligação entre filosofia e lin-guagem: a palavra grega logos, que cos-tuma traduzir-se por "razão", pode tambémtraduzir-se por "discurso"(a Filosofia apa-rece, desde o seu início, como um "discursoracional"ou uma "razão discursiva"). Assim,tem todo o sentido que, na Grécia, os estu-dos sobre a linguagem sejam inseparáveis dafilosofia (da linguagem) - situação que, noOcidente, se vai manter até ao aparecimentode Peirce, no século XIX. (ver Ducrot e To-dorov, 1978: 66).

A partir dos finais do século XIX, a pro-blemática da linguagem vai interessar espe-cialmente três disciplinas:

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a) a Lógica - em que se destacam os tra-balhos de autores como Frege (cuja distin-ção entre "sentido"e "referência"desencadeiatodo um conjunto de discussões fundamen-tais), Russell, Wittgenstein, Peirce (paraquem a Lógica se identificava com a Semió-tica), Morris, Carnap, Quine, etc.

b) a Linguística - que Saussure, o seu fun-dador, concebia como fazendo parte de umaciência mais geral, que deveria estudar a vidados signos no seio da vida social, a que cha-mou Semiologia ou "ciência dos signos"; aSaussure juntam-se autores como Hjelmes-lev, Jakobson, Barthes, Eco, Benveniste, Pri-eto, Ducrot, Chomsky, etc.

c) a Filosofia da Linguagem - que in-clui muitos dos autores citados a respeito daLógica, e outros mais recentes como Aus-tin, Searle, Ricoeur, Habermas, Perelman,Meyer, etc.

Da confluência (não isenta de conflitos)dos trabalhos de lógicos, linguistas e filóso-fos da linguagem acabaria por surgir o pro-jecto de uma ciência geral dos signos, a quePeirce, retomando um termo inventado porLocke no século XVII, chamaria Semiótica,e Saussure chamaria Semiologia - termosque, embora com a mesma etimologia (am-bos derivam do grego semeion, "signo"ou"sinal"), correspondem a orientações teóri-cas divergentes. Na actualidade, o projectosemiótico continua por realizar - tão gran-des são a diversidade e a conflitualidade dasabordagens da linguagem que coexistem noseio do que se continua a chamar Semiótica.

Esta diversidade e esta conflitualidadenão impedem, no entanto, alguns consen-sos. É hoje consensual, entre os especia-listas da linguagem, que esta tem três fun-ções fundamentais: a comunicação indica-tiva/referencial de factos e estados de coisas;

a expressão da subjectividade e do pensa-mento; a persuasão do interlocutor. Tambémé mais ou menos admitida (embora discu-tida quanto à forma que deve assumir) a dis-tinção, introduzida por Morris1 e retomadapor Carnap, entre três níveis da linguagem:a Sintaxe (que trata da relação formal dossignos uns com os outros), a Semântica (quetrata da relação entre os signos e os objectosa que se aplicam) e a Pragmática (que tratada relação entre os signos e os intérpretes).(ver Meyer, 1992: 110).

A consciencialização e o estudo do carác-ter pragmático da linguagem - inicialmenteem polémica com a linguística de inspiraçãoSaussuriana, assente na distinção entre lín-gua e fala e centrada no estudo da primeira- é uma das aquisições fundamentais da ac-tuais investigações sobre a linguagem. Mas,mais precisamente, em que consiste a Prag-mática?

Segundo Adriano Duarte Rodrigues, aPragmática dedica-se "ao estudo da dimen-são interlocutiva da linguagem e da sua re-lação com as outras dimensões da lingua-gem."Esta dimensão interlocutiva pode, se-gundo o mesmo autor, ser definida como "arelação de troca de discursos entre homenssituados num espaço específico de interlocu-ção."Este espaço de interlocução apresenta-se "como um espaço agonístico, de luta dediscursos, como uma logomaquia". (Rodri-gues, 1996: 15) Segundo o mesmo autor,apesar de a dimensão interlocutiva da lin-guagem ser "de todos os tempos e socie-dades", o seu relevo actual é indissociáveldos seguintes factores: a "viragem logotéc-

1Cf. Charles Morris, "Fundamentos da Teoriados Signos", tradução policopiada na Universidade daBeira Interior (Tradução de António Fidalgo), 1994,p.7.

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nica"característica do mundo actual - vira-gem que se traduz num conjunto de "proce-dimentos técnicos de tratamento e encenaçãodos discursos, visando a elaboração de efei-tos de sentido e a sua imposição"(Rodrigues,1996: 137, nota 4), e que se materializa naexpansão crescente das redes de informaçãoe telecomunicação; a necessidade de ultra-passagem da "crise de fundamentos", abertapela Modernidade (crise que, ao contrário doque muitos supuseram, não foi resolvida pelodesenvolvimento da ciência e da técnica), eque exige a interlocução entre indivíduos esociedades na procura dos consensos neces-sários; a crescente tomada de consciência daimportância da linguagem na nossa relaçãocom o mundo e com os outros. (Rodrigues,1996: 16-19).

O presente trabalho, ao incidir sobre a pro-blemática da Argumentação, visa justamentetomar consciência de alguns dos mecanis-mos envolvidos na dimensão interlocutiva dalinguagem. Ele constará de três partes funda-mentais:

1a Parte. Analisará sucintamente o per-curso que, da Retórica Antiga (e do seuprogressivo apagamento), nos conduz à (re-)descoberta contemporânea da retórica, en-tendida como Teoria da Argumentação.

2a Parte. Analisará algmas das teses cen-trais de Oswald Ducrot sobre a natureza ar-gumentativa da Língua, configurando umaproposta que nos parece ser bem mais inte-ressante que a de Perelman.

3a Parte. Tentará aplicar, a um texto dePlatão, as teses de Ducrot analisadas na IIParte.

2 Da retórica à teoria daargumentação

2.1 A retórica antigaPorque é que, sendo a dimensão interlocutivada linguagem um fenómeno de todos os tem-pos e de todas as sociedades, como se referiaacima, é o seu estudo científico (a Pragmá-tica) um fenómeno tão recente?

A partir de Platão, e salvo raras excepções,a metafísica ocidental, ao olhar para a lin-guagem, tendeu a privilegiar a sua dimen-são apofântica, declarativa e locutória. Oseu ideal de linguagem (sempre perseguidoe nunca alcançado), é o lógico-matemático(lembremo-nos, a título de exemplo, dosprojectos cartesiano e leibniziano de uma"mathesis universalis", da constituição da fi-losofia como uma "ciência de rigor", parautilizarmos a expressão de Husserl). Esseprojecto, irrealizado pela metafísica, vai serretomado e realizado pela ciência moderna,a partir de Kepler, Galileu, Descartes e New-ton - e, assim, seria justificado dizermos quea ciência moderna é, também neste aspecto,a verdadeira herdeira da metafísica plató-nica, que aquela é a realização do sonhodesta2.

Saber é, para os Modernos, fazer Ciên-cia; e fazer Ciência consiste em formali-zar e matematizar, eliminando os usos "im-plícitos"("equívocos") das linguagens natu-rais, encaradas como "inadequadas"para tra-duzir as relações entre os fenómenos natu-rais. O discurso científico, entendido comodiscurso lógico-matemático, é o modelo to-talitário que a Modernidade se (nos) propõe.

2Como sabemos, esta é, grosso modo, a tese de-fendida por Heidegger, ao longo de várias das suasobras.

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4 Paulo Serra

Ora, segundo Perelman, a pretensão dametafísica e da ciência moderna de toma-rem o discurso declarativo e unívoco comonorma de descrição da linguagem, condu-ziu a "negar as outras formas de discurso,ou a desvalorizá-las como fazia Platão, acu-sando de sofístico todo o uso linguístico nãoapoiado na essência, na definição, na cla-reza a priori."(Perelman, citado em Meyer,1992: 120). Ainda segundo o mesmo au-tor, "a grande tradição metafísica ocidental,ilustrada pelos nomes de Platão, Descartes eKant, opôs sempre a busca da verdade, ob-jecto proclamado da filosofia, às técnicas dosretóricos e dos sofistas, que se contentam emfazer admitir opiniões tão variadas quantoenganadoras."(Perelman, 1993: 25).

Esta posição da metafísica e da ciênciaocidentais foi, seguramente, uma das prin-cipais causas do obscurecimento e mesmo"recalcamento"daquela que foi uma das cri-ações fundamentais do génio grego: a Re-tórica, considerada por alguns como "o pri-meiro testemunho, na tradição ocidental,duma reflexão sobre a linguagem."(Ducrot eTodorov, 1978: 99). E reflexão, nomeada-mente, sobre a dimensão pragmática ou in-terlocutiva da linguagem3.

Encontramos a Retórica pela primeira vezna Sicília, no século V AC. Segundo a lenda,Hiéron, tirano de Siracusa, teria proibido aosseus súbditos o uso da fala. Conscientes,

3A este proópsito, diz Tito Cardoso e Cunha:"Com Platão assiste-se à derrota teórica dos Sofis-tas que perdurará até bem perto de nós. Daí provémtambém certamente a desconfiança que ainda nos des-perta a simples menção do termo retórica, nomeada-mente na comunicação política."(Cardoso e Cunha,1995: 25). E acrescenta: "É assim que, no empregocorrente e pejorativo que fazemos do termo retóricacomo discurso feito de aparência e falsidade, estamos,ainda hoje, a ser platónicos."(idem, 27)

assim, da importância da mesma, os sici-lianos Corax e Tísia teriam criado a Retó-rica, iniciando deste modo o estudo da lin-guagem não enquanto "língua"mas enquanto"discurso"(isto é, resultado de um acto deenunciação concreto ou "fala").

A Retórica vem a ganhar uma enorme im-portância na democracia ateniense, em queo saber falar, para persuadir e convencer, setorna essencial: nos tribunais, nas assem-bleias políticas, nas praças públicas, nos en-contros sociais... A Retórica assume, as-sim, no seu início, "um carácter pragmático:convencer o interlocutor da justeza da suacausa."(Ducrot e Todorov, 1978: 99) , apa-recendo como "a arte (technê) da persuasãopela palavra"(Cardoso e Cunha, 1995: 29).Aquilo que se põe em primeiro plano, com aRetórica, é o que, desde Austin, chamamos a"perfomatividade"da linguagem. Entendidadeste modo, a Retórica vai ter como princi-pais representantes os Sofistas - que se inti-tulam, justamente, "mestres de Retórica"4.

De "técnica de persuasão", a Retórica pro-

4A consciência que estes têm do poder ilocutó-rio/perlocutório da palavra está bem patente na se-guinte citação de Górgias: "A palavra é uma grandedominadora que, com pequeníssimo e sumamente in-visível corpo, realiza obras diviníssimas, pois podefazer cessar o medo e tirar as dores, infundir a ale-gria e inspirar a piedade... O discurso, persuadindoa alma, obriga-a, convencida, a ter fé nas palavras ea consentir nos factos... A persuasão, unida à pala-vra, impressiona a alma como quer... O poder do dis-curso com respeito à disposição da alma é idêntico aodos remédios em relação à natureza do corpo. Comefeito, assim como os diferentes remédios expelem docorpo de cada um diferentes humores, e alguns fazemcessar o mal, outros a vida, assim também entre osdiscursos alguns afligem e outros deleitam, outros es-pantam, outros excitam até ao ardor os seus ouvintes,outros envenenam e fascinam a alma com persuasõesmalvadas."(Górgias, Elogio de Helena, 8, 12-14, in

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cura transformar-se, com Aristóteles (quelhe dedica três dos seus livros), em "ciência-isto é, num corpo de conhecimentos, cate-gorias e regras - que, quem quiser bem falare convencer, deve aplicar no discurso. Se-gundo Aristóteles (de cuja concepção indi-caremos apenas algumas linhas essenciais),a Retórica visa descobrir os meios que, re-lativamente a qualquer argumento, podemlevar à persuasão de um determinado au-ditório; o seu objecto é o "verosímil"ou"provável"(tendo portando uma natureza di-aléctica, distinguindo-se da demonstração ouanalítica, que trata do "necessário"e "ver-dadeiro"). Aristóteles distingue três tiposde discursos retóricos: o deliberativo (quese volta para o futuro, procurando persua-dir ou dissuadir em relação a algo a fazer,sendo típico das assembleias políticas); o ju-dicial (que se volta para o passado, procu-rando acusar ou defender em relação a ac-tos mostrados como justos ou injustos, e étípico dos tribunais); e o epidíctico (que sevolta para o presente e procura louvar oucondenar actos contemporâneos). Quanto àsdivisões do discurso retórico, uma obra deretórica ligeiramente posterior a Aristótelesenumera as seguintes: inventio (sujeitos, ar-gumentos, lugares, técnicas de persuasão ede amplificação), dispositio (arrumação dasgrandes partes do discurso: exórdio, narra-ção, discussão, peroração), elocutio (escolhada disposição das palavras na frase, orga-nização em pormenor), pronuntiatio (enun-ciação do discurso) e memoria (memoriza-ção). As Retóricas grega e romana vão man-ter, em traços gerais, estas linhas da retóricade Aristóteles. Posteriormente, e num pro-

Mondolfo, Rodolfo (1966), O Pensamento Antigo, IVolume I, S. Paulo, Editora Mestre Jou).

cesso que se arrasta até ao século XIX (sé-culo que marca o seu desaparecimento), aRetórica vai perdendo influência e reduzindoo seu campo, sofrendo as seguintes modifica-ções: perde o seu objectivo pragmático ime-diato, deixando de ensinar como persuadirpara passar a ensinar como fazer "belos dis-cursos"; desinteressa-se dos três géneros re-tóricos referidos atrás, para passar a ocupar-se cada vez mais do género literário; deixade integrar, numa primeira fase, a pronunti-atio e a memoria, depois a inventio e aindamais tarde a dispositio, para ficar reduzida àelocutio ou "arte do estilo", limitando-se asobras de Retórica, nos séculos XVIII e XIX,ao tratamento das "figuras". Com o desa-parecimento da Retórica, são a estilística, aanálise do discurso e a linguística que her-dam, dando-lhe uma nova forma, as proble-máticas que tinham constituído o objecto da-quela disciplina5.

O declínio da Retórica inicia-se a partirdos finais do século XVI, e deve-se, segundoPerelman, à ascensão do pensamento bur-guês, assente no critério da evidência - sejaa evidência pessoal do protestantismo, seja aevidência racional do cartesianismo ou sejaainda a evidência sensível do empirismo (Pe-relman, 1993: 26) Nesse processo, o racio-nalismo de Descartes marca, segundo Perel-man, um momento essencial: ao erigir a evi-dência (matemática) em critério de verdade,propondo a extensão, a todo o saber, do mé-todo (e da linguagem) das matemáticas, Des-cartes exclui a argumentação do campo dosaber em geral e da filosofia em particular:o que é "evidente"só pode "demonstrar-se"(e

5Sobre esta breve síntese histórica acerca da Retó-rica, ver Ducrot e Todorov, 1978: 99/100 e Lausberg,1972: 82/93.

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aceitar-se), nunca discutir-se... (Perelman,1987: 264).

2.2 Perelman e a "nova retórica"Na actualidade, autores como Perelman eToulmin (que publicaram, no mesmo ano de1958, as suas obras capitais sobre a Retórica,respectivamente o Traité de l’Argumentatione The Uses of Argument) visaram revalori-zar a Retórica antiga, inserindo-a no quadromais geral de uma teoria da argumentação6.

Assim, segundo Perelman, "a teoria da ar-gumentação, concebida como uma nova re-tórica (ou uma nova dialéctica), cobre todoo campo do discurso que visa convencer oupersuadir, seja qual for o auditório a que sedirige e a matéria a que se refere."(Perelman,1993: 24) Argumentar é "fornecer argumen-tos, ou seja, razões a favor ou contra uma de-terminada tese. Uma teoria da argumenta-ção, na sua concepção moderna, vem assimretomar e ao mesmo tempo renovar a retóricados Gregos e dos Romanos, concebida comoa arte de bem falar, ou seja, a arte de falarde modo a persuadir e a convencer, e retomaa dialéctica e a tópica, artes do diálogo e dacontrovérsia."(Perelman, 1987: 234).

Das várias condições que, segundo Perel-man, qualquer argumentação implica, cite-mos as seguintes: ela é situada, insere-senum determinado contexto, dirige-se a umauditório determinado; o orador, pelo seudiscurso, visa exercer uma acção (de persu-

6O "renascimento"da Retórica (como teoria da ar-gumentação), no nosso século, tem origem, segundoPerelman, na importância actualmente atribuída à fi-losofia da linguagem e aos valores - e à tomada deconsciência de que não é possível, com a "evidên-cia"racional, resolver os problemas colocados nessesdomínios. (Perelman, 1987: 264).

asão ou convicção) sobre o auditório; os au-ditores devem estar dispostos a escutar, a so-frer a acção do orador; querer persuadir im-plica a renúncia, pelo orador, a dar ordens aoauditório, procurando antes a sua adesão in-telectual; essa adesão nada tem a ver com averdade ou a falsidade das teses que o ora-dor procura defender, mas antes com o seupoder argumentativo; argumentar implica, fi-nalmente, pressupor que tão possível é de-fender uma tese como a sua contrária. (Pe-relman, 1987: 234).

Nesta concepção da argumentação apa-rece como central a noção de auditório,defini-do por Perelman como "o conjunto da-queles que o orador quer influenciar medi-ante o seu discurso."(Perelman, 1987: 237).Visando provocar a adesão do auditório acertas teses, é fundamental para o orador co-meçar por conhecer quais as teses e os va-lores inicialmente admitidos por esse audi-tório, pois eles deverão constituir o pontode partida do discurso. Assim, o erro maisgrave que um orador pode cometer é a pe-tição de princípio - que consiste em "suporadmitida uma tese que se desejaria fazer ad-mitir pelo auditório."(Perelman, 1987: 239-240). Para conhecermos as teses e valoresdo auditório, se este é constituído apenas poruma ou algumas (poucas) pessoas, podemosrecorrer ao questionamento - é a essa técnicaque Sócrates recorre nos diálogos platónicos.(Perelman, 1987: 240).

Concebida desta forma, a argumentação(retórica) distingue-se claramente, segundoPerelman, da demontração (lógica)7.

Na argumentação, uma proposição é su-gerida por uma outra proposição ou pela si-

7Por "lógica"Perelman entende, mais concreta-mente, a lógica simbólica ou matemática.

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tuação (entendendo-se esta como dinâmica);na demonstração, tudo quanto faz com que aconclusão se imponha deve ser especificadoe tornar a conclusão necessária. A argumen-tação assenta na equivocidade da linguagemnatural; a demonstração assenta na univoci-dade da linguagem simbólica. A argumenta-ção pode convencer ou não; a demonstraçãoé um cálculo em que, dadas certas premissas,somos obrigados a aceitar uma certa conclu-são.

Como já dissemos atrás, o discurso lógico-matemático, ao impor-se na tradição ociden-tal, tendeu a excluir, do seio da linguagem,as outras formas de discurso, nomeadamenteas que visam a expressão e a persuasão: aretórica, a poética, o mito, a linguagem or-dinária. Ora, segundo Perelman, toda a lin-guagem, mesmo a lógico-matemática (a ci-entífica em geral), tem um carácter argu-mentativo ou retórico - ainda que procureobscurecer tal facto. Como acentua Meyer,"em linguagem de Austin e Searle, dir-se-ia que a formalização é um acto ilocutóriode que qualquer referência ao ilocutório sequer ausente (...)."(Meyer, 1992:120). O dis-curso científico, como qualquer outro dis-curso, implica a relação com um auditório,a procura da adesão desse auditório a deter-minadas teses, a utilização de técnicas re-tóricas que visam suscitar essa adesão emtermos de valores-relevantes ou de valores-referência. Dizer "É verdade que...", ou "Éevidente que...", pondo em jogo valores doauditório como a "verdade"ou a "evidência",não é a mesma coisa que afirmar, pura esimplesmente, um certo "conteúdo".(Meyer,1992: 121).

3 Ducrot: a argumentação nalíngua

3.1 Argumentação e raiocínioOswald Ducrot8 defende uma perspectivaintrinsecalista da Pragmática, pretendendoconciliar a perspectiva pragmática com aLíngua. Assim, Ducrot recusa claramentea distinção entre Semântica e Pragmática,entre o sentido do enunciado e a intençãoda enunciação. No dizer de Ducrot, "ledire est inscrit dans le dit."(Ducrot, 1980:9). E acrescenta Ducrot: se entendermosa Semântica como o estudo do sentido e aPragmática como o estudo da acção, "é pre-ciso dizer, pelo menos, que toda a semânticacomporta um aspecto pragmático."(Ducrot,1984b: 457).

Dentro da concepção intrinsecalista daPragmática (que não é, hoje em dia, umarealidade homogénea), Ducrot inscreve-sena chamada concepção integrada da Prag-mática, que apresenta as seguintes propos-tas fundamentais: a) distinção entre frasee enunciado (e consequente distinção entresignificação da frase e sentido do enunci-ado); b) a noção da língua como "instrução";c) a noção de pragmática argumentativa, fun-dada na existência de topoi ou lugares doprocesso argumentativo; d) a noção de "poli-fonia enunciativa". (Rodrigues, 1996:30)9.

Ducrot apresentou pela primeira vez a sua

8E Jean-Claude Anscombre, com quem Ducrotefectuou muito do seu trabalho sobre a teoria da ar-gumentação.

9Para percebermos melhor as posições de Ducrot,é essencial termos presentes as suas definições se-guintes:

Frase: "Chamamos ’frase’ ao material linguísticode que o locutor se serviu, isto é, a entidade abstractaVou-me embora."

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8 Paulo Serra

teoria da argumentação na obra La preuve etle dire, de 1973, dedicada às relações en-tre lógica e linguagem. Nesta obra, a ar-gumentação é vista como relevando de uma"lógica da linguagem", entendendo-se estacomo um conjunto de "regras internas aodiscurso- regras que comandam o encadea-mento dos enunciados que constituem essediscurso, orientando-o numa certa direcçãoilocutória. Por sua vez, o estudo dos ra-ciocínios pertencerá ao domínio da "lógicae linguagem", centrado na confrontação en-tre a linguagem natural e a linguagem artifi-cial/simbólica dos lógicos, com o objectivode analisar as convergências e divergênciasentre os dois tipos de linguagens. (ver Du-crot, 1980: 12/13).

Assim, para Ducrot (como para Perel-man), argumentação e raciocínio relevam deduas ordens diferentes: a primeira, da ordemdo "discurso; o segundo da ordem da "ló-gica". (Ducrot, 1980: 10).

Um raciocínio (por exemplo um silo-gismo) distingue-se de um discurso, nos se-guintes aspectos: os seus enunciados são

Texto: "Sequência de frases (por exemplo: Vou-meembora. Despacha-te."

Enunciado: "... aquilo que foi efectivamente pro-nunciado ou escrito..."; a mesma frase, sendo uma en-tidade abstracta (type), pode ser objecto de infinitosenunciados (token), sendo cada um dos enunciadosum acto único e original.

Discurso: "... uma sequência de enunciados ligadosentre si; um discurso será, portanto, uma realização(...) de um texto".

Enunciação: "... acontecimento histórico, isto é, ofacto de uma frase ter sido objecto de um enunciado(ou de um discurso)."

Actividade linguística: "... o conjunto de mecanis-mos que produz a enunciação de um enunciado ou deum discurso."(Ducrot, 1984: 369)

Enquanto à frase corresponde uma "significação",ao enunciado corresponde um "sentido"(idem, 372).

independentes uns dos outros, exprimindocada um uma certa "proposição"(que designaum estado ou um conjunto de estados domundo, real ou virtual); o encadeamento dosenunciados não se funda nos próprios enun-ciados, mas nas proposições que eles veicu-lam, sobre o que dizem ou supõem acerca domundo. Num discurso, tudo se passa ao con-trário: o encadeamento dos enunciados temuma "origem interna", funda-se sobre a natu-reza ou sentido do próprio enunciado, nadatendo a ver com a sua relação com estadosde coisas. Ora, "... le thème central de lathéorie argumentative est que le sens d’unenoncé contient une allusion à son eventuellecontinuation: il lui est essentiel d’appeler telou tel type de suite, de prétendre orienter lediscours ultérieur dans telle ou telle direc-tion."(Ducrot, 1980: 10/11) Por outras pala-vras: o enunciado é argumentativo não peloque ele diz acerca do mundo, mas pelo queele próprio é, considerado em si mesmo. Talnão significa que se saiba o que o vai seguir;mas sabe-se que ele deve ser seguido poralgo, tem um seguimento "pretendido"(outroenunciado, o silêncio, mesmo um soco...).Assim, a teoria argumentativa liga-se ao quese pode chamar "estruturalismo do discursoideal", que Ducrot define como "théorie gé-nérale (...) selon laquelle une entité linguis-tique tire toute sa réalité du discours où elleprend place - non pas de celui auquel elleest empiriquement incorporée, mais de celuiqu’elle exige, qu’elle revendique. Et c’estcette revendication qui la constitue". (Du-crot, 1980: 11).

Ao mesmo tempo, segundo Ducrot, a teo-ria argumentativa liga-se à Retórica aristoté-lica dos Tópicos.

Nesta obra, Aristóteles analisa todo umconjunto de estratégias conclusivas que não

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se integram na raciocínio lógico. Essas estra-tégias centram-se nas relações entre enunci-ados aceites como prováveis pelo bom sensode um época - relações que fazem com que,a partir de certos enunciados, sejamos orien-tados em direcção a outros (o que nos per-mite influenciar os juízes num tribunal ou oscidadãos numa assembleia política). Ora, se-gundo Ducrot, os seus trabalhos e os de Ans-combre permitem generalizar, a toda a Lín-gua, essas relações entre enunciados temati-zadas pela Retórica antiga: "Selon nous, tousles énoncés d’une langue se donnent, et tirentleus sens du fait qu’ils se donnent, commeimposant à l’interlocuteur un type déterminéde conclusions. Toute parole, au fond d’elle-même, est publicitaire.(...) Elle est publici-taire par le fait que sa valeur interne se con-fond avec la suite qu’elle réclame. Ce qu’elleveut dire, c’est ce qu’elle veut faire dire àl’autre. Ainsi nos énoncés se présentent, in-dépendamment même de leur aptitude à fon-der un raisonnement, comme l’origine ou lerelais d’un discours argumentative."(Ducrot,1980: 11/12).

Esta afirmação marca claramente o con-traste da concepção de Ducrot com a de Pe-relman, para quem a conclusão da argumen-tação reside na adesão do auditório a umatese, partindo dos valores desse mesmo au-ditório e pondo-os em jogo ao nível do ar-gumento. Para Ducrot o argumento é, desdelogo, linguisticamente portador de uma con-clusão, sugerida pelas variáveis argumentati-vas imanentes à frase - quer o auditório con-corde quer não concorde com essa conclu-são. Deste modo, segundo Meyer, Ducrotpretende "mostrar como é que a linguagemnatural marca uma conclusão, a sugere, a im-plica, a suscita, a pressupõe, sem dizer ex-pressis verbis"(Meyer, 1992: 122).

3.2 Operadores e conectoresargumentativos

A argumentação discursiva põe em jogo de-terminados "dispositivos"existentes na lín-gua, designados operadores e conectores ar-gumentativos.

Vejamos, através de um exemplo, a formacomo funcionam os operadores argumentati-vos. Os enunciados "Não são mais que oitohoras"e "Já são oito horas"são diferentes doponto de vista argumentativo (embora equi-valentes do ponto de vista lógico) na medidaem que, com o segundo enunciado, posso en-cadear, por exemplo, "Temos de nos apres-sar- o que já não posso fazer com o primeiro,que sugerirá, por exemplo "Ainda vamos atempo". Assim, os operadores argumentati-vos transformam os enunciados referenciaisem premissas das quais podemos tirar umaconclusão e não outra, situam o enunciadonuma certa direcção, implicitam determina-das conclusões.

São ainda os operadores argumentativosque permitem o encadeamento dos actosilocutórios que, como os elos de uma ca-deia, constituem o discurso. Segundo Du-crot, o acto ilocutório opera um tipo espe-cial de transformação: "trata-se sempre deuma transformação de ordem jurídica, da cri-ação de direitos ou de deveres para os par-ticipantes do acto de fala."(Ducrot, 1984b:445). Idealmente, pelo menos, uma pergunta"exige"uma resposta, uma ordem a sua obe-diência, uma promessa o seu cumprimento,etc.

Quanto aos conectores argumentativos,eles são os dispositivos (advérbios, conjun-ções e locuções de subordinação ou de con-junção, etc.) que permitem a conexão ou a li-gação recíproca de dois ou mais enunciados.

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Veja-se o seguinte exemplo: "Como não meapetece estudar, vou dar uma volta"é equi-valente a "Vou dar uma volta, visto que nãome apetece estudar"porque, em ambos os ca-sos, usamos conectores equivalentes (como,visto que) para ligar "não me apetece estu-dar"e "vou dar uma volta". Numa argumen-tação, os conectores podem ligar as premis-sas entre si, as premissas com a conclusão ea conclusão com as premissas.

3.3 Classes e escalasargumentativas

As teses de Ducrot inscrevem-se, segundoele, na linha da semântica linguística que"vise à introduire dans la langue elle-mêmeun certain nombre de phénomènes liés àl’ennonciation et relégués auparavant dans laparole."(1980: 15)

A sua tese geral é a seguinte: muitos (to-dos?) actos de enunciação têm funções ar-gumentativas, isto é, visam levar o destina-tário a uma certa conclusão ou a desviá-lodela. Essa função argumentativa implícitatem marcas explícitas na própria estrutura dafrase: morfemas e expressões que, para alémdo seu valor informativo, servem (sobretudo)para dar ao enunciado uma certa orientaçãoargumentativa. Alguns desses fenómenos, jáestudados, referem-se por exemplo aos mor-femas puisque, mais e même. Assim:

a) "A puisque B": subentende que A im-plica B, sendo tal implicação reconhecidacomo tal. Ducrot dá o seguinte exemplo: aoouvir "Il est venu puisque sa voiture est enbas", eu deduzo "Il est venu"(A) de "sa voi-ture est en bas"(B). Algo completamente di-ferente se passa com "A parce B": se eu dis-ser "Il est vénu parce qu’il désirait me voir",eu afirmo que o desejo de me ver (B) foi a

causa de ele ter vindo (A), estabeleço umarelação de causalidade entre A e B. (Ducrot,1972: 30/32)

b) "A mais B": subentende que A e Bsão argumentos contrários em relação a umaconclusão r (A apoiando r e B apoiando∼r), mas tendo B mais força em relação a∼r doque A em relação a r - de tal forma que o con-junto "A mais B"vai no sentido de∼r. As-sim, se eu disser, por exemplo, "O João é in-teligente, mas pouco trabalhador", eu suben-tendo que "O João é pouco trabalhador"(B)é argumentativamente mais forte do que "OJoão é inteligente"(A) para contrariar a con-clusão possível "O João vai ter boas notas"(r)- inclinando-me, deste modo, para "O Joãonão vai ter boas notas"(∼r)10.

10A importância do "mas"revela-se, desde logo, nofacto de Ducrot lhe dedicar um dos Anexos do seu li-vro Les Échelles Argumentatives. Segundo Ducrot, o"mas"( de "p mas q") mostra não só que o valor ar-gumentativo de um enunciado é, em grande medida,independente do seu conteúdo informativo, mas tam-bém que esse valor argumentativo determina parci-almente o conteúdo do enunciado. Mostrará, igual-mente, porque é que, segundo Ducrot, é impossí-vel separarmos a Semântica (que se dedica às no-ções de verdade e de valor informativo) da Pragmá-tica (que diria respeito aos efeitos, nomeadamente àinfluência argumentativa, que a palavra pretende pos-suir).(Ducrot, 1980: 72). Ao longo do seu texto, Du-crot analisa o seguinte exemplo, conclusão de umareceita culinária: "Mangez chaud, mais dejà un peutiède- a informação que nos é dada é que o prato deveser servido quando se está a deixar arrefecer, depoisde ter estado quente, e não o inverso: "dejà"significaque antes não estava morno: estaria frio? estariaquente? A ambiguidade é desfeita pelo "mais": relaci-onando "chaud"e "tiède", liga "tiède"ao contrário"de"chaud"(situa-o, portanto, na escala argumentativa do"frio", indicando um "arrefecimento- e não o inverso).

Assim, sendo "mas"um operador argumentativo,ele produz simultaneamente informação. Ora, con-clui Ducrot, se um operador produz informação, entãoa mudança de operador produzirá mudança de infor-

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c) "A et même B": subentende que B, indona mesma direcção argumentativa de A, emapoio de uma mesma conclusão r, é no en-tanto um argumento decisivo em relação aA. Ducrot dá o seguinte exemplo: se eu dis-ser "Jacques a fait ses devoirs et il a mêmemangé sa soupe sans rechigner", "Jacquesa fait ses devoirs"(A) e "Jacques a mangésa soupe sans rechigner"(B), implicitam umamesma conclusão r (por exemplo "O Jacquesportou-se muito bem"), mas B tem uma forçadecisiva quando comparado com A. (ver Du-crot, 1972: 29; 1980: 15 sgs).

A análise destes exemplos leva Ducrot aintroduzir dois conceitos fundamentais paraexplicitar melhor a função argumentativa dalinguagem: os de classe argumentativa e es-cala argumentativa.

a) Classe argumentativa (CA): "Nous di-rons qu’un locuteur - en entendant para cemot un sujet parlant inséré dans une situationde discours particulière - place deux enoncésp et p’ dans la CA determinée para un enoncér, s’il considère p et p’ comme des argumentsen faveur de r."(Ducrot, 1980: 17). Ducrotdá o exemplo seguinte: na afirmação "O Pe-dro, e mesmo o Paulo, vieram à reunião", pseria "O Pedro veio à reunião", p’ seria "O

mação. Conclusão que se atesta com a seguinte alte-ração do enunciado anterior: "Mangez chaud, ou, entout cas, dejà un peu tiède- que nos dá a informaçãode que o prato foi posto a reaquecer ("p, ou en toutcas q"pressupõe que p e q pertencem à mesma EscalaArgumentativa, sendo q inferior a p, neste caso emtermos do "aquecimento"pretendido). Sobre o "mas",conclui Ducrot: "Ainsi cet mot, opérateur argumen-tatif par excelence, peut régir aussi, d’une façon indi-recte, le contenu "sémantique"des phrases où il inter-vient - même au sens le plus restrictif du mot "séman-tique", sens qui n’est d’ailleurs pas le mien."(Ducrot,1980: 76).

Paulo veio à reunião", e r poderia ser "A reu-nião foi um sucesso".

b) Escala argumentativa (EA): "Suppo-sons qu’un locuteur place p et p’ dans laCA determinée par r. Nous dirons qu’il ti-ent p’ pour un argument supérieur à p (ouplus fort que p) par rapport à r, si, aux yeuxde ce locuteur, accepter de conclure de p àr implique qu’on accepte de conclure de p’à r, la réciproque n’étant pas vraie."(Ducrot,1980: 18). Veja-se o que acontece commême (mesmo). Dizer "Ele tem a licencia-tura e mesmo o doutoramento", implica su-por que existe um certo r (por exemplo "Eleé competente"), determinando uma escala ar-gumentativa em que p’- "Ele tem o doutora-mento", é argumentativamente superior a p -"Ele tem a licenciatura". Assim, eu dou a en-tender que a conclusão r pode ser acreditadaquer por p quer por p’, mas mais por p’ doque por p. Por outras palavras: se p implicaconcluir r, muito mais o implica p’, mas nãoo inverso.

A definição de EA pode ser generalizadaàs frases, da seguinte forma: "Nous dironsque la phrase p’ est plus forte que p si touteclasse argumentative contenant p contientaussi p’, et si p’ y est chaque fois supérieur àp."(Ducrot, 1980: 20).

Há vários tipos de frases que obedecemà defnição anterior - e que constituem, por-tanto, exemplos de escalas argumentativas.Ducrot analisa os seguintes tipos:

1o Tipo. As frases ligadas por presque(quase): Seja p’ - "É uma obra de arte"e p(presque p’) - "É quase uma obra de arte"; p’é mais forte que p em relação a um certo r(por exemplo: "O quadro pintado pelo Joãoé muito bonito"). Por outro lado, presque p’opõe-se a à peine, pertencem normalmentea classes argumentativas diferentes. Assim,

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enquanto por exemplo "Je suis presque en re-tard"indicia negligência, "Je suis à peine enretard"pode indiciar boa-vontade. (Ducrot,1980: 21).

2o Tipo. Frases que constituem uma escalaargumentativa absoluta, como as que con-têm os adjectivos que, na língua francesa,marcam a temperatura. Por exemplo "Il faitfrais", "Il fait froid"e "Il fait glacial", consti-tuem uma escala ordenada do menos para omais "frio", algo análogo acontecendo coma escala do "calor", inversa da anterior ("Ilfait assez chaud", "Il fait chaud"e "Il fait bru-lant"). Estas EA pertencem, também, a CAdiferentes e incompatíveis: pode dizer-se "Ilfai assez chaud, il fait même très chaud", masnão "Il fait frais, et même assez chaud". Estapropriedade pode ser utilizada numa situa-ção argumentativa: suponhamos que quere-mos refutar uma tese B, se A; podemos mos-trar que uma premissa análoga a A, mas maisforte que A, seria incompatível com B - oque seria o caso em "Você pensa que a escolafuncionaria melhor se se aligeirassem os pro-gramas. A escola ideal, para si, será portantouma escola onde nada se ensina."(Ducrot,1980: 22/23)

3o Tipo. Frases em que aparecem peue pas du tout: "Je suis peu inquiet"e "Jene suis pas inquiet (du tout)"estão ordena-das por ordem crescente da força argumenta-tiva, e opôem-se à CA de "Je suis un peu in-quiet"e "Je suis très inquiet". Utilizando estapropriedade, podemos construir um exemploque mostra bem a diferença entre compati-bilidade lógica e argumentativa: "Il a peubu"e "Il n’a pas bu du tout"são contraditóriosdo ponto de vista lógico, mas argumentati-vamente vão na mesma "direcção"("Ele nãopodia estar bêbedo, porque ou bebeu pouco

ou não bebeu mesmo nada"). (Ducrot, 1980:24)

4o Tipo. Frases que contêm pleine e vide:"La bouteille est à moitié pleine"e "La bou-teille est à moitié vide"designam a mesma re-alidade objectiva (têm o mesmo valor lógicode verdade), mas não pertencem à mesmaCA - no primeiro caso, estamos a referir-nosao "enchimento"(e a frase é menos forte que"La bouteille est pleine"); no segundo casoestamos a referir-nos ao "esvaziamento"(e afrase é menos forte que "La bouteille estvide").

Também a negação e a implicação (argu-mentativas) merecem a atenção de Ducrot.A negação obedece, segundo Ducrot, a trêsgrandes leis:

1a lei. Se p pertence à CA determinadapor r,∼p pertence à CA determinada por∼r.Exemplo: se r for "Pedro é inteligente"e p for"Pedro conseguiu tirar a licenciatura", então∼p - "Pedro não conseguiu tirar a licencia-tura"irá no sentido de∼r - "Pedro não é in-teligente".

2a lei. A EA onde se encontram os enun-ciados negativos (determinada por∼r) é in-versa da EA dos enunciados afirmativos.Exemplo: seja r "Pedro é inteligente"e p "Pe-dro tirou a licenciatura"e p’ (mais forte quep) "Pedro tirou o doutoramento"; nesse caso,a EA de∼r será (da menor para a maior forçaargumentativa)∼p’- "Pedro não tirou o dou-toramento"e∼p- "Pedro não tirou a licenci-atura". (ver Ducrot, 1980: 27).

3a lei ("Lei do abaixamento"): em muitoscasos, a negação descritiva11 é equivalente a"menos que". Exemplo: Se eu digo "Il ne

11Ducrot distingue entre negação metalinguística,que visa contradizer uma afirmação prévia e negaçãodescritiva, ou negação "em primeira mão". (Ducrot,1980: 30)

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fait pas froid", eu excluo que o tempo es-teja mais que "frio"(por exemplo "glacial").Segundo Ducrot, esta lei põe dificuldades,porque não determina propriamente uma es-cala argumentativa nem uma graduação fí-sica, mas algo intermédio entre as duas. Es-sas dificuldades levam Ducrot a formular a"lei do abaixamneto"do seguinte modo: "Ondira que si un enoncé p d’une échelle E estvérifié dans une zone I de la graduation ho-mologue à E, l’énoncé∼p est vérifié dans, etseulement dans, la zone de cette graduationqui est inférieure à I."(Ducrot, 1980: 32)

Ainda sobre a negação, Ducrot faz no-tar que ela pode ser uma negação implícita,dando o seguinte exemplo: "Je suis encorefatigué de mon voyage", implica a afirmação"Je suis fatigué de mon voyage"e o pressu-posto, que é uma negação implícita da afir-mação anterior, "Cette fatigue va ultérieu-rement disparaître". Generalizando sobre oencore "continuativo", diz Ducrot: "... toutenoncé du type X est encore dans l’état E aumoment t indique à la fois un posé: "X estdans l’état E en t"(...) et un pressuposé: "Aun moment ultérieur tx, X ne sera pas dansl’état E."(Ducrot, 1980: 40).

Quanto à implicação, Ducrot começa porobservar que o enunciado implicativo é dotipo B se A, significando que A pertencea uma CA determinada por B, que A éum argumento para uma conclusão B. Já ocontrário acontece no enunciado concessivoB mesmo se A, em que se pressupõe queA é um obstáculo a B, ou seja, um argu-mento a favor de∼B. Para ilustrar a dife-rença, vejam-se os seguintes exemplos da-dos por Ducrot: "Pierre viendra si Jacquesvient"e "Pierre viendra même si Jacques vi-ent". Aliás, segundo Ducrot, um estudo deJ.C. Anscombre terá mesmo mostrado que

a maneira mais "natural"de negar B si A éMême si A,∼B como se observa no pe-queno diálogo seguinte: "Est-ce que Pierreprendra sa voiture si la route est bonne? -Non, même si la route est bonne, il viendraen train."(Ducrot, 1980: 48/49).

3.4 O pressuposto e o implícitoA problemática da pressuposição foi inicial-mente levantada por Frege, Russel e Straw-son, fazendo os linguistas contemporâneosum uso cada vez mais espalhado deste con-ceito. (Ducrot, 1972: 27).

Para esclarecer o conceito de pressuposi-ção, Ducrot dá o seguinte exemplo: o enun-ciado "Foi Pedro quem veio"informa-me, doponto de vista semântico, que

(1) Alguém veio;(2) Apenas uma pessoa veio;(3) Pedro veio.

Enquanto (3) é a "posição"(afirmação), (1)e (2) representam pressuposições, indepen-dentes da verdade ou da falsidade do enunci-ado de partida. O que se verifica facilmenteaplicando o teste da negação12: "Não foi Pe-dro quem veio"continua a pressupor (1) e(2). Qual a natureza da pressuposição? Utili-zando a terminologia de Austin devemos di-zer, segundo Ducrot, que a pressuposição éum acto ilocucionário.

É certo que podemos tentar recorrer à no-ção de "evidência"para explicar a pressupo-sição; mas pressupor uma proposição nãoé a mesma coisa que declará-la evidente:"L’evidence, dans le cas de la préssuposition,

12Teste que, como veremos adiante, é apenas umdos testes possíveis para averiguarmos os pressupos-tos de um enunciado.

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est jouée."(Ducrot, 1972: 28). Que signi-fica "pôr em jogo"uma evidência? Significatomá-la como "pano de fundo"do diálogo en-tre os interlocutores. É diferente contestar oque o interlocutor "põe"(afirma) e contestar oque ele "pressupõe". Contestar o que o inter-locutor "põe"é efectuar uma negação; con-testar o que o interlocutor pressupõe é situar-se (e ao seu interlocutor) fora do espaço dainterlocução. Os pressupostos são o "quadrodo diálogo- quadro que se aceita ou se re-cusa, mas que não se pode discutir. Quebraros pressupostos representa sempre um actode "violência simbólica", equivalendo a aca-bar a conversa - ou a dar-lhe um novo rumo,assente em novos pressupostos.(Rodrigues,1996: 126).

Ao contrário de Strawson e de Searle, paraquem o pressuposto de um enunciado é acondição do emprego desse mesmo enun-ciado, para Ducrot "il s’agit d’un effet il-locucionaire attaché conventionnellement àl’énoncé."(Ducrot, 1972: 29). Longe de selhe juntar a partir do exterior, o pressupostotem raízes "na estrutura interna da língua,mesmo no sentido mais restrito do termo(isto é, no léxico e na sintaxe)". (Ducrot,1984: 406).

Assim, o sentido "explícito"constitui ape-nas um dos niveis da semântica das línguasnaturais, e sob esse nível podem "dissimular-se"várias camadas de significações implíci-tas (Ducrot, 1984: 394)13. Veja-se um outro

13A este propósito, afirma Meyer que a "Nova Lin-guística", de Anscombre e Ducrot, terá mostrado bemque "em qualquer sentido literal , há uma significa-ção implícita ou implicitada (uma ou menos) que per-manece. O literal é aliás produzido em função destesentido implícito, e não independentemente, como seeste estivesse ’a mais’". (Meyer, 1992: 123)

exemplo de Ducrot: o enunciado "O Pedrodeixou de fumar"implica que

(1) Dantes o Pedro fumava;(2) No momento em que estou a falar, oPedro não fuma.

Destas duas expressões, apenas (1) cons-titui um pressuposto, constituindo (2) umaimplicitação. O exemplo mostra claramenteque o pressuposto "é dito de uma forma par-ticular: não é apresentado como aquilo quese quer dizer.". Mais do que afirmado, opressuposto aparece como "insinuado". Porisso ele pode ser considerado um "implícito",ou seja, um "querer dizer que é, ao mesmotempo, querer não ter o ar de dizer.". A pres-suposição apresenta, assim, duas caracterís-ticas fundamentais e inseparáveis: o seu ca-rácter intencional e o seu carácter implícito.(Ducrot, 1984: 398).

Foram Frege e Collingwood quem, pelaprimeira vez, fez notar que a pressuposiçãoé preservada quer pela negação quer pela in-terrogação. Apesar dos desacordos quanto àdefinição do conceito de "pressuposição", to-dos os "pragmáticos"aceitam, hoje em dia, ainterrogação e a negação como critérios paradeterminar os pressupostos. A estes crité-rios, Ducrot acrescenta um outro - o de en-cadeamento. (ver Ducrot, 1984: 401 sgs).

Vejamos cada um destes critérios,aplicando-os ao enunciado "O Pedro deixoude fumar":

1. Critério da interrogação: "O Pedro dei-xou de fumar?"continua a pressuporque "Dantes o Pedro fumava".

2. Critério da negação: "Pedro não dei-xou de fumar"continua a pressupor que"Dan-tes o Pedro fumava".

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3. Critério do encadeamento: baseia-se nahipótese, posta por Ducrot, de que "éconstitutivo do sentido de um enunci-ado dar directivas para a sequência dodiscurso ou do diálogo, antecipar, porassim dizer, a sua própria continuação,ou, por outras palavras, ter uma ori-entação argumentativa."(Ducrot, 1984:403). Adriano Duarte Rodrigues ex-plicita este critério da seguinte forma:"A pressupõe B, se B for o enquadra-mento em que se devem situar os enun-ciados susceptíveis de serem encadea-dos com A."(Rodrigues, 1996: 125).Ducrot dá os seguintes exemplos: nodiálogo "O Pedro deixou de fumar. -Tanto melhor!", o enunciado "Tantomelhor"continua a pressupor que "Dan-tes, o Pedro fumava"; também a afirma-ção "O Pedro está bem porque deixoude fumar", que encadeia dois enuncia-dos, continua a pressupor que "Danteso Pedro fumava". (Ducrot, 1984: 403).

Ducrot distingue duas modalidades do im-plícito: o do enunciado e o da enunciação.Os implícitos do enunciado consistem "emdeixar não expressa um afirmação necessá-ria, de maneira evidente, para a completudeou para a coerência do enunciado, afirmaçãoà qual a sua ausência confere uma presençade um tipo particular: a proposição implícitaassinala-se - e assinala-se apenas - por umalacuna no encadeamento das proposições ex-plícitas"(Ducrot, citado em Rodrigues, 1996:122). Assim, os implícitos do enunciado sãoproposições que, apesar de estarem ausen-tes, são essenciais ao encadeamento do dis-curso. Por sua vez, os implícitos da enunci-ação, que não analisaremos aqui, têm a ver"com aquilo que o locutor dá a entender ou

subentende pelo próprio facto de falar ou denão falar, de dizer ou de calar."(Rodrigues,1996: 122/123).

4 Análise de umtexto de Platão

4.1 Situação discurso*Platão, que ataca no Górgias a Retórica so-fística - considerando-a demagógica e pro-pícia à persuasão das multidões ignorantes- defende, no Fedro, uma Retórica própriado filósofo, que procura convencer todos osseres dotados de "Razão". A palavra "Ra-zão"designa, a partir de Platão, o auditó-rio ideal e universal, constituído por todosos seres "racionais"ou "dotados de razão".Parte-se do princípio de que o que é racional-mente "evidente", o é para a "Razão"de to-dos os seres "racionais", passe o pleonasmo.É esta característica que, segundo Perelman,permite distinguir entre os discursos que vi-sam persuadir (isto é, os que visam a ade-são de um auditório particular), e os discur-sos, como o filosófico (e mais tarde o cien-tífico), que visam convencer (isto é, os queprocuram a adesão de um auditório univer-sal). (Perelman, 1987: 239).

No entanto, Platão, "ao propor o diálogomaiêutico como o método do conhecimentoda verdade, do desvendamento do ser, eda denúncia dos mecanismos discursivos demanipulação e de coacção, não podia deixarde pôr também em cena dispositivos logo-máquicos visando o convencimento dos seusinterlocutores."(Rodrigues, 1996: 16)

Com o objectivo de tentar esclarecer al-guns desses "dispositivos logomáquicos",escolhi um pequeno extracto do Livro I de ARepública, a que irei tentar aplicar algumas

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das teses fundamentais de Ducrot, analisadasna I Parte deste trabalho.

A justiça, a coragem (tratada no Laques),a temperança (tratada no Cármides) e a pie-dade (tratada no Êutifron) constituíam paraos Gregos, desde Ésquilo e Píndaro, o grupodas virtudes cardiais. Para completar a aná-lise desse conjunto, faltava a Platão tratar ajustiça - tarefa que é levada a cabo no Li-vro I de A República. Ao longo do diálogo,Sócrates vai examinando e refutando as de-finições de justiça que vão sendo propostaspelos interlocutores, nomeadamente:

• a de Céfalo ("dizer a verdade e restituiro que se tomou", 331d)

• a de Polemarco (que adopta a definiçãodo poeta Simónides: "restituir a cadaum o que se lhe deve", 331e )

• a do Sofista Trasímaco ("a conveniênciado mais forte", 338c).

A conversa decorre no Pireu, em casa dePolemarco. Estão presentes (embora nemtodas participem na discussão), as seguintespersonagens: Sócrates, o sofista Trasímaco,Polemarco e seus irmãos Lísias e Eutidemo,Céfalo (pai dos três anteriores), Carmanti-das e Clitofonte (talvez discípulos de Trasí-maco), Adimanto e Gláucon (irmãos de Pla-tão) e Nicérato14.

O extracto (em Anexo a este trabalho)refere-se ao momento em que Sócratesprocura refutar a definição que o sofistaTrasímaco dá de justiça, e tem como interlo-cutores apenas estas duas personagens.

14Sobre este assunto, ver a Introdução (citada naBibliografia) de Maria Helena da Rocha Pereira.

*"Chama-se situação de discurso ao conjunto dascircunstâncias no meio das quais se desenrola um actode enunciação (oral ou escrito)."A situação de dis-curso compreende, nomeadamente, o ambiente físicoe social, os interlocutores, os outros participantes, osacontecimentos precedentes ao acto de enunciação,etc. Por vezes, também se usa (impropriamente) otermo "contexto"para referir a situação de discurso.(Ducrot e Todorov, 1978: 391)

4.2 A lógica da argumentaçãoGostaria de dizer, como nota prévia ao quevai seguir-se, que a análise que farei se ins-pira, nas suas linhas gerais, no modelo queDucrot aplica, na sua obra Les Échelles Ar-gumentatives, a textos de Pascal e de Mon-tesquieu. No entanto, e diferentemente deDucrot (que utiliza o cálculo de predicados),decidi recorrer à lógica proposicional paratentar apreender a lógica da argumentaçãode Platão (mas tendo sempre em atenção queo que se pretende não é, propriamente, umaanálise "lógica"do texto, sendo esta apenasum meio para a clarificação dos "dispositi-vos logomáquicos"atrás referidos). Gostariaainda de acrescentar que, numa primeira fase15, reduzi o texto de Platão a um conjunto deproposições ("conteúdos proposicionais") -processo que, se bem que simplificador, podeser também algo redutor.

O extracto em análise pode ser divididoem três partes fundamentais:

1a. Parte. Tese de Trasímaco (linhas 1-2):A justiça não é outra coisa senão a conve-niência do mais forte. Esta tese é posteri-ormente explicitada, pelo seu autor, como Ajustiça é a conveniência dos governantes16.

2a Parte. Justificação, por parte de

15Mais concretamente, até ao estudo do pressu-posto e do implícito.

16Esta explicitação, que não consta do extracto,

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Sócrates, da necessidade de "exami-nar"(implicitamente, de refutar) a tese deTrasímaco - e acordo de Trasímaco emrelação a esse procedimento (linhas 3-6).

3a Parte. Refutação, por Sócrates, datese de Trasímaco, recorrendo ao célebreesquema pergunta-resposta a que se costumachamar "maiêutica"(linhas 7-22). Essarefutação pode ser sintetizada nas seguintesproposições:

p - Obedecer aos que governam é acto dejustiça.

(e) (dado que se recusa implicitamente q -Os governantes são infalíveis )∼q - Os governantes são capazes de come-

ter algum erro.(portanto)r - Os governantes formulam bem algumas

leis.(e)∼r - Os governantes formulam mal algu-

mas leis.(mas)s - Formular bem as leis é promulgar

aquilo que convém aos governantes.(e)∼s - Formular mal as leis é promulgar

aquilo que é prejudicial aos governantes.(mas)t - O que os governantes promulgam tem

de ser feito pelos súbditos.(e)u - A justiça é (consiste em) os súbditos

fazerem o promulgado pelos governantes.(logo ) ("segundo o teu raciocínio")v - É justo fazer aquilo que convém ao

mais forte.

para não o alongar demasiado, está substituída por"(...)"nas primeiras falas de Sócrates e de Trasímaco.

(mas também)∼v - É justo fazer o que é prejudicial ao

mais forte.

Em relação ao anterior, devemos ter emconta o seguinte:

a) Colocámos, entre parêntesis, os conec-tores utilizados por Platão no seu texto;

b) p é equivalente à conjunção de t e u,pelo que estas representam uma repetição(lógica, que não argumentativa) de p;

c) q já é, por sua vez, a conclusão doseguinte raciocínio implícito, sugerido porSócrates e admitido, sem o pôr em questão,por Trasímaco:

Os governantes são infalíveis ou são capa-zes de cometer algum erro.

(Ora) Os governantes não são infalíveis(implícita na resposta de Trasímaco).

(Logo) Os governantes são capazes decometer algum erro.

Este silogismo disjuntivo obedece aomodelo chamado modus tollendo ponens,cujo esquema formal é o seguinte:

Ou p ou qOra não pLogo q.

Se quiséssemos traduzir a refutação de Só-crates em termos de lógica proposicional (to-mando em conta os conectores por ele uti-lizados), teríamos o seguinte esquema ló-gico17:

17Utilizamos, ao longo deste trabalho, a seguintenotação simbólica, hoje mais ou menos consagrada:∼ para a negação, Ù para a conjunção, Ú para a dis-junção, Þ para a implicação, Û para a dupla implica-ção.

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18 Paulo Serra

íp Ù [(∼s Þ∼r) Ù (∼r Þ∼q)]ýÞ∼v, o queé equivalente a (p Ù∼s) Þ∼v.

O que, revertido para a linguagem dalógica aritotélica, com algumas adaptaçõesque não alteram o fundamental, daria oseguinte silogismo regular - que resume,em meu entender, o essencial da lógica darefutação de Sócrates:

É justo obedecer aos (isto é, fazer o quemandam fazer os) governantes.

(Ora) Os governantes promulgam (isto é,mandam fazer) o que lhes é prejudicial.

(Logo) É justo fazer o que é prejudicialaos governantes.

Sendo assim, podemos concluir que asproposições∼q, ∼r, t e u não são logica-mente necessárias para estabelecer a conclu-são∼v, que refuta a tese de Trasímaco - maselas são imprescindíveis do ponto de vista ar-gumentativo.

Quanto a t e u, sendo uma repetição dep (uma "tautologia"), destinam-se a confir-mar, mais uma vez, que Trasímaco aceitap como um dos fundamentos da sua tese,sendo sua a responsabilidade pelas con-sequências que, a partir da sua conjunçãocom∼s, Sócrates se prepara para tirar...

Fica assim mais uma vez demonstradoque, como pretende Ducrot, a argumentação,ainda que envolva um conjunto de operaçõeslógicas, nunca se pode reduzir a essas opera-ções. Com efeito, a lógica não nos dá contado essencial da argumentação de Sócrates,como iremos vendo a seguir...

4.3 Classes e escalasargumentativas

Utilizando o conceito de Classe Argumenta-tiva (CA) vemos que, dos enunciados anteri-ores, alguns constituem argumentos a favorde v , enquanto outros constituem argumen-tos a favor de∼v, formando CA opostas:

CA de v: q, r, s;CA de∼v: ∼q,∼r,∼s.

Deste modo, todo o argumento a favor dev é um argumento contra∼v, e vice-versa),não podendo coexistir argumentos das duasCA (em consequência, não teria sentido,no contexto desta argumentação, dizer porexemplo "Formular mal as leis é promulgaro que convém aos governantes").

Por outro lado, utilizando o conceitode Escala Argumentativa (EA), podemosdizer que, no seio de cada uma das CA,aos diferentes enunciados correspondemdiferentes forças argumentativas:

EA de v: s>r> q (s tem maior força argu-mentativa que r e este que q);

EA de∼v: ∼s <∼r <∼q (∼s tem menorforça argumentativa que∼r e este que∼q).

Tal significa que, dentro de cada uma dasCA, concluir a partir de um argumento commenor força argumentativa (por exemplo deq para v), implica concluir também a partirde um mais forte (por exemplo de s para v),mas não o inverso.

Esta distribuição dos enunciados pelas CAe EA obedece às duas primeiras leis da ne-gação, enunciadas por Ducrot e vistas maisacima. No presente contexto, essas leis de-vem ser lidas da seguinte maneira:

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Retórica e Argumentação 19

1a lei. Se q, r e s pertencem à CA deter-minada por v, então∼q,∼r e∼s pertencemà CA determinada por∼v.

2a lei. A EA onde se encontram os enun-ciados negativos∼q, ∼r e∼s, determinadapor∼v, é inversa da EA dos enunciados afir-mativos q, r e s, determinada por v.

Por outro lado, os enunciados de cada CAvão-se encadeando uns nos outros de acordocom a regra da implicação. Vejamos o casoda CA de∼v: ∼s é um argumento para∼r,∼r é um argumento para∼q, ∼s,∼r e∼q,em conjunção com p, são argumentos para aconclusão∼v (estas observações são, muta-tis mutandis, aplicáveis à CA de v).

A argumentação de Sócrates vai apli-cando, à medida que se desenrola, estas leisda negação e da implicação. Com efeito, elevai mostrando, em cada passo dessa argu-mentação, que a tese de Trasímaco implicaargumentos que pertencem simultaneamenteàs CA de v e de∼v - argumentos que nos le-varão irrevogavelmente a admitir quer v quer∼v (e a ter de abandonar v), embora Trasí-maco não se dê conta disso.

Como é isto possível? Como vimos acima,∼q é o resultado do raciocínio disjuntivoque assenta na premissa em torno da qualse "joga", na minha opinião, toda a argu-mentação de Sócrates: "Ou os governantessão infalíveis ou os governantes são capazesde cometer algum erro."A disjunção impõe,aqui, as duas orientações divergentes que po-derá vir a assumir a argumentação: a pri-meira, partindo do enunciado "Os governan-tes são infalíveis", levaria necessariamente àconclusão v; a outra, partindo do enunciado"Os governantes cometem alguns erros", po-derá levar quer a v quer (como interessa aSócrates mostrar) a∼v. Ora, é justamentena possibilidade de chegar a esta conclusão

auto-contraditória que se desenrola o essen-cial da refutação de Sócrates. Podemos di-zer que, a partir do momento em que Trasí-maco aceita de bom grado (como implicita oseu "Certamente que...") que "Os governan-tes cometem alguns erros", a sua tese está ir-remediavelmente perdida.

Segundo a argumentação de Sócrates, atese de Trasímaco só poderia ser aceite se pu-déssemos aceitar a premissa "Os governan-tes são infalíveis". Ora, porque não pode-mos aceitar tal premissa? Basicamente por-que ela vai contra o "senso comum"e a "evi-dência dos factos- sendo, pelo contrário, um"lugar comum"a ideia de que "Os governan-tes cometem algum erro"(isto é, não são in-falíveis).

4.4 O pressuposto e o implícito4.4.1 O pressuposto

a) A tese de Trasímaco: "A justiça não éoutra coisa senão a conveniência do maisforte", pressupõe que:

(1) A justiça existe.(2) A justiça pode ser definida.(3) Há (homens ) fortes e fracos.(4) Há coisas convenientes e coisas preju-

diciais ao mais forte .

b) O enunciado p - "Obedecer aos gover-nantes é acto de justiça", pressupõe que:

(1) Há governantes e governados.(2) Os governantes mandam (fazer alguma

coisa).(3) Os governados podem obedecer ou

desobedecer aos governantes.

c) Os enunciados q - "Os governantes são

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20 Paulo Serra

infalíveis"e∼q - "Os governantes são capa-zes de cometer erros", pressupõem que:

(1) Há governantes e governados.(2) Os governantes têm de tomar decisões.

d) Os enunciados r - "Os governantes for-mulam bem algumas leis"e∼r - "Os gover-nantes formulam mal algumas leis", pressu-põem que:

(1) Há governantes e governados.(2) Os governantes formulam leis.

e) Os enunciados s - "Formular bem as leisé promulgar aquilo que convém aos gover-nantes"e∼s - "Formular mal as leis é pro-mulgar aquilo que é prejudicial aos gover-nantes", pressupõem que:

(1) Há governantes e governados.(2) Formular leis é promulgar qualquer

coisa.(3) Há coisas que convêm e coisas que

são prejudiciais aos governantes.

f) O enunciado t - "O que os governantespromulgam tem de ser feito pelos súbditos",e o enunciado u - "A justiça é os súbditosfazerem o promulgado pelos governantes",pressupõem que:

(1) Há governantes e súbditos.(2) Os governantes promulgam algo.(3) Os súbditos podem ou não fazer o que

foi promulgado.

g) As conclusões v - "É justo fazer aquiloque convém ao mais forte"e∼v - "É justofazer o que é prejudicial ao mais forte"têmos pressupostos já vistos em a).

h) Também determinadas expressões utili-zadas no diálogo envolvem certos pressupos-tos. É o caso, nomeadamente, da expressão,

utilizada por Sócrates, "Não manténs que...?", que pressupõe:

(1) "Defendias antes que...";

Se, neste momento, ordenarmos os pressu-postos anteriores, eliminando as repetições,obtemos o quadro seguinte:

1. A justiça existe.

2. A justiça pode ser definida.

3. Há (homens ) fortes e fracos.

4. Há governantes e governados (súbdi-tos).

5. Há coisas convenientes e coisas preju-diciais ao mais forte.

6. Os governantes mandam (fazer algumacoisa). (variante: Os governantes pro-mulgam algo)

7. Os governados podem obedecer ou de-sobedecer aos governantes (variante:Os súbditos podem fazer ou não fazero que foi promulgado).

8. Os governantes têm de tomar decisões.

9. Os governantes formulam leis.

10. Formular leis é promulgar qualquercoisa.

É este conjunto de pressupostos - dosquais nenhum vai ser posto em causa porSócrates e Trasímaco - que vai constituir o"quadro"ou "moldura"no interior do qual sevai desenrolar todo o diálogo e toda a argu-mentação...

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Retórica e Argumentação 21

4.4.2 O implícito

a) Na tese de Trasímaco ("A justiça não éoutra coisa senão a conveniência do maisforte"), a expressão "A não é outra coisasenão B "(sendo, no caso em apreço, A "ajustiça"e B "a conveniência do mais forte"),utilizada em vez de "A é B", dá desde logoa entender que se pretende, não apenasavançar uma tese, mas excluir liminarmenteoutras teses que eventualmente se poderiamdefender - pretensão que é reforçada pelautilização da expressão verbal "Afirmoque...", que introduz a tese de Trasímacocom uma força ilocutória diferente da queteria se, pura e simplesmente, Trasímacoafirmasse a tese, sem mais.

b) Na primeira fala de Trasímaco, a ex-pressão "Ouve então."implicita que Trasí-maco vai responder a um pedido (ou a umasolicitação) feita previamente por Sócrates,significando algo como:

(1) "Vou então responder ao que mepediste".

c) O enunciado q - "Os governantes sãocapazes de cometer algum erro", subentendeque:

(1) "Os governantes não são infalíveis".Como vimos acima, o enunciado q é

a conclusão de um raciocínio disjuntivo,cuja premissa maior é "Os governantes sãoinfalíveis ou são capazes de cometer algumerro"e cuja premissa menor, implícita, é oenunciado (1).

d) As respostas de Trasímaco às perguntasde Sócrates implicitam os conteúdos propo-sicionais envolvidos nessas mesmas pergun-tas. Assim:

– "Examina"subentende "Examina a ques-tão (de saber se a justiça é ou não a conveni-ência do mais forte)";

– "Sim, senhor"subentende a resposta"Mantenho que obedecer aos que governamé acto de justiça";

– "Julgo bem que sim"é utilizado para di-zer que "Tenho a certeza que quando os go-vernantes experimentam formular leis, for-mulam umas bem e outras mal";

– "Acho"é utilizado para dizer "Acho quefazer bem leis é naturalmente promulgaraquilo que convém aos governantes; não asfazer bem, aquilo que lhes é prejudicial";

– "Como não?"representa não uma per-gunta, mas a afirmação implícita, feita emresposta a uma pergunta de Sócrates, deque ”Concordo que o que os governantespromulgaram tem de ser feito pelos súbditos,e isso é que é a justiça.”

e) Várias das expressões constantes das fa-las de Sócrates envolvem subentendidos. As-sim:

– A expressão "... e eu ignoro se é as-sim..."implicita a discordância de Sócratesem relação à tese avançada por Trasímacode que "a justiça é a conveniência do maisforte";

– "Assim farei", quer dizer "Irei examinara questão (de saber se a justiça é ou não aconveniência do mais forte)";

– "Segundo o teu raciocínio"implicitaque Sócrates vai extrair uma conclusão pelaqual não é (supostamente) responsável, dadoessa conclusão ser consequência da tese deTrasímaco.

De notar que, no decorrer da sua argu-mentação, o trabalho de Sócrates consisteem ir explicitando estes enunciados implíci-

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tos, justificando assim a definição que Meyerpropõe para o conceito de argumentação:"estudo da relação entre o implícito e o ex-plícito."(Meyer, 1992: 118))

4.5 Os actos ilocutóriosO diálogo entre Sócrates e Trasímacodesenvolve-se como uma espécie de jogo deping-pong ilocutório, em que um pergunta eo outro responde, um afirma e o outro con-corda ou discorda, um pede e o outro satis-faz o pedido, etc. Utilizando a terminologiade Austin, podemos afirmar que apenas al-guns desses actos ilocutórios são expressos(por exemplo: "Afirmo que..."), sendo a mai-oria primários (perguntar, responder, afirmar,etc.). A tentativa de recenseamento dos ac-tos ilocutórios presentes no diálogo dá-noso seguinte "mapa"(cada travessão correspon-dendo a cada uma das falas de Sócrates eTrasímaco):

• Trasímaco satisfaz um pedido prévio deSócrates para que diga qualquer coisa("Ouve então.") e afirma a sua tese (deque "a justiça não é outra coisa senão aconveniência do mais forte");

• Sócrates constata o acordo ("concorda-mos em que a justiça é algo de con-veniente") e, simultaneamente, o desa-cordo ("tu acrescentas a esta definiçãoque essa conveniência é a do mais forte,e eu ignoro se é assim") entre si e Trasí-maco, concluindo daí a necessidade deexaminar a questão ("temos de exami-nar a questão");

• Trasímaco pede a Sócrates que examinea questão ("Examina");

• Sócrates promete aceder ao pedido deTrasímaco ("Assim farei"), satisfazendoesse pedido/cumprindo a promessa jánesta e nas falas seguintes; ordena aTrasímaco que lhe responda a uma per-gunta ("Diz-me lá"), e pergunta ("nãomanténs que obedecer aos que gover-nam é acto de justiça ?");

• Trasímaco responde à pergunta de Só-crates ("Sim, senhor");

• Sócrates pergunta ("E os governantesem cada um dos Estados são infalíveis,ou capazes de cometer algum erro?");

• Trasímaco responde à pergunta de Só-crates ("Certamente que são capazes decome-ter algum erro");

• Sócrates conclui ("Portanto... ") e per-gunta a Trasímaco se está de acordocom esssa conclusão ("... quando expe-rimentam formular leis, formulam umasbem, outras não?");

• Trasímaco concorda com a conclusãode Sócrates ("Julgo bem que sim");

• Sócrates afirma ("Mas fazer bem leis énaturalmente promulgar aquilo que lhescon-vém; não as fazer bem, aquilo queé prejudicial") e pergunta a Trasímacose concorda com essa afirmação ("Nãoachas?");

• Trasímaco concorda com a afirmaçãode Sócrates ("Acho");

• Sócrates afirma ("Mas o que eles pro-mulgaram tem de ser feito pelos súbdi-tos ...") e pergunta a Trasímaco se estáde acordo com essa afirmação ("... eisso é que é a justiça?");

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Retórica e Argumentação 23

• Trasímaco concorda com a afirmaçãode Sócrates, mediante uma perguntaque, de facto, não o é ("Como não?");

• Sócrates conclui as consequências datese de Trasímaco ("Segundo o teuracio-cínio...").

Uma breve análise do "mapa"anteriormostra-nos que:

a) As falas de Sócrates e Trasímaco impli-cam actos ilocutórios diferentes quer quantoà quantidade quer quanto à qualidade. Indi-camos, a seguir, os actos ilocutórios de cadaum e a respectiva frequência:

– Trasímaco: pedir (1), satisfazer um pe-dido (1), afirmar (1), responder (2), concor-dar (3), num total de 8;

– Sócrates: constatar (1), concluir (3),prometer (1), ordenar (1) satisfazer o pedido/cumprir a promessa (1), perguntar (5),afirmar (2), num total de 14.

b) Os actos ilocutórios em jogo no diálogopertencem às classes a que Austin chama deactos promissivos (1), actos exercitivos (1),actos comportamentativos (3) e, sobretudo,actos expositivos (como afirmar, perguntar,responder, concordar, constatar, concluir -num total de 17)...

O que nos permite, desde logo, concluir oseguinte:

1. O diálogo é francamente "expositivo",como seria de esperar de um texto quese pretende "filosófico"e "racional";

2. Enquanto Sócrates assume um papel ac-tivo (centrado no perguntar, no concluir,no afirmar), Trasímaco assume um pa-pel predominantemente passivo (cen-trado no responder e no concordar) - o

que mostra, sem sombra de dúvida, queé Sócrates quem conduz a situação deinterlocução.

As conclusões anteriores parecem justifi-car plenamente a opinião de Ducrot de que"... a interrogação é muito menos inocentedo que parece à primeira vista: tendo o arde respeitar a liberdade do destinatário, elapode, no entanto, impor-lhe ideias prévias.Particularidade esta que torna suspeitas nu-merosas "sondagens de opinião", e que levaa desconfiar também da "pedagogia inter-rogativa"de inspiração socrática. Porque asperguntas do professor afirmam geralmentetanto quanto perguntam. Daí os limites da"maiêutica", parto que pode ter certas carac-terísticas de inseminação."(Ducrot, 1984a:401).

De facto, a única verdadeira pergunta,aquela que possibilitaria a verdadeira discus-são entre Sócrates e Trasímaco, é a que vaifazer derivar a argumentação para o rumopretendido por Sócrates: "E os governantes,são infalíveis ou são capazes de cometer al-gum erro?".

4.6 Operadores e conectoresargumentativos

a) "Uma vez que..."(linha 3): em termosgramaticais pode ser classificada comouma locução subordinativa condicional,na medida em que exprime uma condição("Uma vez que A, então B). Assim sendo,é equivalente ao enunciado implicativo, dotipo B se A, significando que A é favorávela B - ou, por outras palavras, que devereconhecer-se que A pertence a uma CAdeterminada por B, que A é um argumentopara uma hipotética consequência B, que B

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24 Paulo Serra

deve ser encadeado com A. O que aconteceno texto - com a diferença de que A é,neste caso, uma conjunção dos argumentosque podemos designar por A1 ("tu e euconcordamos em que a justiça é algo deconveniente") e A2 ("tu acrescentas a estadefinição que essa conveniência é a do maisforte e eu ignoro se é assim"), a que sesegue a consequência "temos de examinar aquestão"(B).

b) "e"(linhas 3, 4, 10 e 18): gramati-calmente, é uma conjunção coordenativacopu-lativa, que tem a função de estabelecera ligação entre um enunciado anterior e umenunciado posterior, indicando que eles têma mesma orientação argumentativa (ou seja,que fazem parte da mesma CA)18.

c) "ora"(linha 7): gramaticalmente, éuma conjunção coordenativa conclusiva,expri-mindo que o enunciado que se lhesegue é uma premissa que, em conjunçãocom outro(s) enunciado(s) anterior(es), vaipermitir extrair uma conclusão (implicitandoum raciocínio que obedece ao seguinte es-quema: p, q...n; ora, s; logo, z).

d) "ou"(linha 10): gramaticalmente éuma conjunção disjuntiva, que indica umaalternativa ou disjunção, marcando a di-vergência de orientação argumentativa dosenunciados que podem vir a derivar de umou de outro dos termos da disjunção; poroutras palavras, ou marca a oposição entreduas CA diferentes.

e) "Certamente que..."(linha 12) su-

18É esta a interpretação de Paul Feyerabend, porexemplo em O Adeus à Razão (ver Bibliografia).

bentende que o que vai seguir-se é umaafirmação inquestionável, que não pode serposta em dúvida.

f) "portanto"(linha 13): gramaticalmenteé uma conjunção coordenativa conclu-siva, exprimindo que o enunciado que se lhesegue é uma consequência do(s) anterior(es).

g) Na expressão "Julgo bem que..."(linha14), bem subentende que a proposição quese segue é uma proposição que tem umgrau de necessidade maior (maior forçaargumentativa) do que se dissesse apenas"Julgo que...".

h) Na expressão "Mas fazer bem leisé naturalmente..."(linha 15), naturalmenteimplicita a ideia de que o que se vai seguir é"evidente", não pode ser posto em dúvida deforma alguma.

i) "mas"(linhas 15 e 18): gramaticalmenteé uma conjunção coordenativa adversativa,que indica normalmente oposição entre umenunciado e o anterior. No entanto, nopresente contexto argumentativo, deve sertomado como sinónimo de "ora", com asfunções acima descritas.

j) "Não só... mas também"(linhas 21/22):gramaticalmente é uma conjunção coordena-tiva copulativa, que serve para ligar doisenunciados que têm a mesma orientação ar-gumentativa. No caso do texto, Sócrates temde marcar o contrário deste uso habitual uti-lizando o advérbio "inversamente".

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Retórica e Argumentação 25

5 Conclusão

Se, como pretende Ducrot (e se ilustra comesta análise do texto de Platão), a dimensãoargumentativa é inerente a todo o discurso,a todo o acto de linguagem, o que aconteceaos valores universais que, desde o seu iní-cio, foram perseguidos pela metafísica e pelaciência ocidentais? Não nos restará a palavrade Protágoras de que "o homem é a medidade todas as coisas"? Mas aceitar esta pala-vra não é cair no subjectivismo absoluto, naimpossibilidade da própria interlocução?

Não necessariamente. Platão, com a sua"vontade de verdade"universal, formal e uní-voca, é talvez o maior responsável pelo des-prezo a que uma certa história da filosofiae da ciência (e da cultura ocidental em ge-ral) votou os Sofistas e a Retórica. Na reali-dade, a palavra de Protágoras pode (deve) serinterpretada num sentido diferente do sub-jectivismo - no sentido do relativismo cul-tural 19. Isto é, no sentido de que todaa "verdade", todo o "bem", todo o "belo",só acedem à existência num determinadocontexto discursivo, num determinado "jogode linguagem", para utilizarmos a expres-são de Wittgenstein - não tendo qualquersentido fora desse contexto e desse "jogo".O que significa que todo o discurso, todaa linguagem, tem a sua retórica própria, asua argumentatividade intrínseca. Pretender,como no caso dos discursos filosófico e ci-entífico, "apagar"(disfarçando-o) esse carác-ter retórico-argumentativo, não é senão criaruma outra retórica. A este respeito, o casode Platão é exemplar: o facto de ele ter per-suadido toda uma tradição acerca da sua vi-são da linguagem, depreciando todos os ou-tros usos da linguagem como "sofísticos", sómostra como ele dominava perfeitamente o

poder retórico-argumentativo da linguagem.Esse domínio é tão evidente nos diálogos dePlatão como por exemplo no Discurso doMétodo de Descartes. Platão e Descartessão, cada um, cada uma a seu modo, "retó-ricos"exímios...

A concepção retórico-argumentativa dalinguagem tem consequências filosóficas eculturais relevantes. Talvez a principal re-sida na ideia de que todos os discursos, todosos "jogos de linguagem"têm direito a exis-tir, a confrontar-se, a dialogar - assumindo,mas nunca anulando, as suas discordâncias ediferenças. Numa palavra: relativizando-se.Talvez resida aí, nessa relativização, o ver-dadeiro universalismo (que não a "universa-lidade") dos "homens de boa vontade".

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Retórica e Argumentação 27

cias da Comunicação, Universidade daBeira Interior

7 Anexo

Extracto de a República, de Platão(Começa com a fala de Trasímaco):– Ouve então. Afirmo que a justiça não

é outra coisa senão a conveniência do maisforte. (...)

– (...) Uma vez que tu e eu concordamosem que a justiça é algo de conveniente, e quetu acrescentas a esta definição que essa con-veniência é a do mais forte, e eu 5 ignoro seé assim, temos de examinar a questão.

– Examina - disse ele.– Assim farei - respondi -. Ora diz-me lá:

não manténs que obedecer aos que governamé acto de justiça?– Sim, senhor.

10 - E os governantes em cada um dos Es-tados são infalíveis, ou capazes de cometeralgum erro?

– Certamente que são capazes de cometeralgum erro.

– Portanto, quando experimentam formu-lar leis, formulam umas bem, outras não? –Julgo bem que sim.

15 - Mas fazer bem leis é naturalmentepromulgar aquilo que lhes convém; não asfazer bem, aquilo que é prejudicial. Nãoachas?

– Acho.– Mas o que eles promulgaram tem de ser

feito pelos súbditos, e isso é que é a justiça?20 - Como não?– Segundo o teu raciocínio, não só é justo

fazer aquilo que convém ao mais forte, mastambém, inversamente, aquilo que lhe é pre-judicial. (...)

(Platão, A República, 338c-339d, pp. 23-25).

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