192

Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Rev Critica Marxista 31

Citation preview

Page 1: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 1Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 1 22/10/2010 15:11:0322/10/2010 15:11:03

Page 2: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 2Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 2 22/10/2010 15:11:5422/10/2010 15:11:54

Page 3: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Revista de difusão e discussão da produção intelectual marxista em sua diversidade, bem como de intervenção no debate

e na luta teórica em curso.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 3Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 3 22/10/2010 15:11:5422/10/2010 15:11:54

Page 4: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Copyright © Andréia Galvão, Armando Boito Jr., Caio Navarro de Toledo, Isabel Loureiro,

João Quartim de Moraes, Jorge Grespan, Patrícia Trópia, 2010

Crítica Marxista no 31 – 2010

Capa: Andreia YanaguitaCopidesque: Monalisa Neves

Revisão: Jean XavierEditoração eletrônica: Eduardo Seiji Seki

ISSN 0104-9321-31

Periodicidade semestral

Todos os direitos reservados. É vedada, nos termos da lei, a reprodução de qualquer parte desta publicação sem a expressa autorização da editora.

1a edição 2010

Indexada em Worldwide Political Science Abstracts,Sociological Abstracts e Social Services Abstracts

DistribuiçãoFUNDAÇÃO EDITORA UNESP

Praça da Sé, 108 – CentroCEP 01001-900 – São Paulo – SP

Tel.: + 55 11 3242-7171Fax: + 55 11 3242-7172

www.editoraunesp.com.brwww.livrariaunesp.com.br

[email protected]

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 4Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 4 22/10/2010 15:11:5422/10/2010 15:11:54

Page 5: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Comitê editorial

Andréia Galvão – Universidade Estadual de Campinas / Armando Boito Jr. – Universidade Estadual de Campinas / Caio Navarro de Toledo – Universidade Estadual de Campinas / Isabel Maria Loureiro – Universidade Estadual Paulista / João Quartim de Moraes – Universidade Estadual de Campinas / Jorge Grespan – Universidade de São Paulo / Luciano Cavini Martorano – Cientista Político / Patrícia Vieira Trópia – Universidade Federal de Uberlândia (MG) / Sérgio Lessa – Universidade Federal de Alagoas / Virgínia Fontes – Universidade Federal Fluminense

Conselho editorial

Adalberto Paranhos – Universidade Federal de Uberlândia / Adriana Doyle Portugal – Socióloga / Adriano N. Codato – Universidade Federal do Paraná / Altamiro Borges – Jornalista / Aldo Durán Gil – Universidade Federal de Uberlândia / Amarilio Ferreira Junior – Universidade Federal de São Carlos / Ana Lúcia Goulart de Faria – Universidade Estadual de Campinas / Andriei Gutierrez – Cientista Político / Ângela Lazagna – Cientista Política / Anita Handfas – Universidade Federal do Rio de Janeiro / Antônio Andrioli – Universidade de Ijuí (RS) / Ariane Leites Larentis – Fundação Oswaldo Cruz (RJ) / Arlete Moisés Rodrigues – Universidade Estadual de Campinas / Augusto Buonicore – Historiador / Carlos César Almendra – Fundação Santo André (SP) / Carlos Zacarias de Sena Jr. – Universidade Federal da Bahia (UFBA) / Ciro Flamarion Cardoso – Univer-sidade Federal Fluminense / Claudinei Coletti – Sociólogo / Claus Germer – Universidade Federal do Paraná / Clóvis Moura – in memoriam / Cristina Paniago– Universidade Federal de Alagoas / Cristiano Ferraz – Universidade Estadual do Su-doeste da Bahia / Danilo Martuscelli – Cientista Político / Davisson de Souza – Universidade Fe-deral de São Paulo / Décio Azevedo M. de Saes – Universidade Metodista de São Paulo / Diorge Konrad – Universidade Federal de Santa Maria (RS) / Edgard Carone – in memoriam / Edilson Graciolli – Universidade Federal de Uberlândia / Emir Sader – Universidade de São Paulo / Emma-nuel Appel – Universidade Federal do Paraná / Eurelino Coelho – Universidade Estadual de Feira

de Santana (BA) / Ester Vaisman – Universidade Federal de Minas Gerais / Fernando Novais – Universida de Estadual de Campinas / Fernando Ponte de Sou za – Universidade Federal de Santa Catarina / Flávio de Castro – Cientista Político / Florestan Fernandes – in memoriam / Francis Guimarães Nogueira – Unioeste (PR) / Francisco Hardman – Universidade Estadual de Campinas / Francisco Farias – Universidade Federal do Piauí / Francisco Teixeira – Universidade Estadual do Ceará / Gabriel Vitullo – Universidade Federal do Rio Grande do Norte / Gilberto Luis Alves – Uni-versidade Federal do Mato Grosso do Sul / Gon-zalo Rojas – Universidade Federal de Campina Grande (PB) / Hector Saint-Pierre – Universidade Estadual Paulista / Henrique Amorim – Sociólogo / Hermenegildo Bastos – Universidade Nacional de Brasília / Homero Costa – Universidade Fe-deral do Rio Grande do Norte / Iná Camargo – Universidade de São Paulo / Isaac Akcelrud – in memoriam / Jacob Gorender – His to ria dor / Jair Batista da Silva – Universidade Federal da Paraí-ba / João Francisco Tidei de Lima – Universidade Estadual Paulista / João Roberto Martins Filho – Universidade Federal de São Carlos / Jorge Miglioli – Universidade Estadual de Campinas / José Carlos Ruy – Jornalista / José Corrêa Leite – Jornalista / José dos Santos Souza – Universidade Federal Rural (RJ) / José Claudinei Lombardi – Universid ade Es tadual de Campinas / José Roberto Cabrera – Cientista Político / José Roberto Zan – Universidade Es tadual de Campinas / Leandro Galastri – cientista político /

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 5Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 5 22/10/2010 15:11:5422/10/2010 15:11:54

Page 6: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Leda Maria de Oliveira Rodrigues – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / Lígia Maria Osório – Universidade Estadual de Campinas / Lincolm Secco – Universidade de São Paulo / Li-liam Faria Porto Borges – Unioeste, Paraná / Luiz Eduardo Motta – Universidade Federal do Rio de Janeiro / Luziano Mendes de Lima – Universidade Estadual de Alagoas / Marcelo Ridenti – Universi-dade Estadual de Campinas / Marco Antonio dos Santos – Centro Cultural Antonio Carlos Carvalho (RJ) / Marcos Del Roio – Universidade Estadual Paulista / Maria Elisa Cevasco – Universidade de São Paulo / Maria Lucia Frizon Rizzotto – Unioes-te (PR) / Maria Ribeiro do Valle – Universidade Estadual Paulista / Mario Lima (in memoriam) / Marly Vianna – Universidade Salgado de Oliveira (RJ) / Mauro Iasi – Faculdade de Direito de São Bernardo / Maurício Tragtenberg – in memoriam / Maurício Vieira Martins – Universidade Federal Fluminense / Mauro C. B. de Moura – Universi-dade Federal da Bahia / Muniz Ferreira – Univer-sidade Federal da Bahia / Nelson Prado Alves Pinto – Universidade Estadual de Campinas /

Nelson Werneck Sodré – in memoriam / Osvaldo Coggiola – Universidade de São Paulo / Paula Marcelino – Universidade Estadual de Campinas / Paulo Cunha – Universidade Estadual Paulista / Paulo Denisar Fraga – Universidade Federal de Alfenas (MG) / Paulo H. Martinez – Universidade Estadual Paulista / Pedro Chadarevian – Univer-sidade Federal de São Carlos / Pedro Leão Costa Neto – Universidade Tuiuti (PR) / Pedro Paulo Funari – Universidade Estadual de Campinas / Regina Maneschy – Socióloga / Reinaldo Carca-nholo – Universidade Federal do Espírito Santo / Renato Perissinotto – Universidade Federal do Paraná / Sandra Zarpelon – Cientista Política / Santiane Arias – Universidade Estadual de Campinas / Sávio Cavalcanti – Sociólogo / Sérgio Braga – Universidade Federal do Paraná / Sérgio Prieb – Universidade Federal de Santa Maria (RS) / Silvio Costa – Universidade Católica de Goiás / Silvio Frank Alem – in memoriam / Tânia Pellegrini – Universidade Federal de São Carlos / Valério Arcary – Historiador / Wolfgang Leo Maar – Universidade Federal de São Carlos

Colaboradores internacionais

Alfredo Saad Filho – Inglaterra / Ângelo Novo – Portugal / Atílio Borón – Argentina / Domenico Losur-do – Itália / Ellen Wood – Canadá / Fredric Jameson – Estados Unidos / Gérard Duménil – França / Guido Oldrini – Itália / Guillermo Foladori – Uruguai / István Mészáros – Inglaterra / Jacques Bidet – França / James Green – Estados Unidos / James Petras – Estados Unidos / Joachim Hirsch – Alemanha / Marco Vanzulli – Itália / Maria Turchetto – Itália / Michael Löwy – França / Michel Ralle – França / Nicolas Tertulian – França / René Mouriaux – França / Ronald Chilcote – Estados Unidos / Serge Wolikow – França / Victor Wallis – Estados Unidos / Vittorio Morfino – Itália

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA:

REVISTA CRÍTICA MARXISTAArmando Boito Jr.

Cemarx, IFCH, UnicampCaixa Postal 6110

13083-970 Campinas, SP

Endereço na Internet:www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 6Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 6 22/10/2010 15:11:5422/10/2010 15:11:54

Page 7: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Sumário

APRESENTAÇÃO ............................................................................................. 9

ARTIGOS

A História e a construção histórica na obra de José Saramago ......................... 11João Valente Aguiar e Nádia Bastos

O estatuto teórico da noção de dependência ................................................... 23João Quartim de Moraes

Uma crise de transição: deslocamentos de força na economia mundial .......... 37Dieter Boris e Stefan Schmalz

DOSSIÊ

Apresentação: A teoria da História de Karl Marx: uma defesa, de Gerald A. Cohen ............................................................................................................. 57Angela Lazagna

Forças produtivas e relações de produção ....................................................... 63Gerald A. Cohen

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: a Defense, de G. A. Cohen ................................................. 83Richard W. Miller

Louis Althusser e G. A. Cohen: uma confrontação ........................................... 111Grahame Lock

DOCUMENTO

Anotações sobre o materialismo burguês ......................................................... 133Georg Lukács

COMENTÁRIO

Marxismo e reconhecimento ........................................................................... 139Jair Batista da Silva

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 7Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 7 22/10/2010 15:11:5422/10/2010 15:11:54

Page 8: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

RESENHAS

Combatendo a desigualdade social – O MST e a Reforma Agrária no Brasil [Miguel Carter (org.)] ....................................................................................... 155Isabel Loureiro

Trabalho imaterial: Marx e o debate contemporâneo [Henrique Amorim] ....... 159Andréia Galvão

A origem do cristianismo [Karl Kautsky] .......................................................... 163Michel Löwy

Memoria y utopía en México. Imaginários en la génesis del neozapatismo [Fernando Matamoros Ponce] .......................................................................... 167Fabio Mascaro Querido

Os impasses da estratégia – os comunistas, o antifascismo e a revolução burguesa no Brasil. 1936-1948 [Carlos Zacarias Sena Jr] ................................. 171Marly de A. G. Vianna

RESUMOS/ABSTRACTS .................................................................................. 175

NORMAS PARA COLABORAÇÃO .................................................................. 181

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 8Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 8 22/10/2010 15:11:5422/10/2010 15:11:54

Page 9: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Apresentação • 9

Este número de CRÍTICA MARXISTA traz, dentre outras matérias, um Dossiê sobre a defesa que Gerald Cohen elaborou da teoria da história de Karl Marx, trabalho que provocou um amplo e rico debate, principalmente nos países de língua inglesa.

Cohen parte do Prefácio de 1859, no qual Marx apresenta a tese segundo a qual o movimento econômico determina, em última instância, o processo históri-co. Ele busca fundamentar essa tese em uma noção de racionalidade humana: em situação de escassez, os homens tenderiam a optar pelos instrumentos e métodos de produção mais eficientes. Essa fundamentação recorre, pois, há um princípio meta-histórico: a racionalidade imperaria, senão em todos os modos de produção, por certo em todos aqueles em que vigora a escassez material. Essa empreitada ambiciosa de Cohen foi alvo de comentários positivos e de críticas. A construção é rigorosa e Cohen se esforça por manter-se no campo do materialismo histórico. Até agora, toda essa discussão tinha permanecido inédita em língua portuguesa.

O Dossiê foi organizado por Angela Lazagna, pesquisadora do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) da Unicamp e ativa colaboradora da revista, a quem o comitê editorial registra o seu especial agradecimento.

Publicamos também um texto sobre José Saramago, escritor materialista mili-tante, cuja obra variada e criativa é reconhecida em todo o mundo. De autoria de João Aguiar e Nádia Bastos, pesquisadores portugueses, o artigo é uma reflexão sobre a importância artística e política da obra de Saramago e vale como uma homenagem de CRÍTICA MARXISTA por ocasião de seu recente falecimento.

CRÍTICA

marxistaAPRESENTAÇÃO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 9Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 9 22/10/2010 15:11:5422/10/2010 15:11:54

Page 10: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 10Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 10 22/10/2010 15:11:5422/10/2010 15:11:54

Page 11: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

A História e a construção histórica na obra de José Saramago• 11

A História e a construção histórica na obra de José Saramago*

JOÃO VALENTE AGUIAR **

NÁDIA BASTOS***

Uma breve nota introdutóriaJosé Saramago (1922-2010), único Prémio Nobel de Literatura de língua por-

tuguesa (1998), construiu a maior parte de sua prolífica obra literária nos últimos 30 anos de sua vida. De origem camponesa, da aldeia portuguesa de Azinhaga, concelho de Golegã, Saramago desempenhou profissões simples e modestas como a de serralheiro mecânico antes de publicar o seu primeiro romance – Terra do pecado (1947) – e de se tornar editor e tradutor, a partir da segunda metade da década de 1950. Saramago tornar-se-ia jornalista do Diário de Lisboa em 1971 e, com a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, ocuparia o cargo de director--adjunto do Diário de Notícias até novembro de 1975, quando, por via do golpe contrarrevolucionário de 25 de novembro do mesmo ano, foi demitido do jornal por causa de suas posições políticas de esquerda e de sua ligação com o Partido Comunista Português, do qual já era membro desde 1969 e onde permaneceria militante até à sua morte.

A expulsão de José Saramago do Diário de Notícias iria ser, paradoxalmente, o ponto a partir do qual o autor pôde afirmar todo um talento literário e criativo até aí ainda por explorar em todo o seu esplendor. “Sem emprego uma vez mais e, ponderadas as circunstâncias da situação política que então se vivia, sem a

CRÍTICA

marxistaARTIGOS

* Na sua quase integralidade, foi mantido o português original dos autores.** Pesquisador do Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (ISFLUP),

Portugal.*** Artista plástica e mestre em Educação Visual e Tecnológica pela Escola Superior de Educação do Porto.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 11Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 11 22/10/2010 15:11:5422/10/2010 15:11:54

Page 12: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

12 • Crítica Marxista, n.31, p.11-22, 2010.

menor possibilidade de o encontrar, tomei a decisão de me dedicar inteiramente à literatura: já era hora de saber o que poderia realmente valer como escritor” (Sa-ramago, 2010), escreveria, mais tarde, o próprio autor, num texto autobiográfico. Falando dos seus livros, disse também: “Creio que nada ou quase nada do que fiz depois do 25 de abril podia ter sido feito antes” (idem), palavras que confirmam que sua obra é, também, uma conquista da Revolução de Abril. O resultado não poderia ser melhor, com a publicação sucessiva de um vasto conjunto de obras que o afirmariam como figura cimeira da literatura portuguesa e mundial: Levan-tado do chão (1980); Memorial do convento (1982); O ano da morte de Ricardo Reis (1984); A jangada de pedra (1986); História do cerco de Lisboa (1989); O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991); Ensaio sobre a cegueira (1995); Todos os nomes (1997); A caverna (2000); O homem duplicado (2002); Ensaio sobre a lucidez (2004); As intermitências da morte (2005); A viagem do elefante (2008); Caim (2009), além de peças de teatro, livros de crónicas e de viagens, e um diário.

Ao longo de todo esse período de profícua produção literária, o escritor co-munista prosseguiu a sua actividade político-partidária: nas eleições autárquicas de 1989, proposto pelo PCP, integra a lista da coligação Por Lisboa e é eleito presidente da Assembleia Municipal. Foi ainda candidato ao Parlamento Europeu em todas as eleições, de 1987 a 2009.

Em 2003, como prova de um largo reconhecimento mundial, o crítico literário norte-americano Harold Bloom, no seu livro Genius: A Mosaic of One Hundred Exemplary Creative Minds, considerou José Saramago “o mais talentoso roman-cista vivo nos dias de hoje”, referindo-se a ele como “O Mestre”.

A morte do escritor deixou a literatura de língua portuguesa naturalmente mais pobre, mas a sua obra constituirá seguramente um dos mais enriquecedores legados culturais e literários do século XX. Com efeito, com uma obra tão imbricada com o compasso histórico dos últimos 50 anos, surge-nos como pertinente procurar relacionar, brevemente, de que forma a ficção saramaguiana incorpora a História e, por seu turno, expele visões sobre a História por via da narrativa evidenciada pelas personagens desenhadas e tornadas vivas pelo génio do escritor. Assim, desdobraremos o restante artigo em torno de três secções interligadas: a forma como a crítica literária mais conservadora aborda a obra saramaguiana a partir de um viés ideológico; algumas das propriedades fundamentais do que, em traços muitos largos, se pode afiançar como uma possível “grande” obra literária; e, por último, como a ficção de Saramago se articula, em alguns dos seus textos mais significativos, com os processos históricos abordados pelo autor.

Comentários ideológicos paradigmáticos à obra de Saramago…No âmbito da literatura portuguesa dos últimos 30 anos, Saramago inscreveu

a sua obra no topo do campo literário do seu país e, com um impacto igualmente crescente, no estrangeiro. Todavia, tal “ascensão” como figura da literatura por-tuguesa arrastou consigo algumas críticas (e, por que não dizê-lo, invejas) que,

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 12Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 12 22/10/2010 15:11:5422/10/2010 15:11:54

Page 13: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

A História e a construção histórica na obra de José Saramago• 13

no essencial, se direcciona(va)m para a tese de que a obra de Saramago seria amplamente ideológica e condicionada pelas suas posições políticas e, consequen-temente, sem valor estético relevante. Citaremos aqui apenas dois exemplos de como, quando da morte do escritor, certos sectores do campo literário português, minoritários, mas com reconhecimento mediático não despiciendo, concebem a obra de José Saramago. O primeiro exemplo é o de Pedro Rosa Mendes, escritor e jornalista português autor de dois best-sellers nesse país: A baía dos tigres e Peregrinação de Enmanuel Jhesus.

O que o Lobo Antunes tem a mais do que o Saramago como grande autor é a liberdade ideológica; é ser um homem livre. Várias vezes tive a sensação de que Saramago era um escritor aprisionado dentro de um homem livre nas suas opi-niões, no sentido em que o homem era mais livre do que o escritor, mais livre do que a ficção que escrevia. Há um programa e há uma obrigação política na ficção do Saramago. Isso comporta a qualidade da coerência física, mas tem o grande problema da qualidade criativa (Mendes, 2010).

Por conseguinte, para Mendes, Saramago seria um autor panfletário, o que lhe retiraria criatividade literária. Quando o escritor português Lobo Antunes, maior rival no campo literário português de Saramago, apoia candidatos polí-ticos que postulam medidas neoliberais ou quando dá entrevistas elogiando o actual primeiro-ministro português José Sócrates pela “coragem” na execução de reformas na saúde, na educação e no trabalho de recorte, repetimos, neoliberal e destruidor de direitos sociais e políticas da classe trabalhadora, então ele seria um “homem livre” e aparentemente despojado de imperativos ideológicos. No contexto da obra propriamente dita, na obra de Lobo Antunes o vector fundamen-tal é o de considerar a vida dos trabalhadores e das populações excluídas apenas em termos da sua alienação – nomeadamente, como alienação inata às camadas populares e, por isso, eterna – e, nessa perspectiva, só restaria à arte retirar pra-zer e matéria estética para descrever esse universo congelado e unidimensional. Retirar a alegria, a convivialidade e a possibilidade de luta às classes populares, fazer delas apenas gente infeliz e desgraçada e, por fim, considerá-las como mero contingente populacional que anda pelo mundo a subsistir e a “arrastar-se” é amplamente parcial da parte de António Lobo Antunes. É verdade que, do ponto de vista formal e criativo, Lobo Antunes é um escritor interessante. Todavia, o carácter fragmentário e caótico da sua escrita espelha vivamente a sua concepção negativista e unilateral do viver popular. É possível que tal postura de Lobo An-tunes seja mais inconsciente do que consciente, mas, cabe perguntar, não é essa a consagração máxima das ideologias dominantes? Apresentar as concepções de um escritor fortemente mergulhadas no caldo simbólico-cultural prevalecente no capitalismo como um sinal de liberdade e considerar que Saramago apenas quis

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 13Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 13 22/10/2010 15:11:5422/10/2010 15:11:54

Page 14: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

14 • Crítica Marxista, n.31, p.11-22, 2010.

fazer panfletarismo com a sua escrita é, no mínimo, um enredo ficcional com peças de puzzle fora do lugar e uma dualidade de critérios a todos os títulos gritante na avaliação dos dois escritores portugueses mais reconhecidos internacionalmente da segunda metade do século XX.

Um segundo exemplo é o de Ana Cristina Leonardo, crítica literária no jornal Expresso, o semanário português de maior tiragem. Segundo ela,

Quanto aos livros, a primeira coisa que li dele foi Memorial do convento. Acabei-o irritada com a mensagem: fazer equivaler os obreiros de Mafra aos operários da modernidade era demasiado anacronismo, mesmo para uma alegoria. No resto dos textos, a coisa repetia-se. Romances que defendiam ideias escritos segundo uma fórmula estilística usada à exaustão.Resumindo: para mim, literatura é outra coisa. Ofício de palavras e não de ideo-logias (Leonardo, 2010).

De facto, não deixa de ser embaraçoso para Ana Cristina Leonardo (ACL) considerar que existem romances sem ideias… Mesmo o romance mais formal e que apenas se concentra em aspectos estritamente abstractos não existe sem o que ACL denomina de “ideias”. Na realidade, a postura formalista, ao rebelar-se contra a possibilidade de ideias e conteúdos substantivos no romance e na obra literária em geral, está a induzir uma ideia-chave. A saber, a elevação do para-digma – social e culturalmente construído – da “arte pela arte” ao seu máximo formalista, por conseguinte, concretizando um princípio literário contextualizado historicamente na modernidade capitalista e não como algo planando sobre as sociedades humanas e sobre as ideias.

Essas concepções reflectem uma postura equivocada na relação que a for-ma literária do romance estabelece com conteúdos, mais ainda quando uma obra literária relaciona uma forma inovadora com o enquadramento de ideais progressistas no seu seio, sem com isso cair no domínio do panfletário. O que era o caso de Saramago.

…a “grande” obra literária1…A certa altura, o pintor francês Henri Matisse escreveu o seguinte: “Toda a

arte traz o cunho da sua época histórica, mas a grande arte é aquela em que esse

1 “Grande” arte não tem aqui um carácter sinónimo com cultura erudita ou qualquer sentimento ou desejo de superiorizar aprioristicamente uma qualquer obra de arte. Por um lado, como se poderá ver, recorreu-se aos termos de Henri Matisse, sobretudo pela maior legibilidade terminológica que a expressão permite. Evidentemente, tal facto não impede de se considerar que, em um estudo mais amplo e aprofundado sobre a temática, a terminologia invocada por Matisse pode-se prestar a equívocos. Preferiu-se, porém, neste breve artigo, a legibilidade e a facilidade expositiva a uma discussão alargada dos termos apresentados. Assim se explica porque se recorreu à aplicação de aspas aquando do uso do termo “grande”.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 14Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 14 22/10/2010 15:11:5522/10/2010 15:11:55

Page 15: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

A História e a construção histórica na obra de José Saramago• 15

cunho está mais profundamente marcado” (Matisse, 1972) [grifos nossos]. Com essas importantes palavras de Matisse, procuramos assinalar dois pontos principais e que nos auxiliarão na compreensão da obra literária de José Saramago como um contributo de primeira água no panorama artístico da segunda metade do século XX. Primeiro, a constatação que Matisse tem da dimensão social e histórica que se encontra embebida na obra de arte. No fundo, a obra estética não resume uma existência à parte da sociedade e da História. Pelas palavras de Matisse, compreende-se igualmente que a obra de arte tem a sua especificidade própria. Não será um mero acaso que o pintor francês tenha enunciado que a “arte traz o cunho da sua época histórica” [grifos nossos] e não que a arte é/seria a sua época histórica. Não se está aqui a discutir semântica, mas a distinta avaliação que se pode ter da (obra de) arte. Se a arte traz, isto é, se a arte comporta e integra histo-ricidade, inegavelmente sobressai um seu desdobramento em várias dimensões. Uma dimensão histórica, dada pelo momento espácio-temporal da sua criação/produção e pelos elementos de ordem social que se inscrevem no seu seio. Uma dimensão formal, fundamento do aparato técnico-formal em que se alicerça a obra de arte. Uma dimensão universal, em que a conjugação das dimensões anteriores permite que uma obra de arte seja lida e (re)interpretada em diferentes contextos históricos pelo que ela era no momento da sua concepção: como uma obra de arte. Uma obra de arte motivadora de emoções, juízos, reflexões e inovações que divergem de sociedade para sociedade, de período histórico para período histórico, mas que abraçam essa mesma obra de arte. Neste ponto entra em cena o segundo aspecto principal da frase de Matisse: “a grande arte é aquela em que esse cunho [histórico, nota nossa] está mais profundamente marcado”.

Lancemos primeiramente as seguintes interrogações. Haverá aqui uma contradição entre a dimensão universal da obra de arte e a ainda mais vincada historicidade da “grande arte”, tal como clama Matisse? Como uma “grande” obra de arte – pense-se na Odisseia de Homero ou no Hamlet de Shakespeare – é apropriada individual e colectivamente em várias épocas históricas e, ao mesmo tempo, radica profundamente na sua época? Será porque a “grande” obra de arte está vinculada a ideais supra-históricos e que mais dizem respeito à natureza humana que lhe é conferido esse estatuto?

Do nosso ponto de vista, não podemos partir do pressuposto de que há uma natureza humana e que subsistem valores a-históricos, quer dizer, descartados da acção e experiência humanas concretas. Os sentimentos de humanidade – en-quanto comunidade dos seres humanos –, liberdade, beleza etc., nunca se solidi-ficaram institucional e socialmente da mesma forma. Em certos casos, o mesmo termo aplicou-se (e aplica-se) a percepções e práticas completamente distintas em termos substantivos do que é a liberdade ou a igualdade, para recorrer a duas exemplificações possíveis. Por outro lado, a historicidade de uma obra de arte não se concretiza como um domínio antagónico e excludente da sua possibilidade de

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 15Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 15 22/10/2010 15:11:5522/10/2010 15:11:55

Page 16: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

16 • Crítica Marxista, n.31, p.11-22, 2010.

apropriação trans-histórica.2 De facto, o enraizamento profundo de uma obra de arte no seu húmus histórico não se caracteriza, em primeiro lugar, porque abraça todos os elementos sociais que se encontram presentes no seu contexto, e, em segundo lugar, nem porque colocaria a descrição simplesmente enumerativa – à la inventário – à frente da recriação da matéria-prima social. É exactamente esta recriação dos elementos sociais, que ao retrabalhar uma determinada matéria sócio-histórica, sublinhe-se num quadro formal inovador, se espelha (ainda) mais criativamente uma época histórica (uma sua faceta ou como determinados comportamentos são percebidos numa cultura). Assim, pensamos que a maior ou menor projecção da (historicidade da) obra de arte em um plano temporal mais alargado surge como o eixo articulador entre o “cunho [histórico] mais profunda-mente marcado” na “grande” obra de arte e a apropriação que esta vai sofrendo ao longo do desenvolvimento histórico da sociedade humana.

Nesse sentido, a obra de José Saramago, independentemente de apreciações subjetivas e individuais que possamos ter de cada uma das suas composições literárias, constitui-se como um acervo de “grandes” obras de arte da contempo-raneidade, na medida em que inscrevem na sua matriz formal e textual dinâmicas estruturais e estruturantes da época histórica em que se inserem e, em paralelo, têm fundado avanços estético-formais relevantes desde o momento da sua publicação.

Em suma, a historicidade inscrita na obra de José Saramago não se fecha em um panfletarismo qualquer, mas em um escopo complexo de mediações entre a inovação estética, formal e técnica e o papel dos indivíduos e dos colectivos hu-manos na História. A esse propósito, poder-se-á reproduzir a leitura de Edmund Wilson e de Engels, citados pelo ensaísta Eugénio Lisboa, acerca da importância da renovação estética como força motriz da exposição de facetas da complexidade do real social e histórico.

Edmund Wilson recorda, quase com perfídia (salutar), que Engels “avisava sempre os romancistas socialistas contra os perigos da Tendenz-Literatur” e que, ao escre-ver à romancista Minna Kautsky, acerca de um dos seus romances, lhe dizia que o herói e a heroína “ficaram dissolvidos nos princípios políticos que representavam”. E citava a passagem célebre da carta de Engels: “você, evidentemente, sentiu a necessidade de tomar publicamente partido, neste livro, de proclamar ao mundo as suas opiniões… Mas eu acredito que essa tendência deveria emergir naturalmente

2 O termo (e conceito) “trans-histórico” é aqui formulado em uma base diferenciada do de “supra--histórico”. Este último funda uma perspectiva em que ideias, práticas, estruturas e representações se elevariam acima da História, portanto, exteriores e independentes de qualquer enquadramento histórico. Essa é a visão que concebe as grandes obras de arte a partir da afirmação da aproximação destas aos fundamentos (ideais, valores etc.) de uma natureza humana imutável e transcendente à organização social que se edifica historicamente. Pelo contrário, “trans-histórico” é uma categoria que implica tão-somente uma transversalidade de uma criação estética ao longo de várias épocas históricas ulteriores à época específica em que foi produzida.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 16Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 16 22/10/2010 15:11:5522/10/2010 15:11:55

Page 17: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

A História e a construção histórica na obra de José Saramago• 17

da própria situação e da própria acção, sem ser explicitamente formulada, e que o poeta não tem a obrigação de fornecer ao leitor a solução histórica pré-fabricada para o futuro do conflito que descreve” (Lisboa, 2009, p.334).

…e a mediação da História com a ficção na obra de José SaramagoDiferentemente de uma perspectiva positivista ancorada numa “factualidade da

ficção” (Seixo, 1999, p.83), a obra de José Saramago comunica a partir da indução de sentimentos de “incredulidade” e de “inverosimilhança” (Seixo, 1999, p.84) no leitor. Com esse facto contribui a forma inesperada e desconcertante como Saramago iniciava várias das suas obras. Mencionando apenas algumas das mais significativas, lembremos a continuação de Ricardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa, em vida quando este já tinha falecido no ano anterior (O ano da morte de Ricardo Reis); o cataclismo que separa a Península Ibérica do resto da Europa e a coloca à deriva no Oceano Atlântico (A jangada de pedra); a epidemia de cegueira que assola todo um país de um momento para o outro (Ensaio sobre a cegueira); um professor de História que descobre outro homem exactamente igual a ele aquando do visionamento de um filme (O homem duplicado); a suspensão da morte durante alguns meses em um determinado país (As intermitências da morte).

Por conseguinte, ao inusitado se junta um “jogo de pessoas múltiplas” (Seixo, 1999, p.85) na estruturação do romance. Quer dizer, indo para além da relação entre personagens enquanto indivíduos, as pessoas múltiplas que são aqui aludidas referem-se igualmente à condensação de processos históricos – e correlatos desdobramentos – no corpo da narrativa. Nesse sentido, abordar-se-ão alguns dos romances de Saramago que mais criativamente abordaram a relação entre ficção e História.

O estilo saramaguiano teve a sua inauguração em Manual de pintura e caligra-fia (1977). Aí, o autor envereda por um exercício de autoquestionamento sobre o papel do artista na sociedade actual. Escrito em estilo autobiográfico, a passagem do artista-pintor enquanto artista que responde a encomendas de burgueses para produzir retratos destes para um estado em que o artista-pintor se alça à condição de sujeito individual capaz de produzir objectos estéticos sem ter necessariamente de executar réplicas e, ao mesmo tempo, como sujeito capaz de aderir a ideais progressistas de luta pela liberdade e pela democracia popular. Tal trajectória é possível, nesta obra, por via da elaboração de um registo escrito de reflexão pessoal e social do artista no quadro da ditadura fascista portuguesa. A palavra escrita cumpre, assim, uma função inescapável para a compreensão do mundo.

Já em 1980, Saramago publica Levantado do chão, primeiro romance com grande sucesso editorial no seu país de origem. Nessa obra de ficção, Saramago aborda, por um lado, a história da vida e morte do latifúndio, com efeito, desde a Idade Média até finais dos anos 1970 e, por outro lado, em um espaço histórico mais curto, a saga da família Mau-Tempo

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 17Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 17 22/10/2010 15:11:5522/10/2010 15:11:55

Page 18: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

18 • Crítica Marxista, n.31, p.11-22, 2010.

que, em três gerações (Domingos Mau-Tempo, seu filho João e seus netos Antó-nio e Gracinda, esta casada com outra personagem central, António Espada), vai conquistar a terra para as capacidades do seu trabalho, vai arrancar-se à vergonha das humilhações, vai preencher a fome de uma falta total. O romance é, assim, a história de um fatalismo desenganado, constantemente combatido pelo apontar da esperança feita luta (Seixo, 1987, p.39).

As duas ondas históricas entrelaçam-se em um período de tempo que vai do final do século XIX até aos anos seguintes à Revolução de 25 de abril de 1974. Essa articulação entre dois planos tem a vantagem de oferecer uma problemati-zação assaz instigante do papel e do lugar do(s) indivíduo(s) no desenvolvimento histórico mais vasto.

Memorial do convento (1982) foi o romance que se seguiu. Sendo para muitos o romance mais significativo da prolífica obra saramaguiana, aqui a história dos explorados e oprimidos construtores do Convento de Mafra, monumento religioso mandado edificar por D. João V, entrelaça-se com a história do casal Baltasar e Blimunda. A Inquisição, a perseguição aos infiéis ou o abafar do conhecimento científico pelo receio eclesiástico ao poder que a reflexão científica poderia dar aos homens e mulheres, mais ainda aos provenientes das classes populares, constituem pontos-chave no cenário histórico apresentado. A relação amorosa entre Baltasar e Blimunda tem igualmente um papel central enquanto reflexão histórica e ficcional. Para além de muitos outros aspectos, cabe apontar o facto de nessa relação se res-paldar os limites de relações sociabilitárias igualitárias entre homem e mulher e de um amor que é necessariamente um confronto com o poder absolutista da época.

No romance seguinte, O ano da morte de Ricardo Reis (1984), Saramago joga com a possibilidade de Ricardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa, sobreviver à morte deste. Nessa obra, Ricardo Reis, recém-chegado do Brasil, assiste, nesse ano de 1936, à vitória da Frente Popular em Espanha, ao início da Guerra Civil Espanhola, ao avanço do fascismo na Europa e à repressão do fascismo português ao jovem movimento operário de então. Na perspectiva característica de passivi-dade dessa personalidade pessoana, o narrador lança Ricardo Reis pelos meandros do amor por Marcenda, jovem filha de um proprietário fundiário do interior de Portugal, e por Lídia – musa literária nos poemas do heterónimo e transformada no romance em empregada do hotel da personagem principal e, mais tarde, amante de Ricardo Reis. O abanar provocado pelos conflitos de classe ocorridos na época reflectir-se-ão, por exemplo, na própria ambiguidade do heterónimo em relação às duas mulheres apresentadas e à própria forma de amá-las. Da incapacidade de Ricardo Reis em se inserir no mundo político e social de então e da oscila-ção constante entre o desejo da carne em Lídia e da comunhão de uma vida em conjunto com Marcenda, resultará a necessidade de Ricardo Reis acompanhar Fernando Pessoa – fantasma do primeiro ao longo da trama narrativa. Em suma, uma arte incapaz de reflectir sobre os pilares estruturais do seu tempo, sem com

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 18Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 18 22/10/2010 15:11:5522/10/2010 15:11:55

Page 19: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

A História e a construção histórica na obra de José Saramago• 19

isso se equiparar a um qualquer panfletarismo doutrinário, seria, assim, uma arte condenada a, em um primeiro momento, se demitir de si mesma e da vida e, por conseguinte, se autodesvanecer enquanto arte.

Outro momento significativo na obra de Saramago é dado pelo romance O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991). Mais do que as polémicas e reacções conservadoras e militantemente antissaramaguianas por parte da Igreja Católica e do Vaticano, o romance trata da intertextualidade bíblica enquanto resultado de uma construção cultural. Ou seja, se a figura de Jesus Cristo é apresentada na Bíblia e nos textos litúrgicos oficiais da Igreja Católica como fiel seguidor da mensagem divina de Deus, no Evangelho… Cristo condensa a possibilidade hu-mana de interpretar a mensagem religiosa anterior e de a reconstituir como espaço simbólico de reprodução do poder humano a partir de uma justificativa religiosa e transcendental. Por conseguinte, o legado judaico-cristão converte-se em uma aparelhagem simbólica e ideológica construída a partir dos interesses sociais e históricos de toda uma época, portanto, como o resultado de acções direccionadas para a permanência e eternização de mecanismos de poder. Assim, a religião tem no céu apenas o ponto de partida para a repressão e a dominação cultural, política e ideológica na Terra. Tal exercício saramaguiano de brilhante desconstrução só é possível pela notável criação da personagem literária de Jesus Cristo como filho de um José mergulhado em sentimentos irreprimíveis de autoculpabilização e, em um plano ainda mais relevante, como filho de Deus e desafiador dos preceitos religiosos dogmatizados mais tarde pela Igreja Católica. Ora, só se Cristo enfrentar Deus directamente – o diálogo entre Jesus Cristo, Deus e o Diabo é, a todos os títulos, um momento literário de inquestionável qualidade performativa das personagens em “palco” – poderá, assim, ser sacrificado na cruz, momento edificante por ex-celência da fundação do cristianismo e, em última instância, episódio simbólico e ideológico detonador do reinado de uma Igreja (senhorial) na Terra. A edificação ficcional da personagem principal surge, desse modo, como a chave para a com-preensão histórica da dominação secular – política e ideológica – da Igreja Católica.

Em 1995, Ensaio sobre a cegueira surge em um momento em que o neolibe-ralismo já se tinha estabelecido hegemonicamente um pouco por todo o mundo. Iniciando uma nova abordagem de Saramago em relação aos problemas sociais mais candentes, o autor cria uma parábola amplamente metafórica sobre a cegueira vislumbrada pela esmagadora maioria da humanidade em face da amplificação da barbárie neoliberal.3 Grifamos a expressão “esmagadora maioria” precisamente

3 No ano anterior, o escritor condena o neoliberalismo de forma contundente em um dos seus cadernos de diários: “privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo… e, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos” (Saramago, 1994, p.148).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 19Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 19 22/10/2010 15:11:5522/10/2010 15:11:55

Page 20: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

20 • Crítica Marxista, n.31, p.11-22, 2010.

porque não nos é oferecida no romance qualquer tipo de unilateralidade sobre a dinâmica dos processos sociais e políticos. Quer dizer, a personagem “mulher do médico” (relembre-se que nesse romance nenhuma personagem tem um nome próprio atribuído, reforçando, assim, o grau de alienação vivido) representa o que de melhor a humanidade pode criar, mesmo em contextos totalitários e sufocantes para um viver humano mais digno. Traçando boa parte do romance em um asilo aonde vão chegando sucessivas vagas de invisuais recentemente atacados por uma cegueira branca, a narrativa concentra-se no enclausuramento da humanidade em um ciclo de sobrevivência quase animal. O registo literário da parábola encontra-se em outros romances relevantes do autor, destacando-se Todos os nomes (1997), A caverna (2000), As intermitências da morte (2005) e A viagem do elefante (2008).

Não pretendendo esgotar o tema, resumiremos, num registro sintético e final, alguns dos pontos fundamentais da comunicação entre ficção e História na obra de José Saramago. Assim, importa considerar a História como “substância da ontologia” (Lessa, 2005, p.81), do ser e do fazer humano.

Ora, na obra de Saramago a História é retratada em dois níveis. Por um lado, como pano de fundo, como cenário onde as personagens bebem determinações históricas e sociais que enquadram e moldam a sua condição humana. Os exemplos de João Mau-Tempo como operário agrícola; Baltasar Sete-Sóis como filho de camponeses no século XVIII e que é tomado, no início de Memorial do convento, como “carne para canhão” pelo Estado absolutista português para as suas aventuras militares; ou Cipriano Algor (personagem central de A caverna), como o pequeno oleiro defrontado com o fim das encomendas de cerâmica por parte dos centros comerciais capitalistas, todos esses exemplos, entre muitos outros possíveis, de-monstram esse lado de inserção e de formação do indivíduo no e pelo contexto histórico e social, portanto, pela materialidade do real. Complementarmente, por outro lado, a História surge na obra do escritor português como uma construção ficcional concreta. A diversidade e complexidade de tabuleiros em equação – vida familiar das personagens, relações de trabalho, o impacto da política e dos pro-cessos de tomada de decisões na subjectividade das personagens, a religião como espelho deflector das perspectivas da humanidade sobre o mundo, a reflexividade autónoma das personagens, o papel do narrador na condução do leitor pelos meandros do enredo etc. – assomam como um conjunto de mediações complexas e intrincadas na ficção saramaguiana. Complexidade que não se confunde com fechamento hermenêutico, mas inversamente como espaço de reflexividade para o próprio leitor, a partir da abertura de possibilidades, de condicionamentos ou de encruzilhadas descritas nos romances do autor. O todo coerente apresentado não é nunca unidimensional, mas uma trama multivariável onde a possibilidade de acção das personagens procura apresentar o que constrange e liberta, o que pode condicionar ou amplificar práticas sociais em um determinado contexto histórico. Explicitando a substância do concreto e recorrendo a uma formulação de Karl Marx,

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 20Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 20 22/10/2010 15:11:5522/10/2010 15:11:55

Page 21: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

A História e a construção histórica na obra de José Saramago• 21

o concreto é concreto, porque é a reunião de muitas determinações, portanto, é unidade do diverso. No pensar, ele aparece, pois, como processo da reunião, como resultado, não como ponto de partida; apesar de ele ser o ponto de partida real e, portanto, também o ponto de partida da intuição e da representação (Apud. Moura, 1997, p.47).

Assim, o concreto acaba naturalmente por apelar à dimensão aludida previa-mente – relembre-se, a História como pano de fundo para a acção dos protago-nistas – mas apela sobretudo à formação do devir histórico por parte das práticas individuais e colectivas das personagens. Como Marx já tinha formulado na 8ª Tese sobre Feuerbach, “toda a vida social é essencialmente prática”.

Consequentemente, a materialidade dos processos humanos descritos na obra de Saramago está longe de se afirmar como uma coisificação, na medida em que “não se circunscreve às coisas, abrange de um modo igualmente fundamental os processos e as diferentes instâncias que na sua configuração concretamente inter-vêm” (Moura, 1997, p.111). Esse é um ponto largamente comum, não apreendido mecânica e acriticamente por Saramago, entre a sua obra e a forma relacional como Marx observou e explicou a realidade social e económica do capitalismo. Condensando essa asserção, José Barata-Moura sublinha o contributo marxiano no descongelar do capital da sua aparência fixista, dando relevo ao seu maior dinamismo e fluidez, produto que é das relações de produção capitalistas.

O capital não é “uma” coisa, por um lado, porque é função de todo um sistema de relações (sociais) que se formam e desenvolvem sobre a base de um determinado modo (histórico) de organizar a produção e a reprodução do viver. Por outro lado, o capital também não é uma “coisa”, no sentido em que esta é tradicionalmente considerada separada do seu movimento, do próprio processo em que consiste e no horizonte do qual somente a questão da sua identidade e determinação pode ser frutuosamente colocada (Moura, 1997, p.119).

Também em Saramago, a construção histórica vive longe de uma cristalização dos comportamentos dos agentes sociais e das próprias personagens que estão igualmente muito longe de se resumirem a tipos sociais fixos, mas consubstan-ciam-se como agentes sociais e históricos que, no final das contas, constituem a argamassa e a espessura dos processos históricos. As personagens ficcionais da obra de Saramago recordam a dupla dimensão dos agentes sociais como produtos e produtores da História.

A abordagem estética ao real empreendida por Saramago enquadra-se, então, em sede de uma ficcionalização do real histórico e de uma realização da ficção. Por outras palavras, ficcionalização do real, pois o real histórico é retrabalhado pelo escritor tendo em vista não uma sistematização interpretativa e conceptual,

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 21Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 21 22/10/2010 15:11:5522/10/2010 15:11:55

Page 22: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

22 • Crítica Marxista, n.31, p.11-22, 2010.

mas duplamente, como já se referiu, trazendo os processos históricos para dentro da obra de arte como pano de fundo e como construção ficcional concreta. Si-multaneamente, a realização da ficção ocorre como propriedade matricial na obra de Saramago, na medida em que o processo e o devir histórico não são colados naturalista ou jornalisticamente no corpus da narrativa, mas é a própria forma narrativa desenvolvida por Saramago (pontuação, incorporação de um registro oral de raízes populares e setecentistas, o lugar do narrador como um “amigo” que conduz o leitor à reflexão e não lhe impõe uma visão monocolor do real, a sucessão discursiva entre o narrador4 que interpela o leitor e o turbilhão dos diálogos que procuram espelhar a espontaneidade das conversações entre os indivíduos), como dizíamos, é a própria forma narrativa que dá unidade (e totalidade) entre a estética propriamente dita e a historicidade contemplada no enredo das obras do autor.

Referências bibliográficasBLOOM, Harold. Genius: A Mosaic of One Hundred Exemplary Creative Minds. New

York: Warner Books, 2003.LEONARDO, Ana Cristina. “Foi o único português a ganhar o Nobel da Literatura: nem

por isso sou obrigada a gostar dele”. Meditação na pastelaria. Disponível em: http://wwwmeditacaonapastelaria.blogspot.com/2010/06/foi-o-unico-portugues-ganhar-o-nobel-da.html, (2010).

LESSA, Sérgio. “História e ontologia: a questão do trabalho”. Crítica Marxista. São Paulo: Editora Revan, n.20, 2005, p.70-89.

LISBOA, Eugénio. Indícios de oiro II. Lisboa: INCM, 2009.MATISSE, Henri. Écrits et propos sur l’art. Paris: Hermann, 1972.MENDES, Pedro Rosa. “A nova geração de escritores no ano da morte de José Saramago”.

Jornal Público, edição online de 5 de agosto de 2010. Disponível em: http://ipsilon.publico.pt/livros/texto.aspx?id=262923.

MOURA, José Barata. Materialismo e subjectividade. Lisboa: Edições Avante, 1997.SARAMAGO, José. Autobiografia. Lisboa: Fundação José Saramago, 2010.

. Cadernos de Lanzarote III. Lisboa: Caminho, 1994.SEIXO, Maria Alzira. Lugares da ficção em José Saramago. Lisboa: INCM, 1999.

. O essencial sobre José Saramago. Lisboa: INCM, 1987.

4 Não por acaso Maria Alzira Seixo considera que na obra saramaguiana se constrói um “sujeito--narrador que emerge na constituição do objeto literário” (Seixo, 1999: 85), portanto, como um construtor central e presente na narrativa e como conversador com o leitor, de modo a poder abrir portas a reflexões por parte deste último.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 22Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 22 22/10/2010 15:11:5522/10/2010 15:11:55

Page 23: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

O estatuto teórico da noção de dependência • 23

O estatuto teórico da noção de dependênciaJOÃO QUARTIM DE MORAES *

ApresentaçãoDevo a Danilo Martuscelli, amigo e companheiro do Cemarx/Unicamp, o

encorajamento para retomar o texto que segue, escrito em 1971 em vista de par-ticipar de um seminário sobre Dépendance et structure de classes en Amérique Latine, organizado em Genebra pelo Cetim, um centro suíço de estudos do “Ter-ceiro Mundo” (a expressão na época estava em plena voga). Em 1972, os textos apresentados e discutidos no seminário foram publicados em um volume com o mesmo título. Encarreguei-me de traduzir o original francês (“Le statut theórique de la notion de dépendance”, p.9-28) de meu artigo, abstendo-me de introduzir qualquer modificação: ou bem reescrevemos ou bem traduzimos um texto. Quando muito, procurei tornar concisa a tradução de expressões idiomáticas francesas.

Quanto ao fundo do debate, reconheço-me nessas posições defendidas há quase quarenta anos, bem como nas críticas que então dirigi às teses de Francisco Weffort e de Fernando Henrique Cardoso sobre a dependência. A respeito deste, cabe a ironia, fácil mas não falsa, de que passou de teórico a executor da depen-dência. A política externa do Brasil durante sua presidência obedeceu ao chamado “Consenso de Washington”, que impôs o neoliberalismo na periferia do sistema imperialista, durante a infame última década do século passado.

Aquele ainda posava de pensador “de esquerda” e de amigo da classe operária, mas seus argumentos convergiam sintomaticamente com os do “udenismo”: ataque cerrado à CLT, com ênfase unilateral no enquadramento dos sindicatos pelo Estado

* Professor do Departamento de Filosofia, IFCH, Unicamp.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 23Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 23 22/10/2010 15:11:5522/10/2010 15:11:55

Page 24: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

24 • Crítica Marxista, n.31, p.23-36, 2010.

e nenhum empenho na defesa da estabilidade no emprego e nos demais direitos outorgados, mas concretos, que aquela legislação concedia aos trabalhadores. Sua crítica ao “populismo”, sua “posição de classe” e seu culto verbal à organização autônoma dos trabalhadores valeram-lhe ocupar por muito tempo a secretaria geral do PT – até que mudou de posição de classe, trocando a CUT pela Fiesp, aderindo ao PSDB e tornando-se ministro da Cultura de FHC.

Os equívocos de uma polêmica recente A noção de dependência acumulou certa história, talvez certo prestígio. Não

surpreende, pois, que muitos teóricos tentem atualmente fazer-lhe o balanço, o que os leva, pela própria lógica de seu intento, a expor à luz do dia as fraquezas, ambiguidades e o ecletismo teórico que se escondem atrás dessa expressão sobre a qual a primeira certeza é a de que está na moda.

Dois artigos recentes, publicados no mesmo número da Revista Latinoameri-cana de Ciencia Politica de dezembro de 1970, colocaram, de maneira um pouco polêmica, questões sobre a pertinência, o estatuto teórico, o âmbito e o alcance da “dependência”. Segundo Weffort (1970, p.389-401) a própria ideia de uma teoria da dependência estaria comprometida, no plano científico, pelo fato de erigir em princípio teórico, no mesmo plano que o conceito de classe social, a ideia de nação. Ora, “uma teoria de classe não precisa da premissa nacional para explicar o desenvolvimento capitalista”. (Weffort, 1970, p.401). Daí a crítica que ele faz a Dependencia y desarrollo en America Latina, de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (que ele cita na edição brasileira, Rio de Janeiro, Zahar, 1970). Segundo ele, Cardoso e Faletto cometeram o erro de atribuir, por meio da noção de dependência, um papel totalizante à ideia de nação (Weffort, 1970, p.394). Em síntese, a “teoria da dependência” parece a Weffort um mal sucedâneo da teoria do imperialismo, apesar da função útil que ela desempenhou notadamente no que concerne à crítica da “transposição mecânica de modelos europeus (ou estadu-nidenses) que inspiram as teorias convencionais do desenvolvimento capitalista [...]” (Weffort, 1970, p.395).

A resposta de FHC, “‘Teoria de la dependencia’ o analises de situaciones concretas de dependencia?”, consiste tanto em uma defesa de Dependencia y de-sarrollo en America Latina quanto em uma crítica do artigo de Weffort. Ele nega desde logo haver em sua concepção do papel da nação qualquer pretensão “totali-zante”, bem como qualquer “substitutismo” em relação à teoria do imperialismo. A rigor, segundo ele, não se pode sequer conceber uma “teoria da dependência”. Pode haver “uma teoria do capitalismo e das classes, mas a dependência, tal como a caracterizamos, nada mais é do que a expressão política do modo de produção capitalista na periferia quando ele é levado à expansão internacional” (Cardoso, 1970, p.405-6).

Essa tomada de posição não deixa de apresentar problemas. Se a depen-dência é a “expressão política” do que ocorre na periferia do capitalismo, como

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 24Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 24 22/10/2010 15:11:5522/10/2010 15:11:55

Page 25: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

O estatuto teórico da noção de dependência • 25

compreender a utilização, pelo próprio Cardoso, em Desarrollo y dependencia, da noção de “sistema econômico dependente”, “economia periférica” etc.? (Car-doso e Faletto, 1967, p.36-42). Ademais, se Cardoso concede sem dificuldade a Weffort que a dependência não é uma teoria (1970, p.405-6), nem por isso deixa de tratá-la como um conceito. Ora, não há conceitos fora de uma teoria. Tanto assim que, em sua resposta a Weffort (Cardoso, 1970, p.403), cita uma passagem de Desarrollo y dependencia em que a dependência vem definida como “um tipo específico de conceito causal significante” por oposição aos conceitos de “tipo mecânico-causal” (Cardoso e Faletto, 1967, p.20).1 É interessante notar, entretanto, que a dependência é considerada um conceito em Desarrollo y dependencia, ao passo que em sua resposta a Weffort, Cardoso prefere o termo noção, mais vago e prudente. O que se esconde por trás dessa capitis deminutio?

Notemos desde logo que em nenhum de seus dois textos aqui referidos Cardoso oferece uma definição rigorosa do campo teórico da noção ou conceito de dependência. Sua postura crítica consiste em recusar as teorias “convencionais” do desenvolvimento e a “teoria formal das classes”, como enfatiza no fim de sua resposta a Weffort (Cardoso, 1970, p.405-6) e em propor uma “análise dialética das situações concretas de dependência”.

É, pois, em nome do concreto que ele recusa as críticas de Weffort,

A solução que Weffort apresenta para o problema da oposição classe/nação [...] não é aceitável [...] porque se baseia num certo número de equívocos [...] nenhu-ma perspectiva de classe poderia resolver uma análise social concreta (Cardoso, 1970, p.407).

ao passo que Weffort instala-se no nível do abstrato, da “teoria de classe”. O tema da polêmica é magro. Com efeito, a problemática mesma da dependência é bem real e não é por acaso que dela se fala. Querer considerá-la simples desvio de tipo “nacionalista” relativamente a uma “teoria de classe” erigida em panaceia é puro dogmatismo, mesmo com carimbo “de esquerda”. Mas tampouco apresentar o conceito (ou noção?) de dependência como o novo nome da análise concreta de uma situação concreta (resposta de Cardoso a Weffort), sublinhando ao mesmo tempo que vivemos em uma época diferente da de Lênin, contribui para elucidar as questões de método colocadas pelo projeto de uma teoria ou de um conceito da dependência.

1 Desculpo-me perante o leitor por citar diferentes edições do mesmo texto. Weffort cita a edição brasileira; eu próprio cito a edição (mimeografada) do Instituto Latinoamericano de Planificación Economica y Social, Santiago, de 1967; já Cardoso refere-se à edição mexicana (México, Siglo XXI, 1969).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 25Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 25 22/10/2010 15:11:5522/10/2010 15:11:55

Page 26: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

26 • Crítica Marxista, n.31, p.23-36, 2010.

O campo teórico da noção de dependênciaO erro mais grave de Weffort vem do fato de ele considerar que a principal

fraqueza da “teoria” da dependência consiste em colocar o problema do desen-volvimento do capitalismo no âmbito do Estado-nação. Ele propõe, com efeito, “abandonar a ideia de Nação enquanto premissa teórica e passar de modo radical a uma perspectiva orientada, sem ambiguidades, pelas relações de produção e as relações de classe” (Weffort, 1970, p.397). Ninguém contestará ser errôneo considerar a nação uma “premissa” teórica. Weffort arromba uma porta aberta. Mas seria possível estudar o desenvolvimento do capitalismo na América Latina – ou alhures –, isto é, no nível da formação social da economia (da ökonomische Gesellschaftsformation) sem levar em conta não somente a “questão nacional”, mas sobretudo o quadro estatal e a política econômica que, conscientemente ou não, a burguesia industrial materializa em sua existência objetiva de classe?

Cardoso contesta, entretanto, como vimos, que estejamos na mesma época histórica que a de Lênin – o que nos conduz ao difícil problema da periodização do desenvolvimento histórico do capitalismo. Mas para colocá-lo corretamente, é ainda preciso tentar focalizar aquilo que, faute de mieux, chamamos o campo teórico da noção de dependência.

A dependência é, antes de tudo, uma relação. Ela implica, pois, um termo do-minante e um termo dominado. Convém aqui dissipar uma pequena confusão. Se sustentamos que o termo dominante é o “imperialismo”, determinamos também, consequentemente, o termo dominado (= países dominados pelo imperialismo), o campo em que a relação se define (= o mercado mundial capitalista) e o conteúdo mesmo dessa relação (= relação de exterioridade, materializada nos enclaves mi-neiros, nas plantações coloniais, além das estradas de ferro, do comércio exterior e dos grandes empréstimos coloniais). Identificamos ainda os efeitos específicos dessa relação, que se resumem no subdesenvolvimento dos países dominados. Enfim, salientamos, de nosso ponto de vista, um dos polos da relação, o dominado, como expressa o termo mesmo dependência, que denota a situação daquele que depende, que é objeto da relação de dependência. Essa ênfase no país dominado não se baseia nas coisas, mas em uma escolha teórica. Estudaríamos, na “teoria” da dependência, a dominação imperialista do ponto de vista dos países dominados.

Temos aí, portanto, uma primeira delimitação do campo da “teoria” da depen-dência: ela seria o “outro lado” da teoria do imperialismo. É Cardoso, aliás, quem o assinala, notando que Lênin “caracteriza, a partir do ângulo oposto de vista (isto é, do mesmo processo visto a partir do centro) a relação exterior-interior de maneira semelhante à minha” (Cardoso, 1970, p.410, nota 5). O fato de Cardoso reivin-dicar a análise de Lênin não garante que Lênin reivindicaria a de Cardoso. Com efeito, se a consigna de retornar às “análises concretas” é positiva, sobretudo quando pensamos em sínteses simplificadoras como as de Gunder Frank, e lem-brando que o próprio Cardoso ofereceu um muito bom exemplo de análise con-creta em Desarrollo y dependência, não há como negar que, sem uma concepção

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 26Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 26 22/10/2010 15:11:5522/10/2010 15:11:55

Page 27: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

O estatuto teórico da noção de dependência • 27

minimamente rigorosa do capitalismo e do imperialismo, é impossível conferir um estatuto teórico ao conceito ou noção de dependência. Ora, são muitas as hesitações de Cardoso sobre essa questão essencial. Ele remete a uma passagem de Imperialismo, estágio superior do capitalismo:

Essa época (do imperialismo) não se caracteriza somente pelos dois grupos princi-pais de países: os que possuem colônias e os coloniais, mas também por variadas formas de países dependentes, que nominalmente desfrutam de independência política, mas que na realidade estão presos na rede de uma dependência diplomá-tica e financeira. Já indicamos uma dessas formas, a semicolônia. Há uma outra, da qual a Argentina, por exemplo, nos oferece o modelo (Lênin, 1960, p.284).

Mas aqui a dependência não é considerada “o outro ponto de vista” sobre o imperialismo. Ela é uma das formas do Estado dependente, mais precisamente uma forma intermediária relativamente à oposição radical metrópole imperialista/colônia. Nessa concepção, que nos parece corresponder à posição de Lênin, a de-pendência poderia ser definida como a situação específica dos países juridicamente independentes, mas economicamente dominados. Nada então impediria elaborar uma teoria dessa situação particular, dessa forma “superior” da dominação im-perialista, a saber, uma dominação que não se efetuaria pelo aparelho de Estado do país dominado. (Vê-se que essa última condição permite distinguir o caso dos países dependentes daquele dos países colonizados. Nesses últimos, a dominação política e militar é o instrumento da dominação econômica. Naqueles, ao contrário, a dominação econômica seria a negação determinada da independência jurídica.)

Cardoso e Faletto, entretanto, não assumem esse critério. Eles se referem tanto à dependência colonial quanto à dependência não colonial. Escrevem, por exem-plo: “[...] quando se produz a passagem da dependência colonial à dependência da Inglaterra [...]” (Cardoso e Faletto, 1967, p.38). Da concepção da dependência como “ângulo oposto” do imperialismo, passam à de forma intermediária na cadeia imperialista de dominação, para chegar à tese (bem mais ambiciosa) segundo a qual

a utilidade e a significação teórica da noção de dependência tal qual a concebemos consiste [...] em recuperar, num nível concreto, isto é, penetrado pelas mediações po-líticas (inclusive o Estado nacional) e sociais (em correspondência com a formação histórica das classes sociais em cada situação de dependência) o conflito de interes-ses através do qual o capitalismo abre seu caminho (Cardoso e Faletto, 1967, p.404).

Em síntese, a noção de dependência é aqui considerada capaz de recuperar, em um nível concreto, o que outros estudaram em um nível abstrato! Definitiva-mente, essa digressão metodológica é responsável pelos equívocos que prejudi-

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 27Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 27 22/10/2010 15:11:5522/10/2010 15:11:55

Page 28: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

28 • Crítica Marxista, n.31, p.23-36, 2010.

cam a compreensão e o exato alcance das pesquisas de Cardoso, cujo interesse é indiscutível. Ora, esse método, descrito longamente no capítulo II de Desarrollo y dependência,2 consiste em conceber “a dinâmica interna dos países dependen-tes” como um aspecto particular da dinâmica mais geral do mundo capitalista. Entretanto, essa “dinâmica geral” não é um fator abstrato que produz efeitos concretos; ela existe tanto por meio de seus modos singularizados de expressão na “periferia do sistema” quanto pela maneira como o “centro” se apresenta. Temos aí, acrescenta Cardoso, uma “unidade dialética” do centro e da periferia, dos fatores externos e dos fatores internos (Cardoso, 1970, p.404). Pensamos, entretanto, que nada, nem em Desarrollo y dependencia, nem na resposta a Weffort, autoriza Cardoso a apresentar o conceito de dependência, tal como ele o concebe, como um exemplo desse método. As contradições que discernimos nas passagens citadas deixam isso claro.

A conclusão positiva que daí tiramos é que o sentido que se pode atribuir ao conceito (na acepção forte do termo) de dependência corresponde ao conhecimento de um objeto específico (as formas intermediárias dos Estados juridicamente independentes, mas “financeira e diplomaticamente” – a expressão é de Lênin – dependentes), configurando um “sistema” parcial (um subsistema) de um siste-ma mais amplo (o sistema capitalista internacional), que o determina em última instância, sem, entretanto, determiná-lo completamente. Nessa última cláusula se resume a “problemática metodológica” de Cardoso, tanto no que ela contém de positivo (sua crítica das “enteléquias”, por exemplo, “o” Imperialismo e “o” Capitalismo, tal como o concebem Weffort, Gunder Frank e tantos outros) quanto no que contém de ambíguo (o tema do “retorno ao concreto”).

Cumpre, pois, explicitar as condições e as determinações essenciais do que poderia ser uma teoria da dependência.

A periodização da dependênciaSomente seguindo firmemente a indicação de Lênin sobre o caráter “interme-

diário” da situação de dependência será possível colocar corretamente a questão de seu estatuto teórico. Com efeito, essa indicação permite situar sincronicamente a dependência no interior do sistema capitalista internacional. Mas é também preciso situá-la no processo de desenvolvimento histórico do modo de produção capitalis-ta – o que nos conduz ao problema da periodização. Na medida em que também reivindicamos uma concepção materialista e dialética da dependência, teremos de concebê-la como a unidade complexa do duplo processo do desenvolvimento histórico do capitalismo em escala internacional e de cada uma das sociedades dependentes e, portanto, como síntese dos “fatores externos” e dos “fatores inter-nos”. Mas, contrariamente a Cardoso, não pensamos que a utilização correta da dialética materialista limite-se ao reconhecimento do papel dos fatores internos e à

2 O título desse capítulo II é “A análise integrada do desenvolvimento”, p.10-42.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 28Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 28 22/10/2010 15:11:5522/10/2010 15:11:55

Page 29: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

O estatuto teórico da noção de dependência • 29

descrição das “situações concretas de dependência”. Ela exige que avancemos bem mais, começando por colocar a questão da gênese da dependência enquanto forma específica de dominação, sem o que o apelo ao concreto não passará de profissão de fé empirista. Em seguida, é preciso examinar a periodização do desenvolvi-mento das “economias dependentes” em sua complexidade, isto é, determinada em primeira instância pela luta de classes e pelo desenvolvimento do capitalismo em cada uma das formações econômicas das sociedades dependentes e em últi-ma pelos períodos do desenvolvimento do capitalismo em escala internacional.

A gênese das sociedades dependentesCardoso e Faletto indicam-na corretamente no plano dos fatos, mas, em nossa

opinião, não tiram as devidas consequências teóricas. A ruptura do “pacto colonial”, que se tornou possível com a independência jurídica, rompendo o monopólio do comércio exterior – até então nas mãos das metrópoles coloniais – constitui (na acepção forte do termo) a dependência como unidade dialética da independência jurídica dos Estados nacionais latino-americanos e de sua dependência econômica. Não falamos em independência política porque um país não poderia ser ao mesmo tempo politicamente independente e economicamente dependente. Entretanto, a independência jurídica não é puramente formal. Ela permite decisões políticas autônomas, que exercem efeitos no plano econômico, por exemplo, a decisão de “abrir os portos”, que tornou possível a passagem da economia colonial à economia dependente. A combinação da independência jurídica e da dependência econômica se exprime na esfera política pela contradição real cujo termo dominante é a depen-dência (com efeito, a economia determina as instituições jurídico-constitucionais). Os interesses dominantes no mercado mundial eram os das metrópoles capitalistas.

Cabe notar, entretanto, que com a independência (jurídica), o controle do aparelho de Estado e a hegemonia política no plano nacional passaram às mãos das classes dominantes locais e que, por conseguinte, a dominação “externa” (das metrópoles capitalistas) não se exercia mais diretamente (sobretudo no sentido de que não mais podia repousar continuamente sobre a coerção extraeconômica). A ruptura do “pacto colonial” constituiu, pois, uma virada histórica decisiva, como de resto Cardoso e Faletto (1967, p.36-9) o salientam. No caso do Chile, Anibal Pinto enfatizou que

A independência abriu completamente as portas da economia chilena. Foi esta sua principal contribuição ao desenvolvimento econômico do país. E as forças produtivas reagiram com o mesmo vigor que o de uma sementeira que estava secando por falta de água. Sobra razão para repetir com Encina3 que o período

3 Francisco Encina Armanet (1874-1965), historiador chileno, eleito deputado pelo Partido Nacional em 1906, é sobretudo conhecido por sua História do Chile desde a pré-história até 1891, em vinte volumes.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 29Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 29 22/10/2010 15:11:5522/10/2010 15:11:55

Page 30: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

30 • Crítica Marxista, n.31, p.23-36, 2010.

que vai de 1830, quando se consolida o arcabouço político, e o fim da década de Manuel Montt4 constitui um lapso que não teve precedentes nem continuação em nossa história (Anibal Pinto, 1958, p.15).

Poderíamos apresentar muitas outras citações do mesmo teor. Todas elas mos-trariam não somente o absurdo da já referida tese de Weffort, segundo a qual “uma teoria de classe não precisa da premissa nacional para explicar o desenvolvimento capitalista” (Weffort, 1970, p.401), mas também a inconsequência de Cardoso na aplicação do método dialético. Com efeito, suas confusões metodológicas, das quais a principal é reduzir a dialética à ênfase nos fatores internos e à determinação das “situações concretas de dependência”, provêm principalmente de que ele não concebe a própria dependência como um fenômeno histórico concreto, portanto, gerado no e pelo processo de formação e desenvolvimento do mercado mundial capitalista. Não estamos afirmando com isso que Cardoso ou algum outro negue que a dependência é um produto da história e que, como tal, teve uma gênese. Mas em sua “prática teórica”, Cardoso trata a dependência como se ela fosse um dado puro, coextensivo à constituição do mercado mundial capitalista. Ora, parece evidente que não compreenderemos a diferença entre África e Ásia de um lado e América Latina de outro em suas respectivas relações com o imperialismo se não começarmos por distinguir dominação colonial e dependência. Em síntese, sua maneira de conceber as relações entre os “fatores internos” e os “fatores externos” na situação de dependência (que correspondem “grosso modo” aos fatores parti-culares e aos fatores gerais) impede-o de definir a dependência como uma forma específica de articulação das determinações interna e externa e de compreender que dialeticamente é essa forma específica (essa totalidade complexa com termo dominante) que atribui aos fatores internos e aos fatores externos suas eficácias causais respectivas.

Período da “vocação agrária” (ou mineradora)A gênese da situação de dependência verificou-se antes que o capitalismo

tivesse atingido seu estágio imperialista. A mudança operada pela ruptura do “pacto colonial” concerne somente aos países antes colonizados que se tornaram independentes. Do ponto de vista das metrópoles capitalistas, a situação só se alterou quantitativamente: os países da península ibérica perderam a maioria de suas colônias americanas não somente no plano político, mas também no plano econômico. Sabemos que a liberdade de comércio favoreceria a Inglaterra, cuja posição dominante no mercado mundial reforçou-se ainda mais. Mas o que ocorreu aí foi um deslocamento quantitativo da correlação de forças a favor dos ingleses e em detrimento dos ibéricos. É importante notar essa defasagem na periodização: a

4 Manuel Montt Torres (1809-1880) foi presidente do Chile de 1851 a 1861. É considerado o principal artífice das instituições políticas de seu país.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 30Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 30 22/10/2010 15:11:5622/10/2010 15:11:56

Page 31: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

O estatuto teórico da noção de dependência • 31

passagem da situação colonial à situação de dependência não correspondeu a uma mudança no sistema capitalista internacional. Mais exatamente, esse sistema atin-giu um grau de desenvolvimento que preparava sua passagem à etapa imperialista. Seguramente, porém, essa passagem correspondeu a uma “autonomia específica” não exatamente dos “fatores internos” (posto que a independência por definição é um fenômeno interno/externo), mas, antes, das formações econômicas que se tornaram independentes. Trata-se, pois, de uma mudança qualitativa de um dos elos do sistema capitalista internacional, sem que tenha ocorrido uma mudança do sistema considerado em seu todo.

O conteúdo da “integração” dos países dependentes no sistema capitalista internacional apresenta aqui um caráter específico, distinto do período anterior (colonial) e também do posterior. O campesinato livre do Oeste estadunidense estava menos integrado no mercado capitalista mundial do que os escravos negros das grandes plantações. Esse mesmo campesinato livre já estava se tornando – e tornar-se-ia mais ainda, num período posterior – uma das molas da prosperidade da potência econômica estadunidense e, portanto, da mais larga e mais completa expansão do capitalismo. Isso mostra a) o caráter complexo das determinações específicas de cada período da dependência; b) o caráter ambíguo da noção de “integração ao capitalismo”, da qual se servem bastante os teóricos do subde-senvolvimento e da dependência; c) o grave erro teórico de Gunder Frank, que confunde constantemente capital comercial e capital industrial e não compreende que a integração das grandes plantações coloniais ao mercado mundial capitalista não significa que as relações de produção tenham por isso se tornado capitalistas. O essencial nessa questão é saber se o capital penetrou ou não na esfera da produ-ção. O enriquecimento dos camponeses livres estadunidenses, não obstante terem permanecido durante um longo período praticamente fora mercado mundial capi-talista, permitiria mais tarde uma expansão das relações de produção capitalistas, a qual seria muito mais ampla do que no caso das grandes plantações baseadas no uso extensivo e predatório da terra e no trabalho escravo. Afinal, são as relações de produção que determinam as relações de circulação e não o inverso...

O essencial é saber se houve nesse período a formação de uma sólida socie-dade civil baseada nos camponeses livres (dispondo de livre acesso à terra) e numa pequena e média indústria de caráter semiartesanal. Só uma firme vontade nacional-popular (no sentido que Gramsci conferiu a essa expressão) poderia atingir esse resultado. Ele foi raramente atingido.

O equilíbrio de forças entre o campo e a cidade: período da industrialização por “substituição fácil das importações”

O desenvolvimento do modo de produção capitalista na América Latina só começou quando o capital penetrou na esfera da produção. Malgrado as diferen-ças entre as economias onde havia “controle nacional do processo produtivo” e as “economias de enclave”, tão bem descritas por Fernando Henrique Cardoso

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 31Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 31 22/10/2010 15:11:5622/10/2010 15:11:56

Page 32: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

32 • Crítica Marxista, n.31, p.23-36, 2010.

e Enzo Faletto em Dependencia y desarrollo en America Latina (a despeito de algumas fraquezas, esse trabalho constitui uma das mais notáveis contribuições a uma teoria materialista e histórica da formação econômica das sociedades latino-americanas), o período da “vocação” agrária (o termo “vocação” integra o arsenal ideológico dos latifundiários) caracterizava-se, em geral, pelo predo-mínio da plantação e sobretudo do capital comercial e financeiro. Foi à sombra e nos poros dessa dupla dominação que se desenvolveu a indústria capitalista. Um desenvolvimento aos trancos, com muitos retrocessos. Mas ele acabou por superar o limiar do não retorno, graças, sobretudo, às crises que atravessaram as metrópoles capitalistas ao longo da primeira metade do século XX.

Esse período conduziu a um equilíbrio de forças entre o campo e a cidade, a propriedade fundiária e o capital, a agricultura e a indústria. Uma de suas carac-terísticas essenciais foi o papel desempenhado pelo setor público da economia, notadamente os monopólios estatais, na formação e consolidação do aparelho produtivo capitalista. A luta entre os partidários do desenvolvimento nacional e democrático da sociedade capitalista e os da concentração monopolista, e conse-quentemente da penetração imperialista na indústria, no mais das vezes girou em torno da questão do papel econômico do setor estatal. Com efeito, somente o setor público da economia podia aplicar uma política de desenvolvimento capitalista capaz de tornar os países latino-americanos competitivos no âmbito do mercado mundial capitalista. Sem dúvida, nos períodos de crises graves do sistema capi-talista internacional, a questão da competitividade das indústrias locais sequer se colocava, dada a interrupção das grandes correntes comerciais e, em geral, em vir-tude do enfraquecimento conjuntural dos laços de dependência. Em outros termos, as crises maiores (a de 1929, a Segunda Grande Guerra) criaram espontaneamente (isto é, sem iniciativa metódica por parte dos países dependentes) as condições do desenvolvimento de uma indústria nacional. Posto, entretanto, que se tratava essen-cialmente de uma indústria de bens de consumo, esse desenvolvimento industrial por “substituição das importações” apenas reproduzia a situação de dependência em um nível superior. Esta se apresentava desde então como dependência da indústria de bens de consumo dos países dependentes relativamente à indústria de bens de produção dos países metropolitanos. Dada a fraqueza da burguesia industrial dos países dependentes, uma vez terminada a crise maior, a alternativa de desenvolvimento tornava-se a seguinte: ou o setor estatal encarregava-se de criar e consolidar a indústria de bens de produção, ou as grandes empresas estran-geiras se encarregariam disso – a seu modo, evidentemente. Na prática, os dois casos frequentemente se combinaram. O que nos leva à última parte destas notas.

Imperialismo e dependência A periodização global da dependência é o resultado complexo da periodiza-

ção do desenvolvimento histórico dos países dependentes e do desenvolvimento histórico do modo de produção capitalista em escala mundial. Não poderíamos

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 32Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 32 22/10/2010 15:11:5622/10/2010 15:11:56

Page 33: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

O estatuto teórico da noção de dependência • 33

discutir aqui o problema da periodização do capitalismo em geral, nem o da “sub”periodização do imperialismo compreendido como etapa superior do capita-lismo. Nós nos contentamos em notar, de um lado, que certas mudanças ocorreram, obviamente, no sistema de determinações que caracterizavam o imperialismo na época de Lênin (pensamos aqui nos conhecidos cinco traços fundamentais ana-lisados em Imperialismo, estágio superior do capitalismo), mas, de outro lado, não se pode afirmar que todos aqueles traços fundamentais tenham mudado. Ao contrário, as características 1) “concentração da produção e do capital atingindo um grau tão elevado que gera os monopólios, cujo papel é decisivo na vida eco-nômica”; 2) “fusão do capital industrial e do capital bancário e formação, sobre a base desse capital financeiro, de uma oligarquia financeira”; 3) “formação de uniões internacionais monopolistas de capitalistas que partilham o mundo” (Lênin, 1960, p.287), nos parecem ainda inteiramente válidas para definir o capitalismo contemporâneo. A única questão que levantaremos a seguir é a da evolução con-temporânea do imperialismo na medida em que ela produz efeitos diretamente na situação de dependência.

Essa “evolução contemporânea” se manifesta, na opinião da grande maio-ria dos autores, como integração imperialista. Mas a noção de integração, no momento atual da discussão, não pode ser adotada sem maior exame. Notemos, considerando apenas seus efeitos sobre a situação de dependência, que ela denota ao mesmo tempo a) o deslocamento dos investimentos (da exportação de capitais) imperialistas dos setores “coloniais” da economia (plantações, ferrovias, petró-leo, minas etc.) para a indústria; b) a transformação monopolista das economias dependentes mais importantes, notadamente as do Brasil e da Argentina; c) a “internacionalização do mercado interno”, consequência direta de a) etc. Cumpre examinar mais de perto cada um desses três aspectos da integração imperialista.

a) Os investimentos diretos de capitais privados estadunidense na indústria de transformação latino-americana correspondiam, em 1897, a 1%, em 1908 a 4% e, em 1929, a 6,3% do total de seus investimentos na economia da Amé-rica Latina. Mas já em 1965, quando a entrada líquida de capitais privados estadunidenses em nosso subcontinente atingiu 176 milhões de dólares, esses mesmos capitais investiram 214 milhões de dólares na indústria de transfor-mação. Segue-se que 38 milhões de dólares foram retirados de outros setores de investimento estadunidense na América Latina e transferidos à indústria de transformação.

b) Em 1954, 67,7% dos investimentos dos capitais privados estadunidense no Brasil e 56,3% na Argentina dirigiam-se para a indústria de transformação, enquanto eles constituíam 7,8% do total na Venezuela, 3,8% no Chile, 14,1% no Peru e 27,9% na Colômbia. Vê-se, assim, quanto o deslocamento dos inves-timentos do capital imperialista contribuiu para a diferenciação entre os países latino-americanos e, consequentemente, para o aparecimento do fenômeno que

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 33Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 33 22/10/2010 15:11:5622/10/2010 15:11:56

Page 34: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

34 • Crítica Marxista, n.31, p.23-36, 2010.

alguns chamam “sub-imperialismo” (essa denominação apresenta, entre outros defeitos, o risco de dar a entender que os países “sub-imperialistas” constituem um subsistema não exatamente do sistema imperialista internacional, mas mais precisamente do “sistema imperialista de dominação” de um dado país impe-rialista, os Estados Unidos). O deslocamento dos investimentos imperialistas resultou, ele próprio, de uma mudança prévia das economias em que se insta-lou. Enquanto a indústria pesada e a indústria de bens de produção dos países dependentes em geral não tinham efetuado sua difícil decolagem, apoiando-se essencialmente em suas próprias forças (sobretudo a de trabalho), não passava pela cabeça dos grandes grupos monopolistas e financeiros imperialistas co-laborar com essa decolagem, mesmo porque a rentabilidade do investimento não lhes seria compensadora. Foi só após o surgimento de uma indústria de bens de produção nos países dependentes que lograram decolar que os capitais imperialistas nela vieram se enxertar, confirmando uma vez mais na prática a tese leninista sobre o caráter parasitário do capitalismo em seu estágio impe-rialista. Esse processo agravou consideravelmente as desigualdades regionais e setoriais do capitalismo dependente. Com efeito, se o critério decisivo para os investimentos de tipo colonial era a existência e a localização dos recursos naturais, o critério decisivo para os investimentos imperialistas na indústria de transformação é a existência de uma infraestrutura industrial já instalada nos países onde pretendem se instalar. Vê-se a razão do agravamento extraordinário das desigualdades de desenvolvimento: enquanto as riquezas naturais estão espalhadas por toda parte, só há infraestrutura industrial sólida na Cidade do México, em São Paulo, em Buenos Aires, no Rio de Janeiro... Compreende-se também que os capitais estrangeiros tenham se dirigido para as indústrias mais rentáveis (automobilística, siderúrgica, química, petroquímica etc.) e que onde, em vez de construir novas fábricas da estaca zero podiam comprar aquelas que a burguesia local – ou o Estado – tinha a duras penas logrado pôr em marcha, eles não hesitaram em levar adiante a desnacionalização da indústria.

c) O conteúdo efetivo do que Cardoso, entre outros, chama internacionalização do mercado interno é (c.1) a internacionalização do aparelho produtivo dos países capitalistas dependentes avançados e (c.2) a transformação monopolista de Estado das economias desses mesmos países.(c.1) Internacionalizar o mercado interno é suprimir as barreiras alfandegárias

e renunciar ao protecionismo em todas ou quase todas as suas modali-dades. Para que tal operação seja realizável, é preciso que o aparelho produtivo do país que se “internacionaliza” esteja em condições de suportar a concorrência dos países industrializados mais poderosos. É preciso, pois, que as forças produtivas daquele país tenham atingido um grau de desenvolvimento relativamente comparável (pelo menos em alguns ramos industriais) ao dos países capitalistas dominantes.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 34Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 34 22/10/2010 15:11:5622/10/2010 15:11:56

Page 35: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

O estatuto teórico da noção de dependência • 35

(c.2) Nas condições históricas específicas da América Latina – sobre as quais não poderíamos insistir mais no âmbito da presente comunicação – isso implica uma intervenção muito importante do Estado na economia e, portanto, uma transição muito brusca para o capitalismo monopolista de Estado, entendido como integração do setor público da economia na reprodução ampliada das relações capitalistas de produção que atingiram seu estágio monopolista. Essa transição cria uma situação inteiramente inédita nos países capitalistas dependentes avançados. Pelo fato mesmo de ela levar até o fim e da maneira a mais acabada a “integração” ao imperialismo, ela muda radicalmente a própria natureza da dependência. Mais exatamente, ela internacionaliza a própria relação de dependência e dilui as diferenças que separavam os países dependentes avançados dos metropolitanos de segunda classe (Espanha, Benelux, Suíça etc.), bem como os laços de subordinação que ligavam exclusivamente cada país dependente a um determinado país hegemônico. No que concerne ao Brasil,

A firma Volkswagen, que é o maior exportador de automóveis do mundo capitalista, construiu em São Bernardo do Campo uma das maiores empre-sas automobilísticas da América Latina. Ela dispõe de 80% do mercado de automóveis e de 50% do mercado de veículos pesados no Brasil. O valor anual de sua produção é de 1,8 bilhão de marcos. [...] Os trustes da Alemanha Federal são donos de 50,4% do total dos investimentos estrangeiros (na indústria metalúrgica) [...] contra somente 7,4% para os estadunidenses. Nesse ramo vemos operando notadamente os grupos side-rúrgicos Krupp, Mannesmann e Thyssen. Uma atividade febril é desenvol-vida na indústria química pela Basf (sucessora da I.G.Farben), controlada pela Bayer do Brasil, bem como pela Chemische Werke e pela Hoechst [...] Enfim, cabe notar que 41,5% dos capitais privados oeste-alemães na América Latina estão investidos no Brasil. (Martin, 1972, p.89-90)

Os japoneses também avançaram: em junho de 1971 já tinham investido 117.650 dólares no Brasil e continuam investindo desde então. Trata-se de um fenômeno de despolarização que paradoxalmente favorece, a despeito da desna-cionalização da indústria (que, aliás, está longe de ser absoluta), as condições de negociação para o país dependentes, já que ele pode jogar com as contradições entre seus diversos “parceiros”.

O papel do Estado como coordenador e executor da transformação monopo-lista da economia se acentua, assim como as tendências autocráticas no interior de uma formação econômica que reproduz em escala mais ampla as contradições gerais da dependência, sem, no entanto, resolvê-las.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 35Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 35 22/10/2010 15:11:5622/10/2010 15:11:56

Page 36: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

36 • Crítica Marxista, n.31, p.23-36, 2010.

Referências bibliográficasCARDOSO, Fernando Henrique; FALLETO, Enzo. Dependencia y desarrollo en America

Latina. Santiago Instituto Latinoamericano de Planificación Economica y Social, 1967; 2.ed. México: Siglo XXI, 1969.

CARDOSO, Fernando Henrique. “‘Teoria de la dependencia’ o analises de situaciones concretas de dependencia?”. Revista Latinoamericana de Ciencia Politica, v.I (3), dezembro 1970, p.402-14.

MARTIN, Markos. “Pénétration des monopoles owst-allemands”. La Nouvelle Revue Internationale, XV (163), março 1972, p.81-93.

PINTO, Anibal. Chile, um caso de desarrollo frustrado. Santiago: Editorial Universitária, 1958.

LÊNIN. “Imperialismo, estágio superior do capitalismo”. In: Oeuvres, tomo 22. Paris: Éditions Sociales/ Moscou: Éditions en Langues Étrangères, 1960.

WEFFORT, Francisco. “Notas sobre la ‘Teoria de la dependencia’: Teoria de clase o ideología nacional?”. Revista Latinoamericana de Ciencia Politica v.I (3), dezembro 1970, p.389-401.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 36Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 36 22/10/2010 15:11:5622/10/2010 15:11:56

Page 37: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Uma crise de transição: deslocamentos de força na economia mundial • 37

Uma crise de transição: deslocamentos de força na economia mundial*

DIETER BORIS **

STEFAN SCHMALZ ***

Lula em PequimEm 20 de maio de 2009, após um encontro com o presidente chinês Hu

Jintao, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva anunciava a intenção de parar de realizar o comércio exterior entre os dois países em dólar e passar a fazê-lo, em um futuro próximo, com base nas moedas dos dois Estados (China Daily, 20.5.2009). Até aquele momento essa declaração assinalava o ponto-alto de uma parceria estratégica existente desde a primeira visita de Lula à China, em 2004. Atualmente já existem, entre outras coisas, acordos comerciais setoriais comuns, uma cooperação na área de alta tecnologia – como a construção dos satélites CBERS 2-B – e um programa de crédito de 10 bilhões de dólares para a exploração das bacias de petróleo na costa brasileira. O comércio bilateral setu-plicou no período de 2002 a 2007; e, em abril de 2009, a China tirou os Estados Unidos da posição de maior parceiro comercial do Brasil (Le Monde, 9.5.2009). Assim, o encontro entre os chefes de Estado deu-se em um momento histórico: os Estados Unidos detinham tal posição desde 1930, quando tiraram o primeiro lugar da Grã-Bretanha.

Mas, para o governo chinês, as relações comerciais e financeiras ainda mais intensas com o Brasil representam apenas um passo a mais em direção a uma ativa

* Publicado originalmente na revista alemã Prokla – Zeitschrift für kritische Sozialwissenschaft, Heft 157, 39. Jg., 2009, n.4. Tradução de Luciano C. Martorano.

** Professor emérito de Sociologia da Universidade de Marburg, Alemanha.*** Professor assistente de Sociologia da Universidade Friedrich Schiller de Jena, Alemanha.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 37Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 37 22/10/2010 15:11:5622/10/2010 15:11:56

Page 38: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

38 • Crítica Marxista, n.31, p.37-56, 2010.

política financeira externa global. Nos últimos anos, a China já tinha se estabe-lecido como uma nova nação credora no continente africano (Campbell, 2008, p.100). No contexto da crise econômica mundial, a República Popular começou a desempenhar esse papel também em outras regiões do mundo. A partir do terceiro trimestre de 2008, o país usava a sua poderosa reserva de divisas para conceder crédito envolvendo mais de 650 bilhões de yuans (cerca de 95 bilhões de dólares) a diferentes países com problemas de pagamento, tais como Argentina, Indoné-sia, Coreia do Sul, Hong Kong, Malásia e Bielorússia. Além disso, o presidente do Banco Central da China, Zhou Xiaochuan, elaborou um projeto próprio para um sistema monetário mundial que deve estar atrelado a uma reserva comum de divisas em matéria-prima (FAZ, 28.03.2009).

Esses acontecimentos indicam uma profunda mudança na economia mundial, na qual a crise financeira desempenha um papel particular. Ela age como um cata-lisador, deslocando forças em escala global. Os estados do Bric – especialmente a China – reivindicam mais direito de voto em instituições como o FMI e o G-20, e constituem fóruns próprios. O dólar norte-americano pode enfraquecer enquanto reserva monetária global. Por outro lado, a crise é expressão de contradições de longo prazo, formadas no quadro da “mudança global” (Dicken, 2007). Exata-mente a simbiose dos modos de acumulação e consumo entre os Estados Unidos e a China – os Estados Unidos como devedores “consumidor de última instância”1 de um lado, e a China como bancada produtiva do mundo de outro – retardou inicialmente a eclosão da crise, mas em seguida contribuiu, paradoxalmente, para o seu agravamento.

A seguir será analisada a dimensão espacial da crise econômica mundial. Inicialmente, ela será interpretada enquanto “Switching crisis”, ou seja, como sendo a passagem de uma configuração espacial da acumulação do capital para um novo ordenamento. Depois, serão examinados os deslocamentos de poder de longo prazo na economia mundial e a formação de desigualdades globais. Por fim, serão analisadas as estratégias regionais de enfrentamento da crise e, com isso, os estímulos de uma emancipação econômica e política de diferentes áreas mundiais em relação ao Ocidente – sobretudo no leste da Ásia, na Índia e na América do Sul. A tese deste artigo é que a fase de transição poderia ser acompanhada por uma nova cartografia global do poder, da qual serão discutidos diferentes cenários possíveis.

Aproximações teóricasDavid Harvey (2009) chamou a atenção para o fato de que a interpretação

costumeira da crise como um colapso do mercado financeiro capitalista é muito limitada. A ela se liga outra dimensão que não aparece à primeira vista. A crise en-volve também a crise de uma ordenação espacial específica da acumulação global do capital. O “centro de gravitação do desenvolvimento capitalista” desloca-se,

1 NT: Em inglês no original alemão: “consumer of last resort”.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 38Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 38 22/10/2010 15:11:5622/10/2010 15:11:56

Page 39: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Uma crise de transição: deslocamentos de força na economia mundial • 39

desde os anos 1960, para a Ásia, invertendo assim “a longa e contínua extração de riqueza do Leste, Sudeste e Sul da Ásia para a Europa e a América do Norte, que existia desde o século XVIII” (Harvey, 2009, p.3). Entretanto, tais deslocamentos, como o que ocorreu da Grã-Bretanha para os Estados Unidos, sempre existiram na história do capitalismo.

Harvey desenvolve aí um argumento de Giovanni Arrighi (1982, p.71s). Foi ele quem mostrou que as grandes crises de acumulação do capital manifestam--se historicamente, na maioria das vezes, também como crises (financeiras) de uma estrutura específica do mercado mundial (Arrighi, 2000). Segundo ele, forças hegemônicas podem exercer a função de articular capacidades materiais, administrativas e militares, colocando-as à disposição de uma proposta global de governança (Arrighi; Silver, 1999a, p.26-s). Elas dispõem das posições-chave na acumulação do capital em escala mundial e, na maioria das vezes, de grande poder militar. Historicamente, essa função desloca-se paulatinamente das cidades--Estado para as nações até as economias continentais, ou seja, de Gênova e Espanha para Holanda e Grã-Bretanha, chegando depois aos Estados Unidos. A contínua expansão do sistema capitalista mundial sempre foi acompanhada de blocos cada vez mais poderosos de organizações governamentais e empresariais, de “spatial fixes” (Harvey, 2003, p.109), sempre maiores e mais complexas.

Um primeiro momento de crise dessa configuração, segundo a tese de Arrighi, manifesta-se sob a forma de uma enorme expansão do setor financeiro, no qual se disputa capital líquido e por meio do qual o poder hegemônico pode acumular, a curto prazo, novas fontes de poder no setor financeiro. Mas essa constelação a longo prazo retira do Estado hegemônico a sua base de apoio. O inchaço do setor financeiro e a negligência de uma região são acompanhados pelo surgimento de novos centros produtivos em outras regiões, até que a estrutura do mercado mun-dial finalmente desemboque em uma violenta crise econômica. A observação de Schumpeter (2005, p.139) de que velhas estruturas são destruídas por inovações que cedem lugar a outras, dando origem a uma “destruição criadora”, pode ser aplicada ao mercado mundial. Por meio de uma “switching crisis” (Harvey, 1999, p.428), uma velha configuração da acumulação de capital é substituída por uma nova. Essa mudança profunda reflete-se, porém, frequentemente, de maneira desi-gual no plano institucional, bem como no poder de dispor dos diferentes recursos de força. Mesmo que na constelação atual admita-se uma erosão do bloco imperial de organizações governamentais e empresariais sob a direção norte-americana, que seria acelerada massivamente pela crise financeira e econômica, os Estados Unidos continuam dispondo, por exemplo, do predomínio militar, o que esboça uma bipartição global de poder militar e financeiro entre os Estados Unidos e o Leste da Ásia (Arrighi et al, 1999, p.95-s). Além disso, o papel do dólar norte--americano e de governança global, como o FMI e o Banco Mundial, e também os padrões técnicos existentes desde a Segunda Guerra Mundial, operam no sentido de fortalecer e difundir o poder norte-americano por meio de regras de jogo que

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 39Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 39 22/10/2010 15:11:5622/10/2010 15:11:56

Page 40: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

40 • Crítica Marxista, n.31, p.37-56, 2010.

lhes são favoráveis (Panitch; Gindin, 2008, p.37-s). Mas também as transições hegemônicas anteriores caracterizaram-se por modificações graduais: o dólar norte-americano somente substituiu a libra esterlina enquanto moeda mundial cerca de cinquenta anos depois de a capacidade econômica norte-americana ter ultrapassado a da Grã-Bretanha (Arrighi, 2008, p.256-s).

Deslocamentos de poder na economia mundialTambém o deslocamento das relações de forças econômicas mundiais deu-

-se, a partir da Segunda Guerra Mundial, majoritariamente, de forma contínua e gradual. Pontos de viragem marcantes foram acompanhados de rupturas críticas, que atingiam grupos isolados de países sempre de modo particular.

Depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos criaram as caracterís-ticas principais de uma nova ordem mundial que, no plano financeiro, baseou-se no rígido sistema cambial de Bretton Woods e contribuiu para a “época de ouro” do capitalismo fordista (Arrighi, 2000, p.372; Marglin; Schor, 1991). No interior do fordismo – da era da produção e do consumo padronizado de massa –, ocorria uma primeira fase de deslocamento de forças. De um lado, os tradicionais Estados do centro recuperavam-se rapidamente das consequências da guerra e cresciam essencialmente de forma mais rápida que os Estados Unidos (Maddison, 2006, p.187, 217). Por outro lado, por meio da descolonização, aumentou a influência política da periferia, o que limitava adicionalmente a hegemonia norte-americana. Também o sistema de Bretton Woods oscilava. Os altos custos da guerra do Vietnã e o enfraquecimento da posição norte-americana no comércio exterior prejudica-vam a manutenção da garantia de troca de ouro por dólar. O fato de que a classe capitalista europeia não queria mais continuar aceitando de forma ilimitada a supremacia dos Estados Unidos assinalou o abandono norte-americano do sistema de Bretton Woods, com a passagem para um câmbio monetário flexível. Por fim, juntamente com o choque do preço do petróleo em 1973/74 estava posta a base para uma nova expansão dos mercados financeiros.

O bloco de poder norte-americano, paradoxalmente, pode utilizar esse “sinal de crise” de sua própria hegemonia (Arrighi et al, 1999, p.88) para reorganizar a sua base de poder na economia mundial. O governo dos Estados Unidos começou a jogar politicamente com o papel mundial do dólar norte-americano e o grande significado financeiro de Wall Street. O “regime do dólar de Wall Street” (Gowan, 1999) possibilitava a direção e o aproveitamento de processos econômicos mun-diais apoiando-se em instrumentos como os juros básicos. Assim, a crise da dívida de 1982, entre outras coisas, também foi a consequência direta de uma política de juros altos do chefe do Banco Central norte-americano, Paul Volcker (1979-87). Ela foi responsável pela profunda crise dos Estados latino-americanos e africanos nas duas décadas seguintes. Ao mesmo tempo, a economia norte-americana crescia, mesmo que de maneira quase insignificante, mais rapidamente que a economia mundial (Dicken, 2007, p.41).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 40Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 40 22/10/2010 15:11:5622/10/2010 15:11:56

Page 41: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Uma crise de transição: deslocamentos de força na economia mundial • 41

Entretanto, o período de uma segunda fase do deslocamento de forças teve características diferentes. A “nova divisão internacional do trabalho”, que já se esboçava nos anos 1960, era acompanhada por uma considerável transferência da criação de valor para a semiperiferia. Sobretudo o Leste da Ásia aproveitava-se do acesso ao mercado de exportação para os Estados Unidos. O setor industrial de primeira geração dos “tigres asiáticos” (Hong Kong, Coreia do Sul, Cingapura e Taiwan) expandia-se temporariamente a uma taxa de crescimento de dois dígitos (Dicken, 2007, p.44). Seguiu-se uma segunda geração de países com essas carac-terísticas, especialmente a Indonésia, a Malásia e a Tailândia. Mas a economia chinesa crescia impetuosamente a uma taxa de 9,8% anuais, e isso desde 1978, quando se abriu para o exterior. Desse modo, a rasante ascensão do leste asiático prosseguia depois que se esgotou a dinâmica de crescimento no Japão no final da década de 1990. Além disso, diferentes Estados membros da Opec, como Kuwait, Arábia-Saudita ou Dubai, aproveitaram-se dos elevados preços do petróleo e tornavam-se exportadores de capital, fazendo que a periferia se diferenciasse cada vez mais da semiperiferia.2

Uma terceira fase do deslocamento de forças ocorre finalmente depois das crises financeiras no leste da Ásia e na América Latina, entre 1997-99 e 2001-02. Ela pode ser vista, desde a virada do século, em diferentes indicadores – como, por exemplo, na parte do PIB mundial referente à produção industrial mundial; nos investimentos diretos e no aumento do comércio exterior. Nesse espaço de tempo, observa-se nos países em desenvolvimento um impetuoso crescimento do PIB, de 6,6%, o qual ultrapassa bastante o dos países industrializados, de 2,5% (Goldberg, 2007, p.8-s). Também a Índia, com fábricas de alta tecnologia, passou a fazer parte das economias em rápido crescimento, atingindo há mais de uma década o índice de 7% ao ano. Até a crise, exportadores de matéria-prima como a Rússia ou a África subsaariana podiam aproveitar-se da necessidade de ter fontes de recursos na Ásia.

Como resultado das mudanças ocorridas desde a Segunda Guerra Mundial, registra-se a ascensão de regiões do leste da Ásia e de cerca de uma dúzia de im-portantes Estados da semiperiferia. Somente entre 1980 e 2007, a participação do G7 na produção mundial caiu de 55,1% para 39,5%, ao passo que a participação da Ásia corresponde a 28% (Goldberg, 2007). Ao lado dos Estados do leste asiático

2 Os termos “periferia” e “semiperiferia” proveem do aparato conceitual das análises do sistema--mundo que foram desenvolvidas por Immanuel Wallerstein e outros. Essa teoria parte da ideia de que a economia mundial está articulada entre zonas hierárquicas. Enquanto o centro (União Europeia, Japão e Estados Unidos) é a sede dos mais significativos agrupamentos industriais e tec-nológicos – produzindo principalmente bens de capital e bens de consumo duráveis (por exemplo, carros, computadores etc.), a periferia (África, Ásia Central, América Central etc.), normalmente, gera apenas matéria-prima, produtos agrários e mercadorias simples, ao passo que os bens de capital caros são importados. A semiperiferia (Brasil, Rússia etc.) assume um papel intermediário entre ambas as zonas: ela é dependente da importação de alta tecnologia do centro, mas elabora produtos industriais que também são vendidos na periferia – geralmente em troca de bens primários.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 41Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 41 22/10/2010 15:11:5622/10/2010 15:11:56

Page 42: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

42 • Crítica Marxista, n.31, p.37-56, 2010.

da primeira geração, estabeleceram-se firmemente na economia mundial os países do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) e os Estados da Opec (Kaufmann, 2008, p.33-s), além de países como a Indonésia, o México, a Argentina e o Vietnã. Esses Estados caracterizam-se por possuir grande contingente populacional e/ou reservas de recursos específicos, e adotaram uma coerente estratégia de desenvolvimento (veja sobre isso, por exemplo, Kohli, 2004).3 O ganho em termos de força econô-mica por parte de alguns países da semiperiferia, porém, raramente influencia um grande número de Estados periféricos. Os seus indicadores econômicos e sociais estagnam-se ou retrocedem. Nesse sentido, o deslocamento das relações de força dá-se sobretudo no andar superior ou médio da economia mundial.

Entretanto, é preciso registrar outro fato. O conjunto das modificações rele-vantes envolvendo o PIB mundial não ocorreu de maneira paralela entre produção, comércio, investimento, e tampouco entre finanças, progresso técnico e gastos militares. O crescimento do número de patentes ou dos gastos em pesquisa e de-senvolvimento não pode, por exemplo, ser demonstrado pelas taxas ascendentes dos gastos militares. Assim, apesar de mudanças relevantes no plano da produção entre o polo dual Estados Unidos/União Europeia e os Estados do Bric, não houve inicialmente modificações análogas nessas áreas.

Desequilíbrio global e criseTal modo de análise “multidimensional” dos deslocamentos de força mun-

diais esbarra também no fenômeno das desigualdades econômicas. O conceito de “desequilíbrio global” na economia mundial diz respeito à constelação de excedente ou de déficit relativamente duradouros (estruturais) entre países ou grupos de países, mas que a longo prazo podem não revelar muita consistência quando se considera que profundas modificações sociais e econômicas ocorrem no transcorrer da criação e transformação de desequilíbrios (Boris, 2009a, p.88-s).

Esses desequilíbrios globais manifestaram-se desde os finais da década de 1990 entre os Estados Unidos e, em dimensão menor, a Grã-Bretanha, como países deficitários por um lado; e, por outro lado, Japão, Alemanha e, sobretudo, China, bem como numerosos países emergentes como países superavitários (Husson, 2009, p.22-s; Wolf, 2008, p.78). O peso dos últimos aumentou de tal maneira desde a virada do século que “o balanço de pagamentos somado dos países do norte do globo (ou seja, o que era antes o primeiro mundo, incluindo o Japão) mostra, desde a crise asiática de 1997/98, um déficit crescente – principalmente em razão do déficit norte-americano –, que corresponde a um aumento de excedente na balança de pagamentos do resto do mundo, ou seja, o segundo e o terceiro mundos de antes)” (Arrighi, 2008, p.242). Em 2006, o superávit dos países semiperiféricos chegou a 544 bilhões de dólares norte-americanos (Wolf, 2008, p.82).

3 Países como a Nigéria ou o Paquistão, apesar de possuírem uma grande população e fontes de matéria-prima, não se incluem nesse grupo de Estados semiperiféricos.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 42Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 42 22/10/2010 15:11:5622/10/2010 15:11:56

Page 43: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Uma crise de transição: deslocamentos de força na economia mundial • 43

Os desequilíbrios nos mercados globais de bens e serviços defrontam-se com desproporções correspondentes no plano monetário-financeiro. Eles se manifestam sob a forma de fluxos de capital dos países da semiperiferia para os do centro, a fim de equilibrar essas “desproporções” e possibilitar a sua continuidade. No período de 2000 a 2006, 42 dos 113 países em desenvolvimento foram exportadores de capital (Unctad, 2008, p.52-s). Os fluxos de capitais podem ocorrer com a compra de empréstimos do Estado ou de partes de empresas, sob a forma de pacotes de ações. Assim, a China passou a ser o maior credor do maior devedor (Estados Unidos); embora este último seja um dos países mais ricos do mundo e a China – apesar de todo o seu processo de recuperação – continue sendo um país em que grande parte da população vive na miséria. Essa “constelação perversa” (Wolf, 2008, p.4) é, entre outras coisas, o resultado do acúmulo de reservas de divisas no leste asiático e na América Latina, em razão das experiências com as crises da moeda e das finanças desde finais dos anos 1990 (Schmalz, 2008, p.265-s). Dessa maneira, procura-se defender a própria moeda frente a retiradas bruscas de capital e dos ataques especulativos que as acompanham geralmente (EZB, 2009a, p.79-s).

Além disso, esse “desequilíbrio” no sistema mundial, no qual o capital – contra todas as teorias econômicas – flui “para cima”, resulta da boa e longa conjuntura em termos de matéria-prima e dos problemas de absorção na semiperiferia, isto é, diante da sua impossibilidade de investir plenamente esses recursos no curto prazo ou em gastos de consumo. No ponto alto da crise econômica mundial atual, as reservas em divisas de países emergentes na Ásia, África e América Latina (incluindo o petróleo de países exportadores da periferia) foram avaliadas em cerca de 7 trilhões de dólares (The Economist, 11.10.08). Mais de dois terços das reservas em divisas foram acumulados somente após a crise da Ásia. Os fundos foram invertidos parcialmente em empréstimos estatais de países desenvolvidos ou em empréstimos de empresa (Kaufmann, 2008, p.20-s). Apenas os Estados Unidos absorveram, até julho de 2009, cerca de 3,4 trilhões de dólares desses empréstimos estatais, dos quais o governo chinês dispõe de ações no valor de 800 bilhões de dólares (US – Department of the Treasury, 2009).

No entanto, continuam a existir diferenças na distribuição mundial da riqueza, de valores, de direitos de acesso e de possibilidades. Aqui, o ponto de partida é a existência, nas mãos de poucos capitalistas, de poderosos excedentes de capital em busca de investimentos. Ela é consequência da reforçada polarização de renda e riqueza pelo modelo político neoliberal (Schumann; Grefe, 2009, p.84-s). Os processos de polarização, que ocorrem em plano nacional e internacional, foram prerrequisito para a descoberta de novas formas de aplicação e de garantias. Essas inovações do mundo financeiro também contribuem para absorver a poupança dos países emergentes (Brender; Pisani, 2009, p.59-s). A política do Banco Central da China, inclusive, voltou-se explicitamente para o atendimento da exigência dessa transferência.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 43Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 43 22/10/2010 15:11:5622/10/2010 15:11:56

Page 44: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

44 • Crítica Marxista, n.31, p.37-56, 2010.

A simbiose resultante daí – especialmente entre a economia norte-americana e a chinesa – foi tida, na primeira década do novo século, como garantia de uma constelação de crescimento vantajosa para o conjunto da economia mundial. Os Estados Unidos podiam elevar ainda mais os seus gastos militares, adotar reduções tributárias, empreender uma política de juros baixos para o agrado dos consumidores e dos investidores, bem como compensar os salários em estagnação e comparativamente baixos por meio da importação de bens de consumo baratos, créditos fáceis e imóveis a bom preço (Schmidt, 2008). A quota de poupança do conjunto da economia do país em 2006 chegava a apenas 14%; a do orçamento foi, nesse intervalo, inclusive negativa, e um terço de todos os investimentos foram financiados a partir do exterior (Wolf, 2008, p.69).

A economia nacional chinesa, ao contrário, em razão de uma incrível taxa de poupança de até 59% do PIB e do afluxo de capital estrangeiro atingindo uma taxa de investimento de quase 50% do PIB, podia obter ao mesmo tempo elevados excedentes de exportação, acumular poderosas reservas de divisas de mais de 2 trilhões de dólares e, ainda, melhorar visivelmente o bem-estar de sua população urbana. Nessa “divisão de trabalho” – aqui a bancada produtiva do mundo, lá “consumidor de ultima instância” –, não parecia haver nada de escandaloso. Mas a maioria dos economistas do Mainstream, e também analistas críticos, subes-timaram o poder explosivo dessa simbiose assimétrica (Goldberg, 2007, p.11s; Panitch; Gindin, 2008, p.42).

Seguramente, a crise atual não foi provocada de forma direta por uma tentativa de corrigir esses desequilíbrios globais. Até agora, não houve nenhuma redução massiva pelos credores dos países semiperiféricos de seu engajamento em ações, empréstimos ou créditos nos Estados Unidos. Mas quando a crise começou – com o estouro da bolha de crédito e a queda dos preços de imóveis –, a credibilidade do governo norte-americano foi sendo questionada crescentemente também pelos credores externos, e a ameaça de tal redução fez-se presente. Hoje se debate muito sobre o porquê de muitos governos dos países emergentes – sobretudo o chinês – continuarem a aplicar parte de suas divisas nos empréstimos estatais norte--americanos, em vez de fortalecer o seu próprio mercado interno. Isso acontece mesmo com a estagnação da economia norte-americana e a possibilidade de que o modelo de endividamento financiado externamente balance no médio prazo (ver Tabela 1).4

4 Provavelmente, o motivo deva ser buscado, tal como antes, no extraordinário papel político-militar dos Estados Unidos, mas também na ponderação de que uma massiva retirada de ações estatais provocaria perdas no caso de venda imediata. Além disso, até agora não existe no leste da Ásia uma praça financeira em condições de concorrer com Wall Street, pois os seus mercados financei-ros são ainda bastante fragmentados e o da China é fortemente regulamentado. A linha oscilante na estratégia econômica exterior chinesa mostra-se no fato de que a República Popular comprou periodicamente empréstimos estatais norte-americanos, mas não sustentou essa política de forma duradoura.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 44Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 44 22/10/2010 15:11:5622/10/2010 15:11:56

Page 45: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Uma crise de transição: deslocamentos de força na economia mundial • 45

Tabela 1: Principais credores dos Estados Unidos (em bilhões de dólares)

Jan 2008

Julho2008

Jan2009

Julho2009

Julho2009(2)5

Jan2010(2)

China 492,6 550 739,6 800,5 939,9 889 Japão 586,9 637,6 634,8 724,5 720,9 765,4Opec 140,9 162,9 186,6 189,2 209,9 218,4Grã-Bretanha 161,9 66,1 123,9 220 94,5 206Brasil 141,7 154,8 133,5 138,1 146,8 169,1 Hong Kong 54,4 65,2 71,7 115,3 111,1 146,6Centros bancários caribenhos 108,1 117,6 176,6 193,2 137,9 143,5Rússia 35,2 104 119,6 118 141,3 124,4Taiwan 38,9 67,9 73,3 77,4 114,4 119,9Total 2403,8 2624 3072,2 3428 3502,6 3706,1

Fonte: Departamento do Tesouro Norte-americano 2009, 2010Nota: As somas se referem ao conjunto dos credores dos Estados Unidos, alguns dos quais estão relacio-nados na tabela.

Aqui, a pergunta central é se os investimentos massivos em empréstimos estatais norte-americanos de baixo e instável retorno podem se legitimar dura-douramente.

Na realidade, é importante entender qual é o grau de desequilíbrio da economia chinesa hoje: em 2007, o consumo individual correspondia a precisamente 35% do PIB [...]. Enquanto a China investia 11% de seu PIB em aplicações de baixa rentabilidade. Além disso, é preciso lembrar da miséria em que vivem centenas de milhões de chineses, e que essa transferência de recursos para o exterior correspon-deria a cerca de um terço do conjunto do consumo individual (Le Monde, 29.09.09).

E as poderosas somas que foram transferidas via setor financeiro para os Estados Unidos, apoiando não apenas o consumo norte-americano, mas também fazendo que as instituições financeiras norte-americanas se endividassem ainda mais, assumindo um risco ainda maior (Brender; Pisani, 2009, p.64).

Os crescentes desequilíbrios globais contribuíram, dessa forma, para encobrir temporariamente os momentos de crise. A venda de mercadorias chinesas exporta-das para os Estados Unidos retornava como crédito em dólar para o Banco Central da China, que novamente o usava para a compra de debêntures norte-americanos. Indiretamente, elas apoiavam a política de juros baixos, ampliavam a base de créditos dos consumidores norte-americanos e contribuíam, assim, para a bolha imobiliária desse país (Roth, 2009, p.206). Os desequilíbrios fortaleceram ainda mais as desproporções existentes entre a economia real e o sistema de crédito ou financeiro, forçando o aprofundamento da crise e tornando-se “claramente um de seus [fatores] mais decisivos” (Financial Times Deutschland, 25.09.09).

5 Em junho de 2009 o sistema de cálculo da dívida externa norte-americana foi modificado. Os dados correspondentes a esse novo sistema estão assinalados na primeira linha com (2) depois do ano indicado.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 45Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 45 22/10/2010 15:11:5722/10/2010 15:11:57

Page 46: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

46 • Crítica Marxista, n.31, p.37-56, 2010.

Efeitos da crise e programas conjunturaisTambém os efeitos da crise em cada país estão relacionados com o desloca-

mento de forças. Diferentemente das crises financeiras e monetárias anteriores, o epicentro da crise atual localiza-se claramente nos Estados Unidos, e, em seguida, na Europa e no Japão. Naturalmente, também o Sul do globo terrestre foi atingi-do pela crise, porém de maneira bastante diferente. Depois da primeira onda de choque dos anos 2008 e 2009, que parecia conduzir a economia mundial a uma longa recessão, a partir do segundo trimestre de 2009 surgem desenvolvimentos e efeitos bastante diferentes, bem como os programas anticrise.

Tabela 2: Taxas de crescimento de algumas economias (em %) comparadas com o trimestre do ano anterior

3.Trimestre

2008

4. Trimestre

2008

1.Trimestre

2009

2.Trimestre

20092009 Previsão 2010

EUA -2,7 -5,4 -6,4 -1,0 -2,5 2,7Japão -3,9 -13,1 -11,7 3,7 -5,3 1,7Alemanha -1,3 -9,4 -13,4 1,3 -4,8 1,5França -0,9 -5,6 -5,3 1,3 -2,3 1,4Inglaterra -2,9 -7,0 -9,3 -3,2 -4,8 1,3Brasil 5,6 -13,8 -3,3 7,0 -0,4 4,7México -2,3 -9,8 -21,2 -4,4 -6,8 4China 9 6,8 6,1 7,9 8,7 10Índia 7,6 5,3 5,8 6,1 5,6 7,7Asean-5 k.A. k.A. k.A. k.A. 1,3 4,7

Fontes: IMF 2010, IMF 2009; El Mercurio, 21/08/09; www.stats.gov.cn/english/; www.mospi.gov.in/

Os Estados Unidos, com uma queda de 6% na taxa de crescimento no último trimestre de 2008 e no primeiro trimestre de 2009, comparativamente, foram fortemente atingidos. O desemprego atingiu a marca de mais de 10% no final de outubro de 2009. Aproximadamente 100 bancos faliram, entre eles também um peso-pesado: o Washington Mutual. Por meio dos consideráveis programas de conjuntura e de ajuda – 787 bilhões de dólares para alavancar a conjuntura; 700 bilhões para um “bailout” bancário, incluindo a aquisição de “ativos tóxicos” – além da política radical de juros baixos, a queda ainda não chegou ao seu limite. E claro que os gastos de consumo se reduziam em face de uma situação social agravada para partes significativas da população (perda de emprego, redução salarial, queda do preço das ações etc.), a taxa de poupança subia levemente e, de igual modo, pela primeira vez, as importações baixavam mais fortemente que as exportações, reduzindo um pouco o déficit da balança comercial (EZB, 2009b, p.10-s). Ao contrário, o déficit orçamentário inclusive aumentou e chegou a 1,4

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 46Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 46 22/10/2010 15:11:5722/10/2010 15:11:57

Page 47: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Uma crise de transição: deslocamentos de força na economia mundial • 47

trilhão de dólares em 2009, correspondendo a quase 10% do PIB. Como cerca de 70% do PIB correspondem a gastos de consumo, é questionável se a queda continuada desse segmento pode ser compensada com gastos governamentais, investimentos privados ou exportações (The Economist, 3.10.09). Por isso, não surpreende o fato de que o PIB de 2009 tenha encolhido em torno de 2,5% e de que somente neste ano de 2010 possa haver alguma recuperação.

Também o Japão encontra-se em situação semelhantemente dramática. Mesmo que a segunda economia do mundo tenha se recuperado lentamente no segundo trimestre de 2009, o país foi de tal modo atingido pela quebra nas exportações que mesmo o enorme programa conjuntural de 75 bilhões de dólares pouco podia ajudar (Burgschweiger, 2009). A eleição de Yukio Hatoyama, em agosto de 2009, sua subsequente renúncia em junho de 2010 e o fim do domínio de quase 55 anos do partido LDP são sinais de uma reviravolta. A União Europeia foi incapaz de implementar uma política coordenada de conjuntura, de tal modo que os progra-mas de combate a ela deram-se de maneira bastante diferenciada em cada um dos Estados (ver Becker; Jäger, 2009, p.551). Especialmente negativo foi o desem-penho do Leste Europeu. Enquanto, a partir de meados de 2009, a queda do PIB na Europa tornava-se mais lenta e iniciava-se uma estagnação, havia casos nessa região (por exemplo, a Bulgária e os países bálticos) em que o declínio continuava. Ademais, a crise deixou claros os desequilíbrios existentes na zona do Euro, que se manifestaram, entre outras coisas, na ameaça de bancarrota do Estado grego, indicando a falta de uma coordenação macroeconômica entre os países do Euro.

Por outro lado, a partir do segundo trimestre, algum países recuperavam-se rapidamente e pareciam iniciar uma nova dinâmica de crescimento. Isso porque esses Estados foram afetados pela queda de exportações “apenas” temporariamen-te, pelas “remessas” menores e pela baixa no preço de seus principais produtos de exportação. De modo geral, pode-se formular a seguinte regra: quanto menor é o peso do mercado interno, maior é o entrelaçamento com a economia externa, mais fortemente manifesta-se a concentração regional em alguns poucos produtos – tendo o Ocidente como principal consumidor –, e tanto maior é a dependência externa relacionada a créditos e ao endividamento – o que faz que tal economia seja mais fortemente atingida pela crise. Paralelamente, existe uma relação entre a intensidade da crise, a política econômica adotada e a dimensão dos programas anticrise. Isso pode ser visto, por exemplo, nos diferentes graus de intensidade da crise em alguns países da América Latina. O México e o Brasil – de longe, as maiores economias da região – foram atingidos pela crise atual de modo bastante diferente e também reagiram distintamente em sua política conjuntural. Enquanto o Brasil mostra uma baixa taxa de comércio exterior, suas ligacões com os Esta-dos Unidos são comparativamente pequenas e a sua pauta de exportação e de relações comerciais diversificou-se; no México ocorre o contrário. As reservas de divisas acumuladas pelo Brasil – de 230 bilhões de dólares – são quase três vezes maiores que as do México. E se a economia mexicana em 2009 diminuía

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 47Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 47 22/10/2010 15:11:5722/10/2010 15:11:57

Page 48: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

48 • Crítica Marxista, n.31, p.37-56, 2010.

em 6,8%, enquanto a brasileira estagnava, o programa conjuntural do México, no valor de cerca de 3% de seu PIB, é bem menor que o do Brasil que, contando com o Programa de Aceleração do Crescimento aprovado em 2007, se aproximaria de 10% de seu PIB. Não é em vão que no Brasil, a partir do segundo semestre de 2009, muitos indicadores relevantes, como o crescimento da produção, o afluxo de capital externo ou o valor externo do real, novamente subiam, e que todos os postos de trabalho antes perdidos haviam sido recuperados já em setembro. O fato de que o México, em abril de 2009, teve de pedir ao FMI um empréstimo-ponte de 47 bilhões de dólares, enquanto o Brasil aprovava a concessão de crédito no valor de 10 bilhões de dólares ao mesmo Fundo, sublinha a diferença entre ambos (Boris, 2009b, p.139-s).

No entanto, em muitos países asiáticos emergentes o cenário existente deixa o desenvolvimento do Brasil ainda mais para trás: “nas economias emergentes da Ásia, a conjuntura econômica recupera-se desde o segundo semestre de 2009, e na maioria desses países observava-se novamente um trimestre positivo de crescimento do PIB. Amplos programas conjunturais e expansivas medidas de política monetária apoiavam as atividades de investimento nessa região” (EZB, 2009b, p.14). O governo chinês reagiu à crise com um programa de cerca de 585 bilhões de dólares. Desses, cerca de 265 bilhões iriam para a infraestrutura e cerca de 38% para gastos com a preservação ambiental (Garnreiter et al, 2009, p.32-s). Entretanto, ainda é questionável se uma adaptação da economia chinesa a uma maior demanda do mercado interno seria possível a curto prazo. Diante da situação envolvendo da renda das classes menos favorecidas (com um simultâneo aumento do desemprego) e da perda de receita da classe média, isso parece ser improvável. Também, dada a particularidade sociocultural desse país, com elevada taxa de poupança (em 2008 eram 56%!), uma rápida “mudança” parece igualmen-te improvável. Antecipando-se a esses problemas, o governo chinês anunciava, no início de 2009, a instituição de um abrangente seguro de saúde gratuito (que custaria cerca de 110 bilhões de dólares). Em relação aos desequilíbrios da eco-nomia internacional, pouco parece haver mudado até agora, mesmo sabendo que, pela primeira vez, o aumento em exportação tenha ficado atrás das importações. Apesar disso, em 2009 atingiu-se a taxa de crescimento anual de mais de 8% – o que na China vale como medida crítica na prevenção do desemprego.

Na Índia a situação inicial era menos favorável. O mercado de ações foi atingido com força total,6 ocorrendo ampla fuga de capital, acompanhada pelas quedas da indústria têxtil e da agricultura. A exportação, que havia contribuído bastante para o crescimento, teve uma baixa de 10% (2008); o déficit da balança comercial duplicou, chegando a 5,1% do PIB (Al-Taher; Ebenau, 2009, p.654). Na verdade, o programa de aquecimento da conjuntura, que corresponde a 2,6% do

6 “Em outubro (2008), o mercado de ações da Índia perdeu cerca de 1 trilhão de dólares, mais do que o conjunto do PIB indiano de 2007/2008.” (Wildcat, n.83, 2009, p.24.)

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 48Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 48 22/10/2010 15:11:5722/10/2010 15:11:57

Page 49: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Uma crise de transição: deslocamentos de força na economia mundial • 49

PIB, é pequeno. Tampouco se pode esperar uma mudança da orientação voltada para a exportação em favor do mercado interno, sem contar que alguns ramos da economia exportadora, como a indústria automobilística, superaram relativamente bem a crise (Faz , 21/09/09); e o crescimento do PIB em 2009 foi de 5,7%.

Partindo de um nível bem mais inferior, a Áfricasubsariana cresceu, em 2009, segundo dados do FMI, apenas 2,1%; ou seja, em muitos países africanos menos inclusive que a taxa de crescimento da população (IMF, 2010:2). Alguns países que se especializaram em matérias-primas com preços atualmente baixos no mercado mundial foram atingidos de maneira ainda mais grave. Promessas de ajuda e de concessão de crédito de países do G-8 agora serão mais difíceis. A África sofre com a crise mais do que qualquer outro continente (Faz, 15/09/09; Martens, 2009). E para os programas de incentivo da conjuntura faltam recursos e possibilidades de implementação.

Desse breve esboço, pode-se concluir que com a crise haverá um aceleramento no deslocamento de pesos na economia mundial. Os países industriais capitalistas desenvolvidos – Estados Unidos, da Europa e o Japão – sofrerão uma redução de sua participação. Também os países menos desenvolvidos continuarão marginaliza-dos em relação à intensidade do comércio exterior, as diretivas de investimentos e ao crescimento do PIB; enquanto uma parte da semiperiferia – apesar de retrocessos temporários –, continuará se aproximando dos países do centro. A crise também deixou marcas no setor bancário global: se em 1999 contavam-se, entre as 20 maiores do mundo, 11 instituições financeiras norte-americanas e 4 britânicas e nenhuma da semiperiferia, em 2009 haviam apenas três norte-americanas e uma britânica entre as vinte principais. Enquanto isso, três bancos chineses passaram a fazer parte desse grupo de elite, além de outras duas instituições chinesas e uma brasileira que subiram no ranking (Financial Times, 22.03.09).

Tal fênix das cinzas: o FMI, o G-20 e a cúpula financeira mundialA crise tampouco passou despercebida pelos organismos internacionais liga-

dos às finanças. Desde a crise da dívida, em 1982, o FMI, por exemplo, assumiu um papel ativo como um instrumento dos Estados credores e ordenou programas de ajuste estruturais para países devedores da América Latina, do leste europeu e também para alguns países do leste asiático. Depois, na sequência das crises financeiras e monetárias, a instituição deparou com um processo de deslegiti-mação crescente (Stiglitz, 2002). No contexto do boom de crescimento dos anos passados, diminuiu o pedido de empréstimo junto ao FMI, de tal modo que, em abril de 2007, apenas 11,1 bilhões de dólares haviam sido concedidos. O FMI encontrava-se então no “caminho da perda de significado” (Dieter, 2008, p.9). No leste da Ásia, com a iniciativa Chiang Mai, criou-se um fundo regional que já em 2007 dispunha do total de 83 bilhões de dólares (Dieter, 2008, p.10-s), apoiado na grande reserva de divisas da região – no final de 2008: mais de 4 trilhões em dólares norte-americanos (FTD, 12.11.09). Ademais, os notórios Estados

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 49Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 49 22/10/2010 15:11:5722/10/2010 15:11:57

Page 50: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

50 • Crítica Marxista, n.31, p.37-56, 2010.

devedores da América do Sul, em grande medida, livraram-se do peso da dívida com o FMI (Helleiner; Momani, 2007, p.5). Teve início ainda o processo para a formação de um Banco do Sul (Banco del Sur), cujo documento inicial já foi assinado pelos países membros.7 Uma das consequências desses acontecimentos foi a perda pelo FMI, no ano fiscal de 2007, de cerca de 100 milhões de dólares, fazendo que os próprios custos operacionais ultrapassassem o ganho em juros, provocando a demissão de quase 20% dos seus funcionários. E, adicionalmente, empreendeu-se uma mínima reforma de direito de voto no FMI, reduzindo o peso dos países industrializados de 59,5% para 58%.

O G-7/G-8 também conheceu um processo semelhante de deslegitimação. Des-de 1975, ele servia para a conexão dos aparelhos estatais das importantes nações industrializadas, visando estabilizar a economia mundial capitalista abalada por crises e reorganizar a hegemonia norte-americana (Schoppengerd, 2007, p.88). Essa rede estrutural foi sendo cada vez mais criticada nos últimos anos. O movi-mento crítico à globalização voltou-se contra o déficit democrático e a política do G-8. Além disso, aumentou a pressão pela ampliação do G-8, permitindo a inclusão dos países emergentes – especialmente a China (Linn; Bradford, 2006). Um ingresso parecia inicialmente improvável, mas depois concedeu-se o status de observador para Brasil, Índia, China e África do Sul.

Primeiro, a crise atuou no sentido de modificar e renovar essas instituições. A perda de importância do G-8 em benefício do G-20 e a reforma do FMI estavam intimamente ligadas. Logo depois, o FMI começou a agir em muitos casos como salvador da situação (Becker, 2009; Die Welt, 02.03.2009). Inicialmente, concedeu créditos de mais de 50 bilhões de dólares a países como Islândia, Hungria, Letônia, Bielorússia e Paquistão. Seguiram-se outros acordos, entre eles o com os estados do leste europeu – como o do crédito de mais de 10 bilhões de dólares concedido à Romênia. Porém, é preciso observar que na concessão de crédito, países de determinadas regiões que antes eram dependentes do FMI – sobretudo no Leste Asiático, a Rússia e na América Latina –, conseguiam superar suas dificuldades por meios próprios ou pela ajuda bilateral.8

Essa regionalização da concessão de créditos foi acompanhada de uma reforma da instituição. Já em novembro de 2008 organizou-se em Washington um encontro de cúpula das finanças internacionais para se discutir medidas contra a crise. Mas o fórum para esse processo de negociação não foi mais o G-8, e sim o G-20, ou

7 Os membros fundadores do Banco são Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, Paraguai, Uruguai e Venezuela; o Chile participa na condição de observador. O volume de crédito inicial é de 20 milhões de dólares.

8 A mídia pouco informou que o Banco Central norte-americano, em outubro de 2008, concedeu linhas de crédito (em troca de moeda local) de 30 bilhões de dólares a cada Banco Central do México, do Brasil, da Coreia do Sul e de Singapura (Dieter; Schipper, 2009, p.8). Essa medida foi necessária porque esses Estados dispunham de grande quantidade de empréstimos estatais norte--americanos.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 50Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 50 22/10/2010 15:11:5722/10/2010 15:11:57

Page 51: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Uma crise de transição: deslocamentos de força na economia mundial • 51

seja, uma instituição na qual participam também importantes países da semiperi-feria, como Índia, China, Brasil, Indonésia, África do Sul e Arábia Saudita.9 Como resultado do encontro, apresentou-se na declaração final a agenda para algumas reformas no mercado financeiro. Porém, as novas regras previstas não são muito abrangentes, isto é, não se trata de um segundo Bretton Woods (Helleiner; Pagliari, 2009). A única mudança substancial consiste na ampliação do grupo. No encontro seguinte, Londres, em abril de 2009, as primeiras resoluções foram aprovadas. Entre elas, a preparação de uma “lista negra” com os paraísos fiscais e uma mais forte supervisão dos fundos especulativos. Além disso, aprovou-se uma reforma do FMI: o seu volume de crédito foi aumentado para 750 bilhões de dólares. Além de uma nova linha de crédito de mais de 250 bilhões de dólares a título de Direitos de Saques Especiais (DSE), já que a concessão de crédito não está mais condicionada à adoção de medidas de ajustes estruturais. E o orçamento do Banco Mundial foi elevado para cerca de 100 bilhões de dólares. A decisão de estabelecer o G-20 como um fórum permanente tem um significado histórico, pois a China, a Índia e outros países em crescimento, “incontestavelmente ultrapassaram a barreira em direção ao centro do poder global” (Klein, 2009, p.4); isto é, no futuro, eles não poderão mais ser ignorados em decisões importantes da governança global. Essa impressão foi confirmada nos meses seguintes. Primeiro, os governos russo, chinês e brasileiro pela primeira vez compraram do FMI empréstimos de mais de 80 bilhões. No encontro de cúpula de Pittsburgh, em setembro de 2009, as mais importantes resoluções dos chefes de Estado referiam-se à reforma institucional: o direito de voto no FMI será transferido em 5% das nações industrializadas para os países em desenvolvimento até o ano de 2011, fazendo que eles disponham de 48% dos votos; e a China passa a ter a mesma quota de participação que a Grã--Bretanha. Ademais, o G-20 deverá se reunir no mínimo uma vez por ano. Ocorrem também iniciativas no sentido de modificar a orientação da política econômica do FMI, que se manifestam, entre outras coisas, em um abrandamento das metas inflacionárias extremamente baixas e em uma avaliação parcialmente positiva sobre o controle da circulação de capital.

Essa reforma de governança está ligada aos esforços do Hemisfério Sul por instituir fóruns próprios que questionem a primazia do Ocidente (Schmalz, 2008, p.274-s). Nos últimos anos foram criadas diversas instituições regionais – como a iniciativa Chiang Mai (2000) para a integração financeira, a Organização de

9 O G-20 conta com 19 estados principais, aos quais se somaram alguns outros países. “Entre os ‘autênticos’ estão os Estados Unidos, Argentina, Austrália, Brasil, China, Alemanha, Grã-Bretanha, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, Canadá, México, Rússia, Arábia-Saudita, África do Sul, Coreia do Sul e Turquia. Em Pittsburgh estiveram presentes, além dos primeiros-ministros da Espanha e da Holanda, também o da Suécia (presidente do Conselho Europeu), representantes de Cingapura (o presidente da Apec), da Tailândia (pela Asean), e da Etiópia (Nepad). Representados estão também a ONU, o FMI, o Banco Mundial, o Financial Stability Board, a Comissão Europeia, a Comissão da União Africana, a OIT, a OCDE e a OMC.” (FAZ, 25.09.09).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 51Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 51 22/10/2010 15:11:5722/10/2010 15:11:57

Page 52: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

52 • Crítica Marxista, n.31, p.37-56, 2010.

Cooperação Shanghai (2001) para uma política comum de energia e segurança, e o Fórum de Cooperação brasileiro, indiano e sul-africano (IBSA, 2003). Em relação à política das cúpulas sobre as finanças, foi sobretudo o Bric-Grupo (2008) que impulsionou ativamente a reforma do FMI e a coordenação sobre a compra de seus empréstimos. Por outro lado, em face dos sinais de que o G-8, pelo menos em relação à política de segurança, continuará a desempenhar um papel de peso, pode-se deduzir que se vai delineando um sistema global de vários níveis. Desse modo, diante da estrutura transatlântica Otan/G-7 poder-se-ia estabelecer uma aliança de cooperação, e os conflitos seriam analisados em instituições como o G-20 na busca de um consenso. Assim, a crise acionou no plano institucional uma reorganização que reflete, em parte, os deslocamentos econômicos de força.

Um novo “spatial fix”?Entre 2007 e 2009, a crise claramente acelerou o deslocamento de peso na

economia mundial do “Ocidente” para o “Oriente” e do centro para a, até agora, semiperiferia. Parece confirmar-se atualmente a tese de Arrighi e Harvey de que a cada grave crise no desenvolvimento capitalista – precisamente, no decorrer de um “ciclo sistêmico de acumulação” –, ocorre uma transição de hegemonia, caracteri-zada por um reagrupamento regional-espacial. O colapso de importantes partes do sistema financeiro norte-americano enfraquece o regime do Wall Street-dólar, por meio do qual o predomínio norte-americano pode se assegurar nas últimas décadas (Gowan, 2009, p.38-s). A continuidade do consumo norte-americano financiado de fora parece possível a médio prazo apenas com concessões políticas, já que a legitimação do modelo chinês de dumping salarial voltado para a exportação apresenta problemas em razão da crescente agitação social. Uma desvalorização ou elevação do dólar poderia intimidar os credores estrangeiros e debilitá-lo no médio prazo enquanto moeda-chave.

A crise age como catalisador: enquanto os programas anticrise possuem, nos Estados Unidos e na Europa, em grande parte, um caráter defensivo e estabilizador, muitas medidas do governo chinês estão exatamente voltadas para frente. Entre elas a tentativa de elevar a quota de consumo no próprio país, ou a tendência da China, acentuada na crise, de explorar novas fontes de matéria-prima no mundo, ganhando mais influência – incluindo um crescente papel em empresas estrangeiras de alta tecnologia (FTD, 28.07.09). O crescimento chinês apresenta ainda uma diferença qualitativa em relação à dinâmica da Europa ocidental no pós-guerra. O processo é dirigido por uma classe estatal (capitalista) mais independente dos Estados Unidos. A China está subrepresentada nas instituições da governança global. E a economia do país, em razão mesmo do seu contingente populacional, dispõe de grande potencial de expansão.

Também no plano institucional ocorre uma primeira reviravolta. O antigo ordenamento da governança transatlântica pouco a pouco vai se inclinando para uma estrutura na qual a semiperiferia tem mais presença. O G-20 e a reforma do

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 52Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 52 22/10/2010 15:11:5722/10/2010 15:11:57

Page 53: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Uma crise de transição: deslocamentos de força na economia mundial • 53

FMI são os primeiros passos na direção dessa reestruturação. Porém, o que também ainda não está claro é se no médio prazo os países periféricos se aproveitarão de tais reformas. Diversas regiões do mundo, como a África subsaariana, a América Central e a Ásia Central, foram fortemente atingidas pela crise. Até agora, não foi oferecida nenhuma nova chance de participação institucional para os estados dessas regiões.

A configuração concreta da mudança será influenciada consideravelmente pelas decisões políticas e a correlação de forças. Três cenários podem ser vislumbrados:

a) Pelo menos no curto prazo, podem surgir reações de conservação frente à crise econômica mundial e de questionamento do “modelo Chimérica”,10 tendo-se em conta que as estruturas de produção, de consumo e de classe não podem ser transformadas abruptamente (Hung Ho-Fung, 2009). Assim, seria possí-vel pensar que os Estados Unidos persistiriam, inicialmente, no seu papel de devedores, tentando buscar alívio parcial em uma mínima desvalorização e/ou valorização do dolar à custa dos credores. No fim das contas, esse desenvolvi-mento poderia ser inicialmente tolerado, pois não há alternativa imediata para a estratégia de exportação e o papel de força na ordem mundial dos Estados Unidos.

Entretanto, a tolerância em face dos desequilíbrios não se apoia apenas nas decisões governamentais. Muito dependerá, por exemplo, do modo de reagir dos trabalhadores chineses, já que o “pressuposto decisivo para o funciona-mento desse cadeia simbiótica foi […] a superexploração das trabalhadoras e dos trabalhadores chineses” (Roth, 2009, p.2006). A consequência de uma política de conservação e de um habilidoso “Decline-Management” dos Estados Unidos poderia representar uma transição gradual para um regime multilateral – caracterizado por um exercício comum de hegemonia pelos Estados Unidos e pela China –, no qual, ao lado da contínua dominância militar e cultural norte-americana, teria um papel central a sintonia de ambos em relação às questões da economia mundial.

b) Uma segunda possibilidade – após longo e duradouro processo de transição com estágios intermediários, e de um exercício de hegemonia comum e tem-porário dos Estados Unidos e da China – seria a sua dissolução, no médio prazo, por um novo “spatial fix” transnacional sob a direção do bloco do leste asiático envolvendo governos e empresas, no qual outros países em cresci-mento teriam certo direito de participação. Para a concretização desse cenário, terão peso sobretudo os conflitos internos na Ásia. Os fortes entrelaçamentos econômicos no espaço do leste asiático deveriam ser acompanhados por uma cooperação política. Nisso, a melhoria das relações entre o Japão e a China possui um papel central, além de uma cooperação entre as futuras grandes

10 O historiador norte-americano Niall Ferguson cunhou a expressão “Chimérica” para designar a natureza das relações simbióticas financeiras e comerciais entre os Estados Unidos e a China.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 53Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 53 22/10/2010 15:11:5722/10/2010 15:11:57

Page 54: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

54 • Crítica Marxista, n.31, p.37-56, 2010.

potências – Índia e China. A primeira declaração de intenções do quinto Fórum Pequim-Tóquio, em novembro de 2009, anunciando a vontade de constituir-se uma união asiática – a exemplo da União Europeia –, é mostra de uma disposição inicial e de uma nova consciência, para as quais também contribuiu a crise econômica mundial (China Daily, 3.11.09).

c) Um terceiro cenário consistiria na aplicação, pelos Estados Unidos e seus alia-dos europeus, tanto de seu poder tecnológico e militar como de seu potencial econômico no sentido de provocar a ruína do mercado mundial pela formação de um bloco protecionista, levando a uma confrontação entre as potências do status-quo transatlântico e os desafiantes da semiperiferia. A decisão sobre tal cenário será tomada nos estados ocidentais, por meio de confrontações sociais e eleições. E inclusive se o “Projeto para um novo século americano”, do governo Bush, colocar-se novamente como apresentável sob a forma de um projeto transatlântico, a perda de poder econômico norte-americano e da União Europeia poderia, ao menos provisoriamente, ser contida. Mas isso poderia gerar graves consequências, como um revés econômico ainda maior, chegando mesmo a conflitos bélicos.

Até agora não se pode prever qual das tendências em desenvolvimento acabará por se impor. Mas o decorrer da crise atual indica preferencialmente uma maior ascensão do leste asiático, que favoreceria uma forma mista entre a primeira e a segunda variantes em desenvolvimento.

Referências bibliográficasAL-TAHER, Hanna; EBENAU, Matthias, Phoenix und Asche. Indien und die Weltwirt-

schaftskrise. In: Prokla. Zeitschrift für kritische Sozialwissenschaft, 39, 4, S. 645-62, 2009.

ARRIGHI, Giovanni. A Crisis of Hegemony. In: AMIN, Samir et al. (Org.): Dynamics of Global Crisis. New York/London: Monthly Review Press, S. 55-108, 1982.

. Der globale Markt. Gemeinsamkeiten und Unterschiede Zwischen dem Anfang und dem Ende des 20. Jahrhunderts. In: Journal für Entwicklungspolitik, 16, 4, S. 359-91, 2000.

. Adam Smith in Beijing. Die Genealogie des 21. Jahrhunderts. Hamburg: VSA, 2008.

; HUI, Po-keung; RAY, Krishnendu; REIFER, Thomas Ehrlich. Geopolitcs and High Finance. In: ARRIGHI, Giovanni; SILVER, Beverly (Orgs.), S. 37-96, 1999.

; SILVER, Beverly (Orgs.) Chaos and Governance in the Modern World System. Minneapolis/London: University of Minnesota Press, 1999a.

; . Introduction. In: Dies. (Org.), S. 1-36, 1999b.; . Capitalism and World Dis(order). In: Review of International Studies, 27,

S. 257-79, 2001.BECKER, Joachim. Osteuropa in der Finanzkrise: Ein neues Argentinien? In: Blätter

für deutsche und internationale Politik (Org.): Das Ende des Casino Kapitalismus? Globalisierung und Krise. Berlin: Edition Blätter, S. 146-54, 2009.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 54Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 54 22/10/2010 15:11:5722/10/2010 15:11:57

Page 55: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Uma crise de transição: deslocamentos de força na economia mundial • 55

; JÄGER, Johannes. Die EU und die große Krise. In: Prokla. Zeitschrift für kritische Sozialwissenschaft, 39, 4, S. 541-58, 2009.

BORIS, Dieter. Die Krise als Folge und Ausdruck Globaler Ungleichgewichte. In: Z. Zeitschrift Marxistische Erneuerung, 20, 2, S. 88-101, 2009a.

. Lateinamerikas Politische Ökonomie. Aufbruch aus historischen Abhängigkeiten im 21. Jahrhundert? Hamburg: VSA, 2009b.

BRENDER, Anton; PISANI, Florence. Globalised Finance and its Collapse, Brüssel: Dexia, 2009.

BURGSCHWEIGER, Nadine. Japan in der Globalen Finanzkrise. GIGA Focus, n.3, Hamburg, 2009.

CAMPBELL, Horace. China in Africa: Challenging US Global Hegemony. In: Third World Quarterly, 29, 1, S. 89-105, 2008.

DICKEN, Peter. Global Shift. Mapping the Changing Contours of the World Economy, London et al: Sage, 2007.

DIETER, Heribert. Der IWF auf dem Weg in die Bedeutungslosigkeit? In: Aus Politik und Zeitgeschichte, 58, 7, S. 9-14, 2008.

; SCHIPPER, Lena. Lücken in der Tagesordnung des Londoner G-20 Gipfels, SWP aktuell 16, März 2009. Berlin: SWP, 2009.

EZB. Korrektur globaler Ungleichgewichte vor dem Hintergrund einer Zunehmen-den Integration der Finanzmärkte. In: Dies: Monatsbericht der EZB (ago. 2007), S. 67-81, 2007.

. Akkumulation von Auslandsvermögen durch öffentliche Stellen in Schwellenlän-dern. In: Dies: Monatsbericht der EZB (jan. 2009), S. 79-92, 2009a.

. Das außenwirtschaftliche Umfeld des Euro-Währungsgebiets. In: Dies: Monats-bericht der EZB (set. 2009), S. 9-19, 2009b.

GARNREITER, Franz et al. Krise. Rezession. Absturz. Wege aus der Krise. ISW Report, n.76. München: ISW, 2009.

GOLDBERG, Jörg. Aufschwung und Restrukturierung der Weltwirtschaft, In: Z. Zeitschrift Marxistische Erneuerung, 18, 3, S. 7-23, 2007.

GOWAN, Peter. The Global Gamble. Washington’s Faustian Bid for World Dominance. London/New York: Verso, 1999.

. Causing the Credit Crunch: the Rise and Consequences of the New Wall Street System. In: Journal für Entwicklungspolitik, 25, 1, S. 18-43, 2009.

HARVEY, David. The Limits to Capital. London/New York: Verso, 1999.. The New Imperialism. Oxford/New York: Oxford University Press, 2003.. Tektonische Verschiebungen in der Weltwirtschaft. Warum das US-Konjunktur-

programm zum Scheitern verurteilt ist. In: Sand im Getriebe, n. 74, S. 3-7, 2009.HELLEINER, Eric; PAGLIARI, Stefano. Towards a New Bretton Woods? The First G20

Leaders Summit and the Regulation of Global Finance. In: New Political Economy, 14, 2, S. 275-87, 2009.

; MOMANI, Bessma. Slipping into Obscurity? Crisis and Reform at the IMF. The Centre for International Governance Innovation, Working Paper, n.16, fev. 2007.

HUNG HO-FUNG. America’s Head Servant? The PRC’s Dilemma in the Global Crisis. In: New Left Review, 60, 6, S. 5-25, 2009.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 55Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 55 22/10/2010 15:11:5722/10/2010 15:11:57

Page 56: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

56 • Crítica Marxista, n.31, p.37-56, 2010.

HUSSON, Michel. Kapitalismus pur. Deregulierung, Finanzkrise und Weltweite Rezession. Eine marxistische Analyse. Köln: ISP Verlag, 2009.

IMF. World Economic Outlook. Sustaining the Recovery. Washington DC: IMF, 2009.. World Economic Outlook.Update. Jan. 26, 2010. Washington DC: IMF, 2010.

KAUFMANN, Stephan. Investoren als Invasoren. Staatsfonds und die neue Konkurrenz um die Macht auf dem Weltmarkt. Berlin: Dietz, 2008.

KLEIN, Martin. Die G-20 in London: Twitter-Gipfel oder historische Wende? In: Wirtschaftsdienst 4/2009, S. 214-5, 2009.

KOHLI, Atul. State-Directed Development. Political Power and Industrialization in the Global Periphery. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

LINN, Johannes F.; BRADFORD, Colin I. Pragmatic Reform of Global Governance. Creating a L20 Summit Forum. Policy Brief n.152, Brookings Institution, Washington, D. C., 2006.

MADDISON, Angus. The World Economy. v.1: A Millennial Perspective. Paris: OECD, 2006.MARGLIN, S.A.; SCHOR, J.S. The Golden Age of Capitalism. Reinterpreting the Postwar

Experience. Oxford: Oxford University Press, 1991.MARTENS, Jens. Wie die Wirtschafts- und Finanzkrise in den Süden Transferiert Wird:

Vor einem Globalen Entwicklungsnotstand? In: Informationsbrief Weltwirtschaft & Entwicklung (jun.), S. 1-3, 2009.

PANITCH, Leo; GINDIN, Sam. Finance and American Empire. In: PANITCH, Leo; KONINGS, Martijn (Orgs.) American Empire and the Political Economy of Global Finance. New York: Routledge, S. 7-43, 2008.

ROTH, Karl Heinz. Die Globale Krise. Hamburg: VSA, 2009.SCHMALZ, Stefan. Die Bedeutung der Zahl: Gedankenexperimente zur Rolle der BRIC-

Staaten in der Weltwirtschaft. In: Z. Zeitschrift Marxistische Erneuerung, 17, 3, S. 21-36, 2006.

. Umbrüche in der Weltwirtschaft: Aufstrebende Schwellenländer und der Nieder-gang von IWF und WTO. In: Peripherie, 28, 2, S. 259-79, 2008.

SCHMIDT, Ingo. Kollektiver Imperialismus, Varianten des Neoliberalismus und neue Re-gionalmächte. In: Ders. (Org.): Spielarten des Neoliberalismus. Hamburg: VSA, 2008.

SCHOPPENGERD, Stefan. Die G7/G8-Gipfel in der Internationalen Politischen Ökono-mie. Studie n.24 der Forschungsgruppe Europäische Integration. Marburg: FEI, 2007.

SCHUMANN, Harald; GREFE, Christiane. Der globale Countdown. Gerechtigkeit oder Selbstzerstörung – die Zukunft der Globalisierung. Köln: Kiepenheuer&Witsch, 2009.

SCHUMPETER, Joseph. Kapitalismus, Sozialismus und Demokratie, 8. Aufl. Tübingen/Basel: Francke, 2005.

STIGLITZ, Joseph. Die Schatten der Globalisierung. Berlin: Siedler, 2002. UNCTAD. Trade and Development Report, 2008. Commodity Prices, Capital Flows

and Financing of Investment. Disponível em: http://www.unctad.org/en/docs/tdr2008_en.pdf, 2008.

US-DEPARTMENT OF THE TREASURY. Major Foreign Holders of Treasury Securities. Disponível em: http://www.treas.gov/tic/mfh.txt, 2009.

. Major Foreign Holders of Treasury Securities. Disponível em: http://www.treas.gov/tic/mfh.txt, 2010.

WOLF, Martin. Fixing Global Finance. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2008.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 56Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 56 22/10/2010 15:11:5722/10/2010 15:11:57

Page 57: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Apresentação: A teoria da História de Karl Marx: uma defesa, de Gerald A. Cohen • 57

Apresentação: A teoria da História de Karl Marx: uma defesa, de Gerald A. CohenANGELA LAZAGNA*

Antecedentes do debateA obra Karl Marx’s Theory of History: A Defense (A teoria da história de Karl

Marx: uma defesa)1 foi escrita pelo filósofo de origem canadense e naturalizado inglês, Gerald A. Cohen. Em virtude dessa obra, Cohen é considerado, tal como Louis Althusser, na França, o principal filósofo marxista do mundo anglófono, bem como o fundador do marxismo analítico.2 Em 2000, KMTH foi reeditada em uma versão ampliada e revisada. Até o momento, não encontramos traduções dessa obra em francês, alemão ou português.

O debate envolvendo as teses de Cohen, que se sucedeu ao longo das três dé-cadas a partir da publicação de KMTH, está materializado em inúmeros artigos, resenhas e livros. De acordo com Elster, “Por seu livro vigoroso e rigoroso, no qual cada página merece receber comentários acalorados, [Cohen] nos faz penetrar numa paisagem que nós ignorávamos” (Elster, 1981, p.756). Elster chama atenção para o fato de que a filosofia analítica, que se fixa tanto nos Estados Unidos como na Ingla-terra, sobretudo a partir do pós-guerra, não privilegiou o marxismo como objeto de análise. Nesse sentido – e ainda segundo Elster –, a obra de Cohen trouxe novos ares ao marxismo, transformando, assim, a “... atmosfera estagnante das intermináveis discussões escolásticas que estiveram prestes a arruiná-[lo]” (Elster, 1981, p.756).

* Doutoranda em Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas. 1 Doravante referenciada pelas iniciais KMTH. Utilizo nesta apresentação a versão em espanhol,

apesar de referenciá-la com as iniciais do título da versão inglesa. 2 O livro organizado por John E. Roemer (1993) reúne as principais preocupações dos marxistas

analíticos.

CRÍTICA

marxistaDOSSIÊ

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 57Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 57 22/10/2010 15:11:5722/10/2010 15:11:57

Page 58: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

58 • Crítica Marxista, n.31, p.57-61, 2010.

Com efeito, pode-se afirmar que a defesa que Cohen faz do materialismo histórico é considerada original pela esmagadora maioria dos seus interlocuto-res. Isso também se deve à leitura – exegética – que faz do prefácio que Marx escreveu para seu livro: Para uma crítica da economia política, mais conhecido como “Prefácio de 1859”. É esse texto que fundamenta o objetivo de Cohen de “... construir uma teoria da história sustentável que esteja, em geral, de acordo com o que Marx disse sobre o tema” (Cohen, 1986, p.XV).

O leitor encontrará no presente Dossiê um texto de Cohen, no qual o autor debate as principais teses presentes em KMTH. A esse texto, seguem-se dois ar-tigos que dialogam com aspectos-chave da problemática inaugurada por Cohen. Mas antes de passarmos a eles faremos uma breve exposição das teses centrais presentes em KMTH.

Gerald A. Cohen e a defesa do materialismo históricoAs duas principais teses formuladas por Cohen são retiradas do “Prefácio de

1859”.A primeira é a tese segundo a qual as forças produtivas possuem uma tendên-

cia a se desenvolverem ao longo da história, o que Cohen denomina de tese do desenvolvimento. Se “o desenvolvimento das forças produtivas é, sobretudo, um enriquecimento da capacidade de trabalho humana” (Cohen, 1986, p.163), essa progressão nada tem de acidental, mas está fundamentada, diz Cohen, na racio-nalidade e na inteligência humana e na escassez econômica. A segunda tese é a tese da primazia, segundo a qual a natureza das relações de produção é explicada pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas, já que aquelas se adaptam ao desenvolvimento dessas últimas.

Também encontramos em KMTH uma explicação funcional da relação entre base e superestrutura. Cohen define a superestrutura como “... um conjunto de instituições não econômicas entre as quais se destacam o sistema legal e o Estado” (Cohen, 1986, p.238), e seu nexo com a base econômica é assim estabelecido: “... as estruturas legais surgem e desaparecem na medida em que promovem ou frustram certas formas de economia favorecidas pelas forças produtivas” (Cohen, 1986, p.254).

Ao estabelecer uma conexão entre relações de propriedade, relações de pro-dução e forças produtivas, Cohen apresenta uma tese geral, qual seja:

... relações de propriedade determinadas possuem o caráter que possuem em virtude das relações de produção que respaldam as relações de propriedade com esse caráter. [...] as relações de propriedade se transformam para facilitar ou [...] ratificar as transformações das relações de produção. As relações de produção se transformam de modo que as forças produtivas podem ser usadas e/ou devida-mente desenvolvidas e as relações de propriedade se transformam para permitir ou estabilizar as transformações requeridas nas relações de produção (1986, p.249).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 58Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 58 22/10/2010 15:11:5722/10/2010 15:11:57

Page 59: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Apresentação: A teoria da História de Karl Marx: uma defesa, de Gerald A. Cohen • 59

Defrontamo-nos aqui, segundo Elster, com o núcleo duro da interpretação de Cohen do materialismo histórico: a tese da primazia não se traduz em uma “primazia imediatamente causal” das forças produtivas, mas em uma “primazia explicativa”, cujo fundamento é “... a teoria de explicação funcional, segundo a qual pode-se explicar um fenômeno pelos efeitos que ele engendra” (Elster, 1981, p.747).

Uma última observação acerca da primazia explicativa das forças produtivas: ela não elimina da versão de Cohen do materialismo histórico o papel da luta de classes nas transformações sociais. No entanto, a luta de classes não pode ser con-siderada, ressalta o autor, “... a explicação fundamental da mudança social” (Cohen, 1986, p.164), já que “A revolução não consiste em uma alteração das forças pro-dutivas, mas [...] em uma transformação das relações sociais”; por conseguinte, “A função da mudança social revolucionária é desbloquear as forças produtivas” (Cohen, 1986, p.166). A partir dessa explicação, Cohen se coloca a seguinte ques-tão: por que é a classe triunfante que triunfa? “A classe que domina ao longo de um período ou que surge triunfante após um conflito que marca uma época”, ex-plica o autor, “é a classe mais apta, mais capaz e mais disposta para presidir o desenvolvimento das forças produtivas nesse momento” (Cohen, 1986, p.165). Cohen confere, nesse sentido, estatutos diferentes ao papel da racionalidade e da inteligência humanas no desenvolvimento das forças produtivas e na revolução social. Dito de outro modo, se a racionalidade e a inteligên cia humanas fundamen-tam o desenvolvimento das forças produtivas, o autor não confere a estes predica-dos a mesma centralidade na explicação da revolução social. Ainda assim, nesse caso, a coerência dos argumentos que dão corpo à tese da primazia se mantém.

Karl Marx’s Theory of History: três décadas de debateO leitor que se aventurar tanto na leitura de KMTH como dos inúmeros artigos

publicados em virtude dessa obra, poderá constatar que o debate que a cerca não se limitou ao seu primeiro alvo: “... a interpretação da teoria de Marx da história com uma explicação funcional no seu núcleo” (Carling e Wetherly, 2006, p.146). Com efeito, esse debate abrange um importante conjunto de temas próprios à teoria marxista, retomados pelo marxismo analítico (Roemer, 1993).

Contudo, não são os desdobramentos do marxismo analítico e tampouco as preocupações morais da filosofia de Cohen subsequentes às teses desenvolvidas em KMTH3 que constituem o foco deste Dossiê, mas sua tentativa de oferecer uma “versão menos desordenada” do materialismo histórico. O texto de Cohen (1983) que publicamos a seguir, “Forces and relations of production”,4 foi redigido ainda

3 Sobre essa questão em particular, ver a concisa, porém esclarecedora, resenha de Ellen Wood, publicada no site da revista Carta Maior (2010), sobre o último livro de Cohen (2009). Agradeço a Caio Navarro de Toledo pelo envio desse texto.

4 Esse texto foi publicado na forma de capítulo no livro organizado por Betty Matthews (1983) e em Roemer (1993).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 59Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 59 22/10/2010 15:11:5722/10/2010 15:11:57

Page 60: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

60 • Crítica Marxista, n.31, p.57-61, 2010.

sob o impacto do lançamento de KMTH e apresenta uma discussão sobre as teses que tiveram maior repercussão nesse primeiro ciclo de debates.

A defesa de “um materialismo histórico antiquado”, encontrada nas páginas de KMTH, pode sugerir que Cohen tenha se mostrado “imune às correntes do marxismo ocidental” (Apud. Tarrit, 2006, p.42), cuja principal característica, de acordo com Perry Anderson, é a exploração de “questões exclusivamente supe-restruturais” (1977, p.109), “afastadas da infraestrutura econômica” (1977, p.105). No entanto, é possível identificar na versão tecnológica de Cohen do materialismo histórico um diálogo – mesmo que ele não o tenha explicitamente admitido – com essas correntes. É o filósofo Grahame Lock (1988) quem, no primeiro artigo deste Dossiê – “Louis Althusser and G. A. Cohen: a Confrontation” –, explicita as coor-denadas desse diálogo em confronto. Mesmo que Lock considere tanto Althusser como Cohen os dois grandes filósofos do marxismo contemporâneo, isto por si só não justifica a sua empreitada. Lock formula uma instigante hipótese que traz à tona uma nova possibilidade de leitura das teses de Cohen: a de que KMTH teria sido, em algum sentido, uma resposta às teses formuladas por Althusser em Pour Marx e, sobretudo, Lire le Capital.

Tampouco a defesa de “uma concepção tradicional” do materialismo histórico, segundo a qual “a história é, fundamentalmente, o desenvolvimento da capaci-dade produtiva do homem e na qual as formas de sociedade crescem ou decaem na medida em que permitem ou impedem esse desenvolvimento” (Cohen, 1983, p.XVI) pode ser acusada de economicista. Se o marxismo economicista concebe a mudança histórica como um simples reflexo do desenvolvimento autônomo das forças produtivas e da mudança econômica, essa não seria a visão de Cohen, tal como nos mostra o filósofo político Richard W. Miller (1981) em “Productive For-ces and Forces of Change: A Review of Gerald A. Cohen, Karl Marx’s of History: A defense”. A versão particular de Cohen do determinismo tecnológico “... admite que as lutas ideológicas e políticas podem ser essenciais à destruição das velhas relações sociais, embora essas lutas, por sua vez, resultem, em última instância, da obsolescência tecnológica das antigas relações” (Cohen, 1983, p.94). No en-tanto, segundo Miller, Cohen, diferentemente de Marx, desconsidera a ideia de uma causalidade múltipla para explicar o desenvolvimento das forças produtivas.

A publicação deste Dossiê certamente não pretende preencher a imensa lacuna deixada pela inexistência de uma tradução de KMTH para o português. A divulga-ção dos textos que seguem procura, pois – e por meio de um esforço ainda inicial –, incorporar as reflexões acerca da obra de Cohen a um conjunto de discussões concernentes à teoria marxista.

A escolha desses trabalhos procurou, nesse sentido, atender a dois propósi-tos: 1) Proporcionar ao leitor um contato com as principais teses desenvolvidas por Cohen na primeira versão de KMTH e, ao mesmo tempo, 2) Publicizar um debate travado acerca dessas teses, cuja discussão problematiza, por meio de um processo de retificação conceitual, os alcances explicativos dessas formulações,

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 60Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 60 22/10/2010 15:11:5822/10/2010 15:11:58

Page 61: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Apresentação: A teoria da História de Karl Marx: uma defesa, de Gerald A. Cohen • 61

bem como seus limites. Esperamos, assim, poder contribuir para a divulgação, no Brasil, de um debate que, ao menos no que concerne ao mundo acadêmico anglófono, continua vigoroso e rigoroso.

P.S. Em 5 de agosto de 2009, durante o processo final de organização do pre-sente Dossiê, deparamo-nos com a notícia do falecimento, aos 68 anos de idade, de Gerald A. Cohen. Professor, desde 1963, do Departamento de Filosofia na University College London (UCL), é indicado em 1985 à cátedra de Teoria Política do All Souls College, Oxford. Nesse mesmo ano, torna-se membro da Academia Britânica. Cohen atuou como professor convidado em várias universidades no mundo, dentre elas Columbia University. Em 2008, torna-se professor emérito em Oxford e é nomeado “Quain professor” (título de cátedra de certas disciplinas da UCL) de jurisprudência na University College London.

Referências bibliográficasANDERSON, Perry. Sur le marxisme occidental. Paris: François Maspero (“petite col-

lection maspero”), 1977.CARLING, Alan; WETHERLY, Paul. “Introduction: Rethinking Marx and History”. In:

Science & Society. New York: Guilford Press, v.70, n.2, 2006.COHEN, Gerald A. La teoría de la historia de Karl Marx: una defensa. Madrid: Pablo

Iglesias, Siglo XXI de España, 1986.COHEN, Gerard. A. Why Not Socialism?New Jersey: Princeton University Press, 2009.ELSTER, John. “Un marxisme anglais. À propos d’une nouvelle interpretation du maté-

rialisme historique”. In: Annales. Économie, Sociétés, Civilisations. Paris: Armand Colin, v.36, n.5, 1981.

LOCK, Grahame Lock. “Louis Althusser and G. A. Cohen: a Confrontation”. In: Economy and Society. London: Routledge, v.17, n.4, 1988.

MATHEWS, Betty. Marx: A Hundred Years On. London: Laurence & Wishart, 1983, p.111-35.

MILLER, Richard W. “Productive Forces and the Forces of Change: A Review of Gerald A. Cohen. Karl Marx’s Theory of History: a defense”. In: The Philosophical Review. North Carolina: Duke University Press, v.90, n.1, 1981, p.91-117.

ROEMER, John E. Analitycal Marxism. 4.ed. Paris/New York: Maison des Sciences de l’homme/Cambridge University Press, 1993.

. El marxismo: una perspectiva analítica. México: Fundo de Cultura Económica, 1989.

TARRIT, Fabien. “O materialismo histórico de Cohen: um determinismo tecnológico fadado a uma guinada normativa”. In: Outubro. São Paulo: Instituto de Estudos Socialistas, n.14, 2006, p.42.

WOOD, Ellen. “Gerald Cohen: em busca de uma alternativa socialista”. Revista Carta Maior, 13 de abril de 2010. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16528>.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 61Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 61 22/10/2010 15:11:5822/10/2010 15:11:58

Page 62: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 62Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 62 22/10/2010 15:11:5822/10/2010 15:11:58

Page 63: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e relações de produção • 63

Forças produtivas e relações de produção*

GERALD A. COHEN

Na primeira seção deste artigo, apresentarei de forma sucinta a interpretação do materialismo histórico presente no meu livro Karl Marx’s Theory of History (1978).1 Defino e relaciono os conceitos de forças produtivas e relações de pro-dução, defendendo a tese de que as explicações centrais do materialismo histórico são aquelas que vêm sendo chamadas de explicações funcionais. A segunda seção introduz a ideia de que toda história é a história da luta de classes, de acordo com o quadro teórico exposto na primeira seção. A seção 3 constitui um interlúdio pessoal, de acordo com o qual explico a razão pela qual escrevi um livro sobre o materialismo histórico e o que me aconteceu após tê-lo escrito. Na última seção confronto as ambiguidades da noção crucial das relações de produção que entravam as forças de produção e proponho uma versão revisada das formulações centrais do materialismo histórico.2

Uma apresentação do materialismo históricoEm meu livro, postulo que, para Marx a história é, fundamentalmente, o cresci-

mento do poder produtivo humano e que formas de sociedade surgem e desapare-cem conforme possibilitem e promovam ou inibam e dificultem esse crescimento.

* Este ensaio foi originalmente publicado em Mattheus (1983a). Uma parte dele (p.1-16) possui uma versão em espanhol (COHEN, 1989). Na revisão técnica do texto, utilizamos a versão espanhola como uma fonte comparativa. (N. O.)

1 Doravante referenciado como KMTH. 2 As seções I e II apresentam uma versão de certa maneira revisada e ampliada do conteúdo que

também está presente em Cohen (1982a) e (1982b). Agradeço aos editores desses periódicos por me permitirem atualizar aqui o seu conteúdo relevante.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 63Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 63 22/10/2010 15:11:5822/10/2010 15:11:58

Page 64: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

64 • Crítica Marxista, n.31, p.63-82, 2010.

O texto canônico para essa interpretação é o famoso “Prefácio de 1859” para a sua Contribuição à crítica da economia política, do qual em breve analisare-mos algumas passagens. Argumento [na seção 3 do capítulo VI de KMTH] que o Prefácio explicita o ponto de vista de Marx sobre a sociedade e a história, o qual poderá ser encontrado nos seus escritos de maturidade, independentemente de qualquer forma razoável de estipular o momento no qual ele alcançou sua maturidade intelectual. Ao nos dedicarmos ao Prefácio, devemos compreender que não estamos simplesmente analisando um texto entre outros, mas o texto que apresenta com a maior clareza a formulação da teoria do materialismo histórico.

A apresentação da teoria no Prefácio se inicia da seguinte maneira:

... na produção social da sua prórpia existência, os homens entram em relações determinadas, indispensáveis, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado do desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sob a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política...3

Essas sentenças mencionam três conceitos – as forças produtivas, as relações de produção e a superestrutura –, entre os quais se dão certas relações explicativas (indicadas aqui em itálico). Primeiramente, devo dizer o que significam esses conceitos, em minha opinião, para em seguida descrever as relações explicativas entre eles (tudo que segue está fundamentado em KMTH, mas não ofereço no presente ensaio a argumentação completa, o que pode dar ao leitor uma impressão errônea de dogmatismo).

As forças produtivas são as edificações e os meios utilizados no processo de produção: meios de produção, de um lado, e força de trabalho, de outro. Os meios de produção são recursos produtivos físicos: ferramentas, maquinaria, matéria--prima, espaço físico etc. A força de trabalho inclui não apenas a força física dos produtores, mas também suas habilidades e seu conhecimento técnico (que eles necessariamente não dominam), aplicados quando trabalham. Marx diz – e estou de acordo com ele – que esta dimensão subjetiva das forças produtivas é mais importante do que a dimensão objetiva ou dos meios de produção; e, no interior da dimensão mais importante, a parte mais apta ao desenvolvimento é o conhecimento. Logo, em seus estágios posteriores, o desenvolvimento das forças produtivas é, em grande medida, uma função do desenvolvimento produtivamente útil da ciência.

Observem que Marx pressupõe no Prefácio algo que ele afirmará abertamente em outros textos: que “existe um contínuo movimento de crescimento das forças

3 Prefácio à Contribuição para a crítica da economia política, várias edições, itálicos meus. [Nota da Organizadora]: a tradução baseou-se, para fins comparativos, na seguinte versão em português do “Prefácio de 1859” (1982, p.82-3).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 64Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 64 22/10/2010 15:11:5822/10/2010 15:11:58

Page 65: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e relações de produção • 65

produtivas” (1976, p.166). Argumento (na seção 6 do cap. II de KMTH) que o padrão relevante para medir esse crescimento deve ser quanto (ou, melhor dizen-do, o quão pouco) trabalho deve ser gasto com dadas forças para produzir o que é exigido para a satisfação das necessidades físicas iniludíveis dos produtores imediatos.4 Esse critério de produtividade social é menos ambíguo do que outros que podem ocorrer, mas a razão decisiva para escolhê-lo não é a sua relativa cla-reza, e sim a sua adequação teórica: se as relações de produção correspondem, como afirma a teoria, aos níveis de desenvolvimento do poder produtivo, então esse modo de medir o poder produtivo torna a tese da correspondência formulada nessa teoria mais plausível.5

Não estou afirmando que a única característica explicativa do poder produti-vo esteja relacionada à sua quantidade: as características qualitativas das forças produtivas também ajudam a explicar o caráter das relações de produção. Meu argumento é que, à medida que a quantidade do poder produtivo é o que importa, a quantidade-chave é a quantidade de tempo gasto para (re)produzir os produtores, ou seja, para produzir o que eles devem consumir para poderem continuar traba-lhando (em oposição ao que eles verdadeiramente consomem, o que geralmente – e cada vez mais na sociedade capitalista contemporânea – ultrapassa o que eles devem consumir). É a quantidade de tempo disponível para além do trabalho requerido ou trabalho excedente6 (o qual se reduz pela história), o que resulta tão determinante para a forma do segundo conceito que devemos descrever: as relações de produção.

As relações de produção são relações de poder econômico7 sobre a força de trabalho e os meios de produção, de cujo privilégio alguns gozam, enquanto os demais carecem. Em uma sociedade capitalista, as relações de produção incluem o poder econômico que os capitalistas detêm sobre os meios de produção, o po-der econômico que os trabalhadores (ao contrário dos escravos) possuem sobre sua própria força de trabalho e a ausência de poder econômico dos trabalhadores sobre os meios de produção. Os produtores imediatos podem não possuir poder econômico, possuir algum poder econômico ou possuir total poder econômico sobre a sua própria força de trabalho e sobre os meios de produção que utilizam. Se nos permitirmos um grau de idealização, podemos construir um quadro que

4 Ao contrário, por exemplo, de suas necessidades socialmente desenvolvidas, que não precisam ser mencionadas neste contexto.

5 Para um conjunto de correspondências entre relações de produção e forças de produção, ver Cohen (1978, p.198).

6 Este não é o conceito de excedente mais importante no marxismo, mas o utilizo aqui por se tratar de um conceito sobre algo puramente material e porque concebo o materialismo histórico como uma tentativa de explicar o social por meio da referência ao material: ver Cohen (1978, p.61; 98) e Cap. IV, passim, para uma defesa da distinção entre as propriedades sociais e materiais da sociedade.

7 Chamo tal poder de “econômico”, em virtude de que é poder sobre e independentemente dos meios de obtenção, de manutenção ou de exercício do poder, que não é necessariamente econômico (Cohen, 1978, p.223-4).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 65Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 65 22/10/2010 15:11:5822/10/2010 15:11:58

Page 66: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

66 • Crítica Marxista, n.31, p.63-82, 2010.

distinga de forma bastante clara as relações de produção dos produtores imediatos historicamente importantes:

Quantidade de poder econômico sobreSua força de trabalho Os meios de produção empregados

ESCRAVO nenhum nenhumSERVO algum algumPROLETÁRIO total nenhumINDEPENDENTE total total

O quadro mostra três produtores subordinados e um independente. Posto que qualquer podutor pode ter algum, nenhum ou total poder econômico sobre sua força de trabalho e sobre os meios de produção em cada situação apresentada, há um total de nove casos a considerar. Penso ser diagnosticavelmente proveitoso inquirir quais dos cinco casos restantes são lógicos ou, de outra forma, possíveis, bem como quais deles são verificáveis. No entanto, não entrarei aqui nessa dis-cussão (Cohen, 1978, p.66-9).

A soma total das relações de produção em determinada sociedade constitui sua estrutura econômica, que também é chamada – em relação à superestrutura – de base ou fundação. Portanto, a estrutura econômica ou base está formada unica-mente por relações de produção: ela não inclui as forças produtivas. É certo que a exclusão das forças produtivas da estrutura econômica contraria a ideia estrutural comum em Marx;8 no entanto, ele afirmou, na realidade, que a estrutura econô-mica está constituída pelas relações de produção, aportando razões sistemáticas para demonstrá-lo (Cohen, 1978, p.29-39). Muitos erroneamente supõem que as forças produtivas pertencem à base econômica, por presumirem que a importância explicativa das forças produtivas assegura sua participação na base. Mas, mesmo que as forças produtivas possuam de fato essa importância, elas não fazem parte da base econômica, já que não são fenômenos econômicos.9 Permanecendo na metáfora espacial, as forças produtivas se encontram abaixo da fundação econô-mica: constituem o solo sobre o qual esta se localiza.10

O Prefácio assinala que os elementos da superestrutura são jurídicos e políticos. Logo, ela inclui as instituições legais e estatais da sociedade. Normalmente, outras instituições também são alocadas na superestrutura e, por isso, a especificação dos seus limites corretos provoca controvérsias: em minha opinião, existem fortes razões textuais e sistemáticas para supor que a superestrutura é bem menor do que

8 Ver Cohen (1978, p.29), nota 2, para uma lista de autores que partem do pressuposto de que as forças produtivas pertencem à estrutura econômica.

9 Ver Cohen (1978), cap. IV, seção (1). 10 Ver Cohen (1978, p.30) para uma distinção entre as bases materiais e econômicas da sociedade:

as forças produtivas pertencem às primeiras e não fazem parte, portanto, das segundas.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 66Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 66 22/10/2010 15:11:5822/10/2010 15:11:58

Page 67: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e relações de produção • 67

muitos autores pensam.11 Certamente, é falso que cada um dos fenômenos sociais não econômicos seja superestrutural; por exemplo, é possível demonstrar que, para Marx, a criação artística como tal não é parte da superestrutura. Discutirei nestas linhas apenas a ordem jurídica, que, indubitavelmente, faz parte da superestrutura.

Por enquanto, isso basta para analisar a identidade dos três conceitos mencio-nados no Prefácio. Afirma-se que as relações de produção correspondem ao nível do desenvolvimento das forças produtivas e que são, por sua vez, a fundação sobre a qual se erige a superestrutura. Estou convencido de que essas sejam maneiras de ressaltar que o nível de desenvolvimento das forças produtivas explica a natureza das relações de produção, que, por sua vez, explicam as características da supe-restrutura que lhe corresponde. Mas, qual tipo de explicação se dá aqui? Defendo que o que se observa em ambos os casos é uma espécie de explicação funcional.

O que é uma explicação funcional? Podemos dar dois exemplos: “Os pássaros possuem uma estrutura óssea oca porque os ossos ocos facilitam o voo” e “As fábricas de sapato operam em grande escala em virtude das economias que elas acarretam”. Em cada caso, algo (o fato de que os pássaros possuem uma estrutura óssea oca ou de que as fábricas de sapato operam em grande escala) que possui certo efeito (facilidade de voo, economias de escala) é explicado pelo fato de que esse algo causa o referido efeito.

Mas devemos ser mais precisos.12 Suponhamos que e é uma causa e f o seu efeito e que nos é dada uma explicação funcional de e nos termos do seu efeito. Observem que a forma da explicação não seria: e ocorreu porque f ocorreu. Se essa fosse a sua forma, a explicação funcional seria o exato oposto da explicação causal comum e possuiria o defeito fatal de representar uma ocorrência posterior, mediante a explicação de uma anterior. Tampouco podemos dizer que a forma da explicação é “e ocorreu porque causou f ”. Restrições semelhantes relacionadas à explicação e à ordem temporal eliminam esse candidato: quando e causou f, e já havia ocorrido, de modo que o fato de ter causado f não pode explicar sua ocor-rência. O único candidato que resta é: e ocorreu porque ele causaria f ou, de modo menos abreviado – no entanto, mais apropriado – e ocorreu porque a situação era tal que um evento como e poderia causar um evento como f.

Se essa interpretação sobre o que são as explicações funcionais estiver correta, então as principais teses explicativas do materialismo histórico são explicações funcionais, e pela seguinte razão: Marx nunca negou – e às vezes afirmou – que as superestruturas mantêm as bases unidas e que as relações de produção controlam o desenvolvimento das forças produtivas. Entretanto, ele sustentou que o caráter da superestrutura é explicado pela natureza da sua base e que esta última é expli-

11 Critico (Cohen, 1981) a prática comum de sobrepovoamento da superestrutura em uma resenha do livro de Melvin Rader (1979).

12 Mas não tão preciso como nas seções 4 e 7 do cap. IX e na seção 2 do cap. X de KMTH, onde a es-trutura da explicação funcional é descrita detalhadamente. Sobre as dúvidas recentes em torno desses problemas, que não abordei para não complicar a presente exposição, ver Cohen (1982b, p.35-6).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 67Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 67 22/10/2010 15:11:5822/10/2010 15:11:58

Page 68: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

68 • Crítica Marxista, n.31, p.63-82, 2010.

cada pela natureza das forças produtivas. Se tais explicações são funcionais, há consistência entre o efeito de A sobre B e da explicação de A por B. Desconheço qualquer outra maneira de tornar o materialismo histórico consistente.

Passarei agora à exposição pormenorizada de uma das duas teses explicativas em termos funcionais: a que se ocupa da base e da superestrutura.

Como todos lembram, a base é a soma total das relações de produção, que são as relações de poder econômico sobre a força de trabalho e sobre os meios de produção. O controle do capitalista sobre os meios de produção é um exemplo. Por sua vez, a superestrutura, como vimos, é constituída por mais de um compo-nente. Saber exatamente quais são os seus elementos é algo incerto, mas o que se pode dizer certamente é que um deles, bona fide, é o sistema jurídico, do qual nos ocuparemos aqui.

Em uma sociedade capitalista, os capitalistas têm poder efetivo sobre os meios de produção. O que confere esse poder a um capitalista determinado, di-gamos, a um dono de fábrica? Com o que pode contar, se outros tentarem tomar o controle da fábrica de suas mãos? Uma parte importante da resposta é esta: ele pode contar com a lei sobre a propriedade, que é reforçada pelo poder do Estado. A razão do poder econômico do capitalista é o seu poder legal. O que ele pode efetivamente fazer depende do que tem direito legal a fazer. E essa é a regra geral de uma sociedade que segue estritamente as leis, com respeito a todos os poderes e agentes econômicos. Portanto, é possível afirmar que em sociedades apegadas às suas leis, as pessoas possuem o poder econômico que possuem por terem os direitos legais que têm.

Isso parece refutar a doutrina da base e superestrutura, pois, nesse caso, as condições superestruturais – os direitos legais que as pessoas possuem – deter-minam condições fundamentais – quais são os seus poderes econômicos. Mas, apesar dessa aparente refutação, a superestrutura não pode ser negada. De fato a refutaria – e não somente pareceria refutá-la –, contudo, se não fosse possível e, portanto, obrigatório (para os materialistas históricos) apresentar a doutrina da base e da superestrutura como um exemplo de explicação funcional. Pode-se adicionar à verdade inegável, enfatizada anteriormente, a tese de que um capi-talista determinado goza do direito estabelecido, porque esse direito pertence a uma estrutura de direitos, uma estrutura que prevalece por sustentar uma estrutura análoga de poder econômico. O conteúdo do sistema legal é explicado pela sua função, que é ajudar a manter uma economia de tipo específico. Geralmente, as pessoas obtêm seus poderes dos seus direitos, mas de um modo que não apenas é permitido, e sim exigido pela forma com a qual o materialismo histórico explica os direitos superestruturais, mediante a referência aos poderes fundamentais. Por-tanto, o efeito da lei da propriedade sobre a economia não é, como frequentemente se supõe, um problema constrangedor para o materialismo histórico. É algo que o materialismo histórico considera necessário enfatizar, em virtude do seu modo particular de explicar a lei nos termos das condições econômicas.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 68Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 68 22/10/2010 15:11:5822/10/2010 15:11:58

Page 69: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e relações de produção • 69

As estruturas legais surgem e desaparecem conforme mantenham ou frustrem formas de economia que, devo acrescentar, promovem o desenvolvimento das forças produtivas. Esse adendo pressupõe uma explicação de por que qualquer estrutura econômica obtém, em um tempo determinado, precisamente o que obtém nesse tempo. Uma vez mais, a explicação é funcional: as relações de produção predominantes prevalecem porque elas são relações que promovem o desenvolvimento das forças produtivas. O nível existente de poder produtivo determina quais relações de produção surgirão neste nível e quais relações desse tipo consequentemente se obtêm. Em outras palavras: se se obtêm relações de produção de tipo R, isso acontece porque relações de tipo R são adequadas para o desenvolvimento das forças produtivas, em virtude do seu nível existente de desenvolvimento: essa é a forma canônica de explicação no caso padrão. Porém, também é preciso mencionar o caso da transição, no qual as relações de produção não são adequadas ao desenvolvimento das forças, mas, ao contrário, entravam--nas. Nos casos de transição, as relações de produção prevalecentes predominam porque até recentemente eram adequadas ao desenvolvimento das forças. A classe que as referidas relações fortalecem controla-as para manter o controle, a despeito de não serem mais adequadas: em virtude do interesse que as classes poderosas possuem na manutenção de relações obsoletas, não é factível esperar a sua subs-tituição imediata por novas relações de produção mais adequadas. As pessoas não se precipitam à lixeira da história tão logo tenham cumprido seu papel histórico.

Sendo assim, como 1) o nível de desenvolvimento do poder produtivo deter-mina quais relações de produção (isto é, que tipo de estrutura econômica) promo-veriam o poder produtivo, e 2) as relações de produção que promovem o poder produtivo prevalecem por promover o poder produtivo, segue-se que 3) o nível de desenvolvimento do poder produtivo explica a natureza da estrutura econômica.

O enunciado 3) confere primazia explicativa às forças produtivas. Já 2) não garante por si só essa primazia, pois é consistente, por exemplo, com o fato de 4) que a ideologia dominante determina quais relações de produção promoveriam o poder produtivo, e se 4) é verdadeiro, então 3) é falso.

Estou em débito com Philippe Van Parijs por sua lúcida insistência de que a tese da primazia das forças produtivas [ou seja, 3)] exige que, tanto 1), quanto 2) sejam verdadeiros. Ele corretamente salientou13 que certas formulações de KMTH (por exemplo, na p.162) conduzem à falsa ideia de que 2), por si só, asseguraria a primazia explicativa das forças produtivas. Outras formulações (por exemplo, na p.160) confirmam a conjunção exigida para uma alegação de primazia; mas foi Van Parijs quem me chamou a atenção para a diferença entre minhas formulações consistentes e insatisfatórias.

13 Em conversas particulares e recentemente em Cohen (1983b) aceito as críticas de Van Parijs à minha ambiguidade e pretendo eliminá-la, mas rejeito inteiramente suas críticas mais substanciais sobre o assunto. Ver Cohen (1993) publicado pela revista Analyse und Kritik, que também contém uma tradução alemã do ensaio de Van Parijs.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 69Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 69 22/10/2010 15:11:5822/10/2010 15:11:58

Page 70: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

70 • Crítica Marxista, n.31, p.63-82, 2010.

Mas dizer que A explica B não necessariamente esclarece como A explica B. A criança que sabe que o fósforo pegou fogo porque ele foi aceso pode não saber como o último evento explica o primeiro, posto que ignora a relação entre fricção e calor, a contribuição do oxigênio para a combustão etc. Em linguagem mais simples, ela pode não conhecer o mecanismo que liga causa e efeito ou, como prefiro dizer, pode não ser capaz de elaborar a explicação. No que se refere ao sentido relevante do “como”, é necessário responder às seguintes perguntas: Como a estrutura econômica, que promove o desenvolvimento das forças produtivas, explica o caráter da estrutura econômica? E como o fato de que a superestrutura protege a base explica o caráter da superestrutura? Recordemos a explicação funcional da estrutura óssea oca dos pássaros: quando corretamente se diz que os pássaros têm ossos ocos porque essa característica é útil para o voo, não se está afirmando como essa utilidade determina o surgimento e/ou a persistência. A essa pergunta Lamarck deu uma resposta inaceitável e Darwin uma excelente. Às perguntas correspondentes sobre as explicações de grande escala nos termos de economias de escala determinadas, é possível responder referindo-se aos objetivos humanos conscientes, a um análogo econômico da possibilidade da variação e da seleção natural, ou a uma mescla das duas (Cohen, 1978, p.287-9). Porém, nin-guém ofereceu boas respostas a semelhantes perguntas (referidas anteriormente em itálico) sobre o materialismo histórico. No capítulo X de KMTH, ofereço algumas respostas não muito satisfatórias. Este me parece ser um importante campo de investigação futura para os materialistas históricos, já que o construto funcional da sua doutrina não pode ser evitado.14

Permitam-me resumir o argumento da tese de que as principais afirmações explicativas do materialismo histórico são funcionais na forma. Essas afirma-ções explicam que: 3) o nível de desenvolvimento do poder produtivo explica a natureza da estrutura econômica e 5) a estrutura econômica explica a natureza da superestrutura.

Considero 3) e 5) explicações funcionais, já que de outro modo seria impos-sível conciliá-las com as seguintes teses marxianas: 6) a estrutura econômica promove o desenvolvimento das forças produtivas e 7) a superestrutura estabiliza a estrutura econômica.

Os enunciados 6) e 7) pressupõem que a estrutura econômica é funcional para o desenvolvimento das forças produtivas e que a superestrutura é funcional para a estabilidade da estrutura econômica. Essas afirmações, por si só, não pressupõem que as estruturas econômicas e as superestruturas sejam explicadas pelas referidas funções: A pode ser funcional para B, mesmo se for falso que A exista porque é funcional para B. Mas 6) e 7), em conjunção com 3) e 5), forçam-nos a tratar a explicação histórico-materialista como funcional. Nenhum outro tratamento

14 Sobre um valioso trabalho recente acerca do problema do mecanismo na explicação funcional, ver Parijis (1981).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 70Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 70 22/10/2010 15:11:5822/10/2010 15:11:58

Page 71: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e relações de produção • 71

mantém a consistência entre a primazia explicativa das forças produtivas sobre a estrutura econômica e o controle massivo desta última sobre as primeiras ou entre a primazia explicativa da estrutura econômica sobre a superestrutura, bem como a regulação desta sobre aquela.

Sustento que as explicações centrais do materialismo histórico são funcionais e defendo a explicação funcional como um método explicativo válido; entretan-to, não apoio a descuidada teorização da explicação funcional, da qual muitos marxistas tomaram parte.15

Muitos dos empregos marxistas da explicação funcional falharam em satisfazer até mesmo o requisito preliminar de demonstrar que A é funcional para B [seja ou não este explicado por sua(s) função(ões)]. Tomemos como exemplo a afirmação de que as funções do Estado capitalista contemporâneo existem para proteger e sustentar o sistema capitalista. A legislação e a política, em interesse direto da classe capitalista, podem muito bem ser consideradas como exemplos que confir-mam essa tese. Mas o que dizer de tantos contraexemplos, como o planejamento de bem-estar social e as imunidades legais de que os sindicatos gozam? Esses contraexemplos também poderiam ser funcionais para o capitalismo de um modo indireto, mas isso é algo que deve ser debatido com cuidado e não simplesmente afirmado. Entretanto, aqueles que sustentam a afirmação geral sobre o Estado raramente se preocupam em indicar qual tipo de evidência a falsificaria ou a enfraqueceria e, por isso, qualquer ação do Estado é tratada como confirmatória, posto que sempre existe alguma maneira legítima ou espúria, por meio da qual a ação pode se apresentar como funcional.

Além disso, a indisciplina metodológica é intensificada quando, uma vez satis-feito com a afirmação de que a política do Estado é funcional, o teórico também a trata, sem mais argumentos, como funcionalmente explicada. Este teórico procede a partir de “A é funcional para B” para chegar a “B explica funcionalmente A”, sem se colocar qualquer exigência para justificar este passo – se é que ele se deu conta de que saltou de uma posição para outra, distinta e mais forte.

O lugar da luta de classes“A história de todas as sociedades até os nossos dias”, diz o Manifesto Co-

munista, “é a história das lutas de classe” (1976, p.482). Porém, a luta de classe praticamente não foi mencionada na discussão que precede o materialismo his-tórico. Um crítico poderia dizer, portanto, que Marx possui mais de uma teoria da história ou que interpretei mal suas ideias.

Uma possível resposta seria reduzir o valor teórico da passagem citada, res-saltando seu papel político como a primeira sentença do corpo principal de um

15 Para uma lista impressionante de usos metodologicamente suspeitos da explanação funcional, ver Elster (1982).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 71Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 71 22/10/2010 15:11:5822/10/2010 15:11:58

Page 72: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

72 • Crítica Marxista, n.31, p.63-82, 2010.

texto insurrecional. Porém, prefiro deixar a sentença intacta e assimilá-la, já que não quero negar que toda a história é a história da luta de classes.

Por que, então, a luta de classes recebeu tão pouca atenção na primeira seção deste texto? Porque a referida seção se dedicou às explicações fundamentais do curso da história e da estrutura da sociedade, não às explicações dos principais acontecimentos desse curso e tampouco à explicação do relevo da sociedade, onde a luta de classes é bastante importante.

Existem duas maneiras de aceitar a frase do Manifesto sem sacrificar a teoria da seção I. A primeira, e menos interessante, é aceitá-la dizendo que há sempre uma luta de classes que está acontecendo. De acordo com essa linha de argu-mentação, pode-se afirmar que toda história é a história da luta de classes, sem sugerir com isso que esta seja toda a história, ou mesmo que esta seja o que mais fundamentalmente é a história.

A segunda maneira, no sentido mais importante de interpretar a frase de que toda história é a história da luta de classes, considera que todas as mudanças históricas fundamentais são causadas pela luta de classe. Essa visão é inclu-sive consistente com o princípio da seção I, pois (assim afirma o materialismo histórico), se queremos saber por que a luta de classes produz esta mudança em vez daquela, devemos nos voltar à dialética entre forças produtivas e relações de produção que governa o comportamento de classe, dialética que não pode ser explicada nos termos deste comportamento e que determina qual será o resultado da luta de classes no longo prazo.

Outros elementos além das forças produtivas e das relações de produção, tais como as estruturas interacionais estudadas pela teoria dos jogos,16 ajudam a explicar as vicissitudes da luta de classes e as estratégias nela utilizadas, mas não podem dar uma resposta marxista à questão de por que as guerras de classes (em oposi-ção às batalhas) são decididas de uma maneira e não de outra. Marx encontra a resposta na natureza das forças produtivas: “As condições nas quais determinadas forças produtivas podem ser empregadas são as condições de dominação de uma determinada classe da sociedade”. A classe que domina durante um período, ou que emerge triunfante de uma época de conflitos, é a classe mais bem adaptada, mais capaz e disposta para dirigir o desenvolvimento das forças produtivas em um período determinado.17 Essa resposta pode ser insustentável, mas não pude conceber uma alternativa que pudesse ser qualificada como materialista histórica. Além disso, trata-se de uma resposta que Marx não somente estabelece quando generaliza a história, mas que aplica a casos, como mostra o exemplo a seguir:

16 Embora Jon Elster me tenha persuadido sobre a suprema relevância da teoria dos jogos para certas preocupações marxistas, nego-me a aceitar que essa teoria possa substituir, ou mesmo complementar, a explicação funcional medular do materialismo histórico: ver o simpósio Theory and Society, ao qual os textos mencionados nas notas 2 e 15 se referem.

17 A citação é de Marx (1965, p.85) e as frases que a precedem e a seguem são de KMTH (Cohen, 1978, p.149), que contém uma discussão mais ampla e referências textuais adicionais.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 72Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 72 22/10/2010 15:11:5822/10/2010 15:11:58

Page 73: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e relações de produção • 73

Se o proletariado derrocar o domínio político da burguesia, sua vitória será apenas temporária [...] enquanto as condições materiais ainda não tiverem sido criadas para tornar necessária a abolição do modo burguês de produção (1976, p.319).18

Observa-se que Marx não escreve “tornar possível”, mas “tornar necessária”, uma frase que, mais do que a primeira formulação, limita o que pode ser decidido de maneira independente pela luta de classes. O Manifesto Comunista tem frases semelhantes19 e, portanto, não pode estar inscrito em uma perspectiva não marxista que toda história seja, em última análise, explicada pela luta de classes.

Continuando a polêmica de que o marxismo deveria abandonar a explicação funcional e aderir à teoria dos jogos, Jon Elster afirma que “a teoria dos jogos é inestimável para qualquer análise do processo histórico que se centre na explora-ção, na luta, nas alianças e na revolução” (1982). Mas, para a análise marxiana, esses fenômenos não são primários, mas – como de fato são – imediatamente secundários na periferia do ponto essencial: eles estão entre “as formas por meio das quais os homens se tornam conscientes do conflito [entre as forças produti-vas e as relações de produção] e o resolvem” (Marx, 1982). Em outras palavras, podemos dizer que os elementos enumerados por Elster são as ações no centro do processo histórico; entretanto, para o marxismo também existem elementos mais fundamentais que as ações no seu próprio centro.

Com o termo “revolução”, Elster deve ter se referido ao fenômeno político de transferir o poder do Estado, em oposição à transformação da estrutura econômica que a revolução política inicia ou reflete. Diversos fatos sobre as revoluções po-líticas são acessíveis à explicação da teoria dos jogos, mas não os fatos histórico--mundiais em que houve uma revolução burguesa e em que haverá uma proletária.

Enquanto me dou conta de que insisto numa leitura “fundamentalista” do materialismo histórico, Richard Miller ressalta que “Cohen [...] admite que a luta política e ideológica pode ser essencial para a destruição das relações sociais anteriores” (1981, p.94).20 De fato, estou pronto para ir mais adiante. Não quero negar que a luta de classes é, sempre, essencial para a transformação social. Minha posição não me impede de aceitar a afirmação de Marx e Engels de que

18 Ver Allen Wood (1981, p.250 [41]), para uma lista dos textos que contêm uma mensagem similar. 19 Segundo o Manifesto, a “dominação econômica e política da classe burguesa” resultou do fato de

que as relações de produção feudais haviam se tornado um entrave para o progresso produtivo e que, portanto, “tinham que ser destruídas” (Marx e Engels, 1976, p.489).

20 Entretanto, Miller parece considerar que meu ponto de vista sobre esse aspecto é um elemento extra, opcional e arbitrário, “facilmente separável” de uma teoria que dá primazia ao desenvolvimento das forças produtivas, pois tal teoria “sugeriria a eficácia de uma alternativa à revolução na qual a mudança é causada por apelos às aspirações materiais comuns a todas as classes”, (Miller, 1984). Essa visão surpreendentemente pressupõe que os interesses materiais da humanidade não poderiam entrar em conflito com os interesses materiais das pessoas das classes dominantes. De minha parte, não acredito que no socialismo as pessoas serão tão ricas quanto Rockefeller e, portanto, suponho que Rockefeller seja hostil à ideia do socialismo.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 73Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 73 22/10/2010 15:11:5822/10/2010 15:11:58

Page 74: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

74 • Crítica Marxista, n.31, p.63-82, 2010.

a luta de classes é o motor imediato da história”.21 Pelo contrário, é o princípio exposto na primeira parte deste ensaio que esclarece a ocorrência, de outro modo enigmática, da palavra “imediato” nessa importante sentença. “Imediato” é o oposto de “subjacente”.

O leitor então poderá concordar que a seguinte caracterização dos meus pontos de vista os distorcem:

Cohen [...] parece comprometido com a visão de que o tipo de atividade humana capaz de realizar a transformação social haveria de ser não a atividade política consciente, mas a atividade técnica e científica: a invenção de uma nova tecnologia, tendo como seu subproduto inconsciente o surgimento de novas relações sociais (Norman, 1980, p.6).

Não vejo como alguém pode extrair do meu livro uma negação de que a ati-vidade política consciente produz a transformação social. Como uma explicação acerca de por que a política produz determinada mudança social em vez de outra pode levar a uma negação de que a política produz uma mudança social? Marx não contradisse o que afirmo ser sua teoria quando evocou os trabalhadores, e não os técnicos e os cientistas, para revolucionar a sociedade. Ao encorajar os trabalhadores a realizarem a trasformação social, ele não pediu que realizassem aquilo que explica o porquê dessa luta: o esgotamento da capacidade da ordem capitalista e a disponibilidade de poder produtivo suficiente para instaurar uma ordem socialista.

Admiti que não possuo uma boa resposta para a questão de como as forças produtivas selecionam as estruturas econômicas que promovem o seu desen-volvimento. Podemos certamente dizer que o ajuste das relações de produção às forças produtivas ocorre por meio da luta de classe. Mas esta não é uma res-posta inteiramente satisfatória, já que não especifica a filiação, ou filiações, da contradição entre forças produtivas e relações de produção à luta de classes que supostamente a resolveria. O que ativa a nova classe que se avizinha? O que lhe garante a vitória? Essas são as questões que merecem atenção, não somente em nome de uma boa teoria.22

Interlúdio pessoalEste volume comemora o contínuo vigor da tradição marxista e sinto-me

honrado pelo fato de o editor ter me permitido discutir aqui minha interpretação

21 Essa afirmação encontra-se na carta de 17-18/9, 1879 a Bebel, Liebknecht e Bracke (Marx e Engels, 1975, p.307). (A palavra traduzida como “imediato” é “nächste”.)

22 Para boas críticas sobre meu modo de lidar com essas questões, ver Jon Elster (1980, p.24), Andrew Levine e Erik Wright (1980, p.58-s) e Joshua Cohen (1982, p.266-s).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 74Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 74 22/10/2010 15:11:5822/10/2010 15:11:58

Page 75: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e relações de produção • 75

do materialismo histórico. Gostaria de descrever, muito brevemente, como surgiu minha lealdade ao marxismo.

Meus pais eram operários judeus em Montreal. Eles se conheceram durante as lutas pela construção do sindicalismo nas fábricas de tecidos, desafiando a re-pressão (literalmente) brutal dos patrões e da polícia. Aos quatro anos de idade, fui matriculado na Escola Judaica Morris Winchewsky, dirigida por uma organização judaica comunista. Essa foi a única escola que frequentei até os 11 anos, quando os ataques do esquadrão antissubversivo da polícia da Província de Quebec à sede da organização e à própria escola impossibilitaram que ela continuasse funcionando (isso ocorreu em 1952 e os ataques foram parte da contribuição particular dos habitantes de Quebec aos esforços da Guerra Fria, em curso na América do Norte).

Esse contexto fez que eu me familiarizasse muito cedo com os rudimentos das ideias marxistas. Nesse sentido, quando ingressei no curso de graduação da Universidade McGill, já havia lido – apesar da compreensão imperfeita – uma quantidade do que por vezes denominam-se “clássicos”. Aos 17 anos, estava convencido de que o Anti-Dühring de Engels continha toda a verdade filosófica existente. Mais tarde, pude perceber suas limitações e hoje considero suas partes filosóficas – ao contrário da sua teoria social – bastante ingênuas. Meu compro-misso com o materialismo histórico se tornou mais duradouro e minha intenção sempre foi a de explicá-lo e defendê-lo da melhor forma possível. Foi por isso que acabei escrevendo um livro, cujas linhas mestras descrevi na seção I deste ensaio.

O trabalho de escrita do livro foi extenuante, já que ele teve de ser escrito a partir, digamos, de um duplo objetivo: por se tratar de uma defesa – e uma defesa de Marx –, praticamente cada uma de suas afirmações23 tinha de ser atribuível a Marx de maneira plausível, bem como plausível por seus próprios méritos.

Quando terminei de escrevê-lo, algo inesperado aconteceu. Senti algo que não planejei conscientemente durante sua concepção e escrita: que o escrevera como um pagamento pelo que havia recebido. O livro refletia minha gratidão aos meus pais, à escola na qual estudei e à comunidade comunista onde cresci. Era minha homenagem ao meio no qual aprendi o marxismo franco defendido em KMTH. Entretanto, agora o livro está escrito, a dívida paga e eu não sinto mais a necessidade de ajustar meu pensamento ao de Marx. Pela primeira vez, senti que podia pensar inteiramente por mim mesmo. Isso não significa que de imediato parei de acreditar no que defendi no livro, mas que não tinha mais de acreditar.

Nos cinco anos que se passaram desde que KMTH foi submetido à editora, passei a pensar mais criticamente a respeito do materialismo histórico. Não o rejeitei, mas venho tendo dúvidas sobre ele (Cohen, 1983d).24 Também venho me envolvendo com muitos outros autores em investigações que procuram pre-servar o que é bom no materialismo histórico e eliminar o que é ruim. As notas

23 As exceções são apontadas no final da Introdução da edição de bolso. 24 O referido ensaio também pode ser encontrado na segunda edição de KMTH, 2000. (N. O.)

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 75Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 75 22/10/2010 15:11:5822/10/2010 15:11:58

Page 76: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

76 • Crítica Marxista, n.31, p.63-82, 2010.

exploratórias que se seguem constituem uma contribuição a esse processo coletivo de reavaliação.

EntraveEncontrei uma boa dose de ambiguidade em afirmações tradicionais do

materialismo histórico, e boa parte de KMTH é um exercício de resolução dessa ambiguidade. No entanto, tomei consciência, em parte em virtude da grande quan-tidade de críticas perspicazes que recebi, que o livro contém mais ambiguidades do que aquelas que dissipa.

Como ressaltou Richard Miller (1981, p.96-7),25 há em meu livro uma im-portante hesitação entre concepções contrastantes sobre os modos pelos quais as relações de produção entravam as forças produtivas, concepções que, de acordo com Miller, podemos denominar de Estagnação Absoluta e Inferioridade Relativa. Na concepção Absoluta, as relações de entrave impedem qualquer crescimento ulterior na produtividade. Na concepção Relativa, isso pode ou não acontecer e não há razão para considerar que em geral isso ocorre, já que na concepção Relativa haveria entrave quando diferentes relações de produção possíveis desenvolvessem mais rapidamente as forças produtivas, e não apenas temporariamente, mas durante um período de tempo considerável. Na concepção Relativa, é suficiente para o entrave que as relações de produção existentes não sejam utilizadas no máximo do seu potencial para o desenvolvimento futuro e duradouro26 das forças produtivas.

É natural que neste ponto se tente escolher uma dentre as duas concepções; no entanto, como veremos, é difícil favorecer uma delas. Uma concepção adequada do entrave deve obedecer a duas restrições, impostas pelo “Prefácio de 1859” na parte em que o entrave é descrito:

Em certa fase de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes [...] De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações convertem-se em seus entraves. Abre-se, então, uma era de revolução social.

As duas primeiras sentenças especificam o que se pode chamar de restrição da previsibilidade: deve ser plausível supor que, sob o desenvolvimento contínuo

25 A referência de Miller à p.175 de KMTH é bastante reveladora. 26 Mas de quanto tempo futuro estamos falando? Um tempo longo o suficiente para demonstrar

a inferioridade das relações, cuja superioridade é apenas efêmera; mas não é preciso que esse tempo futuro seja o mais longo possível, aquele que levaria à produção massivamente excedente, geralmente associada ao comunismo (Cohen, 1978, p.198). Receio não poder ser mais preciso no momento. De um ponto de vista lógico, é possível que relações ótimas se revelem imperfeitas com o tempo, ou mesmo, se levarmos em conta todas as possibilidades lógicas, que se revelem desastrosas num futuro mais distante. Entretanto, é quase certo que essas possibilidades lógicas não sejam possibilidades históricas, de modo que o constrangimento conceitual apresentado nesta nota não deve ser prejudicial.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 76Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 76 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 77: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e relações de produção • 77

das forças produtivas, mais cedo ou mais tarde as relações de produção se conver-tam em seus entraves. A restrição da revolução, que resulta da terceira sentença, significa que deve ser plausível supor que quando as relações de produção se convertem em entraves, elas são revolucionadas.

É necessário explicar o significado das referidas restrições para uma concepção adequada de entrave. A restrição resulta tanto do que Marx disse quanto da reali-dade do mundo. Para ilustrar o caso da restrição da revolução: como Marx afirma que ao entrave se segue a revolução, uma concepção adequada do entrave deve nos permitir dizer de maneira plausível que, dado o funcionamento do mundo, o entrave deveria, de fato, ser seguido pela revolução. A restrição é determinada por Marx, mas o grau da sua adequação depende do grau de correspondência entre o conceito que construímos e a realidade do mundo.

Sendo assim, como já ressaltei, a razão da dificuldade em favorecer tanto a Estagnação Absoluta quanto a Inferioridade Relativa é o fato de que nenhuma delas parece capaz de satisfazer as restrições da previsibilidade ou as restrições da revolução. Talvez a concepção Absoluta favoreça a restrição da revolução, mas certamente não favorece a restrição da previsibilidade: não há bons motivos para pensarmos, por exemplo, que se o capitalismo durasse para sempre o desen-volvimento das forças produtivas cessaria, mesmo que faça sentido supor que, se o desenvolvimento se interrompesse, uma época de revolução se seguiria (os devotos mais extremistas da lei da queda tendencial da taxa de lucro pensam que não apenas os incrementos na produtividade, mas a própria produção cessará para sempre, se o capitalismo permanecer. Eles não sentem dificuldade em adotar a concepção Absoluta de entrave, mas aqueles que não participam de sua seita não possuem a mesma sorte).

A concepção da Inferioridade Relativa favorece melhor a restrição da previsi-bilidade: parece provável que todas as classes delimitadas de relações de produção possuem uma flexibilidade limitada e, com o contínuo desenvolvimento do poder produtivo, tornam-se menos favoráveis em comparação a outras relações que poderiam ser favoráveis na promoção do avanço do progresso produtivo. Mas a Inferioridade Relativa não favorece tão prontamente a restrição da revolução, já que os custos e os perigos da revolução, tanto para aqueles que a iniciam quanto para quem a segue, faz que seja irracional esperar que uma sociedade se sub-meta a uma revolução simplesmente porque relações de produção, que seriam mais adequadas ao desenvolvimento das forças produtivas, estão disponíveis. Oberva-se que as relações de produção podem ser entraves Relativos, mesmo quando estimulam desenvolvimentos produtivos mais rapidamente do que jamais havia ocorrido. É plausível supor que a revolução correria risco em uma época de acelerado desenvolvimento das forças produtivas, simplesmente porque existiria um desenvolvimento ainda mais rápido sob relações diferentes? Os trabalhadores derrotariam o capitalismo que reduziu para um ano o intervalo entre cada geração de computadores porque o socialismo promete reduzi-lo para nove meses?

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 77Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 77 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 78: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

78 • Crítica Marxista, n.31, p.63-82, 2010.

Minha dúvida de que a concepção Relativa satisfaça a restrição da revolução não está baseada na falsa proposição de que as pessoas se revoltam somente quando seus interesses pessoais estão em jogo: dada a estrutura da ação coletiva, prova-velmente ninguém se revoltaria, em quaisquer condições, qualquer que fosse a concepção de entrave, se essa falsa proposição fosse correta.27 Mas pode-se afirmar que a inspiração altruísta é uma condição necessária para a ação revolucionária e mesmo acreditar que é improvável as pessoas se aventurarem em uma revolução quando sua condição de existência não é intolerável, quando os custos e os perigos da insurreição são enormes e o sucesso é incerto. Tudo isso é suficiente para gerar dúvidas de que a concepção Relativa satisfaça à restrição da revolução.

Nem a Estagnação Absoluta, nem a Inferioridade Relativa satisfarão, e es-tou inclinado a concluir que a noção de que a revolução se segue ao entrave do desenvolvimento das forças produtivas não pode ser salva. Sendo assim, consi-dero necessária uma formulação completamente diferente da teoria marxista da transformação social.

Penso que é possível chegar à formulação exigida, explorando a ideia de que o entrave que provoca a revolução é do uso, mais do que do desenvolvimento das forças produtivas. O desenvolvimento das forças produtivas representa um crescimento do seu poder produtivo ou um aumento do quanto pode ser (e não do quanto está sendo) produzido.28 Bloquear o desenvolvimento das forças produtivas, consequentemente, significa restringir o crescimento de uma capacidade. Dito de outro modo, reduzir, por exemplo, a taxa de crescimento da capacidade produtiva a zero, de acordo com a concepção da Estagnação Absoluta, ou restringir essa taxa a níveis mais baixos do que ela poderia atingir, de acordo com a concepção da Inferioridade Relativa. Entretanto, se o crescimento da capacidade produtiva de algum modo está sendo impedido, é uma questão completamente diferente de se, e em que medida, a capacidade produtiva está sendo efetivamente utilizada. Sendo assim, parece-me que a última questão é a mais importante do ponto de vista das dinâmicas da transformação social.

Tratarei a seguir de dois exemplos desse argumentoAs primeiras formas modernas de divisão do trabalho, denominadas por Marx

de “manufatura”, exigiam a concentração de um grande número de trabalhadores em um só lugar. Tal concentração foi dificultada e proibida de diversas maneiras

27 Motivações puramente egoístas possuem a tendência de gerar o dilema que na teoria dos jogos é conhecido como o “Dilema do Prisioneiro” em situações revolucionárias, pois, segundo os cálculos egoístas, o custo marginal da participação numa revolução geralmente excede o ganho. A referência clássica é Olson (1965). Ver também Buchanan (1980), Shaw (1984) e Cohen (no Prelo).

28 Como afirmei em KMTH, o “conceito [relevante] de produtividade difere daquele utilizado pelos economistas quando comparam a produtividade física do trabalho em sociedades diferentes. A produtividade, no nosso entendimento, indica o ponto máximo ao qual a produtividade poderia ser elevada por intermédio dos meios e conhecimentos existentes [...]” (Cohen, 1978, p.56).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 78Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 78 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 79: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e relações de produção • 79

pelos laços e regulamentos feudais e semifeudais, que prendiam os produtores a senhores e mestres particulares em locais dispersos. Nesse caso, as relações de produção impediam o emprego das forças produtivas, de modo que essas relações foram pressionadas por esse motivo. A transformação ocorreu em virtude da lacuna entre aquilo que poderia ser alcançado e aquilo que estava sendo alcançado, mais do que pela lacuna entre o quão rapidamente a capacidade melhorava e o quão rapidamente ela poderia melhorar: a segunda lacuna existiu, mas é difícil acredi-tar que ela foi, similarmente, um poderoso catalizador da transformação social.

Um segundo exemplo. Afirmaria que as relações de produção capitalistas im-pedem a máxima utilização produtiva da alta tecnologia que essas próprias relações criam. No capitalismo, avanços na engenharia eletrônica e de computadores cau-sam distúrbios econômicos, desemprego e a degradação dos trabalhadores, muitas vezes chamados de “desqualificados”, ao passo que, em uma ordem diferente, as mesmas forças de produção poderiam ser utilizadas para criar um realinhamento benéfico do trabalho, do lazer e da educação. Considero, ademais, que poderia existir uma consciência crescente da irracionalidade do atual emprego das mara-vilhas tecnológicas contemporâneas e, como resultado, uma transformação social de caráter socialista. Se isso acontecesse, a transformação não ocorreria porque o capitalismo não substitui uma geração de computadores por outra mais nova com rapidez suficiente, mas porque ele não faz um bom uso de qualquer geração de computadores. Novamente, a discrepância operativa não seria entre o quão rapidamente aquilo que pode ser feito melhora e o quão rapidamente isso poderia melhorar, mas entre o que é feito e o que poderia ser feito.

É possível chamar a concepção que acabei de apresentar de Interdição do Uso, bem como consideramos a Estagnação Absoluta e a Inferioridade Relativa como tipos de Interdição ao Desenvolvimento. A Interdição do Uso parece melhor favorecer a restrição da previsibilidade do que a Estagnação Absoluta. Como ressaltei anteriormente, todas as classes delimitadas de sistemas econômicos possuem flexibilidade limitada, sendo, portanto, incapazes de fazer, cedo ou tar-de, um uso máximo dos desenvolvimentos da capacidade produtiva que induzem ou viabilizam.29 Além disso, a Interdição do Uso favorece melhor a restrição da revolução do que a Inferioridade Relativa, pois a discrepância entre a capacidade e o uso é mais perceptível, sendo um estimulante mais poderoso da revolta, do protesto e da transformação do que a queda da taxa de desenvolvimento implícita na Inferioridade Relativa.

É possível dizer que estou exagerando a dimensão da mudança da Interdição ao Desenvolvimento à Interdição do Uso, já que as relações que melhor utilizam a capacidade produtiva existente também tenderão a encorajar sua melhoria. Porém, não tenho motivos para acreditar que isso é necessariamente verdadeiro. Muitos

29 A disjunção entre “induzir ou viabilizar” é, sem dúvida, cheia de meandros. Para uma discussão parcial de seu significado, ver Cap. VI, seção 7, de KMTH.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 79Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 79 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 80: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

80 • Crítica Marxista, n.31, p.63-82, 2010.

socialistas estão prontos para admitir que nada pode se equiparar ao estímulo do capitalismo ao progresso do poder produtivo,30 mas, mesmo assim, eles apoiam o socialismo, pois consideram que algum tipo mais lento de progresso produtivo seria um preço razoável a se pagar por uma melhor utilização do poder produtivo em cada estágio. Talvez esses socialistas estejam sendo excessivamente pessimistas, mas eles não estão errados, por causa de uma lei que relaciona as várias virtudes que as estruturas econômicas podem ter.

A mudança da Interdição ao Desenvolvimento à Interdição do Uso inaugura uma série de novos problemas e o esquema referido contém muitas dificuldades, às quais não pude enfrentar por conta do prazo de entrega deste ensaio. As precisões serão feitas mais a frente. Por enquanto – e por força das circunstâncias – indicarei, grosso modo, a dimensão da transformação exigida pelas formulações centrais que propus. No lugar da primeira frase da seção I, é possível dizer algo como: a história é o crescimento do poder produtivo humano e as formas sociais surgem e desaparecem conforme possibilitem ou impeçam o uso da capacidade produtiva dessa expansão. A relação entre a dialética das forças e relações de produção, de um lado, e a luta de classes, de outro, também terá de ser repensada. Neste ensaio, não posso mais que mencionar esses vastos problemas.

Um crítico favorável à ideia da Interdição do Uso poderia argumentar que o que deve ser revisto é o que elaborei a partir de Marx e não o próprio Marx, que já havia expressado sua predileção pela Interdição do Uso em detrimento da Interdição ao Desenvolvimento. Entretanto, considero que um novo caminho, sugerido pela exploração das ambiguidades apenas vislumbradas por Marx, foi alcançado. Marx não pensava de maneira clara na Interdição do Uso quando escreveu a sentença crucial do Prefácio: “De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações converteram-se em seus entraves”. Numa primeira leitura dessa frase, as relações que se converteram em entraves não podem ser ao mesmo tempo as formas de desenvolvimento das forças produtivas. Porém, as relações que entra-vam o uso das forças produtivas poderiam ser, ao mesmo tempo, as formas de desenvolvimento das forças produtivas. Logo, Marx não quis dizer “entraves ao uso das forças produtivas” quando escreveu “entraves” na frase citada.31

30 Para uma boa discussão dessa proposição, ver os capítulos 3 e 4 de Schweickart (1980). Para uma rejeição vigorosa da mesma, ver as afirmações de Jon Elster no ensaio não publicado “Forces and Relations of Production”, na seção 12 do meu “Reconsidering Historical Materialism”, op. cit. (devo adicionar que o trabalho de Elster influenciou tão fortemente minha visão sobre as forças produtivas e as relações de produção que não posso dizer com clareza quais das ideias da parte final deste ensaio deveriam ser atribuídas a ele).

31 Agradeço a Arnold Zuboff por suas considerações críticas a uma primeira versão deste ensaio, feitas com o cuidado e inteligência habituais e, especialmente, por suas objeções e sugestões que originaram o ímpeto para a mudança da Estagnação ao Desenvolvimento à Estagnação do Uso. Também agradeço a Steve Walt por seus excelentes comentários sobre uma versão preliminar da seção sobre a Estagnação.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 80Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 80 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 81: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e relações de produção • 81

Referências bibliográficasBUCHANAN, Allen. “Revolutionary Motivation and Rationality”. In: COHEN, M. et al

(eds.) Marx, Justice and History. Princeton: Princeton University Press, 1980.COHEN, G. A. Karl Marx’s Theory of History: A Defence. London/New Jersey: Oxford

University Press/Princeton University Press, 1978.. “Review of Melvin Rader’s Marx’s Interpretation of History”. Clio, v.X, n.2,

1981, p.229-33.. “Forces and relations of production”. In: MATTHEWS, Betty (Ed.) Marx: A

Hundred Years On. London: Laurence & Wishart, 1983a, p.111-35.. “Marxism’s Central Puzzle”. In: BALL, Terence; FARR, James (eds.) After Marx.

Cambridge: Cambridge University Press, 1983b.. “Fuerzas Productivas y Relaciones de Producción”. In: ROEMER, John E. (Comp.)

El marxismo: una perspectiva analítica. Trad. Rafael Núñez Zúñiga. México: Fundo de Cultura Económica, 1989.

. “Functional Explanation, Consequence Explanation, and Marxism”. Inquiry, v.25, 1982a, p.28-35.

. “Reply to Elster on ‘Marxism, Functionalism and Game Theory’”. Theory and Science, n.11, v.4, 1982b, p.483-95.

. “Reply to Four Critics”. Analyse & Kritik, n.2, v.5, 1983c, p.195-222.

. “Reconsidering Historical Materialism”. In: CHAPMAN, John; PENNOCK, J. Roland (eds.) Nomos: Marx and Legal Theory, v.XXIV. New York, 1983d.

. “Utopian and Scientific Socialism”, no prelo.COHEN, Joshua. “Review essay on Karl Marx’s Theory of History: A Defence”. The

Journal of Philosophy, v.LXXIX, maio, 1982, p.253-73.ELSTER, Jon. “Cohen on Marx’s Theory of History”. Political Studies, v.XXVIII, mar.,

1980.ELSTER, Jon. “Marxism, Functionalism and Game Theory”. Theory and Society, n.11,

v.4, 1982, p.453-82. LEVINE, Andrew; WRIGHT, Erik. “Rationality and Class Struggle”. New Left Review,

n.123, set./out., 1980.MARX, K. “Infraestrutura e Superestrutura: O ‘prefácio’ da Contribuição à Crítica da

Economia Política”. Trad. Florestan Fernandes. In: IANNI, Octavio (org.). Marx – sociologia. 3.ed. Col. Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1982.

. The Poverty of Philosophy. In: MARX & ENGELS, Collected Works, v.6, London: Lawrence & Wishart, 1976.

. Moralising Criticism and Critical Morality. In: MARX & ENGELS, Collected Works, v.6, London: Lawrence & Wishart, 1976.

. The German Ideology, New York: International Publishers, 1965.MARX, K.; ENGELS, F. Selected Correspondence, Moscow, 1975.

; . The Communist Manifesto. In: MARX & ENGELS, Collected Works, v.6, London: Lawrence & Wishart, 1976.

MILLER, Richard. “Productive Forces and the Forces of Change”. The Philosophical Review, v.90, n.1, jan., 1981, p.91-117.

. “Producing Change”. In: BALL, Terence; FARR, James (eds.) After Marx. Cam-bridge: Cambridge University Press, 1984, p.59-87.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 81Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 81 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 82: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

82 • Crítica Marxista, n.31, p.63-82, 2010.

NORMAN, Richard. “Review of Karl Marx’s Theory of History”. The London Review of Books, 21 fev., 1980.

OLSON, Mancur. The Logic of Collective Action. Cambridge: Mass, 1965.PARIJIS, Philippe Van. Evolutionary Explanation in the Social Sciences. Totowa/New

Jersey: Rowman/Littlefield, 1981.RADER, Melvin. Marx’s Interpretation of History. New York: Oxford University Press,

1979.SCHWEICKART, David. Capitalism or Worker Control? An Ethical and Economic Ap-

praisal. New York: Praeger, 1980.SHAW, William. “Marxism, Revolution and Rationality”. In: BALL, Terence; FARR,

James (eds.) After Marx. Cambridge: Cambridge University Press, 1984, p.12-35.WOOD, Allen. Karl Marx. London: Routledge, 1981.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 82Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 82 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 83: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: ... • 83

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: a Defense, de G. A. CohenRICHARD W. MILLER *

Nas décadas de 1950 e 1960, a maior parte dos estudos anglo-americanos sobre Marx tinha como objetivo demonstrar que não valia a pena estudar suas teorias, exceto, talvez, como relíquias históricas. Acton, Berlin, Popper e Plamenetz são apenas alguns dos autores que argumentaram que as ideias de Marx eram muito confusas, obscuras, metafísicas ou, obviamente, equivocadas para merecerem investigações empíricas adicionais.

Na filosofia, Gerald Cohen tem sido uma liderança, provavelmente a mais importante, na conversão dessa tendência. Em uma série de artigos escritos nos últimos dez anos, Cohen tem definido e defendido – com graça, inteligência e bom humor que, juntos, são raros – as ideias de Marx empregando o melhor do aparato analítico da filosofia anglo-americana. Neles, esteve essencialmente discutindo pequenos fragmentos da teoria social de Marx. Logo, seu livro sobre a teoria geral de Marx a respeito da sociedade e da transformação social, Marx’s Theory of History: a Defense, foi ansiosamente aguardado.

A habilidade, o estilo e a influência de Cohen fazem que seu livro provavel-mente continue sendo por muitos anos a defesa de Marx mais lida entre os filó-sofos. O livro será particularmente útil para dois grupos de leitores. Aqueles que temem que as discussões favoráveis a Marx acabem por obscurecer suas teorias, tornando-as completamente implausíveis ou reduzindo-as a lugares comuns, en-contrarão neste livro um contraexemplo efetivo. Já os leitores que possuem suas próprias interpretações de Marx perceberão que suas ideias serão enriquecidas,

* Professor da Cornell University, EUA.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 83Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 83 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 84: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

84 • Crítica Marxista, n.31, p.83-109, 2010.

elucidadas e estimuladas, mesmo que concluam que o livro de Cohen esteja completamente equivocado.

Determinismo tecnológicoMarx’s Theory of History é, em geral, uma defesa constante de uma visão

tecnológico-determinista de Marx. Defino “determinismo tecnológico” como uma ideia, segundo a qual a estrutura e a transformação social devem ser, em última instância, explicadas como adaptações ao progresso tecnológico. Com a profícua honestidade característica de seu livro, Cohen afirma:

O que defendo é um materialismo histórico antiquado, uma concepção tradicional, segundo a qual a história é, fundamentalmente, o crescimento do poder produtivo humano e que as formas de sociedade surgem e desaparecem conforme permitam ou impeçam esse crescimento [...] As forças produtivas desfrutam de uma primazia explicativa [...] Proponho o que se pode chamar de uma interpretação “tecnológica” do materialismo histórico (Cohen, 1978, p.29).1

Enquanto oferece algumas considerações empíricas para sugerir que sua versão do determinismo tecnológico é uma teoria social válida, seu principal esforço é demonstrar que essa é a teoria do próprio Marx. De modo semelhante, procurarei me concentrar, nesta resenha, nas questões interpretativas.

O debate a respeito de Marx ser ou não um determinista tecnológico é a prin-cipal disputa teórica entre intelectuais e militantes favoráveis a Marx. A questão fundamental é a relação entre os aspectos tecnológicos e sociais da produção de bens materiais. Praticamente todos concordam com as linhas gerais da teoria de Marx sobre as instituições e os papéis sociais não diretamente envolvidos na pro-dução material. As principais características das instituições políticas, jurídicas e ideológicas, juntamente com as ideias e práticas que elas legitimam, são, em grande medida, determinadas por sua função de preservação das relações sociais nas quais a produção material ocorre (por exemplo, senhor/escravo, capitalista/trabalhador assalariado). Mas como as relações de produção são explicadas? Embora a preocupação principal de Marx fosse a substituição das relações de

1 Embora adote o rótulo “tecnológico”, Cohen se mostra relutante em admitir que sua teoria é “tecnológico-determinista”, já que esse tipo de teoria pode sugerir que a história independe da escolha das pessoas. Ele aponta: “À medida que o curso da história e, mais especificamente, o futuro da revolução socialista são inevitáveis para Marx, eles são inevitáveis não a despeito do que os homens possam fazer, mas em virtude do que, por serem racionais, estão predestinadamente obrigados a fazer” (Cohen, 1978, p.147). Ao chamar uma teoria de tecnológico-determinista, não pretendo negar que ela dê às ações, escolhas, aspirações e decisões humanas, incluindo aquelas de natureza política e ideológica, um papel fundamental na transformação social. Entretanto, tal fator essencial deve, em última instância, ser o resultado da busca de tecnologias mais avançadas. O determinismo tecnológico dá primazia explicativa ao tecnológico, não ao seu triunfo sobre o pensamento e aspirações humanos.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 84Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 84 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 85: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: ... • 85

produção capitalistas pelas socialistas, ele foi muito menos claro a esse respeito e, por esse motivo, as controvérsias interpretativas foram se expandindo.

Segundo a visão determinista tecnológica, Marx acredita que as relações de produção são como são porque promovem a produtividade de acordo com a tec-nologia disponível, e que as relações mudam porque surge uma nova tecnologia à qual não se adaptam. Dentro desse quadro teórico, a questão mais importante para um historiador que procura explicar as transformações sociais mais fundamen-tais é “como o novo arranjo se tornou o promotor da produtividade na sociedade como um todo?” Questões sobre como a mudança afeta os interesses específicos das diferentes classes e sobre qual poder as diversas classes possuem, embora cruciais para o entendimento de como a transformação ocorreu, são secundárias. Essa prioridade do tecnológico é acaloradamente debatida entre os historiadores simpáticos a Marx.

Como todos os debates sobre a interpretação de Marx, esse tem implicações importantes para a prática política. Regimes em muitos países com pouco avanço tecnológico, tais como Angola, Tanzânia e Afeganistão, recorrem aos marxistas para defender uma política de modernização tecnológica sem o estabelecimento do socialismo, com o pretexto de que isso é uma preparação necessária ao socia-lismo. O determinismo tecnológico é uma premissa importante para esses apelos. A ênfase tecnológico-determinista na produtividade também tem implicações pungentes para países como o Brasil e a África do Sul, onde o capitalismo faz a renda per capita avançar de vento em popa, a despeito da pobreza mais atroz, da degradação e da repressão. Isso não quer dizer que o socialismo possa, nesses países, ser melhor para o aumento da produtividade, mesmo que a pobreza seja eliminada. Uma interpretação tecnológico-determinista de Marx sugere um argu-mento marxista contra a luta imediata pelo socialismo nesses países. De fato, “o capitalismo ainda não é obsoleto aqui” é um argumento defendido pelos Partidos Comunistas, tanto aqueles orientados por Moscou como os que o são por Pequim.

A versão peculiar de Cohen do determinismo tecnológico e a qualidade da sua defesa fazem da publicação desse livro uma intervenção importante nesses debates. Aqueles que defendem uma interpretação tecnológico-determinista fre-quentemente defendem uma versão mais extrema do que a necessária. O marxista russo Plekhanov, o mais importante predecessor intelectual de Cohen, acreditava que a produtividade impunha uma restrição extremamente forte à transformação, à medida que uma sociedade não mudaria de um tipo básico para outro enquanto a antiga estrutura permitisse qualquer aumento na produtividade. Baseado nisso, ele condenou a demanda bolchevique pela revolução socialista como prematura.2

2 A apresentação clássica da interpretação de Plekhanov está em The Development of the Monist View of History. Trata-se da explicação mais perspicaz e convincente do determinismo tecnológico até o surgimento do livro de Cohen, permanecendo uma das melhores introduções a Marx, após quase um século de sua publicação. Lênin (1971, p.767-s) oferece um breve e claro resumo do lado bolchevique do debate sobre a Revolução de Outubro.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 85Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 85 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 86: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

86 • Crítica Marxista, n.31, p.83-109, 2010.

Como veremos, Cohen, ao contrário, admite que uma sociedade pode mudar antes que ela tenha alcançado qualquer aumento possível na produtividade. Segundo Avineri e Moore, Marx de fato acreditou que a tecnologia pudesse diretamente produzir a transformação social fundamental, sempre que essa transformação fosse possível. A antiga estrutura social perece por ineficiência, sem a necessidade de intensas lutas políticas e ideológicas.3 Cohen, ao contrário, admite que as lutas políticas e ideológicas podem ser essenciais para a destruição das relações sociais anteriores, embora esclareça que as lutas decisivas se devem, em última instância, aos resultados da obsolescência tecnológica das antigas relações.

Infelizmente, aqueles que defendem as versões mais moderadas do determi-nismo tecnológico geralmente produzem interpretações demasiadamente vagas para serem avaliadas, ou diluem o determinismo tecnológico em um conjunto de truísmos a respeito do fato de que a tecnologia influencia as transformações so-ciais e que as pessoas não refletem muito se não podem comer. Entre os filósofos que interpretaram Marx, Cohen é praticamente o único a defender uma versão do determinismo tecnológico moderada, mas digna desse nome, bem como clara o bastante para merecer o debate. Entre todos os escritores que perseguem o objetivo de interpretar as afirmações mais gerais de Marx sobre o curso da história, Cohen combina erudição, rigor conceitual e clareza em um grau extremamente alto. Mesmo não sendo claro em todos os pontos relevantes, ele consegue ser extraor-dinariamente claro no geral, dado o amplo caráter das ideias que está explicando. Se a versão de Cohen do determinismo tecnológico não for a teoria de Marx, este é um importante indício de que Marx não era um determinista tecnológico.

Na primeira parte deste trabalho, procurarei demonstrar que existem diferenças entre a interpretação de Cohen e os escritos de Marx. Em seguida, apresentarei uma interpretação alternativa, que é materialista, na medida em que concede primazia a processos por meio dos quais os bens materiais são produzidos, mas não tecnológico-determinista.

A interpretação de CohenO livro de Cohen inicia com uma enorme epígrafe de uma página e meia em

espaço simples, parte do Prefácio de Marx à Contribuição à crítica da economia política (1859). Nessa conhecida passagem, o texto central do determinismo tecnológico, Marx afirma que:

As relações de produção correspondem a um estágio específico de desenvolvimento das suas forças de produção materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui [...] a base real sob a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política.

3 Ver Avineri (1971, especialmente p.174-220), e Moore (1975). Dois ensaios que contestam sua interpretação são: Gilbert (1976) e Miller (1975), este sobre Moore.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 86Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 86 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 87: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: ... • 87

Mais precisamente, a correspondência e a inter-relação ocorrem em situações sociais relativamente estáveis:

Em certa fase de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em seus entraves. Ocorre, então, uma época de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura.

O livro de Cohen é, na verdade, um longo comentário sobre essa epígrafe extremamente significativa (confesso que não apresentei esta sentença central na sua totalidade). Cohen frequentemente cita passagens d’O capital, das Teorias da mais-valia, dos Grundrisse e d’A ideologia alemã, mas constantemente retorna à sentença inicial do Prefácio, o centro de gravidade do seu livro.

Na visão de Cohen, as forças produtivas são os meios de criação e utilização dos bens materiais, meios que são necessários para enfrentar as exigências físicas do processo produtivo (Cohen, 1978, p.32). As matérias-primas, as ferramentas, a força de trabalho, o conhecimento científico e organizacional, tudo isso integra as forças produtivas, se utilizado apropriadamente. O conhecimento organizacional de um operário é uma força produtiva se for utilizado para lidar com as demandas físicas da produção de aço, mas não se for utilizado para reforçar a necessidade social de manutenção da disciplina do trabalho (Cohen, 1978, p.33). O nível de desenvolvimento das forças produtivas é a produtividade da força de trabalho quando ela é utilizada eficientemente (Cohen, 1978, p.56).

A história, na interpretação de Cohen, é basicamente a história da correspon-dência e do conflito entre as forças produtivas materiais e as relações sociais de produção. Essas relações de produção são “relações de poder efetivo sobre as pessoas e as forças produtivas” que governam os processos de produção (Cohen, 1978, p.63). A classe social à qual pertence uma pessoa é determinada por seu lugar nas relações de produção. Por exemplo, o controle sobre sua própria força de trabalho, combinado com a falta de controle sobre os meios de produção ou sobre a força de trabalho de outros, são os determinantes fundamentais da con-dição proletária. A soma das relações de produção de uma sociedade constitui sua estrutura econômica. As estruturas econômicas são classificadas segundo as relações de produção, nas quais se encontram os participantes diretos na produção (por exemplo, escravos, proletários). A “relação dominante que une os produtores imediatos” (Cohen, 1978, p.78), tal como o trabalho assalariado no capitalismo, determina sua característica fundamental.

Após esmiuçar e ilustrar essas definições com grande habilidade, Cohen as utiliza para apresentar sua versão de Marx. “As forças produtivas tendem a se

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 87Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 87 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 88: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

88 • Crítica Marxista, n.31, p.83-109, 2010.

desenvolver ao longo da História” (Cohen, 1978, p.134). As transformações fun-damentais das forças produtivas são, em grande medida, embora não inteiramente, independentes das influências das relações de produção. Sua origem principal é o desejo de pessoas racionais de superar a escassez natural (Cohen, 1978, p.134-s, p.152-s, p.65f-s). Logo, não existe uma “dialética do ziguezague entre as forças e as relações, na qual nenhuma das duas é prioritária” (Cohen, 1978, p.138).

“As forças selecionam as estruturas de acordo com a capacidade destas últimas de promoverem o desenvolvimento” (Cohen, 1978, p.135). “(A natureza de um conjunto de relações de produção é explicada pelo nível do desenvolvimento das forças produtivas, que são abarcadas por aquelas numa extensão muito maior do que a relação inversa)” (Cohen, 1978, p.134). Em uma sociedade relativamente estável, “as relações de produção possuem o caráter que possuem porque, em virtude desse caráter, promovem o desenvolvimento das forças produtivas” (Cohen, 1978, p.248). Em tal sociedade, as instituições não econômicas fazem, em grande medida, parte de uma superestrutura que “possui o caráter que possui porque, em virtude desse caráter, confere estabilidade às relações de produção” (Cohen, 1978, p.248). Ou, de qualquer modo, os traços mais importantes da estru-tura econômica e sua superestrutura podem ser explicados essencialmente desse modo (Cohen, 1978, p.163). Conforme o nível das forças produtivas aumente no interior de uma estrutura econômica inicialmente estável, alcança-se um ponto no qual as antigas relações de produção “não correspondem ao desenvolvimento das forças” (Cohen, 1978, p.161). Por essa razão, tais relações mudam. “A estrutura econômica correspondente surge em resposta às necessidades do desenvolvimento das forças produtivas” (Cohen, 1978, p.162). A superestrutura segue o mesmo caminho. Mais precisamente, esse processo de adaptação às forças produtivas em expansão é a origem da transformação social fundamental, a partir de causas internas, diferentemente de causas externas, como invasões (Cohen, 1978, p.177).

As explicações de Cohen sobre as “forças produtivas” e as “relações de produção” são precisas e detalhadas, o que lhe permite refutar cuidadosamente muitos argumentos conhecidos da teoria social marxista que, em geral, são com-pletamente vagos. Entretanto, em dois aspectos importantes, a exposição da sua interpretação é, tal como se coloca, insatisfatória, seja por ser confusa, seja por violar as instruções explícitas de Marx.

Em que ponto as relações de produção param de promover o desenvolvimento das forças produtivas e, na formulação de Marx, “convertem-se em seus entraves”? Como Cohen inicialmente assinala, um padrão muito rígido de impedimento seria requerido por uma leitura literal do Prefácio. As relações de produção entravam as forças produtivas apenas quando excluem todos os crescimentos da produtividade. Como ele brevemente observa, a teoria de Marx seria extremamente implausível se interpretada dessa maneira; ela se restringiria em dizer, por exemplo, que o feudalismo nunca seria derrocado enquanto permitisse qualquer crescimento da produtividade (Cohen, 1978, p.138-40). Cohen poderia ter acrescentado que esse

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 88Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 88 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 89: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: ... • 89

determinismo tecnológico rígido é igualmente conservador nas suas implicações em relação ao capitalismo: o capitalismo nunca mudaria antes de se tornar incapaz de realizar qualquer melhoria das forças produtivas.

A conclusão concernente ao feudalismo é historicamente absurda e Marx nunca insinuou o contrário. A conclusão concernente ao capitalismo despreza a visão de Marx de que a competição capitalista sempre estimulará algum progres-so tecnológico,4 juntamente com o fato elementar de que Marx era socialista. É essencial, portanto, que Cohen ofereça uma versão alternativa àquela do entrave das forças produtivas na sua interpretação e defesa de Marx. É o que ele faz na prática. Na interpretação alternativa que ele frequentemente emprega, uma estru-tura econômica entrava as forças produtivas quando alguma estrutura econômica alternativa consegue melhor promover o crescimento dessas forças. Uma estrutura econômica só sobrevive “desde que ela maximize o desenvolvimento contínuo do poder produtivo” (Cohen, 1978, p.175). Ela perece se as forças produtivas se desenvolverem melhor no interior de uma nova estrutura, mesmo que elas ainda pudessem se desenvolver, até certo ponto, no interior da antiga estrutura.

Infelizmente, Cohen oscila, no decorrer do seu livro, entre a concepção da estagnação absoluta do bloqueio e a da inferioridade relativa do bloqueio das forças produtivas. Ambas as noções são empregadas, por exemplo, na sentença que introduz um importante capítulo que discute as forças produtivas e as relações de produção capitalistas. Entretanto, Cohen sempre adota a segunda interpretação quando defende o determinismo tecnológico, considerando a teoria do entrave implausível na primeira interpretação. Presumo que a segunda interpretação é a central.

O outro problema importante na definição da versão de Cohen do determinismo tecnológico diz respeito ao seu esquema para distinguir as diferentes característi-cas fundamentais das estruturas econômicas. Tais distinções são importantes para a sua interpretação, já que um dos seus atrativos é a sua relativa despretensão: apenas as principais características da estrutura social e da transformação são con-sideradas para serem explicadas por ela. Cohen propõe que “a relação dominante que conecta os produtores imediatos” (Cohen, 1978, p.28) define a característica fundamental de uma estrutura econômica. Mas “dominante”, nesse caso, é um termo demasiadamente vago para os seus propósitos. A leitura natural do termo “do ponto de vista estatístico predominante” não serve. Marx estava consciente de que os produtores imediatos na Inglaterra do século XVI e do Baixo Império Romano eram pequenos camponeses proprietários,5 mas trata as respectivas eco-nomias como de tipos essencialmente diferentes.

4 “A burguesia não pode existir sem constantemente revolucionar os instrumentos de produção” (MARX, 1973, p. 111). “A indústria moderna jamais encara e trata as formas existentes de um processo como finais” (MARX, SD., p. 457).

5 Cf. Marx (1973b, p. 476 seg., p. 487); e Marx (SDa, p. 671).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 89Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 89 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 90: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

90 • Crítica Marxista, n.31, p.83-109, 2010.

O próprio Marx oferece, explícita e enfaticamente, uma tipologia diferente. “A diferença fundamental entre as diversas formas econômicas da sociedade [...] encontra-se apenas no modo pelo qual [...] o trabalho excedente é, em cada caso, extraído do produtor real, ou seja, o trabalhador” (Marx, SDa, p.209).6 Logo, a característica fundamental de uma estrutura econômica é determinada pelo modo principal por meio do qual os produtores imediatos são despojados do uso completo da sua produtividade, e não pela principal relação de produção entre os produtores imediatos como um todo. Assim, a Roma de Augusto e a Inglaterra de Henrique VIII são essencialmente diferentes, como deveriam ser em qualquer interpretação de Marx. No primeiro caso, o trabalho excedente é, em grande parte, extraído por intermédio da propriedade de escravos, ao passo que no segundo, por intermédio da subordinação política de agricultores e artesãos livres. Cohen reconhece a exis-tência desta tipologia alternativa e cita as passagens pertinentes, não apresentando qualquer razão para adotar a sua própria. No restante desta resenha, utilizarei a tipologia da extração do excedente, que considero a melhor e a mais marxista.

A evidência dos textos. Cohen demonstra com enorme erudição que sua inter-pretação é informada por numerosas passagens de Marx. Sem dúvida, algo como a teoria da história de Marx. Mas sua interpretação é extremamente controversa quando é claramente tecnológico-determinista.

A ideia geral do determinismo tecnológico é de que a história é o relato de como as formas sociais se transformam para facilitar o crescimento na produtividade das forças produtivas. Uma interpretação tecnológico-determinista particular de Marx deve responder a três questões, de modo a conceder primazia às forças produtivas: o que determina o caráter das relações sociais de produção em sociedades relativa-mente estáveis? Como a mudança ocorre entre as próprias forças produtivas? O que determina a temporalidade e a direção da transformação nas relações de produção? Os traços caracteristicamente tecnológico-deterministas da interpretação de Cohen podem ser resumidos em suas respostas a essas três questões. Em primeiro lugar, a característica fundamental de uma estrutura econômica estável é explicada pelo fato de que essa característica promove melhor o crescimento da produtividade, conforme as forças produtivas disponíveis. Em segundo lugar, transformações importantes entre as forças produtivas são, essencialmente, o resultado do desejo e da habilidade de superar a escassez natural. Em suma, elas não dependem da influência de fatores não derivativos da estrutura econômica, ou dos processos comerciais, políticos e ideológicos causados pela estrutura econômica. (Defino “elementos não derivativos” como aqueles que não podem ser explicados como os melhores meios de promoção da produtividade). Em terceiro lugar, se deixarmos de lado as influências externas, a instabilidade social fundamental é o resultado do desenvolvimento de novas forças produtivas, que fazem que um novo tipo de

6 Cf. também Marx (SDa, p. 791).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 90Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 90 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 91: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: ... • 91

estrutura econômica seja um meio melhor para o crescimento da produtividade. A instabilidade prossegue até que a nova estrutura econômica, mais bem adaptada às novas forças, seja estabelecida. Essas três ideias são claramente resumidas na observação: “as forças selecionam as estruturas de acordo com sua capacidade de promover o desenvolvimento” (Cohen, 1978, p.162).

Marx, ao escrever sobre a história, viola esses três princípios característicos do determinismo tecnológico de Cohen. A história, tal como Marx explica, não se adapta a um modelo, no qual as estruturas econômicas sobrevivem por fornecerem produtividade máxima; as forças produtivas desenvolvem-se autonomamente ou a transformação das forças produtivas (no sentido em que Cohen emprega o termo) é a origem fundamental da mudança social em geral. Isso não quer dizer apenas que Marx admita exceções a essas regras, mas que as explicações que vão na direção contrária a essas regras são tantas e tão basilares a ponto de invalidá-las.

Será conveniente começar com a ideia de que o desenvolvimento das forças produtivas como um todo é autônomo. Todos consideram as partes históricas do primeiro volume d’O capital como o paradigma da prática de Marx como um historiador da economia. Nessas passagens, Marx descreve como o feudalismo foi inicialmente substituído pelo capitalismo na Grã-Bretanha. Aqui estão alguns episódios cruciais da história da transformação de um tipo básico de estrutura econômica em outro, no curso de três séculos. Em todos eles, a estrutura econô-mica, assim como os processos comerciais e políticos que ela engendra, possui um papel independente, influenciando de modo crucial as transformações das forças produtivas.

A antiga nobreza é “devorada pelas grandes guerras feudais” e substituída por uma nova nobreza de patrocinadores mercantis das dinastias rivais (Marx, SDa, p.673). Sob a liderança dessa nova nobreza, grandes proprietários de terra responderam às demandas continentais por lã, por meio da expropriação dos seus arrendatários, convertendo as propriedades dos camponeses em pasto (Marx, SDa, p.673). Essa transformação não ocorreu por haver tornado a produção agrícola mais eficiente. Métodos bastante tradicionais de criação de ovelhas simplesmente se tornaram mais lucrativos para os proprietários de terra. O fluxo de ouro do Novo Mundo provocou o aumento da inflação, assim como o aumento dos preços dos produtos agrícolas, fazendo que os camponeses menos pobres que possuíam con-tratos de longo prazo e poder para defendê-los na justiça se tornassem agressivos fazendeiros capitalistas (Marx, SDa, p.695). Na manufatura,

A descoberta de ouro e prata na América, a expropriação das minas, a escravidão e o extermínio das populações aborígines, o início da conquista e do saqueio das Índias Ocidentais, a transformação da África num entreposto para a caça comer-cial de negros [apenas: “desenvolvimento das forças produtivas aperfeiçoadas”!] sinalizou a rósea aurora da era da produção capitalista (Marx, SDa, p.703).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 91Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 91 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 92: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

92 • Crítica Marxista, n.31, p.83-109, 2010.

Os comerciantes ricos que se beneficiaram dessa pilhagem utilizaram seus novos recursos financeiros para montar suas empresas de manufaturas, muitas vezes empregando refugiados desesperados do capitalismo no campo. Os enormes recursos financeiros desses comerciantes foram cruciais para o surgimento da manufatura, por razões não tecnológicas. Era comercialmente arriscado montar empresas de um novo tipo para servir a novos mercados. Na maior parte dos ra-mos produtivos, vários trabalhadores assalariados precisavam ser empregados em uma empresa para que o empresário retivesse um excedente total atraente, após o pagamento de pelo menos um salário de subsistência a cada um dos trabalhadores (Marx, SDa, p.292-305).

Esses episódios não relatam a história completa da ascensão do capitalismo, tal qual apresentada por Marx, mas constituem uma parte bastante significativa. Com o tempo, a ascensão do capitalismo incluiu aumentos substanciais na produtivi-dade, por intermédio da consolidação dos proprietários de terra e da economia de escala do sistema fabril. Porém, as transformações cruciais das forças produtivas não são autônomas. Para explicar essa transformação paradigmática no nível das forças produtivas, processos comerciais e políticos são tão importantes quanto o desejo geral de superar a escassez material por meio de melhorias tecnológicas (como veremos, para Cohen, que adota um sentido restrito de forças produti-vas, as novas relações de trabalho no sistema fabril não constituem uma força produtiva, embora de um ponto de vista mais amplo elas o sejam. Entretanto, o emprego mais restrito resultará extremamente inapropriado para uma interpretação de Marx).

Para onde quer que olhemos nas histórias econômicas de Marx, as relações de produção e os processos que elas engendram possuem um papel fundamental e independente na explicação das transformações das forças produtivas. A única discussão extensa de Marx da transformação tecnológica, em um sentido relati-vamente restrito do termo “tecnológico”, é a sua explicação da nova dependência em relação à maquinaria na Revolução Industrial. Aqui, Marx concede aproxima-damente a mesma ênfase à maior eficiência da produção das máquinas, bem como às suas vantagens sociais para o capitalista, como um meio de reduzir salários, ampliar a jornada diária de trabalho e introduzir certas disciplinas de trabalho, mediante a destruição da margem de barganha dos trabalhadores especializados (Marx, SDa, p.407-8; 410). Ao discutir as origens de uma divisão de trabalho mais detalhada e interdependente (certamente, a influência mais fundamental sobre o subsequente desenvolvimento das ferramentas), Marx sugere que o contato e a troca entre os grupos sociais, e não a tentativa de aumentar a produtividade, foi a sua causa (Marx, SD, p.91-s; p.332-s). A influência central sobre a formação da tecnologia na Antiguidade tardia, a ascensão das aristocracias que empregavam o trabalho escravo em larga escala, é delineada por Marx para os efeitos domés-ticos da expansão pela conquista, para o crescimento do comércio e para o poder

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 92Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 92 22/10/2010 15:11:5922/10/2010 15:11:59

Page 93: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: ... • 93

do dinheiro de “dissolver” as relações sociais tradicionais (Marx, 1973b, p.487; 493-5; 506).7

Quando nos deslocamos da questão de como as forças produtivas se trans-formam para a questão sobre como elas formam estruturas econômicas estáveis, a discrepância entre a visão do determinismo tecnológico e a visão de Marx é ainda mais gritante. Segundo o determinismo tecnológico, o caráter fundamental de uma estrutura econômica existe por melhor desenvolver as forças produtivas. Marx, ao contrário, descreve tanto a escravidão quanto o feudalismo como estru-turas mantidas pelo poder de uma classe economicamente dominante, a despeito de uma alternativa factível, talvez mais produtiva. Marx geralmente descreve a aristocracia feudal, quando o feudalismo floresceu, como um entrave ao desen-volvimento da tecnologia, uma “nobreza de ladrões organizados” (Marx, 1972, p.46), cuja obsessão econômica se revela no prestígio por meio do consumo (Marx, 1973b, p.507).8 Do mesmo modo, a tendência principal das grandes propriedades escravocratas do mundo antigo é regressiva, já que o desprezo aristocrático dos senhores pela tecnologia combinava-se com a resistência que os escravos tinham em realizar novas e complexas tarefas (Marx, SDa, p.191). Em ambos os casos, o trabalho da produção se concentra na “agricultura de pequena escala e no trabalho paralelo de pequenos artesãos independentes” (Marx, SDa, p.316). O feudalismo e a escravidão não persistem porque as forças produtivas seriam mais fracas se os agricultores e artesãos eliminassem os aristocratas feudais ou escravocratas. A tendência geral dos comentários de Marx aponta para uma direção contrária. Elas persistem porque os agricultores e os artesãos não dispunham dos meios (principalmente da unidade e da disciplina sobre grandes áreas geográficas) para derrotar o poder da aristocracia. Na verdade, Marx considera o feudalismo e a escravidão como triunfos essencialmente militares, mais do que produtivos. “Se os próprios seres humanos são conquistados, juntamente com a terra e o solo [...] eles são igualmente conquistados para servirem como condições de produção e, desse modo, dão origem à escravidão e à servidão” (Marx, 1972, p.491).9

Uma terceira assertiva teórica peculiar que Cohen atribui a Marx é que as transformações sociais fundamentais resultam basicamente das transformações nas forças produtivas. Consequentemente, seria de esperar que Marx descrevesse com frequência as transformações das forças produtivas em sua explicação sobre

7 Cf. também Marx (SDa, p.132). 8 Cf. também Marx (SDa, p.672). 9 É claro que os senhores feudais e escravocratas podem incrementar a produção, forçando seus

trabalhadores a trabalhar mais arduamente. Mas o nível de desenvolvimento das forças produtivas não deve ser medido por sua produção total, e sim por sua produção potencial por homem-hora, quando empregadas eficientemente. De qualquer modo, a lembrança dos elementos coercitivos da estrutura econômica e da superestrutura política não conforta o determinista tecnológico, que está comprometido com a visão de que as características básicas da estrutura e da superestrutura são ditadas pelas necessidades das forças produtivas. Segundo essa visão, tais características funcionam independentemente para excluir estruturas e superestruturas essencialmente diferentes.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 93Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 93 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 94: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

94 • Crítica Marxista, n.31, p.83-109, 2010.

como o feudalismo se tornou instável e deu lugar ao capitalismo. Em meu esboço anterior acerca do relato de Marx sobre essas transformações, mencionei diversas transformações das forças produtivas em um sentido amplo do termo, segundo o qual a organização do trabalho artesanal em fábricas e a organização em grande escala do trabalho agrícola em propriedades rurais, nas quais predominava a monocultura, são forças produtivas. Porém, Cohen adota um uso relativamente restrito, segundo o qual tais fatores não são forças produtivas. Esse uso restrito permite que Cohen chame sua interpretação de “tecnológica” (Cohen, 1978, p.29) sem ludibriar seus leitores. Entretanto, tal estratégia é contraditória. Nas expli-cações paradigmáticas de Marx sobre as transformações de um tipo particular de economia para outro, sua história da ascensão do capitalismo, as transformações das forças produtivas possuem, em sentido estrito, apenas um papel menor.

Quando Cohen determina o que pode ou não ser considerado força produtiva, enfatiza dois critérios: uma força produtiva é usada na produção e ela pode ser apropriada. Aplicando esses critérios, ele exclui das forças produtivas aquilo que Marx chama de “modos de cooperação” e o que Cohen denomina “relações de trabalho [...] relações que unem os produtores envolvidos na produção material, concebida abstratamente em relação aos direitos e poderes que eles desfrutam em relação aos outros” (Cohen, 1978, p.111).

Na verdade, é extremamente inconveniente dizer que “ele usa e possui uma relação de trabalho, em particular a especialização interdependente de artesãos numa fábrica de relógios”, e não muito inconveniente dizer que “ele usa e possui uma força produtiva, em particular, um torno”. No entanto, o uso comum pode ser um mau guia na interpretação de “força produtiva”. Marx explicita e inoportuna-mente afirma, como reconhece Cohen, que o óleo lubrificante e os navios a vapor são forças produtivas. De qualquer modo, o critério do “uso e da propriedade” não corresponde à proposta explícita de Marx, mas à interpretação de Cohen. A validade dessa interpretação, que tende a reduzir as forças produtivas à tecnologia concebida de maneira estrita, depende do seu grau de aproximação da prática de Marx como historiador e das suas afirmações gerais como teórico.

Quando Marx descreve as transformações da produção que iniciaram a as-censão do capitalismo, está pensando quase que exclusivamente na generalização de certas relações de trabalho, uma transformação que, por sua vez, não se baseia nas inovações tecnológicas fundamentais para Cohen. A produção de artesãos em oficinas pequenas, independentes e especializadas é substituída pela “manufatu-ra”, a produção de muitos artesãos interdependentes de diversas especialidades, reunida em um único local. A plantação de diversas lavouras em pequenos lotes familiares é substituída por monoculturas em grandes lotes. As transformações tecnológicas quase não são mencionadas. De fato, as descrições gerais de Marx do papel das transformações tecnológicas na ascensão do capitalismo, em oposição às transformações das relações de trabalho, são explicitamente antitecnológicas. Ele afirma, n’O capital:

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 94Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 94 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 95: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: ... • 95

Com relação ao modo de produção, a manufatura, em seu sentido restrito, mal se distingue, em seus estágios iniciais, do comércio de artesanato das corporações, a não ser pelo maior número de trabalhadores empregados simultaneamente por um único capitalista. A oficina do mestre artesão medieval é simplesmente expandida (Marx, SDa, p.305).

No Manifesto, a avaliação de Marx da mudança do modo de produção feudal para o capitalista é uma descrição de como a atividade comercial produziu mu-danças nas relações de trabalho:

A organização feudal da indústria, sob a qual esta era monopolizada por corpo-rações fechadas, já não satisfazia às necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados. A manufatura a substituiu. A pequena burguesia industrial suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão de trabalho dentro da própria oficina (Marx, 1973a, p.110).10

Marx muitas vezes insiste em que o desenvolvimento e o subsequente entra-ve das forças produtivas é o que inicia as transformações sociais fundamentais. Mesmo que Cohen tenha corretamente definido o escopo das “forças produtivas”, Marx transgride dramaticamente esse princípio em seus textos históricos. A não ser que Marx tivesse uma enorme capacidade de incoerência, ele deve ter usado a expressão em um sentido mais amplo.

A interpretação estrita do “uso e propriedade”, que tende a restringir as for-ças produtivas ao estritamente tecnológico, além de não corresponder à prática histórica de Marx, entra em conflito surpreendente com diversas passagens, nas quais ele explicitamente classifica modos de cooperação como forças produtivas. Por exemplo, n’A ideologia alemã ele afirma:

Por social entendemos a cooperação de diversos indivíduos, não importa sob quais condições, de que modo e para qual fim. Segue-se disso que certo modo de produ-ção ou estágio industrial está sempre combinado com certo modo de cooperação ou estágio social, sendo esse mesmo modo de cooperação uma “força produtiva”.

10 Cohen menciona a referência de Marx aos métodos aperfeiçoados de cultivo n’O capital como um importante recurso a fim de moldar a explicação de Marx da ascensão do capitalismo ao determi-nismo tecnológico. Mas o comentário de Marx é apenas uma breve referência. A transformação tecnológica que ele menciona é inundada por outras transformações históricas mais amplas e até mesmo na própria passagem citada por Cohen: “A revolução nas condições da propriedade rural foi acompanhada por uma melhoria dos métodos de cultura, maior cooperação, concentração dos meios de produção etc.” (Marx, SDa, p.700).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 95Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 95 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 96: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

96 • Crítica Marxista, n.31, p.83-109, 2010.

Além disso, a infinidade de forças produtivas acessível aos homens determina a natureza da sociedade (Marx, 1972, p.50).

Marx também denomina “o poder social [...] que surge em virtude da coope-ração de diferentes indivíduos, enquanto determinada pela divisão do trabalho” como uma força produtiva (Marx, 1972, p.54). Nos Grundrisse, contemporâneos até certo ponto ao Prefácio, Marx afirma sobre os grupos de trabalhadores que “A unificação de suas forças aumenta sua força de produção” (Marx, 1973b, p.528). Também se refere à “associação de trabalhadores – a cooperação e a divisão de trabalho” – como uma capacidade produtiva “[uma tradução alternativa de ‘Pro-duktivkraft’, no lugar de ‘força produtiva’, que é o termo geralmente empregado] do trabalho (Marx, 1973b, p.585), assim como à força produtiva que surge da combinação social” (Marx, 1973b, p.700). N’O capital, Marx se refere à “força social que é desenvolvida quando muitas mãos participam simultaneamente de uma mesma e única operação”. “Nesse caso, não temos apenas um aumento do poder produtivo do indivíduo mediante a cooperação, mas a criação de um novo poder, a saber, o poder coletivo das massas” (Marx, SDa, p.308-s).11 De fato, Marx dedica dois longos capítulos à análise dos modos de cooperação, descrevendo-os insistentemente como forças produtivas (Marx, SDa, p.312, 315-6, 340, 344).

A questão da inclusão das relações de trabalho entre as forças produtivas não se reduz a um mero problema de definição. A história das relações de trabalho é, obviamente, governada em grande parte pela busca do controle social, da disciplina do trabalho e das vantagens comerciais. Uma tese geral no sentido de que o de-senvolvimento dessas forças produtivas é, em grande parte, o resultado autônomo do esforço para superar a escassez natural por meio da aplicação do conhecimento sobre fatores físicos é, à primeira vista, inteiramente implausível. Porém, para Cohen, a primazia da batalha contra a natureza é a essência da primazia das forças produtivas. “Os homens constroem a história porque [...] precisam de tempo e ação para vencer a natureza” (Cohen, 1978, p.23). Uma atividade é “produtiva”, de modo que aquilo que nela é utilizado possa ser uma força produtiva, “apenas se sua necessidade é baseada nos fatos físicos da situação” (Cohen, 1978, p.34).

De fato, o prestígio dos escritos de Marx entre os militantes confere à questão da definição das “forças produtivas” uma importância política contemporânea enorme. Se a transformação das relações de trabalho, e não da nova tecnologia, pode ser o meio pelo qual as forças produtivas dissolvam as antigas estruturas econômicas, então as teorias gerais de Marx não sugerem que o progresso tecno-lógico seja um meio necessário, ou mesmo efetivo, para que um regime promova uma região tecnologicamente atrasada na direção do socialismo.

11 Como, em geral, “poder” e “força” são traduções alternativas de “Kraft”.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 96Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 96 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 97: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: ... • 97

Ao desenvolver minha própria interpretação alternativa à de Cohen, adotarei uma leitura mais ampla das “forças produtivas”. Tais forças consistem em ativi-dades, ferramentas e materiais, por meio dos quais os bens materiais são criados e tornados úteis, desde que a existência dessas atividades, ferramentas e materiais não implique, por si só, direitos e poder de controle sobre as pessoas e as coisas. Essa concepção corresponde à descrição de Marx dos “fatores elementares do processo de trabalho” n’O capital: “1. a atividade pessoal do homem, isto é, o próprio trabalho; 2. o sujeito desse trabalho; 3. seus instrumentos” (Marx, SDa, p.174). Ela também descreve aquilo que Cohen chama de “modo de produção material” (Cohen, 1978, p.79).12

Uma hipótese alternativaExiste uma imagem familiar de Marx como um historiador extraordinário,

cujas teorias gerais se distanciaram enormemente das suas percepções históricas, em virtude seu envolvimento na política. Se as afirmações teóricas mais gerais de Marx tornassem necessária a interpretação de Cohen, teríamos motivos para apoiar esse diagnóstico. Porém, há ainda dois modos por meio dos quais podemos unir as afirmações mais teóricas de Marx às suas explicações históricas. A primeira, que apresentarei nesta seção, corresponde a todas as afirmações teóricas gerais de Marx e quase que à totalidade das suas explicações específicas. Segundo essa perspectiva, as estruturas econômicas possuem grande independência causal, en-quanto o crescimento das forças produtivas (no sentido amplo e não tecnológico) permanece a base para as transformações internas. Trata-se da teoria geral da história com a qual Marx explicitamente se compromete. A segunda teoria, que apresentarei na próxima seção, corresponde a todas as suas explicações específi-cas, bem como, em grande medida, à quase totalidade das suas afirmações mais gerais, se não inteiramente. Trata-se de uma versão ampliada da primeira teoria, segundo a qual o crescimento das forças produtivas não é apenas a única causa interna das transformações. Esta é a teoria que, na prática, guiou Marx em seus escritos históricos. Concluirei com uma especulação sobre a razão da pequena, mas significativa, disparidade que permanece entre as afirmações gerais de Marx sobre a história e suas explicações históricas específicas nesta interpretação.

Na visão de Marx, uma estrutura social estável e uma transformação social radical estão ambas fundamentadas, em última instância, no modo de produção,

12 Cohen propõe incluir entre as forças produtivas não as próprias relações de trabalho, mas o “conheci-mento dos modos de organização das relações de trabalho” (1978, p.112), o que destoa da sua prática usual. Ele não consideraria excluir as máquinas, mas incluir seus projetos. Tal proposta não é muito beneficiada pelo “uso e propriedade”. É no mínimo estranho dizer que alguém possui o conheci-mento de que os grupos de trabalho podem aumentar a produção. Ela se afasta da clara identificação que Marx faz da cooperação como força produtiva, não ajudando a localizar as transformações cruciais nas forças produtivas, pois as pessoas na Alta Idade Média – de fato, já no Egito Antigo – já possuíam o conhecimento das formas de cooperação que existiam na Inglaterra no século XVII.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 97Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 97 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 98: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

98 • Crítica Marxista, n.31, p.83-109, 2010.

nas atividades, equipamentos e relações materiais e sociais por meio das quais os bens materiais são produzidos. O modo de produção inclui as forças produti-vas, no sentido que Cohen lhes atribui, [e] as forças produtivas, de acordo com a minha interpretação mais ampla, tais como as relações de trabalho e as relações sociais de produção. Embora o conceito de modo de produção não tenha um papel fundamental na interpretação de Cohen, ele é abundantemente utilizado nas afirmações gerais de Marx sobre a história, incluindo um trecho notável do Prefácio: “O modo de produção da vida material condiciona os processos da vida social, política e intelectual em geral”.

Diferentes características do modo de produção são primárias, dependendo do que está sendo explicado: as características de uma sociedade estável ou a ocorrên-cia e direção da transformação. No caso das sociedades estáveis, a característica fundamental da estrutura econômica é primária; no caso da transformação social, são as forças produtivas (no sentido amplo).

As características mais importantes de uma sociedade relativamente estável são, em grande medida, explicadas pelas necessidades e poderes do que Marx chamou de “classe dominante”, o grupo na estrutura econômica que, mediante o controle das forças produtivas, controla, sobretudo, o produto excedente dos participantes diretos na produção.13 Em virtude do controle da classe dominante sobre o excedente, as instituições políticas e ideológicas operarão para manter a estrutura econômica, ao menos à medida que ela beneficie essa classe.14

Esse quadro explicativo das características de uma sociedade estável cria um problema premente quando o assunto é a transformação social, o que é ainda mais premente para um revolucionário como Marx. Se uma sociedade é dominada por uma classe dominante que combina o poder econômico, o político e o ideológico, como é que processos internos à sociedade transformam sua estrutura econômica em outro tipo básico, marcado pela supremacia de uma classe diferente?

Com respeito a essa questão da transformação, as forças produtivas são primá-rias. Tal como Hegel antes, Lênin depois e cientistas incessantemente engajados, Marx trata a questão da primazia como algo concernente ao problema abordado.

13 Minha interpretação, como a de Cohen, está direcionada a sociedades, nas quais a divisão de classes já apareceu. Em seus raros comentários sobre as sociedades pré-classes, Marx enfatiza a influência determinante da luta constante do grupo contra a natureza sem a ajuda de um arsenal substancial de ferramentas. Os dois fatores para a transformação que ele menciona como iniciado-res das divisões de classe são a conquista e uma divisão mais estrita do trabalho, estimulada pela troca com outros grupos. Nenhum desses dois fatores aparece na teoria de Cohen sobre as forças produtivas. Cf. Marx (1973b, p.471-513); e também Marx (SDa, p.91-s, p.332-s).

14 A ideologia alemã contém inúmeras descrições claras e gerais sobre o domínio da classe dominante; por exemplo, “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é a força material dominante numa sociedade é, ao mesmo tempo, sua força intelectual dominante. A classe que possui os meios de produção material a sua disposição detém, ao mesmo tempo, o controle sobre os meios da produção mental, de modo que, em geral, as ideias daqueles que não possuem os meios da produção mental estão submetidos a ela” (Marx, 1972, p.64). “O Estado é a forma por meio da qual os indivíduos da classe dominante asseguram seu interesse comum” (Marx, 1972, p.80).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 98Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 98 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 99: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: ... • 99

Uma estrutura econômica relativamente estável permite que as pessoas usem novos tipos de forças produtivas ou empreguem velhos tipos em grande quan-tidade, à medida que elas demandam maior controle sobre os bens materiais. Essa possibilidade de transformação pode ter consequências revolucionárias imprevisíveis. Embora admitidas, as forças produtivas auxiliares podem vir a ser bloqueadas, à medida que a estrutura econômica antiga não encoraje seu uso efetivo, diferentemente de uma nova. Por exemplo, como os empresários eram bastante conscientes na Inglaterra do século XVII, o alto investimento fixo exigido pela agricultura em grande escala ou pela construção de uma fábrica era desenco-rajado pelo risco de que o investimento pudesse não dar em nada, em virtude da concessão a algum favorito da corte e de um monopólio real. Em um determinado momento, os entraves impostos às forças produtivas puderam ser quebrados e uma estrutura econômica nova e mais adequada pôde se estabelecer em virtude de fatores quantitativos ou qualitativos, geralmente ambos. Quantitativamente, pode ser que as novas forças produtivas sejam muito mais produtivas em uma nova estrutura econômica, de modo que uma classe que domine a nova estrutura possa organizar uma revolução bem-sucedida contra a classe dominante, baseada em uma expectativa generalizada de um bem-estar maior. Qualitativamente, pode ser que as novas forças produtivas – em particular, as novas relações de trabalho – sejam de um tipo que conceda à classe não dominante um novo poder de controle do excedente, independentemente do aumento potencial da dimensão do produto social. Marx concede aproximadamente a mesma ênfase aos fatores quantitativos e qualitativos em sua explicação sobre como o socialismo triunfará. As profundas depressões industriais e as guerras cada vez mais violentas, características do capitalismo avançado, limitam a capacidade da sociedade de proporcionar bem--estar material com as forças produtivas que o capitalismo desenvolvera. Ao mesmo tempo, a unidade em grande escala, a disciplina e a coordenação produzidas pelas relações de trabalho capitalistas concedem pela primeira vez aos trabalhadores a capacidade de apoderar-se e controlar as forças produtivas.15

Os membros típicos de uma classe subordinada querem melhorar seu bem--estar, seu poder e suas oportunidades, tanto em termos absolutos quanto em termos relativos à classe dominante. Porém, como os entraves restringem o desenvolvi-mento das forças produtivas, eles limitam as possibilidades de aperfeiçoamento, no interior da antiga estrutura econômica, de uma classe subordinada, cujo status depende do desenvolvimento dessas forças. Como vimos, as transformações das

15 Ambos os fatores são enfatizados nas famosas descrições do triunfo do socialismo no Manifesto comunista (Marx, 1973a, p.119) e n’O capital (Marx, SDa, p.715). Marx enfatiza o fator quantitativo em sua explicação sobre a ascensão da burguesia, que havia sido internamente bem organizada na sociedade feudal, mas precisava de relações com grupos maiores, criadas pela promessa de liberação das restrições feudais sobre a produção. Ele enfatiza o fator qualitativo em sua descrição de como a aristocracia greco-romana se oginou em virtude das vantagens competitivas de fazendas maiores, em uma economia agrícola voltada para o comércio [Engl.: cash-crop economy].

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 99Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 99 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 100: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

100 • Crítica Marxista, n.31, p.83-109, 2010.

forças produtivas que resultam desse entrave podem, ao mesmo tempo, conceder à classe subordinada uma nova habilidade para transformar a sociedade, atacando a superestrutura que mantém a antiga estrutura econômica, estabelecendo uma nova estrutura sem entraves, presidida por essa classe. Como esse processo envolve a superação dos entraves sobre as novas forças produtivas, a nova sociedade será mais produtiva que a antiga. Em resumo, a transformação ocorre quando as forças produtivas se desenvolvem de tal modo que a) a antiga estrutura econômica inibe seu uso efetivo posterior, produzindo um novo motivo para uma transformação estrutural e b) as bases econômicas do poder de classe são transformadas, possi-bilitando que uma classe anteriormente subordinada inaugure uma nova estrutura econômica sob seu domínio, melhor adaptada às forças produtivas.

Por uma questão de mera conveniência, chamarei a interpretação que acabei de esquadrinhar de “interpretação do modo de produção”. Resumi anteriormente a interpretação tecnológico-determinista de Cohen, listando suas respostas a três questões sobre estabilidade e transformação. A diferença entre essas interpretações se reflete nas diferentes respostas que elas fornecem.

Segundo a interpretação do modo de produção, o caráter da sociedade estável é explicado pela dominação econômica da classe dominante. Em si, essa afirma-ção não é apenas perfeitamente compatível com a interpretação de Cohen, mas está, na verdade, implícita nela. Só que existe outro elemento no determinismo tecnológico ausente da interpretação do modo de produção: a suposição de que uma estrutura econômica estável atue melhor na promoção da produtividade do que qualquer outra estrutura alternativa. Estruturas econômicas alternativas, ao menos tão produtivas quanto a que triunfa, podem ser eliminadas por incapacidades que resultam da situação de classe das pessoas que estariam totalmente aptas à produção material. Isso está de acordo com as abordagens de Marx do feudalismo e da escravidão. No que se refere, por exemplo, à produtividade, uma estrutura dominada por artesãos e camponeses poderia ao menos ter sido tão efetiva quanto a estrutura econômica feudal. Porém, unidade e disciplina coletiva sobre grandes áreas geográficas teriam sido necessárias para por em cheque os benefícios que os senhores obtinham do excedente que controlavam. As relações sociais dos camponeses, ao enfocar as lealdades no interior da família e do vilarejo, garan-tiram que a solidariedade de classe necessária para esse processo não ocorresse (Marx, 1972, p.45).16

Segundo o determinismo tecnológico, o desenvolvimento das forças produtivas é, em grande medida, o resultado autônomo de uma tendência humana geral de utilizar a tecnologia para superar a escassez natural. A interpretação do modo de produção não faz essa afirmação, seja do ponto de vista da utilização ampla das “forças produtivas” que essa interpretação geralmente emprega, seja do ponto de vista da utilização restrita, característica do determinismo tecnológico. O

16 Cf. também Marx (1973a, p.114-9); e Marx (SDa, capítulo 32).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 100Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 100 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 101: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: ... • 101

vai-e-vem dialético que essa interpretação permite entre as transformações nas forças produtivas e os processos sociais não derivativos é requerido por todas as discussões concretas que Marx faz sobre as principais transformações das forças produtivas. Além disso, por não adotar uma tendência geral para o avanço tecnológico predominantemente independente das forças sociais, a interpretação do modo de produção considera a possibilidade de que uma estrutura econômica possa engendrar poderes e atitudes que excluam aumentos substanciais de pro-dutividade. Tal possibilidade está presente na explanação de Marx sobre a Índia e a China antigas (Marx, 1973b, p.486).17

Na interpretação tecnológico-determinista, o que inicia a mudança social radical é a transformação das forças produtivas, concebidas de um modo tecno-lógico relativamente restrito. A subsequente era das revoluções finaliza com uma sociedade que atingiu um índice ótimo de produtividade, dadas as novas forças produtivas. Na interpretação do modo de produção, as transformações das forças produtivas iniciam a transformação social. Porém, as forças produtivas são con-cebidas de um modo mais amplo e incluem as relações de trabalho. A explicação paradigmática de Marx da transformação social, sua discussão sobre a ascensão do capitalismo, exige essa leitura ampla. Além disso, a nova sociedade não precisa atingir um grau de produtividade máxima. Ao superar os entraves na produção, ela será mais produtiva que a antiga. Mas novas alternativas, ao menos tão produtivas quanto a triunfante, podem ser eliminadas por diferenças de poder baseadas em diferenças históricas na situação de classe. Essa é a possibilidade implícita na discussão de Marx sobre a sociedade feudal e a escravocrata.

Uma interpretação que une a visão geral de Marx da história com praticamente todas as suas explicações históricas específicas é, certamente, preferível a uma interpretação que o reduza à metade. Argumentei que a interpretação do modo de produção é preferível por esse motivo. Ademais, ela se adapta melhor a várias assertivas gerais de Marx do que a interpretação do determinismo tecnológico, bem como é compatível com as demais.

A primeira descrição detalhada de Marx da sua teoria da história encontra-se n’A ideologia alemã, onde ele e Engels inauguram seu mais importante resumo dos temas que Cohen retoma com a sentença: “A forma da relação determinada pelas forças produtivas existentes em todos os estágios históricos precedentes, que por sua vez as determina, é a sociedade civil” (Marx, 1972, p.57). Nesse caso, a “sociedade civil” significa incontestavelmente relações sociais de produção. Inicialmente, ela é apresentada como um parceiro casual das forças produtivas, não como sua subordinada.

Ao mesmo tempo que Marx silenciosamente fez com que o Prefácio não fosse publicado, ele encorajou – e muitas vezes supervisionou – durante toda a sua vida a reedição do Manifesto comunista. Nesse texto, as afirmações gerais

17 Cf. também Marx (SDa, p.140 e 330).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 101Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 101 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 102: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

102 • Crítica Marxista, n.31, p.83-109, 2010.

sobre a história enfatizam o aspecto social da produção e não dão primazia ao tecnológico. Elas são resumidas pela sentença que introduz o esquema de Marx da história mundial: “A história de todas as sociedades até agora existentes é a história da luta de classes”.

O trabalho teórico de Marx foi dominado pela escrita d’O capital. Essa obra contém proposições gerais sobre a natureza e a transformação da sociedade, que convidam a uma leitura não tecnológico-determinista. Por exemplo:

A forma econômica específica, por meio da qual o trabalho não remunerado é ex-traído dos produtores diretos, determina a relação entre governantes e governados, à medida que cresce diretamente da própria produção, reagindo sobre ela [isto é, sobre a própria produção], como um elemento determinante. Entretanto, sobre essa base é fundada toda a formação da comunidade econômica [...] e, simultaneamente a ela, sua forma política específica. Ela [...] revela o segredo mais íntimo, a base oculta de toda a estrutura social (Marx, SDb, p.791).18

Entre as proposições gerais citadas por Cohen como respaldo à sua interpreta-ção, o Prefácio é o mais importante e extremamente representativo. Ao demonstrar como o Prefácio pode ser moldado à interpretação do modo de produção, espero ter fornecido ao leitor interessado os meios de adaptação do restante da evidên-cia textual que, para Cohen, “demonstra” (Cohen, 1978, p.xi) que Marx era um determinista tecnológico.

Grande parte do Prefácio é obviamente compatível com as duas interpretações. Duas sentenças resistem à interpretação do modo de produção. Em um determi-nado ponto, Marx diz que “nenhuma formação social perece antes que todas as forças produtivas que nela possuem lugar tenham se desenvolvido”. Interpretada na sua literalidade, essa proposição não encontra lugar na interpretação do modo de produção. Entretanto – e Cohen é consciente disso –, ela tampouco encontra lugar no julgamento sensato de Marx, que não acreditava que o capitalismo, ou mesmo o feudalismo, fosse incapaz de qualquer progresso tecnológico no momen-to da sua morte. Essa frase, assim como outras semelhantes, presentes na crítica de Marx a Proudhon, deve ser uma afirmação hiperbólica sobre o fato de que uma formação social é viável, desde que não iniba o desenvolvimento das forças produtivas, que são ameaçadas quando o entrave se estabelece. Tal afirmação é parte de ambas as interpretações.

Marx introduz o resumo das suas noções da história com a seguinte sentença: “Na produção social de suas vidas, os homens entram [...] em relações de produ-ção que correspondem a um estágio determinado do desenvolvimento das suas

18 Cf. também Marx (SDa, p.209) e o resumo da ascensão do capitalismo em Marx (1968, t. I, p.389) – obra que na verdade constitui o quarto volume d’O capital.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 102Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 102 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 103: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: ... • 103

forças produtivas materiais”. Cohen está correto ao observar que essa proposição dá algum tipo de primazia às forças produtivas. Isso está correto no contexto, já que não há nenhuma afirmação subsequente sobre a correspondência entre for-ças produtivas e relações de produção. Mas essa primazia necessita ser do tipo requisitado pela interpretação do determinismo tecnológico?

Segundo a interpretação do modo de produção, as forças produtivas (no sentido amplo) possuem um papel único no causar da mudança social fundamental. No que se refere aos fatores internos de uma sociedade, o que provoca a mudança da soma das relações de produção de um tipo fundamental para outro são as trans-formações das forças produtivas. As transformações das relações ocorrem quando os entraves sobre as forças produtivas são superados. Isso é claramente exprimido ao dizermos que as relações de produção características de uma sociedade corres-pondem (isto é, resultam do ajuste da sociedade) ao estágio de desenvolvimento das forças produtivas.

Nesse caso, o movimento fundamental da causalidade vai em uma direção. No geral, não se pode dizer que as transformações das forças produtivas são causadas por transformações das relações de produção. As relações sociais, preservadas pelo domínio da classe dominante sobre a superestrutura, constituem o aspecto relativamente estático da produção, ao passo que as forças produtivas constituem o aspecto relativamente fluido. Transformações do segundo são a origem básica de transformações do primeiro, e não o inverso.

Como vimos, existem diversos desenvolvimentos sociais que não derivam das forças produtivas e que possuem um impacto crucial sobre as forças produtivas. Mas essas transformações não são, em regra, mudanças das próprias relações de produção. Trata-se frequentemente de novas necessidades e oportunidades comerciais ou de novas pressões competitivas que surgem da perseguição ao lucro, determinada pelas antigas relações de produção. Por exemplo: o desenvol-vimento de mercados continentais de lã ou a exploração, por parte dos campo-neses ricos, dos preços inflacionados de alimentos e aluguéis fixos. Além disso, muitas transformações das forças produtivas são, obviamente, o resultado do uso do conhecimento humano para superar a escassez natural. O determinismo tec-nológico não está totalmente errado. Finalmente, ainda há casos nos quais novas relações de produção encorajam transformações das forças produtivas de modo relativamente direto. Tal influência direta operou na Revolução Industrial à me-dida que as máquinas foram introduzidas pelos manufatureiros capitalistas para destruir as vantagens de barganha dos trabalhadores remunerados especializados. Essas mesmas pressões não existiam nas oficinas das corporações. Ainda assim, o impacto das transformações nas relações é apenas parte da história de por que as forças se transformam. O impacto das transformações das forças é a história fundamental de por que as relações mudam.

A passagem central de Cohen do Prefácio, juntamente com os comentários autobiográficos que a introduzem, enfatiza a preocupação primordial de Marx,

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 103Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 103 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 104: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

104 • Crítica Marxista, n.31, p.83-109, 2010.

tanto política como intelectual, com as causas da transformação social em gran-de escala. Diante dessa ênfase, é inteiramente apropriado, do ponto de vista da interpretação do modo de produção, que Marx falasse de uma correspondência das relações ao desenvolvimento das forças, mas não vice-versa, no curso dos esboços preliminares da sua visão fundamental.19

Uma visão mais amplaA interpretação do modo de produção tenta fornecer explicações de todas as

proposições gerais de Marx sobre a transformação histórica e de quase todas as suas explicações de episódios históricos específicos. Entretanto, Marx às vezes oferece explicações específicas que sugerem uma visão ainda mais ampla da história, de acordo com a qual o crescimento das forças produtivas, definidas de modo amplo, não constitui a única fonte interna da mudança fundamental.

Os Grundrisse, de fato as notas preparatórias de Marx para O capital, con-têm um caso especialmente claro sobre esse tipo de explicação, bem como uma descrição bastante geral do tipo de mecanismo de transformação do qual essas explicações dependem. Nesse texto, Marx examina a transformação da antiga sociedade romana, composta por fazendas domésticas independentes, para uma sociedade caracterizada por profundas divisões de classe entre não escravos (Marx, 1973b, p.487; 493-5; 506). Sua hipótese é a de que a estrutura econômica mais antiga se manteve mediante os meios que garantiram sua posterior destruição. Com o crescimento da população, novas famílias adquiriram fazendas, como resultado das conquistas e da colonização, aumentando a quantidade de terras, escravos e tributos. Esse processo de expansão conferiu um poder cada vez maior aos fazendeiros ricos, que dominaram o exército e a administração dos recursos públicos. Além disso, eles se beneficiaram especialmente com o crescimento do comércio produzido pela expansão territorial, já que os fazendeiros ricos eram mais bem equipados para ajustar sua produção às demandas do mercado. Final-mente, os fazendeiros em melhores condições econômicas utilizaram seu controle acumulado sobre as terras, os escravos e o aparato político para se tornarem a nova classe dominante de grandes proprietários de terras. Outros fazendeiros se tornaram seus arrendatários explorados, quando não foram inteiramente expro-priados. “Assim”, conclui Marx, “a preservação da antiga comunidade inclui a destruição das condições sobre nas quais ela se apoia, tornando-se seu contrário” (Marx, 1973b, p.494).

19 A passagem a qual Cohen, assim como muitos outros pesquisadores de Marx, constantemente retorna é parte de uma pequena referência autobiográfica, que se segue a uma modesta sentença introdutória (não citada por Cohen): “O resultado geral ao qual cheguei e que, uma vez formula-do, serviu como guia para meus estudos, pode ser resumido da seguinte maneira”. Não consigo pensar em nenhum outro importante teórico, cuja teoria geral seja frequentemente reconstruída, em grande medida, por meio da leitura cerrada de uma breve formulação, inserida em uma nota autobiográfica de um prefácio.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 104Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 104 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 105: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: ... • 105

O Prefácio, bem como diversas outras proposições gerais sobre a história, considera as contradições entre a estrutura econômica e as forças produtivas o ponto de partida das transformações. Porém, nessa explicação da transformação no mundo antigo, as contradições no interior da antiga estrutura econômica são, em si, suficientes para provocar a transformação. A antiga estrutura econômica é mantida por meio de processos que, em última instância, a destróem, excetuando as transformações das forças produtivas, mesmo no amplo sentido do termo. Com efeito, Marx distingue explicitamente esse tipo de processo de transformação, no qual a manutenção da agricultura doméstica através da conquista resulta autodes-trutiva, do processo de transformação através do crescimento da produção. Após a passagem citada sobre a preservação da antiga comunidade que se transforma em seu oposto, ele acrescenta:

Se fosse possível pensar que a produtividade de uma mesma terra pudesse ser incrementada pelo desenvolvimento das forças produtivas etc. (justamente os aspectos mais lentos da agricultura tradicional), então a nova ordem incluiria com-binações de trabalho, uma grande parte do dia gasto na agricultura etc., e, desse modo, novamente modificaria as antigas condições econômicas da comunidade (Marx, 1973b, p.494).

Nesse caso, o crescimento das forças produtivas é uma fonte alternativa ima-ginável, mas improvável, da transformação econômica fundamental.

As hipóteses de Marx sobre o mundo antigo exigem uma perspectiva mais ampla do que a do Prefácio. No entanto, a estrutura social e a transformação social estão baseadas no modo de produção. Ao mesmo tempo, as instituições de uma sociedade estável são os meios de preservação do controle da classe dominante. Da mesma forma, a transformação interna fundamental ocorre porque o modo de produção como um todo encoraja os processos que, finalmente, fornecem a um grupo social a capacidade e a aspiração para destruí-lo e criar um novo. No entanto, esse processo de autodestruição pode assumir duas formas. Como no Prefácio, as forças produtivas podem crescer até encontrar entraves. De outro lado, a estrutura econômica pode se conservar por intermédio das relações de poder sobre as pessoas e as forças produtivas que, depois de algum tempo, permitem a um grupo acumular poder para refazer a sociedade. Como essas relações de po-der (por exemplo, o controle coletivo por parte dos não escravos dos meios para adquirir novas terras e escravos para a agricultura doméstica) são, elas próprias, uma parte da estrutura econômica, poder-se-ia considerar a transformação de uma estrutura econômica como o resultado do conflito com ela mesma, assim como com as forças produtivas. Denominarei essa visão da história como a interpretação mais ampla do modo de produção.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 105Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 105 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 106: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

106 • Crítica Marxista, n.31, p.83-109, 2010.

Embora a discussão nos Grundrisse sobre as divisões de classe na Roma Antiga sejam excepcionalmente claras e detalhadas a esse respeito, inúmeras outras passagens também recorrem ao mecanismo da transformação característico da visão mais ampla da história. Uma versão bastante condensada da discussão dos Grundrisse já pode ser encontrada n’A ideologia alemã (Marx, 1972, p.44). O Manifesto comunista descreve o surgimento do capitalismo como, em última instância, conflitos autodestrutivos inerentes à estrutura econômica feudal. Ser-vos fugitivos formam a base de uma burguesia urbana que se une aos monarcas na expansão do comércio internacional e da colonização, em um processo que fortalece de tal modo a burguesia que ela pode dominar e transformar a sociedade (Marx, 1973a, p.109, 82-5).

Nos Grundrisse como um todo, uma discussão longa e autossuficiente sobre as estruturas econômicas pré-capitalistas (Marx, 1973b, p.471 e 515) é dominada pela ideia de que o conjunto total das relações sociais de produção pode determinar a direção da transformação social, incluindo transformações dessas mesmas relações. A possibilidade de que essas relações possam, em última instância, transformar a si próprias é formulada, em termos gerais, em ao menos três passagens (Marx, 1973b, p.487; p.493 e a passagem supracitada da p.494).

N’O capital, as explicações de alguns episódios cruciais da transformação econômica insinuam a interpretação mais ampla do modo de produção, visto que esses episódios mencionam uma tendência autossolapadora de uma estrutura de controle embrionária sobre a produção. Inicialmente, a manufatura capitalista é caracterizada tanto por uma estrutura de controle capitalista sobre os prédios das fábricas e sobre as matérias-primas quanto por um controle operário sobre as ferramentas e o conhecimento técnico. Tal estrutura engendra lutas de classe, nas quais os capitalistas são impelidos a utilizar seu monopólio sobre o exce-dente de riqueza para criar uma nova estrutura industrial. No interior dessa nova estrutura, os trabalhadores são privados do seu antigo poder de barganha, já que utilizam a maquinaria controlada pelo capitalista, a qual exige relativamente pouco conhecimento técnico (Marx, SDa, p.4-7, 10). Em uma sociedade sem classes, organizada em comunidades independentes de agricultores, artesãos e comer-ciantes, podem surgir divisões de classe, quando o contato entre comunidades conduz a um aumento da dependência da produção em grande escala voltada para o comércio em vez da subsistência ou da troca em pequena escala (Marx, SDa, p.91 e 332). Finalmente, a tendência autodestrutiva da estrutura econômica feudal está implícita na descrição de Marx sobre o primeiro estágio da ascensão do capitalismo: “A antiga nobreza havia sido devorada pelas grandes guerras feudais. A nova nobreza era a filha de tempos nos quais o dinheiro era o poder de todos os poderes” (Marx, SDa, p.672).20 A literal autodestruição da antiga aristo-cracia e o surgimento do apoio mercantil às grandes casas reais não resultaram do

20 Devo a Pat Clawson a indicação da importância teórica dessa frase.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 106Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 106 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 107: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: ... • 107

crescimento produtivo, mas de uma tendência à guerra civil inerente à estrutura econômica feudal, na qual o excedente era extraído principalmente por meio do domínio sobre a terra e sobre os seus agricultores, pela força militar que grupos de famílias independentes possuíam.

Em um certo sentido, a teoria mais restrita nunca fez parte do cerne da visão de Marx da história. A razão da afirmação de que o crescimento produtivo é a única fonte interna fundamental da transformação é que apenas o crescimento produtivo e o seu entrave podem servir como um ponto de partida interno para a destruição da classe dominante. Porém, todos os argumentos de Marx existentes sobre esse assunto dirigem-se contra os esforços para localizar uma causa primária da trans-formação externa ao modo de produção, como, por exemplo, inovações culturais independentes ou triunfos militares.21 Marx nunca elaborou um argumento contra a possibilidade de que uma estrutura econômica pudesse ser inerentemente autodes-trutiva em longo prazo. Quando ele exprime essa possibilidade pela primeira vez nos Grundrisse, é para defendê-la. A lógica do argumento de Marx não requer que as forças produtivas sejam primárias, quaisquer que sejam as conclusões às quais ele ocasionalmente possa chegar.

Qual é a teoria de história de Marx, a teoria mais ampla do modo de produção ou a mais restrita? Na prática, é a mais ampla. Quando Marx desenvolve uma explicação que parece adequar-se somente à teoria mais ampla, ele está preparado para adotá-la, a despeito dos aparentes conflitos com a mais restrita. De fato, em pelo menos uma passagem (Marx, 1973b, p.494), Marx reconhece, no caso em questão, que as explicações baseadas na tendência autodestrutiva de uma estru-tura econômica podem ser superiores às explicações baseadas no crescimento das forças produtivas. Ao mesmo tempo, a teoria mais restrita é, sem dúvida, a teoria geral da história de Marx. Suas afirmações mais gerais sobre a natureza da história fazem do crescimento das forças produtivas a base da transformação.

A relutância de Marx em abandonar na teoria um modelo que não o restrin-gisse na prática possivelmente resultou da sua crença em algum princípio geral relativo à transformação. Tal princípio pode ter sido a suposição de que a evolução social sempre envolve progresso, ao menos circunscrito a certo tipo. Essa equação entre evolução e progresso é requerida pela teoria mais restrita, segundo a qual a evolução sempre possibilita o crescimento produtivo. Porém, não é demandada pela teoria mais ampla, já que uma estrutura econômica, destruída por conflitos autoengendrados, não necessita originar uma sociedade mais produtiva. A transição do Império Romano ao feudalismo pode ter sido um caso concreto desse tipo de autodestruição sem progresso produtivo.

21 Como sempre, The German Ideology contém sínteses brilhantes dos argumentos decisivos. Ver, por exemplo, Marx (1972, p.64-8), sobre as transformações culturais, e p.89-s, sobre as conquistas militares.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 107Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 107 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 108: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

108 • Crítica Marxista, n.31, p.83-109, 2010.

Os comentários autobiográficos de Marx no Prefácio sugerem que a equação entre evolução e progresso fora extremamente útil para o seu próprio desenvol-vimento. Tal equação guiou grande parte da melhor ciência social do seu tempo. Nesse sentido, é bastante razoável que ele possa ter relutado em adotar uma nova teoria da transformação, na qual a ideia de progresso não fosse tão central. Além disso, por estar utilizando uma noção bastante abrangente de forças produtivas, Marx pode bem ter esperado que as explicações que pareciam se afastar da teo-ria mais restrita do modo de produção pudessem se reconciliar com ela em uma análise posterior. Os problemas políticos do movimento dos trabalhadores, que sempre direcionaram seus interesses teóricos, não fizeram que Marx considerasse urgente se ocupar dessa expectativa, ou escolhesse entre a teoria mais ampla e a mais restrita, caso a reconciliação falhasse.

No final do século XX, ao contrário, a equação geral entre evolução social e progresso não é mais a hipótese de trabalho dominante da melhor ciência social. Tampouco o contexto político é o mesmo. Ao menos nos países chamados de “menos desenvolvidos”, um argumento frequente daqueles que se consideravam socialistas – e que eram contrários à luta imediata pelo socialismo – é que “as forças produtivas não estão maduras”. A princípio, esse argumento possui muito menos plausibilidade na teoria mais ampla do modo de produção do que na mais restrita. Segundo a teoria mais ampla, mesmo onde o capitalismo seja ainda ma-terialmente tão produtivo quanto qualquer alternativa, ele poderá criar uma classe trabalhadora com a necessidade e o poder para derrubá-lo. Em suma, utilizar-se dos argumentos de Marx para prosseguir com a ambivalência entre as duas teorias não é mais uma boa desculpa.

ConclusãoConcentrei-me no papel das forças produtivas na história porque este é o tema,

tanto do livro de Cohen quanto do debate central entre intérpretes favoráveis a Marx. Entretanto, mesmo aqueles que rejeitam a posição de Cohen aprenderão muito com o seu livro. Suas explicações sobre o que Marx quis dizer com “forças produtivas” e “relações de produção” são as mais claras, detalhadas e elegantes do que qualquer outra. Um sinal da riqueza do livro é que ele traz outras formu-lações extremamente úteis, às vezes oferecidas quase que de passagem, de ideias marxistas complexas (por exemplo, nas breves discussões sobre a mais-valia e a taxa de lucro na página 123).

Várias seções do livro são independentes do debate sobre as forças produtivas. Duas delas são especialmente originais e importantes. No último capítulo, Cohen apresenta um argumento inovador e convincente de que o capitalismo possui uma tendência característica em direção à expansão da produção, em vez da redução do trabalho, mesmo quando a opção de maior tempo de lazer é mais desejável para a maioria de nós. Nos capítulos 9 e 10, desenvolve uma análise e uma defesa geral da explicação funcional, posteriormente empregadas nas relações funcionais

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 108Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 108 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 109: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: ... • 109

entre a superestrutura política, a estrutura econômica e o desenvolvimento das forças produtivas. Argumentando contra as críticas lógico-positivistas típicas, Cohen procura demonstrar que as explicações funcionais são um tipo específico de explicação válida. Em seu argumento, adota o pressuposto positivista de que, para se constituírem em um tipo específico de explicação válida, as explicações funcionais devem relacionar os fenômenos baseando-se em leis gerais verda-deiras de um tipo específico. Alguns leitores poderão ver nisso uma concessão excessiva à oposição à defesa de Cohen da explicação funcional, o que acaba por enfraquecê-la de maneira desnecessária. Ainda assim, mesmo que sua análise possa ser insatisfatória, sua discussão desenvolve uma importante controvérsia que tem sido adiada há muito tempo.

Em seus argumentos centrais e discussões secundárias, Cohen toca em alguns dos debates mais interessantes da teoria social marxista. Certo ou errado, ele eleva o nível de cada um desses debates do qual toma parte.22

Referências bibliográficasAVINERI, Shlomo. The Social and Political Thought of Karl Marx. London: Cambridge

University Press, 1971.COHEN, Gerald. A. Marx’s Theory of History: a Defense. London/New Jersey: Oxford

University Press/Princeton University Press, 1978.GILBERT, Alan. Salvaging Marx from Avineri. In: Political Theory, n.4, 1976, p.9-34.LÊNIN, Vladimir. Our Revolution. In: Collected Works in Three Volumes. Moscou:

Progress Publishers, 1971, t. III.MARX, Karl. Theories of Surplus-Value. Moscow: Progress Publishers, 1968, t. I, p.389.

. The German Ideology. New York: International Publishers, 1972.

. “Communist Manifesto”. In: Marx & Engels, Selected Works in Three Volumes. Moscow: Progress Publishers, 1973a.

. Grundrisse. Tr. M. Nicolaus. New York: Vintage Books, 1973b.

. Capital. Tomo I. Moscow: Progress Publishers, SDa.

. Capital. Tomo III. Moscow: Progress Publishers, SDb. MILLER, Richard The Consistency of Historical Materialism. In: Philosophy and Public

Affairs, n.4, 1975, p.390-409.MOORE, Stanley. Marx & Lenin as Historical Materialists. In: Philosophy and Public

Affairs, n.4, 1975, p.171-97.

22 Este artigo foi escrito durante uma licença sabática e parcialmente financiado pela Rockefeller Foundation Humanities Fellowship. Sou grato aos editores e a Pat Clawson pelos comentários feitos a uma das versões preliminares deste trabalho.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 109Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 109 22/10/2010 15:12:0022/10/2010 15:12:00

Page 110: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 110Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 110 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 111: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Louis Althusser e G. A. Cohen: uma confrontação • 111

Louis Althusser e G. A. Cohen: uma confrontaçãoGRAHAME LOCK *

Durante as décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, o movi-mento operário marxista perdeu, gradativamente, terreno na maioria dos países do mundo ocidental. Apesar disso, o marxismo ainda reteve alguma influência entre os intelectuais desses países, uma influência proporcionalmente maior do que aquela exercida sobre a população como um todo e, mesmo em alguns casos, sobre a classe trabalhadora. Entretanto, nos anos 1970, a teoria marxista entrou no que Louis Althusser chamou de “crise”1 – uma crise claramente ligada, mas não diretamente redutível, às crises mais ou menos simultâneas, não apenas do men-cionado movimento operário marxista, mas também do conjunto dos movimentos dos trabalhadores. Essa crise se estendeu aos sindicatos e aos vários partidos traba-lhistas e socialistas nacionais. Portanto, é um tanto paradoxal o fato de que talvez dois dos mais impressionantes feitos da filosofia marxista do pós-guerra – talvez mesmo de toda a história da filosofia marxista – foram desenvolvidos,

* Professor do Queens‘s College, Oxford, Inglaterra. 1 Ver Althusser (1978a). Com efeito, Althusser não foi o primeiro a usar essa expressão, mas deu a ela

um novo significado. O artigo ao qual Lock se refere – “The Crises of Marxism” – foi, originalmente, publicado em italiano sob o título: “Finalmente qualcosa di vitale si libera dalla crisi e nella crisi del marxismo”. II Manifesto, 16 de novembro de 1977. A referência em francês é: “Enfin la crise du marxisme!”. Il Manifesto (ed.), Pouvoir et opposition dans les sociétés post-révolutionnaires. Éditions du Seuil: Paris, 1978, p.242-53; republicado em Solitude de Machiavel et autres textes (sous la direction de Yves Sintomer). Paris: PUF (coll. “Actuel Marx confrontation”), 1998, p.267-80. A tradução do francês ao inglês é do próprio Grahame Lock e sua versão em inglês possui uma segunda publicação em: II Manifesto (ed.), Power and Opposition in Post-Revolutionary Societies. London: Ink Links, 1979, p.225-37. (N. O.)

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 111Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 111 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 112: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

112 • Crítica Marxista, n.31, p.111-131, 2010.

até certo ponto, simultaneamente ao amadurecimento dessa crise. Refiro-me aos trabalhos de Louis Althusser, na França, e de G. A. Cohen, na Inglaterra.

Procuro, no presente artigo,2 confrontar certos aspectos centrais das suas res-pectivas doutrinas. Essa tentativa, por sua própria natureza – que reúne e compara obras de diferentes tipos, escritas em estilos marcadamente contrastantes e para públicos muito variados –, deixa de discutir grande parte do trabalho dos dois pensadores. Mas ela pode ajudar a esclarecer os principais aspectos daquilo que está em jogo – tanto explícita quanto tacitamente – em suas obras.

As principais teses apresentadas por Cohen, expostas em seu livro Karl Marx’s Theory of History: a Defense,3 já são bem conhecidas. Entretanto, devo enumerar algumas delas para, em seguida, estabelecer de forma clara um contraste com as proposições althusserianas equivalentes. Ignorarei, para os propósitos deste artigo, as posteriores precisões e retratações de Cohen, concernentes aos argumentos apresentados em seu livro.4

Cohen caracteriza seu objetivo da seguinte maneira: defender o materialismo histórico, oferecendo argumentos em seu favor (alguns dos quais foram ignorados mesmo por seus mais ardentes defensores), de modo a enfraquecer ou desarmar alguns dos instrumentos de ataque dos seus adversários. Esse objetivo deve ser atingido particularmente por meio de uma “apresentação da teoria [...] numa forma atraente” (Cohen, 1978, p.ix). Ao contrário da maioria dos marxistas recentes, Cohen defende em seu livro uma ortodoxia tradicional ou “antiquada”, a saber: os escritos do próprio Marx e, mais especificamente, no que concerne à exegese, o conhecido 1859 Vorwort [N.T.: “Prefácio de 1859”] à Zur Kritik der Politischen Oekonomie [N.T.: Para uma crítica da economia política]. Seu propósito é “or-ganizar o pensamento de Marx” e, desse modo, apresentar uma versão “menos ambígua” das suas ideias. Porém, é precisamente essa última ambição, como vou sugerir, que se revela a mais problemática.

O marxismo que Cohen propõe – em um claro contraste, como se tornará evi-dente, com o de Althusser – é uma explicação tecnológica da história. Trata-se de um conceito, segundo o qual “a história é, fundamentalmente, o desenvolvimento do poder produtivo do homem”, na qual “formas sociais surgem e desaparecem conforme possibilitem ou impeçam esse crescimento” (Cohen, 1978, p.2). Para Cohen, a primazia explicativa é atribuída às forças produtivas. A tendência que elas possuem de se desenvolver ao longo da história é explicada em termos da situação histórica de escassez na qual o homem vive, juntamente com a posse de uma natureza racional e inteligente. Por sua vez, é o desenvolvimento das forças

2 O presente texto é produto de uma revisão de parte de um artigo publicado numa revista holandesa (Acta Politica, Meppel, n. 3, 1981).

3 Utilizei, na apresentação deste Dossiê, a versão em espanhol do livro de Cohen: La teoría de la historia de Karl Marx: una defensa. Madrid: Pablo Iglesias; Siglo XXI de España, 1986. Mantivemos, nesta tradução, as citações referentes à versão inglesa utilizada por Grahame Lock. (N. O.)

4 Ver, especialmente, Cohen (1983).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 112Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 112 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 113: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Louis Althusser e G. A. Cohen: uma confrontação • 113

produtivas na história que explica o surgimento e o desaparecimento das estrutu-ras econômicas (também conhecidas por “relações de produção”); e, finalmente, são essas últimas que explicam a natureza das superestruturas sociais. Por outro lado, as superestruturas sociais (ou seja, as instituições não econômicas) são con-sideradas “consolidadoras” das estruturas econômicas, enquanto essas estruturas estimulam – quando não impedem – a reprodução e/ou o desenvolvimento das forças produtivas.

Logo adiante falarei mais sobre esses temas. Antes, gostaria de fazer alguns comentários sobre a situação política e teórica, não tanto daquela na qual o livro foi escrito, mas do momento da sua recepção. Tratava-se de uma situação, como já notei anteriormente, que foi caracterizada como uma crise do marxismo, talvez provocada, ao menos parcialmente, pelos acontecimentos políticos, e que se refletiu no interior das organizações políticas pela hesitação ou renegação doutrinária – como, por exemplo, no abandono “emergencial” pelos partidos comunistas ocidentais de categorias centrais da doutrina marxista tradicional, como a da ditadura do proletariado.5 Mas também realmente se tratou de uma crise teórica, uma crise no interior da teoria marxista: um momento no qual toda a estrutura parecia (e ainda parece) prestes a desmoronar. Com efeito, essa situação de crise não é uma matéria de debate público no mundo anglo-americano, certamente por razões relacionadas à fraqueza do seu movimento trabalhista marxista. De qualquer modo, o livro de Cohen não parece ter sido escrito em um contexto de crise. Em vez disso, ele foi escrito e recebido, até certo ponto, como, simples-mente, um tratado filosófico no sentido mais estrito da palavra: um trabalho para ser lido e avaliado, abstraindo-se de qualquer consideração sobre suas possíveis raízes ou impacto na situação política e ideológica. Além disso, sua recepção foi majoritariamente favorável.

De um lado, Cohen tornou o marxismo, se não respeitável, pelo menos um oponente a ser respeitado nos círculos filosóficos e sociocientíficos anglófonos. De outro, ele supriu os marxistas menos teóricos de um suporte filosófico sério e inquestionável. Ao mesmo tempo, esclareceu muitas das objeções filosóficas feitas ao marxismo por especialistas anglo-saxões, como H. B. Acton e John Plamenatz (embora não Karl Popper, cujas objeções foram, por algum motivo, ignoradas), além de fornecer críticas incisivas a várias posições defendidas por Carl Hempel, Larry Wright, Robert Merton e outros na filosofia da ciência, na sociologia e nas ciências políticas.

Cohen, entretanto, não faz referências ao marxismo não anglófono – com exceção dos escritos de Marx e Engels. Ele confessa, porém, em seu Prefácio, que se sente “na obrigação de dizer algumas palavras” sobre sua posição frente à obra

5 Cf. Balibar (1977). Orig. fr.: Sur la dictature du prolétariat. Paris: Maspero, 1976. A versão em espanhol foi publicada sob o seguinte título: Sobre la dictadura del proletariado (trad. Maria Josefa Cordero; Gabriel Albiac). Mexico, DF: Siglo Veintiuno, 1977; em português de Portugal: Sobre a ditadura do proletariado. Lisboa: Moraes, 1977. (N. O.)

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 113Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 113 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 114: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

114 • Crítica Marxista, n.31, p.111-131, 2010.

de Althusser. Foi, escreve, “o Pour Marx de Althusser [que] me persuadiu de que a parte mais importante da obra de Marx encontrava-se n’O capital e nos seus escri-tos preparatórios”. Mas ele se desapontara com os ensaios de Althusser em Lire le capital, que qualificou como vagos e evasivos. Nesse sentido, a questão que pode ser colocada – para usar os critérios de Cohen – é a seguinte: o trabalho de Althusser seria vago e evasivo por ainda não ter sido suficientemente elaborado (elucidado) ou por, como outros tipos de “marxismo continental”, não poder e nem desejar ser “elaborado”? Cohen não parece acreditar na segunda hipótese. Suspeito, ademais, que seu próprio livro, em alguns dos seus aspectos mais fundamentais, seja um tipo de resposta a Althusser. Cohen conhece o trabalho do seu rival, sendo, até onde sei, um dos poucos intelectuais anglófonos a ler Pour Marx e Lire le capital no original francês (antes que as traduções estivessem disponíveis) junto com a edição francesa completa d’O capital de Marx, para fins de um controle textual. É também por essas razões que não parece absurdo empreender uma confrontação entre os mais célebres dentre os recentes filósofos marxistas anglófonos e francófonos.

A escrita de Cohen é marcada por uma profunda honestidade, qualidade fre-quentemente ausente em muitos trabalhos marxistas. Obviamente, eu admiro isso. Mas minha admiração pelo livro deriva, em parte, mais de uma interpretação da sua natureza e dos seus efeitos, que difere daquela oferecida pelo próprio Cohen, quando ele discorre sobre seus objetivos. Ele afirma, como vimos, estar, entre outras coisas, visando à formulação de uma apresentação menos desorganizada “da” teoria originalmente elaborada por Marx. Mas seu propósito é, também, identificar exatamente o que Marx disse, em oposição ao que muitos intérpretes afirmaram que ele disse. E o resultado – de fato bem-sucedido – desse segundo empreendimento tende, na verdade, a obscurecer o êxito do primeiro objetivo. Nesse sentido, o que Cohen revela em suas cuidadosas exegeses e discussões – tenha sido ou não sua intenção – são as enormes ambivalências, lacunas e contradições na obra de Marx; enormes o bastante para tornar improvável que uma defesa razoavelmente ampla dos escritos de Marx tomados na sua totalidade possa, com efeito, ser apresentada. Obviamente, a intenção de Cohen é sempre a de revelar essas dificuldades internas em Marx. Mas, ao mesmo tempo, seu objetivo é diferente: desfazer-se delas o mais rápido possível para produzir uma defesa “menos ambígua” do marxismo. Mas minha suspeita é de que o problema se encontra em outro nível, ainda mais profundo.

Um exemplo seria a afirmação de Marx, de acordo com a interpretação de Cohen, de que a luta de classe é uma “batalha teoricamente derivativa [Inglês: derivative]”. O sentido no qual ele emprega o termo “derivativo [Inglês: deri-vative]” deve ser compreendido apenas no contexto de suas teses principais – o termo não significa, por exemplo, que Marx acredite que a luta de classe seja um processo secundário [Inglês: secondary] no sentido político.

Acredito, porém, que uma leitura diferente de Marx também seja possível aqui. Para isso, seria necessário distinguir entre i) uma teoria explicativa que ambiciona

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 114Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 114 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 115: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Louis Althusser e G. A. Cohen: uma confrontação • 115

justificar o desenvolvimento geral da história, e, portanto, da sua “direção”, ou seja, a “progressão” (da sociedade tribal à sociedade antiga, ao feudalismo, ao capitalismo, ao socialismo e, finalmente, ao comunismo); e ii) o que poderíamos chamar de uma teoria “especial”, que permitisse explicar transições específicas como sinais de um certo tipo de transição (digamos, a transição do feudalismo ao capitalismo, ou do capitalismo ao comunismo). Marx, ao que me parece, oferece a teoria geral e a teoria específica, que são mutuamente incompatíveis. Além disso, outra complicação é que ele volta e meia sugere que o conjunto de teorias especiais constitui, ao mesmo tempo, outra teoria geral, ou seja, uma teoria geral da luta de classes, como a anunciada nas palavras de abertura do Manifesto comunista (cap. I): “A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes”.

Em relação à i), Cohen está correto em afirmar que Marx tentou elaborar uma explicação geral da história que depende da atribuição da primazia explicativa ao desenvolvimento das forças produtivas. Na medida em que tendeu a negar que essa tese poderia ser encontrada em Marx, Althusser errou. Mas em relação a ii), acredito que Marx estava inclinado a atribuir a primazia explicativa à luta de classe, especialmente no que se refere à análise da sociedade capitalista e das suas tendências. E, ao insistir nesse fato, Althusser acertou.

Esse mesmo fato (se é que se trata de um fato) não deveria constranger Cohen, que aceita que “para Marx a explicação imediata das transformações sociais mais importantes é frequentemente encontrada no embate entre classes” (Cohen, 1978, p.48). Entretanto, o que o constrangeria é a combinação dessa proposição com a demonstração de uma incompatibilidade entre os dois tipos de teoria, geral e específica. Certamente, na leitura de Althusser, qualquer teoria geral da história é especulativa e, portanto, um tipo de metafísica da história. Ele acredita que Marx demonstrou a necessidade de evitar qualquer tipo de explicação desse tipo e, particularmente, de evitar qualquer tipo de evolucionismo. Uma teoria evolu-cionista é uma explicação teleológica; uma teleologia exige que o princípio do desenvolvimento histórico esteja presente no auge ou no momento da origem do processo. A teoria de Cohen possui tal princípio nos três fatores mencionados: escassez econômica, racionalidade humana e inteligência dos homens.

Vamos agora retomar os conceitos centrais do que denominei de teoria especial do capitalismo: os conceitos de classe e luta de classes. Andrew Levine e Erik Olin Wright (1980) estão entre aqueles que têm desafiado Cohen, a partir de um ponto de vista que deposita grande ênfase em uma versão da categoria de classe, colocando em dúvida a relevância da referência que Cohen faz aos três fatores já nomeados. Entretanto, como veremos, a base dessa crítica tem um alcance menor do que a de Althusser.

Os autores sugerem que Cohen faz o que Marx condenou nos economistas políticos clássicos, embora ele igualmente tenha tentado, a saber, “construir uma teoria econômica a partir de uma noção logicamente preexistente de racionalidade

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 115Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 115 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 116: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

116 • Crítica Marxista, n.31, p.111-131, 2010.

individual (instrumental) num meio de (relativa) escassez” (Levine e Wright, 1980, p.57). Levine e Wright acreditam que sua posição é, pois, fiel a (um aspecto de) Marx; no entanto, ela é equivocada, já que ignora o fato de que a “realização dos interesses humanos (no desenvolvimento das forças produtivas) pode ser bloqueada por restrições sociais”. Em outras palavras, a posição de Cohen ignora aquilo que eles denominam o problema das capacidades de classe, às quais eles definem como recursos organizacionais, ideológicos e materiais disponíveis às classes na luta de classe. Eles observam que muitos marxistas recentes, ao irem além do próprio Marx, questionaram a pressuposição de que o desenvolvimento das capacidades de classe automaticamente resulta do surgimento dos “interesses revolucionários”; eles também tentaram investigar os “processos sistemáticos” em ação na sociedade capitalista, que tendem a desorganizar a classe trabalha-dora. Os autores concluem que um interesse racional na transformação de um sistema econômico não é, desse ponto de vista, uma condição suficiente para sua transformação. Mas, já que o desenvolvimento das forças produtivas não leva (necessariamente) ao correspondente desenvolvimento das capacidades de classe, é uma “arbitrariedade” de Cohen atribuir primazia explicativa às forças produtivas.

Consequentemente, eles se propõem a “complementar” a explicação do materialismo histórico encontrada no Vorwort de 1859 de Marx, central para o argumento de Cohen, com tal indagação sobre as capacidades de classe. O fato de apenas falarem de complementar esse texto – embora eles indiquem que essa é uma exigência mínima (Levine e Wright, 1980, p.68) – pode ser uma indicação da sua própria hesitação em abandonar certas categorias do “marxismo ortodoxo”, rejeitadas pelos marxistas althusserianos: por exemplo, a categoria de interesse racional (ou objetivo) de uma classe e a categoria de ação racional, fundamento de uma classe, concebida como um tipo de “sujeito da história”.6

Levine e Wright parecem, na verdade, aceitar o objetivo de Cohen como apropriado, qual seja: obter um “quadro adequado e substancial dos contornos gerais da história humana”. Eles somente discordam sobre a possibilidade de esse objetivo ter sido alcançado no seu livro. Tenho dúvidas, porém, por razões que explicito a seguir, se o próprio objetivo está correto, ou se sua aceitação não conduz a muitas dificuldades adicionais inaceitáveis. Darei um primeiro exemplo: a ênfase de Levine e Wright nas categorias do “interesse racional” e da “ação racional” de uma classe é paralela, como vimos, à sua concepção ins-trumental das capacidades de classe, já que esta última se refere, como também vimos, aos “recursos” disponíveis de uma dada classe. No entanto, Althusser e Balibar sugeriram que o proletariado só existe como classe na medida em que

6 Ver, por exemplo, Althusser (1976, p.94-9); Althusser (1978b, p.94-6). O segundo ensaio foi origi-nalmente publicado em quatro edições do jornal francês Le Monde, 25-28 abril, 1978 e traduzido ao inglês por Patrick Camiller, sob o título: “What Must Change in the Party”. New Left Review, n.109, 1978, p.19-45. (N. O.)

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 116Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 116 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 117: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Louis Althusser e G. A. Cohen: uma confrontação • 117

se encontra unido ideologicamente e de maneira organizada, unidade essa que depende da divisão da burguesia e vice-versa.7 Consequentemente, do ponto de vista de Althusser, dificilmente se pode medir ou falar dos “recursos disponíveis para uma classe em luta”, como se a classe já existisse manifestadamente, mas lamentavelmente se encontrasse desprovida dos “instrumentos” organizacionais, materiais e ideológicos necessários para realizar seu interesse racional. Em que esse argumento diz respeito ao ponto de vista de Cohen?

Cohen defende, nas páginas 73-7 do seu livro, uma definição puramente estru-tural de classe (portanto, implicitamente contrária à visão de Althusser e Balibar). Seu argumento é formulado a respeito da crítica ao historiador E. P. Thompson,8 cujas objeções à definição estrutural Cohen demonstra serem equivocadas. Essa definição afirma que a classe pode ser definida puramente nos termos das rela-ções de produção e, de fato, deve ser assim definida, pois a exclusão de fatores ligados a “consciência, cultura e política” é necessária para “proteger o caráter substantivo” da tese marxiana de que a posição de classe condiciona fortemente a consciência, a cultura e a política.

No meu modo de ver, isso não é inteiramente correto; é possível, penso, esta-belecer uma diferença entre duas relações de “condicionamento”: o condiciona-mento da consciência individual e o condicionamento da ideologia de uma classe. Parece-me que Cohen está se referindo principalmente à primeira: o condiciona-mento da consciência de um indivíduo (e, além disso, do seu inconsciente) pelos chamados fatores “externos”. Esse é um dos processos estudados, à sua própria maneira, pela teoria da socialização política. No entanto, acredito que o cerne do princípio marxista importa mais à causalidade e à transformação das ideologias e das contradições dentro delas e entre elas, na sua relação com a luta de classe. Certamente, considero ser pouco esclarecedor falar sobre o condicionamento de classe da ideologia de uma classe, se a classe relevante não é identificada, inde-pendentemente da ideologia em questão. Para que tal noção fizesse algum sentido, seria necessário distinguir entre dois sentidos de “classe”. O próprio Cohen observa que Marx foi forçado a distinguir a “classe em si” (que corresponderia ao uso de Cohen) da “classe para si”, citando até mesmo o diagnóstico de Marx de que “o proletariado só pode agir como uma classe ao constituir um partido político dis-tinto” (Cohen, 1978, p.7). Estou preparado para aceitar que a impressão que dá é

7 Cf. Althusser, Louis. “Reply to John Lewis”. In: Louis Althusser, Essays in Self-Criticism, op. cit. Esse ensaio (cuja tradução para o inglês é de Grahame Lock) foi originalmente publicado em inglês em: Marxism Today, 1972, p.310-8. Em francês, foi publicado sob o mesmo título, um ano depois: Réponse à John Lewis. Paris: François Maspero, 1973. Em português, é possível encontrá-lo em Posições -1. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978 e Resposta a John Lewis. Lisboa: Editorial Estampa, 1973. (N. O.)

8 Cohen (1978, p.73-7). Thompson (1978, p.298-9) fala, entretanto, sobre o que ele considera apenas uma semelhança aparente entre sua concepção de classe e a de Althusser. O livro de Thompson foi publicado em português sob o título: A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. (N. O.)

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 117Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 117 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 118: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

118 • Crítica Marxista, n.31, p.111-131, 2010.

a de que uma classe trabalhadora dividida, no sentido de Cohen, pode e, de fato, deve ser chamada de classe. Nesse caso, poder-se-ia propor uma especificação terminológica, a fim de evitar a confusão: por exemplo, chamando tal classe, nesse sentido do termo, de “classe trabalhadora” e, em seguida, chamando aquilo a que estou me referindo e aquilo a que Althusser se refere – ou seja, a classe enquanto constituída por sua (tendência à) unidade política e ideológica – de “proletariado” (poder-se-ia, de maneira similar, distinguir a “classe capitalista” da “burguesia”).

As observações anteriores não querem dizer que eu considere possível uma definição estrutural “pura”. Elas apenas significam que considero que uma distin-ção tal como aquela já esboçada permitiria uma melhor formulação das versões da dinâmica da luta de classes sob o capitalismo, da fragmentação e da unificação das classes, e assim por diante. Ela permitiria uma melhor formulação das versões do desenvolvimento desigual das lutas de classe econômicas, políticas e ideológi-cas, na sua relação entre si. Além disso, poderíamos aqui evocar o argumento de Balibar no sentido de que o termo “classe” não tem o mesmo significado quando aplicado à classe trabalhadora, de um lado, e à classe capitalista, de outro (Cf. Balibar, 1974, p.188-9).9 Entretanto, o significado preciso desse argumento ainda deve ser suficientemente elaborado.

A defesa feita por Cohen da primazia das forças produtivas é bastante recente (ao menos, até onde eu sei) na teoria marxista. Vem de longe a insatisfação dos marxistas com a explicação de Marx sobre a primazia causal da economia (seja qual for o modo como esse termo é interpretado), ou sobre a relação entre a “base” e a “superestrutura”. A famosa carta de Engels a Bloch de 21/22 de setembro de 1890 é uma das primeiras expressões desse mal-estar.

Em 1965, Althusser e Balibar, em Pour Marx e Lire le capital, produziram uma engenhosa difusão e desenvolvimento da obscura noção de Engels da “de-terminação em última instância (pela economia)”. Determinação foi diferenciada de dominação, de modo que a “economia” apareceu duas vezes na fórmula característica do modo de produção capitalista: agora, a estrutura do modo de produção capitalista (ou seja, suas relações de produção + as forças produtivas, em uma conjunção na qual se afirmava a primazia do primeiro termo sobre o segundo) era considerada para determinar, em última instância, a dominação da instância econômica em qualquer formação social capitalista. Isso pode parecer um pouco obscuro. A ideia principal era que, embora a economia, em certo sentido, fosse determinante em todos os tipos de sociedade, o que ela determina é qual “instância” – a econômica, a ideológica ou a política – é dominante em um tipo dado de sociedade. Logo, a dominação da instância econômica no capitalismo é uma característica que este não compartilha com outros tipos de sociedade. Por exemplo, a determinação pela economia resulta, na antiguidade clássica, na

9 Tradução em português: Cinco estudos do materialismo histórico (trad. de Elisa Amaro Bacelar). Lisboa: Editorial Presença, 1975, 2 volumes. (N. O.)

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 118Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 118 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 119: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Louis Althusser e G. A. Cohen: uma confrontação • 119

dominação da instância política. Na Idade Média, ela resulta na dominação da instância ideológica (religiosa) (Balibar, 1970, p.217).10

Cohen abordou o problema de modo totalmente diferente. Ele propôs, na ver-dade, um segundo esquema – somente o segundo em muitos anos –, de fato novo e interessante, para lidar com esse problema da determinação econômica. Para ele, a “base real da sociedade” é, de fato, constituída pelo conjunto de relações de produção; e essas relações de produção compõem a assim chamada “estrutura econômica” da sociedade. Mas isso significa que as forças produtivas não fazem parte da estrutura econômica da sociedade; entretanto, elas gozam da primazia explicativa sobre as relações de produção (Cohen, 1978, p.28-9). Essa afirmação envolve, portanto, a rejeição da noção amplamente aceita de que se as forças produtivas são primordiais do ponto de vista explicativo, então elas devem fazer parte da base econômica ou do fundamento da sociedade, já que Cohen nega as consequências dessa proposição. As forças produtivas são consideradas a “base” da sociedade, apenas no sentido de que uma base pode ser um elemento externo àquilo a que serve como base (como o pedestal de uma estátua, que forma sua base, mas não é parte da estátua). Ou, em outras palavras, as forças produtivas “são, de fato, a base da economia, mas não pertencem à base econômica” – elas se encontram “abaixo” dela (Cohen, 1978, p.30). Elas “determinam fortemente a estrutura econômica, embora não façam parte dela” (Cohen, 1978, p.31).

Seu papel determinante e explicativo a esse respeito é, em seguida, elucidado por meio da referência a formas funcional-explicativas, às quais retornarei mais adiante. A vantagem da fórmula de Cohen (complementada pelas suas longas e elegantes explicações adicionais sobre o que vem a ser a determinação e a expli-cação no caso em questão) é que ela, ao mesmo tempo em que respeita as palavras do próprio Marx no Vorwort é, metodologicamente, excepcionalmente rigorosa.

Existe, apesar das diferenças, uma semelhança entre os dois esquemas mencio-nados anteriormente, o de Althusser/Balibar e o de Cohen, já que ambos procuram explicar o desenvolvimento histórico (transições ou revoluções) nos termos de uma teoria geral de não correspondência entre as forças produtivas e as relações de produção. A diferença é que em Althusser/Balibar, a primazia explicativa é conferida ao segundo termo, ao passo que em Cohen ao primeiro. Mas ambas as partes reconhecem que, enquanto tal, uma teoria geral, para ser reconhecidamente marxista, deveria exigir tal noção de não correspondência. Entretanto, em minha opinião, é justamente nesse ponto que se encontra o problema. Minhas dúvidas,

10 Em francês, o ensaio de Balibar aparece sob o título: “Sur les concepts fondamentaux du matéria-lisme historique”. In: Louis Althusser; Étienne Balibar, Lire le capital. II. Paris: François Maspero (Petite Collection Maspero, 31), 1968. Em espanhol: “Conceptos fundamentales del materialismo histórico”. In: Louis Althusser; Étienne Balibar, Para leer El Capital (trad. Martha Harnecker). 4.ed. Buenos Aires: Siglo XXI, 1970; e, finalmente, em português: “Conceitos fundamentais do materia-lismo histórico”. In: Louis Althusser; Étienne Balibar, Ler O capital. II. (trad. Nathanael C. Caixeiro). Rio de Janeiro: Zahar, 1980. (N. O.)

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 119Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 119 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 120: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

120 • Crítica Marxista, n.31, p.111-131, 2010.

como já indiquei, concernem ao projeto em si. Por que se supôs que tal teoria geral fosse, de alguma maneira, possível?

Curiosamente, a versão de Althusser – rica em contradições – já continha em si as sementes da dissolução dessas contradições, bem como as de uma alterna-tiva. O motivo é, grosso modo, o seguinte (o argumento é um pouco técnico, mas parece fazer sentido para mim): correspondência e não correspondência foram tratadas por Althusser/Balibar nos termos da “sujeição” ou “subsunção” do tra-balho ao capital.11 As forças produtivas, para esses autores, são constituídas pela relação da apropriação real da natureza (a produção de coisas de um modo par-ticular). As relações de produção, por outro lado, são definidas como as relações de expropriação do produtor (por exemplo, aquelas características da exploração capitalista). Se a correspondência entre as relações de produção e o nível (ou tipo) das forças produtivas deve, como argumentou Balibar, ser compreendida nos termos de uma correspondência entre a sujeição real e formal do trabalho, então uma não correspondência pode ser compreendida como envolvendo uma falha na reprodução de ao menos uma dessas relações de sujeição (Balibar, 1970, p.303-4). Mas um tipo de falha é um candidato explicativo muito melhor do que outro, já que é improvável (para tomarmos o caso de uma suposta transição do capitalismo ao socialismo) que os trabalhadores, com seus aliados, pudessem modificar, do dia para a noite, a relação de sujeição “real” – isto é, que pudes-sem modificar, do dia para a noite, a estrutura das forças produtivas, o tipo e o nível das tecnologias em uso etc. Portanto, parece que a transição (revolução) deveria ser, pelo menos em um primeiro momento, mais o resultado de uma re-cusa ou rejeição da sujeição “formal”: isto é (em leitura livre), de uma rebelião de trabalhadores – não necessariamente motivada por qualquer ideia clara a respeito dos benefícios ou custos do socialismo – contra a assim chamada “não propriedade absoluta” dos meios de produção, em que a “propriedade” deve ser entendida no sentido de apropriação, e não em um sentido superestrutural meramente jurídico.

Portanto, indo direto ao ponto, o motor da transição encontrar-se-ia na luta de classe. Entretanto, quase não se toca aqui nas questões sobre a superioridade do socialismo em relação ao capitalismo (qualquer que seja o significado atribuído à ideia de superioridade). Há pouca margem nessa explicação para que a classe trabalhadora realize qualquer “cálculo racional” dos seus “interesses racionais”. Ob-viamente, tampouco tal explicação é aplicável à análise das formas sociais que não sejam as do capitalismo. Não temos nada além de uma teoria “especial”. Mas essas conclusões só foram formuladas pelos autores de Lire le capital posteriormente.12

Os argumentos dados se referem a comentários feitos por Cohen que ele não consideraria fundamentais para os principais temas do seu livro. Minha opinião,

11 Balibar (1970, p.236-7). Cf. Marx. O capital, v.I, Parte IV, cap. XVI. Seu termo alemão é “subsunção”. 12 Ver Althusser (1976); Balibar, “Sur la dialectique historique (quelques remarques à propos de ‘Lire

le capital’)”. In: Balibar (1974).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 120Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 120 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 121: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Louis Althusser e G. A. Cohen: uma confrontação • 121

entretanto, é que considerações críticas semelhantes se aplicam a qualquer tenta-tiva de sustentar uma teoria geral do desenvolvimento histórico, por meio de uma explicação geral das relações de correspondência e não correspondência entre as forças produtivas e as relações de produção. A posição de Cohen depende, por exemplo, de uma rejeição implícita dos argumentos de Balibar, na medida em que todas as teorias gerais como as que o livro de Cohen parece propor baseiam-se na noção de algum tipo de “definição essencial” do fenômeno econômico – ou político ou ideológico –, que preexiste ao processo da sua “definição histórica”, enquanto o significado do termo “economia” – e termos correlatos – muda com a transição ao capitalismo, e deve mudar novamente com qualquer transição do capitalismo ao socialismo ou ao comunismo (Balibar, 1974). Do mesmo modo, a transição do feudalismo ao capitalismo seria de um outro tipo (para além do seu sentido óbvio) se comparada à transição do capitalismo ao comunismo; e as duas não poderiam, consequentemente, ser explicadas como dois exemplos de um úni-co tipo de contradição, a saber, a não correspondência entre as forças produtivas e as relações de produção. Mas isso significaria que uma dúvida paira sobre a legitimidade da principal questão de Cohen: como explicar o “desenvolvimento da história”? (pergunta à qual ele fornece a resposta: nos termos do “crescimento da força produtiva humana”).

Consideremos brevemente o instrumento utilizado por Cohen para dar conteúdo a essa resposta. O instrumento é a explicação funcional. A explicação funcional é, segundo sua opinião, um tipo especial de explanação causal que define um fenômeno ou evento (etc.), nos termos de sua função – grosso modo, nos termos dos seus efeitos. Devemos, de imediato, mencionar sua insistência em que as explicações funcionais não são (necessariamente) funcionalistas, já que o funcionalismo propõe a duvidosa “tese de interconexão funcional”, na medida em que “todos os elementos da vida social sustentam ou reforçam uns aos outros, bem como a sociedade como um todo”. De acordo com Cohen, os marxistas têm muitas vezes rejeitado erroneamente as explicações funcionais, em virtude de sua aversão ao funcionalismo. Entretanto, como ele corretamente aponta, antifuncio-nalistas como Althusser têm se utilizado de explicações funcionalistas. Althusser o faz, por exemplo, em seu famoso artigo “Ideologia e os aparelhos ideológicos do Estado”.13 Citemos, agora, algumas palavras de Althusser a esse respeito. Ao

13 “Ideology and Ideological State Apparatuses (Notes towards an Investigation)” (extracts translated by Ben Brewster). In: Althusser (1971). Extratos desse texto foram originalmente publicados em francês sob o título: “Idéologie et appareils idéologiques d’État (Notes pour une recherche)”. La Pensée, n.151, 1970, p.3-38 e em Positions, 1964-1975. Paris: Éditions Sociales, 1976, p.67-125 [trad. port.: Aparelhos ideológicos do Estado (introdução e crítica de J. A. Guilhon de Albuquerque; trad. Walter José Evangelista; Maria Laura Viveiros de Castro). 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985]. O manuscrito original revisado e ampliado foi publicado sob o título: “La reproduction des rapports de production”. In: Louis Althusser, Sur la reproduction (Introduction de Jacques Bidet). Paris: PUF (coll. “Actuel Marx confrontration”), 1995, p.269-314 [trad. port.: Sobre a reprodução (trad. Guilherme João de Freitas Teixeira). Petrópolis: Vozes, 1999. (N. O.)

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 121Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 121 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 122: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

122 • Crítica Marxista, n.31, p.111-131, 2010.

discutir sobre o que ele chama de “aparelhos educacionais do Estado”, ele des-creve o modo pelo qual eles simultaneamente proveem as crianças de certos tipos de “conhecimento”, enquanto as preparam para a disciplina do mundo do traba-lho, lançando, na idade apropriada, massas de crianças no mercado de trabalho. Dessa forma,

Cada massa lançada en route está abastecida com a ideologia que convém ao papel que ela tem que cumprir na sociedade de classes: o papel do explorado [...]; o papel do agente da exploração [...], do agente da repressão [...], ou do ideólogo profissional (Althusser, 1971, p.147).

Cada criança está abastecida, diz Althusser, da ideologia que “convém ao papel” que ela tem que desempenhar. Contudo, embora os professores sejam res-ponsáveis por abastecer a criança com essa ideologia – funcional –, eles são, em geral, bastante inconscientes da tarefa que, por sua vez, estão executando. “Assim, eles pouco suspeitam de que a sua própria devoção contribui para a manutenção e o abastecimento de uma ideologia da escola”, de acordo com a qual a escola é, ela própria, um “ambiente natural depurado de ideologia”, e assim por diante. Mas tampouco há uma “mão visível” planejando todo o esquema. Pelo contrário: imaginar tal coisa significaria retroceder à ideia do século XVIII, segundo a qual os padres ou déspotas – nesse caso, os ministros da educação ou algo do gênero – seriam responsáveis por forjar “mentiras ideológicas” apropriadas. No entanto, a classe dominante está “na ideologia”, e não a controlando de fora.

Nesse sentido, Althusser aponta na direção de uma explicação funcional do efeito da ideologia. Mas ele nada ou pouco diz sobre os mecanismos por meio dos quais esse efeito ocorre. Trata-se de uma objeção (insuperável)? A questão geral sobre a possibilidade de que qualquer explicação funcional deva ao menos indicar onde [se pode] encontrar tal mecanismo foi, de fato, levantada como um ponto de crítica contra Cohen por John Elster (1980). Quando uma referência à função fornece um fundamento adequado para uma explicação funcional? De acordo com Elster, apenas (se for necessário, já que nesse caso é duvidoso se ainda se iria querer falar de uma explicação funcional) quando o mecanismo específico que poderia justificá-la em um dado caso é, de fato, fornecido. No entanto, diz Elster (1980, p.127), “Cohen nem mesmo procura fornecer tal mecanismo” no caso do materialismo histórico. Tampouco Althusser o faz.

De qualquer maneira, o que Cohen faz é fornecer uma justificativa para o emprego de explicações funcionais, sem a especificação do mecanismo. Não tentarei aqui tratar a questão em profundidade. Ocorre que concordo com Cohen quanto à insuficiência do argumento de Elster, já que uma “rota alternativa”, que vai de uma afirmação da consequência a uma explicação funcional, pode estar disponível na forma do fornecimento de provas que estabeleceriam um padrão

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 122Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 122 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 123: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Louis Althusser e G. A. Cohen: uma confrontação • 123

geral de confirmação, mesmo que haja pouca ou nenhuma pista do mecanismo (ou elaboração) relevante. Nas palavras de Cohen (1980, p.132), “podemos estar seguros de que a causou b num dado contexto, em virtude de casos paralelos em outros contextos, mesmo que não saibamos como a causou b. Entretanto, resta ainda saber se explicações marxistas detalhadas e convincentes desse tipo podem ser dadas na prática”.

A esse respeito, Cohen sugere, então, que o materialismo histórico pode estar “em seu estágio lamarckiano (pré-darwiniano)”. Com isso, ele quer dizer que La-marck, que escreveu uma explicação funcional da biologia evolutiva, tinha boas razões – de uma perspectiva científica – para acreditar nesse tipo de explicação, mesmo que sua elaboração do mecanismo relevante estivesse – como se desco-briria mais tarde – errada. (Foi Darwin, obviamente, quem forneceu a verdadeira elaboração na forma da teoria da variação aleatória e da seleção natural.) Afirmar que o marxismo pode estar em sua fase lamarckiana significa sugerir que os mar-xistas sabem certas verdades sobre a sociedade, mesmo que eles ainda não sejam capazes de fornecer argumentos acerca dos mecanismos explicativos relevantes.

A título de exemplo: para Cohen, os marxistas são, frequente e injustamente, acusados de apresentarem uma teoria conspirativa da história demonstravelmente falsa, quando argumentam, por exemplo, que “‘não é um acaso que’ os comen-tadores de esquerda recebam pouco espaço nos jornais [...] mais importantes”, e assim por diante. Injustamente, porque tal argumento pode fazer parte de uma história geral funcional-explicativa, na qual tal mecanismo funcional conspirativo não é pressuposto. Tal conspiração pode, de fato, existir – e Cohen pensa com frequência que ela existe. Mas, para demonstrar a existência de uma conspiração, dever-se-ia providenciar a elaboração daquilo que, por enquanto, é apenas um argumento funcional-explicativo. O argumento de Cohen é que este último pode ser válido sem maiores circunlóquios. Além do mais, é verdade que “as classes dominantes estão bem posicionadas para propagar as ideologias conforme seus interesses”. Só que uma ideologia deve ser constituída antes de ser propagada.

Nesse sentido, existem em Marx traços de um mecanismo darwiniano, uma noção de que sistemas de pensamento são produzidos numa relativa independência das restrições sociais, mas que persistem e adquirem vida social, seguindo um processo de filtração que seleciona aqueles mais bem adaptados para o serviço ideológico [...] Existe um tipo de “combinatória ideológica”, que produz elementos em diferentes configurações, conforme as exigências sociais mudem. (Cohen, 1978, p.289-91).

Se o marxismo realmente se encontra em um estágio “lamarckiano”, quais tipos de elaborações de mecanismos ele poderia procurar com o objetivo de com-plementar suas explicações funcionais? Dentre as várias possibilidades, Cohen aponta quatro: 1) mecanismos intencionais (por exemplo, uma decisão consciente

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 123Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 123 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 124: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

124 • Crítica Marxista, n.31, p.111-131, 2010.

do governo de forçar os trabalhadores a aceitarem cortes de salários, por meio da criação deliberada de desemprego); 2) mecanismos darwinianos (por exemplo, competição entre pequenas e grandes companhias em um campo industrial onde apenas as grandes podem sobreviver); 3) mecanismos lamarckianos: evolução em virtude de novas características adquiridas – mas não tendo, necessariamente, um propósito – na história de vida de um “organismo” (por exemplo, quando a sujei-ção de trabalhadores à disciplina de uma fábrica possibilita as condições para a criação de uma disciplina sindical, que se transforma em uma tradição transmitida de geração para geração); 4) mecanismos de autoengano, que operam “por meio das mentes” dos participantes, mas sem seu “total conhecimento” (Cohen, 1978, p.287-9 – os exemplos são meus – G. L.). Esse último tipo de elaboração parece apresentar um interesse particular. Mas o enunciado de Cohen é controverso, na medida em que o que ele supõe ou sugere em sua formulação do “mecanismo psí-quico” envolvido é algo como um conjunto de ideias inconscientes que as pessoas em questão deliberadamente (mas também inconscientemente?) rejeitam. Presumo que é por isso que ele emprega o termo “autoengano”. Na minha opinião, talvez fosse melhor insistir no princípio da impossibilidade de qualquer tipo presumido de autoconhecimento, em vez de, como na sua interpretação, supor que ele exista, mas que esteja ocultado dos próprios agentes.

Todas essas questões também têm conotações políticas, em relação às quais a posição de Althusser não poderia deixá-lo indiferente. Primeiramente, o breve esquema de Cohen poderia ser utilizado em favor de um princípio kautskyiano de vanguardismo científico, sendo os líderes legítimos da classe trabalhadora aqueles que, não iludidos nem pela “propaganda burguesa”, nem por eles próprios (e essas duas condições provavelmente estariam associadas à maioria das descrições desse tipo), poderiam, portanto, ser considerados prontos para “dirigir” a classe – e para quando a revolução tornar-se-ia possível, isto é, quando as forças produtivas estivessem suficientemente desenvolvidas para permitir que ela ocorresse e fosse bem-sucedida, sem regredir a uma forma social anterior (Cohen, 1978, p.206). Althusser, com certeza, é conhecido por sua oposição a essa versão do marxismo, que é, aliás, diferente da doutrina de Lênin.

Em segundo lugar, há toda uma tradição do movimento trabalhista marxista que, de fato, fez referências específicas, não apenas às explicações funcionais como um instrumento importante, mas também a Lamarck e a Darwin. Cohen não trata dessa tradição. Mas ela foi examinada por autores franceses, alguns com espírito mais ou menos althusseriano.14 Trata-se de um tópico fascinante por seu próprio mérito, cujo estudo poderia iluminar não apenas a linha de demarcação entre elaborações legítimas ou ilegítimas aplicadas no interior do marxismo, mas também as possíveis consequências da extensão das explicações funcionais às relações gerais entre forças produtivas e relações de produção – ou seja, sobre as

14 Ver, por exemplo, o capítulo 3 de Paquot (1980).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 124Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 124 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 125: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Louis Althusser e G. A. Cohen: uma confrontação • 125

possíveis consequências da “tese da primazia” do próprio Cohen, que é o ponto no qual, como já sugeri, a oposição entre a sua posição e a de Althusser é mais nítida.

A noção de que se poderia escrever uma história autônoma do desenvolvimento das forças produtivas, que é o que o projeto de Cohen reclama, é problemática – e isso também é levado em consideração por Althusser. Sabe-se – por exemplo, a partir de sua Resposta a John Lewis – que Althusser até mesmo considerou que o estalinismo (ou, mais exatamente, o que ele chamava de “o desvio de Stalin”) era, se não o resultado, pelo menos uma expressão de um marxismo perverso, no qual a ideia da “primazia das forças produtivas” foi aplicada na prática. A teoria da luta de classe, também afirmou, foi expulsa (oficialmente na década de 1930) do centro da teoria estaliniana para ser substituída por um princípio central da primazia das forças produtivas, cujo desenvolvimento foi tratado como um critério para o avanço bem-sucedido do socialismo. Essa é uma das razões pelas quais o “estalinismo” é considerado um tipo de “vingança póstuma da Segunda Internacional”, ou seja, do kautskyismo e seus semelhantes. A expulsão da ca-tegoria da luta de classes – exceto como uma legitimação ideológica da política aplicada após esse acontecimento – significava que o marxismo estalinista tinha se transformado em um humanismo, embora cruel. Nesse ponto, encontramos um emprego especial por Althusser da ideia de uma relação entre as ideologias do economicismo e do humanismo: o slogan do período de Stalin, ele aponta, era “homem, o capital mais precioso”.

A oposição entre Cohen e Althusser sobre a questão da “tese da primazia” obviamente também gira em torno de uma diferença nas suas respectivas con-cepções das forças produtivas. Na visão de Cohen elas simplesmente “não são relações”. Na de Althusser/Balibar, elas são um tipo de relação de produção: “uma conexão [...] da ‘apropriação real’ entre [...] os elementos: meios de produção, produtores diretos, [...] [e] não assalariados” (Althusser e Balibar, 1970, p.235). Essa posição está associada à sua distinção (implícita) entre a apropriação “real” e “formal” (da natureza, dos meios de produção etc.), distinção essa que, por sua vez, está associada ao seu tratamento da sujeição “real” e “formal” do trabalhador, que já discutimos.

De acordo com Althusser e Balibar, portanto, as forças produtivas são relações de apropriação real, ou, como eles às vezes propõem, relações sociais “técnicas” de produção. O que eles sugerem com essa terminologia é que as forças produ-tivas não são (mesmo se às vezes Marx fale desse modo) um conjunto de coisas como máquinas, conhecimento científico e tecnológico, força de trabalho mais ou menos especializada e assim por diante. Balibar de fato escreve que tal concepção da forças produtivas conduziria a todos os tipos de ideias falsas:

Ela sugere que o “avanço” da forças produtivas pode tomar a forma de um pro-gresso acumulativo, uma adição de novas forças produtivas ou uma substituição

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 125Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 125 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 126: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

126 • Crítica Marxista, n.31, p.111-131, 2010.

de algumas delas por outras mais “poderosas” [...] Isso leva a uma interpretação do “nível” ou “grau de desenvolvimento” das forças produtivas tão mais tentadora que ela parece contida nas próprias palavras: um desenvolvimento linear e acumulativo, de uma continuidade quase biológica.15

Nesse ponto, portanto, a metáfora biológica é repudiada. Ainda mais impor-tante para nosso presente propósito é o fato de que essa explicação parece ser diametralmente oposta à de Cohen. A definição de Althusser/Balibar é histórica em um sentido diferente daquela de Cohen: está sustentada pela introdução teórica das forças produtivas em um modo de produção particular e, portanto – em sociedades de classe –, de exploração. Por conseguinte, se as forças produtivas são, de fato, definidas em tais termos, então sua definição mudará com uma transformação nas relações sociais (não técnicas) de produção (assim como a definição de “poder produtivo”). O fato de que os meios de produção (especialmente os instrumentos de produção16) ainda podem ser identificados como objetos separados, ou seja, separados da relação que constitui a força produtiva nas quais eles estão integra-dos – o que é obvio – não significa que se possa escrever uma história separada do seu desenvolvimento autônomo, nos termos, digamos, do “crescimento do conhecimento sobre como controlar e transformar a natureza” ou algo semelhante. Acreditar na possibilidade de tal história é, como afirmei anteriormente,17 repetir um erro presente em Marx e desenvolvido por Engels, de acordo com o qual a história humana demonstra (como já acreditavam os philosophes do século XVIII) a extensão progressiva do domínio do homem – em sua generalidade – sobre a natureza. Essa concepção tende – em qualquer consideração sobre o futuro ou destino do capitalismo – a reduzir o papel explicativo da luta de classe, em toda sua complexidade, à determinação dos eventos, bem como a interpretar a chamada “transição necessária” ao socialismo apenas como mais uma expressão de uma dialética histórica – e metafísica – subjacente.

Para ilustrar meu argumento, devo me deslocar, por um momento, para um nível mais concreto. Cohen é fiel a Marx (isso deve ser dito) ao considerar os instrumentos de produção como força produtiva: pelo menos ele é fiel a certos textos de Marx. Sua tese do desenvolvimento exige que sejamos capazes de providenciar uma história autônoma do desenvolvimento de tais instrumentos. Assim, por exemplo, ele diz, é possível que em uma sociedade cuja cultura pri-vilegia profundamente a navegação individual, uma canoa possa, contudo, ser inventada; esta, sendo longa, é mais bem operada por dois homens. Tal inovação não requer uma mudança nas relações de trabalho, já que as novas canoas podem,

15 Balibar (1970, p.234). Essa passagem deve ser lida no seu contexto para que se aprecie a amplitude do argumento.

16 Cf. Cohen (1978, p.32; 37-50). 17 Cf. Lock (1981).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 126Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 126 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 127: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Louis Althusser e G. A. Cohen: uma confrontação • 127

simplesmente, ser operadas de forma ineficaz. Mas “devemos esperar [...] uma transição para a canoa de duas pessoas” porque “é algo racional [...] e o homem é, em alguma medida, racional” (Cohen, 1978, p.168-9). De um ponto de vista lógico, esse relato é certamente satisfatório. A invenção de uma canoa tecnolo-gicamente superior não leva necessariamente à invenção ou introdução daquele emprego que a torna superior na prática. Qualquer um pode ter consciência da sua superioridade tecnológica e, mesmo assim, recusá-la ou, de outro modo, não saber explorá-la (embora Cohen sugira que eles não tenderão a isso). Entretanto, parece-me empiricamente verdadeiro que a esmagadora maioria das inovações tecnológicas foi e é introduzida com algum tipo de aplicação em mente; e esse fato não é “acidental”, mas tem a ver com a natureza da divisão de trabalho sob o capitalismo, entre tarefas de planejamento e execução. Em segundo lugar, parece--me, ademais, empiricamente verdadeiro que tais inovações-em-uso não podem ser explicadas por meio de uma racionalidade humana abstrata, mas apenas nos termos da “racionalidade” específica do sistema capitalista, que inclui a necessi-dade de manter controle sobre a classe trabalhadora. Uma inovação pode, de fato, ser introduzida simplesmente por esse último motivo e não (apenas) porque ela é mais eficiente. É verdade que tal explicação obviamente remete a um problema diferente daquele que é central no livro de Cohen. Mesmo assim, é relevante para o modo no qual tal problema pode ser legitimamente formulado.

O tipo de argumento que esbocei, em sua formulação althusseriana, pode ser apresentado de outras maneiras, as quais não são especificamente marxistas, e muito menos althusserianas. De um modo ou de outro, ele se tornou um lugar comum da sociologia industrial. O Instituto Tavistock de Relações Humanas, por exemplo, tem se dedicado aos problemas de concepção de uma tecnologia para adaptar sistemas de organização do trabalho a padrões de comportamento no trabalho. Nesse campo, seus pesquisadores introduziram a noção de sistema sociotécnico. Foi descoberto – falando de maneira genérica – que não apenas a extensão, mas também o tipo de inovação tecnológica possível em qualquer empresa dependia, em grande medida, de fatores “comportamentais” e “psicoló-gicos” (ou, o que se poderia chamar de fatores sociopolíticos e ideológicos).18 Na terminologia marxista: o estado da luta de classes tem um papel na determinação, não apenas do grau de racionalização tecnológica que é viável (por exemplo, se houver forte resistência dos operários à introdução de máquinas etc.), mas também do curso qualitativo da mudança tecnológica. Consequentemente, seria impossível simplesmente medir o alcance do aperfeiçoamento dos instrumentos de produção ou das forças produtivas, bem como seu emprego eficiente ou não em termos quantitativos, ou estabelecer, desse modo, que o capitalismo não mais desenvolve as forças produtivas de um ponto de vista racional optimum, no sen-tido de Cohen. Além disso, mesmo se, como ele afirma, o capitalismo não fosse

18 Cf. Rose, 1978, parte IV.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 127Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 127 22/10/2010 15:12:0122/10/2010 15:12:01

Page 128: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

128 • Crítica Marxista, n.31, p.111-131, 2010.

necessariamente orientado para a produção, isso não significa que um regime pós--capitalista poderia resolver o problema simplesmente por meio do planejamento de um maior equilíbrio entre o trabalho e o lazer, já que isso poderia deixar intacto o conjunto existente de “sistemas sociotécnicos” ou, em outras palavras, o que se pode denominar de “tecnologia capitalista”.

O que o capitalismo exige é tanto i) a maximização dos lucros ou algo do tipo e ii) a reprodução das condições necessárias para a criação de lucro, ou seja, para a reprodução do próprio sistema. Ora, i) muitas vezes pode ser auxiliado (mas nem sempre) pela introdução de instrumentos de produção “mais eficien-tes”; de qualquer modo, a empresa capitalista individual frequentemente inovará racionalmente com esse objetivo em mente. Mas ii) pode, contudo, exigir que os instrumentos de produção mais eficientes ainda não sejam introduzidos. As crescentes tendências intervencionistas do Estado (que persistem mesmo nessa época de neoliberalismo) podem ser interpretadas como, em parte, um modo de assegurar ii), quando a lógica do lucro para a empresa individual tenderia a miná-lo.

Essa explicação é compatível com a abordagem de Cohen, que considera o argumento de que o homem racional – desde que não seja um capitalista ou um lacaio capitalista – optará pelo socialismo que, em contraste com o capitalismo, permite que uma “alternativa mais eficiente” seja escolhida? Não, e por pelo menos duas razões:

1) Para que a classe trabalhadora seja capaz de superar a divisão capitalista do trabalho, pode ser necessário que as opções menos eficientes sejam adotadas por um longo e indeterminado período, o que não quer dizer que todos os trabalhadores possam esperar ser beneficiados por essa mudança em termos “puramente” materiais (isso não significa que apenas uns poucos terão tais esperanças, ou que uma esperança generalizada desse tipo não possa ter um papel importante em um processo de mudança revolucionária).

2) Nenhuma transição para o socialismo pode, de qualquer modo, ser explicada em termos daquilo que é “desejado racionalmente”, de acordo com os inte-resses objetivos e racionais da classe trabalhadora. Tais transições não são, de qualquer maneira, na opinião de Althusser, questões de escolha e, a fortiori, questões de escolha racional. Foi sugerida anteriormente uma razão para isso: um levante revolucionário é, provavelmente (se ele ocorre em alguma medida), o resultado de uma rejeição pelos trabalhadores (etc.) de sua sujeição “formal” ao capital – ou seja, um tipo de rebelião parcialmente cega, canalizada, obvia-mente (essa é a posição leninista ortodoxa) por um partido de vanguarda. Além disso, há outra consideração: a divisão da população ativa. Se é verdade que o capitalismo avançado está exacerbando a divisão técnica e social do trabalho, estabelecendo novas e agravadoras formas de hierarquia e divisão nos seus processos industriais e tecnológicos, então é difícil vislumbrar a possibilidade de localizar o princípio político-ideológico da revolução e da transição ao socialismo em ideias tais como o simples desejo (dos trabalhadores) – como

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 128Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 128 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 129: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Louis Althusser e G. A. Cohen: uma confrontação • 129

Cohen expressa – de atingir uma “suficiência [de bens] produzidos com um mínimo de esforço desagradável” (Cohen, 1978, p.307).

Um dos pontos altos da insistência de Marx (em sua Crítica do programa de Gotha) na distinção entre o “primeiro” estágio e os estágios “avançados” da sociedade comunista é enfatizar que, no primeiro estágio, “a subordinação escra-vizante do indivíduo à divisão do trabalho” e a “antítese entre o trabalho físico e mental” persistem. E não deveríamos esperar que essas desigualdades levassem a conflitos, em particular até mesmo nas questões econômicas, de modo que as “decisões” sobre política e política econômica não seriam (meras) questões de “escolha coletiva”, mas antes o resultado de lutas complexas, de lutas efetivamente de classe? Sem dúvida, ainda poderíamos alegar que uma das características das sociedades socialistas é que, nelas, o planejamento deveria ser mais fácil, já que parte da anarquia do mercado capitalista foi abolida. Mas o mercado não está in-teiramente abolido (por exemplo, o mercado da força de trabalho ainda funciona parcialmente). E o que o “planejamento” no socialismo pode significar é o registro e regulação legais de relações de valor que, no capitalismo (ocidental), encontram seu próprio nível, em vez da abolição de tais relações de valor capitalistas (pode--se comparar essa situação, mutatis mutandis, com a diferença entre as taxas de câmbio flutuantes e fixas). Logo, o advento ou manutenção do socialismo não pode ser reduzido a uma questão de escolha racional. Tampouco pode-se afirmar que o socialismo, em contraste com o capitalismo, permite que as opções tecnológicas mais eficientes sejam feitas – pelo menos, nada desse tipo pode ser dito como um princípio preestabelecido. Concluo que a explicação althusseriana, esboçada anteriormente, sobre a dupla “lógica do capitalismo” (que exige a maximização dos lucros, mas sob a restrição da necessidade de garantir a reprodução do sistema capitalista como um todo) é incompatível com a descrição de Cohen do papel da escolha racional na transição ao socialismo. E as afirmações relacionadas sobre o conflito e a luta de classes no socialismo entram em confronto com o quadro que ele apresenta do lugar da escolha racional na sociedade socialista.

O livro de Cohen, que subjetivamente se situa quase completamente fora da crise do marxismo, à qual me referi antes, está, na verdade, inteiramente dentro dela. Ao contrário do trabalho de Althusser, ele parece estar fora da teoria, assim como da história política. Ele faz abstração das condições da produção das ideias de Marx, bem como das suas origens na ideologia científica contemporânea, ignorando também as condições de produção de seu próprio trabalho e de suas relações com seu contexto ideológico. Entretanto, justamente por não fazer refe-rência a Kautsky ou Bernstein, a Lênin, Stalin ou Mao; aos movimentos traba-lhistas britânico, norte-americano, canadense, francês, alemão, tcheco, polonês ou de qualquer outra nacionalidade; justamente por não fazer menção à Revolução Cultural Chinesa e seu enorme impacto sobre o marxismo ocidental – e, dentre outros, sobre Althusser; precisamente por essas razões, o livro de Cohen é uma expressão exemplar da crise, que “não ousa mencionar seu nome”, ou, ao menos

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 129Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 129 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 130: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

130 • Crítica Marxista, n.31, p.111-131, 2010.

até recentemente, não ousava. Diante da crise, Cohen simplesmente retornou aos primeiros princípios.

Procurei indicar neste artigo alguns dos pontos de conflito entre Cohen e Althusser. A ideia de um retorno à ortodoxia é, neste contexto, uma ideia interes-sante, pois ambos os autores, cada um a seu modo, esforçaram-se por efetuar tal retorno, como os títulos dos seus livros indicam. Entretanto, raramente suas obras foram comparadas e contrastadas. Uma exceção a esse respeito é uma resenha do livro de Cohen feita por uma amiga e discípula de Althusser, Dominique Lecourt (1983). Lecourt escreve, em particular, que a obra de Cohen é “um daqueles raros livros sobre Marx, cuja grandeza reside na tentativa de forçar o leitor a repensar toda a estrutura do marxismo desde os seus fundamentos filosóficos, mesmo que ele chegue a conclusões diametralmente opostas àquelas que o autor propõe”. Lecourt chega a admitir que “uma vez que se tenha lido o livro de Cohen, somos levados a admitir que tal concepção de história como um todo [aquela que ele atribui a Marx] realmente dominou em todo o pensamento de Marx”. A questão é, porém, se não existe outra linha de pensamento em Marx – por exemplo, a que Althusser diz ter encontrado e sobre a qual elaborou seu pensamento.

Neste ensaio, também sugeri que as respostas de Cohen a algumas questões centrais do marxismo, e mesmo sua formulação de algumas das questões, são pro-blemáticas. Mas a impressão de modo geral crítica que devo ter dado não deveria esconder minha admiração e, às vezes, espanto em relação às delicadas, porém intensas complexidades do desenvolvimento textual do seu livro, bem como pelo cuidado e minúcia da exegese que contrastam cruamente com a fraqueza de muitos marxistas “continentais”. No entanto, não penso que essas últimas observações se apliquem a Althusser, por motivos que já devem ter se tornado óbvios ante-riormente. De fato, seus escritos possuem, igualmente, muitas ideias engenhosas que, se desenvolvidas, colocariam as ideias de Cohen sob grande pressão. Tentei apresentar algumas delas, embora o trabalho de Althusser contenha, obviamente, muitas outras.

Karl Marx’s Theory of History fez de Cohen o principal filósofo marxista do mundo anglo-saxão. As obras de Althusser, em minha opinião, puseram-no em uma posição similar na França. Além disso, Althusser anunciou a crise do marxismo, e esse é um dos seus méritos. Cohen, por sua vez, contribuiu tacitamente para o curso dessa crise, já que, como disse Isaiah Berlin, a elucidação pode expor os defeitos de uma teoria. E é isso que Cohen levou a cabo, ao menos para uma versão do marxismo. A questão agora é saber se a crise será resolvida pela superação ou pela morte. Mas essa é outra história – ou como Althusser provavelmente diria, uma outra “histoire terminée, histoire interminable”.

Referências bibliográficasALTHUSSER, Louis; BALIBAR, Étienne. Reading Capital. London: New Left Books,

1970.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 130Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 130 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 131: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Louis Althusser e G. A. Cohen: uma confrontação • 131

ALTHUSSER, Louis. Lenin and Philosophy and Other Essays. London: New Left Books, 1971.

. Essays in Self-Criticism. Londres: New Left Books, 1976.

. The Crises of Marxism. Marxism Today, 1978a.

. Ce qui ne peut plus durer dans le parti communiste. Paris: Maspero, 1978b.BALIBAR, Étienne. The Basic Concepts of Historical Materialism. In: Louis Althusser;

Étienne Balibar, Reading Capital. Londres: New Left Books, 1970. . Cinq études de matérialisme historique. Paris: Maspero, 1974.. On the Dictatorship of Proletariat. Londres: New Left Books, 1977.

COHEN, Gerald. Karl Marx’s Theory of History: a Defense. Oxford: Oxford University Press, 1978.

. Reconsidering Historical Materialism. Nomos, XXI, 1983.

. Functional Explanation: Reply to Elster. Political Studies, n.1, 1980, p.483-95.ELSTER, John. Cohen on Marx’s Theory of History. Political Studies, n.1, 1980, p.121-8.LECOURT, Dominique. Comment “défendre Le matérialisme historique”. Revue Phi-

losophique, n.2, 1983, p.245-55.LEVINE, Andrew; WRIGHT, Eric Olin. Rationality and Class Struggle. New Left Review,

n.123, 1980, p.47-68.LOCK, Grahame. The State and I: Hypotheses on Juridical and Technocratic Humanism.

Haia/Leiden: Martinus Nijhoff/Brill, 1981.PAQUOT, Thierry. Les faiseurs de nuages. Essai sur la genèse des marxismes français

(1880-1914). Paris: Le Sycomore, 1980.THOMPSON, E. P. The Poverty of Theory. Londres: Merlin Press, 1978.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 131Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 131 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 132: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 132Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 132 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 133: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Anotações sobre o materialismo burguês • 133

Anotações sobre o materialismo burguês*

GEORG LUKÁCS

A propósito do quinquagésimo aniversário da morte de FeuerbachNão é preciso discutir qual o significado deste grande pensador para a gênese

do materialismo histórico. Não apenas o pequeno e esplendidamente conciso livro de Engels apresenta esta contribuição com amplitude; qualquer um que estudou cuidadosamente a edição póstuma de Mehring dos escritos de Marx e Engels, além das pesquisas de Meyer sobre Engels, deve saber que foi decisivo o impacto que Feuerbach exerceu no pensamento juvenil de Marx e Engels. É claro, uma série de reservas críticas logo se seguiram a este inicial entusiasmo. Engels as expressa em várias passagens de seu livro (e Marx mais extensamente em sua correspon-dência). A objeção crucial é a de que Feuerbach não se aprofundou no autêntico materialismo histórico; somente deixa de lado a dialética hegeliana e não a supera de fato; na totalidade de sua posição, mantém-se fixo no ponto de vista burguês.

CRÍTICA

marxistaDOCUMENTO

* Nota do Tradutor: O presente texto compõe-se de duas pequenas resenhas escritas por Georg Lukács em 1922. Publicadas em separado, ambas apareceram no jornal Die rote Fahne, editado em Berlim. Era a época do exílio em Viena, depois da derrota da revolução húngara em 1919, e o filósofo marxista punha-se a escrever artigos durante os intervalos de seus estudos sobre Marx, Engels e Lênin. Os opúsculos que se apresentam são duas contribuições de Lukács para a história do materialismo pré-marxista; eles tratam de Feuerbach, da época revolucionária do materialismo burguês e da sua necessária guinada conservadora no período em que a ordem burguesa se esta-belece. São um curto anúncio do tema da decadência ideológica da burguesia, que será objeto de grandes obras de Lukács na maturidade (como A destruição da razão). Retirado de: LUKÁCS, Georg. Reviews and Articles from Die Rote Fahne. Tradução de Peter Palmer. London: Merlin Press, 1983. ISBN: 080362814. Títulos em inglês: On theFfiftieth Anniversary of Feuerbach’s Death; the Two Epochs of Bourgeois Materialism. Tradução de Ranieri Carli, Universidade Federal Fluminense.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 133Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 133 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 134: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

134 • Crítica Marxista, n.31, p.133-138, 2010.

O núcleo do método de Feuerbach e sua grande descoberta consistem em colocar o homem no centro da investigação científica do mundo. O jovem Marx adotou esta visão metodológica com ânimo. “Ser radical”, afirma, “é chegar à raiz das coisas. Mas o homem é a raiz de si mesmo”. Uma vez estabelecido esse ponto de partida, elucidam-se e compreendem-se como produto do próprio homem as construções mitológicas que envolvem e permeiam a consciência social, apresen-tando a atividade do homem em seu contexto, cujo prerrequisito é a possibilidade de transformá-lo. Como Marx depois enfatizou referindo-se a Vico, o homem fez ele mesmo a história humana, com todas as suas formas vitais.

Assim, Feuerbach foi um crítico, no mais alto significado da palavra, com relação a uma das mais importantes construções ideológicas, a saber: a religião. Ele corretamente analisou a mitologia que há no uso que Hegel faz do termo “espírito” (Geist). Porém, Feuerbach permaneceu um utópico ao demonstrar-se incapaz de adotar uma atitude crítica diante de seu próprio método: abordou o conceito de “homem” de modo acrítico, antidialético e metafísico, semelhante a um sacerdote que se inclina a abordar o conceito de Deus ou de religião. Para falar com as palavras de sua metodologia: Feuerbach assevera que o homem, o seu ponto de partida metodológico, realmente existe na verdadeira acepção do termo; contudo, falha no momento de capturar dialeticamente o conceito efetivo de homem, de perceber que o homem é algo que somente vem a ser no curso do desenvolvimento histórico e, como resultado, tanto existe como não existe (na perspectiva da crítica histórica).

Desde o assim chamado período feuerbachiano, Marx transcende dialeticamente Feuerbach. Considera a medida radical do homem como o critério de avaliação de sua vida social, o que deixa claro que o humano não se realiza e não pode realizar-se na sociedade contemporânea. Feuerbach nunca foi capaz de dar esse passo avante. Para ele, o homem como está dado constitui a realidade que prescinde de uma análise posterior, de um exame crítico. E apenas analisa a relação entre esta fração da realidade por ele estabelecida e a natureza, a religião etc. Como consequência dessa postura acrítica, a totalidade do ser social, a despeito de suas afirmações que sustentam o contrário, converte-se inteiramente no reino da natureza: exatamente como os economistas clássicos, o ser social torna-se a absoluta limitação natural da existência humana. Sob esse prisma, o homem transforma-se no indivíduo isolado e abstrato da sociedade burguesa. Quase que logicamente, Feuerbach define a má-xima virtude do homem como o amor, a suprema relação entre indivíduos que estão isolados e permanecem em isolamento. Porém, Feuerbach não entende a maneira pela qual esse amor é capaz de afirmar-se ele mesmo na real existência societária, onde o homem encontra os meios para levar a cabo o seu ideal de vida. Com acerto, Engels anota que Feuerbach simplesmente supõe “que a cada homem estão auto-maticamente dados os instrumentos e objetos de sua satisfação”. Uma nova utopia emocional estampa-se como a solução para as contradições da existência humana.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 134Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 134 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 135: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Anotações sobre o materialismo burguês • 135

Hoje, esses efeitos das teorias de Feuerbach ainda foram pouco examinados. O quanto, por exemplo, a ênfase na precedência metodológica do homem sobre Deus levou ao individualismo anárquico de Stirner e ao ateísmo de Nietzsche. O quanto, por outro lado, a combinação dessa relação do homem com Deus e a função do amor encontra uma magnífica ressurreição em Dostoievski etc. Precisamente aquele ímpeto que Feuerbach deu ao nascimento do pensamento revolucionário transformou-o em suspeito perante os olhos dos acadêmicos profissionais. Sua influência, uma das mais importantes na história da cultura burguesa (ao lado dos nomes já mencionados, permitam-nos aludir a outras diversas figuras, como Gottfried Keller e Kierkegaard), permanece uma influência anônima. O pensa-mento burguês está impossibilitado de compreender o desenvolvimento de sua própria cultura.

Mas o reconhecimento de que a continuação direta de Feuerbach orienta-se nessa direção determina a nossa atual perspectiva diante dele. Para nós, a doutrina de Feuerbach é um mero fato histórico. Ainda que tenha sido importante como ins-piração para Marx e Engels, perde relevância no instante em que os seus aspectos progressistas desembocam no materialismo histórico. No que concerne à batalha para realizar o seu ideal, o homem como a medida universal, Feuerbach não está apto a nos dar qualquer caminho que se percorra, precisamente porque ele situa a realização do homem em uma utopia espiritual. Nesse mesmo sentido, já que a sua posição utópica converte o “homem” em uma abstração — a generalização acrítica do homem da sociedade burguesa —, a constituição desse processo, a conclusão da “pré-história da humanidade”, não pode voltar-se para Feuerbach. Apesar de sua imensa importância, ele permanece sendo um episódio no desen-volvimento do materialismo histórico; uma irreconhecível e subterrânea força espiritual na cultura burguesa. Feuerbach tipifica os grandes desbravadores cuja obra é superada por sua influência, relegando a obra em si mesma à obscuridade.

As duas épocas do materialismo burguêsNo início do Dezoito Brumário, Marx mencionou a afirmação de Hegel de

“que todas as grandes ações e personagens na história mundial ocorrem duas vezes, por assim dizer. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa”. Essa frase foi escrita a respeito da história da revolução político-social, mas também parece verdadeira para a história das “revoluções” políticas. No que concerne ao materialismo burguês do século XVIII, o materia-lismo de Helvetius e Holbach, tratava-se de um ato revolucionário no autêntico sentido da palavra; o rude “materialismo” do século XIX (Ludwig Büchner, Vogt, Moleschott etc.) foi um eco vazio daquele grande movimento, uma vaga de mediocridades grosseiras e sem conteúdo. Isso já se elucida a partir de um primeiro olhar superficial sobre sua doutrina: não contém absolutamente uma sólida proposição que ainda não houvesse sido elaborada pelos materialistas do século anterior. Naquele tempo, porém, aconteceu o maior dos desenvolvimentos

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 135Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 135 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 136: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

136 • Crítica Marxista, n.31, p.133-138, 2010.

no pensamento humano, a descoberta do método dialético e a sua conversão na dialética materialista revolucionária — uma descoberta que o materialismo dos grosseiros repetidores falhou em reconhecer ou o fez com antipática incompreen-são. Por essa razão, eles não se voltaram rumo ao que já era a mais progressiva camada na evolução da sociedade: o proletariado. O materialismo do século XVIII foi o modelo de pensamento da (outrora) burguesia revolucionária. Na versão do século XIX, apenas encontrou adeptos em meio à burguesia – que então havia se transformado em reacionária.

Isso não foi por acaso. Em face da pontual influência sócio-histórica de uma determinada doutrina, o que importa não é exatamente a verdade abstrata que ela possa conter ou a originalidade de seus apontamentos acerca dos “fatos últimos”. O que importa é o quanto abarque os níveis da existência sócio-histórica dos homens, o quanto e em que direção essa explicação influencia as ações sociais do próprio homem. As verdades estilizadas que a doutrina contém, afirmações a propósito de Deus, natureza etc., podem ser inteiramente a mesma em substância e ainda assim exercer funções totalmente diferentes em diferentes pontos do desenvolvimento histórico. A mesma doutrina pode exercer uma influência revolucionária em certa ocasião e, em outra, pode ser reacionária.

E este foi o destino do materialismo em sua versão do século XIX. A recusa de orientação materialista de Feuerbach diante de Hegel e do idealismo alemão marcou uma linha divisória em toda uma época na evolução intelectual. De um lado, construiu-se, por sobre as aquisições da filosofia clássica alemã, o método dialético como o instrumento de interpretação histórica, tomando como suporte materialista o real, vital e efetivo conhecimento dos desenvolvimentos sócio--históricos (como Marx e Engels fizeram), ou, de outro lado, simplesmente se rejeitou o conhecimento da existência sócio-histórica dos homens. Este último caminho foi seguido pelo materialismo burguês, o materialismo de Büchner, Moleschott e demais.

Isso explica os lapsos intelectuais em respeito aos problemas da sociedade e da história. Em seu excelente livro a propósito da história do materialismo, Plekha-nov pontua as inevitáveis limitações do pensamento de Holbach e Helvétius: a inabilidade em ater-se à interpretação dinâmica da história e em compreender a relação entre as ações humanas e os eventos sociais. Ou eles interpretam a socie-dade como um mero produto das ideias humanas, da “opinião pública” etc., ou capturam o homem como um produto do ambiente social. Foram incapazes de sintetizar a unidade dialética que entende os homens como os demiurgos de sua própria história, ainda que as forças sociais objetivas influenciem e motivem as suas ações.

A despeito de tudo isso, essa doutrina foi um ato revolucionário no século XVIII. O que estava então na pauta do dia era a remoção das barreiras feudais que obstruíam o modo de produção capitalista-burguês. Todavia, conceitualmente, as formas feudais de produção sempre foram expressas em formas religiosas.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 136Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 136 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 137: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Anotações sobre o materialismo burguês • 137

Quer dizer que a natureza da relação feudal entre senhor e vassalo, entre mestre e aprendiz, aparecia à consciência humana como uma ordem dada por Deus, como a compaixão divina por toda autoridade e como devota submissão e obediência – uma vez que era um direto e concreto estado de dependência de um homem sobre o outro e não, como no capitalismo, uma relação abstrata mediada por um con-trato. Por essa razão, em termos econômicos concretos, a dissolução das formas econômicas feudais teve de ser acompanhada pela dissolução intelectual dessas formas religiosas. Enquanto resultado da ruína do sistema de produção feudal e da transição para um sistema capitalista de trabalho assalariado, de manufatura etc., essas formas tornaram-se cada vez mais frágeis e abstratas (lembremos-nos apenas do desenvolvimento da religião medieval para o teísmo e deísmo). No entanto, essas formas foram clara e diretamente contrapostas ao conceito da nova ordem econômica, para que se obtivesse o triunfo do mais avançado modo de produção também no âmbito ideológico. Esse conceito era a lógica interna de tudo que vem em substituição ao antigo. Tal doutrina estipulava que leis imanentes, autônomas e permanentes governam de uma maneira racional todas as expressões da vida humana, sem Deus ou autoridade divina, mas igualmente sem a intervenção da vontade do homem; desse modo, este desenvolvimento (da economia capitalista) deveria ser deixado a seu próprio desígnio, para que se derivasse daí uma ordem mundial que estivesse em concordância com a razão e com a felicidade universal: o capitalismo.

O capitalismo basicamente se institui ideologicamente sobre a compreensão fatalista de que “os homens são manipulados em vez de serem os manipuladores”; encontra expressão em uma “lei natural baseada na inconsciência dos participan-tes” (Engels). Quer dizer, essas leis tomaram a forma de leis naturais e não de tendências na evolução da sociedade. “O materialismo burguês”, disse Engels, “simplesmente opõe o homem à natureza em vez do Deus cristão”. Portanto, esse ponto de vista, que se limitava a ter um efeito revolucionário à medida que a tarefa a se cumprir era a dissolução das ideias feudais, transformou-se em reacionário a partir do instante em que os homens começaram a se tornar conscientes de sua própria existência social, com o pensamento proletário. De um lado, a lógica natural permanente de toda existência erradicou o Deus cristão, que era agora dispensável, e o princípio da autoridade associada a esse Deus. De outro lado, entretanto, substituiu a antiga ordem dada por Deus por uma nova e igualmente permanente ordem: a racional e coerente produção capitalista.

O materialismo científico naturalista é uma forma ideológica do desenvolvi-mento capitalista (cf. os comentários acurados de Marx em Das Kapital acerca da relação da doutrina mecanicista de Descartes e Bacon com o período da manu-fatura). Consequentemente, esse materialismo deve falhar precisamente no lugar em que falharam as formas ideológicas mais imediatas da burguesia: no problema da história. Não se pode reportar às origens históricas da sociedade capitalista a partir de todas essas formas ideológicas, haja vista que estão impossibilitadas

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 137Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 137 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 138: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

138 • Crítica Marxista, n.31, p.133-138, 2010.

de delinear a inevitável conclusão que o conhecimento de sua história vem a nos mostrar: seu irresistível colapso histórico. No momento em que o desenvolvimento sócio-histórico começa a superar o capitalismo, esse materialismo converte-se, assim, em um obstáculo ideológico para o processo histórico tanto quanto a crença em Deus por ele superada foi um obstáculo ao desenvolvimento no século XVIII. Então, a farsa histórica expressa no reviver do materialismo durante o século XIX consiste em seu uso hiperbólico de todos os símbolos revolucionários do mate-rialismo efetivamente transformador do século XVIII, quando sua orientação e influência tornaram-se, de fato, a mais completa reação.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 138Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 138 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 139: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Marxismo e reconhecimento • 139

Marxismo e reconhecimentoJAIR BATISTA DA SILVA*

A discussão teórica e política mais recente tem sublinhado que as lutas, os con-flitos e os embates orientam-se por demandas por igualdade efetiva, o que significa considerar reivindicações de natureza material e culturais. Até aqui, a polêmica tem sido travada em torno da questão econômica (redistribuição) e reivindicações de natureza identitária (reconhecimento). Esquematicamente, pode-se dizer que, de um lado, encontram-se aqueles preocupados com as desigualdades em virtude da exploração e da dominação de classe; de outro, aqueles atentos às reivindica-ções de caráter cultural. Tal polêmica tem estimulado a produção de teorizações sobre a natureza dos embates no mundo atual. Serão essas lutas definidas apenas por reconhecimento concebido como modelo identitário ou como modelo de status?1 E, mais ainda: reconhecimento e redistribuição são termos irredutíveis, logo impossíveis de serem incorporados a uma teoria abrangente acerca das lutas sociais? Haveria possibilidade teórica, e política, de combinar tais lutas com a luta de classe? Haveria espaço na teoria marxista para incorporar essa problemática? Em caso afirmativo, como isso seria possível? A discussão a seguir procura oferecer elementos para o entendimento dessas questões para, no final, expor as lacunas pre-sentes nessas teorizações a partir de um ponto de vista que consideramos marxista.

* Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais/UFPB. Autor de A perversão da ex-periência no trabalho. Salvador: EDUFBA, 2009. Agradeço as observações feitas pelo parecerista bem como a Andréia Galvão e a Henrique Amorim pelas críticas e sugestões.

1 Existem dois modelos de reconhecimento nessas teorizações: um que preconiza a ideia de reco-nhecimento a partir da ideia de identidade; outro que concebe o reconhecimento tomando como ponto de partida a questão do status.

CRÍTICA

marxistaCOMENTÁRIO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 139Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 139 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 140: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

140 • Crítica Marxista, n.31, p.139-153, 2010.

Uma orientação política que tem assumido grande destaque na teoria social contemporânea diz respeito às lutas por reconhecimento. Essa concepção tem sublinhado que as demandas e os embates dos grupos e coletividades, longe de exprimir reivindicações meramente materiais, são produzidos, na verdade, em nome do reconhecimento da sua identidade de grupo, de seus traços, características e heranças culturais.

Os teóricos das lutas por reconhecimento têm, por causa disso, questionado as bases normativas da sociabilidade e seu padrão de cidadania à medida que subli-nham que os padrões culturais e de justiça podem engendrar formas de opressão, desigualdades e sofrimentos, por não reconhecerem as particularidades culturais. Por conseguinte, essas lutas ressaltam ou possuem um acentuado caráter moral, pre-cisamente porque colocam em discussão o conceito de justiça. Alguns autores têm assumido a linha de frente no interior desse debate. Esse é o caso de Charles Taylor (Taylor, 1993), Nancy Fraser (Fraser, 2001) e Axel Honneth (Honneth, 2003; 2003a).

As lutas por reconhecimento no mundo contemporâneo2

Particularmente preocupado com a situação das minorias nas sociedades liberais democráticas, Taylor afirma que o caráter liberal de uma sociedade se define pela forma como esta lida com suas minorias. Por conseguinte, a política do reconhecimento implica sublinhar as articulações entre identidade e reconhe-cimento, pois, para ele, uma luta baseada nesta última categoria, primordialmente, é uma luta pela diferença.3

Logo, a teoria não deve prescindir do conceito de identidade. Pois identidade é, para Taylor, a interpretação que uma pessoa faz daquilo que ela é e de seus traços definidores essenciais como ser humano. A tese defendida aqui é que a identidade se forma, em parte, pelo reconhecimento ou pela falta dele. De fato, por meio do falso reconhecimento exercido pelos outros, os indivíduos ou coletividades podem sofrer “verdadeiro dano, autêntica deformação se o povo ou a sociedade que os rodeiam lhe mostram, como reflexo, um quadro limitativo, ou degradante ou depreciável de si mesmo” (Taylor, 1993, p.43).

Por exemplo, na relação entre brancos e negros, sublinha Taylor, estabeleceu-se uma imagem depreciada da população negra projetada pelos brancos durante lon-gos anos – e que alguns negros não deixaram de adotar. Dessa forma, autodeprecia-ção constitui-se em um dos principais, mais eficazes e mais poderosos instrumentos de sua própria opressão. Por isso, o falso reconhecimento não apenas evidencia a

2 A exposição sistemática e abrangente da teoria do reconhecimento pode ser encontrada em Silva (2008).

3 Como pode-se ver nesta passagem: “a luta pelo reconhecimento é também uma afirmação da diferença, uma vez que ela pede o reconhecimento da identidade específica de grupos. Assim, concomitante à valorização do princípio da dignidade do indivíduo, vale dizer, num projeto de sociedade em que estava prescrita a dignidade de todos os cidadãos, surge também o reconheci-mento do direito à diferença” (Mattos, 2001, p.11).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 140Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 140 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 141: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Marxismo e reconhecimento • 141

ausência de respeito merecido, mas pode, igualmente, causar uma ferida dolorosa, que provoca em suas vítimas efetivas uma aversão mutiladora contra si mesmas. Portanto, conclui Taylor, “o devido reconhecimento não é somente uma cortesia que devemos ao outro: é uma necessidade humana vital” (Taylor, 1993, p.45).

Para Taylor, uma característica decisiva da vida humana é seu aspecto dialógi-co. Com efeito, o indivíduo só se transforma em agente humano pleno quando se torna capaz, ressalta o autor, de compreender a si mesmo e definir sua identidade por meio da aquisição de enriquecedoras linguagens humanas para se expressar. Em outros termos, a identidade se constitui a partir da linguagem4 – que ele toma em sentido bastante amplo e flexível, incluindo a “linguagem” da arte, do gesto do amor e semelhantes. A aquisição da linguagem, por sua vez, se dá por inter-médio da interação com os outros. Disso decorre, portanto, que a identidade é, por definição, dialógica (Taylor, 1993).

Óbvio que o modelo teórico de formação das identidades desenvolvido por Taylor valoriza em demasia esse processo no plano individual, mas infelizmente não é apresentada e teorizada a constituição das identidades coletivas, especial-mente aquelas forjadas a partir da identidade de classe. Por isso ele se deteve longamente sobre a importância dos conceitos de autenticidade e dignidade na formação da subjetividade individual moderna. Uma abordagem do não reconhe-cimento a partir da ideia abrangente de opressão, na qual a questão da identidade individual fosse articulada à identidade de classe, talvez permitisse às teorizações do reconhecimento fugir das armadilhas subjacentes à reificação das diferenças que alguns críticos têm apontado. No entanto, se esse for o caminho, seria neces-sário encontrar em outra tradição as ferramentas teóricas para uma formulação não reificadora da identidade que orienta as lutas e os embates contemporâneos. Será precisamente a partir da relação entre indivíduo e classe que tentaremos evidenciar, a seguir, a limitação dessas teorizações.

Para Taylor, o reconhecimento pode ser feito de duas maneiras distintas. Na esfera íntima, a constituição da identidade pode ser bem ou malformada no decorrer das relações do indivíduo com outros significantes – pai, mãe, familiares, amigos etc., aqueles que o indivíduo ama ou são importantes para ele. Na esfera social, o indivíduo pode levar em conta a política não interditada de reconhecimento igualitário, pois este “não só é o modo pertinente a uma sociedade democrática saudável. Sua recusa pode causar danos àqueles a quem se nega [o reconheci-mento]” (Taylor, 1993, p.58).5 A preocupação fundamental reside em tornar claro

4 A teoria da linguagem de Taylor está marcada pelo fecundo diálogo que estabelece com o filósofo alemão Herder. Para este, a linguagem assume um papel meramente descritivo. Para Taylor, ao contrário, a linguagem tem conteúdo emotivo e expressivo (Mattos, 2006).

5 De fato, em Taylor, o reconhecimento positivo é fundamental para a constituição da identidade do indivíduo: “como assinala Taylor, a formação da identidade de uma pessoa está estreitamente relacionada com o reconhecimento social positivo – a aceitação e o respeito – por parte de seus pais, amigos, seres amados e também da sociedade em geral” (Rockefeller, 1993, p.136).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 141Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 141 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 142: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

142 • Crítica Marxista, n.31, p.139-153, 2010.

como padrões culturais podem engendrar sofrimentos àqueles indivíduos não re-conhecidos. De todo modo, é nos efeitos sobre a identidade social que os padrões morais abrangentes impõem aos integrantes de uma coletividade que a teoria do reconhecimento busca ancorar seu diagnóstico das lutas sociais contemporâneas. Ora, na medida em que se negligencia a opressão de classe, a própria pretensão de abrangência da teoria fica comprometida. Parece que é nesse mesmo compasso analítico que vão as formulações de Axel Honneth.

O reconhecimento como conceito moral abrangenteTomando de empréstimo as teses de Hegel, Honneth afirma que, na filosofia

moderna, a vida social é definida pela luta pela autoconservação. Isso significa que, especialmente nos escritos de Maquiavel, os indivíduos estabelecem uma relação de concorrência incessante para fazer valer seus interesses. Ora, isso informa uma concepção de homem egocêntrico, ou seja, atento e direcionado apenas à consecução de interesses particulares.6

Nessa perspectiva, e como decorrência da concepção teórica de homem nela subentendida, a sociedade é tomada como em um estado permanente de concor-rência hostil entre os sujeitos. Por conseguinte, a ação social vista aqui nada mais é do que uma constante luta entre os indivíduos para preservar sua identidade ou integridade física. Tanto em Hobbes como em Maquiavel, afirma Honneth, a ação política levada a efeito pelos indivíduos visa primordialmente à autoconservação.7

É o diálogo com os textos de Hegel do período de Jena que permite a Honneth apontar os desenvolvimentos do modelo de reconhecimento presente no autor de A fenomenologia do espírito em três momentos, para extrair daí uma teoria social de base normativa: 1) para Hegel, apenas quando dois indivíduos se veem ratificados “em sua autonomia com seu respectivo” oponente é que eles podem alcançar de modo complementar a compreensão de si como um eu autônomo atuante e individuado; em outras palavras, a constituição do eu está articulada ao pressuposto do reconhecimento entre os dois indivíduos; 2) o modelo teórico de reconhecimento de Hegel preconiza a existência de várias formas de reco-nhecimento recíproco, formas que se diferenciam umas das outras pelo grau de autonomia que possibilitam ao sujeito (amor, direito e solidariedade); 3) a teoria do reconhecimento hegeliana preconiza que, nas três formas de reconhecimento, realiza-se a lógica de um processo de constituição que é mediado pelas fases de uma luta moral, ou seja, os indivíduos são, de certo modo, impulsionados a

6 Será precisamente contra tal concepção que se posicionará Rousseau, pois o seu conceito de von-tade geral pretende, justamente, evitar que o bem comum seja objeto dos interesses e ambições da vontade particular, cf. (Rousseau, 1989).

7 Rousseau, na mesma linha de Hobbes, destaca a finalidade da esfera política: “qual a finalidade da associação política? É a conservação e a prosperidade de seus membros. E qual o indício mais seguro de que eles se conservam e prosperam? Seu número e população” (Rousseau, 1993, p. 98 – Grifos meus).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 142Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 142 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 143: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Marxismo e reconhecimento • 143

“entrar num conflito intersubjetivo, cujo resultado é o reconhecimento de sua pretensão de autonomia, até então ainda não confirmada socialmente” (Honneth, 2003, p.122). Esses desenvolvimentos permitem a Honneth aprofundar sua teoria a partir de três padrões de reconhecimento: amor, direito e solidariedade e suas formas correlatas de injustiça.

Inicialmente, o amor. Honneth diz que não tomará o amor no limitado sen-tido romântico que recebeu de valorização da intimidade sexual entre parceiros, mas em uma significação mais ampla. Assim, ele incluirá nas relações amorosas todas as relações primárias uma vez que seu caráter de força preconiza ligações emotivas entre pessoas de um círculo de interação restrito.

As outras formas de reconhecimento recíproco que implicam autonomia aos direitos das pessoas e o reconhecimento da particularidade individual do sujeito têm no amor o fundamento necessário para a formação de atitudes de autorrespeito.

A relação jurídica, que informa o outro padrão ou a segunda forma de reco-nhecimento, difere do padrão de reconhecimento engendrado no amor, apesar de ambos fazerem parte do mesmo padrão de sociabilidade. Na relação jurídica, os indivíduos se veem apenas como portadores de direitos, à medida que conhecem quais obrigações devem obedecer em face do outro. Ora, é tão somente no interior de um quadro normativo de um “outro generalizado”,8 situação que já nos permite reconhecer os outros integrantes da comunidade como portadores de direitos, que o indivíduo pode ver a si mesmo como portador de direitos, precisamente porque ele estará seguro e confiante do respeito das bases normativas que possibilitam suas pretensões.

O terceiro padrão de reconhecimento, a solidariedade, não depende apenas da experiência afetiva – dada pela relação amorosa – ou do reconhecimento jurídico, mas também de uma estima social que possibilite aos indivíduos representar de modo positivo suas propriedades e capacidades efetivas. A estima social é, portanto, uma forma de reconhecimento que necessita de um contexto social que permite aos seus componentes manifestar suas distintas capacidades e propriedades de modo universal, ou seja, a estima social “requer um médium social que deve expressar as diferenças de propriedades entre sujeitos humanos de maneira universal, isto é, intersubjetivamente vinculante” (Honneth, 2003, p.199).

Feita a exposição sumária dos padrões de reconhecimento que conduzem aos sentimentos correlatos de autoconfiança, autorrespeito e autoestima, é necessário

8 Honneth toma o conceito de “outro generalizado” emprestado de George Mead. Ele significa o processo de socialização pelo qual o indivíduo interioriza as normas de ação, por meio da gene-ralização das expectativas de atitude, comportamento etc., de todos os membros da comunidade (Honneth, 2003, p.134-5. Os conceitos de I e Me, junto com o conceito de “outro generalizado”, oriundos da psicologia social de Mead, servem para Honneth recuperar, segundo ele, de modo empírico, as dimensões do reconhecimento. O Me é, na verdade, a representação que o outro faz de mim. O I, por sua vez, só se desenvolve “quando sou capaz de colocar o meu julgamento sobre questões práticas na perspectiva do Me” (Mattos, 2006, p.88).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 143Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 143 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 144: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

144 • Crítica Marxista, n.31, p.139-153, 2010.

ainda mostrar, sempre seguindo aqueles padrões, as formas de não reconhecimento ou desrespeito engendradas nas interações sociais; pois é possível tornar patente que, na vida cotidiana, acredita Honneth, as ofensas, queixas, rebaixamentos e humilhações não passam, de fato, de formas de reconhecimentos recusados.

Honneth começa sublinhando a forma de desrespeito que atenta contra a inte-gridade física do indivíduo: a tortura ou a violação são os exemplos empregados, pois essa forma de desrespeito não se reduz à dor simplesmente corporal, mas compreende sua vinculação sentimental em estar submetido à vontade de outro. Por isso, o desrespeito representado e praticado pela violação física “fere dura-douramente a confiança, aprendida por meio do amor, na coordenação autônoma do próprio corpo” (Honneth, 2003, p.215). A consequência disso é a perda de confiança em si mesmo e na sociedade. Assim, quando o indivíduo é objeto de tortura, ele tem denegado o respeito ou o reconhecimento para dispor do próprio corpo de modo autônomo.

A privação de direitos manifesta-se pelo desrespeito ou reconhecimento de-negado ao indivíduo pelo fato de ele permanecer, de modo estrutural, excluído da posse ou usufruto de direitos no interior da sociedade. Essa noção de direito considera que um indivíduo tem carências cuja satisfação social pode reivindicar de modo legítimo. O desrespeito ou reconhecimento denegado pela privação do direito ou exclusão social não se reduz à limitação da autonomia individual, mas está articulado, simultaneamente, ao sentimento de não possuir o mesmo prestígio ou status social do parceiro de interação, ou seja, de não deter o mesmo valor moral que outro indivíduo, o que o conduziria a uma luta pelo reconhecimento igualitário.

Disso decorre a terceira forma de desrespeito, que afeta diretamente a autoesti-ma do indivíduo. A experiência dos maus-tratos, isto é, da violação da integridade física, da privação de direitos e da exclusão caminha junto com os processos que implicam a desvalorização social do indivíduo. No entanto, a consequência sobre a subjetividade é ainda mais profunda, segundo Honneth, pois ao lado disso ocor-re “uma perda de autoestima pessoal, ou seja, uma perda de possibilidade de se entender a si próprio como um ser estimado por suas propriedades e capacidades características” (Honneth, 2003, p.218). O resultado disso é o sofrimento dado pelo desrespeito, cujos sintomas podem alertar o indivíduo não reconhecido de seu estado e que, ainda, ao lado de indícios físicos e experiências de emoções negativas, podem engendrar sentimentos de vergonha social.

O que se depreende dessa breve exposição é que o conceito de reconhecimento é tomado como um monismo moral, ou seja, é a partir dele que todas as formas de lutas são pensadas; e mais do que isso: os embates, conflitos e disputas são vistos como questões morais, como problemas de justiça. Nesse sentido, as desigualda-des de classes, materiais e todas as outras formas de injustiças entre indivíduos e coletividades são concebidas como formas de reconhecimento denegado. Em outros termos, reconhecimento como conceito moral abrangente incluiria todas as formas de opressão, inclusive aquelas de natureza econômica.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 144Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 144 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 145: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Marxismo e reconhecimento • 145

Se a abordagem de Honneth permite apontar os limites dos padrões de justiça presentes em uma sociedade e sublinhar, igualmente, os obstáculos sociais ao efetivo usufruto da cidadania, sobretudo em termos culturais, sua teorização, ao subsumir as questões do trabalho e da classe social ao reconhecimento, o impede de uma crítica mais abrangente ao conceito de cidadania. Ora, é justamente essa fragilidade teórica que Nancy Fraser busca apontar a partir de uma formulação analítica que não abdique da economia política. Nessa perspectiva, o conceito de reconhecimento – que não é tomado a partir da ideia de identidade, mas como modelo de status – estará articulado ao de redistribuição.

Fraser e o dualismo perspectivoAs ideias de Nancy Fraser buscam acrescentar e apontar diferenças e discor-

dâncias com relação às formulações de uma teoria do reconhecimento baseadas no modelo de identidade, especialmente nas elaborações de Honneth. Fraser compartilha com Honneth o diagnóstico de que o reconhecimento se transfor-mou em uma demanda importante dos movimentos sociais, especialmente após a década de 1960, sendo, portanto, um conceito-chave para entender os embates políticos do nosso tempo. Ela está de acordo que a relação entre redistribuição e reconhecimento não foi, muito menos é, devidamente teorizada, ou ainda, que as demandas de reconhecimento não devem estar subsumidas às reivindicações econômicas.9 Por isso, ela propõe um dualismo perspectivo que significa não dissociar redistribuição e reconhecimento.

A partir desse diagnóstico – no qual reconhecimento e redistribuição estão articulados, sendo, porém, analiticamente distintos – Fraser sugere que às injus-tiças de ordem econômica seja aplicado o remédio da reestruturação político--econômica. Por sua vez, as injustiças de natureza cultural e simbólica devem ser remediadas por intermédio de mudanças na esfera cultural-valorativa. Para fundamentar sua proposição teórica, Fraser analisa o que ela chama de coletivida-des bivalentes10 e ambivalentes.11 Aqui, os movimentos sociais analisados são: o movimento feminista e o movimento negro – ou movimentos baseados na “raça”.12 No primeiro caso, essas coletividades são ambivalentes precisamente porque com-binam aspectos da exploração de classes com traços da sexualidade menosprezada. Por esse motivo, parece óbvio, portanto, que sofram injustiças de caráter cultural

9 O resumo da polêmica teórica entre Honneth e Fraser pode ser acompanhado nos seguintes traba-lhos: Josué Pereira da Silva (2008; 2005); Neves (2005); Mattos (2006; 2004); Zurn (2003); Camargo (2006); Pinto (2008).

10 Por conta da finalidade e dos limites deste texto, não é possível realizar aqui a exposição sistemática das coletividades bivalentes. Para observar esse ponto, ver Fraser, 2001, p.254-82.

11 Ambivalência precisamente porque essas coletividades, ao reivindicar o reconhecimento de sua identidade (o que acentua, portanto, a diferença), desejam, ao mesmo tempo, a igualdade que uma redistribuição injusta lhes impede de usufruir. Nesse sentido, tais lutas são, simultaneamente, de reconhecimento e redistribuição.

12 Neste texto limitar-me-ei a expor o movimento feminista.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 145Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 145 22/10/2010 15:12:0222/10/2010 15:12:02

Page 146: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

146 • Crítica Marxista, n.31, p.139-153, 2010.

e de natureza político-econômica. Por conseguinte, os remédios aplicados para solucionar as injustiças de reconhecimento e redistribuição, de modo isolado, são ineficazes para combater a opressão e a subordinação experimentadas por essas coletividades. Por isso mesmo, tais coletividades necessitam de uma ação combi-nada de reconhecimento e redistribuição para remediar as injustiças que as afetam.

Gênero, afirma Fraser, possui a particularidade de ser um elemento básico que estrutura a economia política. Por um lado, porque estrutura e legitima a divisão essencial para o sistema social entre trabalho produtivo assalariado e trabalho reprodutivo e doméstico – quase sempre não remunerado, desvalorizado e desti-nado às mulheres. Por outro lado, gênero fundamenta a divisão no interior do trabalho remunerado entre profissões bem pagas e providas de reconhecimento social positivo e as mal pagas e sem status; em outras palavras, profissões com prestígio social, destinadas aos homens; e trabalho doméstico, desprovido de pres-tígio, destinado às mulheres. A consequência “é uma estrutura político-econômi-ca que gera modelos de exploração, marginalização e privação específicos de gênero. Essa estrutura faz do gênero uma diferenciação político-econômica dotada de certas características de classe” (Fraser, 2001, p.260). Simplesmente por isso, a lógica do remédio aplicado é simétrica àquela preconizada à injustiça de classe: vale dizer, busca-se excluir a particularidade de gênero.

Para Fraser, classe limita-se a uma forma de diferenciação social baseada na estrutura político-econômica da sociedade. Assim, a classe é pensada como re-sultado da posição que os agentes ocupam nessa estrutura e como, a partir daí, se relacionam com as outras classes. Por exemplo, a exploração experimentada pela classe trabalhadora é um caso clássico de injustiça de natureza redistributiva, pois os trabalhadores são responsáveis pela produção da riqueza necessária à reprodução social, no entanto, recebem as menores recompensas pelo trabalho que realizam.

Para esse tipo de injustiça, que nos termos de Honneth seria vista como desres-peito ou reconhecimento denegado, Fraser afirma que é necessário aplicar remédios redistributivos e não de reconhecimento, pois “a última coisa de que necessita [o trabalhador] é reconhecimento de sua diferença. Pelo contrário, a única forma de remediar a injustiça é extinguir o proletariado como grupo” (Fraser, 2001, p.256) No entanto, não basta afirmar que a exploração experimentada pela classe traba-lhadora é uma forma de injustiça e, como tal, merece ser tratada com remédios redistributivos.13 Com efeito, é preciso dar um tratamento teórico ao conceito de exploração, pois é essa relação que estrutura a forma de reconhecimento dessa particular coletividade: “a relação entre proprietários e produtores é uma relação

13 Fraser concebe classe dessa forma: “é um modo de diferenciação social enraizada na estrutura político-econômica da sociedade. Uma classe existe como uma coletividade apenas em virtude de sua posição nessa estrutura e de sua relação com outras classes” (Fraser, 2001, p.255). Conceber a classe dessa forma é incorrer em economicismo, risco que Fraser está ciente em correr para dar vazão às suas formulações teóricas.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 146Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 146 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 147: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Marxismo e reconhecimento • 147

de exploração, termo que tem fortíssimas conotações normativas, mas que também pode ser usado num sentido técnico para denotar a apropriação da mais-valia e a alocação do produto excedente por pessoas sobre as quais os produtores têm pouco ou nenhum controle” (Miliband, 1999, p.474). O passo seguinte seria enfrentar a questão da dominação.14 Infelizmente, como será mostrado adiante, Fraser não faz nem uma coisa nem outra. Todavia, essa limitação analítica decisiva não a impede de desenvolver seu modelo teórico.

Fraser sublinha que gênero não se reduz a uma categoria ou distinção político--econômica, mas é também uma distinção de ordem cultural-valorativa. Uma im-portante dimensão da injustiça de gênero reside no androcentrismo. Este consiste na representação arbitrária de normas e práticas sociais que conferem maior prestígio às características vistas como masculinas. Daí decorre o sexismo cultural, que, por sua vez, consiste no desprestígio ou desvalorização sistemática de propriedades, capacidades ou habilidades representadas como femininas. Essa desvalorização é manifestada em uma série de injustiças sofridas pelas mulheres, que inclui agressão física, exploração, violência doméstica, humilhações, alienação, estigmas etc., reproduzidas cotidianamente, inclusive pela mídia (Fraser, 2001).

Devido à ambivalência presente na situação de gênero menosprezado, os remédios devem combinar, portanto, a dimensão político-econômica, ou seja, uma ação que enfrente as injustiças de redistribuição e ações culturais, legais e políticas que impliquem transformações cultural-valorativas que combatam as injustiças de reconhecimento. Desse modo, afirma Fraser, “reparar injustiças de gênero requer mudanças na economia política e na cultura” (Fraser, 2001, p.216).

Esse tipo de coletividade é mobilizado na argumentação de Fraser para res-saltar o limite das teorias do reconhecimento fundadas no modelo identitário, que concebem o reconhecimento denegado como um dano ao indivíduo, pois sublinha os efeitos sobre a estrutura psíquica em prejuízo das instituições sociais. No limite, esse modelo tende à imposição da identidade do grupo em detrimento da identidade individual (Fraser, 2000), de modo que ele não deixaria de ser autoritário e impositivo, e seu desdobramento seria a reificação da própria noção de identidade e de diferença.

Para escapar desse modelo é preciso tomar o reconhecimento como modelo de status. Isso implica reconhecer que os membros do grupo são tomados como parceiros integrais na interação social e não que seu reconhecimento deriva da identidade específica de um grupo. Portanto, o modelo de status, ao sugerir a participação integral na interação social, implica a participação paritária desses membros, ou seja, implica observar os padrões de valoração cultural em termos de seus efeitos sobre a posição social dos agentes sociais. Assim, esse modelo

14 Se a exploração é ponto de partida da relação de classe, o que a viabiliza é a dominação: “a análise de classes está preocupada basicamente com um processo de dominação e de subordinação de classes, o que constitui uma condição essencial do processo de exploração” (Miliband, 1999, p.475).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 147Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 147 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 148: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

148 • Crítica Marxista, n.31, p.139-153, 2010.

tende a acentuar mais os mecanismos sociais de hierarquização do que as formas de pertença identitária que o modelo anterior preconiza. Contrariamente, o reco-nhecimento denegado implica a participação não paritária nas instituições sociais (Fraser, 2002; 2002a).

Ao tentar reparar no modelo teórico, o que lhe parece insuficiente nas elabora-ções sobre reconhecimento, Fraser abre outras brechas a críticas. Por exemplo, sua concepção de classe é, como foi apontado, excessivamente determinista. Classe é tomada como lugar do agente na produção. As formas de ação política, os embates, as lutas e as formas organizativas que se realizam a partir da classe apareceriam quase como um milagre, para parafrasear Lukács, pois tudo derivaria desse lugar. Além disso, estruturar a crítica à teoria do reconhecimento colocando a redistri-buição em cena e esquecendo a produção nos parece igualmente insuficiente.

Classe social e reconhecimentoNão deixa de ser inusitado que, na teoria do reconhecimento, especialmente em

Honneth e Taylor, o tratamento dispensado ao conceito de classe social seja des-prezado. Com efeito, existe a pretensão de construir uma teoria social abrangente baseada na experiência social dos oprimidos. Ocorre que a fundamentação social da teoria não conduz os teóricos do reconhecimento à formulação consistente daquele conceito, o que a afastaria da pecha de déficit sociológico – atribuída à segunda geração da teoria crítica, notadamente a Adorno e Horkheimer (Honneth, 2003a). De fato, se a pretensão é ancorar a teoria na experiência de opressão vivenciada pelos indivíduos, então não parece fazer sentido negligenciar a opressão de classe. Essa negligência permite que a própria ideia de déficit sociológico ressurja como possibilidade de crítica à teoria do reconhecimento.

Nancy Fraser, por exemplo, assinala que, mesmo preferindo uma concepção de classe social que incorpore os aspectos culturais, políticos e discursivos, não deixa de conceber a classe a partir da sua posição na estrutura político-econômica. Ora, tal concepção é, como reconhece a autora, claramente economicista. Nesses termos, a classe e a luta de classes se direcionam, predominantemente, para sanar injustiças redistributivas mais do que para promover ações que busquem remediar o reconhecimento denegado. Disso depreende-se que a consciência de classe deriva muito mais – ou tem como ponto de partida – da posição dos agentes nas relações de produção.

Especialmente em Fraser, a ideia de uma luta por redistribuição parece direcionar-se para o terreno do consumo. Em outros termos, não se discute e polemiza sobre a produção e a forma que esta assume na sociedade capitalista. O argumento parece pressupor que a luta redistributiva deve se preocupar com a for-ma de divisão da riqueza e da renda, e não com a forma de produção dessa mesma riqueza. Por esse motivo, o modelo teórico parece sugerir que a transformação da produção é decorrência da luta por redistribuição, silenciando acerca das formas de opressão reproduzidas na dimensão político-econômica. Esse limite talvez

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 148Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 148 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 149: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Marxismo e reconhecimento • 149

decorra da própria definição de classe social que Fraser adota, pois a identidade e a consciência constituídas nas lutas por redistribuição são consideradas capazes de afetar todas as outras dimensões da luta de classes. Ora, a classe e a luta de classes, em sentido marxista, significam uma luta não apenas para repartir de nova forma o produto social, mas primordialmente para superar a forma de produzir vigente na sociedade capitalista e engendrar uma nova forma de produção e distribuição da riqueza social, que não derivam automaticamente da luta por “redistribuição”.

Tanto em Taylor e Honneth quanto em Fraser, nesta em menor medida do que naqueles, o diagnóstico da sociedade capitalista contemporânea não confere ao conceito de exploração e dominação de classe um tratamento teórico adequado. Nos dois primeiros autores isso sequer é mencionado, ao passo que na terceira o conceito carece de uma abordagem que fuja ao determinismo da posição do agente nas relações de produção. Com efeito, como lembra, de modo pertinente, Miliband (1999), a ênfase marxista sobre a extração da mais-valia é uma dimensão essencial nas sociedades capitalistas e isso não pode ser negligenciado, sob pena de se menosprezar um aspecto fundamental da vida social, pois, a exploração nas sociedades capitalistas significa a apropriação da mais-valia e a distribuição do produto excedente entre os indivíduos sem que os produtores tenham qualquer controle sobre esse processo. Além do mais, a exploração é componente funda-mental para pensar as classes sociais, “mas é a dominação que a torna possível”. Desse modo, a ênfase sobre a dominação serve de fundamento para “algo que está no cerne do pensamento de Marx, a necessidade de criar uma sociedade verdadeiramente humana, na qual são abolidas as relações de dominação e de coerção” (Miliband, 1999, p.475).

É justamente esse contexto social que está fora do modelo de análise da teoria do reconhecimento e, por esse motivo, a exploração e a dominação não recebem um tratamento teórico substantivo.

Isso talvez seja decorrência de um fantasma ou ameaça difusa que os teóricos do reconhecimento querem afastar. Esse risco refere-se ao economicismo que informou muitas análises sobre as lutas e movimentos sociais contemporâneos. O efeito teórico e político disso é a desconsideração ou a negligência de dimensões ou relações importantes do conceito de classe. Notadamente, a relação entre indi-víduo e classe social, articulação por meio da qual as formas de reconhecimento denegado podem ser pensadas.

A relação indivíduo e classeNa Ideologia alemã, Marx e Engels (2007a) afirmam que a classe não existe an-

tes dos indivíduos que a constituem. Essa ressalva é mobilizada contra Bruno Bauer, que parece conceber que o burguês é, tão somente, um tipo do gênero burguês.

Nesse debate, Marx e Engels destacam que na formação das burguesias locais nas cidades foi-se paulatinamente formando a classe burguesa. Quais foram as

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 149Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 149 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 150: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

150 • Crítica Marxista, n.31, p.139-153, 2010.

condições que permitiram essa constituição? As condições de vida semelhantes, a oposição às relações sociais existentes (particularmente, as relações feudais), o tipo de trabalho desenvolvido. Condições semelhantes, oposição e interesses semelhantes forjaram hábitos e costumes semelhantes. Esse cenário social fornece as condições para que a burguesia se desenvolva e incorpore em seu interior todas as classes de possuidores anteriormente preexistentes, processo que não impede a formação de novas divisões no seu interior, constituindo, desse modo, novas frações e camadas.

Os indivíduos como singularidades só se formam, afirmam Marx e Engels, como classe quando têm que realizar uma luta em oposição à outra classe. Caso contrário, suas relações limitam-se à disputa entre concorrentes. O problema, sublinham os autores, é que sob a forma burguesa de propriedade, a classe se autonomiza e condiciona a existência, o desenvolvimento pessoal dos indivíduos. Nesse sentido, os indivíduos recebem, como algo dado, sua posição na vida como decorrente da divisão da sociedade em classes. Entre os proletários, suas condições de vida, o trabalho, ou seja, o conjunto de suas condições de existência na sociedade burguesa, aparecem como algo acidental, como um acaso, pois aos indivíduos singulares não se apresenta a possibilidade de controlar essas condições. Trata-se de um processo que provoca a contradição entre a personalidade do proletário e a condição de existência que lhe é imposta pela determinação de classe. Por essa razão “a classe se autonomiza, por sua vez, em face dos indivíduos, de modo que estes encontram suas condições de vida predestinadas e, com isso, seu desenvol-vimento pessoal; são subsumidas a ela” (Marx e Engels, 2007a, p.63).

Ora, o processo de autonomização da classe não deve desconsiderar as formas de opressão que indivíduos ou grupos com traços ou marcas singulares experimentam: os proletários se manifestam contra formas injustas presentes na produção, lutam por reconhecimento e redistribuição e contra as formas de opressão reproduzidas pela sociabilidade dominante. Esse pode ser um ponto de partida para pensar as questões das lutas por justiça no mundo contemporâneo.15 De fato, a luta de classes, vale sempre lembrar, é a luta pela tomada do poder político, pela tomada e esvaziamento do poder do Estado,16 que não deixa de ser igualmente uma luta por justiça. Na medida em que expressa uma concepção de bem comum, de bem-estar coletivo, a luta de classes expressa uma concepção

15 Não se conclua da exposição que racismo, sexismo etc., são fenômenos que apenas se explicam por meio do conceito de classe social. Existem expressões do racismo, por exemplo, que não se reduzem à questão de classe. Ocorre que a desigualdade e opressão de classe é o pano de fundo sobre o qual aqueles fenômenos se realizam, e por essa razão precisa ser levada em conta na análise.

16 “Quando, no curso do desenvolvimento, desaparecerem os antagonismos de classes e toda produção for concentrada nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá seu caráter político. O poder político é poder organizado de uma classe para opressão de outra” (Marx e Engels, 2007a, p.58-9). Ver ainda: (Marx e Engels, 2007b).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 150Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 150 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 151: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Marxismo e reconhecimento • 151

de justiça. Uma luta por justiça pode se expressar como luta de classes se põe em causa as formas de direito e justiça subjacentes à sociabilidade dominante. Portanto, não é toda e qualquer luta por justiça que poderá ser considerada luta de classes, mas tão somente aquela que, no caso do modo de produção capitalista, questiona o direito burguês. Ocorre que a luta de classes e a ideia de opressão que lhe está subjacente não pretendem, de modo algum, sanar apenas as injustiças de ordem moral ou limitar-se à esfera da distribuição, pois tal luta pretende instituir precisamente outra ideia de justiça e moral. Nesse sentido, é preciso também estar atento às formas de opressão que os padrões sociais valorativos impõem sobre os indivíduos e coletividades. Isso requer a formulação de um conceito de classe e de opressão suficientemente abrangente e que possa se articular com as formas de injustiça sublinhadas pela teoria do reconhecimento. No entanto, tais conceitos não são adequadamente desenvolvidos por Honneth, Fraser ou Taylor.

A recuperação de algumas pistas fornecidas por Marx e Engels e suas formu-lações sobre o indivíduo e classe social já são suficientes para mostrar aquilo que talvez seja a principal insuficiência da teoria do reconhecimento de Honneth e Fraser: refiro-me à crítica da economia política, particularmente em um contexto de capitalismo mundializado, e isso não tem passado despercebido entre seus críticos:

Ela [a teoria de Honneth] não me parece fornecer os elementos necessários para se compreender a sociedade contemporânea em toda sua complexidade, princi-palmente sua dimensão propriamente econômica. Além disso, sua valorização da categoria trabalho me parece problemática e leva-o a relacionar solidariedade com mérito (Pereira da Silva, 2005, p.21; Ver ainda: Pereira da Silva, 2008).

Por esse motivo, parece pertinente a preocupação de Fraser (2000, 2001, 2002a, 2000b) em articular reconhecimento e redistribuição, com as ressalvas que apontei anteriormente. Ao sublinhar a noção de redistribuição no debate teórico, Fraser pode, ao menos, permitir a recuperação do conceito de classe e trabalho, o que lhe abre a brecha “para uma reelaboração crítica do conceito de cidadania” (Pereira da Silva, 2005, p.21), pois possibilita relacionar injustiças de ordem econômica com desrespeitos de natureza identitária. No entanto, a noção de Fraser de paridade de participação, como sugerem seus críticos, parece não ser analiticamente poderosa e, muito menos, ter a capacidade de motivação política que eles atribuem ao conceito de luta por reconhecimento formulado por Honneth (Pereira da Silva, 2005).

Seja como for, tanto para Honneth quanto para Fraser a crítica à sociabilidade contemporânea permite desvelar os dilemas que a luta social contemporânea tem e terá de enfrentar. Porém, no caso particular de Fraser, apesar da brecha no seu modelo analítico para incorporar os conceitos de trabalho e classe social, a não

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 151Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 151 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 152: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

152 • Crítica Marxista, n.31, p.139-153, 2010.

tematização da produção parece sugerir que os remédios contra injustiças redistri-butivas resolveriam o limite de acesso ao consumo e a desigualdade na distribuição de renda. Além disso, a não incorporação da produção no modelo analítico parece sugerir ainda que a redistribuição vá se dar a partir dos parâmetros existentes, o que debilitaria a teoria de elementos críticos mais agudos contra o sistema capi-talista, precisamente porque a produção continua a ser capitalista. Tanto Honneth quanto Fraser priorizam em sua teoria a discussão sobre o conceito de justiça, afastando-se sobremaneira, cada um a seu modo, do debate político-econômico.

Referências bibliográficasCAMARGO, Sílvio. Axel Honneth e o legado da teoria crítica, Política e trabalho – Re-

vista de Ciência Sociais, João Pessoa, n.24, 2006.FRASER, Nancy. Rethinking recognition, New Left Rewiew, New York, n.3, 2000,

p.107-20.. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista.

In: SOUZA, Jessé. Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática con-temporânea. Brasília (DF): Editora Universidade de Brasília, 2001.

. Redistribuição ou reconhecimento? Classe e status na sociedade contemporânea, Interseções, Rio de Janeiro, ano 4, n.1, jan./jun. 2002a.

. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n.63, 2002b.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.

. Honneth esquadrinha déficit sociológico. Folha de S.Paulo, São Paulo, 11 de outubro de 2003a.

NEVES, Paulo Sérgio da Costa. Luta anti-racista: entre reconhecimento e redistribuição. Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), São Paulo, v.20, n.59, 2005.

MATTOS, Patrícia. A sociologia política do reconhecimento – as contribuições de Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser. São Paulo: Annablume, 2006.

. Reconhecimento, entre a justiça e a identidade, Lua Nova, São Paulo, n.63, 2004.MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo Editorial,

2007a.. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007b.

MILIDBAND, Ralf. Análise de Classes. In: GIDDENS, Anthony; TURNER, Jonathan. Teoria social hoje. São Paulo: Editora da Unesp, 1999. p.471-502.

PEREIRA DA SILVA, Josué. Teoria crítica na modernidade tardia, Caxambu, ANPOCS, 2005.

. Trabalho, cidadania e reconhecimento. São Paulo: Annablume, 2008.PINTO, Celi Regina Jardim. Nota sobre a controvérsia Fraser-Honneth informada pelo

cenário brasileiro, Lua Nova, São Paulo, n.74, 2008. SILVA, Jair Batista da. Racismo e sindicalismo – reconhecimento, redistribuição e ação polí-

tica das centrais sindicais acerca do racismo no Brasil (1983-2002). 2008. Tese (Douto-rado em Ciências Sociais). – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp (SP).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 152Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 152 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 153: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Marxismo e reconhecimento • 153

ROCKEFELLER, Steven. Comentário. In: TAYLOR, Charles. Multiculturalismo y la política del reconocimiento: ensaio de Charles Taylor. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. p.136.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. São Paulo: Martins Fontes,1989TAYLOR, Charles. Multiculturalismo y la política del reconocimiento: ensaio de Charles

Taylor. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.ZURN, Christopher. Identity or Status? Struggles over Recognition in Fraser, Honneth,

and Taylor, Constellations, New York, v.10, n.4, 2003.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 153Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 153 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 154: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 154Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 154 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 155: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Combatendo a desigualdade social – o MST e a Reforma Agrária no Brasil • 155

Combatendo a desigualdade social – o MST e a Reforma Agrária no Brasil MIGUEL CARTER (ORG.)São Paulo: Editora Unesp, Centre for Brazilian Studies, Universidade de Oxford, NEAD, MDA, 2010, 563p.

ISABEL LOUREIRO *

Esta coletânea reúne estudos de especialistas em questão agrária e movimentos sociais, produzidos para uma conferência internacional no Centre for Brazilian Studies da Universidade de Oxford, em 2003, e revistos até 2007, com a finalidade de investigar a desigualdade no meio rural brasileiro, suas origens, consequências e reações atuais a essa situação. O seu maior mérito consiste não só em sistematizar a vasta literatura existente sobre o tema, mas também, a partir de um levantamento empírico meticuloso, organizar dados esparsos, provenientes de diversas fontes, a respeito da questão agrária e do MST no Brasil.

O livro divide-se em quatro partes: a primeira trata dos antecedentes históricos do MST, a segunda da luta pela terra (acampamentos), a terceira da luta na terra (assentamentos), a quarta das relações entre o MST, a política e a sociedade no Brasil. A tese do organizador, exposta na Introdução e na Conclusão, e demons-trada nos 18 artigos, é que, contrariamente ao que afirmam seus detratores, o MST contribui para o fortalecimento da democracia no Brasil na medida em que luta contra a desigualdade.

Esse tema é introduzido a partir da comparação entre dois eventos emblemáti-cos do Brasil no começo do século XXI, ocorridos no primeiro semestre de 2005: a Marcha do MST, em que durante 16 dias 12 mil trabalhadores rurais percorre-

CRÍTICA

marxistaRESENHAS

* Membro do Comitê editorial de Crítica Marxista.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 155Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 155 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 156: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

156 • Crítica Marxista, n.31, p.155-158, 2010.

ram mais de 200 quilômetros até chegar a Brasília, e a inauguração da Daslu, a maior loja de departamentos de produtos de luxo do planeta, com a presença do governador e do prefeito de São Paulo. A Marcha, cujo objetivo era pressionar o governo Lula a favor da reforma agrária, transcorreu em clima de harmonia e tranquilidade. Mesmo assim, foi atacada pela mídia, que viu nos 300 mil reais gastos com água e alimentação um ato de corrupção política. Em contrapartida, tratou de maneira benevolente a dona da Daslu, presa pela Polícia Federal em julho de 2005, acusada de sonegar 24 milhões de reais em dez meses.

Os dados sobre a desigualdade no Brasil são chocantes: os 10% mais ricos da população detêm 46% da renda nacional, ao passo que aos 50% mais pobres restam apenas 13%. Somente alguns países africanos extremamente pobres são mais desiguais que o Brasil. No campo a situação é ainda pior: 1% dos proprietários rurais controla 45% das terras cultiváveis, ao passo que 37% possuem apenas 1% da mesma área. É evidente o vínculo profundo entre os dois mundos – a pobreza iníqua é o reverso da riqueza obscena. É essa situação absurdamente injusta que faz que o MST não seja apenas um movimento restrito à reforma agrária, mas que “desafia as desigualdades seculares do Brasil” (Carter, 2010, p.37).

Em resumo, a luta pela terra e na terra precisa ser compreendida em um contexto em que prevalecem, desde a Colônia, relações de extrema desigualdade que impedem uma reforma agrária progressista. É o que explica em grande parte a força, a fraqueza e os limites do MST.

Vários artigos, ao voltarem às origens do MST, mostram como o atual modelo de desenvolvimento agrário do Brasil, fundado no agronegócio e na proteção da grande propriedade fundiária, foi desenvolvido e financiado pelo regime militar, mantendo-se assim, apesar da democratização política, das leis a favor da refor-ma agrária e da demanda popular por terra. Vemos também como o MST foi se estruturando de maneira realista e pragmática em resposta às políticas do Governo Federal, mais ou menos repressivas ou simpáticas à causa da reforma agrária.

Com a eleição de Lula, o MST tinha a esperança de que seu aliado histórico finalmente fizesse uma reforma agrária progressista. Mas apesar do aumento do número de famílias assentadas por ano em relação ao governo anterior, isso ocorreu em grande parte em terras públicas na Amazônia, ou em assentamentos já existentes. Os dados são inquestionáveis no tocante à inexistência de vontade política para diminuir a concentração da propriedade da terra, assim como no reforço à opção pelo agronegócio, que começou nos anos 1990.

A partir dessa época, muda o eixo da questão agrária no Brasil. O principal obstáculo à reforma agrária e à agricultura camponesa não é mais o latifúndio improdutivo, mas o agronegócio que, num jogo de cartas marcadas (basta lembrar a não atualização dos índices de produtividade para efeito de desapropriação de terras) continua sendo fortemente subsidiado: durante o governo Lula, ele obte-ve sete vezes mais recursos que a agricultura familiar, responsável por 87% dos empregos no campo.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 156Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 156 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 157: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Combatendo a desigualdade social – o MST e a Reforma Agrária no Brasil • 157

Contra as caricaturas do MST como “fundamentalista”, “terrorista”, “ameaça perigosa” e “irracional”, o livro mostra que o movimento adota uma prática ra-cional de enfrentamento da questão agrária e contribui, por várias razões, para o fortalecimento da democracia no Brasil: combate as enormes disparidades sociais, organiza e incorpora setores marginalizados da população, desenvolve o exercí-cio da cidadania entre os pobres, luta por seus interesses e valores por meio do “ativismo público” e defende ideais utópicos, que fazem avançar a democracia.

Em um país em que a paralisia patrimonialista e oligárquica contamina todas as forças políticas, só com pressão social um movimento de pessoas pobres pode chamar a atenção da sociedade e ter acesso aos fundos públicos, já que não tem representação no Congresso, nem influência na grande mídia. O que explica a força e a originalidade do MST é sua “capacidade de sustentar e equilibrar a fir-meza de seus ideais com a busca de soluções práticas para atender seus problemas quotidianos” (Carter, 2010, p.231).

A parte sobre os assentamentos é a mais interessante. Pesquisas de campo expõem com franqueza os problemas enfrentados pelos trabalhadores rurais após o acesso à terra: heterogeneidade dos assentamentos, baixo nível de instrução dos assentados, peso do mandonismo, clientelismo, machismo e racismo característicos do meio rural. Mas essas pesquisas também mostram que, graças aos assenta-mentos, entre 1985-2006, mais de 5 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza conseguiram moradia, renda e alimentação, o êxodo rural diminuiu, o aumento do poder aquisitivo dos assentados contribuiu para fortalecer o comércio local, a mobilização pela terra criou novas demandas: educação, saúde, cultura, as novas lideranças assim criadas introduziram mudanças políticas nos municípios e, por fim, um argumento pragmático: a criação de um posto de trabalho gerado pela reforma agrária é muito mais barata que na indústria, comércio ou serviços.

Os desafios postos pelos assentamentos ampliaram os horizontes do MST, que passou a incorporar novos temas à sua perspectiva de classe: gênero, ecologia, direitos humanos, saúde, diversidade cultural, soberania alimentar, soberania nacional, solidariedade internacional. Essa flexibilidade do movimento, que se formou e se constrói na luta, é uma das razões do seu sucesso. Mas o que mais o distingue de outros movimentos camponeses passados e presentes é o enorme investimento na educação, qualificação e formação política de seus integrantes. Um número apenas: de 1988 a 2002 o setor de formação ministrou cursos e ofi-cinas para mais de 100 mil militantes.

O livro alimenta a esperança de que o agronegócio, baseado em um modelo produtivo industrial de alto custo ambiental (uso de transgênicos e agrotóxicos), se torne em breve uma prática arcaica. Nesse sentido, o MST, com uma concepção de produção camponesa em que a terra é usada para viver e não para negociar, contribui para difundir valores não capitalistas no meio rural. E também porque insere a luta camponesa em um projeto amplo de transformação econômica, social e política do país e em uma disputa a respeito do modelo de civilização:

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 157Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 157 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 158: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

158 • Crítica Marxista, n.31, p.155-158, 2010.

ou continuação do sistema de produção e consumo capitalista, baseado na lógica do progresso e do crescimento sem limites, com o esgotamento dos recursos do planeta, ou um sistema socialista, assentado em relações fraternas, justiça social e na ideia de uma vida em equilíbrio com a natureza. Em suma, este livro mostra que o MST é um elemento civilizador na sociedade brasileira.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 158Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 158 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 159: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Trabalho imaterial: Marx e o debate contemporâneo • 159

Trabalho imaterial: Marx e o debate contemporâneoHENRIQUE AMORIM São Paulo: Annablume/Fapesp, 2009, 162p.

ANDRÉIA GALVÃO*

O livro de Henrique Amorim, que resulta de sua tese de doutoramento defen-dida na Unicamp em 2006, se propõe a discutir criticamente as teorias do trabalho imaterial, tendo como ponto de partida uma leitura alternativa dos Grundrisse, “texto que informa as teses sobre a não centralidade do trabalho e também as teses do trabalho imaterial” (p.22). Aqui já reside, de saída, uma novidade de seu trabalho diante das análises que criticam o trabalho imaterial a partir d’O capital, questionando a utilização de um rascunho não publicado por Marx.

O debate em torno do trabalho imaterial e das teorias concebidas para explicá--lo apresenta uma dificuldade prévia: a de definir se imaterial é o tipo de trabalho ou o seu produto. Com efeito, a expressão trabalho imaterial é utilizada para de-signar uma série de fenômenos inter-relacionados: 1) Um novo tipo de produção, baseada na informação, no conhecimento e em meios de trabalho automatizados; 2) As características da força de trabalho empregada (maior grau de qualificação exigido do trabalhador e maior envolvimento da subjetividade, o que, para os teóricos dessa perspectiva, significa maior autonomia e um trabalho predominan-temente intelectual); 3) Um tipo de trabalho que, no mínimo, colocaria em xeque a separação entre tarefas de concepção e de execução; 4) O caráter “intangível” dos bens e serviços produzidos.

* Professora do Departamento de Ciência Política da Unicamp.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 159Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 159 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 160: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

160 • Crítica Marxista, 30, p.159-161, 2010.

A tese principal sustentada por essas teorias é a de que o trabalho imaterial passou a ser a força produtiva central da sociedade “pós-industrial”. Essa nova força produtiva se converteria em algoz do capital, possibilitando o desenvolvi-mento do socialismo nos interstícios do capitalismo. O socialismo seria o resultado de um processo marcado pela reconciliação entre capital e trabalho (em virtude da elevação do preço da força de trabalho detentora do saber que fundamenta o novo regime produtivo); pelo fim da distinção entre trabalho manual e intelectual e entre trabalho produtivo e improdutivo (na medida em que a ciência e a técnica substituiriam o trabalho como fonte de valor e todos os trabalhos se tornariam igualmente produtivos); pela universalização do conhecimento, que se tornaria uma “‘não mercadoria’, um bem comum” (p.122). Assim, o socialismo já seria realidade, pois essas transformações acarretariam o fim da distinção entre as classes sociais. Desse modo, essas teorias colocam em xeque a teoria do valor do trabalho – superada porque as transformações tecnológicas teriam acabado com a possibilidade de o tempo de trabalho ser medida de valor – e a teoria da revolução, substituída pela transição pacífica ao socialismo.

A análise de Amorim demonstra que esse conjunto de argumentos é determi-nista (pressupõe que o novo tipo de trabalho e de trabalhador decorre das mudan-ças na base produtiva); simplificador (não considera os diferentes conteúdos dos trabalhos, atribuindo um potencial generalizador ao trabalho considerado mais qualificado; não considera as diferenças entre as conjunturas e entre as formações sociais – supondo uma ruptura completa e acabada entre um tipo de trabalho – e de sociedade – e outro); idealista (baseada em uma visão idílica do trabalho qua-lificado e na aposta em seu potencial anticapitalista). A partir desses equívocos, as teorias do trabalho imaterial estabelecem e difundem conhecidas dicotomias, como: trabalho material X imaterial, sociedade industrial X pós-industrial, operário fabril X trabalhador polivalente, além de confundirem a possibilidade de aumento do tempo de não trabalho com tempo livre, não levando em conta a contradição entre a redução do tempo de trabalho e o aumento das formas de exploração do trabalho.

Por sua vez, Amorim não deixa de reconhecer que as transformações na forma e no conteúdo do trabalho colocam problemas para a teoria marxista: “deve-se sublinhar que existe uma tendência de substituição do trabalho vivo por trabalho passado, e de incorporação da ciência e da tecnologia nesse processo” (p.17). Na obra de Marx, há indicações sobre essa tendência especialmente nos Grundrisse, obra que o autor analisa no primeiro capítulo do livro. No segundo capítulo, critica as teses acerca da não centralidade do trabalho e, no terceiro, analisa as obras de André Gorz, Antonio Negri e Maurizio Lazzarato.

Ao longo desse percurso, Amorim relaciona, de modo interessante e inovador, as teorias do trabalho imaterial às teses da não centralidade do trabalho, do tempo livre e do fim das classes sociais. A tese principal defendida por ele é que as teorias do trabalho imaterial são fundamentadas em uma leitura particular e equivocada dos Grundrisse, e em uma concepção determinista do processo histórico (o primado

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 160Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 160 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 161: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Trabalho imaterial: Marx e o debate contemporâneo • 161

das forças produtivas), que elimina a luta de classes e desconsidera a importância da transformação política. Já a leitura alternativa proposta por Amorim é baseada em uma “pressuposição classista” (p.72), que busca não apenas reinserir a luta de classes na análise, bem como as imbricações entre as diferentes dimensões da totalidade social. Assim, para o autor, quando Marx fala na possibilidade de “liberar o trabalhador coletivo das amarras do tempo de trabalho” (p.25), trata-se de uma “projeção teórico-histórica” (p.44) que pressupõe uma sociedade comunista, pois não dá para pensar a transformação social apenas na esfera econômica.

Essas indicações já são suficientes para demonstrar os méritos e contribuições do livro. Ainda assim, é possível levantar algumas questões. O autor critica a tese de Ruy Fausto que, ao caracterizar a “pós-grande indústria” pela subsunção formal--intelectual do trabalho ao capital, admite, contraditoriamente, a possibilidade de emancipação do trabalho ainda no capitalismo. Porém, Amorim não explicita de que maneira compreende o “novo quadro de subsunção do trabalho ao capital” (p.49), no qual as formas de exploração se amplificam.

O autor entende que as teorias do trabalho imaterial são fundamentadas em uma tentativa de resgate do artesão/trabalhador de ofícios, na medida em que as mudanças tecnológicas e organizacionais proporcionadas pela suposta superação do paradigma taylor-fordista teriam levado a uma reapropriação do saber-fazer e dos meios de produção, ao fim da divisão entre trabalho manual e intelectual, e à consequente retomada do controle operário sobre o processo de trabalho. Mas isso valeria apenas para uma parte da classe trabalhadora, que se tornaria, assim, o novo sujeito revolucionário. Esse novo sujeito não seria mais constituído pelo operário industrial, e sim pelo trabalhador do setor de serviços. Há vários aspectos interes-santes no argumento desenvolvido por Amorim para criticar essa perspectiva, mas alguns deles requerem maiores explicações. A discussão sobre as características do trabalho artesanal, de suas semelhanças e diferenças em relação ao trabalho do operário qualificado e deste diante do operário polivalente constitui uma das lacunas que podem ser identificadas no argumento. Ademais, o debate em torno da qualifi-cação do trabalho é árduo mesmo para o leitor iniciado. Nesse sentido, a profusão de termos que nem sempre são definidos (além dos citados acima, o autor utiliza: operário especializado, operário massa, operário social, trabalhadores tradicionais, trabalhador homogêneo, heterogeneidade profissional etc.) dificulta a apreensão das características da “nova classe operária”, cuja conversão em sujeito revolucio-nário é questionada pelo autor. Aqui, Amorim poderia ter questionado também o uso de tal expressão. Afinal, como falar em sujeito revolucionário sem revolução?

A própria pertinência do resgate do trabalho artesanal por parte dos teóricos do imaterial poderia ser problematizada. Pois se o trabalho imaterial pressupõe a socialização do conhecimento e a cooperação, como quer Negri, em que medida o trabalho artesanal possibilita esse saber comum e enseja esse caráter cooperativo?

Essas são apenas algumas das questões suscitadas pelo livro, cujas análises e desdobramentos possíveis vão muito além do exposto aqui.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 161Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 161 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 162: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 162Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 162 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 163: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

A origem do cristianismo • 163

A origem do cristianismoKARL KAUTSKY (tradução, introdução, apêndice e notas de Luiz Alberto Moniz Bandeira)Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010, 559p.

MICHAEL LÖWY *

Graças ao eminente historiador Moniz Bandeira, está finalmente disponível em língua portuguesa este clássico do materialismo histórico publicado pela primeira vez em 1908. Em seu prefácio, o tradutor lembra que Kautsky foi o legatário de Marx e Engels e o principal teórico da Segunda Internacional. Lênin, apesar de denunciá-lo como “renegado”, reconhece que seus trabalhos como historiador marxista “ficarão como patrimônio duradouro do proletariado”.

Karl Kautsky é provavelmente o primeiro marxista a se interessar não só pelo movimento, mas também pela personalidade enigmática do profeta crucificado. Seu livro Der Ursprung des Christentums (A origem do cristianismo), de 1908, é uma tentativa bastante impressionante (mais de 500p.) de análise histórica marxista. Reeditada nove vezes e traduzido em vários idiomas, tornou-se uma das obras mais populares do teórico da social-democracia alemã. Ao escrevê-la, Kautsky se propunha pelo menos três objetivos essenciais:

1) um objetivo político: seguindo a pista lançada por Engels, interpretar o cristianismo primitivo como precursor do movimento proletário e socialista moderno.

2) um objetivo cultural: opor à mitologia cristã um relato materialista das origens da nova religião. Desse ponto de vista o trabalho se insere na batalha clássica

* Diretor de pesquisa emérito no CNRS-Paris.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 163Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 163 22/10/2010 15:12:0322/10/2010 15:12:03

Page 164: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

164 • Crítica Marxista, n.31, p.163-166, 2010.

do materialismo histórico contra todas as formas de idealismo e, em particular, contra as ideologias religiosas.

3) um objetivo científico: mostrar a capacidade do método marxista de dar conta de um processo histórico complexo, interpretando um fenômeno religioso em termos da luta de classes.

O livro se divide em três grandes capítulos: I) a sociedade na época do Império romano: a economia escravagista, as formas absolutistas do Estado, as diversas manifestações da crise cultural e religiosa. II) o Judaísmo: os conflitos de classe da sociedade israelita e as várias correntes político-religiosas (saduceus, fariseus, zelotas, essênios). III) Os inícios do cristianismo: as comunidades cristãs primi-tivas, a ideia messiânica cristã, o comunismo cristão.

Curiosamente, a título de introdução a essas três partes, encontra-se um curto capítulo dedicado à “personalidade de Jesus”. Segundo Kautsky, os Evangelhos são comparáveis às epopeias de Homero ou aos romances de Balzac: embora seu valor como documento histórico seja reduzido, eles são uma excelente fonte para conhecer as relações sociais da época e, em particular, os ideais e aspirações das comunidades cristãs originárias. A seu ver, Jesus foi um rebelde, um subversivo oposto à dominação romana, que organizou uma comunidade composta quase ex-clusivamente de elementos proletários, animados por um profundo ódio às classes ricas e por um comunismo primitivo visando à partilha dos bens de consumo.

A prisão de Jesus no Monte das Oliveiras, no curso de um afrontamento vio-lento, fez fracassar a “tentativa de putsch” (Putschversuch) contra as autoridades romanas que ele havia planejado com seus discípulos. Jesus era um adversário tanto das classes dominantes judaicas quanto romanas, mas sua crucificação se deu por decisão do procurador romano, Pôncio Pilatos, que o acusou de tentar restabelecer o reino independente da Judeia – daí a célebre inscrição na cruz: “Je-sus de Nazaré, rei dos Judeus”. Redigidos em época posterior, quando os chefes cristãos se opunham violentamente ao judaísmo e buscavam conquistar as boas graças de Roma, os Evangelhos acabam desculpando as autoridades romanas e acusando os judeus da responsabilidade pela morte do profeta. Essa deformação evidente dos acontecimentos, responsável por inúmeras contradições do texto bíblico, inspirou durante séculos as perseguições antijudaicas da Igreja: “O que aparece como relato da paixão do Senhor Jesus Cristo é no fundo somente um testemunho da história da paixão do povo judeu”.

Resta explicar porque Jesus não teve o mesmo destino de tantos outros per-sonagens messiânicos que agitavam o povo judeu durante o período das revoltas, que vai desde os Macabeus até a destruição do templo por Tito: como explicar a persistência e o sucesso do movimento religioso que adota seu nome?

Kautsky avança duas explicações complementares: em primeiro lugar, Jesus foi o fundador, ou melhor, o porta-voz de uma organização. Esta organização sobreviveu a Jesus e seu papel na extensão do novo movimento religioso é bem mais importante do que a personalidade de seu fundador. Não foi a fé na ressur-

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 164Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 164 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 165: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

A origem do cristianismo • 165

reição do crucificado que criou as comunidades cristãs, mas, ao contrário, foi a força vital (Lebenskraft) das comunidades, enquanto organização comunista do proletariado, que perpetuou a memória de seu pioneiro e mártir, produzindo a fé na sobrevivência do Messias. Privilegiando a organização sobre os valores éti-cos, as esperanças messiânicas, as lutas, os sonhos e a fé – no sentido amplo da palavra – do movimento, Kautsky acaba tendo uma visão demasiado estreita do cristianismo primitivo.

A segunda hipótese é mais pertinente: segundo Kautsky, o que distinguia o messianismo de Jesus do de outros profetas judeus rebeldes da época – todos de tendência estritamente nacional – é seu caráter social, sua vocação de redentor internacional: “Somente o Messias social, não o nacional, podia transcender os limites do judaismo”, sobreviver à destruição do templo de Jerusalém e, sobre-tudo, encontrar receptividade entre os pobres de todas as nações. Associando a hostilidade das classes oprimidas contra os ricos e a solidariedade proletária, o messianismo das comunidades cristãs prometia a redenção dos pobres, e assim pôde ganhar muitos adeptos para além do mundo judaico.

Em última análise, Jesus, “o Messias crucificado que surgira do proletariado”, conseguiu vencer Roma e conquistar o mundo, mas no curso desse processo o movimento cristão sofre um “processo dialético”: perdendo seu caráter proletário e comunista, ele se transformou em religião de Estado, sob o controle de um vasto aparelho de dominação e exploração – a Igreja.

No último capítulo, intitulado “Cristianismo e Socialdemocracia”, Kautsky insiste, sobretudo, nas diferenças entre os dois movimentos. Será que não existe o perigo de que o movimento operário conheça no curso de sua história uma “inversão dialética” equivalente à do cristianismo? Não poderia a burocracia necessariamente produzida pelo movimento socialista – funcionários, jornalistas, deputados – se transformar, no curso da evolução, em uma nova aristocracia, similar ao clero com seus bispos e cardeais? Uma aristocracia que dominaria a massa dos trabalhadores e que negociaria com o poder do Estado sua incorpora-ção a ele? Em outras palavras: existe a possibilidade de que o movimento socia-lista tenha um destino semelhante à transformação do cristianismo em religião do Estado?

A pergunta é interessante, mas a resposta de Karl Kautsky é bastante ingênua. Enquanto a época de ascensão do cristianismo era um período de declínio espiritual, um período “de desenvolvimento de uma ignorância absurda, da mais estúpida superstição”, a época de ascensão do socialismo é um período de “importantes progressos das ciências naturais, de uma rápida aquisição do conhecimento pelas classes sob influência da socialdemocracia”. A origem do cristianismo coincide com a crise da democracia antiga e com a regressão das forças produtivas, enquanto o movimento operário moderno surge em uma época de “persistente avanço da democracia” e de “um verdadeiramente fabuloso aumento das forças produtivas”. Por conseguinte, não existe a menor possibilidade de que o movimento socialista

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 165Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 165 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 166: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

166 • Crítica Marxista, n.31, p.163-166, 2010.

conheça um processo de burocratização e transformação em religião do Estado análogo ao do cristianismo...

O argumento de Kautsky reflete um otimismo um pouco míope, inspirado na filosofia do progresso que caracteriza o marxismo evolucionista da Segunda Internacional, pouco preparado para enfrentar as catástrofes da modernidade no curso do século XX.

Apesar de suas evidentes limitações metodológicas e historiográficas, o livro de Kautsky tem a grande virtude de ser a primeira tentativa de interpretação, à luz do materialismo histórico e da luta de classes, da fascinante figura do “Messias proletário crucificado”. Seu sucesso popular decorre provavelmente do interesse dos militantes socialistas por uma visão das origens do cristianismo que permita ao movimento operário moderno se apropriar da figura de Jesus como profeta e mártir da causa proletária.

No apêndice, intitulado “Comunismo cristão e heresia”, Moniz Bandeira esboça uma brilhante síntese da história das heresias e dissidências igualitárias, comunistas e democráticas do cristianismo, desde o catarismo do século XII até os levellers e diggers da Revolução Inglesa do século XVII. Faltou só completar com a teologia da libertação...

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 166Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 166 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 167: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Memoria y utopía en Mexico. Imaginários en la génesis del neozapatismo • 167

Memoria y utopía en Mexico. Imaginários en la génesis del neozapatismoFERNANDO MATAMOROS PONCEBuenos Aires: Herramienta, 2009. 384p.

FABIO MASCARO QUERIDO *

Em A teoria do romance, Georg Lukács apresentou o romance como o gê-nero literário expressivo de uma época – a modernidade – marcada pela cisão e pelo dilaceramento dos laços entre o indivíduo e a comunidade. Para Lukács, no mundo moderno, “não há mais uma totalidade espontânea do ser”. Não há mais um sentido imanente da vida, uma coincidência entre essência e vida empírica. Exatamente por isso, alguns dos movimentos e das lutas sociais modernas por uma genuína comunidade humana do futuro reconheceram na memória das co-munidades do passado uma fonte de inspiração utópica inesgotável, cuja reme-moração simbólica auxilia as lutas do presente contra a civilização capitalista. A memória do passado emerge, então, não como uma nostalgia regressiva – que almeja um retorno impossível –, senão como combustível utópico das lutas pela emancipação humana futura.

Nos tempos contemporâneos, o neozapatismo de Chiapas, no México, é o movimento social que melhor manifesta essa postura. É o que nos demonstra Fernando Matamoros Ponce (professor de sociologia da Universidade Autôno-ma de Puebla, no México), em seu interessantíssimo livro Memória y utopia en México: imaginarios en la génesis del neozapatismo, dedicado à análise do papel

* Mestrando em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista, Unesp – campus de Araraquara. Fapesp.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 167Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 167 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 168: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

168 • Crítica Marxista, n.31, p.167-170, 2010.

da memória e da utopia no imaginário social do EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional). Escrito em linguagem ensaística, carregada de momentos de verdadeira explosão literária, que empolgam o leitor, o objetivo do livro de Matamoros – originalmente concebido como uma tese de doutorado em Paris – é “colocar em evidência os elementos de construção do imaginário coletivo e mos-trar como a tradição e o mito formam parte da continuidade de uma história da resistência na construção da nação, contra a conquista, a colonização e os impérios na mundialização capitalista” (p.90-1).

Não por acaso, a compreensão do neozapatismo é realizada a partir dos sis-temas e significações simbólicos das lutas e das relações sociais, ignorados pela sociologia racionalista. Fernando Matamoros nos apresenta, assim, o neozapatismo como o resultado de uma confluência – sob a perspectiva comum da defesa da autonomia e das tradições indígenas – de diferentes formas e imaginários da luta social: desde setores do marxismo revolucionário (guerrilheiros ou não), pas-sando pela tradição libertária, até o cristianismo de libertação, cujas afinidades eletivas residem na fé e na aposta – como diria Lucien Goldmann – em valores trans-individuais. Retomando seletivamente algumas temáticas dessas tradições, a originalidade do neozapatismo encontra-se na capacidade de mobilizá-las para os embates contra a atual fase do “progresso” e da modernização no México.

E aqui, pode-se perceber a perspicácia da análise de Matamoros, especialmente na articulação dialética entre as transformações contemporâneas do capitalismo e as modificações da luta social antissistêmica. Desde finais de década de 1980, o México – especialmente as regiões mais pobres, dentre elas Chiapas – sentiu os efeitos sociais devastadores das reformas neoliberais, intensificadas sob o go-verno de Carlos Salinas, entre 1988 e 1994, comprovando uma vez mais o caráter absolutamente perverso e desigual da tão reivindicada – inclusive por setores da esquerda – modernização. Conforme observa o autor, é nesse processo de resis-tência aos resultados produzidos pela nova etapa (neoliberal) da modernização capitalista que o neozapatismo floresceu, questionando, porém, não somente a expressão contemporânea do capitalismo, mas também toda a narrativa filosófica do progresso.

“Atualizando” as lutas e resistências do passado ao progresso capitalista no México – como as lutas pela Independência, no início do século XIX, e a revolução mexicana de 1910 –, o neozapatismo é um movimento herdeiro de cinco séculos de resistência indígena e popular contra a dominação colonial e imperialista, como afirma Michael Löwy, um dos responsáveis – junto com John Holloway – pelos prólogos do livro. Com a rememoração dessas lutas e comunidades indígenas do passado, os neozapatistas buscam “arrancar a tradição do conformismo que dela busca se apoderar”, como diria Walter Benjamin, resgatando a “tradição dos oprimidos” e os “mitos revolucionários” (sintetizados na máscara coletiva do sub comandante Marcos) do passado, e colocando-os a serviço da resistência social no presente. É por isso que, em face do discurso hegemônico, que reafir-

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 168Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 168 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 169: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Memoria y utopía en Mexico. Imaginários en la génesis del neozapatismo • 169

ma a destruição das comunidades indígenas como um subproduto necessário do progresso, os neozapatistas destacam a importância da palavra – das “guerrilhas de papel” –, como uma dimensão fundamental da resistência discursiva contra a “musificação” das tradições indígenas, como se vê no grande número de “comu-nicados” e publicações do movimento.

A ênfase na dimensão simbólica da luta de classes, ressaltando a importância das concepções religiosas na construção da realidade social, possibilitou também ao autor mexicano afirmar a necessidade de um enfoque dialético da religião e, no caso, dos setores que compõem a Igreja. Como já havia assinalado Marx em seu célebre texto de juventude sobre a filosofia do direito de Hegel, de 1843-44, a religião não é só um “ópio do povo”, mas também uma expressão e um “pro-testo contra a miséria real”, e nesse sentido específico, uma forma importante de “consciência antecipatória”, segundo defendeu Ernst Bloch. A própria história do México, com a existência de padres que questionaram a evangelização dos índios (Bartolomé de las Casas) e que lutaram pela independência mexicana (Miguel Hidalgo), e, mais tarde, com a presença da teologia da libertação, nos comprova as potencialidades críticas e até anticapitalistas de alguns setores religiosos, em especial católicos.

Eis aí, portanto, algumas boas razões para a importância do livro de Fernando Matamoros. Em um quadro histórico caracterizado pelo esgotamento histórico do progresso moderno, a retomada das lutas de resistência do passado à civilização capitalista assume novas dimensões. E um dos pontos mais fortes do livro é jus-tamente a acuidade em situar o neozapatismo como uma forma de subjetividade revolucionária em um contexto que exige do pensamento e do movimento anti- capitalistas novos métodos e concepções de luta social, assim como outra relação com as lutas de resistência do passado.

A perspectiva ética e política radicalmente humanista assumida pelo autor impulsionou uma análise teórica interdisciplinar, cujo eixo analítico não é o de-senvolvimento das forças ou estruturas de produção, mas sim os conflitos e os impactos sociais e humanos do processo de modernização capitalista no México que, como em todos os países da periferia do sistema, caracterizou-se pela destrui-ção violenta das comunidades tradicionais, tal como enfatizou Rosa Luxemburgo. Daí a possibilidade, realizada por Matamoros, de relacionar concretamente o neozapatismo ao legado das resistências indígenas a esse processo e, sobretudo, de extrair dessas lutas do passado a força contemporânea do movimento.

Resta ver as possibilidades reais do neozapatismo – em sua valorização da palavra, do diálogo com a sociedade civil e dos laços de solidariedade interna-cional – de impulsionar, ou tomar parte, na ruptura concreta, ou seja, na revo-lução social das formas e relações sociais capitalistas. Ou, ainda: a capacidade do movimento de Chiapas de ser um dos estimuladores, desde já, de um novo internacionalismo do século XXI, cujo horizonte último não é outro senão a luta pela superação, por meio da práxis revolucionária, da civilização capitalista em

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 169Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 169 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 170: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

170 • Crítica Marxista, n.31, p.167-170, 2010.

todas as suas dimensões – tarefa bem mais árdua, embora não conflitante, que a formulação de uma resistência discursiva, na contramão do léxico hegemônico. Matamoros nos dá algumas pistas iniciais. O resto, só a práxis histórico-concreta dos homens poderá dizer.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 170Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 170 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 171: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Os impasses da estratégia – os comunistas, o antifascismo e a revolução burguesa no Brasil... • 171

Os impasses da estratégia – os comunistas, o antifascismo e a revolução burguesa no Brasil. 1936-1948CARLOS ZACARIAS DE SENA JÚNIORSão Paulo: AnnaBlume; Salvador: UNEB, 2009, 398p.

MARLY DE A. G. VIANNA *

Se é indiscutível a importância do Partido Comunista do Brasil (PCB), não é tarefa fácil avaliar sua atuação e apontar seus erros sem desqualificar os que erraram e sem desmerecer seus muitos méritos. Embora abnegado e com a mais generosa das propostas – acabar com a exploração do homem pelo homem – o PCB cometeu erros aparentemente inexplicáveis. Sem satanizar personagens e sem conciliar com os erros cometidos, Carlos Zacarias abre espaço importante para a discussão e o aprofundamento destas e de outras questões.

Trata-se de um dos períodos mais importantes e desconhecidos da história do PCB. Estes 12 anos (de 1936 a 1948) foram os de maiores contradições políticas, dos grandes “impasses da estratégia”. Começam com a derrota das insurreições de novembro de 1935, seguida pela política de União Nacional, do apoio irrestrito ao governo em nome da luta antifascista e findam em nova onda anticomunista, com a Guerra Fria. O PCB oscilou entre a luta armada ao estilo tenentista, uma estratégia de conciliação com a chamada “burguesia nacional” e demais “forças honestas e antifascistas” e “homens de boa vontade”, e terminou nas posições sectárias, pouco depois de 1948, do Manifesto de Agosto de 1950.

* Doutora em História pela USP, professora aposentada da UFSCar e atualmente professora do Mes-trado em História do Brasil da Universo.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 171Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 171 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 172: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

172 • Crítica Marxista, n.31, p.171-173, 2010.

Outro grande mérito do trabalho é o manejo da documentação sobre o PCB no Estado da Bahia. Muitas vezes é por meio das posições do Comitê Regional da Bahia (CR/BA) (ou do Comitê Regional de São Paulo, CR/SP) que podemos entender a política nacional.

O livro está dividido em seis capítulos. O primeiro se inicia “Sob o signo da derrota” de 1935, das tentativas de sobrevivência física da direção do partido e da busca de reformulação da estratégia partidária, depois de uma fracassada experiência guerrilheira. Foi o período em que começou a ser elaborado, pela direção que vinha de 1935, o grupo de Bangu, uma nova estratégia política, que privilegiava a democracia burguesa e a política de alianças com uma “burguesia nacional progressista”. Lançou-se a palavra de ordem de União Nacional. É o pe-ríodo das discordâncias e da expulsão do grupo paulista com a vitória da “política bangusista”, graças ao apoio da Internacional Comunista e de Prestes.

No segundo capítulo, Zacarias analisa a tentativa de reconstrução partidária pelo CR/BA e acompanha a ascensão do nazifascismo e a política da Internacional Comunista de frentes populares, seguida pelo Pacto Germano-Soviético e, após a invasão da URSS pelos nazistas, em 1941, pela retomada das grandes frentes populares – e assinala a confusão política resultante. Nessa perspectiva, os co-munistas brasileiros começam a se reorganizar, com destaque para os baianos. É muito boa a narrativa histórica da gestação da política de União Nacional, baseada nas diretivas internacionais de frentes antinazistas, fazendo mais inteligíveis as posições partidárias entre 1938 a 1948.

O terceiro capítulo trata das posições do CR/BA e da revista Seiva, da or-ganização da CNOP – Comissão Nacional de Organização Provisória – e da preparação da Conferência da Mantiqueira, realizada em 1943. No bojo da luta pela entrada do Brasil na guerra ao lado dos aliados, reafirma-se o apoio a Var-gas e à União Nacional. O grande entusiasmo pela primeira derrota infringida pela URSS à Alemanha nazista levou a que se acreditasse, finda a guerra, que a oposição democracia-nazismo continuaria sendo fundamental e o enfrentamento capitalismo-socialismo continuaria, porém pelo caminho pacífico. 1943 foi tam-bém o ano em que Stalin desmantelou a Internacional Comunista, como garantia de boa vontade aos aliados. O browderismo – que no final da guerra questionava a necessidade de partidos comunistas – teve adeptos no Brasil e o próprio Prestes disse ter se impressionado pela posição.

Carlos Zacarias chama a atenção para um fato pouco conhecido: não foi só o Grupo de Ação de São Paulo que se opôs à CNOP, mas, inicialmente, também o Comitê Regional da Bahia. São Paulo, por estar contra as posições de apoio irres-trito a Vargas e ambos por medo de infiltração policial no partido. Só mais tarde o grupo baiano aderiu à CNOP.

No quarto capítulo o autor mostra o entusiasmo com o final da guerra, o prestígio da URSS e dos comunistas, a anistia, os estertores do Estado Novo, a crença em uma democracia duradoura. O PCB estava reorganizado, sacramentado pela Conferência da Mantiqueira, que elegeu Prestes secretário-geral. Dizia-se

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 172Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 172 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 173: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Os impasses da estratégia – os comunistas, o antifascismo e a revolução burguesa no Brasil... • 173

buscar “um grande partido para um grande líder”. A democracia vitoriosa na guerra deveria ser garantida internamente em torno da União Nacional e de uma constituinte. Os comunistas pediam “anistia sem ressentimentos” para os generais que depuseram Vargas, visando à pacificação da família brasileira. Prestes, ao sair da cadeia, disse estar disposto a esquecer tudo. Por sua vez, o anticomunismo se anunciava com a preparação da Guerra Fria.

Carlos Zacarias mostra como Prestes e os comunistas fizeram de tudo para serem aceitos na sociedade como defensores do que entendiam como democracia: pediam aos operários que agissem dentro da ordem, que não fizessem greves, para o fortalecimento econômico do país e para a paz social, necessária à União Nacional. Prestes passou a lamentar que se criticasse o Estado Novo. Era preciso consolidar tal democracia, e os comunistas estavam dispostos a fazer muitas concessões em nome da unidade entre as classes, queriam provar a todo custo que eram defensores da democracia tout court.

O capítulo cinco cobre o período da anistia, o período pós-guerra, da formação dos partidos políticos nacionais, da preparação para as eleições. Mostra, ao lado da política do PCB de concessões à burguesia nacional e aos “homens de boa vontade”, os primeiros sinais de que tal política estava afastando os comunistas dos operários. Mostra o grande crescimento do PCB, beneficiado pelo prestígio com que a URSS e os comunistas saíram da guerra. O êxito eleitoral dos comu-nistas nas eleições de dezembro de 1945 foi imenso. Em menos de um mês de campanha conseguiram quase 10% do total de votos. Com esse resultado e a crença de que as forças políticas do país estavam interessadas em uma União Nacional, os comunistas não perceberam a ofensiva que a direita organizava contra eles.

O sexto e último capítulo expõe a ofensiva anticomunista, o fechamento do partido e a cassação de seus parlamentares, enquanto o partido continuava a pre-gar a formação de “um governo de coalizão e confiança nacional”. A confiança na “democracia” era tão grande que, mesmo depois do fechamento da Juventude Comunista, em abril de 1947, Luis Carlos Prestes declarou que não havia força para fechar o PCB – o que ocorreria um mês depois.

Carlos Zacarias trata seu objeto com a seriedade de um cientista e de um historiador engajado. Não busca demônios, mas explicação histórica de situa-ções que pareceriam, de outro modo, patéticas. Não busca explicações fáceis. Não compartilha da tese de que as “mirabolantes avaliações do Brasil feitas por Miranda, em Moscou, em 1934, foram as responsáveis pelos erros de 1935”; nem avalia a política da frente nacional como “desvios de direita que os comunistas não foram capazes de compreender” (tal como fez o V Congresso, em 1960, que assim caracterizou os dez anos precedentes). Carlos Zacarias, com muito êxito, deixou de lado explicações dogmáticas e maniqueístas.

As questões levantadas em Os impasses da estratégia – e no brilhante pre-fácio de Valério Arcary – abrem caminho para uma discussão, que ainda precisa ser aprofundada, sobre a história da esquerda comunista no Brasil, de seus erros, acertos e, principalmente, de sua trajetória de lutas.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 173Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 173 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 174: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 174Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 174 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 175: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Crítica Marxista, n.31 • 175

CRÍTICA

marxistaRESUMOS/ABSTRACTSA História e a construção histórica na obra de José Saramago

JOÃO VICENTE AGUIAR E NÁDIA BASTOS

Resumo: Este artigo examina o significado e relevância da obra literária de José Sarama-go, escritor comunista recentemente falecido. Dividido em três seções, o artigo discute a recepção de sua obra pela crítica reacionária de Portugal, postula que a ficção de Saramago se qualifica como uma “grande obra literária” da contemporaneidade e, por fim, demonstra como ela se articula com o processo histórico e social de seu tempo.Palavras-chave: José Saramago, ficção literária, crítica e história.Abstract: This article analyses the meaning and relevance of José Saramago’s work, communist writer late deceased. Divided in three sections, the article discuss the recep-tion of his work by the reactionary critics in Portugal, defend that Saramago’s fiction is a contemporary great work and reveal your articulation with the historical and social process of his time.Keywords: José Saramago, fiction, critics, historical process.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 175Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 175 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 176: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

176 • Crítica Marxista, n.31

O estatuto teórico da noção de dependência

JOÃO QUARTIM DE MORAES

Resumo: Na polêmica que FHC e F. Weffort travaram em 1970 a respeito da noção de “situação de dependência”, este criticou-a de modo superficial e abstrato, enquanto aquele esforçou-se por analisá-la concretamente, sem contudo chegar a vinculá-la ao desenvol-vimento do capitalismo e do imperialismo, nem distingui-la da situação colonial stricto sensu. Concebendo-se a dependência como unidade da independência jurídica e da depen-dência econômica, a dinâmica de seu desenvolvimento será determinada pela penetração do capital na esfera produtiva, seguida pela internacionalização do aparelho produtivo.Palavras-chave: dependência, imperialismo, periodização, industrialização, classe, nação.Abstract: In 1970, a controversy opposed Fernando Henrique Cardoso and Francisco Wef-fort concerning the “dependency situation”; whereas the latter’s argument was abstract and perfunctory, the former cared to elaborate a concrete analysis, despite the fact that he did not separate the “dependency situation” from the colonial situation stricto sensu or entail it to the development of capitalism and imperialism. When dependency is conceived as the amalgam of juridical independency and economic dependency, the dynamic of its development will be determined by the penetration of capital in the productive sphere followed by the internalization of the productive apparatus.Keywords: dependency, imperialism, periodization, industrialization, class, nation.

Uma crise de transição: deslocamentos de força na economia mundial

DIETER BORIS E STEFAN SCHMALZ

Resumo: Após analisar a dimensão espacial da crise econômica mundial, os deslocamentos de poder de longo prazo na economia mundial e a formação de desigualdades globais, o artigo investiga as estratégias regionais de enfrentamento da crise. Nessa direção, busca conhecer os estímulos de uma emancipação econômica e política de diferentes áreas mundiais em relação ao Ocidente – sobretudo no leste da Ásia, na Índia e na América do sul. Tese central: a fase de transição poderia ser acompanhada por uma nova cartografia global do poder.Palavras-chave: crise econômica, crise de hegemonia norte-americana, desenvolvimento econômico, áreas periféricas.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 176Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 176 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 177: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Crítica Marxista, n.31 • 177

Abstract: After examining the spatial dimension of the global economic crisis, the long term power shifts in the global economy and the formation of global inequalities, this article investigates regional strategies for coping with this crisis. In this direction, this article seeks to understand the stimuli for an economic and political emancipation by dif-ferent areas of the world in relation to the West – above all in East Asia, India and in South America. The central thesis of the text is that this transition phase could be accompanied by a new map of global power.Keywords: economic crisis, North American hegemony crisis, economic development, peripheral areas.

Forças produtivas e relações de produção

GERALD A. COHEN

Resumo: Este artigo apresenta a interpretação do materialismo histórico oferecida em Karl Marx’s Theory of History (KMTH). Por meio da definição – e relação – dos conceitos de forças produtivas e relações de produção, defende-se a tese de que as explicações funcionais são centrais no materialismo histórico. Discute-se também a ideia de que toda história é a história da luta de classes. Na sequência, é apresentado um interlúdio pessoal que justifica a redação de KMTH, bem como as consequências decorrentes da sua publicação. Por fim, o artigo confronta as ambiguidades decorrentes da ideia de que as relações de produção entravam as forças produtivas, propondo, assim, uma versão revisada das formulações centrais do materialismo histórico.Palavras-chave: materialismo histórico, forças produtivas, relações de produção.Abstract: This article presents the interpretation of historical materialism offered in Karl Marx’s Theory of History (KMTH). Through the definition, and relation, of the concepts of productive forces and relations of production, this article defends the thesis that func-tional explanations are central to historical materialism. We also discuss the idea that all history is the history of class struggle. Furthermore, a personal interlude is presented that justifies the writing of KMTH, as well as the consequences of its publication. Finally, the article confronts the ambiguities arising from the idea that the relations of production hinder productive forces, proposing, therefore, a revised version of the central formula-tions of historical materialism.Keywords: historical materialism, productive forces, relations of production.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 177Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 177 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 178: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

178 • Crítica Marxista, n.31

Forças produtivas e forças de transformação: uma resenha de Karl Marx’s Theory of History: a Defense, de Gerald A. Cohen

RICHARD W. MILLER

Resumo: O presente artigo constitui uma resenha crítica da obra Karl Marx’s Theory of History (KMTH), de Gerald A. Cohen. A partir da apresentação e da problematização da noção de determinismo tecnológico presente em KMTH e alhures, são discutidas as principais teses formuladas por Cohen, principalmente aquela da primazia explicativa das forças produtivas. Em seguida, procura-se demonstrar as diferenças existentes entre a interpretação de Cohen do materialismo histórico e os escritos de Marx. Por fim, é apresentada uma interpretação do materialismo histórico alternativa àquela proposta por Cohen. Defende-se que essa interpretação alternativa é materialista – e não tecnológico--determinista –, na medida em que concede primazia aos processos pelos quais os bens materiais são produzidos.Palavras-chave: determinismo tecnológico, materialismo histórico.Abstract: The present article is a critical review of the work Karl Marx’s Theory of His-tory (KMTH), by Gerald A. Cohen. From the presentation and the problematization of the notion of technological determinism present in KMTH and elsewhere, the principal theses formulated by Cohen are discussed, principally the idea that prioritizes the explanation of productive forces. The article then attempts to demonstrate the differences between the interpretation of Cohen’s historical materialism and Marx’s writings. Finally, we present an alternative interpretation of historical materialism to that proposed by Cohen. The author defends that this alternative interpretation is materialist, and not technological--deterministic, in that it prioritizes the processes through which material goods are produced.Keywords: technological determinism, historical materialism.

Louis Althusser e G. A. Cohen: uma confrontação

GRAHAME LOCK

Resumo: Este artigo compara o trabalho de dois dos mais importantes filósofos marxistas das últimas décadas: o anglo-saxão G. A. Cohen e o francês Louis Althusser. Para tanto,

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 178Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 178 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 179: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Crítica Marxista, n.31 • 179

desenvolve uma crítica a algumas das teses de Cohen, do ponto de vista das ideias pre-sentes na obra de Althusser. Mas, também, problematiza certas pressuposições comuns ao trabalho de ambos – em especial, a noção de que o desenvolvimento (transição ou revolução) histórico deveria ser explicado em termos de alguma teoria geral de não corres-pondência entre forças produtivas e relações de produção. A única diferença entre ambos seria o fato de que, no interior desse esquema, Althusser confere primazia explicativa ao segundo termo e Cohen, ao primeiro. As teorias de Cohen e Althusser sobre a inovação e o desenvolvimento tecnológicos também são comparadas em relação ao lugar contrastante que eles atribuem à racionalidade humana, por um lado, e à luta de classe, por outro.Palavras-chave: desenvolvimento histórico, forças produtivas, relações de produção.Abstract: This article compares the work of two of the more important Marxists phi-losophers of the last decades: G. A. Cohen and Louis Althusser. To do so it develops a critique of some of Cohen’s thesis based on Althusser’s ideas. It also renders problema-tic certain presuppositions present in both authors, especially the notion that historical development (transition or revolution) must be explained in terms of a general theory of the non-correspondence between productive forces and production relations. The unique difference between them would be the fact that Althusser assigns explicative primacy to the latter, while Cohen attributes it to the former. The theories of Cohen and Althusser concerning innovation and technological development are also compared in reference to the different role each one ascribes to human rationality and class struggle.Keywords: historical development, productive forces, production relations.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 179Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 179 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 180: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 180Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 180 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 181: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Crítica Marxista, n.31 • 181

NORMAS PARA COLABORAÇÃO

Apresentamos abaixo as normas técnicas de citação e referência.

I – Textos para publicação 1. Crítica Marxista aceita textos e propostas de material, inéditos no Brasil, para todas

as seções da revista – artigos, comentários, resenhas, entrevistas, documentos etc. 2. Crítica Marxista tem interesse em uma ampla gama de temas teóricos, históricos

e contemporâneos. Privilegia dois tipos de textos: a) textos teóricos que apresentam teses originais e contribuem para o desenvolvimento da teoria marxista, e b) textos de análise concreta que, partindo do campo amplo e diversificado da teoria marxista, tomem por objeto de análise e de crítica as características e as transformações da economia, da política e da cultura no capitalismo contemporâneo e a situação atual da luta pelo socialismo.

3. Crítica Marxista valoriza os textos polêmicos, que apresentam suas ideias contrapon-do-as às ideias divergentes ou contraditórias.

4. Todos os textos e matérias propostos serão encaminhados para pareceres dos editores, conselheiros ou colaboradores da revista, cujos nomes serão mantidos em sigilo. A de-cisão final sobre a publicação do material recebido será tomada pelo Comitê Editorial, com base no programa editorial da revista, e comunicada ao interessado.

5. Os textos devem ser enviados dentro dos novos padrões de citação e referência. 6. Os textos devem ser enviados para o seguinte endereço:

Caio Navarro de Toledo Departamento de Ciência Política Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Caixa Postal 6110 Campinas, São Paulo13081-970

II – Artigos, comentários e resenhas 1. O artigo é um texto autônomo que possui objeto de análise e de crítica claramente

definido, apresenta tese original e leva em consideração o estado do conhecimento e

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 181Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 181 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 182: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

182 • Crítica Marxista, n.31

as ideias existentes sobre o tema na bibliografia pertinente e no movimento operário e socialista.

A seção Comentário comporta dois tipos de trabalho: 1) textos que discutem parte de um livro, ou de um conjunto integrado de livros e, eventualmente, de um acontecimento político-cultural, para desenvolver avaliações livres sobre um ou outro aspecto desse material; 2) textos que discutem autores e correntes teóricas exteriores ao marxismo que teriam a seguinte estrutura: a) exposição introdutória e geral dos principais elementos da teoria em debate; b) elaboração de críticas e questões que, de uma perspectiva mar-xista, podem ser feitas a essa teoria; e c) reflexão sobre os possíveis pontos positivos de contato entre tais teorias e o marxismo (em alguma de suas versões).

A resenha apresenta de modo descritivo o conteúdo de um livro ou de um conjunto integrado de livros e desenvolve considerações sobre tal conteúdo.

2. O título de artigo ou comentário deve anunciar claramente o conteúdo abordado. 3. Os artigos e comentários devem conter intertítulos que facilitem ao leitor a per-

cepção das ideias e temas tratados ao longo do texto. 4. Os artigos e comentários devem usar as notas de rodapé apenas para esclarecimentos

e explicações. Notas de rodapé contendo longas explicações, esclarecimentos ou res-salvas sobre as ideias contidas no corpo do texto truncam a exposição e prejudicam a fluência da leitura. Pede-se que os autores sejam comedidos no uso desse recurso.

5. As resenhas bibliográficas não devem conter título, intertítulos nem notas de rodapé. Se precisar subdividir o texto de uma resenha, o autor poderá recorrer à nu-meração em algarismos romanos. O cabeçalho da resenha deve trazer as informações técnicas sobre o livro resenhado – autor ou autores, título e subtítulo, local da edição, editora e número de páginas.

6. O autor de um artigo, comentário ou resenha deve informar, em nota de rodapé in-serida após o seu nome, o principal vínculo profissional. Se quiser, poderá informar também seu endereço eletrônico.

7. O tamanho dos textos propostos pode variar. A revista estabelece, contudo, um limite máximo de caracteres para cada tipo de texto.

Os artigos poderão ter, no máximo, 60 mil caracteres (contando espaços, notas, resumo e abstract etc.);

Os comentários poderão ter, no máximo, 20 mil caracteres (contando espaços, notas); As resenhas poderão ter, no máximo, 8 mil caracteres (contando espaços). 8. Os textos (artigos e comentários) devem apresentar TÍTULO, RESUMO – de apro-

ximadamente 150 palavras – e 4 PALAVRAS-CHAVE, todos em português e inglês. Solicita-se também que seja enviada uma página de rosto contendo as seguintes in-formações: autoria, filiação institucional, qualificação acadêmica, endereço, telefone/fax e endereço eletrônico.

9. Os textos devem ser enviados em meio digital (CD ou DVD) e acompanhados de uma cópia impressa idêntica ao original.

10. Os textos propostos para publicação devem seguir rigorosamente as normas técnicas estabelecidas no próximo item deste documento.

11. A fonte utilizada é a Times New Roman, tamanho 12.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 182Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 182 22/10/2010 15:12:0522/10/2010 15:12:05

Page 183: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Crítica Marxista, n.31 • 183

III – Normas técnicas 1. Transcrição de trechos de obras Trechos de até três linhas devem ser colocados entre aspas na sequência da frase. Trechos de mais de três linhas devem vir sem aspas, destacados com um recuo e com

corpo 11. 1. Exemplos:1. Numa bela passagem, Marx deixa isso claro, com uma metáfora poderosa: “o capital

é trabalho morto que só se vivifiva vampirescamente, sugando trabalho vivo”.1

1. Numa bela passagem, Marx deixa isso claro, com uma metáfora poderosa:

O capital tem um impulso vital peculiar, o impulso a se valorizar, a criar mais--valia, a sugar a maior massa possível de mais-trabalho com sua parte constante, os meios de produção. O capital é trabalho morto que só se vivifiva vampirescamente, sugando trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais deste sugar.2

2. Citação pelo sistema AUTOR-DATA Crítica Marxista passou a adotar, a partir do número 30, um novo sistema de chamada

de citação e de referência. O sistema adotado é o AUTOR-DATA, por sua simplicidade e economia de espaço. Além disso, este sistema tem sido o mais usual na área editorial.

O sistema autor-data consiste da indicação, no corpo do texto, do sobrenome do autor, seguido da data da publicação do texto citado e/ou do número da página (se for citação literal). As referências passam a ser relacionadas, em ordem alfabética, no final do artigo. As notas de rodapé, indicadas por algarismos arábicos em ordem alfabética, têm caráter explicativo.

1. A localização da citação no corpo do texto pode variar. 2.1 Quando o sobrenome do autor está inserido no texto, a data – entre parênteses,

seguida ou não do número de página – é inserida logo após o sobrenome. 2.1 Exemplo: 2.1 “Em sua enfática locução (Discurso sobre o livre comércio) proferida diante da

Associação Democrática de Bruxelas (entidade que aglutinava os liberais de esquerda e os democratas europeus), Marx (1966) celebrou a revogação das Leis dos Cereais (Corn Laws)”.

2.2 Quando não estiver inserido no texto, o sobrenome do autor, grafado em caixa alta, e a data (e/ou do número da página) são colocados entre parênteses no final da frase.

2.1 Exemplo: 2.1 Ao enfocarmos esta concepção, perceberemos que a mesma época histórica, ca-

racterizada pela emergência das modernas relações contratuais, pela afirmação da burguesia e pelo advento do Estado nacional, foi também responsável pelo nasci-mento do proletariado, primeira classe da história “empiricamente universal, que procede da história universal”, composta de “indivíduos diretamente vinculados à história universal” (MARX e ENGELS, 1976, p.24).

2.3 Diferentes títulos do mesmo autor publicados no mesmo ano serão identificados por uma letra após a data.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 183Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 183 22/10/2010 15:12:0522/10/2010 15:12:05

Page 184: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

184 • Crítica Marxista, n.31

2.4 No caso de citações recuadas, o ponto final é colocado no final do texto citado, antes da indicação da referência.

2.1 Exemplo: 2.1 O anexo A marca foi redigido com a intenção de difundir no partido socialista

alemão alguns conhecimentos básicos sobre a história do desenvolvimento da propriedade da terra na Alemanha. Isto nos pareceu particularmente necessário numa época em que extensas camadas de operários urbanos já estavam incorpo-radas ao Partido e em que era preciso ganhar para a causa os operários agrícolas e os camponeses. (ENGELS, 1954, p.9)

2.5 Para citações inseridas na sentença, o ponto deve ser colocado após a indicação da referência.

2.1 Exemplo: 2.1 “O escritor Ernst Toller (ala esquerda do USPD), membro da República conselhista

da Baviera, disse com razão que com essa decisão ‘A República pronunciara sua própria sentença de morte’ ” (TOLLER, 1990, p.83).

3. Referências bibliográficas As referências bibliográficas devem ser completas e apresentadas no final do texto.

3.1 Referência de livros: Indicar primeiro o SOBRENOME DO AUTOR, em caixa alta, depois o nome,

tudo por extenso, o título completo do livro em itálico e com maiúscula apenas na primeira letra do título. Para o título de livros estrangeiros, usam-se as maiúsculas de acordo com o original. Número da edição (caso não seja a primeira). Local da publicação, nome da editora, ano da publicação. Se a edição não trouxer o ano da publicação, usar a sigla SD. No caso de indicação de número de página, tal deve vir depois do ano de publicação, usando apenas a letra p. como abreviação de página ou de páginas.

Exemplo: SAES, Décio. República do capital – capitalismo e processo político no Brasil.

São Paulo: Boitempo, 1999, 135p.

3.2 Referência de artigos: 3.2.1 Em coletânea: Indicar primeiro o SOBRENOME DO AUTOR, em caixa

alta, depois o nome, tudo por extenso, o título completo do artigo entre as-pas e com maiúscula apenas na primeira letra. In: Nome e sobrenome do(s) organizador(es) da coletânea, título completo da coletânea em itálico e com maiúscula apenas na primeira letra. Número da edição (caso não seja a pri-meira). Local da publicação, nome da editora, ano da publicação.

Exemplo: GORENDER, Jacob. “Gênese e desenvolvimento do capitalismo no campo

brasileiro”. In: João Pedro Stédile (org.), A questão agrária hoje. 2.ed. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1994.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 184Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 184 22/10/2010 15:12:0522/10/2010 15:12:05

Page 185: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Crítica Marxista, n.31 • 185

3.2.2 Em periódicos: Indicar primeiro o SOBRENOME DO AUTOR, em caixa alta, depois o nome, tudo por extenso, o título completo do artigo entre aspas e com maiúscula apenas na primeira letra. Nome do periódico em itálico, local da publicação, editora, número do periódico, ano da publicação.

Exemplo: JAMESON, Fredric. “Reificação e utopia na cultura de massa”. Crítica

Marxista, São Paulo, Brasiliense, n.1, 1994, p.1-25.

4. Notas de rodapé As chamadas de notas no corpo do texto devem ser numeradas, inseridas dentro da

frase antes da pontuação e em sobrescrito. As notas de rodapé têm, como já afirmamos, caráter explicativo. Não obstante, nas notas também poderão aparecer citações, as quais deverão seguir o sistema AUTOR-DATA.

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 185Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 185 22/10/2010 15:12:0522/10/2010 15:12:05

Page 186: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

186 • Crítica Marxista, n.31

Assine a Revista Outubro!A revista Outubro é publicada ininterruptamente desde 1998, ocupando

um lugar de destaque no pensamento marxista brasileiro. Suas principais ca-racterísticas são a ênfase na reflexão crítica e inovadora acerca de problemá-ticas atuais, o pluralismo no campo da pesquisa e uma abertura às diferentes vertentes do marxismo.

Esse caráter permitiu que importantes intelectuais críticos, brasileiros e estrangeiros, contribuíssem com a revista, tais como Álvaro Bianchi, Bob Jes-sop, Daniel Bensaïd, Edmundo Fernandes Dias, Edward Said, François Ches-nais, Guglielmo Carchedi, Hector Benoit, István Mészáros, John Holloway, Marcelo Badaró Mattos, Michael Burawoy, Michael Löwy, Ricardo Antunes, Riccardo Bellofiore, Robert Brenner, Roberto Leher, Ruy Braga e Virgínia Fontes, dentre outros.

Os artigos publicados na revista Outubro são indexados em Citas Latinoamericanas en Ciencias

Sociales y Humanidades (Clase), Sociological Abstracts, CSA Worldwide Political Science

Abstracts e Ulrich’s Periodicals Directory.

Para assinar a revista, preencha o formulário abaixo:Nome: CPF/CNPJ:Endereço: Cidade: UF: País:CEP: Email:Assinatura:□ 4 números: R$ 120,00□ 6 números: R$ 180,00

Forma de pagamento: cheque nominal e cru-zado à Alameda Casa Editorial ou depósito em conta corrente – Banco do Brasil (001), ag. 1199-1, conta corrente 200.305-8

Escolha o número inicial de sua assinatura:□ no 15: 1o semestre de 2007 □ no 17: 2o semestre de 2008□ no 16: 2o semestre de 2007 □ no 18: 2o semestre de 2009 (no prelo)Enviar o formulário com o cheque ou o comprovante de depósito para:

Alameda Casa EditorialR. Iperoig, 351, Perdizes – CEP: 05016-000 – São Paulo – SP | Brasil (Para assinaturas internacionais favor entrar em contato através do e-mail [email protected]).

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 186Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 186 22/10/2010 15:12:0522/10/2010 15:12:05

Page 187: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Crítica Marxista, n.31 • 187

NEW LEFT REVIEW, N. 64 JUL/AUG 2010

http://www.newleftreview.org/

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 187Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 187 22/10/2010 15:12:0522/10/2010 15:12:05

Page 188: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 180Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 180 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 189: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 180Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 180 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 190: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 180Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 180 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 191: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 180Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 180 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04

Page 192: Rev Critica Marxista 31 MIOLO

Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 180Rev_Critica_Marxista-31_(FINAL).indd 180 22/10/2010 15:12:0422/10/2010 15:12:04