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ANO IX / NúMERO 31 DEZEMBRO 2011 10 8 Casa de Cultura de Israel Fronteiras, estranheza e ausência por Antonio Dias, Madalena Schwartz, Ricardo Piglia e Milton Hatoum Daniel Roche e como as viagens mudaram o Ocidente Yael Bartana e o retorno dos judeus à Polônia Mario Bellatin, João Gilberto Noll, André Sant’Anna e Paulo Scott em português, ídiche, ladino e portunhol selvagem OUTROS EXíLIOS

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Ano IX / número 31 dezembro 2011

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Casa de Cultura de Israel

Fronteiras, estranheza e ausência por Antonio Dias, Madalena Schwartz, Ricardo Piglia e Milton Hatoum

Daniel Roche e como as viagens mudaram o ocidente

Yael Bartana e o retorno dos judeus à Polônia

Mario Bellatin, João Gilberto Noll, André Sant’Anna e Paulo Scott em português, ídiche, ladino e portunhol selvagem

OutROS exíliOS

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Antonio Dias, Anywhere is my Land, 1968Acrílico sobre tela130 x 195 cm – Coleção do artistaFoto Roberto Cecato

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Há muitas definições para o exílio, e todas as abordagens possíveis – histórica, geográfica, cultural, psicológica – têm algo de fragmentado e incompleto. Afinal, trata-se de um conceito ou sensação que tem passado e futuro históricos, coletivos, mas é antes de mais nada individual: um “estado de ser descontínuo”, nas palavras de Edward Said, pensador citado nas memórias parisienses do romancista Milton Hatoum (pág. 42), que será necessariamente diverso caso a caso.

A ideia desta edição era dar conta de tal variedade em duas dimensões: a primeira, analítica e ensaística, de quem enxerga o fenômeno “de fora”. Caso do historiador francês Daniel Roche, cujo objeto de estudo são as consequências do aumento das viagens no Ocidente a partir da Idade Média. Ou do escritor argentino Ricardo Piglia, que trata dos erros, acertos e acasos que fazem da tradução um capítulo essencial da história da literatura. Ou mesmo de Breno Lerner, gastrônomo e pesquisador que reconstitui as origens do cholent como uma saga de errância e desterro.

A segunda dimensão, que falaria do tema “por dentro”, é estabelecida por quem viveu ou enxerga a experiência em facetas menos reconhecíveis. Artistas como a israelense Yael Bartana, que propõe ironicamente (ou não) a volta dos judeus para a Polônia, ou o brasileiro Antonio Dias, que trabalha com os limites de termos como fronteira e identidade. Já os fotografados por Madalena Schwartz são figuras como que exiladas em seu próprio corpo e país, em função de convenções sociais e de gênero. E os ficcionistas João Gilberto Noll, Paulo Scott, André Sant’Anna e Mario Bellatin, tanto em português quanto em línguas esquecidas, relembradas ou recém-inventadas, falam do sentimento que poderia resumir a trajetória dos personagens aqui retratados: a falta/ausência.

Ao fim, sem nenhuma intenção de esgotar o assunto – o que seria pretensioso, além de impossível –, tem-se um recorte editorial múltiplo e, ao mesmo tempo, esperamos, bastante particular. O que sempre é, ou deveria ser, a meta de uma publicação cultural.

Michel laub

MúltiPlO e PARticulAR

“Quelque part, je suis étranger par rapport à quelque chose de moi-même ; quelque part, je suis ‘différent’, mais non pas différent

des autres, différents des ‘miens’.”

Georges Perec, Ellis Island, 1980

Poucos temas são tão formadores de uma cultura como o exílio é para a cultura judaica. A própria palavra “diáspora”, que caracteriza a vida dos judeus fora de Israel, é traduzida em hebraico por “exílio” (galut), e o princípio da constituição do povo judeu foi uma forma de exílio: o êxodo do Egito e seus quarenta anos de peregrinação no deserto.

A Revista 18 já tratou de várias maneiras essas questões, mas nunca as considerou eixo central de um número. Esta edição tem como objetivo abrir diversas frentes deste tema paralelamente ao 9o Ciclo Multicultural Bamidbar, No Deserto e à exposição Exílio e Modernidade: O Espaço e o Estrangeiro na Cidade de São Paulo, com curadoria de Anat Falbel.

Para tanto, convidamos Michel Laub, premiado escritor e jornalista gaúcho que se dedicou recentemente ao judaísmo em seu romance Diário de Queda. Foi lhe dada carta branca a partir de duas referências: um ensaio do autor judeu francês Geroges Perec, Ellis Island, e uma obra do artista brasileiro Antonio Dias, Anywhere Is My Land.

Ele desenvolveu seus próprios caminhos, que o leitor está convidado a percorrer agora. Espero que tenha o mesmo prazer que tivemos nesse processo: uma revista de cultura judaica que homenageia outros exílios.

Benjamin Seroussi

OutROS exíliOS

Rua Oscar Freire, 2500 . São Paulo . SPCEP 05409-012 . TEl.: (11) 3065 4333 [email protected]

Horário de funcionamento3ª a Sáb., das 12h às 19h / Dom., das 11h às 19h

Casa de Cultura de Israel

Expedienteconselho editorial Ernesto Strauss; Flavio Mendes Bitelman; Raul Meyer; Yael Steiner

Publisher Flavio Mendes Bitelman

Superintendente executiva Yael Steiner

editor Benjamin Seroussi

editor convidado Michel Laub

coordenação editorial Martine Birnbaum

Projeto Gráfico Estúdio Campo

Atualização do Projeto Gráfico e Diagramação Joana Amador

Revisão Daniel Pellizzari

impressão Ipsis Gráfica e Editora

Impresso nos papéis Off set, 90g/m2 e 180g/m2.

tiragem 6.000 exemplares

As matérias assinadas não necessariamente refletem a opinião da Revista 18 ou do Centro da Cultura Judaica.

colaboraram nesta ediçãoAlexandre Rodrigues, André Sant’Anna, Antonio Dias, Breno Lerner, Bruno Algarve, Bruno Puccinelli, Clara Kochen, Cecilia Ben David, Detanico Lain, Eli Petel, Felipe Paros, Fernando Eichenberg, Frania L. Hochman, Helio Ponciano, João Gilberto Noll, Jorge Schwartz, Leandro Sarmatz, Liana Chiapinotto, Lucas Oliveira, Madalena Schwartz, Mario Bellatin, Milton Hatoum, Paulo Scott, Raphael Zagury-Orly, Ricardo Piglia, Ronaldo Bressane, Sonia Lea Bachar, Yael Bartana, Yildiz Alcalay.

Agradecimentos Amilcar Packer, Ana Paula Cohen, Companhia das Letras, Cosac Naify, Daniel Roesler, Emilio Fraia, Galeria Nara Roesler, Galeria Vermelho, Instituto Moreira Salles, Joana Reiss Fernandes, Jorge Schwartz, Marina Bedran, Samuel Titan, Thyago Nogueira.

capa Foto de Madalena Schwartz, acervo do Instituto Moreira Salles.

Assinatura e cartas [email protected]

Editorial

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1. AlexANDRe RODRiGueS/ 2. ANDRé SANt’ANNA / 3. ANGelA DetANicO e RAfAel lAiN/ 4. ANtONiO

DiAS/ 5. BReNO leRNeR/ 6. BRuNO PucciNelli/ 7. clARA KOcHeN/ 8. feliPe PAROS/

9. feRNANDO eicHeNBeRG/ 10. DANiel PellizzARi/ 11. JOãO GilBeRtO NOll/ 12. JORGe ScHwARtz/

13. leANDRO SARMAtz/ 14. lucAS OliveiRA/ 15. MADAleNA ScHwARtz/ 16. MARiO BellAtiN/

17. MiltON HAtOuM/ 18. PAulO ScOtt/ 19. RAPHAel zAGuRY-ORlY/ 20. RicARDO PiGliA/

21. RONAlDO BReSSANe/ 22. YilDiz AlcAlAY

Colaboradores

1. Escritor, jornalista e músico carioca radicado em Porto Alegre, é autor do livro de contos Veja se você responde essa pergunta (2009).

2. Nascido em Belo Horizonte, 1964, ex-integrante do grupo carioca Tao e Qual e hoje vivendo em São Paulo, é autor do romance O paraíso é bem bacana (2006), entre outros.

3. Dupla de artistas formada por Angela Detanico e Rafael Lain, ambos nascidos em Caxias do Sul. Suas obras participaram de mostras como a 26ª Bienal de São Paulo e individuais na França, no Japão e na Coreia do Sul.

4. Paraibano radicado no Rio no fim da década de 1950, viveu durante a ditadura militar um exílio voluntário na Europa. Com diversas exposições e prêmios internacionais, a partir dos anos 1960 incorpora palavras e frases aos seus trabalhos.

5. Superintendente da Editora Melhoramentos, gourmand, pesquisador e editor.

6. Bacharel em Ciências Sociais pela USP e mestrando em Ciências Sociais pela Unifesp. Pesquisa as relações entre o espaço urbano, gênero e sexualidade. Membro da comissão editorial da revista Pensata.

7. Formada em Direito pela USP e filha de pais sefardi, coordena um grupo que tem como meta resgatar o ladino do esquecimento.

8. Licenciado em Artes Visuais e Mestre em Artes pela Unesp, especialista em Linguagens da Arte pela USP. Coordena o Setor de Mediação Cultural da Ação Educativa do Centro da Cultura Judaica.

Escuela Dinamica de Escritores. Cães herois, publicado nesta edição, é um trecho do romance homônimo que sai no Brasil em 2012 pela Cosac Naify (tradução de Joca Wolff).

17. Nasceu em Manaus, em 1952. Entre seus livros, que foram publicados em dez línguas e receberam prêmios como o Jabuti e o Portugal Telecom, está Dois irmãos (2000).

18. Porto-alegrense, ex-advogado e professor de Direito, vive no Rio. É ficcionista e poeta, e seu novo romance, Habitante irreal, acaba de sair pela Ed. Alfaguara.

19. Doutor em filosofia, é diretor do Programa de Mestrado em Belas Artes (MFA) da Escola Bezalel e professor-pesquisador na Universidade de Tel Aviv. Além de ter participado de publicações sobre Derrida e Heidegger, é membro do Comité de Redaction da revista Les Temps Modernes.

20. Autor de livros internacionalmente aclamados como Respiração artificial, é argentino de Adrogué, nascido em 1940, e dá aulas nas universidades de Buenos Aires e Princeton. Notas sobre a máquina voadora é a transcrição de uma palestra recente em São Paulo, promovida pela Companhia das Letras, sua editora no Brasil.

21. Jornalista e escritor nascido em São Paulo, 1970, é autor de O céu de Lúcifer (2003), entre outros.

22. Nascida em Istambul e formada em Arquitetura e Decoração, também cursou Arqueologia na Turquia. Seu primeiro idioma foi o ladino.

9. Correspondente do jornal O Globo em Washington e autor do livro de entrevistas Entre aspas (2006). Uma versão reduzida de sua conversa com Daniel Roche foi publicada na Folha de S.Paulo.

10. Tradutor e criador da editora Livros do Mal, é autor de Digam a Satã que o recado foi entendido, romance que a Companhia das Letras lança em 2012.

11. Um dos mais premiados escritores brasileiros. Os três minicontos publicados nesta edição fazem parte do livro Mínimos, múltiplos, comuns (Ed. Francis).

12. Diretor do Museu Lasar Segall, professor de Literatura Hispano-Americana na USP, deu aulas em universidades como Yale e escreveu livros como Vanguardas latino-americanas (1995).

13. Jornalista, editor, ficcionista e poeta, lançou em 2010 o livro de contos Uma fome.

14. Bacharel em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Unesp, cursou História da Arte na Universidade Nacional de Cuyo (Argentina). Atualmente integra o departamento de programação do Centro da Cultura Judaica.

15. Fotógrafa húngara (1921-1993) que imigrou para a Argentina em 1936, e de lá para o Brasil na década de 1960. Fez exposições individuais em locais como o Masp (1974) e é autora de Personae (1997). As imagens publicadas nesta edição fazem parte do livro Crisálidas, que o Instituto Moreira Salles (detentor do seu acervo) lança em 2012.

16. Mais conhecido autor da nova geração mexicana, fundou na cidade do México a

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ENTREVISTAPor que partir e por que voltar?Daniel Roche fala das viagens e deslocamentos na história e na arte do ocidente

P. 12

P. 34

P. 2, 10, 52

PERFILDiáspora ao avessoYael Bartana, a volta dos judeus à Europa e a arte que discute identidade

P. 18

P. 38

P. 55

P. 62

P. 64

OPINIÃODesvio no retornoExiste uma experiência possível de exílio para um israelense? Por Raphael zagury-Orly

P. 22 P. 24

P. 44

ENSAIONotas sobre a máquina voadoraOs erros, acertos e acasos que fazem da tradução um capítulo essencial da história da literatura. Por Ricardo Piglia

NO CENTRO E MAIS UM POUCO

GLOSSáRIOO vocabulário do exílio

EXPOSIÇÃO/FESTIVAL/FILMES/LIVROS/MÚSICA

CARTAS

MEMÓRIAQuando todos estão sósRecordações dos anos passados no exterior, onde “o coração do mundo é feito de pedra”. Por Milton Hatoum

ENSAIOcrisálidasAs fotos de Madalena Schwartz e o exílio interior de seus personagens

COMIDAA longa viagem do cholentA saga do cozido identificado com o Shabat por séculos de história turbulenta

VISõES DO EXíLIOPor Antonio Dias

FICÇõES DA AUSÊNCIAPor João Gilberto Noll, Paulo Scott, André Sant’Anna e Mario Bellatin, com traduções para o ídiche, o ladino e o portunhol selvagem

Guimátria Sumário

P. 42

No hebraico, as letras têm valor numérico. Somando os números das letras, pode-se atribuir um valor a palavras, frases ou textos e perceber relações entre eles. Esse método interpretativo se chama guimátria, do grego geometria. Conheça abaixo, nome, grafia e valor numérico atribuído a cada letra do alfabeto hebraico:

Alef

BetH

GuiMel

DAlet

HeY

vAv

zAiN

cHet

tet

iOD

KAf

lAMeD

MeM

NuN

SAMecH

AiN

Pei

tzADi

Kuf

ReSH

SHiN

tAv

letRA

vAlOR NuMéRicO AtRiBuíDO

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

20

30

40

50

60

70

80

90

100

200

300

400

אבגדהוזחטיכלמנסעפצקרשת

GRAfiA

8=10=+ י

ח

viDA =חי=18(hai).

1. K

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Che

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2. A

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City

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Tor

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2.

1.

3.

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Antonio Dias, Faça Você Mesmo: Território Liberdade [Do it Yourself: Freedom Territory], 1968Titanium sobre pavimento, 400 x 600 cmColeção Daros-Latinamerica, Rio de JaneiroFoto: Udo Grabow

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Em 1955, ao se deparar com a célebre frase “odeio as viagens e os exploradores” que abre o clássico Tristes Trópicos, de Lévi-Strauss, o historiador francês Daniel Roche assimilou-a como uma provocação num momento em que tudo conspirava a favor, e não contra as viagens. As palavras do antropólogo foram um estímulo na busca da resposta a uma questão “essencial a cada um de nós e à nossa civilização incessantemente preocupada em fugir de si mesma”: por que partir e por que voltar? A interrogação resultou, depois de anos de pesquisas, no volumoso ensaio Humeurs Vagabonds – de la circulations des hommes et de l’utilité des voyages (Humores Vaga-bundos – sobre a circulação dos homens e a utilidade das viagens). Especialista no Iluminismo, Roche analisa a oposição entre sedentarismo e mobilidade e todas as formas, causas e consequências da circulação de indiví-duos, grupos e populações entre os séculos XVI e XVIII, passando também pelo gênero dos relatos de viagem (principalmente num detalhado capítulo sobre os filósofos viajantes Voltaire e Jean-Jacques Rousseau).

O impulso da mobilidade e de suas relações confronta os preconceitos e baliza o cosmopolitismo ao impor o deba-te entre identidade e localização, rejeição e controle do estrangeiro. “Todas essas questões têm um passado e um futuro”, diz Roche. Também pensador de seu tempo, o historiador manifesta sua preocupação com um mundo que se tornou um grande comércio de cidades e paisa-gens: “A sobrevivência dos flâneurs está ameaçada, as-sim como a solidão do turista e dos andarilhos”.

Por que, a partir do Renascimento, há essa enorme necessidade de circular que coloca a europa em movimento?Eu falo mais de mobilidade e circulação do que de via-gens. Questiono a noção de viagem em relação a essas outras noções. As viagens são escolhas, em relação à sua função e à finalidade do trajeto, e terminam por desig-nar um modo de descoberta do mundo. Viaja-se por uma descoberta intelectual, científica, social. Há certas injun-ções que fazem as pessoas viajarem, mas que não são totalmente deterministas. A mais evidente delas é a eco-nômica, que implica no deslocamento. São os dirigentes da economia, os grandes negociantes ou industriais que, desde a Idade Média, frequentam as feiras, visitam os grandes centros comerciais, portos, centros de produção. Entre a Idade Média e o século XIX, esse tipo de mobi-lidade das classes dirigentes não desapareceu. Muitos dirigentes fazem temporadas no exterior, caso dos nego-ciantes portugueses que vão ao Brasil por um certo tem-po, como parte de sua formação. É um fenômeno euro-peu. Em todos os países da Europa, o comércio local se faz por meio de sucessivas mobilidades. Na população artesanal se dá o mesmo. As necessidades profissionais podem desembocar em curiosidade e transformações in-telectuais. Outro tipo que tem papel importante é o mas-cate, que entre os séculos XVI e XVIII coloca em contato diferentes tipos de civilizações materiais e é um instru-mento de porosidade, permeabilidade entre as regiões.

O senhor assinala também a mobilidade dos religiosos e dos peregrinos.

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Guimátria

Entrevista

PorFernando Eichenberg

ilustrações

Bruno Algarve e Liana Chiapinotto

POR Que PARtiR e POR Que vOltAR?

Daniel Roche fala das origens e das consequências das viagens e deslocamentos na história política, social e artística do Ocidente

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Os bispos, por exemplo, têm o dever de conhecer sua diocese e a visita pastoral faz parte de sua vida religiosa, profissional e pessoal. Eles descobrem a diversidade de seus fiéis, e toda uma geografia religiosa se instala. Esses bispos são obrigados, de tempos em tempos, a visitar a capital, onde são realizadas as assembléias gerais do clero, e também capitais de outras regiões. A mobilidade dos peregrinos é algo mais fundamental e se transforma, aos poucos, entre a Idade Média e o século XIX. No co-meço, a peregrinação funcionava como uma busca do perdão. Hoje temos uma ideia melhor da importância de todos esses movimentos, da complexidade dos trajetos, da hospitalidade, da maneira como são vividos esses fenômenos de devoção que traduzem um recurso ao sagrado. Há uma grande transformação porque, a partir do século XVII e no século XVIII, as Igrejas e os Estados passam a desconfiar de todos esses movimentos de pe-regrinação, vistos como ocasião de desordem e também geradores de despesas. Os hospitais que acolhiam os peregrinos custavam caro aos Estados. Houve uma políti-ca de vigilância e controle tanto da parte das autoridades religiosas como das civis. O fluxo global de peregrinos não se reduziu muito, mas muitas dessas peregrinações se regionalizaram.

Qual a importância da circulação dos estudantes nesse período?A peregrinação acadêmica, que ainda hoje está na moda, é uma das dimensões intelectuais e materiais desses grandes deslocamentos. Nesse caso, também foram necessárias pesquisas bastante precisas para provar que mesmo o melhor momento da mobilidade universi-

mobilidade está ligada a fenômenos muito duros da vida social antiga, como as guerras, as crises, as epidemias. A cada ocasião dessas, vemos reaparecer as mesmas ten-tativas para identificar as profissões móveis, desconfiar dos pobres e dos criminosos andarilhos e tentar, pouco a pouco, controlá-los.

Qual o fundamento teórico para esse contexto?A teoria em relação a essa desconfiança é a posição de Pascal: a felicidade dos homens é mais assegurada se ficarmos no quarto do que se nos lançarmos nas estra-das do mundo, com os perigos que isso implica para os indivíduos e para a sociedade. Mas há um segundo movimento. Apesar da desconfiança, a circulação au-menta, as pessoas são levadas a se mover, estruturas de deslocamento se organizam e são aperfeiçoadas. Há um debate sobre a utilidade das viagens, que envolve dois aspectos. O primeiro é o de discutir se elas são realmente necessárias. Há toda uma corrente do Iluminismo, levada pelo patriotismo local e mesmo pelo nacionalismo, que diz, com Rousseau, que o melhor é conhecer o vizinho de sua porta em vez de pretender ir ver como vivem os tur-cos. Mas vai se admitir um consentimento estético suple-mentar, pois a descoberta da viagem regional, da viagem romântica pitoresca, vai se dar nesse quadro reorgani-zado pelas transformações políticas pós-revolucionárias.

como as viagens vão influir no relativismo dos costumes, na erosão dos valores morais e políticos no século xviii?Desde o século XVI há uma ampla reflexão feita nos tex-tos de viajantes e de filósofos e inspirada pela necessida-de da viagem. Reflexão da mobilidade como um elemen-

tária medieval não atingiu mais de 10% ou 20% do total de estudantes. Mas isso dava, ainda assim, um modelo para o funcionamento das universidades, que associava a essa mobilidade os professores e os alunos. Entre os séculos XVI e XVIII, vemos a continuidade desse movi-mento, mas também um certo tipo de adaptação. Há uma transformação da relação política no interior da Europa. Os Estados modernos criaram universidades por meio do recrutamento nacional e local. Uma parte dos estu-dantes se dividiu na geografia dos centros universitários, criados em função do credo das diferentes igrejas e da estatização das grandes nações. No interior desses con-juntos nacionais, certas universidades mantêm seu poder de atração e conservam durante todo o período moderno, até o século XIX, uma função de poder de transformação e de apelo aos estudantes estrangeiros.

No que se refere à circulação, essencial para a cultura ocidental, como se dá historicamente o embate entre sedentarismo e mobilidade?Entre os séculos XVI e XVIII a sociedade se concebe como um mundo que deve ser, sobretudo, imóvel. Sua fi-nalidade é fora do tempo; é a redenção – ou seja, a cultu-ra religiosa. Depois da Reforma as ideias são as mesmas, vive-se num mundo em que o passado e a história são vistos como uma referência explicativa, na qual encon-tramos todos os exemplos de vida e políticos. A novida-de se introduz, mas sempre com muita dificuldade. Isso funciona numa mobilidade social restrita. A sociedade antiga se interroga sobre o perigo da mobilidade, porque vê nela ocasiões de transformações não forçosamente necessárias e também verdadeiras ameaças sociais. A

to de transformação de saber, de pensamento, e com as consequências que isso tem na prática dos costumes. No século XVIII há uma utilização filosófica pela literatura de textos de viajantes. O mais brilhante testemunho são as Cartas Persas, de Montesquieu, no início do século. Mas, na segunda metade do século XVIII, temos Dide-rot e seus comentários sobre a viagem de Bougainville. Descobre-se que essas civilizações diferentes questio-nam as certezas mais absolutas em todos os domínios do pensamento.

Há uma difusão do ideal do conhecimento pela experiência.Isso faz parte do próprio fundamento da circulação. Seja no movimento econômico, na prática religiosa, é uma questão de saber profissional e filosófico que está em jogo. A mobilidade só pode aprofundar o conhecimento. No século do Iluminismo, se aconselha que se faça na viagem um tipo de investigação pessoal. Isso se torna um tipo de desenvolvimento paralelo à investigação cien-tífica. Os relatos de viagem mostram como a cultura de origem lê a uma outra cultura. Muitos franceses estiveram na Inglaterra do século XVIII, e há entre 200 e 300 relatos publicados, o que já é um número considerável. Os textos dão uma imagem da Inglaterra para mostrar o que não funciona na França. O relato de viagem nunca é o reflexo exato da viagem, mas um instrumento.

Surge também nesse período um controle maior da circulação.A aceleração da circulação vai, efetivamente, questionar a sociedade sobre a gestão desse fenômeno. Em perío-do de crise, há uma grande desconfiança das autorida-

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des nacionais e das polícias urbanas em relação ao aco-lhimento dos fluxos populares. Na França havia poucos problemas na recepção aos estrangeiros, que são uma minoria. A proporção é mais ou menos a atual: de 3% a 4%. Na França há o debate sobre a recepção aos estran-geiros, e em outros tempos a característica do estrangei-ro era a de ser imediatamente integrado e desaparecer. O problema da integração, hoje mundial, estava antes relacionada sobretudo aos movimentos locais nacionais.

e aí entra a questão da hospitalidade.A hospitalidade é praticada em todas as civilizações desde a Antiguidade, mas o cristianismo lhe deu uma coloração precisa: “Acolherás teu próximo como a ti mesmo”. Mas isso sempre funcionou de maneira diver-sa, segundo as categorias sociais. No mundo nobiliário, é um gesto social. É preciso saber acolher, porque uma das características da nobreza é gastar, e a hospitalida-de faz parte das despesas aristocráticas. Receber é uma maneira de ostentação. Progressivamente, isso foi dimi-nuindo na Inglaterra e em outros países, muito por causa do aumento da circulação. O problema foi deslocado do domínio do dom para o da economia. No século XVI, as abadias inglesas passaram a instalar hotéis com tarifas. No meio urbano, as instituições sociais de acolhimento se transformam em locais de alojamento pagos: hotéis e albergues. Essas instituições são suspeitas de acolher a criminalidade, o vício, a prostituição ou mesmo a espiona-gem política. Há a implantação de uma polícia para tentar conhecer melhor os deslocamentos e vigiar as popula-ções. São criados os documentos de identidade e surge o passaporte. No início, o passaporte é distribuído por

Qual foi, por exemplo, a relação das viagens de Mozart com sua arte?Para seu aprendizado, foi essencial. Foi por meio de suas viagens à Itália e à França que ele descobriu outras formas musicais e reagiu a isso com seu próprio gênio. Ao mesmo tempo foi uma maneira de tentar fazer uma carreira, mas com fracassos flagrantes. Na França, por exemplo, ele não recebeu a acolhida que desejava. Foi somente no fim de sua vida que se tornou relativamente reconhecido no domínio germânico, e muitas de suas via-gens foram feitas entre a Tchecoslováquia e as grandes capitais da Europa alemã. Para um grande músico da época, viajar era uma necessidade da profissão.

e Goethe?Os relatos de viagem de Goethe são extremamente inte-ressantes, ainda mais por se inscreverem numa relação familiar. Goethe escreve no prefácio do livro sobre a Itália que não foi possível publicar o relato da viagem de seu pai ao país porque não possuía qualidade literária. Mas na vida de Goethe as viagens estão por todo lado, na sua autobiografia, em suas memórias. Ele fez a peregrinação acadêmica. Foi estudante em Estrasburgo, viajou por to-das as universidades alemãs. É um belo testemunho da mobilidade dessa classe intelectual e dominante.

Segundo o senhor, as culturas vivas são aquelas capazes de se abrir as outras. como vê isso hoje?Não se deve atrapalhar a circulação, mesmo sendo ne-cessário controlá-la em certos aspectos, como no caso do terrorismo internacional. Mas é preciso denunciar a suspeição sistemática do estrangeiro. Não é porque você chega de longe que deve ser tratado como um inferior ou um suspeito. Nisso, o mundo moderno contemporâneo

todas as autoridades, mas no fim será controlado, como é hoje, pelo Estado. Havia antes passaportes coletivos, uma aldeia inteira poderia receber um passaporte. A car-teira de identidade é um fenômeno do século XIX, surgiu depois do passaporte. Hoje o passaporte eletrônico é a finalização desse movimento.

como se desenvolveu o gênero dos relatos de viagem?Os relatos de viagem podem ser remontados à Odisseia. O que caracteriza a época moderna é a multiplicação do gênero. É uma literatura que se torna cada vez mais es-pecializada e que, por suas edições e reedições, atinge um público cada vez mais amplo. Do fim do século XV ao início do século XIX são registrados cerca de seis mil títu-los, um volume que se espalhou pela Europa e o mundo. A metade disso foi produzida entre 1700 e 1800, sendo a grande maioria posterior a 1750. Os relatos de viagem ainda são um gênero procurado – e que passou a ser qualificado de literário, o que não era em sua origem. An-tes tratava-se sobretudo de um testemunho de finalidade doméstica, familiar.

Quais são seus relatos de viagens preferidos?Meus heróis de viagem – aos quais devo acrescentar Montesquieu, mas seus testemunhos não foram redigi-dos, a família os destruiu em parte – são, em primeiro, o relato de viagem pela Europa de Montaigne. Depois, Charles de Brosse e sua viagem à Itália. Se incluísse as viagens intercontinentais, acrescentaria os relatos do ca-pitão Cook e, depois, de Darwin, textos prodigiosos. Meu terceiro herói viajante é Stendhal.

inventou e reinventou continuamente suas próprias práti-cas de hospitalidade. Essa negociação constante entre a necessidade de controle e sua aplicação é indispensável.

O senhor diz que o mundo se tornou um grande comércio de cidades e paisagens. Sim. Ontem mesmo estive na minha agência de viagem para pegar uma passagem para Lille (a 200 quilômetros de Paris) e o funcionário me propôs um pacote para a Tailândia e uma grande viagem ao Japão. Você entra na internet e há ofertas para qualquer lugar. Não quero lan-çar um descrédito a toda essa população, em sua maio-ria pertencente ao mundo ocidental e desenvolvido. Essa forma de globalização tem seu lado positivo na medida em que poderia incitar nossa civilização a ter uma melhor atitude com as economias subdesenvolvidas e os países que vivem situações dramáticas. O Brasil faz parte desse grupo, com grandes problemas ecológicos e outros. Mas há o lado negativo, da exploração do mundo pelas piores coisas. É atroz ver o turismo sexual, por exemplo.

O senhor é um nostálgico que acredita serem as viagens no período renascentista melhores para o espírito do que as praticadas hoje?O problema já era colocado na época. Kant dizia que se podia dispensar as viagens para ficar lendo na poltrona. A leitura como substituto da viagem não é totalmente dife-rente do exotismo que temos por meio de documentários ou da internet. Acredito que há, mesmo assim, um limite nessa constatação. Se um certo número de informações acumuladas pode ser adquirido pela leitura ou pela visão, a extensão da compreensão só pode ser feita pelo conta-to direto. Entre ontem e hoje não há diferença qualitativa, mas uma grande diferença quantitativa.

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A ironia pode ter surgido lá atrás, no início da déca-da de 1990. no romance Operação Shylock (1993), o norte-americano Philip roth se vê às voltas com um duplo – um usurpador de sua própria identidade – cuja missão é fazer com que os judeus israelenses empa-cotem suas coisas, façam as malas e retornem à velha europa. Sim: loquazes e bravios nativos de Jerusalém e Tel Aviv tomando o rumo de Vilna, Varsóvia, odessa e outros centros urbanos outrora apinhados de judeus. o personagem tem seus argumentos. Sua atitude reve-la o medo de um novo Holocausto: a população isra-elense pode ser dizimada a qualquer momento pelos inimigos árabes ou ter de recorrer à bomba atômica para exterminar os beligerantes vizinhos. Uma derrota moral e metafísica.

A artista israelense Yael bartana, nascida em 1970 em Jerusalém e vivendo hoje entre Tel Aviv e berlim, pa-rece ter motivações semelhantes. Apenas parece. Irô-nica, construiu todo seu trabalho mais recente – uma série de 3 filmes e um manifesto – em cima da pos-sibilidade remotíssima e fantasiosa de reconduzir o povo judeu àquele que foi seu lar durante séculos: a europa. Sim, o continente cujos habitantes passaram os últimos dois milênios estigmatizando e hostilizando sua população judaica. “despertos ou dormindo, nós continuamos sonhando com a europa”, diz uma das frases emblemáticas do texto, um arrazoado sintético e eloquente sobre o renascimento Judaico na Polônia. Com frases que parecem ter saído de um manual de autoajuda (“nós queremos tratar do trauma – o nosso e o seu”) e o já combalido estilo meio belicoso dos manifestos das vanguardas do século passado, o texto serve uma mistura bipolar de temas que, no limite e dependendo do estado de espírito do leitor, parecem fazer algum sentido.

carteirinha e KibutzA trilogia bartanesca, ...And Europe Will Be Stunned, ex-plica e complica as coisas em igual medida. os filmes levam a rubrica da organização do renascimento Ju-daico na Polônia, e seus membros portam carteirinhas do movimento. Identidade e nação, portanto, são alta-mente problematizados na pela artista, um nome cada vez mais frequente em bienais pelo mundo afora.

o argumento desfiado é o seguinte: depois de séculos de perseguição, extermínio e opressão, o povo judeu encontrou um porto relativamente seguro em Israel. doce ilusão: para continuar vivendo no pequeno país do oriente médio, os judeus travam uma luta diária e sem fim para legitimar sua permanência. Acossados

novamente, mas nunca mais desfavorecidos do ponto de vista militar, teria restado aos habitantes de Israel o papel de grande opressor. daí uma volta à Polônia po-deria equilibrar a balança da História – antigos opres-sores e suas ex-vítimas, agora opressores em plena reabilitação. Tudo circular.

É quase inimaginável conceber, como bartana, polo-neses como Slawomir Sierakowski clamando pelo re-torno dos “seus judeus” mais de meio século depois do Holocausto. em outro momento da trilogia, a artista apresenta, diante do monumento do Gueto de Varsóvia, aquele que seria o primeiro kibutz pré-Israel. A retórica algo triunfalista dos pioneiros desfiada diante de um dos lugares mais dolorosos da recente memória judai-ca. mais desconcertante ainda é o fascínio encenado pela língua polonesa, que aparece para sepultar a ca-dência do gueto, como uma novidade recuperada do passado, percurso semelhante ao do próprio hebraico. no filme que arremata esse painel derrisório, o funeral de Sierakowski é interrompido pela aparição da per-sonagem rifka, quase um fantasma, reivindicando a posse de uma antiga propriedade.

Mitos e paradoxos bartana brinca a sério, e há mesmo algo de jogo nessa empreitada. o arranjo convincente da ilusão urdida por ela impressiona e, mais ainda, transforma o especta-dor numa espécie de cúmplice dessa história alterna-tiva. Ao contrário daqueles documentários dos canais de história da TV a cabo, que simulam cenários alter-nativos para grandes eventos da humanidade (o que aconteceria com nova York se Hitler tivesse vencido os eUA?, o dia em que os aliados poderiam ter desman-telado a usina de morte de Auschwitz em seu auge, e por aí vai), o “e se” de bartana encerra paradoxos que precisam de terreno mais fundo para serem revolvidos.

e se de fato retornássemos ao Velho mundo, lugar de nascimento dos nossos avós? Seríamos recebidos com fanfarra, devolução de propriedades e, ainda mais importante, o antigo estatuto de cidadãos de segunda classe seria trocado pela ampla aceitação? Pouco pro-vável num continente que se vê às voltas com o recru-descimento do preconceito com o diferente da vez – o povo islâmico – e com uma crise econômica que cres-ce a cada dia. bartana parece saber disso, ou mesmo essas condicionantes já estão embutidas em seu dis-curso, basta saber enxergar. Imagine-se a confusão se estes filmes fossem um dia exibidos em lugares tradi-cionalmente associados ao establishment judaico. não faltariam novas adesões.

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Guimátria

Perfil

PorLeandro Sarmatz

DiáSPORA AO AveSSONome festejado das artes internacionais, Yael Bartana propõe a volta dos judeus à Europa para discutir – com ironia e paradoxos – temas como nação e identidade

Nesta pág. e nas págs. seguintes, obras de Bartana, incluindo cartaz de congresso do Movimento de Renascimento Judaico na Polônia, manifesto e cenas de sua trilogia de filmes, que foi exibida no Centro da Cultura Judaica em outubro de 2011. No mesmo mês, as bandeiras do MRJP foram hasteadas em frente ao Centro (ver foto no Sumário)

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Haveria uma experiência possível de exílio para um isra-elense? Se avançássemos na questão, seria preciso per-guntar: o exílio termina com a fundação ou a criação do Estado?

O campo semântico devido – uma vez que falamos de política, de arte e de tudo o que se segue em Israel – é o do retorno, referente aos judeus que voltaram a viver em seu território ancestral, e o do desvio, referente aos que seguem vivendo fora dele. Esses vocábulos dividem e distribuem o mundo entre Israel e o exílio. Com frequ-ência, só o que há no país é a queixa diante da afirmação brutal dessa divisão – desvio simples e retorno simplista.

É possível questionar a distinção? Ora, a dificuldade ine-rente a essa pergunta é extrema. Basta ler, escutar ou olhar a maior parte das produções artísticas israelenses para ver a divisão cair por terra e os argumentos binários desaparecerem.

A ordem do discurso comum pressupõe a ligação íntima entre lugar e retorno. Como se tanto as categorias espa-ciais quanto o habitar moldassem sempre o pensamento. Segundo tal discurso, o retorno implica que se volte sobre os próprios passos para o reencontro com um ponto de partida. Em suma, no retorno, o que foi abandonado seria reencontrado. E, portanto, haveria uma reapropriação do lugar que se perdeu ou abandonou. Ou seja: volta-se a ser proprietário dos lugares de onde se foi desalojado.Se formos falar do que se liga intrinsecamente ao solo, à

pátria etc., é preciso entender que se trata de uma exten-são vasta de pensamento, que incorpora, inclusive, o que aparentemente se opõe a ela: a errância, a estranheza, a ausência de pátria, o nomadismo, o exílio. Talvez seja a partir do questionamento daí surgido que se tenha de pensar na interioridade do retorno: não um retorno à pá-tria, ao domicílio, à reinstalação em um país perdido, mas um questionamento capaz de desregular e transbordar incessantemente. Questionamento infinito, portanto, que buscaria sempre mudar o lugar do retorno e superar uma delimitação clara e circunscrita de lugar. O retorno seria, assim, perpetuamente desviado de seu fim e obrigado a uma experiência da perda da “morada” na afirmação da “morada”.

Tentemos dizê-lo de modo mais claro e direto: Israel não é simplesmente o lugar da habitação ou a “morada”. Israel permite que nunca se oponha a uma “morada” uma poéti-ca qualquer do exílio, ou um lirismo da errância.

O que é dito muito raramente pelos observadores da arte israelense é que não se trata jamais de reverter o per-tencimento a uma terra pela afirmação de uma expulsão, propondo quase sistematicamente um “não-pertenci-mento”. Talvez seja preciso notar na arte a manifestação de uma desconfiança contra essa tendência de sacralizar o nomadismo e, portanto, rever a realidade israelense em sua complexidade infinita. Nem simples retorno, nem sim-ples desvio: mais um dentro do outro, comunicação de um com o outro, exílio mesmo no retorno.

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Opinião

PorRaphael Zagury-Orly

DeSviO NO RetORNOExiste uma experiência possível de exílio para um israelense?

Eli Petel, Cry, pastel oleoso sobre papel, 2010

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Ensaio

Por Madalena Schwartz

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Guimátria

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eleGâNciA tRANSGReSSivAO exílio de uma fotógrafa e seus personagens, segundo seu filho

esta seleção de fotos de madalena Schwartz, que faz parte do livro Crisálidas, a ser lançado pelo Instituto moreira Salles em 2012, aguarda publicação há prati-camente quatro décadas.

Quem conheceu madalena custa a acreditar que uma pessoa tão discreta, tão avessa a qualquer tipo de autopromoção ou protagonismo, sempre vestida com comedida elegância – herança de sua educação eu-ropeia – possa ter gerado uma série tão explosiva de imagens e se antecipado em décadas a um tema con-siderado hoje muito menos transgressivo, mas ainda perturbador.

em 1936, órfã de mãe, madalena desembarca adoles-cente numa Argentina mergulhada em profunda de-pressão. Atravessa o Atlântico num momento em que as despedidas eram para sempre, trazendo o irmão de 5 anos aos seus cuidados. o pai, casado em se-gundas núpcias, aguardava sua chegada na Argentina. em 1960, ela realiza com toda a família uma segunda imigração, desta vez para o brasil, terra que sempre a fascinou. essa nova viagem de meus pais nos obrigou a abandonar o gueto húngaro e judaico de buenos Aires e a olhar para a diferença com a qual passamos a conviver com redobrado entusiasmo.

empenhada em aprender as técnicas de iluminação, madalena começou a trabalhar para profissionais de teatro, que precisavam dos registros fotográficos. Foi sua grande escola. na classe teatral, ela sempre des-pertou uma espécie de ternura e curiosidade. Artistas,

dançarinos, cantores, maquiadores foram aos poucos interagindo com sua sensibilidade. os dzi Croquettes, grupo de teatro, dança e música dos anos 1970, foram uma de suas grandes fontes de inspiração. de mo-delos, passaram a ser amigos e confidentes. não foi uma trajetória fácil. o estupor de meu pai ao ver essas estranhas produções, a maior parte delas realizadas no apartamento do edifício Copan, onde viviam, tor-nou-se permanente. minha mãe as realizava por pura fruição estética. A dupla revelação (o laboratório e o resultado) das imagens registradas era notável.

em 1974, o professor Pietro maria bardi convidou madalena a expor parte desta série, na que seria a primeira de suas três exposições individuais no mASP. Lembro com nitidez da vernissage e da homenagem que a comunidade de transformistas e travestis lhe prestou na boite medieval (rua Augusta com av. Pau-lista), em uma noite a portas fechadas. madalena ves-tia o tailleur preto que Clodovil fez especialmente para ela usar na ocasião.

É curioso observar que madalena jamais teve cons-ciência da própria importância como artista. ela considerava seu trabalho mais uma etapa da luta do imigrante para se estabelecer, para se reconhecer e ser reconhecida pelo país e pela sociedade que a acolhiam. nesta série, que pessoalmente julgo a mais importante e original de toda a sua produção, ela es-colheu como tema seres que também se exilaram de uma classificação rígida e engessada de gênero para seguir o caminho marcado pela diferença.

Jorge Schwartz

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À exceção de algumas cozinhas ortodoxas, o cholent an-dou meio esquecido. Mas nos últimos tempos experimen-ta um renascimento, principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde tornou-se um prato de fim de semana em restaurantes de comida judaica ou não. Obviamente, faz-se uma confusão com o cassoulet – veremos adiante que os dois vêm da mesma raiz – e a adição de novos ingredientes, casher ou não. A outra grande novidade são os cholent vegetarianos, que vão ganhando seu espaço no mercado gastronômico.

Para variar, a história deste cozido muito identificado com o Shabat começa com a invasão moura do sul da Euro-pa, no século VIII. No bojo da invasão vieram os judeus e sua receitas – entre elas, os cozidos do dia do descan-so: dafinas, hamins e outros assim chamados panelões, todos dentro do mesmo princípio de cozinhar na sexta para comer no sábado. As origens do hamin são remo-tíssimas, possivelmente os primórdios do império egípcio. Afinal, cozinhar em água é um princípio básico da culiná-ria, adotado muito provavelmente logo após a descoberta do fogo.

Algumas evidências bíblicas dão conta de sua idade. As instruções de preparo do cordeiro pascal, por exemplo, recomendam o uso de espetos da árvore da romã para grelhá-lo de diversas formas, uma vez que a madeira da romã era considerada das mais secas e era terminante-mente proibido molhar o cordeiro ou cozinhá-lo (Psachim 7:1). Uma grelha de barro chamada eskala era admitida. Podia-se molhar a carne com vinho, azeite ou sucos de

processo qualifica o prato como hamin (quente ou aque-cido). Chega-se a recomendar os materiais adequados para cobri-lo, como peles, lã, roupas velhas, penas e relva seca. Para poder usufruir de seu hamin bem quente, os habitantes de Tibéria inventaram um sistema típico do

“modo judaico de resolver problemas” : fizeram canais da famosa fonte de águas termais do local até as casas. A Mishná permite este sistema para manter aquecido, mas não para cozinhar.

Em sua essência, hamin, haminado, matphonia, shahina, dafina, haris e tabit são pratos de origem sefaradi, todos cozidos e combinando carne, feijões e grãos com grande tempo de cocção.

Já ouvi besteiras dizendo que o feijão branco é parte das receitas originais, quando na verdade se origina da Amé-rica e só chegou à Europa no século XVI. Aqui falamos de receitas que têm, com absoluta certeza, mais de dois mil anos.

Os nomes estão muito ligados à palavra calor, do hebrai-co ham (hamin, haminados), ou a determinadas técnicas. Daffina e matphonia devem derivar do hebraico dafan, que significa algo como prensar o barro, numa alusão à técni-ca de selar as tampas de panela com barro ou uma mis-tura de farinha e água para o calor não se dissipar. Essa técnica ainda pode ser vista na cidade de Morretes, no Paraná, onde se faz o barreado, delicioso cozido trazido pelos imigrantes açorianos feito de carne, vegetais e ba-nana em uma panela de barro que é enterrada num bu-

fruta todos os dias, menos no Pesach, embora molhos desses ingredientes fossem admitidos para servir com a carne (Psachim 3:2).

Ou seja, o cozido devia ser uma forma muito popular. É mais ou menos óbvio que a carne era um artigo caro, res-trito aos nobres e ricos e que, quando chegava às cama-das pobres da população, era com seus pedaços menos nobres e mais duros, impossíveis de serem grelhados. Tanto se cozinhavam os pedaços para serem comidos pu-ros quanto para dar sabor a um cozido de vegetais, com-pondo o molho conhecido como kiffah. Sua base era ce-bola, alho, alho-poró e outros ingredientes de sabor forte, hábito com certeza adquirido no cativeiro do Egito (Num 11:5). Os vegetais eram fritos para caramelizar e depois eram acrescidas a carne e a água.

O alho era muito utilizado pelos antigos, que acreditavam em suas propriedades salutares. Era especialmente reco-mendado para ser comido na sexta, dia especial para o cumprimento das obrigações maritais, por sua dita ação benéfica na qualidade do sêmen (Kethubot 64b, Nedarim 3:10). Também há evidências de cozidos que utilizavam carne e vinho e da existência de um cozido especial de Shabat, utilizando cebolas e ovos.

Regras e calorA Mishná diz que, para ser comido no Shabat, um pra-to deve ser completamente cozido na sexta, mas pode ser “enterrado” num local quente ou coberto para man-ter seu aquecimento até o consumo. A referência a esse

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Guimátria

Comida

PorBreno Lerner

A lONGA viAGeM DO cholent

Seguindo uma tradição que remonta ao império egípcio e com 13 séculos de história turbulenta na Europa, o cozido identificado com o Shabat sobrevive tão ou mais apreciado que o gefilte fish

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raco com brasas durante toda a noite, tendo sua tampa vedada com a massa de água e farinha. Esse digno des-cendente da daffina é delicioso e vale o passeio pela linda serra da Graciosa, bem pertinho de Curitiba. Atribui-se seu sucesso ao fato de que há cerca de duzentos anos as mulheres, querendo participar dos festejos do entrudo (avô do carnaval) sem ficarem presas à cozinha, prepara-vam-no na sexta e ele ficava no buraco com brasas até a terça-feira, sem perder o sabor. Por motivos diferentes, a história se repete.

extermínio e renascimentoBem, voltemos à chegada do hamin na Europa, que levou a uma série de descendentes como o cozido português, o bollito italiano, a olla e a fabada espanholas e até a nossa feijoada. De alguma forma não muito clara aos historiado-res, ele chega a Languedoc, na França – onde, não por acaso, se originaria o cassoulet –, região famosa entre os judeus pelo centro de estudos talmúdicos de Montpellier.

Lá o prato ganha seu nome moderno, derivado mais uma vez do calor, chau (calor) – lent (lento). Embora algumas comunidades inglesas insistam que o nome vem de shul (sinagoga ou escola) – end (fim), referindo-se ao fato de que os cholent eram cozidos em fornos comunitários ou de padarias, e as crianças, ao final da escola, passavam no local e levavam as panelas para casa. O hábito de cozimento comunitário gerou um curioso costume de eti-quetas de metal para marcar a panela de cada família e acabou por desenvolver uma microindústria de etiquetas personalizadas e com decorações.

No século XIII, a cruzada albigense, a caminho de exter-minar os cátaros (seita católica que, entre outras coisas, condenava a corrupção na Igreja, rejeitava os sacramen-tos e via o poder papal como uma forma de paganismo) num episódio que, guardadas as proporções, é compa-rado por muitos com o Holocausto, passou pela região de Languedoc e quase exterminou os judeus. Os poucos sobreviventes emigraram para a Alemanha e, cumprindo a sina dos judeus errantes, levaram consigo seus ingre-dientes e receitas.

Assim, o cholent chegou não só à língua ídiche como es-palhou-se por toda a Europa, recebendo uma valiosíssima adição na Alemanha, o kishke, uma linguiça feita de tripa de cordeiro ou vitela, recheada com farinha, cebola e sch-maltz (gordura de frango) crua. Posteriormente o kishke ganhou outras variações em seu recheio, como batata ralada e frango desfiado.

Com a volta dos judeus ao oriente, o cholent se misturou com as receitas sefaradi de derma, tripas recheadas, e gerou uma série de outras receitas, como o helzel asque-nazi, pele do pescoço do frango, recheada com diversos ingredientes. Com certeza o kishke e/ou o herzel foram os inspiradores da alheira portuguesa, com a qual muitos criptojudeus livraram-se das fogueiras da inquisição ao fingir que comiam linguiças.

Um fato curioso ocorreu na ida do cholent para a Alema-nha. Na França, alguns rabinos permitiam o aquecimento do prato no sábado, desde que o forno já estivesse aceso. Na Alemanha, os rabinos mais rigorosos mandavam selar com barro os fornos comunitários no sábado.

Já no retorno ao oriente a receita ganhou a adição de ovos, principalmente os huevos haminados (cozidos longamen-te e coloridos com cascas de cebola e grãos de café), fru-tas secas, arroz e outros ingredientes, sendo que a versão marroquina ficou como uma espécie de receita oficial. Há de lembrar também que, na sua versão asquenazi, no sé-culo XVI ganhou um ingrediente vindo das terras novas, que foi definitivamente incorporado à receita: as batatas.

Para muitos judeus o aroma do cholent é o do Shabat – um aroma abençoado e divino. É comum vermos descri-ções dos shtetls russos, onde sua presença é querida e marcante na vida da comunidade, na véspera do Shabat. Fica então contada a saga desse honrado e viajado pra-to, de longeva história e inúmeras tradições. Tão ou mais unânime, tão ou mais apreciado, que o próprio gefilte fish.

1 kg de peito de vaca ou músculo

bem limpo;

½ xícara de schmaltz;

3 cebolas grandes picadas;

2 xícaras de feijão branco, deixadas

de molho por 1 noite e escorridas;

½ kg de batatas em cubos grandes;

2 a 4 kishkes;

2 folhas de louro;

Sal, pimenta do reino e páprica a gosto.

Num panelão de ferro ou barro derreta

o schmaltz e frite a cebola até dourar.

Retire a panela do fogo, esfregue sal,

pimenta do reino e a páprica na carne.

Coloque-a no centro do panelão, sobre

as cebolas. Ponha os feijões e batatas

em volta da carne, os kishkes por cima,

acrescente as folhas de louro e cubra

com água fervente. Cozinhe, bem tampado,

no fogo mais baixo que tiver no fogão

por, pelo menos, 2 horas, acrescentando

mais água se necessário. Transfira para

o forno em fogo baixíssimo, 140°C

se possível, e cozinhe por toda a noite.

Cuidado para não secar.

Kishke

1 cebola grande ralada;

4 colheres de sopa de schmaltz crua,

bem picada;

¼ xícara de farinha de trigo;

2 colheres de sopa de farinha de rosca

ou matzá

Sal, pimenta do reino e páprica (opcional)

Tripas para rechear

Atualmente já se podem encontrar tripas

feitas de uma material chamado plástico

vegetal, que já vêm limpas e prontas para

uso. Caso contrário, peça para o açougueiro

limpar as tripas naturais.

Misture muito bem todos os ingredientes

do recheio. Amarre uma das pontas da tripa

e recheie, sem apertar muito, formando

linguiças de 10 a 15 cm. Amarre a outra

ponta. Fure com um palito em 2 ou 3

pontos para evitar que estourem ao cozinhar.

Cozinhe em água bem salgada por

10 minutos. Escorra e utilize no cholent.

Receita Clássica do Cholent Asquenazi

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NOtAS SOBRe A MáQuiNA vOADORA

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Guimátria

Ensaio

PorRicardo Piglia

Do Dom Quixote em chinês ao Finnegans Wake em italiano, os erros,

acertos e acasos que fazem da tradução um dos capítulos

essenciais da história da literatura

1) Sempre me chamou atenção um comentário de Vir-ginia Woolf, a escritora inglesa, que se surpreen dia por-que seus amigos escritores diziam de maneira unânime que o melhor romance que haviam lido era Guerra e Paz. Mas, dizia Virginia, todos liam traduções. Me parece que há algo mais do que linguagem na narração. A narra-ção não é como a poesia em sentido pleno, parece que transmite algo que podemos chamar de seus sentimen-tos, emoções, algo que cada um de nós definirá, que lhe per mite sobreviver às traduções ainda que essas não sejam excelentes.

2) A figura do leitor e a figura do tradutor, que estão em certo sentido como fantas mas na ori gem do romance, são parte essencial do que todos consideramos o pri-meiro romance, Dom Quixote. Um romance rapidamente traduzi do, um dos primeiros acontecimentos da literatura clássica a chegar a lugares muito diversos. A primei ra tradução para o inglês é de 1612. A tradução em francês, de 1614. Para o italia no, de 1622. Para o alemão, de 1621. Quase imediatamente, nos cinco ou seis anos posterio-res, o li vro já começou a circular em todas as línguas. O mais extraordinário é a tradução para o chinês, de um escritor que se chama Lin Shu e seu ajudante, Chen Jialin. Shu não conhecia nenhuma língua estrangeira e seu ajudante todas as tardes lhe contava um episódio de Dom Quixote, que ele traduzia a partir do relato. O ro-mance se chamou His tória de um cavaleiro louco e foi um grande êxito. É um exemplo de como um livro consegue transmitir algo além de qualquer modificação implícita que possa ser imposta na tradução.

3) Basicamente, o que o tradutor tem de fazer é pegar os sentidos múltiplos que há em um texto e reduzi-los a um de seus sentidos, e isso sempre produz possíveis equívocos. A primeira coisa que ele faz é enviar pergun-tas ao escritor. Partes do texto que lhe parecem obscuras. Então o tradutor é o único que verdadeiramente lê o livro. Lê todas as palavras e tem de entender todas e estar se-guro. As perguntas dos tra dutores são sempre extraordi-nárias. “Escuta: no capítulo 12 tinha a porta fechada e no capítulo 18 está aber ta”. Eu sempre digo a eles: “Passou alguém pela porta”. O tradutor é, antes de mais nada, um leitor muito cuidadoso do original.

Angela Detanico e Rafael Lain,(O mundo) justificado, alinhado

à esquerda, centralizado, alinhado à direita, 2004

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prias obras. É muito comum em Octavio Paz. É muito comum em Haroldo de Campos. Em Emilio Pacheco no México.

8) Alguém pode dizer, falando ironicamente, que Quixote é o primeiro romance e Finnegans Wake, de Joyce, seria o último porque não se pode traduzi-lo. Joyce em certo sentido tomou a deci são de es crever um romance que não se pode traduzir, pois trabalha com a justaposição de todas as línguas que Joyce conhecia, que eram mui-tas, e portanto é um texto em que a linguagem adquiriu um caráter noturno, estão mescladas palavras de origem alemã, italia na, inglesa, etc. A única tradução válida que existe é a que, a pedido de seu amigo Italo Svevo, Joy-ce fez do capítulo Ana Livia Plurabelle. Joyce, para tra-duzir seu próprio texto, em vez de trabalhar com todas as línguas europeias que estão presentes em Finnegans, usa todas as línguas implícitas na língua italiana. Por um lado, como numa pequena história da língua italia-na, vai vendo os mo mentos em que essa língua parece estrangeira e, usando os dialetos que abundam na cul-tura italiana, faz uma tradução extraordinária. Consegue que distintos registros de uma língua funcionem como uma língua estrangeira. É uma tradução tão extraordiná-ria que muitos a consideraram um texto tão importante quanto os de Dante.

9) Agora me ocorrem as situações em que os escritores traduzem a si mesmos, intervêm na tra dução de seus próprios textos, e também os escritores que mudam de língua, como é o caso de Jo seph Conrad, po lonês que escrevia em inglês, e de Samuel Beckett, que passa a escrever em fran cês. Por que passa a escre ver em fran-cês? Beckett tem dois argumentos: porque assim pode escrever mal, e o inglês é de Joy ce. Há muitos outros. Nabokov, extraordinário estilista em inglês e, segundo dizem, extraordinário estilista na língua russa. Jerry Ko-zinski, escritor muito interes sante, que está um pouco esquecido, mas que é muito bom, também começa a escrever em in glês. Issac Bashevis Singer, grande escri-tor de origem judaico-polonesa, um dos últimos que es-

crevia em ídiche e alguns escritores amigos, como Saul Bellow, traduziam para o inglês.

10) Gostaria de falar de um escritor que nós, argentinos, admiramos muito: Witold Gomb rowicz. Um autor que ha-via publicado um romance que é um dos grandes livros do século passado, Ferdydurke. Estava um dia sentado em um bar de Varsóvia e veio um amigo: “Vai ser inau-gurada uma companhia que vai ao sul, a Buenos Aires, e na viagem inaugural há lugar para um jornalista”. Gom-browicz aceita a possibilidade de conhecer Buenos Aires e voltar no mesmo barco. Quando chega, três dias de-pois, começa a Segunda Guerra Mundial, a Polônia ha-via sido invadida pelos nazistas e ele fica completamente despossuído. De sua língua, de alguma possibilidade econômica, completamente na intempérie. Sobrevive e trabalha muito até que lentamente começa a reaparecer como uma figura que vive na Ar gentina por anos, escreve lá parte de sua obra e, quando volta à Europa, consegue reconhe cimento internacional,

11) Os anos de Gombrowicz na Argentina são uma ale-goria tão estranha quanto a alegoria dos manuscritos sal-vos de Kafka. Após os primeiros meses dificílimos, dos quais não se sabe quase nada, entra aos poucos em circulação em Buenos Aires. Seu centro de operações era a Confeitaria Rex, em cima de um cinema na calle Corrientes, onde ganha um pouco de dinheiro jogando xadrez. Gombrowicz anuncia que é um escritor do nível de Thomas Mann, mas todo mundo pensa que é um farsante, ninguém o conhece. Além do mais, afirma que é um conde, que sua família é aristocrática, ainda que agora, pelas contingências do mundo, viva na pobreza mais estranha.

12) Em 1947, Gombrovich sai à superfície, com a tradu-ção para o castelhano de Ferdy durke. É uma tradução extraordinária que Gombrowiz faz no Café Rex com a aju-da de Virgi lio Piñe ra, um grande escritor cubano que não sabe polonês, enquanto Gombrovich não sabe castelha-no. Com os dois falando em francês, é um pouco como

a experiência chinesa, e cada um no bar intervém na dis-cussão. É uma tradução completamente onírica. Um dos gran des acontecimentos da história da literatura essa tra-dução em um bar, que ter mina quase inventando o livro.

13) Gombrowicz aprende o castelhano em Retiro, nos bares do porto, com marinheiros e prostitutas. Seu es-panhol está ligado a espaços secretos e a certas formas baixas da vida social. Numa conferência, critica a lingua-gem estereotipada da literatura e a sociabilidade implí cita da linguagem falsamente cultivada. “Quando teremos uma linguagem para nossa ignorância?”, pergunta em seu diário. “Gos taria de mandar todos os escritores ao estrangeiro, fora de seu próprio idioma e dos ornamentos e filigranas verbais, para ver o que acontecerá com eles”.

14) O escritor sempre fala numa língua estrangeira, dizia Proust, e sobre essa frase Deleuze cons truiu sua admi-rável teoria da litera tura menor preferida, a alemã de Ka-fka, um judeu tcheco que em sua casa fala tcheco, mas escreve em alemão. A posição de Gombrowicz é mais complicada: um ho mem maduro que se vê obrigado a falar como uma criança. Em seu primeiro conto, Memória da maturidade, Gombrowicz se colocou nessa posição.

15) O castelhano é uma língua menor na circulação cul-tural do século 20. Quem sabe podemos dizer o mesmo do português. São línguas na posição Gombrowicz dian-te das línguas dominantes, o francês e o inglês, onde parece correr a literatura. São línguas que constroem sua grande tradição, mas nunca estão no centro da circula-ção literária.

16) Os livros percorrem grandes distâncias, e a tradução é uma máquina voadora. Há uma questão geográfica, de mapas e fronteiras, na circulação da literatura. Do polo-nês ao francês, passando pelo espanhol, a tra dução é o espaço dos grandes intercâmbios e das circulações secretas. Ao se traduzir textos para criar outro registro de leitura que se possa botar ao lado de obras muito ins-titucionalizadas, a tradução intervém na própria literatura.

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4) Na luta contra o equívoco, o primeiro movimento do tradutor é confirmar que está entenden do bem o texto. Não porque está escrito em outra língua, que segura-mente conhece também como a língua para a qual está traduzindo, mas porque um texto de ficção sempre tem algum erro, um ponto onde a decisão sobre um sentido pode ser equivocada.

5) Por outro lado, muitas vezes os tradutores estabele-cem com o texto uma rela ção de conflito. Para mim, o exemplo mais claro é Borges, que fez uma tradução de Pal meiras Selvagens. Borges luta contra William Faulk-ner porque não gosta do estilo barroco, de uma sintaxe muito aberta, onde os acontecimentos estão à sombra da presença do narrador que por um momento pare ce que está louco ou bêbado. A primeira cena do romance é de alguém que está descendo uma escada com uma lâmpada numa noite de tormenta, e a princípio não se sabe bem quem está descendo, se se trata de uma lâm-pada, está tudo contado à maneira clássica de Faulkner. Borges ordena isso. Aí se vê algo que habitualmente não se vê numa tradução: a luta do estilo do tradutor contra o estilo do texto. Situações que o tradu tor trataria de contar de outra maneira.

6) Seria muito bom que na história da literatura se in-cluísse a história das traduções. A primeira tradu ção de Poe na França produz vários efeitos: em Mallarmé, Paul Valéry, no próprio Baudelaire que a traduziu, na literatura policial. Essa tradução começou a gerar textos que se in corporaram logo à tradição literária.

7) O antagônico à experiência da tradução de narrativa é a de poesia. Ela parece impossível de antemão. Alguém pode dizer que uma poesia realmente funciona quando está escrita na língua materna em que se lê. Tudo o que se lê fora da língua materna são versões que nem sem-pre se aproximam da eficácia verbal que tem o poema. Por isso, habitualmente os tradutores de poe sia são os próprios poetas. E tanto é assim que os poetas incorpo-ram os textos que traduzem como se fossem suas pró-

Page 22: revista 18-exilio-dowload

QuANDO tODOS eStãO SóS num inverno já distante, quando morava em Paris, costumava frequentar as reuniões de um pequeno grupo de exilados latino-americanos. recordo que os argentinos liam a Tribune Internationale, principalmen-te quando Julio Cortázar publicava um artigo nesse jornal. Alguns poucos liam a Tel Quel, uma revista cara demais para jovens desempregados, sem permissão para trabalhar. em todo caso, nessas reuniões clan-destinas, quase sempre realizadas num estúdio próxi-mo à gare d’Austerlitz, o medo, a paranoia e os insul-tos faziam parte das discussões. e havia também um jornal clandestino, amores clandestinos e traições po-líticas, mas tudo isso pertence a uma outra narrativa.

Paris era – talvez ainda seja – a capital dos exilados. durante esses encontros, ouvi histórias de perdas sucessivas, relatos de humilhações e violência. Uma amiga salvadorenha me contou como conseguira fugir de el Salvador em dezembro de 1981, quando vários povoados foram bombardeados por militares do exér-cito, que usavam sofisticadas armas norte-americanas para combater a guerrilha no norte da região de mora-zán. Argentinos, uruguaios e chilenos também conta-ram episódios terríveis: histórias que, de certo modo, expressavam diferentes experiências sobre o exílio.

o banimento de milhões de pessoas de seu país de origem foi um das maiores flagelos do século passa-do. em seu ensaio clássico Reflexões sobre o exílio, edward Said assinala que “o exilio, ao contrário do nacionalismo, é fundamentalmente um estado de ser descontínuo... Uma solidão vivida fora do grupo: a privação sentida por não estar com os outros na ha-bitação comunal” 1. Um determinado estado expulsa certas pessoas, negando-lhes a dignidade e a identi-dade. esses sobreviventes em terra estranha – ou, às vezes, refugiados em sua própria terra – tentam es-tabelecer um novo conjunto de filiações e lealdades, mas ao mesmo tempo há em sua vida uma série de perdas: “de perspectiva crítica, de reserva intelectual, de coragem moral” 2.

A frase que eu mais ouvia desses amigos e conhe-cidos era: “Quando eu voltar para o meu país...”. A maioria voltou ao país de origem e só alguns poucos permaneceram na França. Lembro do relato de um psicanalista carioca que, ao voltar para o rio, passou dois dias sem sair do apartamento de sua família; de vez em quando abria a cortina da sala para ver a pai-

sagem, as pessoas, o mundo exterior. Sentia pânico, sentia-se sufocado e percebeu que seu lugar não era mais aquela cidade nem qualquer outra de seu país. embora eu tenha participado do movimento estudantil no período de 1968 a 1979, felizmente não saí do bra-sil como exilado. eu era apenas um expatriado que queria viver longe do meu lugar. estava farto da cen-sura, da repressão, do ambiente opressivo e de toda a brutalidade do governo dos milicos. Quando ganhei uma bolsa de um instituto espanhol para estudar em madri, não hesitei em ir embora do brasil. Foi minha primeira viagem à europa, uma viagem que seria bre-ve, mas se prolongou por quatro anos.

depois de algum tempo distante da terra natal, as re-miniscências, a percepção e a compreensão do país de origem adquirem espessura, e até mesmo a língua materna pode ser recalcada. beckett, expatriado em Paris, escreveu em francês. Quando penso no exílio interior, no exílio como sentimento de perda – real ou simbólico –, penso também em algumas personagens beckettianas, que não sabem para onde ir porque não têm nenhum lugar para ir. o escritor polonês Joseph Conrad, também expatriado – embora ele se julgasse um exilado –, sofreu na pele e na pena o desafio de escrever em inglês. É como se Conrad traduzisse a si próprio, recalcando sua língua materna que, no entan-to, estava viva no seu pensamento, como uma intrusa inevitável.

de algum modo, os exilados são tradutores numa pá-tria alheia. A todo instante, e até mesmo nos sonhos, eles vivenciam a tensão entre o que ficou para trás, distante e inalcançável, e a presença de outra cultura, à qual ele adere com maior ou menor empatia. Talvez para essas pessoas o mundo inteiro seja uma terra es-trangeira. ou, como escreveu o poeta iraquiano Abd al-Wahab al-bayati:

“Ninguém conhece o outro neste exílioTodos estão sósE o coração do mundo é feito de pedraNeste reino do exílio.”

1 Said, Edward. Reflexões sobre o exílio, trad. Pedro Maia Soares, Companhia das Letras, 2003, pág. 50

2 Idem, pág. 57

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677=

Guimátria

Memória

PorMilton Hatoum

Memórias dos anos passados no exterior, onde o indivíduo vive um “estado de ser descontínuo” e “o coração do mundo é feito de pedra”

O escritor Milton Hatoum em Paris, 1981

miccea mlk xy`k

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89=

Guimátria

línguasSua voz não parece mais legível. Ontem pediu um copo d’água à filha. Ela lhe trouxe a foto de uma mulher meio esquiva. Tirada quando ele trabalhava de garçom na Ca-lifórnia. Vieram-lhe fiapos da mexicana. Ainda conseguia se lembrar da noite em que, entre o inglês, o espanhol e o português, as palavras começaram a lhe faltar. A mexica-na disse que o mesmo ocorria com um irmão. Que eram tantas as palavras, de tão diferentes fontes e sabores, que concentravam em si tamanha quantidade de matizes e sentidos, que alguns como eles dois já não conseguiam guardá-las. Que estes, ao chegarem numa idade, só sa-biam apresentar um arrazoado de sons impenetráveis à volúpia comum do entendimento. “E assim é”, ela suspi-rou mirando os pés descalços.

fronteirasQuando na esquina ergui o braço, suspeitei não estar mais no dia que eu dava como certo. Senti uma fisgada a cortar a tarde pelo meio, a tarde agora em completo desalinho, sem face definida, ora me deixando como que solto do quadro, ora me integrando tanto a tudo que eu me lançava em instintivas braçadas, tentando uma eva-são. Parou um táxi. Entrei. Não consegui indicar o rumo ao motorista. Falei apenas que me levasse. Que no caminho eu lembraria. E ele foi me levando muito lentamente, meio curvado, olhos comprimidos, como se estivéssemos a ponto de ultrapassar uma linha delicada, sim... uma fron-teira...

idílioÀ beira da calçada, pensava se valeria mesmo a pena fa-zer a última visita a um amigo sem memória. Chovia. Os carros passavam e lhe mandavam lama – rajadas de hu-milhação que lhe faziam bem, como se assim pudesse se imolar um pouco para o amigo que nem o reconhecia mais. Esse homem à beira da calçada ia mudar de país. Em palpitação caminharia pela passarela que conduz ao avião e só sairia dele na cidade coberta de neve. Todo mo-lhado, resolveu ver o amigo. Este abriu os olhos, ensaiou algo feito um sorriso. A enfermeira disse que ele voltaria à tona, sim. E afastou-se. O homem que ia embora para o frio desamarrou-o das grades do leito, deixou-o nu, ele próprio despiu-se. Deitou-se ao lado. Perdeu também a consciência - e o voo, a viagem...

lenguasSu voz es ke no se la puede entender. Ayer demando un

vazo de agua a la ija . Eya le trucho una foto de una mu-

jer desdenyada. La foto esta, la kito el, kuando estava

lavorando de garson en California. Le vino akodrarse de

la meksikana. Aun se akodrava de akeia noche kuando

tuvo la mankura de palavras en inglez, en espanyiol i

en portugez. La meksikana dicho ke lo mismo era lo ke

le afitava a su ermano. Ke eran munchas las palavras

ke tienen tantas maneras i savores de sentimento, ke

munchos komo eyos, ya no podrian akodrar. Ke estos

a ayegar a una edad solo se presentan komo una com-

prension de sonidos ke no se podian entender. “I ansina

es”, eya sospiro mirando se los piezes deskalsos.

frontierasKuando en la punta de la kaleja levanti el brazo, ya sos-

pechi ke no era el dia ke ke me avia parecido. La tadre

me se korto al medio i en kompleto desalinyo ke me de-

java aryento i al mismo tempo afuera de eya reuchindo

salir kon mis brazos. Se kedo um taxi. Entri, no le pudi

dizir ande me iva al konductor. Le diche ke me yeve . Ke

en el kamino me iva akodrar. El konductor me fue ye-

vando, avagar avagar, abokado, kon los ojos apretados,

komo si stavamos a passar por sovre un punto delikado,

si...una frontiera...

RomanzaKaminando en la kaleja, stava a pensar si se me plazia

azer una ultima vijita a un amigo ke se le avia tomado el

tino. Azia luvia. Los otomobiles ivan passando i lo ensu-

ziavan de lodo – esto le parecia komo un kastigo ke le

azia bien , por ansina poder perdonar um poko al amigo

ke no lo iva rekonocer. El hombre ke kaminava por la ka-

leja iva trokar de payiz. Kon palpitacion, iva kaminar en

diresion al avion i solo de el se va a salir em una ciudad

tapada de nieve. Todo mojado, toma la decision de ver

al amigo suyo. El amigo avrio los ojos i komo ke izo una

sonrisa. La ke lo kudiava dicho ke komo cierto el se va

arebivir. I se alecho. El ombre ke se iva para el frio, lo kito

al hazino de las kodras de su kama , lo desnudo, i a el

mismo se desnudo. Se echo a su lado. Pedrio tanbien el

tino - i el vuelo, i la viaje...

Ficções da ausência

PorJoão Gilberto Noll

tradução para o ladino Clara Kochen e Yildiz Alcalay

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À DeRivA SiN DiReKSYON

dihqd

Page 24: revista 18-exilio-dowload

viver de instinto e achar imensas as eras acumuladas em nome dos teus próprios dezesseis anos e levantar bem cedo nos domingos de inverno e ligar pra namorada mesmo que ela ainda não tenha acordado direito, fazer um sanduíche de quatro fatias de queijo lanche, sair de casa, tomar o ônibus até o centro e do centro até o bairro ipanema, descer na pracinha redonda de quatro pistas e caminhar até a margem do rio que na verdade é um lago, o que não faz a menor diferença e sem relacionar nem por um segundo o nome do bairro à beleza da praia famosa em veraneio cartão postal, entrar no clube de windsurfe, deixar sua mochila num canto, carregar a prancha até a areia, depois o mastro, a bolina e a vela, as varetas e o trapézio que tu usará porque sempre está ventando forte e tu não liga de velejar sozinho naquele minuano de rajadas usando apenas um colete de neoprene que fica apertado na altura do peito, mas tudo bem [...] passar de seis a catorze horas, incluídas aí distrações e alongamentos fisioterápicos, escrevendo o seu próximo livro, apertando os próprios braços e pernas que já mostram os quarenta anos, oito de pouca movimentação física relevante, sem contar a distância e sem catalogar o aspecto estrangeiro que assumiram aqueles dias, anos, em que tu desafiava a própria resistência ao deslizar lá no meio do lago indo cada vez mais pra longe da praia, sem imaginar que aquele gosto (aquela parte que teu corpo e a ousadia desenhavam contra a natureza) acabaria neste filme que passa dentro da tua cabeça quando

você desliga o computador e vai ao restaurante a quilo a uma quadra do teu prédio, ao banco pagar as contas, embora as contas possam ser pagas na página do banco disponibilizada na internet, ao cinema com aquela amiga que nunca acha quem queira acompanhá-la nos filmes de autor que ela tanto gosta, e pra onde não é possível voltar, entre ariel, pelo menos não em instinto, e não com toda essa maturidade que tu conquistou, não fisicamente, mas ainda assim a mesma pessoa, muscular, aquilo de melhor da vida, é o que estou tentando dizer [...] comprei um esqueite californiano três meses atrás, o ortopedista garantiu se tratar da maior loucura que um homem adulto responsável poderia cometer, alguém me disse que homens adultos se dividem entre os que tiveram e os que não tiveram autorama quando eram crianças, o mundo de hoje é obviamente muito mais complexo do que isso, o próprio equipamento de windsurfe é mais complexo e nada tem a ver com a lógica do equipamento de windsurfe que eu usava quando comecei a velejar três décadas atrás jamais imaginando que windsurfe evoluiria para o kitesurfe, sei lá, às vezes tudo isso não passa de um monte de nomes em inglês, mesmo quando tomo o ônibus e vou até a barra da tijuca e caminho até praia e fico olhando aquelas pipas coloridas e fecho os olhos, respirando fundo pelo nariz, soltando ar pela boca, e depois abro os olhos e fico olhando aquelas dezenas de pessoas e seus brinquedos, não invejo, não sinto que o tempo passou, só fico observando quieto até me distrair.

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620=

Guimátria

Ficções da ausência

PorPaulo Scott

tradução para o ídiche Frania L. Hochman e Sonia Lea Bachar

veNtANiAS

ic oet hiiwqiexb ic oi` ohk`xh oe` hpihqpi` ohiel oarl

oe` ,ox`i ovkrf rpiic oet orn`p oi` ,zexec rhln`frbp`

oe` ,xrhpiee oet brh rwihpef oi` ixt xrcpi` oiihytie`

h`d if f` hqiiee ec yh`k ,rhidxag rail oiic ev orbpilw

uieecpq ` jif ok`n ,hwreerbtie` ov`bpi` hyip j`p jif

ox`t ,aehy oet oiib qiex` ,frw qrwxrhq`lt xit hin

hpbrb ic fia xrhprv oet oe` ,xrhprv ofia qeaehe` ohin

ofia oq`b xit oet lvrlt owicpix oi` oiib oiix` ,`nrp`ti`

q`c q`ee oe` ,rxrf` o` wihkix fi` q`ee ,jiih oet brxa

ev rcpebrq oiiw ocpiax`t oe` ,cexrhpe` oiiw hyip hk`n

ic oet hiiwp`y ic ev `w`ix`w hpbrb ic oet orn`p qrc

oiix` .jrlhx`w hq`t xrnef ic oi` ryf`lt rhnix`a

,lwpiee ` oi` y`h ic of`l ,txrqcpiee oet aelw oi` oiib

mieahq`n mrc j`pxrc ,cn`f mrc fia ryp`xt ic otrly

liiee ,ovep hqree ec q`ee lbrf ic hex ic oe` oiile`a

ev hyip jic hx` qr hpiee rwx`hy ` hf`la wicprhy

o`hrbp` hpiee mrp`epin owx`hy mrc hin oiil` orlbrf

oi` l`ny xic fi` q`ee rpixt`rp oet lhqree ` hin x`p

...qie` hyip hk`n qr xra` ,hqexa ic oet jiid ic

mrc oi` hpikrxrb oiix` or'dry ovxrt fia qwrf oiibkxec

xrtxrw xryit`xrh`iqit ic orbpehk`ne` ic

ic jif owixc ,jea owicpnew mrc wecpaiixy ,orbpebree`a

,ox`i wivxrt ic oiiy ofiiee q`ee qit oe` hprd rprbii`

,hiiee iee oliiv hyip ,xrtxrw oet bpebree`a wepiiee oet ,hk`

,brh rpri oet orfqie` ocnrxt mrc oxwitiq`lw hyip oe`

rprbii` oiic oqexrbtie` hq`d ec xrklree oi` ,ox`i

l`n qrcri jiih ohin oi` jif hlrhyrb oe` ,qprhqifrx

mrh xrc f` jif hlrhyrbx`t hyip ,brxa oet xrhiiee

oa`d hen xrc oe` xrtxrw oiic oet liih xrc q`ee)

mlit mrc oi` jef owicpr hree ,( xeh`p ic obrw hl`nrb

mrc qie` hyrl ec oree ,t`w oiic oi` jx`c` hiib q`ee

q`ee `liw ` oet hp`x`hqrx oi` hqiib oe` ,xrheitn`w

rpiic ol`v`a wp`a mev ,oipa oiic oarl q`b oi` jif hpitrb

hrpxrhpi` oet lhrla oi` ol`v orw orn yh`k zepeayg

cpiixt rpri hin `piw oi` .xec haielxr wp`a xrc q`ee

hin oiibhin liee q`ee xrvinr l`niiw hyip hpitrb q`ee

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,l`ix` oyieev .ornew wixev jrlbrn hyip fi` qr iee oe`

rvp`b ic hin hyip oe` hpihqpi` oi` hyip wiyh`k

hv`xh xra` yifit hyip ,hbif`a hq`d ec q`ee hiiwtiix

q`c fi` q`c hxilewqen ,o`fxrt xralrf xrc mrc

a`d ji` ...ob`f ev xiaext ji` q`ee oe` ,oarl oe` rhqra

xrc .wixev oh`p`n iixc hiiwq xrp`ix`til`w ` htiewrb

xrc oia ji` f` hxrkifx`t xin h`d hqicrt`hx`

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xrn xriif ,jrlcprhyx`t fi` hlree rwihpiid

oe` wib`l ic hin o`h ev hyipx`b h`d oe` hxiviltn`w

hveprb a`d ji` q`ee txrqcpiee oet ohprnexhqpi` ic

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j`n j`pxrc oe` ,l`n okxec htel ic qiex` f`l oe` f`p

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.jif qrbx`t ji` fia mex` jif wew fiela ,hyip jif xix orbp`brbkxec

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ohp'ee

Page 25: revista 18-exilio-dowload

Você vive no astral, naquela riqueza de espírito, percorrendo o caminho que te levará a algo especial, à arte, à vitória sobre a morte, à honra, ao encontro de Deus, qualquer Deus, o seu Deus.

Aquele algo.O Charlie Parker, um desses malucos, por exem-

plo, lá, naquela angústia, buscando algo, um jeito de combinar alguns sons de modo único, aquela coisa as-tral, meio mágica, aquela riqueza de espírito, uma combi-nação de sons que é só uma combinação de sons, que seria só uma combinação de sons se não fosse algo. Mas esses malucos têm essa obsessão de estar sempre bus-cando algo, esse fogo astral, muito louco. Manter esse fogo astral, muito louco, sempre aceso. E o Charlie Parker, lá, só como exemplo, depois de combinar esses sons to-dos, daquele jeito muito louco, falando diretamente com o Deus, encontrando a não morte, ainda vai lá tomar he-roína, ficar bebendo no escuro, vivendo situações muito loucas, astrais, ricas de espírito, umas mulheres no meio etc., essas paradas todas do Dionísio – a arte, a morte, o Zé Celso, o vinho, a heroína, as combinações de notas, naves espaciais etc.

Só que o cara é saci monstro, o Dionísio. Por-que é uma companhia heavy demais. Tu não pode ficar zanzando demais com ele por aí, eletricidade 24 horas por dia, o Jimi Hendrix, por exemplo, lá combinando sons, combinando sons, sem parar, umas mulheres no meio, aquela angústia, aquele fogo astral elétrico que não desli-ga nunca, tu não pode ficar sendo, lá, muito louco experi-mental transgressor de vanguarda o tempo todo, baban-do lá no bar, com o Dionísio na cola, naquela angústia do fogo astral.

Porque o Dionísio pega um cara que nem o Glau-ber Rocha, por exemplo, lá, naquela angústia, tentando explicar aquelas paradas todas, naquela imortalidade as-tral, a arte, a morte, a geopolítica internacional universal, a morte vindo, não se contentando em ficar fazendo mu-siquinha agradável, de elevador, esses filmes assim que não enchem o saco, que tu entende fácil, bebendo Ypio-ca Prata no boteco com aquele ator secundário de novela de televisão, que sempre fazia papel de jagunço nessas novelas de Pantanal, de painho, essas parada, mas que

agora está quase morrendo, a cara vermelha, o Dionísio sugando a última gota do fogo astral do ex-jagunço de novela de televisão, acontece o quê? Neguinho explode. Dionísio explode o cara.

O Dionísio não tem limites.O Dionísio vai tentar te matar, não tenha dúvidas.

A não ser que você o expulse logo de tua alma. Para isso, evite contato algum com qualquer fogo astral, com com-binações de notas muito loucas, aqueles discursos dio-nisíacos do Glauber, o fogo das paixões revolucionárias. Ouça só música que não incomoda de jeito nenhum, só a que você nem repara. Nada de pensamentos sobre a morte e essas paradas muito loucas. Se conforme com a morte, que essa não tem jeito. Cabelo repartidinho, gra-vata, que é um acessório que vai deixar você muito mais bonito etc..

Dionísio pode até não conseguir explodir você, assim, muito fácil. Mas Dionísio é sensível e temperamen-tal. Se você não morrer de tantas combinações de notas muito loucas, se você não morrer dessa postura muito louca experimental transgressora de vanguarda, desse fogo astral elétrico ligado no máximo, e essas Ypioca Pra-ta, as mulheres no meio, aquele discurso todo do Glauber Rocha no boteco da esquina, Dionísio vai embora, num gesto de autoexílio, e vai deixar você muito só.

A pancreatite aguda necro-hemorrágica que o Dionísio botou em você, aquelas combinações de sons muito loucos, aqueles discursos todos sobre o Glauber Rocha e sobre as paradas muito loucas experimentais transgressoras de vanguarda que você ia escrever, ia fil-mar, ia tocar, a Ypioca Prata, essas paradas, te deixaram com aquela cara meio esquisita de quem não sabe o que dizer para o jagunço da novela da televisão, aquela cara de quem não entende o entusiasmo daquele poeta seu amigo muito louco bebendo Ypioca Prata, berrando coisas estranhas a respeito do Dionísio. O seu amigo querendo ir muito mais fundo nas questões do espírito, da arte, da morte, muito mais longe, com muito mais fogo astral do que o Zé Celso, o Glauber Rocha, essas paradas.

No exílio de Dionísio, você nunca perderá a sen-sação de que está faltando algo.

eStANDO O DiONíSiO NO exíliO

48

1066=

Guimátria

Tu bibes en lo astral, en akella rikeza de espíritu,

recorrendo el camino ke bay a levarte para un something

especial, para la arte, para la bictoria sobre la muerte,

para la huenrra, al encuentro de Diós, un Diós cualkier,

el Diós tuyo.

Akello something.

Lo Charlie Parker, uno desos lokos, por exemplio,

lá, en akella angústia, buscando something, un jetcho de

juntar unos sonidos de manera única, akello lance astral,

un pokito mágico, akella rikeza de espíritu, una combina-

ció de sonidos ke és solo una combinació de sonidos, ke

sería solamente una combinació de sonidos si no fuera

something. Pero esos lokos tienen esa obsessió de estar

siempre cazando something, eso fuego astral, mó loko.

Mantener eso fuego astral, mó loko, siempre encendido.

Y lo Charlie Parker, lá, sólo como exemplio, despues de

juntar esos sonidos todos, dakello jetcho mó loko, ha-

blando directo con el Diós, encuentrando la no-muerte,

todabia bay lá tomar heroinita, kedarse en las borrache-

ras de la obscuridad, bibiendo situaciones mó lokas, as-

trales, ricas de espíritu, una mina en lo medio etc., esos

lances todos del Dionísio – la arte, la muerte, lo Zé Celso,

lo vino, la heroinita, las combinaciones de nuetas, naves

espaciales etc.

Pero esto tío és un sacy monstruoso, el Dionísio.

Porke és una companhía heavy demás. Tu no puedes ke-

darte zankeando demás con ello por aí, eletricidad 24 ho-

ras por día, lo Jimi Hendrix, por exemplio, lá combinando

sonidos, combinando sonidos, nonstop, unas minas en

lo medio, akella angústia, akello fuego astral elétrico that

never goes out, tu no puedes kedarte sendo, lá, mó loko

experimental transgresor de vanguardia todo el tiempo,

baboseando lá en lo mamadero, con lo Dionísio gorro-

neándote, nakella angústia del fuego astral.

Porke lo Dionísio embroca un tipo tipo lo Glauber

Rocha, por exemplio, lá, en akella angústia, tentando ex-

plicar akellos lances todos, nakella imuertalidad astral, la

arte, la muerte, la geopolítica internacional universal, la

muerte venindo, no se contentando en kedarse haciendo

una milonguita agradábile, de ascensor, esas peliculas

tipo ke no te hinchan las pelotas, ke tu entiendes easy,

chupando Ypióca Prata en el mamadero com akello ator-

zito secundario de la nobella en la tele, ke siempre hacía

papel de capanga nesas nobellas de Pantanal, de paizito,

esos lances, pero ke ahora está kasi muriendo, la cara

bermeja, lo Dionísio mamando la última gota del fogo

astral del ex-capanga de nobella de tele, y ké pasa, che?

Neguiño explode. Dionísio explode el tío.

Lo Dionísio no tiene limites.

Lo Dionísio bay tentar matarte, no tenga dudas.

Al minos ke tu lo expulsas luego de tu alma. Para esto,

evita contactar algun fuego astral cualkier, con combina-

ciones de nuetas mutcho lokas, akellas arengas dionisía-

cas de Glauber, el fuego de las pasiones revolucionárias.

Oye sólo las milonguitas ke no rompen bolas de jetcho

ningún, sólo la ke tu ni reparas. Nada de pensamientos

sobre la muerte y esos lances mó lokos. Confórmate con

la muerte, ke esa no hay jetcho. Peinado divididito, corba-

ta, ke és un aderezo ke bay te dejar mutcho más sexy etc.

Dionísio puede mismo no conseguir explodirte,

ahí, muy fácil. Pero Dionísio és sensible y temperamental.

Se tu no morir de tantas combinaciones de nuetas mu-

tcho lokas, se tu no morir desa pose mó loka experimen-

tal transgresora de vanguardia, deso fuego astral eléctri-

co ligado en lo maximum, e esas Ypióca Prata, las minas

en lo medio, akella arenga toda del Glauber Rocha en

lo mamadero de la eskina, Dionísio bay embuera, en un

gesto de auto-exílio, y bay dejarte muy soziño.

La pancreatitis aguda necro-hemorrágica ke lo

Dionísio te metió, akellas combinaciones de sonidos mó

lokos, akellas arengas todas sobre lo Glauber Rocha y

sobre los lances mutcho lokos experimentales transgre-

sores de vanguardia ke tu ia escribir, meter en películas,

en milongas, la Ypióca Prata, esos lances, dejárante con

akella cara un poco rara de kien no sabe lo ké decir para

lo capanga de la nobella de la tele, akella cara de kien no

entiende el entusiasmo dakello poeta amigo tuyo mutcho

loko mamando Ypióca Prata, berrando cosas extrañas a

respecto del Dionísio. Tu amigo keriendo ir mutcho más

fondo en las kestiones del espíritu, de la arte, de la muer-

te, mutcho más far away, con mutcho más fuego astral

do ke lo Zé Celso, lo Glauber Rocha, esos lances.

En lo exílio de Dionísio, tu nunca bayas a perder

la sensació de ke está faltando un something.

eStANDO el DiONíSiO eN lO exiliO

PorAndré Sant’Anna

tradução para o portunhol selvagemRonaldo Bressane

Ficções da ausênciazelba eifipe`ic xy`k

Page 26: revista 18-exilio-dowload

Por Mario Bellatin

50

Perto do aeroporto da cidade vive um homem que ape-sar de ser um homem imóvel – em outras palavras, um homem impedido de se mover – é considerado um dos melhores treinadores de pastor belga malinois do país. Divide a casa com sua mãe, uma irmã, seu enfermeiro-

-treinador e trinta pastores belga malinois adestrados para matar quem quer que seja com uma única mordida na jugular. Não são conhecidas as razões por que, ao entrar no quarto onde esse homem passa os dias recluso, alguns visitantes intuem uma atmosfera que guarda rela-ção com o que se poderia considerar o futuro da América Latina. Se alguém pergunta sobre a sua condição, esse homem costuma dizer, em sua quase incompreensível maneira de falar, que uma coisa é ser um homem imóvel e outra, um retardado mental.

Diante da fachada da casa veem-se algumas jaulas. Cada uma contém um par de cães, que passam o dia inteiro lançando latidos agressivos às pessoas que circu-lam pela calçada. Se alguém se aproxima das grades, a fúria desatada é tamanha que os animais acabam que-brando algum dente ao morder as barras ou atacam uns aos outros sem piedade. Cada vez que isso acontece, o homem imóvel emite bramidos agudos, motivados certa-mente pelo desespero de não poder sair para espantar os intrusos. Os cães ficam agitados e o enfermeiro-treinador deve acudir para aliviar sua ansiedade. Usa brinquedos resistentes a mordidas profundas e um número limitado de palavras em francês, idioma oficial para adestrar pas-tores belga malinois.

O homem imóvel passa a maior parte do dia pedindo que levem os cães ao seu quarto. Tem diferentes sons prepa-rados para recebê-los. Alguns são quase imperceptíveis. É curioso comprovar como, a partir daqueles ruídos tão insignificantes, os animais se jogam, param, latem, uivam e voltam a sair do quarto. Algumas visitas, e às vezes tam-bém o próprio enfermeiro-treinador, asseguram que o ho-mem imóvel conseguiu dominar os cães dessa maneira porque dedicou cada minuto de sua vida a observar seus comportamentos. Certa vez, um grupo de intelectuais co-nhecedores do caso classificou o homem imóvel como o psicólogo de cães mais proeminente da cidade.

Em outra das paredes, há um grande mapa da América Latina, onde estão circuladas em vermelho as cidades em que a criação de pastores belga malinois está mais desenvolvida. Alguns visitantes, diante desse mapa, são levados a pensar no futuro do continente.

Em cima da mesa onde está o aparelho telefônico, cujo fone o homem imóvel mantém o tempo todo amarrado em volta da cabeça, encontra-se uma ilustração colori-da que mostra mais de uma dezena de naves espaciais percorrendo o espaço sideral. O homem imóvel pede sempre à sua irmã que deixe por um instante o trabalho com as sacolas plásticas e suba ao segundo andar para recortar algumas figuras para ele. Solicita também que insira em cada uma das naves as imagens dos cães que guarda em certos álbuns. A irmã não dá atenção. E mais, nunca subiu ao andar de cima da casa onde moram.

Com certa regularidade, o homem imóvel manda o enfer-meiro-treinador discar o número da Central de Informa-ções. Pretende averiguar, na realidade e não no universo das ilustrações, quantos pastores belga malinois cabem dentro de uma nave espacial.

Quando estão a ponto de dormir – os dois juntos na mes-ma cama – o homem imóvel tem a esperança de que na manhã seguinte uma ligação da Central de Informações os acorde para informar quantos pastores belga malinois cabem numa nave espacial. Enquanto a esperada co-municação não se materializa, o homem imóvel se con-sola pensando que os círculos marcados em torno das cidades do mapa da América Latina são, sem sombra de dúvida, os espaços mais adequados para que se realize sem dificuldades a criação de pastores belga malinois. Assim o comprovam os ensaios levados a cabo em ou-tros planetas do sistema solar.

Todos os dias o homem imóvel diz ao enfermeiro-treina-dor que gostaria de ter novamente uma conversa com o menino que trinta anos atrás lhe disse que tinha escrito um livro sobre cães heróis. Essa lembrança faz com que cada vez mais frequentemente se esqueça da relação existente entre os pastores belga malinois e as naves es-paciais. Esquece também, inclusive, do mapa da América Latina, que fica pendurado numa das paredes do quarto. O homem imóvel costuma dizer ao enfermeiro-treinador que deseja conversar com o menino por volta das seis da tarde, hora exata em que o menino abandonou o pavilhão do hospital onde o homem imóvel estava internado. Seu desejo às vezes se torna um tanto exaltado. O enfermeiro-

-treinador busca então diversas formas de acalmar sua ansiedade. A mais usual consiste em levar ao quarto to-dos os cães que moram na casa.

363=

Guimátria

Ficções da ausência

cãeS HeRóiS

mixeab mialk

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Antonio Dias, Project for a People’s Flag, 1972Serigrafia sobre papel Schöller Stern Edição Tangente, Heidelberg50 x 70 cm – Coleção Particular

Page 28: revista 18-exilio-dowload

Destaques da programação do Centro da Cultura Judaica e uma seleção de livros, filmes, discos e músicas sobre o exílio e temas relacionados

Casa de Cultura de Israel

Rua Oscar Freire, 2500. São Paulo. SPCEP 05409-012. TEL.: (11) 3065 4333 [email protected]

Horário de funcionamento3ª a Sáb., das 12h às 19h / Dom., das 11h às 19h

NO CENTRO E MAIS UM POUCO

Apoie A diversidAde culturAlVocê pode se tornar um mantenedor, investir em nossa programação gratuita, patrocinar nossosprojetos especiais e ainda obter benefícios e visibilidade por meio das leis de incentivo fiscal.UTILIZE A LEI ROUANET.

exposições | mostrAs e festivAis | progrAmAção infAntil | Ação educAtivA | Ação sociAl | e muito mAis ...

Descubra toda a programação no novo site www.culturajudaica.org.br

Ilustração/ Andrés Sandoval

Entre em contato conosco

Projetos e Patrocínios tel: (11) 3065.4330 e/ou 7868.4096 [email protected]

Page 29: revista 18-exilio-dowload

Com curadoria de Anat Falbel e realizada em paralelo à 9ª Bienal de Arquitetura, a exposição tem por objetivo resgatar o papel que os profissionais imigrantes tiveram na formação da paisagem arquitetônica e urbana de São Paulo. “A produção brasileira do imigrante formado no corpo de uma cultura europeia moderna, eminentemente internacional e cosmopolita, é problematizada”, diz Falbel. “Tanto no que diz respeito à arquitetura quanto de suas expressões afins e complementares, bem como no diálogo que envolveu arquitetos imigrantes e nacionais durante o período de intensa fermentação cultural entre as décadas de 1930 e 1960.” Esses arquitetos, engenheiros, fotógrafos, designers e empreendedores imobiliários foram agentes modernizadores do espaço da cidade.

O espaçO e O estrangeirO na cidade de sãO paulO – exíliO e MOdernidade

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Acontece no centro

Até 12 de fevereiro no Centro da Cultura Judaica. Mais informações: www.culturajudaica.org.br

cONceRtO De ABeRtuRA, 3/12, 21H: HOuRiA AïcHi e leS cAvAlieRS De l’AuRèS.

direção musical: Benjamim Taubkin.

Convidados da programação: Ag Dahmane Mamatal (Touareg do Mali), Ana Luisa Lacombe, Breno Lerner, Cidade Invertida, Daniel Warren e equipe da Click Oficina, Eduardo Jorge, Houria Aïchi (Argélia), José Goldenberg, Les Cavaliers de L’Aurès (França), Nilton Bonder, Saul Kirshbaum, Simone Chevis, Wanaghli Rissa (Touareg do Niger), Yai Dalal (Israel)

O Ciclo Multicultural encerra, anualmente, as atividades do Centro da Cultura Judaica. A palavra Bamidbar, “no deserto” em hebraico, abre o Números (quarto livro do Pentateuco), que relata os 40 anos que os judeus passaram no deserto, quando se formou a ideia de um povo unido. Esse é o ponto de partida de uma reflexão ampla e multicultural que enxerga esse espaço geográfico não sob o viés da falta (de água, de vida), mas como solo fértil de culturas. Com direção musical de Benjamin Taubkin, o Ciclo se organiza em torno de convidados da Argélia, do Mali e de Israel e se prolonga em diversas atividades, panorama do que acontece no CCJ ao longo do ano: oficinas para adultos e crianças, contação de histórias, workshop de gastronomia, palestras, concertos e espetáculos.

9º ciclO Multicultural

De 03 a 8 de dezembro de 2011Centro da Cultura Judaica.

Programação completa: www.culturajudaica.org.br

Arranha céus como chaminés de

transatlântico, desenho Edgardo Minond

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Page 30: revista 18-exilio-dowload

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O GRANDE GATSBY SCoTT FITzGerALd, ED. COMPANHIA DAS LETRAS

Quem é Jay Gatsby?, perguntam-se os convidados do milionário cujas festas são um convite aos excessos. Aos poucos, o narrador Nick Carraway terá a oportunidade de descobrir a verdade. A estranheza sentida pelo homem do interior na cidade grande ou no exterior, assim como a falta de integridade e a superficialidade dos ricos, são temas neste romance americano clássico.

CANÇÃO DO EXíLIO

GonçALVeS dIAS, EM POESIA E PROSA COMPLETAS, ED NOVA AGUILAR

Um dos poemas brasileiros mais conhecidos, copiados e parodiados, marco do Romantismo no país. Dias escreveu-o em 1843, cinco após deixar o Brasil para estudar em Coimbra, Portugal, derramando-se em nostalgia e nacionalismo, dois temas então em voga.

ULISSES

JAmeS JoYCe, ED. CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

Adaptação da Odisseia para um dia em Dublin, talvez o principal romance do século XX. Stephen Dedalus e Leopold Bloom percorrem a cidade. O primeiro havia ido embora, mas precisa voltar devido à doença da mãe. Bloom enfrenta encarnações urbanas de personagens como Polifemo e as sereias. O próprio Joyce estava em exílio voluntário pela Europa nos sete anos que levou para escrever o romance, entre 1914 e 1921.

PARIS É UMA FESTA

erneST HemInGWAY, ED. BERTRAND BRASIL

O livro existe devido a uma feliz coincidência envolvendo o autor, que após três décadas recuperou por acaso em um hotel o diário que mantivera na juventude na Paris de Ezra Pound, James Joyce, Gertrude Stein e Scott Fitzgerald. Escrito durante um período em que muitos artistas e escritores americanos deixaram o país e se espalharam pela Europa, é uma crônica-tributo à cidade e aos anos 1920.

O EXíLIO E O REINO

ALberT CAmUS, ED. RECORD

A última obra – e único livro de contos – escrita por Albert Camus explora a marginalização do estrangeiro na sociedade, sua estranheza e a recusa de aceitar um papel que lhe é destinado. O reino é sua história particular, o paraíso onde encontra a felicidade. O desterro é tema recorrente na obra de Camus, aparecendo, ainda que sem ser muito explorado, em suas obras mais conhecidas, A peste e O estrangeiro.

AS ARMAS SECRETAS JULIo CorTázAr, ED. JOSÉ OLYMPIO

O exílio voluntário do escritor argentino Julio Cortázar em Paris, a partir do final dos anos 1940, transformou-se mais tarde em obrigatório, quando passou a se alinhar com o socialismo, irritando a direita e os militares de seu país. Cortázar transformou Paris e a França em seu cenário preferencial, às vezes conectando-as de maneira fantástica a Buenos Aires nos contos do livro, uma de suas obras mais célebres.

O CREPÚSCULO DO MACHO

FernAndo GAbeIrA, ED. CODECRI

Os nove anos que Fernando Gabeira, hoje político nacionalmente conhecido, passou em países estrangeiros durante a ditadura, vagando à base de sexo, drogas e rock’n’roll, são narrados de maneira bastante pessoal neste livro – uma continuação de O que é isso, companheiro? Afastado da luta política, sem nada a fazer para mudar o curso da História, o autor começa a questionar as próprias crenças antes do retorno ao Brasil com a anistia.

PARIS NÃO TEM FIM

enrIQUe VILA-mATAS, ED. COSAC NAIFY

O livro, cujo título é o mesmo de um dos capítulos de Paris é uma festa, de Hemingway, é uma narrativa divertida e um tanto melancólica sobre os dois anos que o escritor espanhol Enrique Vila-Matas passou na capital francesa, num apartamento minúsculo onde morou Marguerite Duras, em companhia de artistas, intelectuais e travestis.

DESONRA

J.m. CoeTzee, ED. COMPANHIA DAS LETRAS

De que maneira uma simples alteração da rotina pode levar uma vida a desmoronar? No livro de J.M. Coetzee, prêmio Nobel de Literatura de 2003, a resposta está na jornada de David Lurie, professor universitário cuja existência entra em parafuso a partir do momento em que não consegue mais se encontrar com a prostituta que visitava semanalmente. Os acontecimentos vão levá-lo a uma viagem perigosa rumo à fazenda onde mora a filha, no interior da áfrica do Sul, um lugar onde sua vida anterior – e a própria ideia de civilização – parece não fazer mais sentido..

ODISSEIA

Homero, ED.34

Depois da Guerra de Troia, narrada na Ilíada, livro do qual é parcialmente uma sequência, o guerreiro Ulisses tenta voltar para casa numa jornada que vai durar 17 anos e envolvê-lo em aventuras com um ciclope, Polifemo, Possêidon e sereias, tendo ainda de lutar contra os pretendentes de Penélope, sua esposa. Um dos pilares da literatura universal.

A DIVINA COMÉDIA dAnTe ALIGHIerI, ED. ATELIÊ

O próprio Dante oi um exilado, consequência de ter se envolvido na política de Florença. Em um dos versos de seu poema, uma viagem imaginária ao Inferno, narra as humilhações da vida entre estranhos. Escrito quando o autor já se tornara um errante e finalizado pouco antes de sua morte, em 1321.

ROBINSON CRUSOÉ

dAnIeL dAFoe, ED. ILUMINURAS

Poucas histórias têm mais versões que a do náufrago que acaba numa ilha deserta, publicada na Inglaterra em 1719. Crusoé, um homem simples, vive tendo como companhia apenas os animais selvagens da ilha até encontrar o nativo Sexta-Feira. A história é sobre a luta do homem contra a natureza e a corrupção trazida pela civilização, representada pelos mercadores de escravos.

OS 39 DEGRAUS

ALFred HITCHCoCk, 1935

Richard Hannay (Donat) está de férias em Londres, onde conhece uma mulher misteriosa que menciona um homem envolvido numa trama de espionagem. Personagens longe de casa envolvidos em enredos misteriosos são um tema recorrente na obra de Hitchcock. O filme faz parte de sua “fase inglesa”, quando, mesmo jovem, foi o maior nome do cinema britãnico, já reunindo elementos que mais tarde estariam em obras americanas como Intriga internacional.

CASABLANCA mICHAeL CUrTIz, 1942

Neste clássico do cinema mundial, todos são exilados de alguma forma. Rick Blaine está no Marrocos por não ter para onde ir. O líder da resistência Victor Laszlo e sua mulher, Ilsa, encontram na cidade um porto seguro antes de outra viagem. Franceses e alemães também estão longe de casa. Apesar do pano de fundo político, mais importante é a história de amor entre os personagens vividos por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman.

OS INCONQUISTáVEIS

CeCIL b. demILLe, 1947

No século XVIII, uma inglesa é condenada à morte e tem a pena comutada para a escravidão nas colônias britânicas da América, onde

passa a ser disputada pelo capitão do barco que a transportou e um homem que tenta provocar uma guerra entre índios e brancos. No elenco, Gary Cooper e Boris Karloff.

UM REI EM NOVA YORK

CHArLIe CHAPLIn, 1947

O rei de um país chamado Estróvia escapa de uma revolução e vai para Nova York defender o uso pacífico da energia nuclear, mas acaba se envolvendo em confusões. Chaplin, expulso dos EUA em 1952, havia se tornado ele mesmo um exilado, recusando-se a voltar para a Inglaterra e adotando a Suíça como lar. É seu último filme como ator principal.

EXODUS oTTo PremInGer, 1960

Baseado no livro homônimo de Leon Uris, conta a história do navio Exodus, que levou judeus sobreviventes da Segunda Guerra dispostos a lutar pela criação de Israel. A embarcação é interceptada por forças britânicas, mas seus passageiros insistem em chegar a seu destino. Obra grandiosa e considerada um “épico sionista” que moldou a visão do público americanosobre o conflito do Oriente Médio.

PARIS VIVE À NOITE

mArTIn rITT, 1961

Dois músicos americanos de jazz, Ram Bowen e Eddie Cook, há anos escolheram Paris para viver, conseguindo uma plateia que lota um clube para vê-los todas as noites. Mas se envolvem com duas mulheres que

livros filmes

Por Alexandre Rodrigues

Guia

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24 é libertado e conhece o mundo pela primeira vez. A história acompanha sua transformação em imperador fantoche durante a ocupação da China pelo Japão e sua prisão, capturado pela URSS e entregue ao governo revolucionário.

EXíLIO

PAUL CoX, 1994

Em 1860, exilado numa ilha depois de ser flagrado roubando ovelhas, jovem enfrenta a solidão e o desespero. Passa a enfrentar os fantasmas do passado até conhecer um ser enigmático que lhe oferece auxílio espiritual.

TERRA ESTRANGEIRA

WALTer SALLeS, 1996

Marco da chamada retomada do cinema brasileiro, nos anos 1990, o filme lida com a solidão dos imigrantes. Depois da morte da mãe e de ficar com o dinheiro retido pelo Plano Collor, Paco aceita entregar um pacote misterioso em Portugal. Acaba se envolvendo com uma garçonete e perseguido por bandidos.

O PRíNCIPE

UGo GIorGeTTI, 2002

Depois de vinte anos vivendo em Paris, um intelectual é obrigado a voltar para São Paulo e reencontrar a família. Descobre uma cidade, moderna e veloz, que não conhece mais, e amigos que também não são mais os mesmos.

NEW ORLEANS: MUSIC IN EXILE

roberT mUGGe, 2006

eterna”. O enredo trata dos judeus no Antigo Testamento, ação encenada em uma sinagoga nos tempos atuais, indo e voltando do passado ao presente para mostrar que a perseguição continuava.

LIKE A ROLLING STONE

bob dYLAn, HIGHWAy 61 REVISITED

Depois de uma turnê pela Inglaterra, Dylan estava exausto. A canção, de 1965, reflete seu espírito e a sensação de desenraizamento de uma geração. Regravada pelos Stones e por Hendrix, entre outros, é uma das músicas mais influentes de todos os tempos.

PER UM PUGNO DI SAMBA CHICo bUArQUe, PER UM PUGNO DI SAMBA (1969)

Nos 15 meses em que viveu autoexilado na Itália, no final dos anos 1960, o cantor gravou dois discos. Se o segundo foi logo incorporado como parte de sua discografia, Per un Pugno di Samba, parceria com o maestro Enio Morricone, só foi lançado no Brasil em 2006, tornando-se item de colecionador. Canções de Chico, vertidas para o italiano, ganharam grandiloquentes arranjos de Morricone.

AQUELE ABRAÇO

GILberTo GIL, GILBERTO GIL (1969)

Um dos três grandes nomes da MPB obrigados a deixar o Brasil nos anos 1960, Gil gravou a canção pouco antes de partir. Bairros, escolas e personalidades do Rio são lembradas na música, um hino de amor à cidade que ganhou grande significado devido à ausência dos exilados.

LONDON, LONDON CAeTAno VeLoSo, CAETANO VELOSO E TRANSA (1971 E 1973)

Caetano gravou dois álbuns em Londres. O primeiro, de 1971, é dirigido aos que ficaram no Brasil, como em Maria Bethânia (“please send me a letter/ I wish to know things are getting better”) e em London, London, canção sobre a capital inglesa que fez sucesso nos anos 1980 numa versão do grupo RPM. No segundo há experimentos como o uso de reggae, ritmo que começava a tomar a Inglaterra.

EXILE ON MAIN ST

THe roLLInG SToneS, ExILE IN MAIN ST. (1972)

Na primavera de 1971, devendo em impostos mais do que a soma de seus bens, os Rolling Stones deixaram a Inglaterra para morar em várias partes da França. Na luxuosa vila escolhida por Keith Richards, em Nellcôte, estacionou o caminhão com os equipamentos de gravação. Isolados e submersos em drogas em um porão, os Rolling Stones usaram o blues e o soul para criar um álbum hoje reverenciado como um dos maiores da história do rock.

SOMETHING ABOUT ENGLAND THe CLASH, SANDINISTA! (1980)

No final dos anos 1970, as tensões entre ingleses e imigrantes começaram a aflorar, inspirando esta canção que já nos primeiros versos ironiza os compatriotas que imaginam “vinho e rosas” se a Inglaterra for deles novamente. O disco foi gravado de maneira itinerante, entre a Inglaterra, Estados Unidos e Jamaica. The Clash foi a banda que melhor cantou os expatriados e esquecidos.

NOTURNOS

FrÉdÉrIC CHoPIn, THE NOCTURNES (NELSON FREIRE)

Reverenciado como maior compositor da Polônia, Chopin na verdade passou quase metade da vida em Paris – deixou a terra natal aos 20 anos e morreu aos 39. Mesmo assim, compôs inspirado em suas raízes polonesas, tornando-se mais soturno à medida em que ficava claro que, por complicações políticas, não poderia voltar. Seus noturnos ajudaram a fazer o público em Paris se solidarizar com a causa polonesa.

VOLVER CArLoS GArdeL, 20 GRANDES ExITOS

Tango que Gardel canta no filme El dia que me quieras, lançado pouco depois de sua morte, em 1935. Os versos de Alfredo le Pera, compositor de muitos sucessos do cantor, falam de uma volta dolorosa e a constatação de que nada mais é como antes.

A ESTRADA ETERNA

kUrT WeIL, DER WEG DER VERHEISSUNG (1936)

O alemão foi um dos mais célebres intelectuais a deixar seu país com a ascensão do nazismo, indo morar primeiro na França. Lá compôs, entre 1934 e 1936, junto com o escritor Franz Werfel, esta ópera bíblica em quatro partes, cuja tradução é “A estrada

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querem a volta deles para os EUA, deixando-lhes divididos entre o amor e a música. Participação de Louis Armstrong e trilha sonora de Duke Ellington.

BARRY LYNDON

STAnLeY kUbrICk, 1975

Americano de nascimento, Kubrick trocou Hollywood por Londres nas últimas décadas de vida. Seus filmes se tornaram mais herméticos a partir da mudança, sempre lidando com o deslocamento de alguma maneira. Em Barry Lyndon, segundo dessa fase, o protagonista é um irlandês que por uma série de aventuras acaba incorporado ao exército prussiano. Um homem sem identidade nem lugar no mundo. A beleza da obra é única: o diretor filmou apenas com luz de velas e à luz do dia.

DA VIDA DAS MARIONETES

InGmAr berGmAn, 1980

Sombrio e depressivo, para muitos críticos o filme reproduz o espírito do diretor depois de ser preso por evasão de impostos e internado numa clínica na Suécia, partindo em seguida para viver na Alemanha. Bergman considerava-o um de seus melhores trabalhos. A trama: depois de sonhar com a morte da mulher, um homem é tomado por instintos assassinos.

O ÚLTIMO IMPERADOR

bernArdo berToLUCCI, 1987

Aisin-Gioro Puyi, declarado último imperador da China com três anos, recorda a infância na Cidade Proibida – palácio imperial no meio de Pequim – após a fundação da república. Só aos

Quando o furacão Katrina devastou Nova Orleans, em 2005, seus músicos deixaram a cidade e se espalharam pelos EUA. O documentário acompanha, meses depois, o destino deles – alguns famosos, como Dr. John – e, em certos casos, os planos de voltar para casa.

PERSÉPOLIS

VInCenT PAronnAUd, mArJAne SATrAPI, 2007

Animação baseada na história em quadrinhos com o mesmo título, acompanha a infância e adolescência da autora no Irã às vésperas da revolução islâmica. É o momento em que é mandada pelos pais para a áustria, que só deixou aos 21 para retornar a Teerã.

O CAÇADOR DE PIPAS

mArC ForSTer, 2007

Inspirado no best-seller de mesmo nome, é a história de um afegão que, quase duas décadas após sua família deixar o país com a invasão pela URSS, e agora escritor nos Estados Unidos, retorna à Cabul dominada pelo Talibã para resgatar o filho de um amigo que traiu quando criança.

JK NO EXíLIO

CHArLeS CeSConeTTo, 2010

Atingido logo na primeira leva de cassações dos direitos políticos pela ditadura brasileira, ainda em 1964, o ex-presidente Juscelino Kubitschek partiu naquele mesmo ano para a França. O documentário reconstitui a vida simples de JK, dirigindo o próprio carro e sobrevivendo com ajuda de amigos em Paris – contestando a mentira, difundida pelos governos militares, de que tinha uma das maiores fortunas do mundo.

Música

Guia

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expulsão ordenada pelos Reis Católicos em 1492 e se fixaram principalmente no Norte da áfrica, nos Países Balcânicos, na Grécia e na Turquia. Como muitos judeus falantes de ladino migraram para a América do Sul, a língua foi sendo abandonada em favor do espanhol.

língua – Ainda hoje linguistas tentam encontrar indícios da existência do que chamam de nostrático, protolíngua mãe de muitos idiomas conhecidos (uma linguagem pré-diluviana?). Seja como for, a língua é um forte elemento de identidade comum: o sentido de pertencimento a um povo pode sobreviver mesmo longe de seu território, desde que haja uma língua que sirva de suporte a uma memória e cultura comuns. Vide armênios, curdos e judeus.

MMapa – Tecnologia gráfica, hoje também virtual, que organiza em escalas diversas um território e codifica as dimensões planialtimétricas de uma região. É também uma interpretação e tradução de uma geografia. Um mapa se pauta em convenções inter ou intraterritoriais para orientar o trânsito em um país ou paisagem. Intepretado, também sentencia leituras sintomáticas da condição do intérprete, como a escolha do que é central ou periférico.

Memória – Enquanto para os surrealistas a memória era um fruto único da imaginação criadora, para a filosofia ela pode ser uma plataforma pedagógica de incursões e reparação política e moral. Interpretação de um passado que dá o teor construtivo do futuro. A psicanálise freudiana a define como índice da “indestrutibilidade do desejo”. Já Adorno a apresenta como a insistência revisionária sobre o trauma, para garantir que ele não se repita.

OOdisseia – O grande poema épico do grego Homero foi escrito no século VIII a.C., em algum lugar da antiga Jônia (hoje, Turquia). Considerada uma das obras fundadoras da

a partir de condições naturais, geométricas ou arbitrárias. Uma fronteira fixa a extensão de um local e separa Estados. Simbolicamente, traça o limite com o outro, o diferente, desígnio daquilo de que não fazemos parte. Neste sentido, compreender uma fronteira implica reconhecer uma prévia condição de “pertencimento”, o que justifica a ideia de autonomia e soberania frente ao que está além.

GGênero – Termo comumente ligado à questão da mulher, mas que na Teoria Social se refere a uma relação social produtora de diferenças. Nesse sentido é uma relação que produz dados de diferenciação, baseados ou não em fatos biológicos. Por exemplo: uma pessoa pode ser considerada mulher biologicamente, mas masculinizada socialmente, e isso ser um modo de produzir uma diferença essencializada e discriminatória, ainda que criada na relação social.

iidentidade – Modo como algo ou alguém pode ser identificado. Isso se produz a partir da percepção e indicação de semelhanças e diferenças com outras pessoas, ambientes e comunidades. Também de maneira pedagógica a partir das primeiras relações sociais, por meio da autorização ou não de comportamentos aceitos socialmente. As identidades não são intrínsecas, mas relacionais, se formam e se transformam no curso da vida.

Ídiche – O Iidisch-Taitsch (Judeu-Alemão) foi a língua asquenaze por excelência, tendo surgido na Idade Média quando da mudança de comunidades judaicas dos países de língua alemã para as regiões eslavas. Tem como base o alemão, acrescido de palavras e expressões hebraicas, aramaicas e eslavas. No início foi um veículo de expressão essencialmente verbal, mas ganhou uma rica literatura que tem como principais nomes Sholem Alechem, I. L. Peretz e Isaac Bashevis Singer, contista e romancista ganhador do Prêmio Nobel em 1978.

Imigrante – Oposto do Emigrante. Aquele que se desloca do local de origem para habitar outro território. Um imigrante leva consigo estigmas de transformações econômicas, sociais e culturais que justificam seu deslocamento. Em alguns casos, como o brasileiro, a imigração é um traço constituinte da modernidade, essencial para a construção de uma identidade nacional múltipla, que não dilui as diferenças mas busca integrá-las.

JJudeu errante – A cristandade medieval popularizou alguns mitos de caráter antissemita, sendo o mais conhecido o do “Judeu Errante”, que talvez tenha sua origem em interpretações do episódio do Livro de Gêneses (4:12-14): Caim, após matar o irmão Abel, é amaldiçoado por Deus e vaga pela Terra (esse seria o destino de todos os judeus). O Judeu Errante do mito é Ahasverus (ou Ahsuerus) e teria sido um sapateiro de Jerusalém que humilhou Jesus durante seu trajeto na Via Dolorosa. Jesus então o teria amaldiçoado a vagar pelo mundo e não morrer até o seu retorno, no Fim dos Tempos.

KKibutz – Palavra hebraica, derivada do verbo lekabetz, que por sua vez deriva da raíz hebraica Kuf-Beit-Tzadi, com o significado geral de “juntar, reunir, coletar, concentrar, arregimentar”. Significa “reunião” (como na expressão kibutz galuiot, “reunião dos exílios”), mas também “comuna”, em um sentido socialista. Nessa acepção, a palavra tornou-se famosa por nomear as colônias israelenses baseadas na posse comum da terra e dos meios de produção, que estão na origem do moderno Estado de Israel.

lladino – Conhecido também como judeu-espanhol ou djudezmo, o ladino é uma língua derivada do Espanhol medieval. Foi a língua franca das comunidades sefarditas (de Sefarad, Espanha em Hebraico) que saíram da Península Ibérica após a

Glossário

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PorFelipe Paros, Bruno Puccinelli e Lucas Oliveira

DDionísio – Deus do vinho e do êxtase, filho de Zeus com a tebana Sêmele. Em sua homenagem, eram realizados os grandes Mistérios Dionisíacos, nos quais os praticantes se embriagavam e entravam em transe, e também os grandes festivais teatrais atenienses. Foi Nietzsche, em 1872, na obra O Espírito da Tragédia, quem introduziu pela primeira vez o termo dionisíaco (relativo a um estilo de vida espontâneo e extasiado), em oposição a apolíneo (relacionado ao deus Apolo e a um espírito de ordem, harmonia e racionalidade).

eexílio/Diáspora – A palavra hebraica para diáspora é a mesma para exílio: galut, proveniente da raíz Gimel-Lamed-Hei, que significa “despir, descobrir, desvelar, revelar, abrir, publicar, expor”, mas também “ter de partir, desaparecer, ir para o cativeiro”. Nesse sentido, o exílio é sempre um processo de ser despido/despir-se e ser exposto/expor-se, no mínimo ao desconhecido. É um processo amargo de (re)descoberta de si e do outro, um processo de revelação sob o signo de um potencial desaparecimento.

ffronteira – Termo referente à delimitação de territórios, geografica e politicamente,

A líNGuA fRANcA DO exíliO

Nomes e conceitos que ajudam a entender, por identidade ou oposição, direta ou indiretamente, a ideia nunca facilmente classificável de “(re) descoberta de si e do outro”. Os termos abaixo foram retirados das matérias que compõem a presente edição.

literatura ocidental, em diversas línguas seu nome tornou-se sinônimo de um tipo de jornada, via de regra longa e repleta de atribulações e transformações pessoais. Narra o retorno de Ulisses a ítaca após 17 anos de aventuras e perigos: lá está sua esposa Penélope, que o esperou pacientemente e afugentou todos os pretendentes por meio de um truque envolvendo uma túnica que jamais ficava pronta.

PPaís – Uma região geográfica considerada território físico de um Estado soberano ou uma nação. No hebraico, duas palavras podem ser usadas: mediná (província, distrito, estado ou país, como na expressão Medinat Israel) ou éretz (chão, solo, terreno, gleba, território, país, a “Terra” em si). A ligação cosmológica que um povo pode estabelecer com um território é percebida na expressão Éretz Israel, onde éretz é tanto solo ou território quanto uma imagem da Terra em si mesma.

Passaporte – Com este documento de identidade emitido por governos nacionais, um indivíduo é reconhecido como nacional deste Estado. O passaporte autoriza o trânsito entre fronteiras com proteção legal e garante permissão de retorno ao país de origem. Papel que legitima a relação entre alguém e sua pátria.

Pertencimento – Convenção ou sensação de integrar um coletivo simbólico, com concordância de valores e aspirações. A sensação de pertencimento é sintoma da empatia com alguma subjetividade; de intimidade entre pessoa e grupo ou lugar. O “pertencimento” testa a solidez das referências de um indivíduo e recupera a história da sua relação com o coletivo.

Pogrom – Palavra de origem russa, significando “destruição”. É como ficaram conhecidos os diversos ataques dirigidos às populações judaicas do Império Russo. A partir de 1880, essas manifestações passaram a ser incentivadas pelas próprias autoridades czaristas: desta maneira o Czar

apoiava o tradicional antissemitismo cristão local, garantindo aos súditos economicamente insatisfeitos o bode expiatório já desde muito perseguido ao mesmo tempo em que forçava a emigração judaica.

Portunhol selvagem – Idioma literário nascido no Paraguai , recentemente, e tornado popular em certos círculos intelectuais no Brasil. Mescla do castelhano com o português, a língua incorpora influências do guarani, do inglês o de lo que sea. O portunhol selvagem, la lengua mais hermosa de la tríplice frontera, apresentou-se ao mundo em um manifesto assinado por artistas e poetas de diversos países, no qual os presidentes Lula e Lugo (Brasil e Paraguai) eram incitados a queimar o contrato binacional de Itaipú, datado dos tempos das recentes ditaduras civil-militares, em nombre de la maravillosa oportunidade histórica-poétika-filosófica de hacer volar uma imagem poderosa de amor a toda La gluebolândia.

ttransgênero – Tradução de transgender, termo utilizado na realidade norte-americana para se referir a pessoas consideradas divergentes do gênero sugerido por sua genitália, indicando necessidade de cirurgia transgenitalizadora. No Brasil utiliza-se mais “transexual”, precedido dos termos “homem” ou “mulher”. O assunto tem ganhado espaço na mídia pela luta de pessoas trans que questionam, por exemplo, a necessidade de se enquadrarem como doentes psiquiátricos para terem acesso a um tratamento de modificação corporal.

transgressão – Movimento que atualiza e reconfigura a norma. Se no passado essa noção atravessava as limitações e ignorâncias frente ao espaço, pautando limites morais e religiosos, hoje representa uma tensão nas práticas coletivas, que podem ou não ser excedidas. É uma ruptura que tende a ser negada ou absorvida, o movimento da novidade que poderá ser ou não aceito. Subversão da ordem e criação.

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Cartas

A casa do Povo

errATA O arquiteto responsável pela construção da sede do ICIB inaugurada em 1953 foi Ernesto de Carvalho Mange. Jorge Wilheim assinou apenas a construção do teatro, ocorrida sete anos depois no interior do mesmo prédio.

Com relação à matéria A Casa do Povo [Revista 18, número 30], escrita por Benjamin Seroussi para acompanhar o belo ensaio fotográfico de Bob Wolfenson e publicada na edição de setembro da Revista 18, cumpre prestar alguns esclarecimentos.

Embora a matéria procure reconstituir o histórico da Casa do Povo, pouco é dito sobre o perfil ideológico (laico, universalista, iídichista) que sempre a distinguiu das demais instituições judaicas de São Paulo, predominantemente sionistas. Encarando a fundação do Estado de Israel como fato laico, lugar de encontro das várias culturas da diáspora, esses judeus progressistas apoiaram e comemoraram a sua criação, sem, no entanto, considerá-la o único caminho para a afirmação da vida judaica.

Tal postura os levou a um relativo isolamento dentro da comunidade, sobretudo quando no decorrer da Guerra Fria Israel se aliou estrategicamente aos Estados Unidos e passou a adotar uma política expansionista, incompatível com os valores defendidos na Casa do Povo e com os tratados internacionais.

À luz dessa lembrança, convém reexaminar o parágrafo final de Seroussi, que termina assim: “ (...) Esses estilhaços de imagens de uma memória despedaçada mostram o que foi feito de um lugar ironicamente chamado Tzukunft (Futuro).”

Vale então perguntar: “o que foi feito” por quem? Que forças compõem o “agente da voz passiva”, estrategicamente suprimido? Trata-se de uma fatalidade? Os problemas apontados pela matéria vinculam-se ao processo histórico de evasão das elites que patrocinavam o centro de São Paulo. A isso se combina o isolamento do ICIB dentro da comunidade judaica, que preferiu apoiar instituições e direcionar recursos para projetos menos utópicos, situados em regiões mais nobres da cidade.

(...) De todo modo, vale ainda ressaltar que, apesar do mau estado de conservação do prédio, ele nunca deixou de cumprir sua função social, permanecendo de portas abertas e abrigando até hoje várias atividades culturais. (...)

Por fim, no que concerne à “memória despedaçada”, queremos dizer que esses fragmentos continuam vivos, aptos à imantação futura, apoiada pelo desenvolvimento de um novo projeto cultural para a instituição. Esse projeto está sendo pouco a pouco construído pela diretoria do ICIB e por um grupo de ex-alunos do Scholem, reunidos desde março deste ano e empenhados na recuperação do prédio, na reabertura do teatro, na constituição de um centro de cultura iídichista e no diálogo com a cultura brasileira, em suas várias manifestações. Quem viver, verá.

marina Sendacz, Presidente do Instituto Cultural Israelita Brasileiro (ICIB)(carta publicada na íntegra em www.culturajudaica.org.br/revista-18)

resposta

Prezada Marina Sendacz, fico honrado com a sua leitura critica da matéria A Casa do Povo. Gostaria de aproveitar a sua carta para desenvolver algumas idéias.

Consideramos, Joca Terron (co-editor convidado) e eu, o bairro do Bom Retiro como um palimpsesto: analisamos sua história a partir de suas configurações atuais e das lembranças de alguns dos seus moradores ou ex-moradores. Nessa perspectiva, a Casa do Povo é uma herança viva, e a revista foi “escrita sob os auspícios dos judeus progressistas” (editorial) cujo epicentro é esse prédio. Essa relevância da Casa do Povo nos levou a contemplá-la na capa e no centro geométrico da revista (na página 36/72).

Consequentemente, a matéria comentada não pode ser isolada do resto da revista. Além de permear os eixos editoriais, a Casa do Povo é citada antes e depois da matéria em questão. Antes, em um trecho da entrevista com Raquel Rolnik e depois, quando Jacó Guinsburg se refere ao yugent Club, núcleo fundamental da Casa do Povo.

Voltando à matéria em si, o texto que acompanha o ensaio fotográfico do Bob Wolfenson tem por objetivo apenas ilustrar as imagens, apresentando em poucas palavras a Casa do Povo para quem não a conhece. Fala-se então do ICIB como “vanguardista”, “experimental” e “engajado”, e dos grupos que orbitavam ao seu redor. Nada mais é dito a respeito do seu perfil ideológico por uma escolha dupla.

Em primeiro lugar, o foco da matéria não é a Casa do Povo, mas a sua representação por Bob Wolfenson, e é a memória do fotógrafo que aparece como “despedaçada” nessas imagens. Em segundo, apesar de acreditarmos que o relativo isolamento da instituição se deve à sua postura única dentro da comunidade judaica, à evasão das elites do centro da cidade (como você deixou muito claro) e a outros fatores como as divisões e cisões internas da instituição no auge da guerra fria; esse grau de complexidade não cabia neste texto introdutório.

Agradeço sua carta, que traz essa complexidade para o debate e desenvolve a visão do ICIB em relação às dificuldades encontradas pela instituição e frisa as novas perspectivas desenvolvidas desde março deste ano

benjamin Seroussi, Editor da Revista 18 e Responsável pela programação do Centro da Cultura Judaica – Casa de Cultura de Israel

Job: 17637-015 -- Empresa: Neogama -- Arquivo: S17637-015-AFA-BRA-AN Mapa Logo transparente 18.5x29.9_pag001.pdfRegistro: 56337 -- Data: 19:32:07 11/11/2011

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