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ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS REVISTA BRASILEIRA DE publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional ISSN 1517-4115

Revista ANPUR volume11 no.1

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ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

ISSN 1517-4115

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REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAISPublicação semestral da ANPUR

Volume 11, número 1, maio de 2009

EDITOR RESPONSÁVELGeraldo Magela Costa (UFMG)EDITORA ASSISTENTE

Jupira Gomes de Mendonça (UFMG)COMISSÃO EDITORIAL

Ana Fernandes (UFBA), Carlos Antônio Brandão (Unicamp), Lilian Fessler Vaz (UFRJ), Luciana Corrêa do Lago (UFRJ)CONSELHO EDITORIAL

Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ), Ângela Lúcia de Araújo Ferreira (UFRN), Brasilmar Ferreira Nunes (UnB), Carlos Antonio Brandão (Unicamp), Ermínia Maricato (USP), Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG),

Henri Acselrad (UFRJ), João Rovati (UFRS), Lia Osorio Machado (UFRJ), Linda Maria de Pontes Gondim (UFC), Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBA), Margareth Pereira (UFRJ), Maria Cristina da Silva Leme (USP), Nadia Somekh(Mackenzie), Norma Lacerda Gonçalves (UFPE), Paola Berenstein Jacques (UFBA), Ricardo Cesar Pereira Lira (UERJ),

Roberto Monte-Mór (UFMG), Rosa Acevedo (UFPA), Sandra Lencioni (USP), Sarah Feldman (USP), Wrana Maria Panizzi (UFRS)COLABORADORES

Almir Francisco Reis (UFSC), Célia Ferraz de Souza (UFRGS), Ester Limonad (UFF), Frederico de Holanda (UnB), Frederico Guilherme Bandeira de Araujo (UFRJ), Klaus Frey (PUCPR), Laura Machado de Mello Bueno (PUC-Campinas),

Lígia Helena Hahn Lüchmann (UFSC), Luiz Fernando Scheibe (UFSC), Maria Ângela de Almeida Souza (UFPE), Maria Lucia Refinetti Martins (USP), Pedro de Almeida Vasconcelos (UCSal e UFBA), Rosa E. Acevedo Marin (UFPA),

Sarah Feldman (USP), Tamara Tania Cohen Egler (UFRJ), Thêmis Fagundes (UFSC)

PROJETO GRÁFICOJoão Baptista da Costa Aguiar

CAPA, COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO Ana Basaglia REVISÃO

Ana Paula GomesIMPRESSÃO CTP

Fabracor

Indexada na Library of Congress (EUA)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais – v.11, n.1,2009. – Associação Nacional de Pós-Graduação ePesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editor responsável Geraldo Magela Costa : A Associação, 2009.

Semestral.ISSN 1517-4115O nº 1 foi publicado em maio de 1999.

1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional). II. Costa, Geraldo Magela

711.4(05) CDU (2.Ed.) UFBA711.405 CDD (21.Ed.) BC-2001-098

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ARTIGOS

9 ESPAÇOS URBANOS SEGUROS – A TEMÁTICA DA

SEGURANÇA NO DESENHO DA CIDADE – MariaJulieta Nunes de Souza e Rose Compans

25 PLANEJAMENTO EM ÁREAS DE TRANSIÇÃO

RURAL-URBANA – VELHAS NOVIDADES EM NOVOS

TERRITÓRIOS – Lívia Izabel Bezerra de Miranda

41 ECOVILLE – CONSTRUINDO UMA CIDADE

PARA POUCOS – Ricardo Serraglio Polucha

57 AMAZÔNIA – DISPUTAS MATERIAIS E

SIMBÓLICAS – Suyá Quintslr

73 ENTRE A NATUREZA E O ARTIFÍCIO –PERCEPÇÕES E PERSPECTIVAS NOS PROJETOS PARA

PARQUES URBANOS E ORLAS FLUVIAIS NA

AMAZÔNIA – Mauricio de Brito e Cunha Valladares

89 O DIREITO DAS FAVELAS NO CONTEXTO DAS

POLÍTICAS DE REGULARIZAÇÃO – A COMPLEXA

CONVIVÊNCIA ENTRE LEGALIDADE, NORMA

COMUNITÁRIA E ARBÍTRIO – Alex Ferreira Magalhães

105 EFEITOS LOCAIS DE POLÍTICAS PÚBLICAS

FEDERAIS – OBSERVAÇÕES A PARTIR DA LEI DE

INFORMÁTICA NO DESENVOLVIMENTO DO SETOR

DE SOFTWARE DE CAMPINA GRANDE, PB –Fernando Ramalho e Ana Cristina Fernandes

PALESTRA

129 PLANEJAMENTO E GESTÃO ESPACIAL DA

POBREZA – Ananya Roy

RESENHAS

143 Cartografias sociais e território, de Henri Acselrad(Org.) – por Ana Maria Daou

147 Espaço Público: do urbano ao político, de SérgioLuís Abrahão – por Sarah Feldman

ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

S U M Á R I O

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ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL – ANPUR

GESTÃO 2009-2011PRESIDENTE

Leila Christina Dias (PPGG/UFSC)SECRETÁRIO EXECUTIVO

Elson Manoel Pereira (PPGG/UFSC)SECRETÁRIA ADJUNTA

Maria Inês Sugai (PGAU-Cidade/UFSC)DIRETORES

Ana Clara Torres Ribeiro (IPPUR/UFRJ)Lucia Cony Faria Cidade (POSGEA/UnB)

Maria Lucia Refinetti Martins (PPGAU-FAU/USP)Silvio José de Lima Figueiredo (NAEA/UFPA)

CONSELHO FISCAL (TITULARES)Eloisa Petti Pinheiro (PPGAU/UFBA)

Ester Limonad (POSGEO/UFF)Rodrigo Ferreira Simões (CEDEPLAR/UFMG)

CONSELHO FISCAL (SUPLENTES)Celia Ferraz de Souza (PROPUR/UFRGS)

Elis de Araújo Miranda (Mestrado em Planejamento Regional e Gestão de Cidades/UCAM-Campos)

Iná Elias de Castro (PPGG/UFRJ)

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E D I T O R I A L

O presente volume reúne sete artigos apresentados no XIII Encontro Nacional daAnpur, realizado em maio de 2009, na cidade de Florianópolis. Foram selecionadospela comissão editorial, a partir de um total de 18 indicados pelos membros do comi-tê científico do encontro. Este tem sido um procedimento adotado desde o primeirovolume da Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, ou seja, divulgar textosselecionados a partir da produção científica de professores, pesquisadores, alunos depós-graduação, entre outros, que a cada dois anos apresentam trabalhos nas sessões te-máticas do encontro nacional da Anpur. O objetivo é divulgar mais amplamente essaprodução, expressa em abordagens disciplinares e transdisciplinares que caracterizama área de conhecimento do Planejamento Urbano e Regional (PUR). Nas sessões temá-ticas do XIII Encontro foram apresentados trabalhos sobre planejamento e políticaspúblicas, produção e gestão do território, transformações na configuração do espaçourbano, escalas e redes espaciais, ambiente e sociedade, urbanismo, cultura e identi-dade, novas tecnologias, território e ensino.

Os três primeiros artigos trazem reflexões sobre aspectos relevantes de projeto eplano urbanos ainda pouco explorados na produção científica da área do PUR. O pri-meiro artigo, de autoria de Maria Julieta Nunes de Souza e Rose Compans, discute atemática da segurança em propostas de desenho urbano da cidade. Contém impor-tantes contribuições desenvolvidas a partir das seguintes questões: existe uma relaçãodireta entre configuração físico-territorial e segurança? Em caso positivo, quais seriamos dispositivos, mecanismos e formas capazes de promovê-la? A pesquisa tem comoobjeto de observação empírica intervenções urbanas realizadas em áreas de favelas noRio de Janeiro por ocasião da realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007. O segun-do artigo, de autoria de Lívia Miranda, aborda questões relacionadas ao planejamentode áreas de transição rural-urbano. A autora observa que, apesar dos graves problemasrelacionados ao uso e ocupação destas áreas, elas não têm sido foco de planejamento.São, então, exploradas as razões para isto, por meio de reflexões sobre as análises e es-tudos existentes sobre o tema e as formas como essas áreas têm sido consideradas nosmarcos legais/institucionais e na prática do planejamento, especialmente a partir daaprovação do Estatuto da Cidade. O terceiro artigo, de autoria de Ricardo Polucha,discute questões polêmicas do planejamento urbano, a partir de um estudo de casoobservado em Curitiba. O planejamento de Curitiba tem sido foco recorrente de aná-lises, mas o artigo de Polucha traz avanços, por meio de um estudo sobre as conse-quências decorrentes da implantação de uma proposta de planejamento da expansãourbana da cidade, o que lhe permitiu aprofundar reflexões críticas sobre as relaçõesentre o poder público e o setor privado na produção de periferias urbanas, valorizadaspor investimentos realizados pelo primeiro e apropriados pelo segundo.

A questão ambiental permeia as análises dos dois artigos seguintes, ambos foca-dos na Amazônia. No primeiro, Suyá Quintslr resgata quatro discursos que têm per-meado essas análises – o desenvolvimentista, o da mercantilização da natureza, o pre-servacionista e o socioambiental – para, fazendo uso de evidências da observaçãoempírica, avançar no entendimento da luta simbólica e material que diversos grupos

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travam na busca pela legitimação de seus diferentes interesses em relação a esse terri-tório e ao uso de seus recursos naturais. No artigo seguinte, Maurício Valladares pro-move uma discussão sobre outro tema relevante para a área do PUR: os projetos de par-ques urbanos. A relação entre natureza, cultura e artifício permeia esta leitura críticasobre o urbanismo atual. São analisados projetos para orlas fluviais com matizes na-turalistas, projetos de revitalização urbana marcados pela naturalização do artifício,parques ecológicos e parques lineares interdisciplinares e multifuncionais que, segun-do o autor, apontam para uma abordagem socioecológica de cidade. A novidade queo artigo oferece está na escolha do objeto empírico, cidades amazônicas, local privile-giado para a reflexão sobre o tema, especialmente sobre a possibilidade de superaçãoda dicotomia observada em análises sobre natureza e artifício.

O sexto e o sétimo artigos abordam, respectivamente, direito urbanístico e efei-tos locais decorrentes de política pública sobre a Lei de Informática. O primeiro, deautoria de Alex Ferreira Magalhães, discute a forma como se manifesta a instigante ecomplexa “convivência entre legalidade, norma comunitária e arbítrio” nas favelas. Oautor analisa esta convivência com base em informações sobre transações imobiliáriasobtidas em entrevistas realizadas com moradores de uma favela situada na cidade doRio de Janeiro. Observa que ali as relações jurídicas são marcadas por três determina-ções distintas: os usos e costumes locais, estabelecidos em processos de negociação, asapropriações do sistema legal estatal e as imposições e/ou soluções arbitrárias naresolução de litígios, que exibem o aspecto de violência latente, presente nas relaçõessociais de maneira geral. A partir daí, e baseando-se em teorias sobre a natureza dasnormas jurídico-urbanísticas, o autor avalia as transformações que estariam sendo ob-servadas no que ele denomina o direito vivo nas favelas.

Fernando Ramalho e Ana Cristina Fernandes são os autores do último artigo dopresente volume. Utilizam o caso da produção de softwares em Campina Grande, Paraí-ba, para discutir os efeitos locais decorrentes de aplicação da Lei de Informática. Os re-sultados da pesquisa certamente contribuem, como afirmam os autores, tanto para aper-feiçoar o marco regulatório brasileiro sobre produção de softwares, quanto para avançarna produção do conhecimento sobre a análise e o planejamento local/regional no Brasil.

Este volume da RBEUR publica também a tradução de palestra proferida porAnanya Roy, da Universidade da Califórnia em Berkeley, durante o XIII Encontro Na-cional da Anpur. Partindo da afirmação de que “a consolidação da pobreza é uma ten-dência global”, Ananya apresenta uma visão abrangente e consistente sobre “planeja-mento e gestão espacial de pobreza” no atual estágio do processo de mundializaçãoeconômica e socioespacial, reflete sobre alguns avanços necessários e afirma a esperan-ça de que o planejamento (renovado e participativo), nesse novo milênio, será capazde lidar com as questões levantadas sobre a pobreza, “superando, assim, o legado dodeterminismo ambiental”.

Duas resenhas integram e completam o presente volume. A primeira, elaboradapor Ana Maria Daou, apresenta a coletânea de artigos Cartografias sociais e território,organizada por Henri Acselrad e publicada em 2008. A segunda, de Sarah Feldman,é sobre o livro de Sérgio Luís Abrahão intitulado Espaço público: do urbano ao políti-co, também publicado em 2008.

GERALDO MAGELA COSTA

Editor responsável

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ARTIGOS

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ESPAÇOS URBANOS SEGUROSA TEMÁTICA DA SEGURANÇA NO DESENHO DA CIDADE

M A R I A J U L I E T A N U N E S D E S O U Z AR O S E C O M P A N S

R E S U M O O artigo trata de uma nova tendência surgida no desenho urbano que in-corpora estratégias espaciais visando à segurança pública. A partir de metodologia desenvolvidanos países centrais e difundida por agências multilaterais, tais estratégias são adotadas no Brasilpela Secretaria Nacional de Segurança Pública, no âmbito do Programa Nacional de Seguran-ça Pública com Cidadania. Com base na bibliografia pertinente ao assunto, pretende-se apresen-tar os principais aspectos deste programa, sua base metodológica, bem como os pressupostos teóri-cos que o fundamentam. Transformado em metodologia de projeto urbano, vem sendo aplicadoa várias metrópoles brasileiras, através do chamado Projeto Espaços Urbanos Seguros, que consis-te em um conjunto de intervenções físicas em bolsões de pobreza. A experiência enfocada nestetrabalho ocorre no Rio de Janeiro, em 30 áreas de favelas, e foi adotada por ocasião da realiza-ção dos Jogos Pan-Americanos em 2007.

P A L A V R A S - C H A V E Espaços urbanos seguros; segurança pública; espaço ecriminalidade.

INTRODUÇÃO

O texto a seguir busca questionar a recente emergência da temática da segurançapública no pensamento e nas práticas do planejamento urbano nacional e internacio-nal. No panorama brasileiro, passa a se inserir nas políticas adotadas no Brasil a partirdo ano 2003, e especialmente a partir de 2007, ano em que a Secretaria Nacional deSegurança Pública (SENASP), órgão vinculado ao Ministério da Justiça, institui o PRONASCI – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania. Com ele e ou-tras intervenções nas áreas e setores tradicionalmente atinentes à segurança – como osistema prisional e o aparato policial – se introduz a dimensão sócio-ambiental, quepassa a focalizar o “espaço” não apenas como local de ocorrência de delitos, mas tam-bém como objeto de intervenção direta, visando o combate à criminalidade e amplia-ção dos níveis de segurança.

Considerando a rápida propagação deste pensamento e de suas aplicações no país,tudo leva a crer que esta será uma variável incondicional nos próximos projetos urbanos,especialmente naqueles voltados às áreas onde habita a população de menor renda das ci-dades metropolitanas. Basta referir que procedimentos consagrados no debate das meto-dologias dos “Espaços Urbanos Seguros” passaram a constituir as bases das intervençõespropostas no âmbito do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), ao menos na versãoadotada para a cidade do Rio de Janeiro.

O destaque às questões vinculadas à segurança pública nos documentos e proposi-ções urbanísticas em âmbito internacional pode ser comprovado pela instituição da Leinº 95-73, em 1995, na França, que prevê a inclusão de critérios de segurança pública nosprocedimentos do licenciamento urbano, cuja denominação fala por si só: Loi d’Orienta-

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tions et de Programation relative à la Securité. Também na Inglaterra, em 1994, foi insti-tuída regulação similar denominada Planning Out Crime, que sinalizava a incorporaçãodo tema “segurança” na regulação urbanística, ultrapassando o limite dos procedimentospoliciais, inscrevendo-se preventivamente no próprio desenho da cidade. Para tanto, umconjunto de conhecimentos vem ganhando força, e o que nos interessa é aprofundar nocontexto da pesquisa que apenas se inicia.

Na América Latina, este debate se destaca em duas frentes: de um lado o INVI – Ins-tituto de la Vivienda, da Universidade do Chile, em que um núcleo de pesquisadores as-sumiu a vanguarda nesta linha de pesquisa. De outro lado, sobressai a reflexão com basena experiência colombiana de gestão descentralizada das Juntas Comunales nos bolsões depobreza de Bogotá, que impulsionou o desenvolvimento de metodologias incluindo acomponente “segurança” na análise e na intervenção governamental, sobretudo em áreasem que habita a população de baixa renda.

No âmbito do planejamento urbano que desejamos aqui enfocar, a segurança se in-sere nas intervenções físico-urbanísticas, na escala do chamado “desenho urbano”. Pau-tando-se na crença de que comportamentos humanos em geral, sejam individuais e/oucoletivos, se condicionam direta ou indiretamente pelas configurações físicas do espaço,são propostos dispositivos, mecanismos e formas que prometem ampliar o grau de segu-rança em assentamentos residenciais da cidade.

Para abordar o assunto, este texto situa as seguintes indagações: (1) existe uma rela-ção direta entre configuração físico-territorial e segurança? (2) em caso positivo, quais se-riam os dispositivos, mecanismos e formas capazes de promovê-la? Optou-se por um du-plo caminho de investigação: buscar as origens da emergência deste pensamento e práticano Brasil e no mundo, e acompanhar sua trajetória de introdução no Brasil, destacandoas características e formatos de aplicação no país.

Sem pretender esgotar a temática, dado os limites do presente trabalho, apresenta-mos inicialmente as principais características do PRONASCI, entendido como a versão bra-sileira do modelo internacional. Em seguida, visando compreender os conceitos que em-basam o modelo, abordamos o debate teórico pertinente ao tema, enfocando as trêsvertentes que o influenciam. Por último, na intenção de elucidar as formas concretas deaplicação destas metodologias no país, focalizamos a experiência do Rio de Janeiro, ondefoi implantado o Projeto Espaços Urbanos Seguros por ocasião dos Jogos Pan-America-nos, ocorridos em 2007.1

O PRONASCI

A Lei nº 11530 de 24/10/2007 instituiu o Programa Nacional de Segurança Públi-ca com Cidadania (PRONASCI) no Brasil, face à necessidade de institucionalização de umnovo instrumental capaz de responder de modo mais amplo e contemporâneo à realida-de catastrófica de falta de segurança no país. Foi precedido por uma parceria formada noano de 2003 entre a SENASP (Ministério da Justiça) e o Programa das Nações Unidas pa-ra o Desenvolvimento (PNUD) para a implementação do Projeto Segurança Cidadã, comvistas a “uma série de atividades para amenizar a situação da violência no Brasil”, basean-do-se no princípio de que a segurança não se limita à atuação policial, mas de “poder an-dar em espaços urbanos seguros, resolver conflitos de forma pacífica, integrar as comunida-des para evitar rixas, entre outras coisas.”2

E S P A Ç O S U R B A N O S S E G U R O S

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1 Os dados apresentadosno presente trabalho fazemparte do relatório final depesquisa sobre a implanta-ção do Projeto Espaços Ur-banos Seguros, realizadamediante convênio entre aSecretaria de Estado deAção Social e Direitos Hu-manos e o Instituto Metodis-ta Bennett.

2 Retirado do texto “ProjetoSegurança Cidadã”, datadode 04/09/2007, colhido noPortal Segurança com Cida-dania, www.segurancacidada.org.br, em 24/07/2008.

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Segurança cidadã é um conceito adotado pelas agências internacionais que se associaà criação de “um marco conceitual adequado” para lidar com a questão da segurança, co-mo evidencia documento recente do Banco Interamericano de Desenvolvimento:

No está demás recordar que la propia superación del concepto de seguridad nacional (asoci-ado a una concepción de regímenes no democráticos) y del concepto de seguridad del Esta-do (asociado a una concepción centrada en el Estado) ha tenido lugar a partir de la instala-

ción del concepto de seguridad ciudadana (que ubica el problema bajo el paráguas de unaconcepción centrada en el ciudadano y en la comunidad). (BIRD, 2007, p.XIX)

Tal definição supõe que a polícia repressora do passado estaria sendo “flexibilizada”,cedendo lugar a práticas mais inclusivas e de respeito ao “cidadão”. Aponta ainda para umareformulação da ideia de segurança pública limitada à ação da corporação policial e do sis-tema prisional, sendo que a responsabilidade, agora, é dividida com a “coletividade”.

Neste mesmo documento, o BIRD declara seu empenho em apoiar iniciativas de se-gurança cidadã na América Latina e Caribe, tendo canalizado recursos superiores a 200milhões de dólares para implementação deste projeto em diferentes países do continente,como deixaram claras experiências explanadas no Foro Interamericano de Seguridad y Con-vivencia Ciudadana, realizado em setembro de 2005 em Medelin.

Vale mencionar que alguns anos antes, uma equipe formada por especialistas – den-tre os quais, Luiz Eduardo Soares e Antonio Carlos Biscaia – havia escrito um ácido do-cumento-diagnóstico intitulado “Projeto de Segurança Pública para o Brasil”, no qual re-conheciam a impotência das instituições governamentais, ao longo do tempo, em darrespostas à altura dos desafios existentes. No documento eram apontados, de um lado, osfocos principais da criminalidade em nossa realidade, em todo seu significado socioeco-nômico, ao mesmo tempo em que eram denunciados os problemas ancestrais dos apara-tos governamentais, como a corrupção dos órgãos de segurança e a inadequação quanti-tativa e qualitativa da estrutura que compõe o sistema penal.3 Embora minimizado emsua importância, este documento marcou fortemente o debate e as decisões tomadas so-bre o assunto.

Como se nota, o PRONASCI surge de uma dupla influência, de um lado, do anseio enecessidade de revisão das políticas de segurança pública, cobrados pela sociedade, e deoutro, por força do alinhamento às políticas modelizadas pelas agências internacionais co-mo o PNUD e o BIRD, que se adiantaram na proposição destas reformas em países latino-americanos, propondo técnicas amadurecidas na Europa e no Canadá.4 O formato brasi-leiro espelha-se em ambas as vertentes.

Nos documentos oficiais que apresentam o PRONASCI ao público, consta que o pro-jeto articula políticas de segurança com ações sociais, prioriza a prevenção e busca atingiras causas que levam à violência – sem abrir mão das estratégias de ordenamento social esegurança pública –, tendo como principais eixos: a valorização dos profissionais de segu-rança pública, a reestruturação do sistema penitenciário, o combate à corrupção policiale o envolvimento da comunidade na prevenção da violência.

A partir de diagnóstico baseado no “Projeto de Segurança Pública para o Brasil”, fo-ram traçadas 94 medidas que conformam o programa, centradas em duas grandes priori-dades: (1) ações estruturais, que consistem em medidas de modernização das instituiçõesde segurança pública e do sistema prisional; (2) programas locais, ações de natureza sociale normativa, desenvolvidos nas regiões indicadas pelo PRONASCI.

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3 O documento deixava àsclaras a grande complexida-de do problema que se ti-nha à frente, que demanda-va ações multifacetadas e contextualizadas, muitoalém das medidas estáti-cas, específicas e pontuaisque predominavam nas polí-ticas até então e, na maior-ia das vezes cunhadas pormilitares ou policiais, qua-dros dos serviços de segu-rança pública.

4 O Canadá foi pioneiro naimportação deste conheci-mento para as Américas, echegou ao Chile, onde asegurança cidadã encon-trou um campo fértil parase radicar.

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No que tange à revisão da corporação policial, o PRONASCI inclui medidas que be-neficiam e valorizam o policial, desde a oferta de programas habitacionais específicos pa-ra aquisição de casa própria até a criação de bolsas de incentivo à formação.

O público-alvo das ações preventivas do PRONASCI são os jovens na faixa etária en-tre 15 e 30 anos, assim como as mulheres – apontadas como maiores vítimas da violên-cia e preconceito – e a população predominantemente negra. Assim, as ações previstas vi-sam prioritariamente preservar estes grupos, na tentativa de evitar que se deixem seduzirpelo “caminho do crime”.

Quanto ao sistema prisional, as medidas buscam prioritariamente oferecer opções derecuperação dos detentos de idade jovem, evitando sua convivência com criminosos ta-rimbados no interior das casas de detenção, por meio da separação de edificações por graude importância dos crimes cometidos e locais de encontro.

O que importa sobre o assunto no presente texto é a atenção especial desse Progra-ma aos locais da cidade com elevada quantidade de atos de delinquência, denominados“territórios de descoesão social”. O Programa prevê a aplicação de uma série de iniciati-vas que vão desde o trabalho educativo com a “comunidade local” até a ênfase na implan-tação de equipamentos de cultura e lazer.

O Projeto de Segurança Cidadã, iniciativa datada de 2003 ao qual o PRONASCI seintegra em 2007, já incluía como medidas de ação local a instituição de “Territórios dePaz”, a integração do jovem e da família e o projeto “Segurança e Convivência”, numa cla-ra referência ao repertório e dispositivos aperfeiçoados na prática de aplicação da seguran-ça cidadã em cidades latino-americanas, implementados com êxito em vários países, comdestaque para a experiência colombiana. A intervenção considerada exitosa deste país tor-nou-se conhecida pela forte participação comunitária e pela ênfase na implantação deequipamentos culturais, sobretudo bibliotecas, que servem como pontos de encontro,centralizando várias outras atividades e edificações nos entornos.

Buscando replicar este modelo no Brasil, a SENASP assinou convênio com o Minis-tério da Cultura em 2007, com foco na implantação de Pontos de Cultura, Museus Co-munitários, modernização de Bibliotecas e Telecentros para inclusão digital. O repertóriode ofertas se completa com a promoção de locais de esporte e lazer.

Embora a roupagem carioca das técnicas de segurança cidadã se limite à implantaçãodestes equipamentos em bairros onde reside a população de mais baixa renda, o elenco deintervenções socioespaciais consolidadas na pauta internacional não se esgota nisso. Hátodo um conhecimento desenvolvido a partir dos anos 1970 que gira em torno das rela-ções de configurações espaciais e seus dispositivos (mobiliário urbano, arborização etc), a“segurança” (medida pela incidência de delitos), incluindo a percepção da violência pelapopulação local, e que é muito mais vasto do que poderíamos imaginar. O conhecimen-to produzido atravessa campos disciplinares diversos, tais como a sociologia, a psicologiainteracionista, a arquitetura e o urbanismo, e amadurece tanto nas práticas das políticaspúblicas quanto no meio acadêmico, nos institutos de pesquisa, como o item mais abai-xo pretende demonstrar.

O PRONASCI priorizou suas ações nas cidades metropolitanas do país e naquelas emque os níveis de criminalidade atingem as mais destacadas posições do território nacio-nal.5 Ao cabo destes poucos anos de vigência, observa-se que o PRONASCI teve uma atua-ção de peso, e que vem ganhando destaque. Em setembro de 2006 foi firmado convêniocom a Frente Nacional de Prefeitos, e em novembro do mesmo ano, obteve a adesão dosprincipais municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Como diretriz priori-

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5 Estados de ação prioritá-ria do PRONASCI: Acre, Ala-goas, Bahia, Ceará, DF eentornos, Espírito Santo,Minas Gerais, Pará, Paraná,Pernambuco, Rio de Janei-ro, Rio Grande do Sul, SãoPaulo. Convênios para açãodo PRONASCI: Rio Grandedo Norte, Maranhão, Piauí,Sergipe, Tocantins.

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tária, foi incluído na qualidade de legado social das intervenções originadas pelos jogosPan-Americanos no Rio de Janeiro, focalizadas neste texto, e mais recentemente, ganhadestaque crescente inspirando programas, propostas, medidas e ações previstas no Planode Aceleração do Crescimento em áreas carentes da cidade.

No último mês de dezembro foi realizado em Brasília o Seminário “Espaços UrbanosSeguros”, que focalizou os principais resultados de aplicação do Programa em territóriobrasileiro. Embora grande parte dos vários projetos apresentados ainda não obedeça fiel-mente ao modelo proposto pelo PRONASCI, percebem-se avanços no sentido de introdu-zir procedimentos da chamada “segurança cidadã” em propostas de intervenção urbana.6

ESPAÇOS URBANOS SEGUROS

“SEGURANÇA” NO DESENHO DA CIDADE

À primeira vista, o PRONASCI pode parecer iniciativa isolada, mera tentativa de re-produção da bem-sucedida experiência de Bogotá, ou simplesmente aplicação de uma“boa prática”, recomendada pelas agências internacionais que estão por trás de sua ado-ção no país. Entretanto, visão um pouco mais refinada aponta para origem mais remota,ainda que com uma roupagem menos acabada.

Não é novidade associar espaço a comportamento corporal. Foucault, em primeirolugar, atentou para o fato de as intervenções urbanas ocultarem estratégias de segurança,como demonstram suas explicitações sobre o panóptico de Bentham, aperfeiçoado nos pri-mórdios da modernidade. Assim como também foram amplamente explicitados por di-versos autores os dispositivos disciplinares de regulação de comportamentos corporais noespaço da cidade, embutidos em intervenções urbanísticas desde Haussman.

Em fins dos anos 1970, Foucault já havia identificado a superação da “sociedade dadisciplina” pela “sociedade do controle”, em que as técnicas disciplinares se sofisticamapoiadas na extensão do conhecimento e do emprego das novas tecnologias de informa-ção, potencializadas pelo domínio do olhar eletrônico (câmeras, imagens de satélite, GPS,etc), e da estatística informatizada – contando com novas técnicas de apuração e conta-gem, esquadrinhamento e refinamento da precisão na medição de relações padrão-desvio.Para Foucault, a sociedade do controle se apoia fortemente na dimensão da política vol-tada ao condicionamento corporal (ou a biopolítica), em que o item segurança, dentre ou-tros, muda de escala, sendo direcionado no sentido da dimensão microfísica, assumindopapel estratégico na estruturação do poder e do comportamento, por meio da ampliaçãode mecanismos de persuasão, de vigilância e controle.

As últimas décadas foram pródigas na multiplicação de pesquisas que explicitam es-tes mecanismos e dispositivos, presentes em trabalhos de Mike Davis, Michael Sorkin eoutros.

Neste contexto, evidenciam-se as políticas voltadas ao controle dos bolsões de po-breza das cidades metropolitanas, tomados como focos da geração de riscos à segurança.Estudioso dos guetos da periferia de metrópoles norte-americanas, Loïc Wacquant já ha-via situado a gradativa transferência da vigilância e funções da polícia para a sociedade eoutras instituições, o que denominou panoptismo social (2008:14). Para este autor, noquadro mais geral de “informalização” crescente da economia, o hipergueto – roupagemcontemporânea do gueto do pós-guerra – já não corresponde mais à farta reserva de mão-

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6 Exceção feita ao ProjetoCamaragibe Saudável, queabrange os rios Passarinho,Jacarezinho, Vazadouro eCapilé, situados na baciacontribuinte do rio Camara-gibe, em Pernambuco, quese destaca por associar in-tervenções ambientais aosprocedimentos de “seguran-ça cidadã”.

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de-obra para os bairros vizinhos, um “mero depositário de categorias excedentes”, comono passado, e agora “perdeu seu papel positivo de amortecedor coletivo, tornando-se umamáquina mortal do mais puro banimento social.” (2008:56)

A passagem do gueto comunitário para o hipergueto é dramaticamente descrita peloautor como sendo marcada pela combinação de processos de “despacificação da vida co-tidiana”, mediante a infiltração da violência no tecido social local e penalidade neoliberal“cujo emblema é a doutrina de ‘tolerância zero’, propagada por todo o mundo pela açãode think tanks políticos, funcionários do governo e acadêmicos”. (2008:13)

Enquanto isso, na outra ponta, cresce a responsabilização da pobreza pelas mazelasda realidade contemporânea, apoiada pela “fabricação” por parte da mídia de um medogeneralizado e de condições indeterminadas quanto às origens, tempos e locais de ocor-rência. Como argumenta Cavalcanti et al. (2005), assim como Machado (2007), a res-ponsabilização do perigo é atribuída genericamente ao pobre, representado em nossa re-alidade pelo seu local de moradia (a favela), que materializa o medo difuso e generalizadoque acomete as camadas média e alta da população. Voltados à realidade do Rio de Janei-ro, estes trabalhos ilustram magistralmente a percepção do senso comum carioca, alimen-tada pela ação microfísica e permanente exercida pela mídia, que atribui à favela e à tota-lidade de sua população, indiscriminadamente, a responsabilidade pelos altos índices decriminalidade e insegurança vividos na cidade – e como se sabe, são resultantes de pro-cessos bem mais complexos, ponto consensual entre especialistas da área criminal.

Portanto, não é de se estranhar que no limiar dos anos 1970 floresça um conheci-mento herdeiro das estratégias disciplinares, e que por volta do ano 2000 se apresente co-mo uma forma mais acabada de intervenção, focada nos bolsões de pobreza das metrópo-les, associada à lógica da transparência, da constância e coletivização da vigilância, noconstrangimento como recurso persuasivo e direcionador do movimento dos corpos noespaço, e em outras técnicas que compõem o repertório da metodologia dos Espaços Ur-banos Seguros.

TEORIAS SOBRE ESPAÇOS URBANOS SEGUROS

Fundado na Europa, este pensamento assumiu um âmbito internacional a partir da1ª Conferência Internacional da Crime Preventions Through Environment Design (CPTED),em Calgary, Alberta, em 1996.7 No que tange ao avanço da produção teórico-conceituale difusão de práticas voltados à aplicação em países da América Latina, dois centros de ex-celência em arquitetura e urbanismo se destacaram até recentemente, ambos situados emSantiago do Chile: a PUC – Chile, e o Instituto de la Vivienda (INVI).8

As teorias consolidadas em torno do tema Espaço e Segurança abordadas a seguir pos-suem em comum, em primeiro lugar, a crença de que existe uma relação imediata entreas configurações físico-urbanísticas e a incidência de crimes, tornando “a localização dadelinquência (...) um fato arquitetônico, que deve ser analisado e considerado pelo arqui-teto”. (2003:26) Rau, citando Perez Aravena, sugere tratar-se do “entendimento de queesta relação entre forma e vida é prioritária para se chegar a articular a realidade do pro-jeto de maneira a inibir a localização de certo tipo de delitos e aumentar a sensação de segurança. Para ele, se pode entender a delinquência como um ato que sucede em umespaço determinado.”(2003:27)

Em segundo lugar, essas teorias resultam de um pensamento que articula as mesmasvariáveis: (1) a configuração físico-urbanística, incluindo traçados, usos/atividades, graus

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7 Consta que nessa Confe-rência estiveram presentes75 professores, projetistas,arquitetos, criminalistas,profissionais da segurançae agentes policiais, e quefundaram a ICA – Internatio-nal CPTED Association, hos-pedeira da “base de dados”sobre o debate teórico e asexperiências práticas resul-tantes deste conhecimento.Cabe mencionar que a ICApossui hoje mais de 700membros em 40 países.

8 Estes centros parecemter se adiantado aos demaisno continente, supostamen-te em razão da parceria cri-ada entre a “cidade” de To-ronto e o governo deSantiago, que visava a im-plantação do Projeto Paz Ci-dadã a partir do ano 2000,além da inclusão de medi-das de prevenção do crimepor meio do desenho am-biental, no contexto de revi-são da política de seguran-ça vigente na cidade. Apartir de 2004, MacarenaRau, professora da PUC –Chile e autora de uma tesede doutorado sobre o as-sunto, assume a presidên-cia das International CPTEDAssociations para a AméricaLatina e promove um novoimpulso.

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de acesso, tipologia de mobiliário existente, aspecto geral do espaço público em geral; (2)a existência de perfis de comportamento determinados por configurações espaciais espe-cíficas, baseadas em características de “delinquentes”, assim como tipologias de crimesmais cometidos;9 (3) as localizações de ocorrência de crimes na cidade. Dado que as áre-as de maior incidência de crimes coincidem com os locais de concentração das faixas depobreza, os procedimentos dos “espaços urbanos seguros”, ao menos na experiência apre-sentada até agora, seja na Europa ou na América Latina, não se estendem por toda a ci-dade, mas se concentram fortemente nos bairros e locais habitados por estes segmentosda população urbana.

As obras consultadas sobre a construção coletiva teórica e prática associada a esta te-mática apontam direções diversas, mas concordam quanto à referência da Escola de Chi-cago como marco inicial do debate. Como sabido, esta Escola funda a reflexão sobre opapel de cenários físico-espaciais no comportamento psicossocial dos indivíduos e coleti-vidades, de modo que: “A aproximação arquitetônica, especialmente a referida a proble-mas de segurança residencial, se organizou em torno do suporte explícito ou implícito deque o reordenamento das formas espaciais modifica o comportamento e as estruturas so-ciais.” (Sepulveda et al, 1999, 21)

Jane Jacobs marca uma referência fundamental na construção deste pensamentoquando evoca a atitude dos moradores e a geração de valores – como “confiança”, “res-peito” e outros – como de capital importância na promoção da segurança nos espaços.Os aportes fundamentais buscados nesta autora é a ideia da vigilância coletiva (os “olhosda rua”) adotada como princípio básico, a ideia da diversidade e importância do perma-nente movimento de pessoas e atividades para inibir atos delinquentes, assim como a im-portância da apropriação afetiva do lugar para despertar ações “naturais” de controle evigilância.

No âmbito das metodologias desenvolvidas, estes itens são convertidos em diretrizesprojetuais de análise e de proposições de reformulação dos lugares, no sentido da amplia-ção dos eixos de visibilidade e do exercício da visão coletiva que resultam no “mecanismode vigilância natural”, em contraposição à “vigilância pública”, como a realizada por agen-tes governamentais especializados (policiais).

O primeiro autor a formular um pensamento mais consistente sobre o tema pareceter sido o criminalista americano Schlomo Angel, que escreveu a tese de doutoradoDiscouraging Crime through City Plan, datada de 1968 – aplicando as ideias dos urbanpatterns de Cristopher Alexander, no sentido da inibição de atos delinquentes observadosem certos locais de Oakland (Califórnia) –, um estudo voltado especificamente para a ini-bição dos chamados “crimes de rua”(street crimes).

A revisão bibliográfica apresentada na tese de Macarena Rau destaca as seguintes ver-tentes de pensamento sobre o tema, que se desdobram em metodologias e técnicas deaplicação no redesenho do território:

• a teoria dos Espaços Urbanos Defensáveis, que abre as primeiras hipóteses e instrumen-tal metodológico para aplicação no desenho e redesenho de configurações espaciaisurbanas;

• a Teoria Situacional, que resulta no aperfeiçoamento da técnica dos Control Preventionsthrough Environmental Design (CPTED), que originou um movimento internacional –e uma instituição em torno da qual gravitam ações internacionais de segurança – demesmo nome;

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9 A pesquisa realizada pelonorte-americano Carter,com estupradores e assal-tantes, o levou a concluirque: “Criminosos geralmen-te possuem padrões espa-ciais específicos. Atuam emlocais onde se sentem segu-ros, próximos aos locais deresidência e trabalho e às vi-as de transportes utiliza-das”. (Monteiro & Ianicelli,2008)

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• a teoria urbanística da Sintaxe Espacial, que enfoca o papel do espaço associado ao con-trole do medo.

DEFENSIBLE SPACES

A maior contribuição ao início dos estudos por um viés urbanístico deve-se ao ar-quiteto Oscar Newman, que em 1972 lança a proposta dos Defensible Spaces, partindo dopressuposto que o meio ambiente pode apresentar efeitos significativos sobre a delinquên-cia e os delinquentes, favorecendo a ocorrência de delitos.

A visão de Newman apoiava-se no raciocínio simplista de que atos de delinquênciaresultam de ocasiões em que três elementos básicos combinam-se no tempo e no espa-ço: um delinquente provável, um “alvo apropriado”, e a ausência de dissuasão, que esta-ria associada ao desenho urbano.

A partir de pesquisas dirigidas a Conjuntos Residenciais periféricos com alta in-cidência de crimes, Newman postula três causas para o surgimento de “condutas an-tissociais”: o anonimato de seus habitantes, devido ao tamanho dos conjuntos; a faltade vigilância, que antes ocorria naturalmente na parte interior de edifícios; a inexis-tência de rotas propostas pelo desenho urbano formalizado, alternativas ao traçado em“labirinto” das configurações existentes. As técnicas propostas focavam a clara defini-ção de domínios públicos e privados, na compreensão de que a vigilância se condicio-na à clareza e visibilidade do vigilante, daquilo que é o “pedaço” do território sob suaresponsabilidade.

Newman define a noção de Espaço Defensável como “o espaço físico cuja posse foitomada por um indivíduo e que ele defende contra os outros” (Sepúlveda, 1999, 21), re-metendo às relações de alteridade, identidade e das formas de apropriação do espaço pe-la população. A formulação deixa clara a relação entre “espaço” como resultante de dese-nho e gestão, atribuindo ao indivíduo-morador papel ativo na defesa do seu território.Suas intervenções resultam na repartição de espaços e criação de fronteiras visíveis, pro-movendo uma graduação tipológica como: espaço público, semi-público; espaço privadoe semi-privado.

TEORIA SITUACIONAL

Macarena Rau distingue duas “gerações” de propositores que se alinham na “escola”dos chamados CPTED.

Tudo parece ter tido início com o trabalho do criminalista Ray Jeffrey, da Florida Sta-te University, que em 1971, ainda antes de Newman, publica o livro Crime PreventionThrough Environment Design, iniciais que derivam na sigla CPTED. O trabalho de Jeffreynasce de pesquisas empreendidas com objetivo de ampliar o grau de segurança em escolas,e está voltado mais diretamente para a eliminação de delitos cometidos pela população jo-vem. Embora obscurecido pelo sucesso da obra de Newman, Jeffrey parece ter lançado asemente inicial do CPTED, movimento que atravessa décadas e atinge os dias de hoje.

A aproximação entre ambos consiste no mesmo pensamento simplista da chamada“teoria da oportunidade”, que destaca a importância de três pilares para a reflexão sobresegurança: a figura do delinquente, a vítima e a situação, e a ideia de que ocorrem delitosem determinados espaços devido às oportunidades de localização que se oferecem no en-torno físico.

Segundo Rau, este que seria o CPTED de “primeira geração” dispõe de ferramentasque se baseiam em quatro conceitos: controle natural dos acessos, vigilância natural, ma-

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nutenção dos espaços urbanos (refere-se à existência de planos de manejo, de limpeza, dejardinagem e manutenção geral dos espaços públicos), e reforço territorial (refere-se aoafeto que o morador desenvolve com o espaço que o circunda, efeito que poderia ser al-cançado utilizando como mecanismo corretivo a procura por “atividades seguras em áreasinseguras”.

Uma das diferenças percebidas entre o trabalho de Newman e Jeffrey parece ser o di-ferente peso que ambos atribuem ao “social”, restrito em Newman às estratégias de vi-gilância coletiva por parte dos moradores. De fato, no debate que se abre nas décadas pos-teriores sobre este tema, o componente “social”, ainda que restrito à dimensão“comunitária”, assume papel central, e se evidencia o decisivo envolvimento dos morado-res no processo de “defesa” do lugar, tornando a mobilização parte fundamental do pro-cesso que resulta em proposta de intervenção.

De fato, um dos diferenciais entre a escola Defensible Spaces e a “Teoria Situacional”reside exatamente na ênfase dada pela última aos aspectos vinculados à estrutura socialde moradores, tais como composição familiar, história da ocupação, relações entre vizi-nhos, índice de renda e trabalho, grau de pobreza e escolaridade, condições sanitárias etc,que geram diagnósticos para a formação de propostas de intervenção.

A preocupação com este gênero de questões é mais evidente na “segunda geração”,que acrescenta quatro novas categorias de análise às anteriores: (1) desenvolvimento da es-cala comunitária: variável física relacionada à percepção do medo do morador, associado aocontrole que este exerce sobre o espaço; (2) avaliação dos espaços de encontro comunitá-rios; (3) as organizações comunitárias existentes; e (4) a participação ativa dos moradores.

SINTAXE ESPACIAL

A Sintaxe Espacial é desenvolvida por Bill Hillier, professor da Universidade de Lon-dres, a partir dos anos 1970, e surge do questionamento em torno das relações de socia-bilidade promovidas pelas configurações do espaço construído, para depois se aproximarda segurança,10 sendo a variável “mais sintática” a integração, entendida como o grau deacessibilidade por pedestres e veículos e a conexão do lugar com outras áreas da cidade. Aintegração condiciona o movimento de pessoas e atividades em uma região.

Esta linha de reflexão prioriza os espaços de “encontro”, ao considerar o fato de que“vincula(m) espaço, corpos, movimento e comunicação potencial face a face”; e ao poten-cial de contato entre pessoas no espaço urbano, Hillier denomina comunidade virtual, umconceito caro à reflexão sobre a vigilância natural por condicionar a presença de muitosno mesmo espaço.

Rau destaca em Hillier três razões que justificariam a Sintaxe Espacial como um bominstrumento para estudar os padrões de crime urbano, por permitir: identificar as poten-cialidades de movimento de uma configuração urbana, o que se pode utilizar como subs-tituto para entender os efeitos da vigilância natural; investigar os padrões de crimes emdistintas áreas ou dentro da mesma área, usando a mesma metodologia; quantificar as va-riáveis espaciais, assim como as variáveis sociais e econômicas consideradas.

SÍNTESE

A tradução das teorias acima esboçadas em técnicas e metodologias projetuais mos-tra a combinação de quatro dispositivos fundamentais, necessariamente associados: (1) “vigilância natural” (transmitir ao delinquente a sensação de estar sendo vigiado);

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10 O conceito de SintaxeEspacial é definido como“um conjunto de técnicascomputacionais para a mo-delação de desenhos arqui-tetônicos e conjuntos urba-nos que buscam avançar noconhecimento da relaçãoentre fenômenos sociais evariáveis espaciais. A tramaurbana se apresenta comoum sistema de elementosvinculados: linhas, no casodo estudo dos movimentos;elementos convexos, no ca-so de estudos de integra-ção; e campos de visão,quando se examinam pa-drões mais complexos decomportamento, como ocrime, por exemplo.”

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(2) aumento na permanência e movimentação de pessoas no local (ampliação da circula-ção e acessibilidade, diversidade de usos, conexão dos espaços entre si, facilitação do atra-vessamento de áreas); (3) reforço territorial (respondendo ao instinto natural de se ter oespaço como domínio pessoal); domínio coletivo sobre territórios e acessos (controle dasentradas e permanência de pessoas em determinado local, transparência nos limites desegmentos espaciais). Os objetos de intervenção são, dentre outros: iluminação pública;traçado das vias; redução do tamanho de quadras; ampliação da diversidade de usos; cer-camento de áreas; diversificação de usos; cuidados com a qualidade da paisagem, comoajardinamento e pavimentação de calçadas; ampliação de janelas e aberturas.

É evidente a necessidade de envolvimento dos moradores na formulação e na garan-tia da manutenção do funcionamento dos dispositivos, dado seu papel ativo de vigilantes.

Fundamental para argumentação deste texto é observar a coincidência destes itenscom os que têm sido propostos nos Projetos para Espaços Urbanos Seguros no Brasil.

A EXPERIÊNCIA CARIOCA

O Projeto Espaços Urbanos Seguros (PEUS) foi concebido pela Secretaria Nacional deSegurança Pública (SENASP), do Ministério da Justiça, no bojo do processo de preparaçãodos Jogos Pan-Americanos, realizados na cidade do Rio de Janeiro em 2007. O projetoprevia inicialmente, entre outras ações, a construção de vilas olímpicas em pelo menostrês zonas vulneráveis próximas aos principais locais dos eventos esportivos: Complexo daMaré, Complexo do Alemão e Cidade de Deus.

A estratégia era aproveitar a realização dos Jogos Pan-Americanos como elemento demobilização para aplicar o conceito de segurança cidadã – que é a base do Plano Nacionalde Segurança Pública com Cidadania –, aproximando os cidadãos do estado no intuitode construir políticas públicas de inclusão social com foco na segurança pública, e tendocomo pressuposto o envolvimento das comunidades como condição fundamental paragarantir a apropriação dos espaços públicos pela coletividade e a paz social.11

A ideia inicial da construção de vilas olímpicas acabou sendo substituída pela de re-qualificação de áreas identificadas por lideranças comunitárias como inseguras, devido àpresença ou à proximidade aos locais utilizados para atividades criminosas. O investi-mento previsto de R$ 1,5 bilhão, com recursos do Programa das Nações Unidas para oDesenvolvimento (PNUD), beneficiaria cerca de 200 mil pessoas, e seria repassado à Pre-feitura Municipal, responsável pela realização das obras. Posteriormente, coube ao Go-verno do Estado, através da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos, a exe-cução do projeto.

Para a consecução dos objetivos do PEUS, foram promovidas, em julho de 2007, ofi-cinas de capacitação em gestão e desenho urbano para 100 líderes comunitários, em par-ceria com a Central Única das Favelas (CUFA), que resultou na elaboração de projetos deadequação de espaços físicos. Para a capacitação profissional de 1000 jovens e adultos, foiministrado um curso de técnicas construtivas em parceria com a Federação das Indústriasdo Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN).

Dos 100 projetos de adequação elaborados, apenas 30 foram selecionados, distribuí-dos nas distintas regiões da cidade, independentemente de se situarem no entorno dos lo-cais onde ocorreram eventos relacionados aos Jogos Pan-Americanos. Todavia, metade dasintervenções programadas concentra-se nos bairros da chamada zona norte da cidade,

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11 Segundo a arquitetaCláudia Muniz, coordenado-ra do Projeto Espaços Urba-nos Seguros, ele foi inspira-do em uma experiênciaimplantada em Bogotá, em2003, que obteve excelen-tes resultados na reduçãoda criminalidade. Ver: www.agenciabrasil.gov.br/10jul2007.

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com o total de 15 projetos, enquanto outros 10 beneficiariam comunidades na zona oes-te, 2 na zona sul e 2 na zona central.

Em razão de ajustes orçamentários que se fizeram necessários, os projetos básicos so-freram modificações que, embora não comprometessem o escopo das melhorias urbanís-ticas previstas na maioria dos casos, acabaram por inviabilizar a sua execução no Morroda Providência, no bairro da Gamboa. Com isso, restaram 29 comunidades beneficiadaspor obras que consistiam na construção ou reforma de praças, quadras esportivas e/ou ins-talação de equipamentos comunitários e de lazer.

A maior parte se consubstanciou em melhorias de espaços existentes, sejam estes pra-ças – em geral incluindo quadra e parquinho para crianças (13) –, sejam apenas quadrasesportivas (4). Em 10 outras, todavia, as intervenções se configuraram como construçãode praça (7), ou simplesmente de uma quadra esportiva (3), em terrenos vazios ou cam-pos de futebol subutilizados ou utilizados para atividades diversas da recreação de jovense crianças. Além destas, houve um caso de revitalização de um trecho de calçada, e outrode construção de uma horta comunitária.

Em cerca de um terço dos projetos se previu, juntamente com a criação ou a melho-ria das praças e quadras, a construção ou reforma de edificações destinadas a salas de au-la para reforço escolar ou cursos de capacitação (3), churrasqueiras (2), vestiários (2), umquiosque para eventos, um galpão para lixo reciclável, um espaço multiuso coberto, e fi-nalmente, uma cancha de bocha.

As obras se caracterizaram por intervenções de baixa monta e complexidade. Amaior dificuldade residiu, muitas vezes, na preparação do terreno, por apresentar solo ala-gadiço, forte desnível ou estar sujeito a deslizamentos, sobretudo em período de chuvas.Em outros casos, porém, a dificuldade maior resultou da localização da intervenção emárea de difícil acesso, que acabou por prejudicar a chegada de materiais.

O OLHAR DA COMUNIDADE

A realização de entrevistas com lideranças e moradores nos permitiu avaliar o graude satisfação e envolvimento da comunidade com as intervenções propostas. Embora amaioria dos entrevistados tenha apontado outros equipamentos e serviços públicos co-mo prioritários – infraestrutura urbana, postos de saúde, creches etc –, revelou-se umanítida aprovação dos mesmos com a realização das obras, face às muitas carências acu-muladas.

As críticas ao projeto, quando formuladas, diziam respeito mais à qualidade ou a de-talhes do projeto do que à sua concepção. Uma reclamação recorrente, por exemplo, foia de que não havia sido prevista nenhuma proteção contra a forte insolação incidente emquase todas as áreas destinadas à recreação, fosse por intermédio de cobertura ou de arbo-rização. A falta de rede protetora da quadra esportiva, de modo a minimizar riscos a usu-ários e transeuntes, sobretudo quando junto a vias de grande movimento, também foiuma questão bastante lembrada pelos moradores, bem como a ausência de vestiários, ou-tros equipamentos e mobiliário complementares à construção da praça ou quadra, tais co-mo churrasqueira, pia etc.

Todavia, puderam ser identificadas algumas divergências quanto ao público-alvo dasintervenções. Na comunidade do Jardim do Itá foi questionada a construção de uma can-cha de bocha e de espaço para a terceira idade em áreas onde se verifica ausência de espa-ços de recreação para crianças, adolescentes e jovens, que seriam a grande maioria da po-

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pulação residente.12 Em Nova Sepetiba observou-se a falta de preocupação com a acessi-bilidade – inexistência de rampas para passagem de nível –, apesar de o local da interven-ção estar situado na ala do conjunto habitacional destinado a pessoas portadoras de ne-cessidades especiais.

Já em Vila Comari, a opção pela criação de uma horta comunitária, em substituiçãoa uma quadra esportiva inicialmente prevista, causou certa perplexidade, devido à ausên-cia de áreas de recreação para jovens, embora a maior preocupação manifestada pela lide-rança comunitária fosse a capacitação profissional dos mesmos.

Os moradores do Quitungo consideram que a área existente anteriormente era me-lhor do que a que fora projetada. Eles reclamaram dos transtornos causados pela obra; dafalta de segurança para as crianças, em função do grande desnível do parquinho em rela-ção à rua, bem como da ausência de grampos ou guarda-corpos junto ao anteparo quecerca o parquinho, que foram posteriormente colocados pela empreiteira; e do piso emsaibro que, supostamente, ocasiona mais alagamentos em dias de chuva do que a gramaque havia antes. Também discordaram da localização da praça ao fundo do conjunto. Elesconsideram que outra área próxima, situada em uma parte mais carente e onde se encon-tram escolas e farto comércio, poderia receber uma futura intervenção, uma nova praça,tendo assim uma função e um uso muito maiores.

A localização da intervenção foi considerada inadequada em duas comunidades: Ala-gados de Sepetiba e Rocinha. A primeira, conforme o próprio nome sugere, por ser umaárea inundável e sem esgotamento sanitário. A segunda, por estar situada em área consi-derada de risco pela Fundação GEO-Rio, fora dos Eco-Limites demarcados pela Prefeitu-ra para controlar a expansão da ocupação da favela sobre o remanescente de Mata Atlân-tica existente: ou seja, uma área de preservação ambiental.

Também na Cachoeirinha e no Morro do Borel foram identificadas casas em áreasde risco, sem que, no entanto, representem qualquer impedimento de utilização das qua-dras reformadas em ambas as comunidades. No Borel, outrossim, verificou-se a proximi-dade a uma encosta, onde frequentemente ocorrem deslizamentos em dias de chuva, pro-vocando um lamaçal sobre a quadra. Foi feita uma solicitação formal a GEO-Rio nosentido de proceder à contenção da referida encosta, sem sucesso até o término das obrasde adequação do PEUS naquela localidade.

O ALCANCE DOS OBJETIVOS

Embora não tenha sido realizada uma pesquisa pós-ocupação, o grau de satisfação ede ansiedade pela inauguração dos espaços observado em muitas comunidades indicauma expectativa de utilização intensiva destes espaços pela coletividade. Pode-se verificarem alguns casos que, posteriormente à conclusão das obras, a população estava de fatoutilizando os espaços, ao menos durante o dia. À noite, a utilização das praças ainda eraprejudicada pela ausência de refletores em Parque Itambé e Parque Maré, cuja instalaçãonesta última havia sido cortada do projeto executado.

Em Parque Itambé notou-se o fim de assaltos durante o dia; verificou-se ainda queno local já não eram mais abandonados carros sucateados por assaltantes, e nem a área eramais usada como estacionamento irregular. Em Fazenda Viegas, no bairro de Senador Ca-mará, o aumento da sensação de segurança também já pode ser observado em razão danova iluminação, pois, segundo moradores, o local antes era bem escuro e as pessoas fica-vam receosas de esperar pelos ônibus no ponto final das linhas existentes na praça.

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12 Também foi questionadoo objetivo do projeto, já queninguém na comunidade sa-bia jogar bocha.

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A satisfação dos moradores de Viegas com as obras de adequação, contudo, não seconverteu na conservação dos espaços recém-inaugurados, haja visto o acúmulo de lixojogado pelos próprios moradores, fenômeno também notado em Vila Nova Esperança.Nesta comunidade, em meados do mês de abril, foi registrado que na praça inauguradapela associação de moradores – antecipando-se à inauguração oficial do Governo do Es-tado – também havia bastante lixo jogado no chão, denotando ausência de zelo e preocu-pação com a preservação de equipamentos de uso comum.

O que estas áreas têm em comum? A localização periférica em relação à principal co-munidade beneficiada, situação que também se encontra em Anchieta, Cachoeirinha,CHP-2, Inhaúma, Ramos (Parque Itambé), Turiaçu e Vigário Geral.13 Não necessariamen-te isso é um aspecto negativo. A intervenção na fronteira com o tecido urbano formal émuitas vezes recomendada como estratégia de integração de realidades segregadas, sejamelas morro/asfalto, informal/formal, ou pobre/rico. No entanto, essa estratégia deve con-siderar de fato as realidades externas a serem articuladas, caso contrário, pode não aten-der adequadamente a nenhuma delas.

Aparentemente, a escolha das áreas de intervenção obedeceu a critérios aleatórios,não gerando nenhuma possibilidade de amenização de fronteiras urbanas, como seria es-perado de um projeto que se propõe à redução do domínio físico da criminalidade. A de-satenção para o estudo minucioso dessa fronteira esvazia de significado a ação de projeto,mostrando-se preferível, neste caso, a intervenção na centralidade ou mesmo no interiorda comunidade, como forma de atendê-la mais profundamente.

Cabe ressaltar, entretanto, que na maioria dos casos estudados, as áreas já eram uti-lizadas pelos moradores, sendo por vezes o único espaço de lazer existente no assentamen-to. Ainda que este fator não seja garantia contra a degradação, e por si só não impeça –como não impediu no passado – a presença da criminalidade, pode-se supor que seja tan-to mais fácil conservar em bom estado os espaços reformados quanto estes que já tenhamsido incorporados no imaginário do coletivo como um bem comum.

Tal hipótese não descarta em absoluto a necessidade de uma gestão compartilhada,sobretudo entre associações comunitárias, ONGs e o poder público, no sentido de assegu-rar a manutenção dos equipamentos e a organização de eventos culturais e esportivos queatraiam jovens e adolescentes, além do trabalho decisivo de educação ambiental e urbanae do desenvolvimento de uma agenda de promoção social, incluindo capacitação profissio-nal e programas de geração de renda. Esta parceria não foi prevista nesta fase experimentaldo PEUS, mas é uma condição imprescindível para garantir os objetivos do projeto.

Sem qualquer tipo de convênio para a gestão dos espaços urbanos criados ou refor-mados, a mesma fica a cargo exclusivamente das associações de moradores, e dependerãounicamente do empenho e dedicação dos seus representantes. O esforço dos atores locaispara preservar o que foi conquistado pode ser notado em Cidade de Deus, onde algunsbrinquedos do parquinho implantado na Praça Malaquias estão sendo retirados durantea noite e guardados para evitar possíveis depredações. Em Muzema e em Vila Comari, osmoradores também se mostraram preocupados com a futura gestão dos novos espaços, te-mendo o retorno ao estado de abandono anterior.

Outro aspecto crucial para a eficácia da estratégia de apropriação social dos espaçospúblicos é a sua qualidade ambiental. Na experiência carioca dos PEUS, tal qualidade foisobremaneira comprometida pela precariedade das soluções projetuais apresentadas, reve-lando um repertório espacial/funcional limitado das intervenções. A quadra poliesporti-va, implantada de forma indiscriminada mesmo em áreas que já possuem nas adjacências

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13 Os casos mais emble-máticos da localização peri-férica são Inhaúma, onde oterreno é voltado para a Li-nha Amarela; Ramos, emum terreno contíguo à Aveni-da Brasil, fora dos limites dacomunidade mais próxima(Parque Itambé); e CHP-2,onde o terreno dá frente pa-ra a Avenida Dom Helder Câ-mara, em região com gran-de incidência de conflitosenvolvendo facções crimino-sas rivais.

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o mesmo tipo de equipamento, soou por vezes descontextualizada, como no caso de Par-que Maré e de Praia de Ramos.14

Além da falta de contribuições espaciais e arquitetônicas mais consistentes, a escalamuito reduzida das intervenções acabou por gerar espaços desprovidos de um interesse ur-bano maior. Em muitos casos, as obras de adequação consistiram em mera substituição dapavimentação, de equipamento ou mobiliário danificado, pintura, ou mesmo uma simplesconstrução de vestiários, não constituindo uma melhoria urbanística efetiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O discurso que orienta os documentos que apresentam os Projetos de Segurança Ci-dadã é visivelmente endereçado à “população em geral” e não à população moradora dasfavelas e bairros onde serão implantados os projetos. Mais parece, de fato, responder àssúplicas da população de camadas médias urbanas, cujo senso comum é cotidianamentealimentado pela mídia.

Como resultados da pesquisa sobre o modo como as favelas aparecem na mídia, Ca-valcanti et al (2005) e Machado (2007) mostram a percepção do tráfico e dos traficantescomo os grandes causadores do crime na cidade, e a percepção da favela como lugar des-tes criminosos, levando os autores a conclusão de que: “Temos não só a quem temer, co-mo determinados lugares a recear. Porém, para uma classe média prudente(...), o morronão aparece apenas como lugar perigoso, mas principalmente, como lugar de onde os cri-mes provêem.”

Mostra-se uma transferência do problema de segurança ou de periculosidade: não émais a cidade metropolitana berço dos riscos, mas certos espaços da cidade, locais em quenão apenas se originam “seres perigosos”, mas onde reside o próprio perigo, possível detransbordar de modo incontrolável, tomando a cidade como um vírus letal, que somen-te pode ser controlado por uma política eficiente (e violenta, se necessário), disposta a ata-cá-los indiscriminadamente, contando com forte adesão das camadas médias.

Os Espaços Urbanos Seguros, nesse sentido, consistem em intervenções dirigidas di-retamente aos bairros e assentamentos tidos como inseguros, isto é, Conjuntos Habita-cionais periféricos em cidades europeias – onde se concentra a população imigrante e demais baixa renda – e sua análoga do Terceiro Mundo, que são as favelas. A intenção des-tas intervenções não se reduz a efetuar melhorias para o benefício dos moradores, mas empacificá-los – apelando frequentemente para a paz, como mostra o projeto Território daPaz –, evitando que a revolta se converta em violência e resvale para a cidade.

A ideia de “vigilância natural” presente nesta metodologia mostra uma curiosa passa-gem da pessoa comum que se transforma em “agente público”, um vigilante difuso, inde-terminado, irreconhecível e múltiplo, já que pode ser “qualquer um”. Foucault revelou queo segredo da eficácia deste sistema que se aproxima do panóptico se deve à internalizaçãoda vigilância pelo vigiado, que se adiantaria à punição do flagrante, inibindo as ações in-desejadas. No caso do panóptico de Bentham, este mecanismo seria produzido pela simplespresença da torre panóptica e a dúvida que instala sobre a real presença do vigilante. A “vi-gilância natural”, assim como a vigilância por câmeras, pretende o mesmo, situar no delin-quente a dúvida sobre o vigilante, mecanismo que certamente amplia sua eficácia. Supõe-se que seja capaz de provocar uma outra ordem de constrangimento, já que se realiza peloconjunto de moradores, adicionando componentes de vergonha e constrangimento – tal-

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14 No Parque Maré, o terre-no se situa entre dois CIEPs,que possuem quadras cober-tas, e próximo à Vila Olímpi-ca da Maré. Já na Praia deRamos, ele se localiza emfrente ao parque do Pisci-não, que também conta comquadras esportivas.

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vez seja mais fácil lidar com um policial corrupto do que com a condenação de um coleti-vo de moradores, com quem se pode ter, até mesmo, relações pessoais.

Quanto às formas concretas de intervenção, vale perguntar até que ponto a discipli-na dos espaços imposta pela aplicação das técnicas dos Espaços Urbanos Seguros – pelaretirada dos “ruídos”, tornando-os algo mais simples, direto e visível – corresponde à ló-gica formal destes assentamentos, cujo modo de construir nasceu, no mais das vezes, deiniciativas próprias, estreitando laços afetivos com formas produzidas e com o lugar, co-mo já alertaram trabalhos de autores como Jacques (2003) e Alvito (2007).

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A B S T R A C T This paper outlines a tendency in urban design that leads to theincorporation of spatial strategies aiming at public security. Based on a methodology developedin central countries and spread out by multilateral agencies, these strategies have been adoptedin Brazil by the National Public Security Department, in the realm of the National PublicSecurity and Citizenship Programme. Making use of specific core bibliography, we aim atshowing the main aspects of this program, its methodological basis as well as theoreticalapproaches that have founded its conception. Having turned itself into a urban designmethodology, this tool has been applied in many Brazilian cities through the implementationof ‘Safe Urban Spaces’ Project – which consists of physical interventions in low income

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Maria Julieta Nunes deSouza é arquiteta; mestreem Planejamento Urbano eRegional; doutora em Comu-nicação e Cultura; professo-ra na FAU-UFRJ.E-mail: [email protected]

Rose Compans é arquitetae urbanista; mestre e douto-ra em Planejamento Urbanoe Regional, professora noInstituto Metodista Bennett.E-mail: [email protected]

Artigo recebido em junho de2009 e aprovado para publi-cação em agosto de 2009.

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environments. In Rio de Janeiro – a large city in Brazil – this methodology has been used in30 poor areas named ‘slums’ during the preparations for the Pan-American Games (2007), theobject of this work.

K E Y W O R D S Safe urban spaces; public security; space and criminality.

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PLANEJAMENTO EM ÁREAS DETRANSIÇÃO RURAL-URBANA

VELHAS NOVIDADES EM NOVOS TERRITÓRIOS

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R E S U M O Desvendar processos espaciais e possibilidades de planejamento em áreas detransição rural-urbana é o objetivo deste trabalho. Partiu-se do pressuposto de que, embora essasáreas não tenham sido historicamente o foco central do planejamento urbano, expressam hoje for-te convergência de interesses, processos e conflitos socioeconomicos, territoriais e ambientais. Por-tanto, não é possível promover a ocupação e o uso sustentável e socialmente justo de todo o terri-tório municipal, como define o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), se não há descritorestécnicos e instrumentos urbanísticos capazes de garantir efetivas possibilidades de planejamentonas áreas de transição rural-urbana. Pôde-se constatar que, apesar dos recentes avanços legais/ins-titucionais no campo da reforma urbana, ainda há muitas limitações no que diz respeito ao en-frentamento dos graves problemas decorrentes do processo histórico de uso e ocupação do territó-rio, espraiado, incompleto, especulativo, e o seu consequente planejamento.

P A L A V R A S - C H A V E Planejamento urbano; política urbana; transiçãourbano-rural.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Nos últimos vinte anos, assistiu-se a importantes mudanças nas abordagens sobre ourbano: a uma crescente ampliação do papel dos municípios nos campos do planejamen-to e da gestão urbana; a implantação de mecanismos para a garantia da participação noplanejamento; e o crescimento da questão ambiental. Ao mesmo tempo, mantiveram-sequestões estruturais que comprometem e desafiam as formas convencionais de tratamen-to da urbanização, em particular nas áreas de transição rural-urbana. A seletividade doacesso ao solo, a crescente irregularidade fundiária, a manutenção de uma visão partida,fragmentada, do território, a valorização desigual do solo promovida por práticas especu-lativas, a apropriação privada de investimentos públicos e a expansão urbana periférica edesordenada que compromete cada vez mais os recursos naturais são exemplos dessasquestões que tiveram continuidade.

Particularmente, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10257/2001), além de trazer novoselementos para reverter os processos desiguais de desenvolvimento das cidades, definiu aobrigatoriedade de elaboração dos Planos Diretores de forma democrática e participativa.Reacendeu-se o debate e a prática do Planejamento no Brasil em bases que procuram con-solidar as principais bandeiras da reforma urbana. No seu Artigo 40, o Estatuto estabele-ce que a abrangência da ação dos Planos Diretores deva estender-se à totalidade do mu-nicípio. Mas uma breve análise dos Planos Diretores mais recentemente elaborados temrevelado que o cumprimento dessas recomendações está distante de acontecer. Ainda maisdifícil tem sido planejar os espaços de transição rural-urbana, franjas ou periferias rural-urbanas, territórios de convivência de diversas legislações e de complexos processos espa-

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ciais, resultantes de modelos que legitimaram uma urbanização espraiada, precária e in-completa do solo.

Dentre os obstáculos que precisam ser contornados, podem ser destacados: i) a pre-valência das matrizes teóricas dos modelos centro-periferia para explicar os processos deexpansão urbana; ii) a distância dos urbanistas em relação às referências do desenvolvi-mento rural1 e a ausência de preocupação com seu planejamento são ainda, salvo poucasexceções, significativas; iii) apesar da grande tradição brasileira do planejamento das áre-as rurais,2 também é verdadeiro que não há muitas pontes construídas pelos planejadoresdo espaço rural em relação às questões urbanas nesses espaços.

Se, por um lado, o marco regulatório nacional urbano reafirma, ao dar ênfase àsquestões social e fundiária e à gestão democrática, os princípios redistributivistas da refor-ma urbana, por outro, o pensamento urbanístico reflete uma mistura de ideários e ques-tões emergentes, como a questão ambiental, o desenvolvimento sustentável, o planeja-mento estratégico, o redimensionamento do papel do Estado. Na medida em que aurbanização se expande e assume uma forma cada vez mais espraiada, as áreas de transi-ção rural-urbana tornam-se objeto de interesses diversos e de conflitos cada vez maiores,porque concentram um grande estoque de terras, mananciais, matas, a produção rural eo transbordamento dos conflitos urbanos expressos, principalmente, na produção da mo-radia. Nessa perspectiva, as áreas de transição rural-urbana, além de serem áreas de reser-va da expansão urbana, se tornam, mais que antes, objeto de disputas e, portanto, ganhamimportância enquanto objeto do planejamento.

Considerar a relação rural/urbano como problemática relevante para a reflexão so-bre a questão urbana e seu planejamento, seja nos aspectos socioeconomicos, seja nos as-pectos físico-territoriais, ainda não é uma prática dos planejadores. Dentre as principaiscausas do afastamento disciplinar do objeto, é preciso considerar que, ao longo da histó-ria do urbanismo no Brasil, os maiores interesses e conflitos pautados pela questão socialestavam concentrados na cidade compacta, nas áreas centrais das cidades. Portanto, asmetodologias e instrumentos de planejamento foram desenvolvidos e implementados deforma fragmentada nos territórios centrais da metrópole. Nas zonas mais periféricas, asáreas de expansão urbana e os sistemas de mananciais constituem a preocupação atual epredominante dos planejadores e gestores. É no rural-urbano que se concentram os maissignificativos recursos naturais, importantes para o equilíbrio ambiental e para os sistemasde infraestrutura urbana.

Não há, ainda, um conjunto de referências conceituais e técnicas de suporte ao pla-nejamento que enfrentem os processos socioespaciais nas áreas de transição rural-urbanano Brasil. Nessas áreas emergem questões que requerem novas ferramentas para sua com-preensão. Existem poucos descritores organizados para apoiar os estudos e a caracteriza-ção das áreas de transição rural-urbana, assim como poucos indicadores, parâmetros e ins-trumentos de planejamento, regulação e gestão. Até mesmo as competências federativassão pouco claras quando levadas em conta as características dessas áreas.

DO URBANO AO RURAL-URBANO: A URBANIZAÇÃO METROPOLITANA

O desenvolvimento das aglomerações metropolitanas brasileiras foi historicamentemarcado por um processo de acumulação de desigualdades socioespaciais e pela imple-

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1 Para Graziano da Silva(2002, p. ix), o adjetivo ruraltem duas acepções: i) comosinônimo de agrário, ou ii)caracteriza o que é relativoao campo, em oposição àcidade.

2 Silva J. G. (2002), Veiga J.E. (2005), Abramovay, R.(1996), dentre outros.

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mentação de políticas públicas que estruturaram um modelo centro/periférico responsá-vel por um contínuo deslocamento da mancha urbana para as áreas rurais e os espaços na-turais. Os anos 1990 marcaram importantes mudanças nos padrões da expansão urbana:i) a intensificação das relações intrametropolitanas; ii) uma nova conjuntura da questãosocial, ao incorporar ao debate a questão ambiental; e iii) a redefinição do papel econô-mico do Estado, valorizando ainda mais as relações de mercado (Topalov, 1997, 40). Nes-se contexto, as áreas de transição rural-urbana passaram a ser, mais que antes, o palco on-de se materializa uma diversidade de interesses e processos, em articulação e conflito, devários agentes modeladores do espaço – o que realça, desse modo, a necessidade de me-lhor caracterizá-las para subsidiar o planejamento e a gestão rural-urbana.

As relações entre a cidade e o campo também são historicamente diferenciadas, e es-sa diferenciação está diretamente relacionada com a intensidade da urbanização e seu es-praiamento. Veiga (2006), Silva (2002), Asher (2001), dentre outros autores, identificamtrês momentos de inflexão no processo de configuração espacial urbana e rural: i) o pri-meiro se estende até os anos 1950, quando o rural e o urbano eram dois pólos em oposi-ção, claramente delimitados e caracterizados pela dicotomia e contraposição; ii) no segun-do, a intensificação dos processos de industrialização, migração e urbanizaçãoconfiguraram processos mais complexos de organização espacial, que avançam em dire-ção às zonas rurais, o que caracteriza o domínio do urbano e a dependência do rural. Aspermanências e a fragmentação definiram duas realidades distintas, o rural moderno e orural tradicional; e iii) o terceiro e mais recente momento, quando se configuram novasinserções da economia para além das atividades agrárias e da urbanização geográfica. Aocupação do espaço se generaliza sem permitir claras delimitações.

As matrizes teóricas para explicar as delimitações do rural e do urbano se fundamen-tam, geralmente, em hipóteses antagônicas. Ora formuladas a partir da prevalência do ur-bano sobre o rural – completa urbanização, encontrada em Lefebvre (2002, 16), quandodefine o conceito de “sociedade urbana”3 –, ora formuladas a partir da resistência e da ca-pacidade de renovação das atividades rurais, um renascimento rural. Essa hipótese foi de-fendida por Kayser (1990, 89) quando discute o renascimento do rural ou a nova rurali-dade.4 Mesmo estruturadas antagonicamente, essas duas matrizes encontram umasignificativa interface quando tratam da transição rural-urbana e reforçam concomitante-mente a ideia de um continuum rural-urbano. Nessa fase, as relações de domínio e depen-dência são trocadas por outra de independência, relacionadas ao maior ou menor grau deintegração aos processos globais. Territórios mais ou menos conectados a estes processospodem incluir tanto área urbana quanto espaços rurais. Assim, a velha oposição cidade-campo deixa de ter sentido do ponto de vista social e econômico. Kayser afirma que ostermos rural e urbano determinam modos de utilização do território e se aplicam tanto aoespaço como aos indivíduos. Juntos constituem o que se considera hoje como um siste-ma contínuo [rural-urbano], em que não há uma ruptura. (Kayser, 1990, 19)

Silva (2002, 1) afirma a ideia de continuum e mostra que, no caso brasileiro, os usostradicionalmente rurais estão cada vez mais permeados de urbanidades, seja a partir dosmodelos econômicos de produção, seja a partir dos usos e ocupação do solo. Tal condi-ção caracteriza o novo rural brasileiro que pode ser identificado a partir de quatro proces-sos: i) O agrobusiness brasileiro, evidenciado por uma agropecuária moderna, baseada emcommodities e intimamente ligada às agroindústrias; ii) atividades de subsistência, particular-mente a agricultura familiar e a criação de pequenos animais, que visam primordialmentemanter relativa superpopulação no meio rural e um exército de trabalhadores necessários à pro-

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3 Para Lefebvre, “a socieda-de urbana resulta da urbani-zação completa, hoje virtu-al, amanhã real”; nasce daindustrialização que dominae absorve a produção agrí-cola. A sociedade urbana éum modelo teórico. (Lefeb-vre 2002, 16)

4 Kayser (1990, 13) definea ruralidade como um modoparticular de utilização doespaço e da vida social. Po-de ser caracterizado portrês componentes princi-pais: a) o ecológico – estru-tura do habitat humano rela-cionado com a forma deocupação do solo e as rela-ções que se estabelecem; abaixa densidade demográfi-ca relacionada ao espaçofísico natural é o cenáriodessas relações; b) os so-cioeconômicos – uso econô-mico da terra relacionadocom as atividades agrárias.Atualmente, esses usosvêm se diversificando; c) ossocioculturais – modo de vi-da dos habitantes caracteri-zado pela particular relaçãocom o espaço e pelo perten-cimento a pequenas coletivi-dades, bem como identida-de e cultura camponesas.

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dução do agronegócio; iii) um conjunto de atividades não-agrícolas, ligadas à moradia, aolazer e a várias atividades industriais e de prestação de serviço; e iv) um conjunto de novasatividades agropecuárias,5 localizadas em nichos específicos de mercado, o qual fomenta no-vas cadeias produtivas, partindo do rural mas chegando a uma intervenção nas cidades.

Asensio (2006, 25) aponta outros elementos estruturais que explicam as novas re-lações rural-urbanas: i) a evolução do sistema de transportes e das comunicações com aintrodução de novas tecnologias que têm definido alterações nas relações geográficascom o tempo e as distâncias; ii) uma crescente autonomia econômica e demográfica dacidade e o seu transbordamento para áreas tradicionalmente rurais. Como já observado,os processos descritos acontecem concomitantemente ou de maneira fragmentada, con-forme os condicionantes locais definem as formas de conexão do território às tendênciasnacionais de reestruturação no cenário da globalização, com a industrialização da agri-cultura que se integra aos circuitos da economia capitalista, cada vez mais dissociadosdos circuitos locais.6

Em relação à globalização, Veiga (2006, 2) identifica dois aspectos que comandamas transformações tanto das áreas rurais quanto das urbanas: i) a dimensão econômica, queenvolve as cadeias produtivas, o comércio e os fluxos financeiros; o espaço produzido écada vez mais periférico e/ou marginal. Ao lado das novas hierarquias regionais, há vas-tos territórios que se tornam cada vez mais excluídos das grandes dinâmicas que alimen-tam o crescimento da economia global. ii) A dimensão ambiental – que envolve tanto asbases das amenidades naturais quanto várias fontes de energia e biodiversidade – age es-sencialmente para torná-las cada vez mais valiosas para a qualidade da vida, ou o bem-estar. São esses dois aspectos que, como ressalta Topalov (1997, 23) e reafirmam Cardo-so e Ribeiro (1996, 53), caracterizam “o nascimento de um novo paradigma sobre acidade e o habitat”.

Armstrong e Mcgee (in Santos, 1993, 83) propuseram a expressão involução metro-politana para nomear a invasão de práxis rurais no meio urbano em virtude das nume-rosas e brutais correntes migratórias provenientes do campo. Mário Lacerda (1978, 32)nominou tal processo de ruralização da cidade. Como esclarece Santos (1993, 65) no ca-so brasileiro, as regiões agrícolas (e não rurais) podem conter cidades, quando o campocomanda a vida econômica e social do sistema, e as regiões urbanas podem absorver ati-vidades rurais, mesmo que as atividades comandantes sejam as secundárias e terciárias.O quadro, expresso pelos índices populacionais urbanos, não permite a constatação deque parte da população urbana é agrícola, formada por trabalhadores do campo, os“bóias-frias”.

Gilberto Freyre (1988, 18), tentando superar a histórica dicotomia entre cidade ecampo, propôs nos anos 1960 o conceito de rurbanização. A rurbanização antecipa e am-plia a ideia de continuum rural-urbano. Termo originalmente empregado por CharlesGalpin,7 a rurbanização criaria uma terceira situação, híbrida, a partir do urbano e do ru-ral; seria o resultado harmônico da neutralização recíproca das duas formas. O autor pon-derava que a situação rurbana só seria possível considerando-se os problemas do planeja-mento urbano e rural integradamente. O apelo de Freyre parece ganhar sentido nos diasatuais, em que a necessidade de articular o planejamento urbano com o rural é uma dire-triz do Estatuto da Cidade. Barrère (1988, 61) explica que o conceito de rurbanizaçãoreúne diferentes expectativas quanto às possibilidades de integração do rural com o urba-no. Sob uma ótica rural, tem um caráter negativo, porque avalia que os efeitos da urba-nização sobre o rural têm sido predatórios. Nessa perspectiva, compara o conceito de rur-

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5 Silva (2002, ix) explicaque usou o termo novas ati-vidades agropecuárias por-que essas ocorrências nãosão novidade no meio rural;existiam antes de forma ru-dimentar e desestruturada,mas vêm ganhando escala ese estruturando em cadeiasprodutivas.

6 Os efeitos do descola-mento dos circuitos globali-zados da agricultura indus-trializada podem serfacilmente percebidos nasregiões Norte e Centro-oes-te do país. Sobre o tema,ver Carvalho (2007), Acsel-rad e Leroy (1999) e FASE(Cadernos de Debate BrasilSustentável e Democrático1999-2007).

7 Galpin, Charles J. in(Freyre 1988; 82, 94, 103)

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banização com o de periurbanização. Sob uma ótica urbana, a rurbanização tem um as-pecto positivo e pode ser associada à contraurbanização ou exurbanização (deslocamentodo lugar de residência para as áreas rurais). Galpin (in Jacobs, 2000; 455) ressalta que aideia-chave não é a dicotomia entre o urbano e o rural, mas a conformação de uma unida-de de contrários. É importante considerar, como destaca Jacobs (2000, 455), que as cida-des precisam de zonas rurais próximas e, por sua vez, os territórios rurais não podem pres-cindir das várias oportunidades expressas e provocadas pelas cidades.

A dissolução dos limites espaciais entre o rural e o urbano pode ser identificada apartir dos processos socioeconomicos e espaciais, mas não acontecem enquanto referên-cias legais e estatísticas. Os critérios técnicos, legais e administrativos não são as referên-cias mais adequadas, por desenvolverem também outras particulares (híbridas) para ana-lisar e classificar os espaços de transição rural-urbana que aglutinam características dasordens urbanas e/ou rurais. Assim, as categorias urbano e rural vêm perdendo o seu pesoanalítico.

É importante, ainda, considerar a recomendação de Harvey quando adverte que aimagem do rural resiste e adquire outras valorizações como suporte físico de diversas ati-vidades, como as atividades residenciais e de lazer. Talvez por isso, conceitos como urba-no e rural continuam sendo o foco central de textos urbanos. O autor ressalta que: “ape-sar de limites espaciais cada vez mais tênues, a dicotomia entre o campo e a cidade resistepor meio de imagens. A constituição das representações sobre campo e cidade pode serresultado de uma sofisticada forma de alienação produzida pelos capitalistas. Essas ima-gens são reapropriadas em diferentes contextos por agentes interessados pela constituiçãode novos valores de uso e de troca.” (Harvey, 1989, 27)

A afirmativa de Harvey explica a constatação de Barrère. A invasão do urbano no ru-ral é promovida pela valorização das representações (de paz, beleza, proximidade com anatureza de forma exclusiva e preservação das vantagens da urbanidade). Para os ruralis-tas, essa área é um depósito necessário ao urbano, que serve à implantação de equipamen-tos necessários à cidade (lixões, estações de tratamento de água e esgoto); é também umdepósito dos excluídos urbanos. A chegada do urbano ao rural consome o solo de manei-ra excessiva, encarece a infraestrutura e esteriliza o solo produtivo.

CONCEITUANDO AS ÁREAS DE TRANSIÇÃORURAL-URBANA

Em relação às áreas de transição rural-urbana, parece claro à primeira vista que nãoteria sentido delimitá-las, uma vez que a metropolização penetra nos tradicionais espaçosrurais e as relações econômicas, que definem a ruralização, também condicionam os es-paços periféricos metropolitanos, como mostraram Lefebvre, Santos e Kayser. No entan-to, quando se trata o território e os processos espaciais que neles se materializam, muda-se a escala da observação e sente-se a necessidade de caracterizar as distintas manifestaçõesespaciais para poder nelas intervir ou condicionar os seus efeitos. Há de se considerar, ain-da, que as manifestações na escala local estão mais diretamente condicionadas por perma-nências, descontinuidades e contraposições, e compõem um cenário extremamente frag-mentado, onde espaços habitacionais, exclusivos, naturais, produtivos, industriais, etc. seavizinham, mas não necessariamente se conectam ou se relacionam. De fato, a diversida-de de processos complexos e não-orquestrados que caracterizam as áreas de transição ru-

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ral-urbana dificulta uma leitura clara dos limites entre o urbano e o rural. Por essa razão,nesta análise, mais uma vez se reafirma a necessidade de desenvolver metodologias maisadequadas à intervenção no território rural-urbano.

AS ABORDAGENS CLÁSSICAS DAS ÁREAS DE TRANSIÇÃO RURAL-URBANA

As áreas de transição rural-urbana são espaços plurifuncionais, em que coexistem ca-racterísticas e usos do solo tanto urbanos como rurais – presença dispersa e fragmentadade usos, e ausência de estrutura urbana coerente que proporcione unidade espacial, sub-metidas a profundas transformações econômicas, sociais e físicas, com uma dinâmica es-treitamente vinculada à presença próxima de um núcleo urbano.

Uma das primeiras sistematizações das áreas de transição urbanas é atribuída a Smithem 1930, que as definiu como “áreas construídas próximas aos limites administrativos dacidade.” Para Pryor (1971, 61), a franja rural-urbana constitui-se enquanto “zona de tran-sição de usos do solo e características sociodemográficas que se localiza entre: a) as áreascontraídas entre as áreas urbanas e suburbanas da cidade central, e b) a hinterlândia ru-ral, caracterizada pela ausência quase completa de serviços públicos, zoneamento desor-denado, extensão em áreas (contíguas aos limites administrativos da cidade central), e au-mento real e potencial da densidade populacional dos distritos rurais circundantes(porém, inferior ao da cidade central). Estas características podem se diferenciar setorial-mente e se modificar com o tempo”. Ou seja: i) uma franja urbana, que se caracteriza poruma maior densidade, maior ritmo de crescimento demográfico e maior ritmo das trans-formações do solo rural em urbano; ii) uma franja rural, contígua à franja urbana, que secaracteriza por permanências, quer sejam econômicas, quer sejam políticas, que oferecemresistências às transformações mais diretas da urbanização.

Na literatura especializada, encontram-se outros conceitos e denominações que sereferem aos espaços existentes na interface do rural com o urbano, dentre os quais, po-dem ser destacados: franja rurbana, franja rural-urbana, franja periurbana, periferia rur-bana ou, para os casos em que a urbanização não constitui uma faixa homogênea nas di-mensões físico-naturais e/ou sociais. Corrêa (1986, 70) ressalta que seria possível, emalgumas situações, falar em uma periferia suburbana, subúrbio ou periferia rural-urbana,quando acontece um dinâmico processo de urbanização.

Dentre as abordagens clássicas sobre as áreas de transição rural-urbana, destacam-seos trabalhos de Wehrwein (1942), Lively (1953), Golledge (1960), Pahal (1962), Pryor(1971) e Kayser (1990). Eles privilegiaram questões como: a delimitação das franjas ur-banas, os deslocamentos pendulares, a esterilização das terras agricultáveis, a transforma-ção do solo rural em solo urbano, as estratégias de proprietários de terras e dos promoto-res imobiliários. Tais investigações, embora em sua maioria se refiram à realidadeeuropeia, que é diferente da nossa, oferecem pistas para o entendimento dos espaços ru-ral-urbanos brasileiros.

No estudo de alguns modelos, leva-se em consideração, além das influências do pro-cesso de urbanização sobre o território rural-urbano, a escala de aplicação (regional e in-tra-urbana), variáveis sócio-ocupacionais e demográficas, temporalidades e condicionan-tes da produção do espaço. Parte-se do entendimento de que as áreas de transiçãorural-urbana se caracterizam como: zonas de transição de usos do solo urbano para rural– expansão que ultrapassa os limites administrativos urbanos nas nucleações centrais –,lócus de problemas decorrentes das diferentes dinâmicas da urbanização (favelização, es-

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peculação imobiliária, segregação espacial, turismo rural, migrações pendulares, cresci-mento da economia informal, etc.).

Os trabalhos de Pryor (1971), Bryant, Russwurm e McLellan (in Binimelis, 2000)e Carter (1974), Nicole Mathieu (in Asensio, 2005), Kayser (1990), Asensio (2005) ob-servaram os processos de configuração espacial e destacaram as causas da forma dispersaque a expansão urbana tem adquirido para além de seus limites político-administrativos.Esses autores ressaltam os processos que concorrem para a transformação do solo rural emurbano – tais como a descentralização industrial, a favelização – e também os problemasconsequentes da falta de controle urbano, das subversões fiscais, entre outros, que defi-nem a partir de modelos esquemáticos limites para as áreas de transição rural-urbana. Umdetalhamento desses modelos encontra-se em Miranda (2008).

Investigações como as de Donne (1979), Durand-Lasserve, Samson, Russwurm eMcLellan (in Silva, 1995), Corrêa (1986), observam, como as de Kayser, a área rural-ur-bana como trechos descontínuos e dinâmicos. No entanto, discutem, além disso, as per-formances dos agentes envolvidos com a comercialização do solo (proprietários e promo-tores) e dos conflitos gerados decorrentes de suas práticas e das diferentes demandas porterras. Donne e Durand-Lasserve ressaltam que as transformações do solo rural em urba-no, posteriormente em urbanizado e construído, ocorrem em função do movimento dedeslocamento do espaço residencial das elites, onde se operam mecanismos de especula-tiva seleção residencial de segmentos sociais. O deslocamento residencial das elites é es-trategicamente produzido pela ação dos promotores imobiliários, e baliza a transforma-ção do rural em urbano, geralmente na periferia de amenidades.

Os espaços rural-urbanos em Juilliard (1961), Amato (1970), Munton (1974),Clawson (1970) e Sinclair (1967) foram analisados a partir do processo de especulaçãofundiária. Para Clawson e Sinclair, o preço da terra agrícola na periferia urbana, princi-palmente na grande cidade, é influenciado pela expectativa de demanda para fins de ur-banização. Não é função de sua fertilidade ou da proximidade do mercado consumidorcomo nos modelos anteriores. Nesse sentido, pode ser conveniente aos proprietários deterra não fazerem ali nenhum investimento e utilizar a terra extensivamente, ou mesmodeixá-la esterilizada à espera da urbanização e da valorização.

Asencio (2005, sem paginação), ao analisar as características dos espaços periurba-nos para o caso espanhol, considera as dinâmicas das relações socioespaciais entre o rurale o urbano para conceituar e delimitar as áreas periurbanas. Para o autor, os espaços pe-riurbanos são:

(...) zonas rurais onde a influência urbana é mais forte por sua proximidade física com a ci-dade, em sua extensão física e funcional que as invade e integra através de processos únicoscujos efeitos são de natureza diversa: econômica, demográfica, social e territorial, de formaque o aspecto mais importante desses espaços periurbanos é a mescla de usos do solo, o qualrepercute em um incremento da complexidade dos fluxos de pessoas, bens, serviços e infor-mação promovido pela presença de uma rede de comunicação bem desenvolvida.

O autor destaca as importantes funções que desempenham essas fronteiras e seu en-torno: i) podem ser condutores, zonas de passagem que canalizam os movimentos do ru-ral para o urbano e do urbano para o rural; portanto, podem ser entrepostos de distribui-ção; ii) podem ser filtros que regulam as relações entre o rural e o urbano, portanto, sãozonas de preservação de ativos ambientais e produtivos; iii) são zonas recreativas e de la-

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zer frente ao aumento das demandas de solo para esses usos; iv) são receptoras dos exce-dentes populacionais, tanto urbanos quanto agrícolas; v) são espaços dinâmicos da espe-culação imobiliária, pelas vantagens locacionais e pela disponibilidade de solo no entor-no urbano; vi) são zonas isoladas e autônomas de usos residenciais; vii) podem ser zonasadequadas à implantação de grandes equipamentos industriais e comerciais; viii) corres-pondem a zonas de influência de uma área urbana policêntrica, cercada por uma zonaprodutiva; ix) são zonas onde a expansão urbana está fortemente limitada por obstáculosnaturais, com zonas onde existem problemas de esterilização do solo.

Ao comparar a realidade baiana com a europeia, Juilliard (1961, 3) observa que,apesar de em linhas gerais, as franjas europeias conservarem correlações com os casosbrasileiros, é preciso considerar que, na Europa, a agricultura intensiva periurbana con-vive menos conflituosamente com o processo de urbanização. No Brasil, principalmen-te no litoral, onde a área rural se implantou no período colonial da cana-de-açúcar, existea “passagem direta de uma agricultura especulativa para a especulação da terra”. Tal pas-sagem é mais sentida em áreas próximas aos limites urbanos ou na vizinhança dos eixosrodoviários.

As relações entre as demandas diferenciadas por usos do solo urbano e os interessesdos distintos grupos que rentabilizam o capital com investimentos imobiliários têm umaconsiderável importância na transformação dos usos agrícolas do solo para usos habita-cionais. E, mais especificamente, uma importância na diversificação da tipologia de par-celamento e de uso, o que favorece a formação de submercados de áreas de uso habitacio-nal e acarreta a incorporação de novas áreas ao perímetro urbano municipal, comconsequente formação de novos focos de valorização.

As dificuldades na caracterização do território rural-urbano se devem principalmen-te a sua dispersão, diversidade de processos, continuidades e descontinuidades, e a sua bai-xa densidade. Dessa forma, não é possível delimitá-lo de maneira integral. Os recortes ter-ritoriais estatísticos oficiais, as legislações vinculadas a esses recortes (como por exemplo,a Lei do Perímetro Urbano) e as competências governamentais sobre o território são al-guns dos elementos que devem ser revistos para que se possam restabelecer as relações decooperação local.

OS NOVOS PLANOS DIRETORES E A QUESTÃORURAL-URBANA

No Brasil, as áreas de transição rural-urbana não foram objeto direto do planejamen-to municipal, mas foram fortemente impactadas pelas políticas implementadas na metró-pole. Na medida em que os usos urbanos ultrapassaram os limites institucionais, surgeuma nova demanda de parâmetros e instrumentos de planejamento, a qual solicita a re-visão dos marcos regulatórios existentes. Tal desafio terá de ser enfrentado pelos planeja-dores urbanos brasileiros que, tradicionalmente preocupados com a metrópole, não têmconseguido planejar de forma integrada os territórios intrametropolitanos e sua interfacerural-urbana. Essas áreas continuam a ser entendidas enquanto espaço de reserva da ex-pansão urbana e da localização das grandes infraestruturas de serviços, ou como áreas depreservação dos mananciais e recursos naturais.

A concepção de planejamento no âmbito do ideário da reforma urbana parte dodiagnóstico centrado nas desigualdades e nos direitos sociais, e da necessidade de reconhe-

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cimento dos conflitos urbanos como expressão política das condições gerais da estruturasocioeconômica. Considerando-se a dualidade referente aos espaços com infraestrutura(legais) e aos espaços precários (irregulares), em função de estarem em desacordo com alegislação ou com os procedimentos de controle urbanístico, denotam diferentes tipos deirregularidade relativos à posse do terreno e/ou parcelamento, ocupação do solo e edifica-ção não-permitidos. Essa concepção propõe um novo modelo de pensar a cidade a partirde três premissas: i) da instituição da gestão democrática, ao reconhecer o direito dos ci-dadãos à participação política na condução dos destinos da cidade; ii) do fortalecimentoda regulação pública do solo urbano; da inversão de prioridades, quando apontava paraque os investimentos públicos privilegiassem as demandas da população de baixa renda eseus territórios com precárias condições de habitabilidade; iii) da garantia da função soci-al da propriedade e da cidade, com a proposição do uso socialmente justo e equilibradodo espaço urbano, o reconhecimento do direito de acesso aos bens e serviços urbanos, ea necessidade de uma justa distribuição dos custos e benefícios da urbanização.

A atuação do Estado tem-se caracterizado como complexa e contraditória. Ao mes-mo tempo em que se encarrega de intervenções voltadas para a reprodução da força de tra-balho (a partir da distribuição e gestão dos equipamentos de consumo coletivo), realizaobras de infraestrutura. Estas promovem a expansão da atividade econômica e acentuamos processos de valorização diferenciados entre as áreas da cidade, o que contribui para asegregação urbana. No entanto, diferentemente da concepção tradicional, que trabalhouhistoricamente o planejamento e a gestão em separado, a base para a efetividade das pro-postas e instrumentos preconizados pela reforma urbana era a instituição da gestão demo-crática da cidade como o requisito fundamental. Essa visão parte do pressuposto de que acidade é produzida por uma multiplicidade de agentes que devem ter sua ação coordena-da a partir de um pacto coletivo que corresponda ao interesse público da cidade.

O pacto entre todos os agentes modeladores do espaço seria materializado, em umaprimeira etapa, na elaboração do Plano Diretor. O processo de elaboração do Plano Dire-tor é visto, portanto, como uma oportunidade para o debate dos cidadãos em torno da de-finição de opções negociadas para uma estratégia de intervenção nos territórios da cidade.

Apesar do novo marco regulatório que vem sendo construído, a partir do Estatutoda Cidade, ainda existem fortes constrangimentos legais que dificultam o planejamento ea gestão das áreas de transição rural-urbana. A ampliação do papel dos municípios noscampos do planejamento e da gestão urbana é uma deles, pois não vem, por enquanto,dar ensejo a oportunidades para a rediscussão do planejamento metropolitano em novasbases, diferentes dos processos tecnocráticos de planejamento dos anos 1970/80. A con-centração fundiária nessas áreas também traz dificuldades consideráveis, uma vez que asgrandes propriedades nas bordas da urbanização conferem ao proprietário fundiário gran-des poderes no jogo da produção do espaço. Em relação a este último aspecto, uma pos-sibilidade de integração entre rural, urbano e rural-urbano ancora-se na discussão articu-lada sobre a função social da propriedade.

O município é o principal responsável pela execução da política urbana, nos termosdo art. 182 da Constituição Federal. Cabe ao município promover os objetivos da políti-ca urbana estabelecidos nesse artigo: i) garantir o pleno desenvolvimento das funções so-ciais da cidade e o cumprimento da função social da propriedade; e ii) garantir condiçõesdignas de vida urbana e o bem-estar de seus habitantes. Definir os critérios para a cidadee a propriedade urbana atenderem à sua função social é competência, portanto, munici-pal, nos termos do art. 182 da Constituição. Assim, a atuação do Poder Público muni-

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cipal está condicionada à observância da lei federal de desenvolvimento urbano, que é oEstatuto da Cidade, e ao Plano Diretor, concebido como o principal instrumento da po-lítica de desenvolvimento urbano.

As áreas urbanas e rurais e as áreas de transição rural-urbana têm relações evidentesde dependência, complementaridade, conflito, etc., quando se consideram as dimensõeseconômica, social, ambiental e cultural, bem como as infraestruturas, serviços e equipa-mentos em todo o território municipal. Para qualquer município que tenha atividadescom alguma expressão no meio rural, não é possível buscar o desenvolvimento urbano ig-norando o ambiente rural. Aliás, parte significativa dos municípios brasileiros tem desen-volvido suas principais atividades econômicas na área rural.

É importante registrar que essa questão é objeto de controvérsias. Alguns posiciona-mentos veem a interferência municipal em relação ao território rural como inadequada, aoconsiderarem que, tanto do ponto de vista fiscal-tributário quanto em relação à regulaçãodas atividades, o ente federativo responsável deve continuar a ser a União. Não há dúvidade que a competência sobre a questão agrária é da União (pelo art. 22, I, da ConstituiçãoFederal), mas é o município o ente com a melhor condição para planejar o desenvolvimen-to local sustentável, a partir da compreensão das interfaces entre as questões urbana, agrá-ria e a questão regional. Nesse aspecto, vale ressaltar a fragilidade das estruturas fiscal-tributária e de controle do uso e ocupação do solo para as áreas rurais sob gestão doInstituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

As atribuições constitucionais, inclusive as de competência comum, como protegero meio ambiente, fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimen-tar, cuidar da saúde e da assistência social não estão restritas à área urbana. Portanto, omunicípio não pode deixar de contemplar a totalidade do seu território e de sua popula-ção para efeito de planejamento e gestão territorial e implementação de políticas públicas.O sistema de planejamento municipal deverá, então, ser constituído por órgãos adminis-trativos que compreendam também a área rural e sejam capazes de articular interfacescom as questões regionais.

A regulação do parcelamento do imóvel rural para fins urbanos ou dos imóveis ru-rais em áreas urbanas é outro aspecto que deve ser repensado. Essa é uma responsabilidadedo INCRA e está alicerçada em uma instrução (nº 17-b, de 22/12/80), com conteúdos in-suficientes para controlar esse tipo de ocupação. Se a regulação das formas de uso, ocupa-ção e parcelamento do solo no território municipal é, inegavelmente, de interesse local,como reconhecido constitucionalmente, é necessário que os municípios entrem em arti-culação com o INCRA para exercer essa função. Contudo, considerando o déficit históricodos municípios em relação ao controle do uso e ocupação do solo, não parece haver pers-pectivas promissoras nesse sentido. Normalmente, quando há interesse do município emrelação a alguma área rural para a realização de novos parcelamentos urbanos, o períme-tro urbano é expandido, com a consequente demarcação de zonas de expansão urbana.Esta, em muitas ocasiões, não se configura na melhor medida, já que pode implicar, porexemplo, no comprometimento da produção rural, ou das áreas de preservação de ma-nanciais e da cobertura vegetal presentes nas zonas rurais.

Há que se considerar ainda que os limites definidos das zonas urbanas e rurais apre-sentam, muitas vezes, certo grau de arbitrariedade. Em diversos municípios da zona ruralhá atividades não agrícolas em estreitas relações com as atividades urbanas. Da mesma for-ma, nas áreas urbanas há porções do território com atividades agrícolas. Nas áreas de tran-sição rural-urbana, essas situações se apresentam com maior intensidade.

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O ordenamento do território, que é competência do município, deve ter, portanto,como finalidade o pleno cumprimento das funções sociais da cidade e da propriedade (ur-bana e rural), de modo que sejam enfrentadas as desigualdades socioterritoriais. Para oterritório rural, algumas situações deverão ser priorizadas: regulação do uso e ocupação dosolo nos distritos e aglomerados situados na área rural; definição de zonas especiais de pre-servação ambiental, de interesse histórico, cultural; regulação das atividades de turismo elazer; e controle ou regularização fundiária dos assentamentos irregulares, áreas ocupadaspor população de baixa renda e dos loteamentos clandestinos.

Do ponto de vista da regulação do uso e ocupação do solo, a exigência em englobaro território do município como um todo, abrangendo as zonas urbanas e rurais, é funda-mental, levando em conta a expansão urbana e as transformações dos imóveis com o de-senvolvimento de atividades não agrícolas. Parte significativa dessas transformações refe-re-se aos parcelamentos clandestinos ou irregulares em processos de urbanizaçãopredatória com efeitos significativos em áreas de interesse ambiental.

Nas regiões metropolitanas, e considerando as áreas de transição rural-urbana, aquestão se torna mais complexa. A maior parte das áreas de transição rural-urbana nas re-giões metropolitanas integra o território de mais de um município. À exceção dos insti-tutos de regulação de proteção ambiental definidos em âmbito federal e estadual, as pos-sibilidades de desarticulação entre municípios em relação às normas, regras einstrumentos normativos são muito grandes.

Em relação aos novos instrumentos de política urbana previstos no Estatuto da Ci-dade para as áreas de transição rural-urbana, é provável que haja dificuldades na aplica-ção de parte deles, principalmente os de indução ao desenvolvimento (inibição da reten-ção especulativa), quando se leva em consideração que a maior parte das áreas não temuma adequada cobertura de infraestrutura e serviços urbanos. Caso existam áreas com in-fraestrutura, seria possível utilizar esses instrumentos de forma articulada e criativa, a fimde induzir o uso e ocupação de modo equilibrado em função da disponibilidade de infra-estrutura e das condições ambientais. Mas, talvez a questão mais importante prevista noEstatuto da Cidade seja a Gestão Democrática; os instrumentos de política urbana só te-rão efetividade se representarem um projeto de cidade definido democraticamente. A efe-tividade dos instrumentos depende da gestão do território, e o equilíbrio do desenvolvi-mento nessas áreas não interessa aos atores mais sensíveis a essa questão e nem estápautada por eles.

Duas questões estão colocadas como desafio para a gestão e o planejamento urbanosno Brasil, ao se considerar o contexto de mudanças conceituais e institucionais decorren-tes do novo marco regulatório para a política urbana, tributário do ideário da ReformaUrbana: i) como a dimensão metropolitana poderá ser trabalhada em um contexto demunicipalização da política urbana; e, ii) qual será o tratamento possível para as áreas detransição rural-urbana em Regiões Metropolitanas, levando-se em conta que a maior par-te delas é integrada pelos territórios de vários municípios?

Com a emergência da questão ambiental a partir dos anos 1980, quando se levouem conta que é na área periurbana que se concentram os mais significativos recursos na-turais importantes para o equilíbrio ambiental e para os sistemas de infraestrutura urba-na das cidades, foram implementados instrumentos e normas de proteção para as áreas deinteresse ambiental, principalmente para os sistemas de mananciais. É preciso revisitar osmarcos legais para evitar as sobreposições de leis ambientais e urbanas e competências degestão pública do território.

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Para o planejamento e gestão das áreas de transição rural-urbana enquanto processopolítico, são essenciais a estruturação e a efetividade do sistema de gestão democrática. Agestão democrática, fundamento do Estatuto da Cidade, pressupõe a organização da so-ciedade civil para interferir no processo político de definição das prioridades e caminhospara o desenvolvimento da cidade. Historicamente, nas áreas de transição rural-urbana, aintensidade de disputas e conflitos em torno dos processos de ocupação do solo, das ati-vidades que ali são desenvolvidas, é menor do que nas áreas centrais.

A dificuldade para a emergência dos processos e dos conflitos socioespaciais e pa-ra a constituição de espaços específicos para a discussão sobre o desenvolvimento dasáreas de transição rural-urbana está relacionada com as possibilidades de organização dasociedade civil. Nas áreas de transição rural-urbana, os interesses estão menos organiza-dos, e as condições não são favoráveis em termos de identidade para a formação de gru-pos e corporações que defendam publicamente seus interesses com relação ao uso e àapropriação dos espaços nessas áreas. Em termos da discussão mais ampla, a possibili-dade de debate sobre essas áreas, de forma integrada com os outros territórios nas cida-des, é pequena.

Há, portanto, um longo caminho a trilhar, e o contexto histórico não é favorável.Permanecem, apesar dos consideráveis avanços, os baixos níveis de institucionalidade e detransparência, e as práticas particularistas (tradições de alta personalização), com graus va-riados de (des)consideração dos planos e dos instrumentos normativos, bem como de ins-tabilidade no funcionamento das instâncias de gestão democrática. É importante ressal-tar que as ações dos agentes governamentais foram, historicamente, influenciadas poragentes mais organizados e com maior poder político e/ou econômico, principalmente osproprietários fundiários, os agentes imobiliários e os prestadores de serviços urbanos.

Os canais e as instâncias de gestão democrática das cidades, como os conselhos e asconferências, são espaços para a negociação e a construção de projetos coletivos, comotambém para a explicitação de interesses e conflitos. Se os setores pró-reforma urbana ti-veram muitas conquistas no sentido da construção de políticas públicas comprometidascom o enfrentamento do quadro de desigualdades socioespaciais, não há dúvida de queas disputas em torno dos projetos de cidade fazem e continuarão fazendo parte desse mo-delo de gestão democrática preconizado pelo Estatuto da Cidade. O conservadorismo deagentes e grupos que historicamente exerceram o poder político e econômico nos muni-cípios é um fator que deverá se tornar um obstáculo a um planejamento participativo eprogressista, comprometido com objetivos de justiça social e equidade.

Os instrumentos de planejamento e gestão democrática precisam ser apropriados pe-la população para evitar a gestão reativa permeável a agentes mais organizados e mais po-derosos. As disputas precisam ser entendidas à luz de uma teia de relações em que a exis-tência de conflitos de interesse é um ingrediente inerente. As questões públicas e osinteresses privados (econômicos, locais e corporativos) interagem em um padrão poucocoordenado, o que reflete as relações e práticas contraditórias que atuam no modo capi-talista de produção espacial.

O contexto imprime a necessidade de uma abordagem regionalizada do território,que seja multidisciplinar e que consiga superar as dicotomias entre o puramente urbanoe o teluricamente rural. No entanto, o que se observa é que as referências, teorias, con-ceitos, instrumentos e mecanismos que condicionam as visões sobre os modelos de de-senvolvimento e de planejamento dos territórios urbanos e rurais, em suas diversas ver-tentes, pouco dialogaram – é o que reflete a histórica dicotomia entre o rural e o urbano

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(o campo e a cidade). Assim, essas áreas continuam a ser pensadas como áreas destina-das à expansão urbana, áreas rurais ou áreas de proteção ambiental – pois se deixa de re-conhecer a complexidade das interações entre os processos urbanos e rurais em ambien-tes e territórios com características específicas. Mesmo havendo institutos de regulaçãode proteção ambiental definidos em âmbito federal e estadual, as possibilidades de desar-ticulação entre os municípios em relação a normas, regras e instrumentos normativos sãomuito grandes.

O Estatuto da Cidade, ao indicar que os Planos Diretores devem tratar do conjun-to do território municipal, deverá permitir estabelecer procedimentos de planejamento eintervenção que abranjam tanto o rural como o urbano. Essa abordagem só é possível seos processos espaciais forem observados para além das malhas legais e oficiais. Nesse sen-tido, a escala regional ganha foco. Ainda sobre a observação dos processos urbanos nasáreas de transição rural-urbana é importante realizar: i) pesquisas sobre o funcionamen-to, os mecanismos e processos que regem o mercado de terras e imobiliário, especialmen-te para o segmento mais pobre da população; ii) criar formas concretas para enfrentamen-to do problema, principalmente com instrumentos normativos e regras próprias quedirecionem e estruturem a urbanização, no que se refere ao uso e ocupação do solo e aocontrole dos preços adotados pelo mercado. As possibilidades de associações municipaisestão abertas e devem ser utilizadas para além dos territórios estratégicos de oportunida-des exigidas pelo desenvolvimento globalizado. Devem ser usadas também em função daspossibilidades produtivas, em novos recortes espaciais, construídos em função das possi-bilidades de integração dos processos locais/regionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desse trabalho, ficou claro que o enfrentamento dos desafios por parte doplanejamento metropolitano, seja no âmbito interurbano, seja intra-urbano, não será su-perado se não forem consideradas, dentre outras, questões mais estruturais: i) a produçãode sistemas de informação mais adequados aos novos recortes espaciais rural-urbanos eajustados às tendências, fenômenos e processos atuais de transformação tecnológica da re-estruturação produtiva do novo rural, dentre outros; ii) a formulação, a revisão e o aper-feiçoamento dos instrumentos de regulação urbana; a adequação das normas administra-tivas, urbanísticas e procedimentos legais e administrativos às condições da produçãosocial do espaço rural-urbano; iii) o aperfeiçoamento dos instrumentos de política públi-ca existentes visando a integração e a eficácia dos instrumentos de planejamento e gestãourbano-metropolitana; iv) a inclusão da questão rural-urbana na pauta dos atores sociaise demais agentes do desenvolvimento urbano, e o fortalecimento das questões da agendametropolitana e das esferas públicas que tratam do tema visando promover um maiorcontrole social das ações públicas, bem como eficiência administrativa; v) o fortalecimen-to de iniciativas fomentadoras da geração de renda e da segurança alimentar das famíliasem situação de vulnerabilidade social residentes nessas áreas. Planejar integradamente osterritórios urbanos e rurais significa considerar os processos espaciais para além da cidadecompacta. É preciso superar uma visão consolidada em que as áreas de transição rural-ur-bana são planejadas com uma lógica de reserva da expansão urbana.

Os processos de Planejamento e Gestão Urbanos, em destaque os novos Planos Di-retores, poderão ser mais efetivos se estenderem, criativamente, às áreas de transição ru-

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ral-urbana os instrumentos urbanísticos recém-conquistados com o Estatuto da Cidade.Eles poderão ampliar a capacidade de regulação dos usos do solo e controlar a especula-ção fundiária e imobiliária, tanto nos perímetros urbanos quanto no entorno rural, fre-quentemente esvaziado das suas atividades agrícolas, se conseguirem implementar efetivasinstâncias de planejamento e gestão democrática desses processos.

Planejar os territórios rural-urbanos não é um desafio pequeno. As referências,teorias, conceitos, marcos regulatórios, instrumentos e mecanismos que condicionamas visões sobre os modelos de desenvolvimento e de planejamento dos territórios urba-nos e rurais, em suas diversas vertentes, pouco dialogaram – refletindo a histórica dico-tomia entre o rural e o urbano (o campo e a cidade). Até as lutas que tiveram como re-ferenciais as reformas de base, as reformas agrária e urbana, não tiveram estreitadas suasestratégias.

A luta pela reforma agrária mais diretamente ligada às mudanças estruturais apon-tou para a desconcentração de terra necessária à desconcentração dos meios de produçãoe perspectivas econômicas mais solidárias. A reforma urbana também apontou para aquestão fundiária, mas acabou dando ênfase à reprodução social dos segmentos margina-lizados e excluídos das cidades, e esses projetos acabaram não construindo pontes paradiálogos. Se houve equívocos em relação a essas estratégias – ou pelo menos à falta de es-forços para aproximações desejáveis, como faces de uma mesma moeda –, isso fica eviden-te quando em alguns territórios as questões se misturam mais claramente, como é o casodas áreas de transição rural-urbana. Vale ressaltar que o distanciamento dessas lutas inte-ressou e interessa a todos que concentraram poder político, terra, renda, riquezas, meiosde produção, entre outros, e que souberam influenciar marcos regulatórios, políticas pú-blicas e a opinião pública.

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Lívia Izabel Bezerra deMiranda é arquiteta e urba-nista, doutora em Desenvol-vimento Urbano, educadorada FASE-PE e pesquisadorado Observatório das Metró-poles-PE.Email: [email protected]

Artigo recebido em junho de2009 e aprovado para publi-cação em agosto de 2009.

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A B S T R A C T To investigate spatial processes and city planning possibilities for therural-urban transition areas is the objective in this paper. Was anticipated that even if theseareas have not been, historically, centered by urban planning focus, they express, currently, astrong convergence of interests, processes and conflicts on social-economic, territorial andenvironmental issues. So, it’s not possible to promote a sustainable and socially just occupationand land use of the whole municipality area – as it is defined by the Estatuto da Cidade (“CityStatute”, a 2001 Brazilian Federal Law) – if we do not have urban policy instruments thatcould actually guarantee urban planning possibilities for the rural-urban transition areas. Wasevident that although the recent legal and institutional advances for the Urban Reform idealsin Brazil, it stills many difficulties to face the serious problems that come from an historicalprocess of spread, incomplete and speculative land use and occupation, and its consequentplanning issues.

K E Y W O R D S Urban planning; urban policy; urban-rural transition.

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ECOVILLECONSTRUINDO UMA CIDADE PARA POUCOS

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R E S U M O As pesquisas elaboradas para compreender a urbanização desigual emCuritiba enfatizaram o papel do planejamento urbano nesse processo. Entendendo que essa de-sigualdade é resultado da forma como se dá a valorização da terra e da apropriação diferen-ciada desta pelas camadas sociais, torna-se necessário compreender como a prática do planeja-mento urbano se articula a essa dinâmica. Considerando que o avanço dessa discussão deveprocurar revelar as causas dessa desigualdade, e não apenas constatar sua existência, este arti-go tem como objetivo compreender essa relação a partir da análise de um caso específico: o Eco-ville. Originalmente concebido como uma nova frente de expansão urbana que evitaria a ocu-pação de áreas impróprias na cidade, sua implantação ocorreu de maneira totalmente oposta,produzindo um espaço com baixa densidade populacional voltado para camadas de alta ren-da. Argumenta-se que o estudo do Ecoville contribui para construir uma explicação sobre aprática do planejamento urbano em Curitiba, porque evidencia as contradições que são pro-duzidas em torno da valorização da terra.

P A L A V R A S - C H A V E Ecoville; Curitiba; planejamento urbano; urbaniza-ção; valorização da terra.

URBANIZAÇÃO E PLANEJAMENTO URBANO NOBRASIL

O acentuado processo de urbanização que ocorreu mundialmente ao longo do sé-culo 20 foi acompanhado do esforço teórico em compreendê-lo. Uma das perspectivasteóricas, de inspiração marxista, analisou o fenômeno urbano como resultado das rela-ções sociais produzidas pelo modo de produção capitalista. Tais relações sociais pos-suem especificidades no caso brasileiro, cujo capitalismo mesclou modernização e con-servadorismo. Essas características forçaram aqueles que se propuseram a explicar ofenômeno urbano nacional a construir interpretações alternativas.

A especificidade do capitalismo brasileiro foi explicada por alguns autores a par-tir da ideia de “ambiguidade”. Entre eles estão Caio Prado Jr. (1990), Francisco de Oli-veira (2003), Roberto Schwartz (2005), entre outros. O caráter ambíguo do capitalis-mo no Brasil está na reprodução e na permanência, mesmo na atualidade, de relaçõesde privilégios e favores, características predominantes no período colonial. Esse tipode dominação tradicional não permite que haja distinção entre as esferas pública e pri-vada. Com isso, a formação do Estado nacional se deu através de um longo processosocial no qual não houve o rompimento com relações de poder assimétricas. Ao invésde o Estado se constituir em um campo político autônomo, capaz de representar inte-resses plurais e atuar de maneira democrática, ele permanece controlado por camadassociais dominantes que fazem uso da máquina estatal em proveito próprio, impedin-do a universalização dos direitos sociais e mantendo a estrutura desigual da sociedadebrasileira.

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Essas especificidades da formação do capitalismo brasileiro tiveram reflexos pro-fundos em nosso processo de urbanização e em suas principais contradições. Para com-preender tal relação é preciso, antes de tudo, considerar as formas de produção do va-lor da terra no espaço urbano. Segundo Flávio Villaça, parte do valor da terra éproduzido pelas intervenções humanas que dão forma à cidade (construções, ruas, in-fraestrutura). Porém, a parte principal do valor é produzida pelo efeito de aglomeração.No espaço urbano, cada parcela de terra possui uma localização própria em relação àcidade como um todo. As localizações que oferecem maior acessibilidade ao sistemaurbano são as que possuem maior valor (Villaça, 1998). Como se pode imaginar, oEstado é decisivo em tal dinâmica, pois ele é o principal executor da infraestrutura ur-bana, fator essencial para definição da acessibilidade e, portanto, do valor da terra. As-sim, enquanto a universalização do acesso à infraestrutura urbana reduz as diferencia-ções de localização na cidade, reduzindo também o preço da terra, sua restrição temefeito oposto.

Para os autores aqui estudados, o modelo de regulação estatal brasileiro sobre as for-mas de valorização do espaço urbano favoreceu historicamente determinadas camadassociais. Ermínia Maricato (2000; 2001) afirma que a urbanização brasileira revela umaregularidade: a intervenção do Estado, ao invés de atender ao interesse coletivo e ser,portanto, distribuída pelo espaço de acordo com as necessidades sociais, foi direcionadapara áreas específicas das cidades, geralmente aquelas onde se concentram as camadas dealta renda.

As obras de infraestrutura urbana alimentam a especulação fundiária e não a democratizaçãodo acesso a terra para moradia. Proprietários de terra e capitalistas das atividades de promo-

ção imobiliária e construção são um grupo real de poder e de definição das realizações orça-

mentárias municipais. (Maricato, 2000, 157).

A intervenção estatal, ao beneficiar certas áreas em detrimento de outras, acentua osdiferenciais de localização, o que promove, no final da cadeia, uma elevação do preço daterra. Tal processo origina um mercado imobiliário formal restrito que limita o acesso degrande parte da população aos espaços urbanos mais valorizados. Estabelece-se assim a se-gregação espacial, pois àqueles que não conseguem inserir-se nesse mercado, resta ocuparáreas com baixo valor fundiário, portanto, periféricas e com pouco investimento público.Um dos traços marcantes da urbanização brasileira é a formação de um mercado informalde acesso a terra, no qual a invasão de terras sem interesse para o mercado imobiliário setornou um expediente generalizado.

Conclui-se, então, que a urbanização brasileira é composta de duas faces opostas quesão resultado da mesma dinâmica, que gira em torno da maneira como ocorre a valoriza-ção da terra e a apropriação diferenciada desta pelas diferentes camadas sociais.

Por sua vez, Villaça (1997) acrescenta o fato de que a segregação espacial não é so-mente um efeito das relações sociais perversas descritas acima. Uma vez estabelecida, elatende a se reforçar e se reproduzir. Isso se explica porque a segregação espacial é ela pró-pria uma forma de as camadas de alta renda controlarem o espaço urbano segundo seusinteresses. Ao se enclausurarem em determinadas partes da cidade, elas podem direcionarcom mais facilidade a produção de localizações favoráveis. Ao mesmo tempo, como a exis-tência de moradias de baixa renda desvaloriza seu entorno, sua periferização favorece amanutenção do mercado imobiliário formal restrito.

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A discussão que fizemos até aqui é necessária para pensar o papel do planejamentourbano no Brasil. Para Villaça (1999), o planejamento urbano é composto por uma sériede modalidades que se relacionam entre si, e podem ou não ser utilizadas em conjuntoem uma cidade.

Uma das modalidades mais comuns de planejamento urbano no Brasil é o zonea-mento, aplicado em diferentes cidades desde o final do século 19. A classificação do es-paço urbano por meio do zoneamento contribuiu para valorização diferencial da terra aocriar parâmetros restritivos que reservaram grande parte do território para os interesses domercado imobiliário, e com isso impediram o acesso da população de baixa renda. “[...]são mecanismos perversos que mantêm a pobreza longe das áreas mais bem urbanizadas,construindo uma muralha por meio da regulação urbanística e reservando as regiões maisqualificadas aos mercados formais [...].” (Rolnik, 1999, 105).

Outra modalidade bastante difundida é aquela que se desenvolveu em torno da ela-boração de planos diretores. Villaça, no entanto, defende que essa modalidade de plane-jamento urbano existe principalmente no campo do discurso. O plano diretor seria uminstrumento retórico que pressupõe uma ação idealizada do Estado que não correspondeao que é efetivamente realizado. Apesar da generalizada elaboração de planos diretores pa-ra as metrópoles brasileiras, principalmente a partir da década de 1960, sua aplicação prá-tica foi restrita ou quase nula.

Pelo menos durante cinqüenta anos (entre 1940 e 1990), o planejamento urbano brasileiro

encarnado na ideia de Plano Diretor não atingiu minimamente os objetivos a que se propôs.A absoluta maioria dos planos foi parar nas gavetas e nas prateleiras de obras de referência. Amaioria dos pouquíssimos resultados que produziram é marginal nos próprios planos e mais

ainda na vida das cidades às quais se referiram. (Villaça, 1999, 224).

Por isso Villaça chegou à conclusão que, no Brasil, o Plano Diretor cumpre uma fun-ção essencialmente ideológica, que é a de ocultar a ação parcial do Estado sobre o espaçourbano. Pode-se concluir então que a prática e o discurso do planejamento urbano noBrasil favoreceram a valorização e a apropriação desigual do espaço urbano, contribuin-do, por isso, para construção de cidades também desiguais.

O PLANEJAMENTO URBANO DE CURITIBA

Diante do contexto exposto acima, e de acordo com o discurso oficial, Curitiba apa-receria como um contraponto, pois, ao contrário das demais cidades brasileiras, nela aprática do planejamento urbano teria contribuído decisivamente para configuração deum espaço urbano qualificado.

A origem desse processo de planejamento urbano remonta à década de 1960, quan-do foi elaborado o Plano Preliminar de Urbanismo (PPU). No PPU foi elaborado um diag-nóstico da cidade que apontava suas principais deficiências: (i) crescimento radial e semorientação; (ii) acentuada concentração de funções no centro da cidade; (iii) baixa densi-dade de ocupação do solo, resultando em um encarecimento da infraestrutura urbana. Pa-ra corrigir estas deficiências foram elaboradas as seguintes diretrizes: (i) indução de umcrescimento linear na cidade ao longo de duas vias estruturais, norte e sul; (ii) desenvol-vimento de um sistema polinucleado, por meio de centros secundários, para evitar uma

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extrema concentração de funções no centro da cidade; (ii) adensamento da cidade, atra-vés do incentivo à verticalização em várias zonas residenciais, e da contenção da expansãourbana. (Prefeitura Municipal de Curitiba, 1965)

Finalizado o PPU, a equipe local de acompanhamento do Plano se tornou permanen-te, dando origem ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba, o IPPUC.A partir das propostas do PPU, o IPPUC elaborou o Plano Diretor de Curitiba, que foiaprovado em 1966. Apesar de aprovado, o Plano Diretor não foi imediatamente implan-tado, devido a divergências políticas, tornando sua influência na estruturação da cidadebastante limitada. De acordo com o próprio IPPUC, no período entre 1966-1971, “o mo-delo de desenvolvimento adotado vinha sendo utilizado apenas como referência e instru-mento disciplinador, atuando mais em sentido preventivo e somente em alguns casos de-finindo normas objetivas de ação.” (1976, não paginado).

Essa situação foi alterada em 1971, quando Jaime Lerner, então presidente do IPPUC,foi nomeado prefeito. A partir de sua gestão, o poder executivo encampou a ideia de uti-lizar o planejamento urbano como orientador do desenvolvimento. Grande parte do su-cesso dessa experiência se deve ao poder atribuído ao IPPUC, que passou a controlar todaadministração pública, adquirindo hegemonia sobre os demais departamentos. O plane-jamento urbano tornou-se um processo gerido pelo IPPUC e ajustado continuamente pa-ra acompanhar a evolução urbana.

A intervenção mais significativa, e que se tornou o elemento central da organizaçãourbana, foi a implantação de eixos lineares de desenvolvimento, os chamados eixos es-truturais, proposta esboçada desde o PPU. Estes eixos tinham como objetivo ordenar odesenvolvimento da cidade através da associação do sistema viário, transporte coletivo eadensamento construtivo. Em relação ao sistema viário, eles continham as principais vias de ligação da cidade, que através de uma rígida hierarquia viária, coletavam o fluxodos bairros. Da mesma maneira funcionava o sistema de transporte coletivo, através daarticulação entre as linhas expressas contidas nos eixos estruturais e as linhas alimenta-doras. Em relação aos usos, foi incentivada nestes eixos a concentração de habitação, co-mércio e serviços por meio do adensamento construtivo. No restante da cidade se criouum zoneamento escalonado, em que os parâmetros iam sendo progressivamente reduzi-dos, na medida em que as zonas se afastavam dos eixos estruturais. Como se pode ob-servar no Mapa 1, o processo de verticalização seguiu em linhas gerais as determinaçõesdo planejamento urbano. Além da implantação dos eixos estruturais, houve outras inter-venções que modificaram o espaço urbano, como a criação de parques, a instituição dosetor histórico na área central, e a transformação de ruas centrais em áreas exclusivas pa-ra pedestres.

Conforme aponta Segawa: “Curitiba significou uma possibilidade real de desenvol-ver planos urbanos de forma bem-sucedida. A experiência tornou-se paradigmática emtermos brasileiros e, atualmente, o padrão de qualidade de vida da cidade chama a aten-ção dos técnicos do mundo” (1998, 179). Foi assim que a crença de que o planejamentourbano em Curitiba é uma experiência exitosa encontrou ampla aceitação, tanto no meiotécnico e acadêmico como entre a população em geral.

No entanto, a partir da década de 1990, vários pesquisadores questionaram essa no-ção, argumentando que a análise da totalidade do processo de urbanização de Curitiba re-velava uma grande desigualdade social, e que uma de suas principais causas eram justa-mente as intervenções propostas pelo planejamento urbano. A organização espacialimplantada direcionou a valorização da terra em Curitiba, estabelecendo a seletividade na

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ocupação urbana. Assim, os eixos estruturais eram de fato essenciais para organização dacidade, mas sua implantação trouxe efeitos que não foram considerados pelo IPPUC.

Esses eixos foram contemplados com ampla rede de infraestrutura e serviços e controladospor uma legislação de uso do solo que, voltada para incentivar o seu adensamento habitacio-

Mapa 1 – Distribuição dos Edifícios Habitacionais Construídos em Curitiba entre 1980e 2007

Fonte: Secretaria de Urbanismo. Dados trabalhados pelo autor.

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nal, acabou por valorizar os imóveis lindeiros, inibir a ocupação e criar áreas nobres permea-

das por grandes vazios (Moura, 2001, 212).

Segundo essa perspectiva, o processo de planejamento urbano havia falhado. Embo-ra a verticalização tenha seguido os parâmetros estipulados, isso não resultou na desejadaocupação linearizada do espaço urbano. Como as áreas próximas aos eixos estruturais va-lorizaram-se, restou às camadas de baixa renda a ocupação de áreas periféricas, que con-sequentemente foram adensadas, estabelecendo uma configuração radial na cidade.

Mas as maiores contradições podiam ser constatadas examinando o processo de ur-banização para além dos limites administrativos de Curitiba. A Região Metropolitana deCuritiba foi a que mais cresceu no Brasil na década 1970, resultado de uma profundareestruturação produtiva ocorrida no meio rural paranaense. Este fluxo de migração,composto em grande parte por uma população de baixa renda, teve como destino princi-pal as cidades vizinhas a Curitiba, produzindo nelas uma urbanização veloz e precária. Pa-ra Ultramari e Moura, o principal fator explicativo desta forma de urbanização “[...] estáligado ao custo da terra e às restrições impostas pelo planejamento urbano de Curitiba,que direcionaram a ocupação para áreas contíguas ao pólo, em territórios de outros mu-nicípios” (1994, 9). Seguindo esta linha de raciocínio, Maricato afirma:

Curitiba é um exemplo de planejamento implementado de forma relativamente extensiva,por isso foi mais eficiente em remeter para fora do município a população mais pobre. Esta-

mos diante de um paradoxo: a formalidade expulsa os mais pobres, em qualquer cidade doBrasil [...]. (Seminário, 2008, não paginado)

Para esses autores, o efeito provocado pelo planejamento urbano não era apenas umadisfunção técnica: apresentava uma motivação precisa. Era em torno do planejamento ur-bano que se articulavam os interesses das classes dominantes:

Foi fundamental o desenvolvimento de um determinado padrão de relacionamentoentre os gestores do planejamento urbano e os detentores dos meios de produção (pro-prietários de frotas de ônibus, especuladores de terra, empreiteiros de obras públicas, em-presas de construção civil, industriais, comerciantes, etc.), que viria, afinal, garantir o êxi-to dessa experiência. (Oliveira apud Moura, 2001, 209)

Com isso, agentes privados tiveram acesso privilegiado à estrutura de planejamentourbano, tornando-a um espaço de articulação de suas demandas. Dentro deste contexto,a prática do planejamento urbano transcorreu sob um quadro ideológico que pressupu-nha o comprometimento com os interesses das camadas sociais dominantes como um da-do natural. Isso fez com que as propostas de ordenação do espaço fossem coerentes comesses interesses. O depoimento de um presidente do IPPUC da década de 1970 é ilustra-tivo desta articulação:

A filosofia geral que se tentou imprimir em Curitiba foi a de dirigir o crescimento da cida-de. Enquanto outras cidades vão a reboque do que acontece, de onde a iniciativa privadaconstrói [...] aqui tentamos inverter a situação. Procuramos fazer com que o planejamentoandasse na frente. A partir disso, foi possível fazer com que as forças da sociedade, empresa-riado, investidores, etc., soubessem onde a cidade aceita esse ou aquele empreendimento.

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Quando se pretendia fazer com que a cidade crescesse para uma determinada região, o trans-

porte era o indutor. (Depoimento Rafael Dely apud IPPUC, 1990a, 16)

Ao serem incorporadas às propostas do planejamento urbano, as demandas dosagentes privados eram legitimadas como de interesse público, o que ocultava sua parcia-lidade e permitia que essas propostas fossem implantadas de fato.

Assim, de acordo com essa argumentação crítica em relação ao discurso oficial, Curi-tiba seguiu o mesmo padrão de urbanização do restante do Brasil: intervenção seletiva doEstado, produzindo um espaço urbano desigual marcado pela segregação espacial. A par-ticularidade de Curitiba em relação a esse padrão é o fato de o planejamento urbano ser-vir como espaço privilegiado de articulação dos interesses hegemônicos.

ECOVILLE: CONSTRUINDO UMA CIDADE PARAPOUCOS

Inicialmente denominada Conectora 5, esta região seria o prolongamento de um doseixos estruturais, com o objetivo de se tornar uma nova frente de expansão urbana, queevitaria a ocupação desordenada de áreas impróprias na cidade. No entanto, sua implan-tação ocorreu de maneira completamente oposta ao que foi planejado, criando uma áreavoltada exclusivamente para as camadas de alta renda, com baixa densidade populacional.Argumenta-se que a análise do processo de planejamento e execução do Ecoville eviden-cia as contradições que são produzidas em torno da valorização da terra, criando a seleti-vidade no espaço urbano e empurrando a população pobre para a periferia.

A origem do Ecoville está diretamente ligada ao planejamento da Cidade Industrialde Curitiba (CIC). A partir do início da década de 1960, as elites locais elaboraram umprojeto de desenvolvimento econômico com o objetivo de industrializar o Paraná. Diver-sos estudos oficiais foram realizados neste período, apontando a região de Curitiba comoa mais propícia para criação de um pólo industrial (Oliveira, 2001). No entanto, essa de-manda só foi concretizada a partir de sua incorporação ao processo de planejamento ur-bano da capital, implantado a partir de 1971. Assim, em 1973 confirmou-se a criação deum distrito industrial na região oeste de Curitiba. De acordo com o IPPUC, a escolha dalocalização da CIC na região oeste da cidade

[...] foi motivada pela preocupação de preservação dos mananciais que se localizam no leste,pelos terrenos acidentados do norte que acarretariam dificuldades nas obras e encarecimen-to de empreendimentos, pelos terrenos alagadiços do sul, além da condição favorável dosventos dominantes. Estes terrenos (a oeste), por sua vez, apresentam topografia adequada,disponibilidade de água e facilidade de drenagem. (IPPUC, 1975a, não paginado)

Porém, os critérios não se limitavam às vantagens físicas que a área propiciava às ati-vidades industriais; havia também a clara intenção de aproveitar a implantação da CIC pa-ra direcionar a expansão de Curitiba: “A Cidade Industrial de Curitiba [...] também foiproposta para se consolidar o crescimento da cidade naquela direção”. (Depoimento Jor-ge Wilhein apud IPPUC, 1990b, 32)

No entanto, a expansão da cidade em direção à região oeste era uma diretrizque o PPU entendia como adequada, mas apenas no futuro: “[...] a área rural do mu-

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nicípio, a oeste do Portão e do Bigorrilho [bairros da região oeste da cidade], cons-titui a mais provável hipótese de expansão urbana, após 1990” (PMC, 1965, 80; gri-fo meu). Portanto, o PPU previa a possibilidade de instalação de um distrito indus-trial nessa área, mas alertava que sua implantação só deveria ocorrer depois quehouvesse maior ocupação urbana na região – o que era previsto para a década de1990 –, para evitar a criação de vazios urbanos. O Plano Diretor de 1966 consoli-dou tais diretrizes, definindo em seu zoneamento toda a região oeste como uma zo-na de expansão urbana futura. Assim, a antecipação da expansão urbana em direçãoà região oeste, utilizando-se a CIC como seu vetor, contrariou as previsões do PPU edo Plano Diretor.

O detalhamento do projeto da CIC foi elaborado pelo IPPUC em conjunto com aCompanhia de Urbanização de Curitiba (URBS). A ideia era fazer um distrito industrialintegrado à cidade. Isto propiciaria tanto moradia para mão-de-obra que inevitavel-mente seria atraída pela industrialização, como também o redirecionamento da expan-são da cidade para uma região adequada do ponto de vista físico. “No caso particularde Curitiba, a ênfase ao desenvolvimento do setor secundário conduziu [...] à criaçãode uma área especialmente equipada para sediar esses investimentos, dentro de umaconcepção inteiramente nova de integração entre indústrias e a cidade” (Companhia deUrbanização de Curitiba, 1974, 8). Esta integração seria alcançada através da ocupaçãohabitacional da área entre o núcleo urbano existente e a CIC.

Os elementos que concretizariam a expansão a oeste eram: (i) a criação de duasáreas habitacionais na CIC, onde seria realizado um programa de interesse social destina-do a trabalhadores; e (ii) a criação de cinco vias conectoras, que seriam extensões dos ei-xos estruturais, interligando a CIC ao núcleo urbano consolidado. Principal elemento pa-ra estruturação do espaço urbano, as vias conectoras, da mesma forma que os eixosestruturais, deveriam integrar o sistema viário, transporte coletivo e adensamento cons-trutivo. O Mapa 2 mostra a articulação destes elementos.

Em 1975, assumiu um novo prefeito, Saul Raiz, que deu continuidade ao processoem curso. Coerente com o modelo de desenvolvimento adotado, que tinha nos eixos es-truturais seu elemento principal de organização urbana, a ênfase desta gestão recaiu prin-cipalmente sobre o sistema de circulação.

O planejamento para os próximos anos foi apresentado nos documentos Programade obras da Prefeitura de Curitiba no Setor de Transporte e Circulação Para o Triênio1976/78 e no Projeto Integrado de Circulação e Transporte – Situação. Neles, descreviam-seas obras relativas ao sistema viário básico e transporte de massa, e prescrevia-se seu aper-feiçoamento através de obras complementares de pavimentação e ligação viária. A grandenovidade era a ampliação do eixo estrutural norte em direção à CIC. Como um dos ob-jetivos da viabilização da CIC era impulsionar o crescimento da cidade naquela direção,o sistema de circulação precisava ser adequado.

A expansão da ocupação industrial na área norte da CIC, a implantação dos seus respectivossetores habitacionais, com a construção de 12.000 casas populares, a ocupação rápida do oes-te da cidade e o grande adensamento verificado com a implantação parcial da EstruturalNorte (ramal noroeste), acarretam a necessidade de execução de acessos viários e de uma ca-naleta exclusiva para a implantação do sistema de transporte de massa da zona – o ExpressoOeste, o que será conseguido através da execução da Conectora 5 e da complementação daEstrutural Norte. (IPPUC, 1977a, não paginado)

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Em 1977, a Prefeitura elaborou o Relatório de Viabilidade dos Programas de Desen-volvimento Urbano da Cidade de Curitiba, com o objetivo de captar recursos junto aoBanco Mundial para execução das obras de ampliação do sistema de circulação, incluin-do a Conectora 5. A justificativa para a obtenção dos recursos era o fato de que em Curi-tiba o desenvolvimento urbano fazia-se de forma planejada, tendo como principalinstrumento organizador o sistema de transporte: “Circulação e uso do solo são indis-

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Mapa 2 – Esquema do Zoneamento de Uso do Solo de Curitiba

Fonte: Plano Habitacional Cidade Industrial de Curitiba, 1975b. Dados trabalhados pe-lo autor.

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sociáveis quando se trata de direcionar o crescimento da cidade” (IPPUC, 1977b, 24).Assim, os investimentos nesta área representavam uma intervenção de alcance muitomaior do que meramente a circulação. Até então, a estratégia de direcionar a cidadeatravés do sistema viário havia sido adotada em Curitiba em áreas já consolidadas, o quelimitou de certa maneira a atuação do planejamento urbano. A implantação da Co-nectora 5, ao contrário, representava a expansão da cidade sobre um espaço ainda nãourbanizado:

Esse projeto procura abrir uma nova frente para ocupação urbana, com abundante oferta deterrenos para os programas de habitação, evitando-se, assim, que a grande pressão por novos

domicílios [...] venha a sobrecarregar demasiadamente as zonas residenciais já ocupadas, oupior, venha a ocupar efetivamente áreas inconvenientes. [...] é muito mais fácil e barato con-duzir toda essa pressão para áreas convenientemente preparadas, pois a experiência que já ti-

vemos com a implantação dos Setores Estruturais nos mostra que essa indução do desenvol-vimento urbano acelerado, mas ordenando, é perfeitamente acompanhada pela iniciativaprivada em geral. [...] Por todas essas razões, pode-se afirmar que a Conectora 5 é efetivamen-te uma frente pioneira de urbanização, que vai começar a promover, ordenadamente, o desenvol-vimento global integrado da região oeste de Curitiba. (IPPUC, 1977b, 88; grifo meu)

Para comprovar a viabilidade do projeto em termos financeiros, o IPPUC procurouestabelecer uma relação entre custos e benefícios. Um dos benefícios era justamente a va-lorização da terra. “[...] paralelamente a estas obras haverá uma valorização dos imóveisdas áreas de influência, que se traduzirá num benefício aos proprietários destes imóveis”.(IPPUC, 1977b, 84)

Outra vantagem econômica para o desenvolvimento do projeto da Conectora 5 erao fato de a região oeste ser ainda uma área rural, pouco habitada e com custo da terra bai-xo, o que facilitava sua desapropriação. Mas era preciso agilidade, pois “[...] com a cons-tante valorização natural que incide sobre os terrenos em geral, essa talvez seja a últimaoportunidade de que o poder público dispõe para intervir nessas áreas, consolidando a es-truturação da cidade nos moldes propostos pelo Plano Diretor.” (IPPUC, 1977b, 90)

De acordo com Saul Raiz, as negociações para obtenção do financiamento do Ban-co Mundial foram realizadas pessoalmente por ele:

E daí surgiu aquele plano básico criando a linha Leste-Oeste, as estações de embarque, e eufui ao Banco Mundial e vendi o projeto. Foi a primeira vez em toda a história desse bancoque se financiou um projeto urbanístico, porque nós mostramos que aquele projeto seria ummodelo que depois transportaríamos para cidades de médio porte e que aquilo ajudaria a fi-xar as populações rurais e evitar o crescimento descontrolado das grandes cidades. [...] Deutudo certo, e no final do meu Governo, veio o dinheiro que permitiu construir toda linhaLeste–Oeste. (Depoimento Saul Raiz apud IPPUC, 1991, 59)

A expectativa em torno do projeto era grande, pois ele se inseria em uma nova eta-pa do desenvolvimento urbano da cidade. Segundo o IPPUC, o fundamental neste mo-mento era “[...] tornar os equipamentos implantados mais acessíveis ao maior númeropossível da população. [...] Nesse sentido, a política de ocupação dos espaços urbanos pro-cura racionalizar a utilização de áreas ociosas ou de equipamentos existentes [...].” (IPPUC,1980b, 10)

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A implantação da Conectora 5 vinha justamente atender a essa diretriz, pois racio-nalizaria a utilização de uma área totalmente ociosa, criando um novo eixo de expansãourbana. O próprio nome que o projeto recebeu é significativo do que ele representava:Nova Curitiba.

A construção da Nova Curitiba, um bairro-modelo dotado de todos os serviços urbanos, in-clusive transporte de massa, será um exemplo da total integração das funções urbanas. A No-

va Curitiba será implantada na Conectora 5 (Ramal oeste da Estrutural Norte), dotada detoda infraestrutura básica, habitação, equipamentos comunitários e serviços de apoio. O se-tor comercial terá um desenvolvimento linear ao longo de ambos os lados da via central, in-

terligados entre si por passarelas. A moradia, em seus diversos níveis, se integra ao setor co-mercial, formando vizinhanças diversificadas. (IPPUC, 1980b, 10)

No entanto, apesar de a Conectora 5 já estar prevista há quatro anos, não havianenhum estudo divulgado sobre como efetivamente sua ocupação ocorreria. Foi apenaspouco antes do início das obras que o IPPUC elaborou o Programa Integrado de Habi-tação, Infra-Estrutura e Transporte, com o objetivo de vincular aos investimentos eminfraestrutura viária e transporte de massa um programa habitacional destinado à po-pulação de baixa renda. Este estudo partia do princípio que as áreas da Conectora 5possuíam um custo da terra relativamente baixo, mas que a iminência de sua constru-ção apontava para uma valorização que impediria sua aquisição pelo poder público comobjetivos sociais.

[...] decorre a necessidade de o Poder Público antecipar-se ao desencadear da fase aguda da

especulação imobiliária, adquirindo imediatamente as áreas necessárias ao seu desenvolvi-

mento. Pretende-se que o Poder Público atue como órgão controlador, e eventualmente be-neficiário, do processo especulativo, garantindo preços viáveis à futura execução de conjun-

tos populares destinados à população de baixa renda. (IPPUC, 1980a, 7)

Segundo o Programa, o uso do solo proposto na Nova Curitiba incluiria setores ha-bitacionais, comerciais e de serviço. Em relação à habitação, previa-se a construção de17.080 unidades habitacionais. Para atender a diretriz de priorizar camadas de baixa ren-da, o projeto previa “[...] primordialmente, a construção de habitações do padrão COHAB-

CT, posto que a Cidade Industrial de Curitiba está localizada próxima à área proposta. Acomplementação de habitações estaria a cargo do INOCOOP [Instituto de Orientação dasCooperativas] e do SBPE [Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo].” (IPPUC, 1980a,20; grifo meu).

Como o ponto principal do Programa era a viabilização da compra de terra, esti-mou-se qual seria o custo máximo que tornaria os empreendimentos da COHAB viáveis.Chegou-se à conclusão que, por meio de subsídios, o valor máximo para aquisição da ter-ra era de 1,09 UPC/m2. De acordo com levantamento realizado, o preço da terra permitiaa execução dos empreendimentos em boa parte da Conectora 5, conforme apresentadono Mapa 3.

Entretanto, recomendava-se agilidade, pois:

[...] a elevação brusca de terrenos nas áreas lindeiras aos locais de obra, como já ocorreu nasáreas 1 e 2, demonstra que qualquer intervenção tem de ser feita antes do início das obras na

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Nova Curitiba, cujo início está previsto para agosto de 1980. A valorização projetada de-monstra que, ao fim das obras, todas as áreas serão inviáveis para programas sociais. A áreamais barata custará 1,15 UPC/m2. (IPPUC, 1980a, 20).

A implantação da Nova Curitiba foi iniciada em 1980, e a responsabilidade ficou acargo da URBS. Em relação ao sistema viário, os projetos executivos foram seguidos, e em1983, a Conectora 5 estava concluída. Já em relação ao projeto habitacional, não houvea mesma eficiência. Como nenhuma desapropriação foi realizada, o projeto não pôde serimplantado.

A versão oficial para o descompasso entre a implantação do projeto do sistema viá-rio e do projeto habitacional defende que cada um deles possuía fontes de recursos dife-rentes, que não foram repassados da mesma maneira. O financiamento para o sistema viá-rio vinha do Banco Mundial, e como ele foi repassado de acordo com o estipulado,garantiu sua implantação como previsto. Já o projeto habitacional, era financiado peloBanco Nacional de Habitação (BNH), que não repassou as verbas necessárias, inviabilizan-do sua implantação (Oliveira, 2000). Segundo depoimento do presidente da URBS:

Não é preciso nem dizer que o BNH nos deu o cano. Caiu fora e nós ficamos sem as áreas,não conseguimos desapropriá-las e não foi possível implementar o projeto. [...] Simplesmen-te foi feita a parte viária – porque o Banco Mundial cumpriu sua parte. Tentamos negociarde outras formas, com os empresários donos das áreas, mas não foi possível. (Depoimentode Rubens Jacob Teig apud IPPUC, 1991, 107)

No processo de implantação da Conectora 5 é possível identificar uma relação com-plexa entre poder público e agentes privados. O presidente da URBS era um conhecidoempresário do ramo imobiliário:

Foi presidente do Clube de Diretores Lojistas, membro do conselho do IPPUC e presiden-te da URBS entre 1980 e 83. É hoje conselheiro da Associação Comercial do Paraná, vice-presidente da Federação do Comércio Varejista, diretor da Combrascan Shopping Rio-Sul epresidente da R.J. Teig Empreendimentos Imobiliários Ltda. (IPPUC, 1991, 103)

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Mapa 3 – Preço da Área Bruta (UPC/m2) na Nova Curitiba

Fonte: Programa Integrado de Habitação, Infra-Estrutura e Transporte, 1980.

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Seu depoimento revela que o cargo ocupado na administração municipal estava di-retamente ligado à implantação da Conectora 5:

A minha ida para URBS, no entanto, se prendia à construção da Conectora 5. Foi o que meatraiu. Naquela época, quando foi feita a desapropriação para construção desse trinário queé a Conectora 5, existia um projeto para construir uma nova cidade: a Nova Curitiba. Pre-via a ocupação desses espaços que foram desapropriados por cerca de 70 mil pessoas. E, na

realidade, a minha ideia era administrar esse empreendimento. (Depoimento de Rubens Ja-cob Teig apud IPPUC, 1991, 107)

Não é possível explicitar que práticas essa relação produziu. Contudo, a constataçãodesta articulação corrobora a tese de que determinados grupos de interesse têm acesso pri-vilegiado ao processo de planejamento urbano.

Em 1983, todo sistema viário da Conectora 5 estava concluído, e o sistema detransporte de massa, operando, mas o plano de criar uma nova frente de expansão urba-na que fosse direcionada pelo poder público, compatibilizando o adensamento habitacio-nal à oferta de emprego e transporte, foi frustrado. Não só o projeto de habitações de in-teresse social não foi executado, como nenhum outro tipo de habitação coletiva foiconstruído por quase uma década ao longo do eixo.

O primeiro edifício da Conectora 5 só veio a ser construído em 1993, e a ocupaçãoefetiva só se consolidou a partir da primeira década de 2000. Entre 1983 e 2006 foramconstruídos em Curitiba 1.681 edifícios residenciais com mais de quatro pavimentos, dosquais apenas 28 localizaram-se na Conectora 5.

Tabela 1 – Número de edifícios residenciais com mais de 4 pavimentos construídos emCuritiba

Período Curitiba Conectora 5

1983-1989 496 0

1990-1999 842 8

2000-2006 343 20TOTAL 1681 28

Fonte: Secretaria Municipal de Urbanismo.

Além disso, a exploração imobiliária foi totalmente voltada para as camadas de altarenda. Os empreendimentos que ali foram implementados consistem em edifícios de al-to padrão, geralmente com um apartamento por andar, implantados em terrenos de gran-des dimensões com extensa área verde (ver Foto 1). Além desse tipo de edifício, os con-domínios horizontais fechados tornaram-se comuns na região. Apesar de os condomíniosfechados existirem em outros espaços da cidade, aqueles situados próximo à Conectora 5se distinguem por seu alto padrão. Quando esses empreendimentos imobiliários foramconstruídos, a Prefeitura de Curitiba já havia desenvolvido uma intensa estratégia de city-marketing, atribuindo à cidade a imagem-síntese de “Capital Ecológica”. Em consonân-cia midiática, a Conectora 5 passou a ser chamada de Ecoville pelo mercado imobiliário.

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CONCLUSÃO

O objetivo deste artigo foi verificar como ocorreu a valorização da terra no Ecoville,compreender a influência do planejamento urbano nesse processo, e evidenciar as contra-dições que essa relação produziu.

A análise da produção do Ecoville demonstra que a intervenção do Estado foi deci-siva para valorização do espaço urbano. Uma área até então com características rurais foitransformada por meio da ação do Estado em uma localização privilegiada na cidade. Aimplantação da Conectora 5 significou dotar essa área com a mais completa infraestrutu-ra, garantindo uma acessibilidade qualificada ao sistema urbano.

Esse processo beneficiou agentes do mercado imobiliário, que adquiriram terras eaguardaram o momento oportuno para explorar a região, direcionando sua ocupação pa-ra as camadas de alta renda. Com isso, o adensamento esperado e a indução da expansãourbana não se concretizaram.

Do ponto de vista da organização social do espaço, o planejamento urbano falhou,pois, em vez de produzir uma urbanização inclusiva, como era previsto, produziu seuoposto, uma urbanização segregada. No entanto, essa opinião não é unânime. Para os be-neficiários desse processo, o planejamento urbano foi eficiente:

Nos últimos dois anos, foram lançadas quase 500 novas unidades residenciais na região co-nhecida como Ecoville, uma das áreas de ocupação mais acelerada na capital. O arquiteto eurbanista Ricardo Amaral observa que a região é resultado de uma parceria de sucesso entrepoder público e iniciativa privada em termos de revitalização urbanística. “[...] Há 30 anos,aquela região ligava nada a coisa nenhuma. A prefeitura fez um investimento enorme em in-fraestrutura. Mas o bairro explodiu quando se despertou o interesse da iniciativa privada pa-ra investir ali”. (Gazeta do Povo, 2007)

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Foto 1 – Ecoville, com o centro da cidade ao fundo

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A existência dessas opiniões contraditórias encontra amparo na própria prática doplanejamento urbano. A comparação entre o que foi inicialmente proposto e o que veioa ser executado mostra uma atuação parcial por parte do Estado. A princípio, a propostaelaborada pelo planejamento urbano era condizente com o interesse público: previa a oti-mização da infraestrutura urbana concentrando população. Para que essa proposta fosseefetivada, era necessário que dois aspectos fossem levados em conta: a implantação da in-fraestrutura viária e o direcionamento da ocupação. No entanto, apenas o primeiro aspec-to foi priorizado. Levando em conta esse aspecto isoladamente, o planejamento urbanode Curitiba pode ser considerado eficaz, pois a Conectora 5 foi implantada no local pre-visto, o que reafirma Curitiba como um modelo exemplar para outras cidades. Por outrolado, porém, uma análise mais ampla revela que a diretriz relativa à ocupação urbana nãofoi seguida. A execução somente da infraestrutura favoreceu interesses privados, o quecausou uma série de contradições urbanas.

A análise desse processo desmitifica a eficiência do planejamento urbano de Curiti-ba, revelando a parcialidade da ação estatal. Ou seja, a prática do planejamento urbanonão é por si só suficiente para reduzir a desigualdade no espaço urbano. Deixando de con-frontar os interesses fundiários, ela acabou por direcionar a segregação espacial. Assim, ocaso do Ecoville repetiu o mesmo padrão existente no resto do país: os benefícios oriun-dos da infraestrutura urbana executada pelo Estado foram apropriados por interesses pri-vados, em vez de serem distribuídos de acordo com o interesse coletivo.

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Ricardo Serraglio Poluchaé arquiteto, mestrando emHabitat pela Faculdade deArquitetura e Urbanismo,FAU-USP.E-mail: [email protected]

Artigo recebido em junho de2009 e aprovado para publi-cação em agosto de 2009.

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A B S T R A C T In order to understand the uneven urbanization in Curitiba, previousresearches have emphasized the role played by urban planning on this process. Believing thatthis urban inequality results from the manner that land values and ways of occupation bydifferent social classes are established, it urges then to understand the work extent of urbanplanning on this dynamic. The goal of this article is to move forward the debate on this fieldby revealing the causes of this inequality, and not only assuming its existence, through theanalysis of a specific case study: “Ecoville”. Originally conceived as a new urban front thatwould avoid settlement at improper areas within the city, its materialisation followed a totallyopposed path, producing a low density development only suitable for upper classes. The researchof this case study – “Ecoville” – helps to build an explanation of the urban planning practicein Curitiba, as it reveals the contradictions that stir around land values.

K E Y W O R D S Ecoville; Curitiba; urban planning; urbanization; landvalorization.

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AMAZÔNIADISPUTAS MATERIAIS E SIMBÓLICAS

S U Y Á Q U I N T S L R

R E S U M O O estágio atual de degradação da Amazônia fez emergir, em âmbito in-ternacional, um debate sobre seu futuro e sobre as ações que contribuem para a destruição oupara a conservação da floresta. Diversos grupos travam uma luta simbólica neste debate, atra-vés da qual buscam legitimação para seus projetos e para suas formas de utilização dos recur-sos. Neste trabalho, buscou-se construir um quadro analítico em que fossem contempladas asdiversas matrizes discursivas empregadas na discussão acerca dos rumos da Amazônia brasi-leira, levando em consideração as propostas de diferentes atores e elaborações teóricas sobre osconceitos de desenvolvimento, preservação e sustentabilidade. Foram identificadas, desta for-ma, quatro matrizes discursivas: o discurso desenvolvimentista, o discurso da mercantilizaçãoda natureza, o discurso preservacionista e o discurso socioambiental.

P A L A V R A S - C H A V E Amazônia; sustentabilidade; conflito ambiental; po-líticas públicas.

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, os efeitos indesejáveis do progresso do desenvolvimento huma-no e o reconhecimento da importância da preservação do equilíbrio ecológico para a ma-nutenção da qualidade de vida na terra fizeram com que a atenção de cientistas e ambien-talistas se voltasse para a Amazônia. Como sugere Carlos Walter Porto Gonçalves (2005),a região, por ser a última grande porção de floresta tropical do mundo, passa a ser vistacomo a “reserva ecológica do planeta”.

A partir do reconhecimento de sua importância para toda a humanidade, a Amazô-nia deixa de ser uma questão apenas dos países que possuem parte deste bioma em seusterritórios, gerando um debate internacional sobre o direito que eles têm de geri-lo comobem entenderem.

Além desta questão ligada à soberania nacional, há um conflito interno sobre as for-mas de uso da região, traduzido no debate em torno da sua vocação. Setores de fora daregião, elites locais, comunidades ditas tradicionais e uma série de povos indígenas bas-tante diferenciados travam uma luta em torno da significação do espaço amazônico e desua vocação e utilização futura. Alguns destes grupos identificam a região como uma re-serva de recursos (água, terra, energia, madeira, minérios etc) a serem usados em prol dodesenvolvimento econômico do país. Outros veem na Amazônia a última região de flo-restas naturais de fato preservadas da ação humana, buscando mantê-la distante destaação, que é vista invariavelmente como predatória. Há ainda aqueles que defendem ummodelo baseado no conhecimento das populações que desenvolveram ao longo de inú-meras gerações uma forma mais sustentável de manejo da floresta, valorizando a diversi-dade cultural e o conhecimento tradicional.

Os motivos evocados para a conservação da floresta amazônica são os mais variados,como os mitos em torno da natureza selvagem e a alta diversidade biológica, além dos ser-

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viços florestais prestados pelo ecossistema, como a manutenção dos lençóis d’água, se-questro de carbono e interações com a regulação climática – argumentos que vêm ga-nhando força devido à crescente preocupação com as mudanças climáticas globais.

Contrapondo-se aos argumentos conservacionistas, frequentemente é evocada a dis-paridade entre a área ocupada pela AML e sua pequena participação no PIB. A incorpora-ção da Amazônia à economia nacional vem sendo promovida, principalmente, a partir dadécada de 1960, com a construção da Belém-Brasília, da Transamazônica e com a criaçãoda Zona Franca de Manaus, em 1967. Na década de 1970, este processo foi intensifica-do com os Planos Nacionais de Desenvolvimento (I PND e II PND) elaborados pelos go-vernos militares, seguindo uma lógica de crescimento econômico nacional através da ex-ploração dos recursos da região amazônica. Após um período de retração da açãogovernamental durante a década de 1980, há uma retomada do planejamento a partir de1996, quando o governo federal lança o programa Brasil em Ação (Becker, 2001). Deuma forma geral, os programas de desenvolvimento empreendidos após a redemocratiza-ção não se diferenciam muito das primeiras tentativas de incorporação da Amazônia àeconomia capitalista, e continuam enxergando a região como um vazio demográfico e re-serva de recursos do país.

As políticas territoriais responsáveis pela incorporação desta porção do território ti-veram graves efeitos sobre o ecossistema amazônico e sobre as populações nele residentes.As perdas florestais foram fortemente intensificadas em relação ao período anterior à dé-cada de 1970, chegando hoje a aproximadamente 15% da área originalmente florestada.A promoção de infraestrutura na região favoreceu a proliferação de atividades econômi-cas que exigem grande alteração do ecossistema, como a mineração, a extração de madei-ra, o cultivo de grãos e a pecuária (reconhecida como a principal causa do desmatamen-to na região).

Frente à diversidade de motivos que incidem sobre a degradação socioambiental naregião, é fundamental entender os fatores que potencialmente influem sobre este proces-so. Para Bertha Becker (2005), a mudança no padrão de desenvolvimento que vem sen-do adotado para a Amazônia requer o entendimento dos diferentes projetos políticos eseus atores, que se encontram na raiz dos conflitos.

Reconhecendo a necessidade de melhor entendimento dos projetos políticos para aregião, bem como dos mecanismos de legitimação destes projetos, buscamos, neste traba-lho, identificar as diferentes concepções contemporâneas sobre o desenvolvimento e a sus-tentabilidade da Amazônia a partir do posicionamento dos atores envolvidos e de suaspropostas políticas para a região. Usando como referencial teórico o conceito de raciona-lidade ambiental (Leff, 2007) e de conflito ambiental (Acselrad, 2004), foi construído umquadro de análise em que são identificadas as principais matrizes discursivas presentes nodebate, através de elementos que as diferenciam e justificam o posicionamento dos atoresque as adotam. Esse quadro de análise, como parte integrante do processo metodológicoempregado, buscou ser um instrumento de ruptura epistemológica em relação à visãoacrítica da realidade social, “devido ao estabelecimento de um corpo de enunciados siste-mático e autônomo, de uma linguagem com suas regras e sua dinâmica próprias que lheasseguram um caráter de fecundidade” (Bruyne et al., 1977, 102). A elaboração deste qua-dro tomou por base tanto o posicionamento assumido pelos próprios atores sociais emquestão como a análise dos pressupostos teóricos desses paradigmas segundo diferentesautores consultados. Nesse sentido, levamos aqui em consideração as elaborações teóricasem torno das categorias recorrentes no debate – como preservação, desenvolvimento e

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sustentabilidade – e alguns dos documentos produzidos pelos movimentos sociais amazô-nicos, agentes econômicos, organizações não governamentais e organismos multilaterais.Por fim, ilustramos o uso das diferentes matrizes discursivas por alguns atores, especial-mente atores governamentais, ONGs e movimentos populares.

Ainda que o debate atual em torno da Amazônia encontre-se fortemente polarizadoentre concepções opostas de desenvolvimento e preservação, consideramos que a comple-xidade da questão ambiental na atualidade faz com que haja uma série de atores sociaisdefendendo diversas posições que vão muito além da dicotomia frequentemente evocadaentre preservação e desenvolvimento econômico. De fato, o posicionamento dos atoressociais se encontra matizado pelas concepções referentes à relação entre sociedade e meioambiente. Partimos do princípio de que o entendimento e a importância relativa dada porcada um desses atores a questões que concernem a essa relação irão determinar o seu po-sicionamento no espectro preservação versus desenvolvimento econômico e, em grandemedida, as disputas em torno do tema, incidindo sobre as políticas que serão desenhadase implementadas envolvendo o meio ambiente.

AMAZÔNIA: CONCEPÇÕES E PROJETOS EM DISPUTA

O conceito de conflito ambiental, tal como formulado por Acselrad (2004), auxiliaa compreensão do campo ambiental, e mais especificamente da Amazônia como um cam-po de disputas simbólicas e materiais, onde diferentes atores com interesses distintos fa-zem uso de certa matriz discursiva para legitimar sua prática.

Segundo este autor, os conflitos entre os atores sociais podem ser compreendidos apartir do seu posicionamento no campo material (no plano da reprodução social) e nocampo simbólico (no plano das representações), acionado para legitimar ou contestar asformas de apropriação material do meio, que se traduzem em espaços sociais de distribui-ção do poder (Acselrad, 2004). A partir desta formulação, Acselrad (s/d, 7) entende que“os movimentos sociais podem ser analisados por sua intervenção nestes dois níveis do es-paço social – o espaço de distribuição de poder sobre as coisas e o espaço da luta discur-siva”, afirmação que pode ser estendida aos demais atores existentes na sociedade (inclu-indo os atores governamentais), já que não apenas os movimentos sociais travam disputasrelativas ao campo ambiental.

Nessa mesma perspectiva analítica, Gonçalves (2005, 164) compreende que a com-plexidade e a violência dos conflitos na Amazônia se devem a um:

conflito básico envolvendo matrizes de racionalidade distintas, enfim, de diferentes culturascom suas formas e seus modos de apropriação da natureza simbólica-materialmente diferen-tes. Não só a questão de a quem a natureza pertence está posta, como também diferentesconcepções do que seja a natureza estão em conflito. Não só a questão de quem se apropria,mas também de diferentes modos de apropriar-se material e simbolicamente da natureza.

Uma vez reconhecido o campo ambiental como um espaço de disputas tanto sim-bólicas quanto materiais, se torna possível uma análise da Amazônia a partir dos gruposque se opõem no interior daquele campo, ou seja, das posições distintas identificáveis naluta em torno da significação e apropriação material do meio amazônico. Nessa direção,

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entendemos que pode ser útil o conceito de racionalidade social tal como formulado porLeff (2007), baseado no pensamento de Max Weber, para analisar as diferentes matrizesdiscursivas usadas pelos atores que travam as disputas no campo ambiental em torno daspolíticas e projetos para a Amazônia. Segundo este autor (ibid, 121):

Uma racionalidade social define-se como um sistema de regras de pensamento e comporta-mento dos atores sociais, que se estabelecem dentro de estruturas econômicas, políticas e

ideológicas determinadas, legitimando um conjunto de ações e conferindo um sentido à or-ganização da sociedade em seu conjunto. Estas regras e estruturas orientam um conjunto depráticas e processos sociais para certos fins, através de meios socialmente constituídos, refle-

tindo-se em suas normas morais, em suas crenças, em seus arranjos institucionais e em seuspadrões de produção.

De acordo com Leff (2007), o uso deste conceito possibilita uma melhor compre-ensão do comportamento da sociedade em relação à natureza, bem como a análise dos di-ferentes sistemas de valores, normas e ações que conformam as diferentes racionalidadessociais. Seguindo esta linha, o autor constrói o conceito de racionalidade ambiental, quese oporia à racionalidade capitalista, sendo esta considerada como expressão da lógica docapital, “fundada no cálculo econômico, na formalização, controle e uniformização doscomportamentos sociais e na eficiência de seus meios tecnológicos, que induziram umprocesso de degradação ambiental”. (Leff, 2007, 124)

Inspirados nessa abordagem de Leff, podemos dizer que existem diversas racionalida-des sociais expressando diferentes concepções em torno da relação sociedade e meio am-biente e, especificamente, em relação à Amazônia. Cada uma dessas racionalidades vai ex-pressar sua concepção em diferentes matrizes discursivas, acionadas pelos diferentes grupospara legitimar suas ações, interesses e lutas no campo ambiental. A nosso ver, a partir daliteratura consultada, é possível identificar três grandes matrizes discursivas, e algumas de-las podem ser subdivididas em razão de diferenças mais ou menos significativas: (a) racio-nalidade econômica (subdividida em dois discursos distintos: o desenvolvimentista e o damercantilização da natureza); (b) racionalidade ecológica; e (c) racionalidade socioambien-tal. Tais matrizes discursivas, resumidas no Quadro 1, podem ser tomadas aqui como ti-pos-ideais no sentido weberiano. Ou seja, buscamos sintetizar os traços fundamentais quecaracterizam as diferentes matrizes discursivas de forma a lhes conferir uma coerência esignificação. Como sublinha Bruyne et al. (1977, 181), “o tipo ideal não é, portanto, nemuma média, nem uma cópia esquemática do real – como tal, ele é inobservável – pois édesenhado com a intenção de levar ao extremo cada um dos traços da situação concreta”.Nesse sentido, podemos dizer que o tipo ideal é uma ferramenta analítica que visa dar sig-nificação às informações coletadas, no caso, os discursos dos atores sociais que se aproxi-mam em um ou outro aspecto das matrizes construídas, fato que não invalida o esforçode classificação, uma vez que diferenças substanciais ficam evidentes na análise.

A construção das matrizes teóricas tomou como referência três aspectos que nos pa-recem centrais para diferenciar as concepções relativas à relação entre sociedade e meioambiente no que envolve a Amazônia: (i) os conceitos e noções fundamentais na constru-ção dos discursos em torno da natureza; (ii) o posicionamento relativo às formas de pro-priedade mais adequadas à conservação da natureza; e (iii) o posicionamento relativo àsformas de uso das áreas naturais. Com base nesses elementos, apresentamos a seguir asmatrizes discursivas construídas para análise.

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RACIONALIDADE ECONÔMICA

Dentro desta grande matriz discursiva em torno da significação do meio ambiente eda Amazônia, diferenciamos dois discursos distintos: o que denominamos discurso desen-volvimentista, que coloca o desenvolvimento econômico em primeiro plano; e o discursoda mercantilização da natureza, que, apesar de defender a preservação da floresta amazô-nica, acredita que a forma de se alcançar este objetivo se dê através da inclusão da natu-reza no mercado.

O DISCURSO DESENVOLVIMENTISTA

Existe um grande número de atores (governos, produtores etc) defendendo a ideiade que o crescimento econômico deva ser a meta incontestável da política econômica bra-sileira. Optamos por denominá-los como “desenvolvimentistas”, a despeito das diversassignificações atribuídas ao termo desenvolvimento.

Segundo Bresser-Pereira (2007, 2):

O desenvolvimento econômico é o processo de sistemática acumulação de capital e de incor-poração do progresso técnico ao trabalho e ao capital que leva ao aumento sustentado da pro-dutividade ou da renda por habitante e, em consequência, dos salários e dos padrões de bem-estar de uma determinada sociedade. [...] Uma vez iniciado, o desenvolvimento econômicotende a ser relativamente auto-sustentado na medida em que no sistema capitalista os meca-

nismos de mercado envolvem incentivos para o continuado aumento do estoque de capitale de conhecimentos técnicos.

O mesmo autor (ibid, 2) afirma que “desde a Revolução Capitalista, o desenvolvi-mento econômico se tornou um objetivo político central das nações, de forma que o go-verno de um Estado só estará realmente sendo bem-sucedido se estiver alcançando taxasrazoáveis de crescimento”. Partindo desta premissa, o governo brasileiro, por muitas ve-zes, coloca este objetivo central acima de outras políticas de bem-estar social e de meio am-biente. O planejamento do desenvolvimento passa, desta forma, a privilegiar critérios derentabilidade a curto prazo, sem que sejam levados em conta os danos ambientais e so-ciais deste modelo.

A extensão da região amazônica e a abundância de seus recursos naturais contrastam,de certo ponto de vista, com a pequena participação no Produto Interno Bruto nacional,que é hoje de cerca de 8%. Os atores que fazem uso desta matriz discursiva, aqui deno-minada desenvolvimentista, buscam, a partir do que entendem ser uma contradição, de-senvolvê-la e integrá-la à economia nacional. Criou-se, como destaca Carlos Walter(2005), no imaginário nacional uma percepção da Amazônia como um vazio demográficoe como reserva de recursos do país. As populações que vivem na região são vistas como atra-sadas, e a utilização que muitas delas fazem dos recursos, como não racional do ponto devista capitalista.

Desta forma, atividades mais rentáveis, como criação de gado e plantio de soja – pre-ferencialmente em grandes propriedades –, extração de madeira e mineração, entre ou-tras, são vistas como atividades preferíveis em relação à agricultura familiar, à pesca arte-sanal, ao extrativismo não madeireiro, etc.

Nesta perspectiva, Edna Castro (2005, 9) entende que “a interpretação dos princí-pios da racionalidade econômica, conjugada à análise das estratégias de caráter político

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dos agentes econômicos presentes em espaços diferenciados da Amazônia, é importante(...) para compreender a dinâmica do desmatamento”. A autora destaca, ainda, que esteprocesso está intimamente relacionado à estrutura social desigual do país e à oportunida-de de acumulação existente em regiões de fronteira.

Se, por um lado, a Amazônia foi tida como uma oportunidade promissora de aqui-sição de terras e melhoria da qualidade de vida por uma parcela pauperizada da popula-ção, por outro, “foi concebida pelas elites nacionais como uma fronteira de recursos, naqual o capital poderia refazer seu ciclo de acumulação com base em novos estoques dis-poníveis” (ibid, 10). Destacam-se no imaginário deste segmento as apreensões da Amazô-nia como vazio demográfico e reserva de recursos do país, além da inesgotabilidade deseus recursos (Castro, 2005; Gonçalves, 2005).

Como conceitos fundamentais desta corrente poderíamos citar o desenvolvimento/crescimento econômico e a rentabilidade. É evidente a preferência pela forma de proprie-dade privada, mais para fins de otimização dos lucros que para preservação. Entretanto,autores que identificamos com esta corrente, como Garrett Hardin, atacam a forma depropriedade comunal por considerá-la prejudicial à conservação dos recursos, defenden-do a propriedade privada como mais adequada também para estes fins (Hardin, 1968).Consideramos que ao privilegiar o desenvolvimento econômico em relação à natureza, ouso considerado mais adequado a este tipo de racionalidade será o uso econômico dasáreas naturais.

Percebe-se uma clara predominância desta racionalidade entre o início da efetiva in-corporação da Amazônia ao território nacional e à economia capitalista (décadas de 1950e 1960), até meados da década de 1980, quando outras racionalidades começam a ques-tionar a hegemonia da racionalidade econômica vigente. Neste período, foram privilegia-dos grandes empreendimentos, tanto no campo da exploração mineral (como exemplo te-mos Carajás) quanto no campo agrícola (no qual o crédito foi sempre mais acessível aosgrandes produtores), tidos como mais rentáveis e, portanto, mais desejáveis do ponto devista do desenvolvimento do país. Após a redemocratização, há a emergência de uma sé-rie de movimentos populares, o que coincide com um período de crescimento da preocu-pação com o meio ambiente, ambos fatores relativamente novos que virão a contestar aracionalidade desenvolvimentista e suas consequências.

O DISCURSO DA MERCANTILIZAÇÃO DA NATUREZA

Os defensores desta corrente, ao contrário dos aqui denominados desenvolvimentis-tas, estão bastante próximos, de certa forma, ao debate ecológico e preservacionista. En-tretanto, optamos por classificá-los segundo a racionalidade econômica devido à intençãode incluir os recursos naturais em uma lógica mercantil, em que os serviços prestados pe-lo ambiente seriam pagos pela sociedade.

Apesar do reconhecimento da necessidade da preservação ambiental para a manu-tenção da qualidade de vida na Terra, esta corrente segue uma lógica utilitarista, em quecaracterísticas e ciclos ecossistêmicos são vistos como serviços prestados, e sujeitos, por-tanto, a uma valoração. Da mesma forma, defendem a chamada “modernização ecológi-ca”, acreditando que os avanços próprios da modernidade, como novas tecnologias, se-riam capazes de eliminar os problemas de poluição e de escassez de recursos (Acselrad,s/d). Assim, os problemas ambientais (externalidades) seriam internalizados dentro da mes-ma lógica econômica que os gera, afastando a discussão acerca dos efeitos perversos domodelo econômico adotado, da forma de produção capitalista e dos valores consumistas.

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Fearnside, pesquisador americano do INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Ama-zônia) é, a nosso ver, um dos maiores defensores desta concepção dentro da academia. Se-gundo este autor (Fearnside, 2008), a economia da Amazônia, que atualmente é baseadaem atividades destrutivas, como a extração de madeira, a criação de gado e o plantio desoja, não pode ser substituída por atividades mais sustentáveis, uma vez que estas ativida-des seriam desvantajosas do ponto de vista econômico. Mesmo outras atividades, aindaque não causem grande impacto, como o extrativismo de produtos não-madeireiros, es-tão sujeitas à saturação do mercado ou à competição com formas mais rentáveis de ob-tenção do mesmo produto, como a produção em larga escala através da monocultura.

Desta forma, a única maneira de garantir a sobrevivência da floresta seria a substi-tuição das atividades insustentáveis na realidade amazônica pelo fluxo econômico geradoatravés do pagamento pelos serviços prestados por este ecossistema (Fearnside, 2008).

Ainda segundo Fearnside (ibid), estes serviços estão agrupados em três categorias:biodiversidade, água e mitigação das mudanças climáticas. Nesta concepção da raciona-lidade econômica, a floresta é vista como um depósito in situ de genes e espécies que po-dem ser aproveitados de diferentes formas no futuro, com destaque para a indústriafarmacêutica e de cosméticos. Da mesma forma, a continuidade do ciclo da água e a ma-nutenção do regime de chuvas em diferentes regiões – garantidos pelo sistema de evapo-transpiração das árvores da Amazônia, que muitos acreditam já estar abalado pelo des-florestamento – são vistas como serviços essenciais à humanidade prestados peloecossistema em questão. Em terceiro lugar, mas não menos importante, temos a mitiga-ção das mudanças climáticas, que ocorre por dois processos: (i) sequestro de carbono pe-la biomassa da floresta; e (ii) não lançamento na atmosfera de uma grande quantidadede gás carbônico e metano retidos no solo da floresta e que são liberados quando ocor-re o desmatamento.

Este último “serviço” é especialmente importante para a presente discussão, uma vezque há, no plano internacional, uma mobilização para sua comercialização: os créditos decarbono previstos no Protocolo de Kyoto.1 Este documento – que busca diminuir as emis-sões de gases de efeito estufa visando a prevenção das mudanças climáticas –, em seu ar-tigo 6, delibera que “qualquer Parte incluída no Anexo 1 pode transferir para, ou adqui-rir de, outra dessas Partes unidades de redução de emissões resultantes de projetos visandoa redução das emissões antrópicas por fontes ou o aumento das remoções antrópicas porsumidouros de gases de efeito estufa em qualquer setor da economia...”.2 Os princípios eregras para o comércio de emissões devem ser definidos pela Conferência das Partes, a serrealizada anualmente.

O comércio de créditos de carbono é, entretanto, alvo de uma discussão bastante po-larizada entre aqueles que acreditam que ele seja uma oportunidade para os países em de-senvolvimento que ainda possuem grandes áreas florestadas (Fearnside, 2001) e aquelesque criticam esta política por ser uma forma encontrada pelos países desenvolvidos paracontinuarem poluindo. Os defensores do comércio de créditos de carbono acreditam que,além de ele ter a potencialidade de gerar renda em países como o Brasil – onde existe gran-de área com cobertura da floresta tropical amazônica –, eles ajudariam a conter o desma-tamento, por tornar economicamente vantajosa a manutenção da floresta.

Críticos desta corrente afirmam que a Economia Ambiental não é capaz de atingirseu objetivo de internalizar os custos do desenvolvimento econômico (ou as externalida-des) através da privatização dos recursos naturais ou do estabelecimento de preços de mer-cado a serem pagos pelos serviços ambientais, uma vez que não existem meios para calcu-

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1 O Protocolo de Kyoto foinegociado na terceira Confe-rência das Partes da Con-venção Quadro das NaçõesUnidas sobre Mudança doClima, em 1997, em Kyoto(Japão).

2 “For the purpose of mee-ting its commitments underArticle 3, any Party includedin Annex I may transfer to,or acquire from, any othersuch Party emission reduc-tion units resulting from pro-jects aimed at reducinganthropogenic emissions by sources or enhancinganthropogenic removals bysinks of greenhouse gasesin any sector of the eco-nomy...” (Kyoto Protocol tothe United Nations Fra-mework Convention on Cli-mate Change. Disponívelem: http://unfccc.int/essen-tial_background/kyoto_pro-tocol/items/1678.php.

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lar o valor da natureza nem tampouco de prever as necessidades ou preferências das gera-ções futuras. Soma-se a isso a incapacidade de incorporar ao cálculo econômico os pro-cessos ecológicos, sociais e culturais. Assim, a internalização dos custos ecológicos pelaeconomia “se depara com uma série de obstáculos epistemológicos, de interrogações me-todológicas, de interesses opostos e dificuldades práticas ainda não resolvidas” (Leff,2000, 174).

A despeito da identificação destas dificuldades e de um movimento de oposição aesta concepção (que será discutido adiante), há uma clara tendência à incorporação dosprocessos ecológicos e dos recursos naturais à economia de mercado, o que pode ser veri-ficado pelas normas jurídicas que estabelecem o conceito de “poluidor-pagador”, o paga-mento pela conservação ambiental etc, afirmando a capacidade do mercado de dar contada degradação ambiental.

Como podemos perceber através desta discussão, tal corrente se fundamenta no con-ceito de mercado ao aceitar que seus mecanismos regulam a relação entre os homens e en-tre estes e a natureza. Outro conceito importante para as formulações desta corrente é ode desenvolvimento econômico. No que concerne ao posicionamento relativo às formasde propriedade mais adequadas à conservação da natureza, esta corrente defende a pro-priedade privada dos recursos naturais, uma vez que os proprietários destes recursos rece-beriam benefícios financeiros pela conservação dos mesmos. Todavia, como exposto an-teriormente, no Brasil existem propostas de pagamentos pelos serviços prestados pelasflorestas compreendidas em Unidades de Conservação. Por fim, no que se refere ao posi-cionamento relativo às formas de uso das áreas naturais, os autores vinculados a esta cor-rente argumentam que a preservação é a forma mais adequada, sendo que o não-uso dasáreas naturais auferiria benefícios econômicos aos proprietários.

RACIONALIDADE ECOLÓGICA – O DISCURSO PRESERVACIONISTA

Fazendo forte oposição à corrente desenvolvimentista, temos o discurso dos preser-vacionistas, que defendem a manutenção da natureza em “estado puro”, o que, segundoos defensores desta corrente, vai significar mantê-la longe da ação humana.

Segundo Keith Thomas (1983), o preservacionismo seria fruto de um processo derevalorização da natureza pela sociedade ocidental, que teve início durante o período mo-derno na Europa. Para este autor, a valorização do mundo natural não só data do perío-do moderno como também é fruto das transformações intrínsecas à modernidade, entreelas: a superpopulação das cidades, a poluição gerada pela crescente atividade industrial,o aumento do barulho e uma maior separação entre o campo e a cidade. Desta forma, aantiga crença de que a natureza tinha sido criada apenas para o proveito do homem – ba-seada no cristianismo e em uma determinada interpretação da Bíblia – foi gradualmenteencontrando contestações.

Aliado ao descontentamento com o processo de industrialização e urbanização, quelevava à deterioração do ambiente urbano, o avanço da história natural no século 19 –com destaque para os estudos de Darwin sobre evolução – exerceu forte influência parauma mudança de postura do homem em relação ao meio ambiente e ao resto da biodi-versidade. O reconhecimento de que a atividade humana já tinha levado muitas espéciesà extinção criou também um sentimento de responsabilidade em relação ao resto da “cria-ção divina”, levando ao surgimento de uma série de restrições legais ao extermínio de ani-mais (Thomas, 1983).

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O novo interesse pela natureza foi-se convertendo em admiração estética e estimapelo ambiente selvagem, no qual os habitantes da cidade podiam buscar renovação espi-ritual. “Em fins do século XVIII, o apreço pela natureza, e particularmente pela naturezaselvagem, se convertera numa espécie de ato religioso. A natureza não era só bela; era mo-ralmente benéfica” (ibid, 1983, 309). Da mesma maneira, o habitante do campo passoua ser visto como moralmente superior ao morador da cidade, o que, ainda segundo Tho-mas (1983), se baseava numa série de ilusões sobre as relações sociais rurais.

Tal pensamento certamente foi influenciado pela obra e pensamento de Rousseau,para quem o homem primitivo, vivendo em estado natural, é isento de maldade por nãoconhecer os vícios e mazelas que surgiram com a sociedade civil.

Como destacado por Keith Thomas (1983), o desenvolvimento industrial e tecno-lógico ocorrido durante o período moderno fez surgir, por um lado, uma série de confor-tos e comodidades para a população, por outro, levou ao surgimento de uma nova sensi-bilidade em relação ao mundo natural que serviu de base ao movimento preservacionistade fins do século 19 e do século 20.

Antônio Carlos Diegues (2004) identifica um processo semelhante no surgimentodo preservacionismo nos Estados Unidos no início do século 19, que teria contribuídopara a criação do primeiro Parque Nacional do mundo, o Parque de Yellowstone. Segun-do este autor, a essência do preservacionismo “pode ser descrita como a reverência à na-tureza no sentido de apreciação estética da vida selvagem (wilderness). Ela pretende pro-teger a natureza contra o desenvolvimento moderno, industrial e urbano” (Diegues,2004, 30).

Desta forma, a posição preservacionista engendra uma concepção de áreas protegi-das desabitadas, uma vez que qualquer intervenção humana na natureza seria nociva. Nes-ta concepção de parques, surgida nos Estados Unidos no século 19, há uma ideia subja-cente de que, “mesmo que a biosfera fosse totalmente transformada, domesticada pelohomem, poderiam existir pedaços do mundo natural em seu estado primitivo, anterior àintervenção humana” (Diegues, 2004). Tal concepção, ao não tolerar a presença humanaem um espaço que deva ser mantido em seu “estado natural”, cria uma clara oposição en-tre homem e natureza.

Entretanto, ainda segundo Diegues (2004), este “mito moderno da natureza intoca-da”, quando foi extrapolado dos Estados Unidos para os países tropicais não desenvolvi-dos, criou uma série de conflitos com as populações que tradicionalmente ocupam estesecossistemas. Muitos países da América Latina e da África possuem inúmeras populaçõesvivendo nas florestas tropicais, praticando atividades que vão da agricultura familiar e dapesca ao extrativismo de diversos produtos não madeireiros.

Vários autores destacam que esta importação do ambientalismo surgido nos paísesdesenvolvidos, orientado principalmente pelos problemas de contaminação e poluiçãocausados pelo desenvolvimento industrial e pelos valores consumistas, é nociva aos paísespobres do sul, onde existem problemas relacionados à equidade no acesso aos recursos na-turais e na distribuição desigual das externalidades (Leff, 2000; Portilho, 2005; Diegues,2004).

A adequação deste “mito da natureza intocada” para a realidade brasileira parece es-tar centrada no espaço amazônico. Diversas representações que fazemos da região amazô-nica na atualidade dizem respeito a um local de natureza exuberante, onde a sociedade mo-derna e seu desenvolvimento ainda não teriam levado a destruição. Assim, de acordo comCarlos Walter Gonçalves (2005, 20), “a imagem mais comum do que seja a Amazônia é a

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de que se trata de uma imensa extensão de terras, onde o principal elemento de identifica-ção é uma natureza pujante, praticamente indomável, que a história nos legou intocada”.

Outros autores, como Fernandez (2000), para justificar o não-uso da natureza pelohomem, alegam que se o homem primitivo, munido com ferramentas precárias, foi capazde extinguir inúmeros animais da megafauna (animais com mais de 40 kg), as populaçõesditas tradicionais também podem trazer grandes prejuízos à biodiversidade através de prá-ticas de caça, pesca, ou mesmo de manejo florestal não sustentável. Assim, de acordo comeste raciocínio, a preservação de áreas do mundo natural seria incompatível com a presen-ça humana.

Como conceitos fundamentais da racionalidade ecológica e do discurso preservacio-nista aqui descritos, temos a natureza, a preservação e a valorização da ciência, principal-mente da biologia e da ecologia. A forma de propriedade considerada por esta correntecomo mais adequada à preservação é a estatal, que se dá sob a forma de Unidades de Con-servação cujo uso é regulado pela legislação.3 O uso preferencial das áreas naturais seriapara fins de preservação da biodiversidade.

RACIONALIDADE SOCIOAMBIENTAL

Se o reconhecimento dos problemas ambientais por um lado fez emergir uma sériede protestos preservacionistas que criaram uma dicotomia entre sociedade e meio ambi-ente, por outro, fez surgir uma nova forma de pensar esta relação. Enquanto o pensamen-to preservacionista se baseia fortemente na ciência, principalmente na biologia e na eco-logia, para Leff (2007, 13), “a crise ambiental é uma crise do conhecimento: da dissociaçãoentre o ser e o ente à lógica autocentrada da ciência e ao processo de racionalização damodernidade guiado pelos imperativos da racionalidade econômica e instrumental”. Ain-da segundo Leff (ibid, 17), “o saber ambiental ultrapassa o campo científico para se inse-rir na ordem da racionalidade – dos imaginários coletivos, das regras de pensamento, dasformações discursivas”.

Nesta sessão, fazemos uso do conceito formulado por Enrique Leff de racionalidadeambiental para a construção do que chamamos de racionalidade socioambiental. Opta-mos, entretanto, por esta denominação por entender que há uma clara reconciliação en-tre sociedade e meio ambiente nesta racionalidade, diferenciando-a do que denominamosneste trabalho de racionalidade ecológica.

A racionalidade socioambiental coloca em xeque a racionalidade econômica capita-lista (ou desenvolvimentista) dominante, ao questionar a possibilidade da manutenção depadrões de produção baseados no cálculo econômico, na eficiência de seus meios tecno-lógicos para aumentar a produtividade e os lucros e minimizar o desperdício e a contami-nação decorrentes deste próprio modelo. Assim, a racionalidade ambiental valoriza a di-versidade cultural e os conhecimentos étnicos como subsídios para a promoção de umaforma de produção ecotecnológica (Leff, 2007) ou ambientalmente sustentável, com re-conhecimento das diferenças entre os potenciais dos diversos ecossistemas.

O ambiente passa a ser visto como “um objeto de apropriação social que põe em jo-go estratégias discursivas e significações culturais que entram em um debate de sentidospela sustentabilidade, que se interrelacionam com os efeitos de conhecimento das ciên-cias” (Leff, 2007, 16).

Enrique Leff (2007), em sua Epistemologia Ambiental, aponta uma série de princí-pios nos quais se baseia a racionalidade ambiental, dentre eles, vale destacar: (i) o valor da

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3 Não obstante, existe hojena legislação sobre Unida-des de Conservação no Bra-sil (SNUC – Lei nº 9985/2000) uma categoria inteira-mente particular, a ReservaParticular do Patrimônio Na-tural (RPPN).

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diversidade biológica, da heterogeneidade cultural e da pluraridade política; (ii) a conser-vação da base de recursos naturais e dos equilíbrios ecológicos do planeta como condiçãopara um desenvolvimento sustentável; (iii) a distribuição da riqueza e do poder através dadescentralização econômica e da gestão participativa dos recursos; (iv) a percepção da rea-lidade a partir de uma perspectiva global, complexa e interdependente.

Henri Acselrad (s/d) reconhece o surgimento do movimento por justiça ambientalnos EUA com princípios semelhantes que certamente devem ter contribuído com algunselementos na formação desta nova racionalidade.

Outros autores veem no ambientalismo camponês latino-americano (Leff, 2000;Martínez Alier, 1994) uma contribuição dos países menos desenvolvidos à conformaçãodesta nova racionalidade: ao contrário dos países mais desenvolvidos, que têm um am-bientalismo voltado para os problemas de poluição e esgotamento de recursos, os paísesdo sul voltaram o debate para a desigualdade na apropriação dos recursos e para o mode-lo injusto criado por este padrão sempre desigual.

Na Amazônia, uma nova matriz discursiva ligada à racionalidade socioambientalemergente começou a ganhar destaque a partir de meados da década de 1980, quando di-versas populações começaram a se organizar para lutar pelo seu direito a terra e contra adegradação ambiental decorrente do modelo de desenvolvimento empreendido pelo país.

Berta Becker (2001) destaca, neste processo, a criação do Conselho Nacional dos se-ringueiros, em 1985. De fato, os seringueiros, representados por Chico Mendes, consegui-ram dar visibilidade aos problemas por que passavam os povos da floresta e às dificuldadesencontradas por eles para manterem os seus modos de vida diante de tamanha degradaçãodas bases materiais necessárias a sua reprodução, no caso, a própria floresta. Desta forma,diversas populações – seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco de babaçu, popula-ções ribeirinhas, pequenos pescadores artesanais – se uniram e iniciaram uma luta quecriou as bases para uma nova matriz discursiva em torno dos rumos da Amazônia que vi-nha a contestar a racionalidade desenvolvimentista predominante em sua história.

Destacaríamos como conceitos fundamentais desta matriz discursiva a democracia,a sustentabilidade ambiental, a igualdade no acesso aos recursos e a valorização da diver-sidade cultural. Como forma de propriedade, vemos uma clara afirmação da função so-cial da propriedade significando subordinação dos interesses privados aos interesses cole-tivos, além da defesa de outras formas jurídicas de propriedade, tais como a propriedadecoletiva ou comunitária, expressas nas lutas dos movimentos sociais que fazem uso destamatriz, como a Reserva Extrativista e a Reserva de Desenvolvimento Sustentável. O usodos recursos é visto como positivo, se feito de forma racional e igualitária.

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Quadro 1 – Matrizes discursivas em torno da AmazôniaMatrizes discursivas Concepções relativas à relação entre sociedade e meio ambiente

Conceitos e noções Posicionamento relativo Posicionamentofundamentais na cons- às formas de proprie- relativo àstrução dos discursos dade mais adequadas formas de usosem torno da natureza. à conservação. das áreas naturais.

a) Racionalidade econômica(i) Discurso Desenvolvimento/ Propriedade Uso das áreas paradesenvolvimentista crescimento econômico privada. fins econômicos.

e rentabilidade. Criação de gado,

plantação de grãos,extração de madeira,mineração.

(ii) Discurso da Mercado, Propriedades privadas, Não-uso de algumasmercantilização desenvolvimento proprietários recebendo áreas a serem preser-da natureza econômico. pagamentos por vadas; fora delas, ati-

preservar a floresta. vidades econômicas emgeral são estimuladas.

b) Racionalidade Natureza, preservação, Propriedade predo- Pequeno uso humano ecológica – Discurso valorização da ciência, minantemente da natureza, ativi-preservacionista da biologia e ecologia. estatal, Unidades dades educativas e

de Conservação. turísticas eventual-mente permitidas.

c) Racionalidade Democracia parti- Propriedade comunitá- O uso dos recursossocioambiental – cipativa, justiça so- ria onde ocorre o é positivo, se feito

Discurso cial, sustentabilidade manejo sustentável de forma racional esocioambiental ambiental, igualdade da floresta. igualitária. Tendên-

no acesso aos recursos, cia a atividadesvalorização da extrativas.diversidade cultural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O USO DAS MATRIZES DISCURSIVAS PARA LEGITIMAÇÃODOS PROJETOS

Apresentadas as diferentes matrizes discursivas, parece útil ilustrar a forma como elassão acionadas por alguns dos diversos atores que travam disputas materiais e simbólicasem torno da Amazônia.

Os atores governamentais nem sempre expressam a mesma posição política; ao con-trário, podemos verificar entre os discursos dos atores presentes nas diversas esferas de go-verno posições claramente distintas.

Existe, todavia, em alguns setores, uma clara influência da racionalidade econômica,principalmente no que se tornou conhecido como “bancada ruralista” no poder legislati-vo. Usamos, neste trabalho, para ilustrar tal posicionamento, alguns dos Projetos de Leique vêm sendo discutidos no Congresso Nacional e que têm como objetivo a flexibiliza-ção das restrições relativas à Reserva Legal.4 Na Amazônia, a partir da aprovação da Me-

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4 A reserva legal é um me-canismo estabelecido peloCódigo Florestal que obri-ga os proprietários rurais amanterem uma parte da pro-priedade rural com a vegeta-ção preservada para fins deconservação da natureza.

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dida Provisória 2166 de 2001, a proporção da propriedade a ser preservada a título de re-serva legal subiu de 50% para 80%, causando insatisfação dos proprietários rurais da re-gião, que entendem que “a mudança nos percentuais mínimos da área de reserva legal (...)foi um duro golpe para os produtores rurais, em especial, para aqueles cujas propriedadeslocalizam-se na Amazônia.” (Deputado Wandenkolk Gonçalves, PL 1207 de 2007, dis-ponível em: <câmara dos deputados>).

Os Projetos de Lei em trâmite no Congresso Nacional que têm como objetivo pro-mover alterações no Código Florestal, especialmente no mecanismo da Reserva Legal, deforma geral, destinam-se: (i) à diminuição da área da propriedade mantida a título de re-serva legal; (ii) a incentivar a recomposição da reserva legal, especialmente seu replantiocom espécies para exploração econômica, ainda que exóticas; e (iii) a fornecer incentivosfiscais e creditícios aos proprietários que cumprirem as exigências legais ou mantiveremárea de reserva legal superior ao exigido em lei.

Na justificativa destes Projetos de Lei é comum encontrar argumentos ligados aosprejuízos decorrentes da limitação de corte da reserva legal, também os relacionados à ne-cessidade de incentivos econômicos para que a lei seja cumprida:

Na área da Amazônia Legal, os produtores rurais são, atualmente, penalizados pelo ônus demanter intocados 80% dos recursos florestais [...] (Senador Expedito Júnior, Diário do Sena-do Federal, 2008).

(...) graves deficiências indicam que as normas legais de natureza coercitiva, embora essen-ciais, estão sujeitas a sérias limitações práticas. Ao mesmo tempo, demonstram, de forma ine-quívoca, a importância do emprego de instrumentos econômicos, capazes de constituir mecanis-

mos efetivos de incentivo ao cumprimento dos diplomas legais referentes à reposição

florestal. (Senador Waldir Raup, Diário do Senado Federal, 2003)

Fazendo uso desta mesma matriz discursiva, temos, por exemplo, o governador doMato Grosso, Blairo Maggi, hoje o maior produtor individual de soja do mundo. A des-peito da degradação ambiental que o cultivo do grão vem promovendo no estado e dedados do INPE indicarem o aumento do desmatamento, em entrevista à revista CartaCapital (jun/2008), Maggi afirma não haver nenhum conflito entre esta atividade e omeio ambiente, colocando em questão, inclusive, a veracidade dos dados produzidospelo Instituto.

Para além do discurso desenvolvimentista, pode ser identificada a utilização de ou-tras matrizes discursivas nos governos estaduais da Amazônia. O governo do Amazonas,por exemplo, propõe mecanismos financeiros para que a floresta continue de pé. Segun-do o Secretário do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, Virgí-lio Viana, “a bolsa-floresta é uma compensação financeira para o serviço prestado por nos-sas populações tradicionais e indígenas: a conservação das florestas” (Viana, 2007),aproximando-se, portanto, do que neste trabalho chamamos de mercantilização da natu-reza, ainda na esfera da racionalidade econômica.

Os discursos das ONGs e movimentos sociais, tal qual o dos atores governamentais,nem sempre seguem a mesma linha de reivindicações em relação à Amazônia. Usamos,para ilustrar discursos diferenciados deste setor, a divisão proposta por Daniel Compag-non (2008) em artigo no qual busca desmistificar o papel das grandes ONGs internacio-nais naquilo que o autor denomina “governança global da conservação da biodiversida-

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de”. Para Compagnon, existe uma “separação essencial entre duas lógicas que atravessama galáxia ONGs: lógica empresarial ou lógica de contestação” (Compagnon, 2008, 84).

Para ilustrar o discurso das ONGs que atuam em uma lógica de contestação – seja daatuação do poder público, seja da ordem vigente – e dos movimentos sociais amazônicos,usamos aqui o documento intitulado “Plataforma de Desenvolvimento para a Amazônia”,elaborado no “Seminário Amazônia Sustentável e Democrática: os desafios do desenvol-vimento com garantia dos direitos humanos”.5

A “Plataforma de Desenvolvimento para a Amazônia” defende, entre outras coisas,os direitos dos povos tradicionais e indígenas e a regularização das Unidades de Conser-vação de Uso Sustentável. Na agenda de reivindicações que dizem respeito a produçãofamiliar, o documento faz clara oposição à racionalidade econômica por defender que se-jam combatidos “os incentivos do governo para a expansão do agronegócio e monoculti-vos na Amazônia (...), projetos de hidroelétricas, de mineração (ALCOA), assim como aconstrução de estradas sem a participação da sociedade civil” (doc., p. 5). É importantedestacar também a importância dada ao tema da participação da sociedade civil – tantona elaboração de uma Política Nacional de Desenvolvimento Regional quanto no debatesobre projetos de infraestrutura –, da descentralização das decisões e a reivindicação poruma “redefinição dos pressupostos do atual modelo de desenvolvimento baseados nos Ei-xos Nacionais de Integração e Desenvolvimento” (ibid, 8).

Percebe-se, pelo exposto acima, na “Plataforma de Desenvolvimento para a Amazô-nia”, uma grande influência da racionalidade socioambiental, principalmente devido à im-portância dos conceitos de democracia e sustentabilidade no discurso destes atores, mastambém devido à defesa das Unidades de Conservação de uso sustentável, ao respeito e va-lorização da diversidade cultural e à contestação da lógica desenvolvimentista vigente.

Outras organizações não governamentais, em especial as grandes ONGs conservacio-nistas internacionais, têm um posicionamento diferente no que diz respeito à conserva-ção da floresta amazônica, defendendo uma posição que incorpora de maneira mais cla-ra o discurso preservacionista tal qual acima descrito. Ou seja, ao defenderem apreservação das espécies em Unidades de Proteção Integral e o não-uso da natureza, re-forçam a dicotomia sociedade-natureza, não contestando o modelo de desenvolvimentosocial e ambientalmente insustentável empregado pelo país.

O embate entre as diversas racionalidades identificadas e suas propostas para a re-gião podem ser também percebidas nas políticas desenvolvidas para a Amazônia. A pró-pria formulação das políticas públicas passa a ser objeto de disputa entre os atores interes-sados em empreender diferentes projetos, muitas vezes incompatíveis, para a região.

Esperamos, com a análise desenvolvida ao longo deste trabalho, ter contribuído comuma discussão que auxilie na compreensão dos projetos políticos para a Amazônia, bemcomo com uma ferramenta que possibilite identificar o uso de diferentes matrizes discur-sivas na legitimação de interesses distintos no que diz respeito a este território e ao uso deseus recursos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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5 A opção por este docu-mento se deve a ele ser fru-to da articulação política dediferentes organizações nãogovernamentais e movimen-tos populares – Fórum daAmazônia Oriental (FAOR),Processo de Articulação eDiálogo (PAD), Fórum de Mu-lheres da Amazônia Paraen-se (FMAP), Fórum Nacionalde Reforma Urbana (FNRU),Federação de Órgãos paraAssistência Social e Educa-cional (FASE) etc –, contan-do, para sua elaboração jun-to a representantes de 136organizações de todos osestados da Amazônia, comlíderes e representantes depescadores, quilombolas, in-dígenas, agricultores familia-res, seringueiros, ribeiri-nhos, ONGs, universidades einstitutos de pesquisa. Dis-ponível em: www.fase.org.br

Suyá Quintslr é bióloga,mestranda em Ciência Am-biental (PGCA-UFF).E-mail: [email protected]

Artigo recebido em junho de2009 e aprovado para publi-cação em agosto de 2009.

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ti%C3%A7a+estrat%C3%A9gias+argumentativas+e+a%C3%A7%C3%A3o+coleti-va&hl=pt-PT&ct=clnk&cd=1&gl=br. s/d.__________. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: Conflitos Ambien-tais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Fundação Henrich Boll, 2004. pp. 13-35.ALVES-MAZZOTTI, A. J. O Método nas Ciências Sociais. In ALVES-MAZZOTTI, A.J.; GEWANDSZNAJDER, F. O Método nas Ciências Naturais e Sociais. São Paulo: Pio-neira, 2004.BECKER, B. K, 2001. Revisão das Políticas de ocupação da Amazônia: é possível iden-tificar modelos para projetar cenários? Estudos Avançados, 12, pp. 135-59.__________. 2005. Geopolítica da Amazônia. Estudos Avançados, 19 (53), pp. 71-86.BOURDIEU, P. Espaço Social e Espaço Simbólico. In: Razões Práticas: Sobre a Teoria daAção. Tradução Mariza Corrêa. Campinas, SP: Papirus, 1996. pp. 13-33.BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, J. C.; PASSERON, J. C. Ofício de Sociólogo: me-todologia da pesquisa na sociologia. Petrópolis: Vozes, 2004.BRESSER-PEREIRA, L. C., 2007. O Processo Histórico do Desenvolvimento Econômi-co. Disponível em: http://www.bresserpereira.org.br/. Acesso em: 25/08/2007.BRUYNE, P. de; HERMAN, J.; SCHOUTHEETE, M. de. Dinâmica da pesquisa emCiências Sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.CASTRO, E., 2005. Dinâmica socioeconômica e desmatamento na Amazônia. NovosCadernos NAEA, v.8 (2),pp. 5-39. COMPAGNON, D. “Administrar democraticamente a biodiversidade graças às ONGs?”In: A Ecologia Política das Grandes ONGs Transnacionais Conservacionistas. São Paulo. Ed.NUPAUB. 2008, pp.35-60.DIEGUES, A. C. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo, Ed. Hucxitec. 1996.160 p.FEARNSIDE, P. M., 2008. Amazon Forest maintenance as a source of environmentalservices. Anais da Academia Brasileira de Ciências, v.80 n.1, Rio de Janeiro, mar. 2008.FERNANDEZ, F. A. dos S. O Poema Imperfeito – Crônicas de Biologia, Conservação daNatureza, e seus Heróis. Curitiba, Ed. da Universidade Federal do Paraná/ Fundação OBoticário de Proteção à Natureza, 2000. 260 p.GONÇALVES, C. W. P. Amazônia, Amazônias. 2a edição. São Paulo: Contexto, 2005.178 p.HARDIN, G., 1968. The Tragedy of the Commons. Science, 162, pp. 1243-48.LEFF, E. Cálculo Econômico, Políticas Ambientais e Planejamento do Desenvolvi-mento: a difícil valorização do ambiente. In: Ecologia, Capital e Cultura: racionalida-de ambiental, democracia participativa e desenvolvimento sustentável. Edifurb, Blu-menau, 2000.__________. Epistemologia Ambiental. São Paulo (4ª ed.): Cortez, 2007.MARTÍNEZ ALIER, J. De la economía ecológica al ecologismo popular. Barcelona. IcariaEditorial, 1994. 362 p.MELLO, N. A. Políticas Territoriais na Amazônia. São Paulo: Annalumbre, 2006. 410 p.NEPSTAD, D.; CAPOBIANCO, J. P.; BARROS, A. C.; CARVALHO, G.; MOUTI-NHO, P.; LOPES, U.; LEFEBVRE, P. Avança Brasil: Os Custos Ambientais para a Ama-zônia. Belém: Gráfica e editora Alves, 2000. 24p.PORTILHO, F. A emergência internacional do discurso político sobre consumo e meioambiente. In: Sustentabilidade Ambiental, Consumo e Cidadania. São Paulo: Cortez, 2005,pp. 39-65.

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A B S T R A C T The current Amazon’s degradation state resulted in the emergence ofan international debate on its future and on the actions that contribute to forest’s destructionor conservation. Several groups find themselves in a symbolic struggle around this debate,through which they reach for legitimacy for their projects and the different uses of resource. Inthis paper we tried to build an analytical approach in which the various discursive matricesutilized in the discussion on the future of the Brazilian Amazon were contemplated. This hasbeen done considering the proposals of different agents and theoretic elaborations on theconcepts of development, preservation and sustainability. In this way, four discursive matriceswere identified – the developmentalist discourse, the nature’s mercantilist discourse, thepreservationalist discourse and the socio-environmentalist discourse – that, in differentpolitical conjectures act with more or less influence over the elaborated policies for each region,with direct effects over its ecosystems and inhabitants.

K E Y W O R D S Amazon; sustainability; environmental conflict; public policies.

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ENTRE A NATUREZA E O ARTIFÍCIO

PERCEPÇÕES E PERSPECTIVAS NOS PROJETOS PARA PARQUES

URBANOS E ORLAS FLUVIAIS NA AMAZÔNIA

M A U R I C I O D E B R I T O E C U N H A V A L L A D A R E S

R E S U M O O presente trabalho tem por objeto de estudo a ideia de natureza e, porconseguinte, suas implicações no campo do urbanismo e no processo de construção da cidade.Seu objetivo principal é compreender como essa ideia é capaz de influenciar a forma urbanae, consequentemente, ser transformada por ela, assim como contribuir com o projeto urbano eas políticas públicas na Amazônia. Esta, construída ideologicamente no cerne da dialética en-tre natureza e cultura, apresenta um fértil campo de análise de temas ambientais. Da mesmaforma, os projetos para parques urbanos e orlas fluviais, cuja origem está impregnada deste pa-radigma, permitem exemplificar distintas relações entre natureza e artifício em sete cidadesanalisadas na região. Foram verificadas diferentes abordagens projetuais correspondentes, emlinhas gerais, aos projetos para orlas fluviais com matizes naturalistas, a projetos de revitali-zação urbana marcados pela naturalização do artifício, aos parques ecológicos e aos parqueslineares interdisciplinares e multifuncionais, que apontam para uma abordagem socioecológi-ca de cidade. Os conflitos discursivos encontrados refletem ambivalências históricas, ao mesmotempo em que permitem colocar a Amazônia urbana como local privilegiado para a reflexãoe possibilidades.

P A L A V R A S - C H A V E Filosofia da natureza; meio ambiente urbano; cida-des amazônicas; projeto urbano.

ENTRE A NATUREZA E O ARTIFÍCIO:APRESENTAÇÃO DO TEMA

Não existe uma Natureza em si, existe apenas uma Natureza pensada. É ilusório representara história da humanidade como se se desenrolasse no seio de uma natureza que nada lhe de-vesse. (...) Pois a história mostra-nos que só uma extrapolação esquematizante permite ima-ginar que a natureza tem um sentido qualquer independentemente da ideia dos sujeitos pen-santes. Não encontramos senão uma ideia de natureza, que toma sentidos radicalmentediferentes segundo as épocas e os homens. (Joseph Beaude in Lenoble, 1969, 16)

A ideia da relação entre natureza e artifício e suas implicações no campo do urbanis-mo é o objeto da presente pesquisa. Natureza, ideia indefinível e inatingível por sua es-sência, e o artifício, domínio dos homens e de suas ações, compõem um par nem sempredialético, cujo significado cambiante na história das ideias reflete a relação do homemcom o meio e com sua própria existência. A cidade, a “invenção humana por excelência”,como a denominou Lévi-Strauss, ou poder-se-ia dizer, o artifício por excelência, é talvezonde essa relação se apresenta de maneira mais tangível, tanto como um reflexo comouma determinante, pelo menos na visão de um pretenso urbanista. Desde que se circuns-

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creveu o campo disciplinar do urbanismo, a relação entre natureza e sociedade se tornouuma questão indispensável para a compreensão do fenômeno urbano, e constitui hoje umdos principais paradigmas da disciplina diante da crise ambiental contemporânea, tão emvoga nos meios de comunicação quanto na comunidade acadêmica.

Mitificada pela tensão presença-natureza e afirmação-homem desde o século 17, aAmazônia se mostra um fértil campo de análise de temas ambientais, através do estudode suas cidades, com temporalidades e problemáticas diversas. Por razão desta mesma di-versidade de situações, foram estudadas diferentes cidades enquanto casos referenciais,através dos elementos urbanos que consideramos mais representativos da relação entrenatureza e cultura: os projetos para parques urbanos e orlas fluviais, cuja essência estáimpregnada deste paradigma. Sua análise permite exemplificar distintas relações entrenatureza e artifício na região, e dela extrair o significado e implicações desta relação pa-ra o urbanismo.

Em linhas gerais, o principal objetivo almejado por esta pesquisa é compreender co-mo a ideia de natureza, dominante em dada sociedade e em determinado período, podeinfluenciar no processo de urbanização e na construção da forma da cidade, através deseus atores e seus respectivos instrumentos de atuação. É também objetivo secundáriocontribuir com o projeto urbano e as políticas públicas na Amazônia, através do debateentre as abordagens adotadas pelos diferentes atores em relação ao tema nas cidades obje-tos de análise, promovendo um intercâmbio de experiências entre as mesmas. Com pe-riodizações sobrepostas, temporalidades distintas e diferentes visões de natureza coexistin-do em um mesmo espaço fragmentado, o crescimento destas cidades pode ser descritoatravés das medidas urbanísticas adotadas por seus atores sociais, nas quais essa visão seexpressava e se reformulava, criando espaços distintos – entendendo este último em seusentido amplo, tanto como sistema de objetos quanto de ações (Santos, 1996). Entretan-to, dependendo da ideia de natureza e artifício vigente, tais medidas resultaram em diver-sas possibilidades e, por muitas vezes, estão na origem tanto de problemas como de solu-ções do processo de urbanização, em cuja temática ambiental encontra uma de suasprincipais questões. As cidades analisadas passam ou já passaram por semelhantes dificul-dades e aspirações, e respondem a elas de maneiras diferentes, às vezes opostas, gerandoum panorama urbano heterogêneo e complexo para a região amazônica. Por esta razão, asdiferentes abordagens e possibilidades podem estabelecer um interessante e proveitoso in-tercâmbio de experiências entre elas, em que as respostas bem-sucedidas de uma podemcontribuir com as demais, assim como delinear novas questões e perspectivas para o pro-jeto urbano.

Cabe, entretanto, um breve esclarecimento acerca da escolha por essa tipologia par-ticular e pela análise conjunta de várias cidades, em vez de uma. Essas escolhas se dão poruma questão de método. Muitos autores de diferentes áreas concordam com a dificulda-de de periodização e espacialização dos fenômenos socioeconômicos na Amazônia, comoressalta Yara Vicentini (1994). José Augusto Pádua (2000), por exemplo, identifica trêsdimensões sobrepostas, dotadas de temporalidades distintas que, por sua vez, ocorrem demaneira diferenciada no território. Diante dessa realidade heterogênea, a região apresen-ta diferentes visões da natureza coexistindo em diferentes espaços, cuja realidade seria, nomínimo, difícil de captar em uma única cidade. Entretanto, seria demasiadamente pre-tensiosa, senão impossível, a tentativa de apreender as inúmeras manifestações da relaçãonatureza-artifício em várias cidades em uma pesquisa individual, tornando o recorte im-prescindível. Diante do exposto, em vez de analisar essa relação através de vários aspectos

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ou elementos urbanos em uma única cidade, optou-se por fazer um recorte inverso, ana-lisar várias cidades através de um mesmo elemento considerado mais representativo àquestão: os projetos para parques urbanos e orlas fluviais. Através desse recorte temáticoinicial, permite-se uma análise conjunta e mais panorâmica do espaço urbano amazôni-co, mesmo que limitada a um de seus elementos construtivos, a partir do qual são esta-belecidos os recortes espaciais e temporais, em linhas gerais, às capitais regionais e cida-des médias (Belém do Pará, Manaus, Porto Velho, Rio Branco, Macapá, Boa Vista eSantarém) analisadas a partir da década de 1970, em especial o período de renovação ur-bana iniciado na década de 1990 do século 20. As respostas adotadas em cada uma des-sas cidades em relação às questões ambientais também divergem e, por esta mesma razão,são capazes de apresentar diferentes situações e respostas, permitindo esboçar um brevepanorama de como se manifesta a relação entre a natureza e o artifício na região.

NATUREZA E URBANISMO: HISTÓRIA DE UMAIDEIA

Qualquer que ela seja, a ideia de natureza mostra-se sempre sob os auspícios da miragem: es-capa no momento em que acreditávamos tê-la agarrado, e surge num ponto imprevisível dohorizonte, o qual abandonará no instante em que o olhar tiver tido tempo de lá se fixar. (Ros-set, 1973, 18).

Como todas as palavras que designam uma ideia muito geral, a palavra natureza pa-rece clara quando a empregamos, mas, quando sobre ela refletimos, parece-nos complexae talvez mesmo obscura (Lenoble, 1969, 183). A relação entre natureza e artifício semprefoi um tema recorrente na filosofia ocidental e, se não se alcançou a superação dessa di-cotomia ou uma definição precisa, pelo menos nos serviu como base de apoio para queoutras questões fossem levantadas.

A natureza apresenta-se, então, como um ponto de apoio necessário para Merleau-Ponty (1960), como visão de mundo para Norman Crowe (1997), como necessidademetafísica para Robert Lenoble (1969) ou, ao contrário deste, como fantasma ideológi-co para Clemént Rosset (1973). Entretanto, apesar das diferentes abordagens e visões so-bre a natureza, há um aparente consenso sobre a vitalidade das representações naturalis-tas no mundo moderno, expresso não somente pela celebração ecológica do meioambiente, mas, principalmente, pela crítica à sociedade capitalista industrial, onde osentimento antiurbano é seu produto principal, reproduzindo parcialmente uma ideia denatureza já bem conhecida como o conjunto daquilo que se produz independentemen-te da intervenção refletida ou consciente, ou seja, em oposição à cultura, ao artifício. Va-le lembrar que a indefinição, o desgaste e até mesmo o desuso da palavra natureza nomundo moderno não significa uma recusa à ideologia naturalista. Pelo contrário, se en-tendermos por naturalismo a procura por uma ordem inerente ao acaso e uma inclina-ção a recusar o caráter artificial da existência, pode-se concluir que ele não só alcançouo seu apogeu no século 20, como se mantém presente até hoje. O naturalismo aristoté-lico, dado como finado desde o século 17, recrudesce nesta oposição ainda presente, emque a natureza é contemplada com uma definição “negativa”, nem acaso, nem artifício,ou seja, tudo aquilo que resta quando da neutralização destes em todas as coisas. A cul-pabilidade aristotélica do artifício (ou da sociedade contemporânea) diante da degrada-

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ção da natureza continua a alimentar parte do discurso ambientalista, renovando contra-dições e ambivalências, a exemplo do mito moderno da natureza intocada (Diegues,1994) ou da generalização dos processos naturais sobre os processos sociais do paisagis-mo “ecológico”. Quando da desnaturalização destas práticas e ideias, a consequente acei-tação do artifício e do seu caráter factual permite uma renovada relação entre homem emeio, vistos sob uma ótica integrada, ampla, embora de difícil constituição, aplicabili-dade, e mesmo de uma definição.

Entretanto, a restauração naturalista empreendida na segunda metade do século 18não só forjou, como foi também forjada pela crítica à cidade industrial, extensão do arti-fício culpada pela degradação da natureza e, agora, também do homem. Não por acaso aInglaterra foi um dos principais difusores do movimento romântico, além de renovar aarquitetura paisagística em um discurso novo, incorporando novos valores e uma nova es-tética. No século 19 já é possível identificar os germes do ambientalismo nas visões deconservação do “mundo natural” e na noção de mundo selvagem, embora ainda estives-sem embebidas nos ideais românticos e naturalistas do século precedente. Existe uma cer-ta continuidade histórica entre o antiurbanismo e a consolidação dos movimentos am-bientalistas na década de 1960, ligada à ideologia naturalista.

No campo do urbanismo e da arquitetura paisagística, os reflexos desse novo movi-mento podem ser percebidos desde o início do século 20. Da natureza controlada dos jar-dins franceses do século 17 às cidades-jardins de Howard e à cidade-parque de Corbusier,da natureza romantizada dos paisagistas ingleses do século 18 ao antiurbanismo deWright, houve um grande esforço de mudança de visão de mundo que, no entanto, con-tinuava utópica e idealizadora, mantendo a dualidade cidade-natureza, em maior ou me-nor intensidade. A partir dos anos 1960, a relação entre homem e natureza que emergeno conceito de meio ambiente, passa a designar uma pluralidade de questões, desde o des-matamento florestal até os problemas urbanos, como a poluição dos recursos hídricos. Avisão contemporânea de natureza, amplamente reestruturada pelo ambientalismo e peloconceito de meio ambiente urbano, foi interpretada pelo paisagismo, que passa a consi-derar o homem como parte dela, portanto, deveria contemplar essa unidade na sua prá-tica projetual. A paisagem passa a ser vista não mais com uma atitude contemplativa, ce-nográfica e passiva, mas como um sistema ecológico, em que os processos naturais setornam elementos básicos do projeto.

Embora ainda esteja distante do conceito de paisagem da geografia cultural, o pai-sagismo ecológico busca, cada vez mais, as soluções para os problemas ambientais nosprocessos sociais e no interior da própria cidade. Um paisagismo socioecológico, por as-sim dizer, que permite incorporar conceitos da paisagem cultural, realinhando o projetopaisagístico em direção ao fenômeno da produção e da participação.

Esta postura renovada só foi possível a partir de meados dos anos 1990, quando areflexão crítica promovida pelas ciências sociais reavalia profundamente os fundamentosecológicos, dissipando radicalismos e promovendo um rico debate. A heterogeneidade dodiscurso ecológico se tornou uma característica marcante das últimas três décadas, assimcomo a imprecisão dos termos empregados. Expressões como meio ambiente ou sustenta-bilidade são utilizadas por diferentes grupos, muitas vezes contraditoriamente, expondouma fragilidade conceitual, servindo como termos de apoio para justificar as mais extre-mas posturas, de grupos ambientalistas radicais a instituições financeiras conservadoras.Nem a palavra natureza foi vítima de tamanho vazio conceitual, com significados tão di-ferentes em uma mesma época. A reformulação do discurso ecológico empreendida a par-

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tir dos anos 1990 partiu de uma crítica do próprio movimento ambientalista, principal-mente de suas correntes mais radicais, de caráter biocêntrico e utópico, expondo seus mi-tos e reflexos negativos nas agendas políticas. Num segundo momento, diante da hetero-geneidade dos discursos e da imprecisão conceitual, o debate se concentra sobre ospróprios conceitos e termos empregados, e em que a obra de Milton Santos foi de gran-de valia, cujo conceito de forma-conteúdo nos é particularmente importante.

Neste sentido, nos últimos quinze anos, o debate ambientalista ganhou novos con-tornos e novos paradigmas a partir dessa revisão crítica, que reformulou conceitos, desen-volveu novas abordagens, explorou novas técnicas, novas possibilidades de projeto urba-no, caminhando para uma ciência de síntese, que é a base da própria ecologia. Obiocentrismo, e as incongruências dele derivadas, como o sentimento antiurbano, foi umdos principais pontos debatidos e questionados, acusado de forjar uma imagem negativade cidade e, consequentemente, uma falsa separação entre ela e a natureza, alimentandosoluções utópicas, que antes de contribuir com uma agenda política para as questões am-bientais, acabaram por obscurecer sua formulação. A própria ideia de que a adequação dacidade aos processos naturais é suficiente para a solução dos problemas ambientais urba-nos se reveste de um caráter ilusório e parcial. Isso não significa de forma alguma que asintervenções urbanas e políticas públicas devam desconsiderar a importância desses pro-cessos na formulação de seus projetos; mas extrapolar seu valor e seu peso, a ponto de co-locar em segundo plano os aspectos sociais, culturais e políticos envolvidos. Também nãoparece uma boa solução, muito menos em direção a uma pretensa síntese entre o urba-no e o natural.

Embora a noção de meio ambiente enquanto um produto social não seja nova, jápresente em Marx há mais de cento e cinquenta anos, ela só vem sendo aplicada e discu-tida recentemente no debate ecológico. O meio ambiente urbano passa a ser entendidocomo o resultado de um processo histórico-geográfico de urbanização da natureza, em queas dinâmicas sociais têm um papel fundamental. Consequentemente, os problemas am-bientais urbanos passam a ser analisados sob essa ótica, em que as desigualdades socioam-bientais são vistas em conjunto, tanto como causas quanto como efeitos. Neste sentido,essa abordagem, associada a uma mobilização em torno da questão ecológica, abre espaçopara o conceito de justiça ambiental e para a visão de cidade como um processo socioeco-lógico. Amplia, assim, o conceito de meio ambiente urbano e de sustentabilidade, ao in-corporar as dinâmicas sociais como parte integrante e fundamental do processo de urba-nização, ao mesmo tempo em que estabelece diretrizes de projeto que não operam naseparação entre homem e natureza, mas através de um real esforço de síntese. Refuta igual-mente o determinismo ambiental, o sentimento antiurbano inquisidor da cidade e do ar-tifício, assim como a ideologia naturalista residual do movimento ecológico. Paralelamen-te, expressa uma recusa ao papel da cidade como destruidora do ambiente e alienadora doindivíduo, legitimando seu lugar no mundo e, por conseguinte, da própria sociedade.

É claro que esta postura poderia ser qualificada como artificialista, na medida emque aceita o caráter artificial da urbe e de seus processos de formação e desenvolvimento.Entretanto, nas palavras de Rosset, a desnaturalização da ideia de natureza passa, pois, pe-la naturalização do próprio homem, do artifício e, portanto, da cidade. Assim, os proces-sos sociais de sua formação são novamente incorporados nas políticas urbanas ecológicase nas práticas projetuais, conjuntamente com os processos naturais, com os quais operamde maneira indissociável. E por fim, desse artificialismo pode resultar um feliz reencon-tro com uma “natureza humana liberada da ideia de natureza” (Rosset, 1973).

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NATUREZA E CIDADE NA AMAZÔNIA

Até que ponto a “naturalização” do homem, e consequentemente do artifício, atra-vés da desnaturalização da ideia de natureza, tal qual propôs Clemént Rosset (1973, 300),poderá resultar em um feliz (re)encontro com uma natureza humana, liberada da própriaideia de natureza?

Esta é uma questão pertinente ainda não resolvida totalmente pelos projetos urba-nos na Amazônia, embora já se possam antecipar caminhos a serem seguidos e paradig-mas a serem enfrentados pelas intervenções futuras, prenunciados pelos últimos projetosna região. O ideal naturalista, que há algum tempo já vem sendo colocado em xeque pe-los jogos da natureza desnaturalizada e do artifício naturalizante, parece ainda persistirsob a forma de um resíduo, mesmo nas práticas que aceitam o artifício e buscam um real equilíbrio do homem amazônico com seu meio. Se a superação da dicotomia entrenatureza e artifício é possível, ou até mesmo desejada ou necessária, a Amazônia urbanase apresenta como um local privilegiado para reflexão desta questão.

Poucas regiões do mundo são capazes de expor com tamanha intensidade os paradig-mas ecológicos contemporâneos como a Amazônia. Nas palavras de Milton Santos, dian-te do triunfo da apresentação sobre a significação, a ideologia ambientalista se corporificano seu imenso território (Santos, 1992, 100). É claro que não é de hoje que a grande pla-nície desperta o clamor e o temor daqueles que lhe voltam os olhos, e tampouco é neces-sário reforçar a importância dessa região para a construção da ideia de natureza moderna edo discurso ecológico. Mas, atualmente, este velho jogo entre homem e natureza adquirecontornos difusos no grande vale. A “última página do Gênesis” ainda está a ser escrita, equalquer prenúncio do desfecho seria em vão, e consumido por suas águas profundas.

A Amazônia, enquanto tema, foi criada e recriada nas tensões próprias da cultura eu-ropeia e nas contradições geradas entre o confronto cultural na América. E se esta foi in-ventada por um sonho expansionista europeu, a Amazônia se constituiu, talvez mais quequalquer outro lugar do mundo, como a continuidade desse devaneio (Carvalho, 2005,66). Construída ideologicamente no cerne da dialética entre natureza e cultura, a Ama-zônia se serve do naturalismo, não necessariamente como reflexão crítica da sociedade ca-pitalista industrial, como nos países europeus, mas como símbolo de identidade nacional,constituindo um dos últimos redutos possíveis da nostalgia etnocêntrica da ilusão natu-ralista (Arnt & Schwartzman, 1992, 94).

Entretanto, as contradições discursivas, expressas pela celebração da natureza deprecia-da na prática, refletem a dualidade presente ao longo de sua história, seja na recorrente am-bivalência entre paraíso e inferno, seja nos impulsos de preservar ou desenvolver. O vazioconceitual permanece mesmo nas tentativas de superação desta dualidade, e o desenvolvi-mento sustentável constitui o mais expressivo exemplar, enquanto sua fragilidade conceituale consensual serve, convenientemente, aos interesses dos mais diversos grupos e atores soci-ais. O atual discurso de resgate das águas e da cidade ribeirinha, estas enquanto representa-ção da relação idealizada entre homem e natureza, reveste-se igualmente da mesma impreci-são e práticas conflituosas, reproduzindo os ecos do discurso dualista característico na região.

No entanto, essa visão ambígua e limitada da Amazônia vem sendo revisitada em pa-ralelo à reflexão crítica do próprio ambientalismo. A reformulação teórica pela qual tempassado o movimento não partiu necessariamente da crítica ao modelo econômico desen-volvimentista, mas de uma revisão conceitual do próprio movimento ambientalista. A vi-são holística e integradora buscada pelo biocentrismo implicava em um processo de ne-

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gação da cultura, da cidade, do artifício em última análise, engolidos pela noção de ecos-sistema e pela natureza à qual havia se tornado coextensiva.

Na Amazônia, esse “holismo difuso” (Acselrad, 2002, 56), presente desde as tentati-vas coloniais de dar homogeneidade à região e às suas etnias (Freitas & Silva, 2000, 2),penetra as políticas públicas e os instrumentos analíticos atuais, cuja tendência à totaliza-ção do espaço amazônico acaba por negar uma realidade multidimensional e uma diver-sidade social, características de uma região que poderia ser classificada como tipicamentede fronteira. Segundo Pádua (2000, 797), essa situação se caracteriza principalmente pe-la “presença do conflito, ou pelo menos da interação social menos normatizada, em umgrau de intensidade especialmente elevado”, em que “os atores sociais são fluidos e emconstante movimento”, e novos atores entram em cena a cada dia, criando uma ordem so-cial formada por grupos e interesses diversos superpostos. Mais que isso, a “fronteira”constitui “simultaneamente o lugar da alteridade e o da expressão simultânea de diferen-tes tempos históricos” (Acselrad, 2002, 56).

O intenso conflito presente na atual realidade amazônica, portanto, não se dá apenas en-tre grupos de interesses e classes sociais. Existe uma relação difícil e pouco amadurecida entre di-ferentes interesses, propostas sociais, visões de mundo e, até mesmo, dimensões da realidade(Pádua, 2000, 797).

Como consequência desta pretensa visão totalizante, o ambivalente discurso natura-lista, apesar da sua contestação na última década, mantém a vitalidade através da clara cen-tralidade ambiental e da decorrente invisibilidade dos núcleos urbanos, mesmo diante daexpressão dominante que a cidade representa na Amazônia. Apesar do estranhamento queesta última afirmação possa causar, dado o discurso mediático atual que reduz sua proble-mática ao desmatamento florestal e à soberania nacional, a Amazônia é urbana, fato con-firmado pelos altos índices de urbanização regional e concentração populacional nas ci-dades, especialmente nas capitais. Aliás, como bem demonstrou Vicentini (1994), osdiferentes padrões de ocupação urbana sempre colocaram a cidade amazônica como umaantecipação de processos históricos, da modernidade na floresta e dos paradigmas subse-quentes, ora na cidade colonial resultante das estratégias geopolíticas da metrópole, ora nacidade da Belle Époque refletida na vitrine de civilização idealizada pela “elite da borracha”,ora na fronteira urbana estabelecida pelas políticas do desenvolvimentismo militarista.

Os paradigmas ambientais, que desde os anos 1970 estão em pauta na Amazônia,começam então a ser particularizados, relativizados e espacializados na problemática ur-bana. Os impactos socioambientais enfrentados pelo processo de urbanização amazônicoadquirem igual importância, pelo menos em um nível regional e, mais que isso, conden-sam tais paradigmas e promovem um debate interiorizado, paralelo ao debate nacional,confirmando as cidades amazônicas como espaço privilegiado de reflexão, de mediação ede possibilidades.

ENTRE A NATUREZA E O ARTIFÍCIO: OS PROJETOSPARA PARQUES URBANOS E ORLAS FLUVIAIS

Neste novo processo de reinvenção da Amazônia, os projetos de intervenção urbanaganham outra dimensão e importância renovada. A partir dos anos 1990, diante de tais

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paradigmas, as cidades amazônicas empreenderam considerável esforço nas políticas deremodelação urbana, amparados pelas pesquisas dos centros acadêmicos regionais, espe-cialmente os do Pará. Inicia-se um novo momento de renovação, em que são expostas eencaradas as problemáticas geradas por décadas de urbanização acelerada, derivada de po-líticas nacionais nem sempre positivas. É neste contexto em que os projetos para parquesurbanos e orlas fluviais aparecem como elementos esclarecedores dos paradigmas urbanosem voga na região, atuando como contestadores ou reprodutores das ambivalências quedesde sempre definiram a Amazônia.

Neste imenso anfiteatro que condensa os paradigmas socioambientais como poucos,os projetos urbanos que por sua essência representam a natureza na cidade, que refletemas relações entre natureza e cultura da sociedade, e que, por fim, configuram a paisagemcultural, são expressões preciosas destes mesmos paradigmas e consagrados locais de de-bate. Os parques urbanos e orlas fluviais têm então assumido um papel importante naspolíticas públicas, adquirindo funções e formas cada vez mais abrangentes, a ponto de sernecessária uma redefinição de seus contornos e conteúdos, muito aquém daqueles a queinicialmente se propunham. Entretanto, é importante relativizar os resultados de sua aná-lise por estas mesmas razões. Sendo o parque público um dos reflexos das transformaçõesdecorrentes da Revolução Industrial, está na sua origem a tentativa de superação da dico-tomia entre natureza e artifício; e suas atuais derivações programáticas e formais, apesardas particularidades e inovações de conteúdo, ainda ecoam sua intenção original, que po-deríamos qualificar apressadamente de naturalista. Por isso, não residiu no sucesso ou fra-casso da superação dialética o foco de nossa análise, mas nos conflitos derivados deste ca-ráter essencial, presentes no desalinhamento entre os discursos e as práticas, e entre asformas e os conteúdos, analisados em conjunto.

No caso amazônico, deve-se tomar cuidado redobrado, dado que, ao contrário doparque urbano europeu, o congênere brasileiro não surgiu necessariamente de uma críti-ca da sociedade industrial e da demanda das massas trabalhadoras por áreas verdes, masdos anseios de uma elite dominante vislumbrada e ansiosa por integrar-se à civilizaçãoocidental. Esta diferença de contexto confere ao parque amazônico um conteúdo particu-lar, em que o culturalismo, expresso pelo anseio de modernidade e desenvolvimento eco-nômico, mescla-se com o ambientalismo, alimentado pela celebração da natureza e de suapreservação, esta enquanto identidade regional, resultando em um curioso híbrido entrenaturalismo e artificialismo.

Esta característica fluida pode ser analisada através de uma continuidade discursivaque sobrepõe a história da Amazônia à história da própria ideia de natureza. A relevânciadesta sobreposição é claramente percebida na importância dos rios amazônicos, seja peloseu papel determinante no desenvolvimento histórico da região, seja na forte expressãocultural deles derivada. Na Amazônia, as águas constituem uma das principais categoriasde análise, através da qual é possível identificar os conflitos discursivos a sua volta e, porconseguinte, os conflitos históricos que definem a região. Apesar dos problemas socioam-bientais relacionados aos rios urbanos, as águas assumem hoje o protagonismo nos discur-sos políticos e nas intervenções urbanísticas, acompanhadas da valorização da cultura aelas atreladas. Afirmam-se como um elemento aglutinador poderoso, reforçando sua oni-presença histórica. A relação cidade-água, refletindo a relação entre artifício e natureza, é,portanto, um dos aspectos mais expressivos dos parques urbanos e orlas fluviais amazôni-cos, embora se expresse em diferentes abordagens e movimentos. Apesar das consideráveisdiferenças formais e de conteúdo verificados, é possível identificar uma tendência a supri-

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mir a aparente separação entre cidade e natureza. Esta hipótese é constatada em diferen-tes posturas projetuais diante de diferentes objetos e contextos, seja na “artificialização” danatureza observada nos parques-praias ou nos inúmeros balneários artificializados, seja na“naturalização” do artifício presente nos atuais projetos de revitalização do waterfront flu-vial de Belém.

Embora o uso naturalista do artifício remonte aos primeiros parques e praças da Be-lém da Belle Époque, cujo exemplo mais emblemático é o Bosque Rodrigues Alves, as prá-ticas de artificialização da natureza adquirem contornos peculiares durante a retomada deinvestimentos na área de parques urbanos a partir dos anos 1990. O modelo dos passeiospúblicos é substituído por padrões consolidados nacionalmente, primeiramente pelos cal-çadões litorâneos – cujas formas e conteúdos se distinguem do contexto amazônico –,onde são reinventados, mesclando formas importadas e valores regionais. O Parque dePonta Negra inaugura esse processo, embora negue disfarçadamente a paisagem culturalque pretendia afirmar ao suprimir elementos regionalistas essenciais do projeto originalde Severiano Porto. Apesar disso, o modelo é amplamente incorporado à paisagem urba-na amazônica, multiplicando-se em Alter do Chão (distrito de Santarém), Icoaraci (dis-trito de Belém) e Macapá, assim como nos balneários periféricos, cuja imagem idílica da praia tropical sobrepõe-se ao ambiente amazônico. Em Boa Vista, o processo de “artificia-lização” da natureza atinge seu auge, através dos projetos da Orla Taumanan, da Praça dasÁguas e da Praça das Fontes Luminosas, onde se artificializa a natureza sem o menor cons-trangimento ou cuidado em apagar os vestígios do artifício.

Em sentido oposto, mas em direção a um ideal de natureza semelhante, uma segun-da abordagem projetual toma corpo ao longo da década de 1990, formalizando uma ten-dência mundial de revitalização de zonas urbanas obsoletas ou degradadas, associada auma constante valorização cultural dos atributos naturais da cidade, em especial as águasurbanas. Incluem-se tanto os projetos para waterfronts marítimos e fluviais como os de re-vitalização do patrimônio histórico e cultural, adquirindo, entretanto, contornos peculia-res na Amazônia. Pioneira e referência nesta vertente projetual, Belém abriga os princi-pais exemplares deste tipo, como a revitalização da Estação das Docas, do ComplexoHistórico Feliz Lusitânia, do Mercado do Ver-o-Peso e imediações e do projeto Ver-o-Rio,cuja abordagem influenciou as intervenções na Fortaleza de São José de Macapá e na or-la do Rio Acre, em Rio Branco. Em linhas gerais, estes projetos, ao unificar sob um mes-mo discurso história e natureza, dado que ambas caminham juntas na Amazônia, adotamuma postura híbrida, entre o culturalismo historicista e o ambientalismo naturalista, emque a naturalização da cidade se dá ora através do projeto urbanístico e paisagístico (for-ma), ora através da valorização discursiva da cultura regional (conteúdo).

Contanto, em ambas as posturas projetuais brevemente descritas acima, é possívelidentificar, em maior ou menor grau de intensidade, as práticas naturalistas do artifício,recordando que o naturalismo não tem por princípio, necessariamente, a exaltação da na-tureza, mas a recusa ao artifício, e paradoxalmente, a recusa à própria natureza “real” porele degradada. Por um lado, diante de uma natureza “pouco natural”, opta-se por “me-lhorá-la” através do artifício segundo uma natureza idealizada, e por outro, diante de es-paços plenamente urbanizados e modificados pelo homem, busca-se naturalizar o artifí-cio. As formas derivadas destes dois movimentos são, de fato, muito distintas, emboraambas busquem amenizar, ou até mesmo eliminar, a marcante ambivalência amazônica.

Obviamente, a tentativa de superar a dualidade entre cidade e natureza não é nova,sendo um dos pontos centrais do próprio campo do urbanismo moderno, presente desde

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a naturalização da cidade promovida pelo organicismo do século 19, que a comparava aum ser vivo, passando pela cidade-jardim de Howard, pela generalização do urbano na ci-dade-parque de Corbusier, pelo antiurbanismo da cidade naturalista de Wright, até o pai-sagismo ecológico desenvolvido por McHarg. Este último, sob a influência da emergên-cia ecológica, aborda cidade e natureza sob um mesmo enfoque, predominantementeambiental, com uma atitude interdisciplinar, dando início a uma corrente projetual queconsidera os processos naturais como premissas básicas de projeto.

No caso amazônico, a abordagem ambiental não chega a formalizar uma nova esté-tica ecológica, tal qual promovida nos países europeus e norte-americanos. Mas detémuma particularidade importante ao associar aos objetivos iniciais de preservação, recupe-ração e manutenção do equilíbrio ambiental urbano, as atividades de educação ambien-tal e pesquisa científica, tratadas com a mesma importância dos objetivos iniciais, comoparte do próprio processo de preservação através da conscientização ecológica, caracterís-ticas já percebidas parcialmente nos primeiros exemplares implantados em Porto Velho,Rio Branco e Manaus. Em termos formais, os parques ecológicos amazônicos não assu-mem inicialmente uma nova estética paisagística, mantendo-se posturas projetuais tradi-cionais, de cunho romântico, pitoresco e até mesmo historicista – presentes desde o Par-que Zoobotânico Emílio Goeldi até o Bosque da Ciência em Manaus –, que coexistemcom uma nova linguagem, a exemplo do paisagismo naturalístico e conceitual que RosaKliass empregou no Mangal das Garças em Belém, e mais recentemente, no projeto parao Parque Madeira Mamoré, a ser realizado em Porto Velho. Avançando nesta última ten-dência, o Parque do Mindu, em Manaus, de autoria de Roberto Moita, é um dos proje-tos ecológicos mais bem-sucedidos na região, cuja arquitetura e paisagismo não recorre-ram a cânones naturalistas ou a representações miméticas da natureza, mas a um desenhomoderno, arrojado e amadurecido, que estabelece um contraste formal com a densa ve-getação amazônica ao mesmo tempo em que se integra plenamente a ela. Sua concepçãoprojetual constitui um dos raros exemplos em que o artifício celebra a natureza ao mes-mo tempo em que se afirma como artifício, num jogo que, arriscamos afirmar, elimina li-mites e dualidades, adentrando em uma nebulosa zona entre ambos.

Os parques ecológicos introduziram de fato uma corrente projetual inovadora na re-gião, capaz de compreender o meio urbano e natural conjuntamente, ainda que, comobem sabemos, essa postura não resulte necessariamente na síntese entre cidade e nature-za, mas na generalização dos processos naturais sobre os processos sociais. Apesar de con-sistir em um avanço considerável na forma de pensar o meio urbano, com grande influên-cia no tratamento dos recursos hídricos, o paisagismo de cunho ecológico ainda nãoconfigura a almejada superação dicotômica. Sem menosprezar a importância destes pro-jetos na conscientização e preservação ambiental, sem dúvida fundamental, seu efeitoimediato é limitado diante das grandes desigualdades sociais que se distribuem de formatambém desigual no território, onde as camadas sociais menos favorecidas são as mais ex-postas aos maiores riscos ambientais. Entretanto, nos mais recentes projetos em curso, jáé possível antecipar um ponto de inflexão no discurso e nas práticas que, diante de pro-blemas ambientais complexos e urgentes, se veem obrigados a considerar os processos so-ciais envolvidos em sua raiz, seja como categoria principal da intervenção ou como ummeio indispensável para atingir outros objetivos.

Seguindo essa tendência, no início desta década, uma nova abordagem de parquepúblico começa a dividir espaço com os exemplos anteriormente descritos, diante deproblemáticas mais complexas que exigem soluções diferenciadas e integradas. Diferen-

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temente das orlas fluviais dedicadas ao lazer contemplativo e esportivo, da revitalizaçãohistórica, cultural e turística dos waterfronts ou da preservação e educação ambientalpromovida pelos parques ecológicos, os projetos de parques lineares analisados contem-plam estas e outras dimensões urbanas, extrapolando inclusive a definição usual de par-que público. Não se trata de parques somente, no sentido mais estreito do termo, masde intervenções urbanísticas amplas, que buscam solucionar ao mesmo tempo diversosproblemas socioambientais, frequentemente associados ao sistema de tráfego, a carên-cias habitacionais, a melhoria da qualidade ambiental e de vida da população. Desen-volvem-se geralmente ao longo de cursos d’água, principalmente no caso amazônico, eou ao largo de importantes eixos viários, com múltiplas funções de preservação de re-cursos hídricos, de prover a cidade de vias de tráfego, áreas de lazer e cultura e, em al-guns casos, de requalificação socioespacial, através de investimentos no setor de mora-dia. Daí a denominação de parques lineares dada por esta pesquisa a essas intervençõesurbanas cujos limites, ao contrário do parque tradicional, nem sempre são claramenteidentificados, e cujo programa abrangente varia de acordo com as realidades urbanasque vão enfrentando ao longo de seus caminhos sinuosos. O primeiro exemplar destetipo formalizou-se em Rio Branco, no Canal da Maternidade, rapidamente multiplica-do pela cidade através do Parque Tucumã e do Parque São Sebastião, em fase de execu-ção. Mais recentemente, a cidade de Manaus se viu obrigada a encarar as questões so-cioambientais – após anos de relativa dormência política no trato dos problemashabitacionais e ambientais acumulados –, através do Programa Prosamim, pautado narequalificação socioespacial, em que o sistema de parques lineares é uma das ferramen-tas estratégicas principais, conjuntamente com políticas habitacionais. Em Belém, oPortal da Amazônia, o mais recente projeto de revitalização da orla urbana da cidade,incorpora conceitos semelhantes, embora com clara prioridade turística, interiorizadano mote “janelas para o rio”.

É importante, claro, reconhecer nos novos formatos dessa tipologia um constanteprocesso de adequação à realidade amazônica, que incorporou ao mesmo tempo novasfunções e valores, tornando-se uma ferramenta estratégica consolidada, capaz de solu-cionar uma série de questões urbanas em um só golpe. Entretanto, a problemática so-cial enfrentada por estes projetos, a exemplo do caso de Belém, deve ser melhor deba-tida e encarada.

CONCLUSÃO

Apesar do extenso projeto de renovação urbana em curso nas capitais amazônicas,especialmente em Belém, os estudos realizados sobre ele apontam para contradições dis-cursivas que dão continuidade às ambivalências características, renovando, sob diferentesroupagens, práticas e resultados já experimentados. No discurso de “devolução” da orlafluvial, forjado em torno do aparente consenso do resgate das águas e da cidade ribeiri-nha, e expresso pela visão edênica das “janelas para o rio”, reside o principal conflito.Conforme observado por diversos estudos, o almejado objetivo de democratização da or-la da cidade acaba por encobrir práticas de reconfiguração espacial, marcadas pelo eno-brecimento de áreas degradadas e pela segregação social. Evidentemente, esse processo jáé recorrente na Amazônia. Nas capitais tropicais da Belle Époque já era evidente o uso depráticas de segregação socioespacial, que permitiram a renovação urbana espetaculariza-

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da, reflexo da imagem de modernidade almejada pela elite esclarecida. No entanto, umadas principais diferenças da belle vitrine do início do século para o marketing urbano dosanos 1990 é o uso da água como elemento unificador poderoso, além da inclusão de va-lores ambientais e regionais, incorporados menos pela sua importância na solução dosproblemas socioambientais, e mais pelo anseio de modernidade que agora se alinha aoideário ecológico em voga. Esta afirmação se baseia no fato de o discurso construído emtorno do projeto de “devolução” não ser seguido necessariamente pelas práticas proje-tuais resultantes, como também do uso e valores atribuídos posteriormente a esses espa-ços pela população.

O desalinhamento verificado entre forma e conteúdo é, então, resultado de um en-tendimento limitado dos valores culturais que se pretende resgatar. Ao considerar os riosamazônicos segundo uma dimensão contemplativa, se acaba por negar implicitamentesua dimensão vivida, na qual reside a cidade ribeirinha objeto do resgate, limitando-a auma cidade a beira-rio. Dessa forma, as políticas urbanas adotadas convertem a cidade deobra em produto, o valor de uso em valor de troca e, por fim, confunde o direito ao es-paço com o direito à paisagem. Acabam, assim, por recair em um duplo paradoxo. Pri-meiro porque a cidade que se pretende resgatar nunca deixou de existir, mesmo que soba forma de um resíduo, e ao clamar pelo seu retorno, acaba por negar implicitamente asua existência. Em segundo lugar, porque esta cidade ribeirinha dada como perdida nãoencontra mais o seu rebatimento na organização socioespacial contemporânea, sendo im-possível o seu regate pleno diante da introdução de novos atores e práticas que tambémreivindicam seu espaço, mesmo que de forma conflitante e desigual. Por fim, do projetode “devolução” da orla fluvial de Belém ecoa a nostalgia naturalista, agora expressa pelodesejo de retorno de uma “harmonia” perdida e pela idealização das águas e de sua rela-ção com a cidade e os homens que nela vivem, recorrendo novamente a práticas natura-listas do artifício, pelo menos discursivamente, na medida em que recusam a realidadefragmentada e heterogênea da Amazônia.

No entanto, a constatação deste paradoxo por parte do meio acadêmico já começaa surtir efeito nas recentes políticas e intervenções urbanas, mesmo que timidamente eatravés de objetivos secundários. O próprio Portal da Amazônia e o os planos plurianuaisde Belém já apresentam algumas mudanças significativas quanto ao seu conteúdo progra-mático, ao conferir uma atenção especial às questões sociais envolvidas na problemáticaambiental, assim como ao valor de uso dos rios urbanos. Mesmo sob a sombra do discur-so turístico e econômico que ainda se reflete majoritariamente nas formas adotadas, cons-titui um prenúncio de novas posturas projetuais mais atentas à diversidade social do es-paço urbano amazônico. Em Manaus, o projeto Prosamim enfrenta abertamente aproblemática socioambiental, sem recorrer a discursos naturalistas ou turísticos. Com umenfoque claramente social, explora a interdisciplinaridade e a multifuncionalidade que osprojetos para parques lineares vêm assumindo na região, buscando promover a justiça am-biental e a melhoria da qualidade de vida urbana.

Estes últimos exemplos constituem um avanço sobre os projetos para parques eco-lógicos, por compreenderem os processos sociais conjuntamente com os processos natu-rais envolvidos, entendendo a cidade como o resultado de um processo histórico-geográ-fico de urbanização, em que as dinâmicas sociais têm um papel preponderante. A visãosocioecológica daí resultante envolve na mesma mirada as desigualdades sociais e ambien-tais, abrindo espaços para os movimentos de justiça ambiental defendidos por Harvey(1996). Por conseguinte, possibilitam melhor compreender a diversidade socioespacial e

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as múltiplas temporalidades que coexistem no território amazônico, sem as quais é im-possível identificar os conflitos e seus possíveis espaços de mediação. Neste sentido, os dis-cursos que se revestem de um consenso inquestionável submetido a um bem superior co-mum dificultam, se não impossibilitam, a coinvenção dos atores através de uma simbiosesocial (Acselrad, 2002, 70). Embora as intervenções em andamento signifiquem um avan-ço considerável nas formas de pensar o meio ambiente enquanto questões socioambien-tais, ainda há um longo caminho a percorrer, em que as soluções em curso serão de gran-de importância para o amadurecimento de futuros projetos para a Amazônia.

Ao colocar novamente os processos sociais no centro do debate urbano-ambiental,o urbanismo socioecológico, se assim podemos qualificá-lo, ajuda a afastar discursos epráticas conflitousas marcados pela ilusão naturalista, na mesma medida que renuncia àlógica binária da dualidade entre natureza e cultura (Heyen, Kaika & Swyngedouw,2002). Se esta atitude não nos direcionar a uma síntese entre o natural e o urbano, da-do que, como nos recorda Milton Santos (1996), a desnaturalização da natureza impli-ca necessariamente na universalização do artifício, no mínimo embaça os contornos queos separam.

Giulio Carlo Argan (1984, 211), ao se debruçar sobre a essência do urbanismo, se éarte ou ciência, concluiu que esta discussão não tem sentido, dado que a oposição entreestas categorias pertence a um esquematismo cultural superado, cuja serventia resume-sea confundir as ideias em vez de esclarecê-las. O urbanismo, enquanto um campo novo,pressupõe a superação dessa ambivalência, suplantada pelo próprio processo de formaçãoda disciplina, e da relação dialética em que coloca seus diversos componentes. Neste sen-tido, estaria a Amazônia a superar a marcante dualidade que lhe conferiu identidade porséculos? Estariam os projetos urbanos em curso nas suas cidades a suplantar definitiva-mente a distinção entre a natureza e o artifício, cujo resultado incerto conduziria a umanova imagem de cidade? Que a princípio os projetos aqui analisados, pela sua “natureza”,já sejam por si um esforço de síntese, não significa que sua forma e conteúdo conduzamnecessariamente a uma unidade conceitual. Como bem sabemos, os jogos da naturaliza-ção do artifício e da artificialização da natureza podem muito bem refletir as expressõesmodernas do naturalismo, cujas bases são mais uma vez questionadas como prenúncio deuma crise filosófica. Portanto, os movimentos conjunturais, observados segundo umaperspectiva histórica, parecem mesmo apontar para a superação desse esquematismo bi-nário, cuja utilidade analítica e ressonância política têm perdido crescentemente sua ca-pacidade de representação (Gandy, 2006, 72). Embora permaneça o paradoxo constanteda filosofia trágica, esse esforço de síntese empreendido através da naturalização do arti-fício, e sua consequente aceitação, pode nos conduzir ao “feliz reencontro com a nature-za humana liberada da ideia de natureza”, pelo menos até que as representações naturalis-tas se revigorem e precisem ser novamente encaradas.

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Mauricio de Brito e Cu-nha Valladares é arquitetourbanista (FAU-UFRJ), mes-tre em Urbanismo (PROURB-FAU-UFRJ).E-mail: [email protected]

Artigo recebido em junho de2009 e aprovado para publi-cação em agosto de 2009.

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A B S T R A C T The object of study of this paper is the idea of Nature and itsrelationship with Artifice, and its implications in the field of Urbanism. Whereas the idea thatsociety has given to nature influences the process of city construction, through its actors and itsinstruments of operation, this study aims to understand how this main idea is able to influencethe urban form and thus be transformed by it, producing different approaches. It is alsosecondary purpose of this research to contribute to urban design and public policies in theAmazon, through discussion between the approaches adopted by different actors in relation tothe issue in cities object of analysis, promoting an exchange of experience between them. TheAmazon, ideologically constructed in the heart of the dialectic between nature and culture,presents a fertile field of analysis of environmental issues. Similarly, projects for urban parksand waterfronts, whose essence is imbued this paradigm, can illustrate different relationshipsbetween nature and artifice in the region, and it can extract the meaning and implications ofthis relationship for urban planning. It has been found different approaches and movementson reference projects. Broadly speaking, correspond to those projects for river edges withnaturalists shades, deployed in areas previously little altered by human presence, the projects ofrevitalization of consolidated and degraded urban areas, distinct by the naturalization ofartifice, the projects for ecological parks aimed at natural preservation and environmentaleducation and the interdisciplinary and multifunctional linear parks, pointing to a socio-

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ecological urban approach. Discursive contradictions found to reflect this duality along theAmazon history, sometimes recurring ambivalence in heaven and hell, sometimes in pulses ofeither preserve or develop, sometimes in the dialectic between nature and artifice. Ifovercoming this dichotomy is possible, or even necessary, the Amazon city presents itself as anexceptional place for discussion of this issue.

K E Y W O R D S Philosophy of nature; urban environment; amazonian cities; urbandesign.

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O DIREITO DAS FAVELASNO CONTEXTO DAS POLÍTICAS

DE REGULARIZAÇÃOA COMPLEXA CONVIVÊNCIA ENTRE

LEGALIDADE, NORMA COMUNITÁRIA E ARBÍTRIO1

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R E S U M O Este trabalho consiste em um debate sobre a especificidade da presença doEstado em favelas, especialmente do chamado Estado Legal, que se corporifica num conjuntode normas abstratas e genéricas e em órgãos e procedimentos criados para efetivá-las. Toma-secomo ponto de partida do debate um exercício de análise de conteúdo de entrevistas realizadasao longo de 2008 com moradores de favela situada no Rio de Janeiro, que está passando por in-tervenções no sentido de promover sua regularização urbanística e fundiária, para que venha aser integrada à cidade. As entrevistas tiveram como objetivo identificar as normas que de fato seencontram em operação no espaço da favela, no tocante às relações de vizinhança e ao uso e ocu-pação do solo, bem como a fonte dessa normatividade, no sentido de reconhecer se tais normasproviriam do Estado, se teriam sido elaboradas internamente pelos próprios moradores, ou seproviriam de alguma outra possível fonte, como uma combinação de fontes estatais e “comuni-tárias”. E a partir disso, debater teoricamente a natureza dessas normas, forjando uma inter-pretação sobre o caráter e o significado social da regulação do espaço que nelas se materializa,bem como identificar os impactos socioespaciais provocados pelas intervenções de regularização.

P A L A V R A S - C H A V E Favelas; direito da favela; regularização fundiária;Estado Legal; pluralismo jurídico; normas locais.

INTRODUÇÃO

Este artigo consiste em um debate sobre a especificidade da presença do Estado emfavelas, especialmente do chamado Estado Legal, que se corporifica em um conjunto denormas abstratas e genéricas e em órgãos e procedimentos criados para efetivá-las.

Para a abordagem aqui pretendida, tomamos como ponto de partida o processo deconsolidação de políticas públicas voltadas à melhoria das condições de moradia nas fa-velas, que, neste trabalho, são genericamente identificadas como Políticas de Regulari-zação, uma vez que é desta forma que a maioria dos programas tem se apresentado nasúltimas décadas. Notamos que a noção de regularização se converteu no grande símbo-lo, e/ou no principal eixo articulador de políticas integradas de intervenção do Estadonas favelas, e junto a este conceito está uma série diversificada de medidas, algumas de-las de difícil conjugação. Dentre elas, destacam-se aquelas que visam: (i) a formalizaçãoda propriedade da moradia; (ii) a dotação de infraestruturas urbanas na área sob inter-venção; (iii) a adoção de medidas de legalização urbanística, edilícia e fiscal; e até mes-mo (iv) a implementação de ações voltadas ao desenvolvimento econômico e social (Al-fonsin, 1997).

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1 O presente trabalho cons-titui um esboço de síntese eanálise das informações co-lhidas no âmbito de pesqui-sa concebida e iniciada nosegundo semestre de 2007,e desenvolvida desde então,tendo em vista a elaboraçãode tese de doutorado a serconcluída no ano de 2009.Tal pesquisa tem por objetoa reflexão sobre a especifici-dade da presença do Esta-do nas favelas da cidade doRio de Janeiro, especialmen-te do chamado Estado Le-gal (O’Donnell, 1998, 1999).

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Os programas de regularização em curso possuem um ponto relevante em comum:quase todos eles têm por meta integrar à cidade os assentamentos objeto das intervenções.Tal meta tem por pressuposto a interpretação de que se encontram em ação mecanismospoderosos de segregação social e espacial, que se manifestam nas cidades por meio de fe-nômenos como o das favelas, engendrando uma dualidade no espaço urbano, o que, porsua vez, produz diversos problemas de alta gravidade, de natureza social, cultural, econô-mica e política. Assim, as políticas direcionadas às favelas se propõem constituir instru-mentos de superação – ou, ao menos, de atenuação progressiva – dessa segregação, logo,de integração social e urbana.

A problemática da integração nos afigura uma questão ao mesmo tempo relevante,legítima, como também ampla, possuindo várias dimensões e aspectos dentro dos quaispode ser enfocada. Assim, indagar sobre “qual, ou quais, medidas seriam suficientes e ca-pazes de promover a integração da favela à cidade” constitui uma questão de alta comple-xidade, que não possui uma resposta simples, possibilitando, e até mesmo exigindo, exa-me pormenorizado e particularizado de cada um de seus respectivos aspectos. No presentetrabalho procuramos desenvolver uma dentre as várias possíveis reflexões a respeito doque consideramos um dos mais eloquentes aspectos da questão da integração das favelas:o aspecto jurídico. Pretendemos enfocar esse aspecto a partir da pergunta: “quais são asnormas que, de fato, têm vigorado nas favelas da cidade do Rio de Janeiro?”. Vale dizer,nos parece importante pesquisar até que ponto as normas legais promulgadas pelo Esta-do brasileiro, em seus três níveis, têm se revelado efetivas no espaço das favelas, bem co-mo se haveria diferença analiticamente relevante de grau e/ou de qualidade da efetivida-de da lei dentro e fora da favela.

O cerne desta questão não é novo no debate sociojurídico contemporâneo. Já se de-senvolve há algumas décadas, especialmente no continente latino-americano, um debatesobre o direito que nasce do povo e/ou o direito achado na rua (Souza Junior, 1988), ou ain-da o direito vivo2 (Ehrlich, 1986), e inúmeras outros conceitos que indicam a preocupa-ção em conhecer empiricamente o fenômeno jurídico e, muito especialmente, a especifi-cidade de sua operação no caso dos segmentos sociais subalternizados. Nessa tradiçãoteórica, sobressai a obra de Boaventura de Souza Santos, de referência obrigatória, que te-ve impulso a partir de suas pesquisas realizadas nas favelas do Rio de Janeiro, nas comu-nidades tradicionais de Angola e nos grupos revolucionários portugueses no período daRevolução dos Cravos (Santos, 1977a, 1977b, 1980, 1988). É importante frisar desde lo-go que o fato de recorrermos e dialogarmos com essa importante corrente do pensamen-to jurídico contemporâneo não implica na aceitação acrítica da mesma como um todo,uma vez que buscamos nos distanciar das abordagens dualistas do problema das relaçõesentre o direito oficial e aquele que é fruto das relações sociais objetivas estruturadas noâmbito das favelas.

A questão delineada nos parágrafos anteriores tem sido amplamente revigorada erecolocada no processo de difusão, fortalecimento e institucionalização das políticas deregularização, que demarcam um novo momento da reflexão sobre tal questão. Uma dasdimensões centrais dessas políticas consiste precisamente na formulação de uma legisla-ção disciplinadora do uso do espaço, que seja plenamente adaptada às circunstâncias fí-sico-territoriais e socioculturais das favelas. Dessa forma, se almeja garantir o desenvol-vimento ordenado e racional desses espaços, bem como deixar marcado que o Estadonão mais está ausente dessas áreas, que deixariam de se configurar como espaços literal-mente excluídos do planejamento e ordenamento da cidade, sem qualquer espécie de es-

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2 O direito vivo, segundo ojurista alemão Eugen Ehrlich,seria aquele que domina avida apesar de não estar fi-xado em prescrições jurídi-cas, e pode constituir ounão algo legalmente reco-nhecido. Isto é, pode tantoconsistir no uso que se fazdas possibilidades de agirdadas pelo direito vigente,quanto pode ser algo igno-rado ou até mesmo contrá-rio a este (Ehrlich, 1986).

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forço por parte do Estado de nelas exercer o seu poder de regulação legal. De fato, aspolíticas de regularização ostentam a meta de atacar um problema que, no âmbito dasciências sociais, é classificado como um problema estrutural da experiência democráti-ca latino-americana que consiste na formação de “áreas cinzentas” ou “zonas pardas”, is-to é, regiões mais ou menos extensas em que o sistema legal não tem vigência efetiva –conquanto estejam elas integradas do ponto de vista político, territorial ou econômico,dando margem à constituição de formas privatizadas de regulação social (O’Donnell,1998). A superação do fenômeno das chamadas “áreas cinzentas” constituiria, nesse sen-tido, um poderoso indicador da medida da integração e, logo, dos impactos e/ou resul-tados das políticas de regularização para a consolidação do projeto democrático. Assim,um dos objetivos de nossa pesquisa é o de reunir elementos que permitam uma avalia-ção, a mais aproximada possível, do êxito na realização dessa meta, tendo claro que nãose trata de uma avaliação definitiva, uma vez que estamos lidando com processos emcurso, isto é, com objetos em movimento. Ao lado desse objetivo, coloca-se o de deba-ter teoricamente a natureza das normas que comporiam o “direito achado nas favelas”,forjando uma interpretação sobre o caráter e o significado social da regulação do espa-ço que nele se materializa.

Com base em entrevistas, observações e leituras realizadas ao longo de 2008,3 che-gamos ao esboço de alguns campos da experiência jurídica na favela que nos parecem fér-teis para exploração em pesquisas empíricas e no debate teórico. Tais campos podem seridentificados e nomeados da seguinte forma: 1. o direito dos contratos de compra e ven-da de imóveis; 2. os sistemas de formalização da propriedade; 3. o direito das locações deimóveis; 4. o direito de construir e suas limitações; 5. o direito de vizinhança e os modosde resolução de conflitos entre vizinhos.

Cada um desses campos comporta e exige uma reflexão específica, passível até mes-mo de constituir objeto de trabalho autônomo, sem prejuízo das íntimas conexões queguardam um com o outro, de modo que a contemplação desse conjunto se faria indispen-sável ao amadurecimento de hipóteses sobre as questões ora levantadas. No presente tra-balho, enfocaremos o primeiro dos cinco campos acima indicados.

A INTEGRAÇÃO SOB UM ÂNGULO SÓCIOJURÍDICO:O DIREITO CONTRATUAL E A COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS NO CASO ESTUDADO

O QUE SE VENDE E COMO SE PAGA

Conforme informaram os depoimentos, na favela estudada atualmente é muito es-casso o acesso a imóveis por meio de invasão; predomina o acesso por mecanismos demercado, notadamente compra ou locação. Em um dos depoimentos colhidos, a aquisi-ção da casa se deu mediante doação, visto que a entrevistada e sua família foram vítimasde um incêndio que destruiu completamente a moradia, o que configurou uma situaçãode virtual indigência. Diante disso, um dos moradores doou a própria laje para que a en-trevistada reconstruísse sua casa, enquanto os demais vizinhos fizeram doações de mate-rial de construção, móveis e roupas. Trata-se de uma situação incomum à primeira vista,que se verifica normalmente entre familiares, mas que pode guardar certas analogias comoutras que relataremos adiante.

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3 Ao longo desse ano foramrealizadas entrevistas (emgeral, individuais) com 22moradores, quase todas naprópria favela, que se cons-tituíram, também, em oca-sião de conhecimento do es-paço mediante observação.Além desses, foram entre-vistados 7 servidores públi-cos com atuação no local, amaior parte deles de forma-ção técnica, uma liderança(o atual Presidente da Asso-ciação de Moradores, sendoa entrevista realizada na pró-pria Associação), um pesqui-sador que fez trabalho decampo em favela vizinha, edois agentes de pastoralque coordenam trabalho so-cial voluntário voltado à fave-la estudada. As leituras reali-zadas tiveram por objetodocumentos a respeito dafavela, produzidos por ór-gãos do poder público, deplanejamento, de habitaçãoe de urbanismo.

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Com relação ao processo de compra e venda de imóveis, percebe-se, inicialmente,que são objeto dessa forma de acesso à moradia desde lotes vazios até terrenos edificados,incluindo-se, nesse caso, a venda de lajes – uma prática identificada há algumas décadas,no início do processo de verticalização das favelas. O processo de verticalização encontra-se amplamente desenvolvido no caso estudado, no qual se observa que 82,6% dos lotespossuem mais que um pavimento, e que 35,75% possuem três pavimentos – e a tendên-cia é de que, dentro de alguns anos, o gabarito de quatro andares ocupe uma faixa rele-vante de casos (Prefeitura, 2006). De outro lado, não somente lotes edificados em alve-naria são objeto de troca, mas também imóveis com barracos de madeira, ou ainda,construções precárias, que adquirem valor de troca e são efetivamente vendidos – a exem-plo do que nos relatou um dos entrevistados, que adquiriu sua casa, por compra, quandoela ainda era desprovida de teto.

Outro aspecto do processo de compra e venda diz respeito ao pagamento do preço,no qual se verifica amplo recurso ao pagamento parcelado e sem incidência de juros e/oucorreção monetária das prestações. Em geral, verificou-se que o comprador lança mão deverbas extraordinárias (em relação à remuneração mensal básica) para realizar a comprado imóvel – indenização rescisória, férias, 13º salário, além do próprio FGTS, instituídopara essa finalidade. No entanto, face às normas que regem a utilização do FGTS, que im-pedem a sua utilização para aquisição de imóveis que não estejam devidamente matricu-lados e registrados no Cartório Imobiliário, verifica-se a recorrência ao “acordo de demis-são” para a liberação de recursos do Fundo. Em todos os depoimentos colhidos, o própriovendedor operou como concedente do crédito, a exemplo do que também ocorre na ven-da de materiais de construção, uma vez que os compradores em geral não conseguemacesso ao crédito bancário. Houve mais de um relato em que o morador até tentou obterfinanciamento da Caixa Econômica Federal (CEF), porém, sem êxito, uma vez que nãopossuía bens suficientes ou hábeis a fornecer garantia do pagamento. Em dois relatos dosentrevistados, o morador informou que possuía imóvel, porém, sem matrícula no Cartó-rio Imobiliário, o que também inviabiliza a operação junto a CEF.

A INTERVENIÊNCIA DA ASSOCIAÇÃO DE MORADORES

Um aspecto de suma importância, e que se pode indagar se não integraria o direitoconsuetudinário4 da favela estudada, consiste no fato de que a compra e venda de imóveisdeve ser intermediada pela Associação de Moradores, isto é, a compra só seria válida e re-conhecida publicamente se realizada perante o representante da Associação, via de regrao seu próprio presidente. Segundo os depoimentos colhidos, essa norma vale para todo equalquer imóvel vendido na área da favela, “até mesmo para o mais modesto barraqui-nho”, e constitui um procedimento reconhecido por todos e que oferece segurança con-sistente na legitimação do adquirente em face de todos os moradores atuais e futuros da-quela favela. Tratar-se-ia, pois, de um ato que, à luz dos costumes locais, confere eficáciaerga omnes à compra do imóvel.

Para esse fim, a Associação criou e utiliza um documento padrão denominado Ter-mo de Transferência de Benfeitoria, do qual consta o seguinte: declaração da venda; iden-tificação das partes; endereço, medidas e número de cômodos do imóvel vendido; preçoe condições de pagamento; data do negócio; assinatura das partes, seus cônjuges, testemu-nhas e, aspecto indispensável, do próprio presidente da Associação. Ou seja, trata-se deuma compra e venda feita por instrumento particular, porém, com uma espécie de inter-

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4 O mesmo que direito cos-tumeiro. Na doutrina, defi-ne-se como o conjunto deregras que se estabelece-ram pelo costume ou pelatradição. Para que o costu-me seja admitido como tal,a teoria jurídica consideraindispensável que se tenhafundado em uso geral e pro-longado, havendo a pre-sunção de que o consensogeral o aprovou. Assim,constituem requisitos paraseu reconhecimento: (a)consistirem em fatos repeti-dos, de modo uniforme, porlongo tempo; (b) a sua prá-tica ser generalizada e pú-blica; (c) serem fatos lícitose não contrários à lei ou àordem pública. Cumpridosesses requisitos, o costumese considera fonte formaldo Direito. No caso estuda-do, como se trata de situa-ção não cogitada na lei, dir-se-ia que se trata de umcostume praeter legem. Cf.verbete respectivo in Silva(2000, p. 270).

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veniência obrigatória de um terceiro, que lavra e subscreve o respectivo instrumento. Aatuação da Associação guarda analogia tanto com a função do Notário, pois redige o con-trato, quanto com a função do Registrador, uma vez que a Associação anota essa vendano arquivo por ela mantido, e com base no qual é possível saber quem, para a Associação,é o “proprietário” de cada imóvel da favela. À luz da legislação em vigor, tal interveniên-cia, conquanto não seja vedada ou vista como ilícita, não seria de forma alguma obriga-tória, uma vez que a Associação não é formalmente investida em qualquer função públi-ca, muito embora, de fato, opere como uma espécie de “governo da favela”, face àsfunções que o próprio Estado a ela delega, o que constitui uma das múltiplas ambiguida-des que marcam esses territórios. Além disso, uma vez que o vendedor não é proprietáriodo imóvel, este sequer dependeria de instrumento público para transferir os direitos quepossui sobre o mesmo, tal como ocorre na lavratura de escritura pública.5 Isto somenteocorreria caso o imóvel estivesse matriculado no Registro Imobiliário, bem como se seuvalor fosse igual ou superior a 30 vezes o maior salário mínimo vigente no país,6 confor-me dispõe o art. 108 do Código Civil. A despeito de todas essas considerações, em umcaso relatado nas entrevistas, o presidente da Associação teria afirmado categoricamente àentrevistada que, sem a sua assinatura, o documento de compra do imóvel não teria ne-nhum valor, o que, usando as categorias jurídicas, equivaleria a afirmar a nulidade do tí-tulo aquisitivo do comprador. Dessa forma, fica evidenciada a particularidade das insti-tuições, e da sensibilidade jurídica, desenvolvidas na favela estudada.

Abrimos aqui um pequeno parênteses, a fim de justificar as aspas que envolvem o ter-mo proprietário no parágrafo anterior, parênteses que optamos por inserir no texto, e nãoem nota, dada a sua relevância para nossa argumentação. A partir de um olhar digamos,externo ao discurso dos envolvidos – por exemplo, à luz da legislação em vigor –, aquelesque a Associação reputa proprietários seriam, em verdade, possuidores dos imóveis, umavez que, no caso estudado, a propriedade cabe indiscutivelmente à União e, dado que ne-nhum dos moradores adquiriu seu lote em face dela, nenhum deles poderia transmitir umdireito que não possui. No entanto, a partir desse mesmo olhar, seria possível afirmar queos moradores agem como se fossem proprietários, isto é, exercem posse com animustenendi,7 quiçá com animus domini,8 o que, para aquela coletividade, é suficiente para per-mitir que a pessoa seja reconhecida como proprietária. Por fim, pode-se afirmar, com basenos depoimentos, que os moradores da favela estudada têm consciência de que o que en-tendem por “proprietário”, para sua economia interna, não é o mesmo que entende o Es-tado, ou os não-moradores de favela. Vários depoimentos registraram com clareza a per-cepção de que existem critérios diferenciados para cada um dos casos, isto é, de que háregras, instituições, procedimentos e obrigações que são vigentes apenas fora da favela, nãodentro, e vice-versa. Ou seja, é clara a percepção da segmentação, ou ausência de integra-ção entre os espaços interno e externo à favela, e não parece passar despercebido aos mo-radores do local a existência de uma dualidade de conceitos de propriedade.

Além daquelas analogias entre instituições oficiais do Estado e comunitárias da fave-la acima indicadas, no caso estudado há mais uma analogia relevante a ser assinalada: àsemelhança dos Registradores, que devem observar o chamado princípio da continuidaderegistrária, a Associação demonstra ter o idêntico cuidado de somente aceitar e reconhe-cer uma venda caso seja realizada por aquela pessoa que, em seus registros, consta como“dono” do imóvel, isto é, aquela pessoa que tenha previamente adquirido tal imóvel. Per-cebemos do depoimento do presidente da Associação que ele é bastante rigoroso nesse as-pecto, já tendo se recusado a reconhecer tentativas de venda em descumprimento dessa

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5 Em virtude da ausência depropriedade, as vendas deimóveis em favelas, no rigorda técnica jurídica, constitu-iriam contratos de Cessãode Posse, para os quais alei não exige forma especial,o que significa que são váli-dos até mesmo se celebra-dos verbalmente.

6 Segundo informações co-lhidas na rede mundial decomputadores, o maior salá-rio mínimo vigente no país,no ano de 2008, era o doestado do Paraná, no valorde R$ 548,00. Com basenisso, pode-se afirmar que,mesmo que ocorra a regula-rização fundiária, com aabertura de matrícula no RGIpara todos os imóveis situa-dos em determinada favela,a venda de boa parte dosimóveis nela existentes po-derá continuar a ser feitasem necessidade de escritu-ra pública. Isto porque a leicivil só a exige para imóveisvendidos a valores superio-res à quantia especificada,o que correspondia, naqueleano, ao montante de R$16.440,00.

7 Vontade ou intenção deter e de possuir um bem,agindo em relação a ele domesmo modo que o legítimodono procederia, como sefosse o próprio dono. Tam-bém designada por affectiotenendi (Silva, 2000).

8 Vontade ou intenção deser dono; intenção de ter ede possuir um bem comodono (Silva, 2000).

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norma. Os depoimentos colhidos ainda não permitem fornecer uma explicação segura so-bre quais fatores teriam determinado essa similitude de procedimentos, que a princípiosurpreende o pesquisador na medida em que não consta que os presidentes da Associaçãotenham qualquer formação em Direito Registrário.

Uma hipótese mais rudimentar diria que tal semelhança se deve ao fato de ser umaespécie de necessidade lógica e/ou uma necessidade operacional, isto é, seria uma norma quedecorre do bom senso na administração dos negócios imobiliários, sem o qual esta perde-ria a sua racionalidade. Outra hipótese, que a princípio nos parece ser mais digna de umainvestigação séria e aprimorada, diria que tal fato constituiria um indicador da comuni-cação discreta e imperceptível, que estaria em curso há algum tempo (isto é, não haverianada de “novo” nisso) entre os costumes vigentes na favela e os rituais e procedimentoslegais definidos pelo Estado. Em outras palavras, a despeito dos inegáveis processos de se-gregação sócioespacial, tal fator não é impeditivo para que haja certo intercâmbio e/ouapropriação de instituições oficiais do Estado por parte das coletividades favelizadas. Es-tas, à medida que as suas organizações internas se institucionalizam, estariam mais pro-pensas a absorver, de maneira parcial e fragmentária, algumas técnicas e instrumentos deadministração da vida coletiva desenvolvidos no núcleo da sociedade nacional, plenamen-te vigentes em suas regiões não segregadas. O próprio nomen conferido ao documento la-vrado pela Associação (Termo de Transferência de Benfeitoria) revela algum nível de incor-poração da técnica jurídica ao se referir à benfeitoria, e não ao solo, como objeto davenda, pois o solo não é de propriedade do vendedor – logo, este não poderia aliená-lo,ao contrário da construção.

Tal hipótese implica em afirmar que as favelas estariam mais integradas à vida socialdo que aparentariam à primeira vista, com o que se reitera a crítica à interpretação dualis-ta da sociedade, crítica que tem na obra de Francisco de Oliveira (Oliveira, 1988) uma desuas clássicas sínteses e referência teórica obrigatória. Implica, ainda, em afirmar uma de-terminada via, ou estratégia (talvez não rigorosamente consciente) de exercício da cidada-nia pelos segmentos sociais favelizados, que através da apropriação fragmentária das insti-tuições do Estado buscaria legitimar, interna e externamente, as suas próprias instituições.

O PREÇO DA INTERMEDIAÇÃO

Outro aspecto relevante, da intermediação da Associação na compra e venda de imó-veis no caso estudado, consiste no fato de que essa intermediação não é gratuita, e que háum preço a ser suportado pelo comprador, de maneira também análoga aos custos de la-vratura de escritura e de registro, nos casos de compra de imóveis matriculados no Car-tório Imobiliário. No Termo de Transferência de Benfeitoria figura uma cláusula segundo aqual, em qualquer venda de imóvel situado na favela, o vendedor deverá arcar com o pa-gamento de um percentual sobre o valor de venda, em favor da Associação, a título de do-ação. Esse ônus, no entanto, é sistematicamente transferido ao comprador, tal como ocor-re com os emolumentos cartorários e tributos incidentes sobre a venda de imóveisregularizados. Na mesma cláusula aparece a menção de que tal cobrança se fundamentanos “Direitos do Costume”. Ressalte-se que tal cláusula figura abaixo, e após a assinaturadas partes, o que seria algo inadequado segundo as técnicas usuais de redação contratual.

O documento padrão utilizado pela Associação sugere que o percentual cobrado nãoé fixo, igual para todos os casos, mas pode variar. Isto porque, na cláusula em questão, fi-gura um campo em branco no contrato-modelo que deve ser preenchido com o percen-

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tual efetivamente cobrado em cada caso concreto, o que provavelmente é feito pelo presi-dente da Associação. Tal variação é corroborada pelas entrevistas realizadas, que se referema pagamentos entre 2 e 5%, feitos nos seus respectivos casos. Pelas informações disponí-veis, a variação no percentual se deve a diversas circunstâncias, tais como valor do imóvel,metragem do mesmo (alguns entrevistados relataram que um funcionário da Associaçãofez medição do imóvel antes da venda ser efetivada) ou até mesmo o poder de barganhadas partes. Esta última variável foi claramente explicitada no seguinte depoimento, que,por sinal, permite que sejam levantadas diversas questões, a título de exercício analítico:

Eu acho um absurdo você pagar um preço de cartório para botar uma casa no seu nome. Do

valor da casa você paga 10%. Eu comprei minha casa por R$ 6 mil e falei para ele que foiR$ 4 mil para eu poder pagar R$ 400,00. Ele (se refere a alguém da Associação, que faz astransferências dos imóveis, possivelmente o próprio presidente) vai lá no computador, muda

o nome do dono, põe o seu nome, você assina, o dono assina e pronto, aí você paga. Ele fa-lou: “tem que pagar R$ 200,00”. Eu falei que não tinha esse dinheiro, de onde que eu voutirar R$ 200,00? Ele perguntou: “quanto você pode me dar?” Eu falei “R$ 50,00”. Ele dis-se: “não, então R$ 100,00”. Aí eu perguntei se não dava para passar aquele documento lá emcasa, porque só ia gastar uma folha. Ele disse que não era pela folha, mas que tinha que cons-tar na Prefeitura que é outra pessoa que mora. Eu falei: “todas as casas têm registro na Pre-feitura?”. Ele disse: “todas não, mas a maioria tem; você não quer a sua casa legalizada?”. Eufalei: “quero”. E ele: “então?”. Eu falei: “eu vou ver se eu posso pagar R$ 200,00”. Eu falei

com meu marido e ele disse para pagar os R$ 100,00, que ele não queria confusão. Eu pa-guei R$ 50,00 no dia que ele passou o papel e deixei os outros R$ 50,00 para pagar no ou-tro mês, porque nem eu nem ninguém tem condição de pagar tudo de uma vez. Ele não as-

sinou o papel e falou: “só assino quando me pagar os outros R$ 50,00”. Ele só assinou depois

que eu paguei os outros R$ 50,00. Ele me deu o papel, mas falou que sem a assinatura deleaquele papel não valia nada. Quando eu estava com os outros R$ 50,00, eu fui lá, paguei e

ele assinou. Meu marido falou: “esse dinheiro não vai nem para a Associação, não vai nempara ele comprar lâmpada para colocar nos postes, porque isso é serviço da Prefeitura”. Seeles vão receber algum dinheiro, não custava nada eles comprarem as lâmpadas e falarem como pessoal que trabalha na Associação para eles mesmos trocarem, porque eles têm aquelas es-

cadas e não precisam ir na Prefeitura.

Observe-se, primeiramente, que os moradores lançam mão de diversos recursos afim de minimizar os custos da transação. No excerto acima, a entrevistada não somentedeclara um valor de compra menor do que aquele efetivamente avençado com o vende-dor – expediente que também foi noticiado por outros entrevistados, sendo o valor decla-rado, em média, 33% menor do que o real – como também força a Associação a aceitarredução e parcelamento do preço da intermediação. Além desses instrumentos de reduçãodos custos, um entrevistado declarou não ter realizado a compra com a intermediação daAssociação, realizando-a diretamente com o vendedor, sem submetê-la ao processo habi-tual de legitimação pela Associação, na qual seu imóvel ainda figura em nome do vende-dor, conforme transcrição abaixo:

Quando eu comprei uma casa lá na Rua 50, eu paguei R$ 15 mil. A moça lá da Associaçãoqueria 500 contos para passar para o meu nome, aí eu não passei ué (os outros entrevistadosriem). Eu ainda estou com o documento do rapaz que me vendeu, eu peguei o documento,

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e depois eu vou lá no cartório, vou fazer um... entendeu? ... bonitinho, lá em casa no com-

putador e vou levar no cartório para mim autenticar isso. Pô, pagar 500 contos...Pergunto: “Então você não registrou na Associação?”Está no nome do outro cara, ele registrou.Pergunto: “E o cara já foi embora?”Ele ainda mora lá no morro. Está por perto. Qualquer hora eu vou chamar ele para a gentetrocar uma pedra, aí nós vamos lá e...

Pergunto: “E não te dá problema não ter feito isso na Associação? Não traz risco?”Até agora não deu nada.

Os depoimentos acima deixam nítida a racionalidade do homo aeconomicus, tal co-mo já amplamente verificado nos estudos sobre a evasão tributária, que se vê sobrema-neira alimentada em função da situação de baixa renda, amplamente presente no casoestudado, uma vez que 63,08% dos titulares de imóveis declararam perceber renda men-sal igual ou inferior a três salários mínimos, sendo que é expressivo o percentual na fai-xa 0-1 SM (27%). (Prefeitura, 2006)

De outro lado, pode-se verificar que se a legitimidade da intermediação da Associa-ção não é questionada em princípio, pode passar a ser em função de circunstâncias comoo seu custo, ou mesmo os serviços prestados em retorno aos recursos arrecadados coletiva-mente. A relação entre os moradores da favela e a Associação, nesse caso, assume forte ana-logia com o modo como os contribuintes se relacionam com o Estado-Fisco. Com relaçãoa esse ponto, chama atenção a maneira como o representante da Associação justifica a co-brança da “taxa” de transferência do imóvel. O argumento aparenta conter certa ambigui-dade, podendo tanto dar a entender que, mediante tal pagamento, a Associação se encar-regará de promover a regularização do imóvel junto à Prefeitura, como que, diversamente,constitui condição necessária a uma futura regularização a ser feita pela Prefeitura, ou ain-da, que cumprido o procedimento da Associação, a propriedade estará efetivamente regu-larizada. Em qualquer dos casos, no entanto, se abre mão de justificar a cobrança em fun-ção não somente dos serviços como do reconhecimento coletivo, que somente a validaçãoda compra junto à Associação pode oferecer. Bem ou mal, a Associação tem a oferecer aosmoradores da favela um grau de segurança da posse que o próprio Estado é incapaz de ofe-recer. Queira ou não, a Associação detém um poder e uma legitimidade dentro da favela,que somente é contrastado pelo poder dos grupos armados nela existentes, e os seus regis-tros e seu ativo envolvimento certamente serão indispensáveis aos trabalhos de regulariza-ção realizados pelo Poder Público. Tais fatores, em tese suficientes para justificar a cobran-ça, não são acionados no exemplo acima reproduzido, o que constitui elemento importantena reconstrução da maneira como moradores e lideranças da favela representam a institui-ção Associação de Moradores e seu papel no seio dessa coletividade.

O fato de alguns poucos moradores, segundo percebemos na pesquisa realizada atéaqui, não fazerem a venda do imóvel perante a Associação mostra como pode haver infor-malidade mesmo no interior de um sistema informal. Seria o que, grosso modo, proviso-riamente, e à falta de categorias mais consistentes e satisfatórias, podemos chamar de in-formalidade dentro da informalidade. No caso estudado, salvo poucas exceções, toda amassa de transações envolvendo imóveis se desenrola sem que se cogite submetê-las aosprocedimentos de escritura e registro criados pelo Estado, até porque esta última seria im-possível na ausência de regularização fundiária. De fato, vigora o processo de chancela, re-conhecimento, validação ou legitimação perante a Associação de Moradores, cuja interme-

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diação não pode deixar de ser vista como a formalidade instituída pelos costumes estabe-lecidos naquela parcela da sociedade, válida e exigível específica e unicamente para os imó-veis situados em sua “jurisdição”. Ora, nos depoimentos acima reproduzidos, observamosque mesmo esta formalidade, de origem interna à favela, é evitada, driblada ou minimiza-da por alguns agentes que operam nesse universo e que continuam a agir em busca de for-mas livres de quaisquer intermediações, mais simples e menos onerosas, a fim de realizaros negócios de seu interesse. Trata-se de formalidade não estabelecida pelo Estado, mas simpelos usos e costumes daquele próprio microcosmo, porém, mesmo estes, quando neces-sários, são burlados pelos que neles atuam. Assim, a informalidade dentro da informalida-de constituiria um processo de natureza socioeconômica por meio do qual os agentes de-senvolveriam sucessivos meios de se furtarem aos controles burocráticos e mecanismos deformalização estabelecidos, mesmo aqueles supostamente mais simples, mais próximos emais legítimos. Ela consistiria, assim, em uma eterna capacidade de se constituírem proce-dimentos oficiosos, subterrâneos, paralelos e ocultos aos mecanismos institucionalizadospara controlar a vida social, mesmo que estes nada tenham a ver com o Estado. Ou seja, ainformalidade não se reduz estritamente à fuga dos controles e formalidades de origem es-tatal, não se constitui em um processo relacionado à presença e ação da burocracia estatal,e parece ser relativamente indiferente à matriz dessas formalidades.

Também merece atenção outra nuance presente no relato da discussão entre Asso-ciação e um morador em torno do quantum da taxa de transferência do imóvel. De umlado, a Associação teria aceitado, de imediato e sem contestação, a barganha em torno dopreço a ser cobrado por sua intermediação, assumindo tacitamente que se tratava de umvalor “barganhável”, não sujeito a critérios estritamente objetivos. De outro, a posiçãoconciliadora do marido da entrevistada, que “põe panos quentes” no conflito de interes-ses com a Associação, assumindo que o seu recrudescimento seria o mal maior a ser evi-tado, aceitando pagar uma quantia que, mesmo parecendo excessiva, de imediato coloca-ria um fim ao caso. Os dois lados mostram-se dispostos a fazer concessões, até certolimite, revelando um modo de administração do conflito que se, de um lado, não cedeinteiramente à vontade da outra parte, de outro, não trata seus próprios interesses comodireitos irrenunciáveis e indisponíveis. Teríamos, talvez, uma postura com certo grau deflexibilidade e de conformismo, que possivelmente se baseia na percepção realista da vir-tual inviabilidade de exigência estrita do que talvez constituíssem seus direitos, até por-que estes não seriam nítidos o suficiente para conferir força e poder de convencimento àsua arguição. O que dá à Associação o direito de cobrar aquele valor? O que dá ao mora-dor o direito de contestá-lo se ele seria cobrado de todos os que estão na mesma situação?Na medida em que a resposta a essas questões não emerge com clareza, a esfera do direi-to fica embaçada, tanto que nenhuma das partes verbaliza algo nesse sentido, sendo fatal-mente remetidas ao plano da negociação, cujo desfecho seria bastante incerto e que po-deria mesmo gerar tratamentos diferenciados a situações assemelhadas. Essa possibilidade,por sua vez, pode comprometer a legitimidade dos procedimentos geridos pela Associa-ção perante o conjunto dos moradores.

A INSEGURANÇA DO COMPRADOR EM SEUS DIREITOS

As entrevistas realizadas revelaram, ainda, a ocorrência de um incidente consistentena desistência por parte do vendedor, de maneira repentina e imotivada, de uma venda jáconcluída. Tal caso foi narrado da seguinte forma pela depoente:

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Passei dois anos numa casa; depois passei para outra que a gente pretendia comprar, até pa-

guei a entrada e depois o moço não quis, quis desfazer o negócio. Ele falou que não queriamais vender, nós não podíamos ficar lá. Aí eu passei para a minha atual. Ele ficou insistindopara a gente comprar, que a casa era boa... Meu marido falou que não ia ter dinheiro parapagar na hora e ele dizia que esperava ele ir pagando aos poucos, dava uma entrada e podiair morar na casa. Meu marido deu R$ 2 mil a ele, a casa era R$ 6 mil, para ficar pagando orestante aos poucos. Quando foi em dezembro, meu marido ia pagar mais R$ 1 mil a ele com

o 13º, aí ele falou que não queria mais. A gente só tinha falado de boca, ninguém assinoupapel nem nada, aí pronto, o gato comeu... Aí a parte que a gente pagou ele devolveu, e agente ficou pagando aluguel.

Pergunto: “Por que vocês acham que ele desistiu?”Não sei. Depois a irmã dele ficou com a casa, não sei se foi porque a irmã pediu a ele a ca-sa; ela andava comprando casa. Na realidade, ele só falou que não queria. Daí a gente ficou

morando e, dali a uns seis meses, ele falou que queria a casa e que me dava 15 dias para de-socupar. Eu falei que só saía quando arrumasse uma outra casa, que não tinha 15 dias, nãotinha um mês, não tinha nada, o meu aluguel está em dia, o meu mês está pago e você nãotem o direito de fazer isso. Meu marido, que não gosta de arrumar confusão com ninguém,chegou a dizer “deixa”, e eu disse: “deixa nada, o senhor nem volte daqui a 15 dias; quandoeu desocupar a casa eu levo a chave para o senhor”. E ele não voltou. Eu fiquei igual a umamaluca procurando casa. Conheci todos os becos da favela. Uma amiga minha que me faloudessa casa onde estou morando agora. Ficamos três anos e alguns meses pagando aluguel e

depois que fomos comprar.Pergunto: “Nessa tentativa de compra, não chegaram a pensar em fazer um contrato escrito?”Não, porque ele já era conhecido do meu marido há muitos anos, desde 1993, e meu mari-

do confiou, achou que não ia acontecer nada. Ele devolveu o dinheiro, mas ficamos muito

chateados com ele. Na hora ficamos muito chateados, mas depois passou.

A partir da perspectiva da legislação em vigor, o casal comprador da casa não po-deria ser compelido a desfazer o negócio, salvo se essa possibilidade tivesse sido expres-samente acordada antes, uma vez que o comprador já havia iniciado o pagamento e, in-clusive, recebido o imóvel objeto da compra, ou seja, tratava-se de ato jurídico perfeito,encontrando-se o contrato em franca etapa de cumprimento. O fato de ter sido ajusta-do verbalmente em nada o prejudica, ao menos na linha de princípio, uma vez que a leiadmite, nesse e em vários outros casos, o contrato verbal.9 Ainda dessa perspectiva, serialícito que, além da devolução do que pagou, monetariamente corrigido, exigisse do ven-dedor uma indenização a título de perdas e danos, já que tratava-se de uma ruptura semmotivo que a lei considere justo, bem como tal ruptura trouxe ao comprador o ônus dearcar com aluguéis, procurar outro imóvel e fazer sua mudança, o que não ocorreria seo negócio fosse mantido. Ao invés disso, os compradores, bem ou mal, aceitaram o des-fazimento exigido pelo vendedor de maneira arbitrária. Não lhes é vedado por lei assimagirem, uma vez que qualquer contrato bilateral entre particulares pode ser revogado pormútuo acordo dos contratantes, pelo que o ato de revogação, nos termos em que foicombinado, também pode ser classificado, à luz da lei civil, como um ato válido. No en-tanto, o aspecto relevante a ser aqui ressaltado é o de que, à semelhança do conflito emtorno da “taxa” cobrada pela Associação – por sinal, nos dois casos trata-se do mesmocasal –, a dimensão jurídica do caso – isto é, os direitos que porventura pudessem ter,naquela situação – não constitui o aspecto determinante das decisões tomadas pelos in-

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9 Por exemplo, no caso docontrato de locação, quer debens móveis quer de imó-veis, prevalece a mesma re-gra.

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teressados, pouco ou nada interferindo na administração que fizeram do conflito de in-teresses. Em suma, trata-se de uma dimensão praticamente alheia à maneira como as par-tes conduzem o caso.

O fato de se tratar de um contrato verbal, a julgar pelas palavras expressas da entre-vistada, levou as partes a crerem que o mesmo poderia ser desfeito a qualquer momento.Porém, esta não nos parece ser a única variável que determinou essa consideração. Levan-do-se em conta vários elementos dispersos no conjunto dos depoimentos colhidos, pro-vavelmente também contribuiu para essa consideração o fato de se tratar de uma comprade imóvel dentro da favela, onde, segundo vários dentre os entrevistados, não vigoram asleis que valem fora dela. Tal situação se veria, ainda, agravada pelo fato de a compra tersido feita a um conhecido de longa data dos compradores, o que faz com que as relaçõespessoais entre as partes se imiscuam na relação de compra e venda, pondo por terra umadas máximas que exprimem a racionalidade da economia de mercado, segundo a qual“amigos, amigos; negócios, à parte”. Se estiver correta a consideração dos entrevistadosque aponta para a clivagem de regras do asfalto, ou da cidade, e da favela, o comporta-mento desse casal, diante de idêntica situação, provavelmente seria diverso, caso tivessematravessado a avenida que passa em frente à favela em que residem, a fim de adquirir imó-vel nos conjuntos habitacionais existentes no entorno dela. Trata-se de uma instigante hi-pótese, ainda a ser devidamente tratada na pesquisa que ora desenvolvemos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente trabalho, levantamos alguns problemas e situações relativas ao processode compra e venda de imóveis na favela que elegemos como caso de referência de nossapesquisa. De um lado, trata-se de um fato social que merece ser mais bem conhecido emfunção da crescente relevância que tem assumido, uma vez que várias pesquisas e traba-lhos jornalísticos recentes têm apontado para a acentuada mercantilização do acesso a ter-ra nas favelas. De outro lado, trata-se de um fato que se articula com nossa proposta depesquisa na medida em que constitui um cenário privilegiado no qual pode ser captada aexperiência jurídica em curso nas favelas. Desse cenário podem ser recolhidos elementosque contribuam para o esclarecimento das questões que movem nossa pesquisa, isto é, sa-ber qual conjunto de normas de fato vigora nesses territórios e, a partir disso, avaliar quaistransformações estariam acontecendo, ou não, no direito vivo nas favelas, especialmenteno tocante às suas eventuais clivagens para com o direito da cidade.

O cenário que nos serviu de base no presente trabalho possui a peculiaridade deconstituir uma relação que, à luz da legislação em vigor, poderia ser classificada como umarelação de direito privado, não envolvendo a figura do Estado, mas referindo-se à coorde-nação de interesses particulares. Ela se difere do cenário oferecido, por exemplo, pelo cha-mado direito de construir, em que se coloca a questão das limitações que o Estado impõeao exercício da atividade edificadora pelos particulares. No entanto, acreditamos que istoem nada retira a sua relevância, uma vez que uma parcela decisiva das questões que levan-tamos é jogada em relações, ou situações, de natureza privada. A atuação do Estado, emmuitas circunstâncias, representa uma tentativa de minimizar e corrigir os efeitos negati-vos da negação de direitos que se realiza na esfera privada.

Os dados revelados por nossa pesquisa empírica parecem reforçar a tese de que asordens jurídicas estatal e favelar se encontram em um contínuo e conflituoso processo de

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diálogo, havendo diversas formas em que uma é condicionada pela outra, ou em queuma se constitui recorrendo à incorporação de elementos originários da outra. Vemosnesse processo um capítulo dos conflitos sociais mais amplos, próprios de sociedades ca-pitalistas periféricas como a brasileira. Tratar dessas ordens jurídicas constitui nada maisdo que um ângulo para observar como se constitui a ordem social como um todo. Nãoestamos, pois, diante de duas ordens estanques, isoladas entre si, o que representaria umaperspectiva dualista sobre o objeto estudado, perspectiva da qual procuramos nos distan-ciar, em que pese, ao que nos parece, ela ter sido adotada em determinados momentospor alguns dos autores citados no presente trabalho – a exemplo de O’Donnell (1990) eSantos (1977; 1980). Pode-se afirmar, portanto, que estamos diante de uma juridifica-ção híbrida, isto é, trata-se não de uma outra ordem, inteiramente diversa e apartada daoficial – ou ainda, de uma ordem necessariamente em déficit perante a oficial – mas deuma ordem jurídica construída no embate, no diálogo, na contradição com aquela pos-ta pelo Estado.

O fato de recusarmos tal dualismo metodológico não deve ser confundido com umasuposta negativa do reconhecimento da situação de subordinação à qual as coletividadesfavelizadas se encontram submetidas, posto que a comunicação e os fluxos existentes en-tre ambas essas ordens é profundamente desigual. Talvez signifique, diversamente, o aban-dono da noção de exclusão como ferramenta explicativa dos processos sob análise – o quedeliberadamente ocorreu no presente trabalho –, uma vez que nossa interpretação cami-nha na perspectiva da integração subordinada, que nos parece mais acertada e fértil ao tra-balho analítico. A opção que fizemos apresentaria a vantagem de levar em conta a série deequipamentos e serviços públicos que chegaram à favela, além da própria institucionalida-de que analisamos nesse trabalho, que culmina com o advento das Políticas de Regulari-zação. Esse conjunto de fatores seria determinante de dinâmicas novas e mais complexasdo que as tradicionais noções de exclusão e de segregação podem comportar. Também sig-nifica que recusamos uma perspectiva moral na abordagem das duas ordens, que promo-ve a associação intrínseca de virtudes positivas a uma delas e negativas a outra, ou vice-ver-sa. O fato de falarmos de uma ordem jurídica interna à favela não significa que ela sejanecessariamente melhor ou pior, mais ou menos democrática do que a ordem legal oficial.

O dualismo metodológico que ora criticamos parece comparecer nos trabalhos aca-dêmicos e jornalísticos que tratam do problema da não-vigência de fato do Estado Legal,e/ou das ambiguidades do funcionamento do sistema legal como um problema restrito àsfavelas e às outras regiões definidas costumeiramente como áreas cinzentas. Na verdade,este é um problema que diz respeito ao conjunto da cidade e ao Direito Urbanístico demodo geral, e que tem sido historicamente marcado pela crônica falta de efetividade. Pre-ferimos afirmar que o sistema legal, de maneira geral, apresenta graduações em sua efeti-vidade ao longo do tempo e do espaço social como um todo, e que, em função de diver-sas circunstâncias, não se reduzem de maneira alguma aos (mal) denominados “territóriosde exceção”.

Nesse sentido, uma das hipóteses com as quais trabalhamos é a de que a grande di-ferença que marca a ordem jurídica nos distintos espaços sociais seja de natureza ideoló-gica, e não empírica. Isto é, seria bastante difundida socialmente a imagem das favelas co-mo regiões essencialmente anômicas, isto é, espaços “sem lei nem ordem”. Essa visão seriacompartilhada em certa medida pelos próprios favelados, conforme demonstram as en-trevistas aludidas neste trabalho. Em que pese os próprios moradores das favelas fazeremdistinções rígidas entre as normas que valem dentro e fora da favela, o fato é que o espa-

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ço da favela parece ser amplamente regulado – inclusive se observa a presença relevantede diversas instituições oficiais, e em alguns casos, de maneira surpreendente. É o que ve-mos no caso exemplar da absorção, pela Associação de Moradores, do princípio da con-tinuidade registrária, que a nosso ver constituiria a “ponta do iceberg” de um processo desocialização das instituições oficiais, que discretamente vai introduzindo-as no senso co-mum e nos procedimentos mais comezinhos. Por mais que algumas dinâmicas sociais se-jam efetivamente duais, tal aspecto não pode ser transportado de forma acrítica para oplano da teoria social, de forma a determinar a aceitação do dualismo metodológico, oque comprometeria os resultados analíticos.

O que deve ser objeto de atenção do pesquisador é, em primeiro lugar, o fato de queas soluções de força, por vezes arbitrárias e ao arrepio dos direitos que o sistema legal ofi-cialmente reconhece, constituem um componente presente e relevante nas relações sociaisestudadas em nosso caso. Isto é, as relações jurídicas seriam marcadas por três determina-ções distintas: a) os usos e costumes locais, estabelecidos em processos de negociação; b) as apropriações do sistema legal estatal; c) as imposições e/ou soluções arbitrárias na so-lução de litígios, que exibem o aspecto de violência latente, presente nas relações sociaisde maneira geral. Uma das questões para pesquisa futura, que se coloca a partir do adven-to dos programas de regularização em favelas como aquela que adotamos como caso dereferência, consistirá em saber que impacto esses programas estão produzindo sobre as trêsdeterminantes que acabamos de citar.

Dentre os elementos acima enunciados, aquele relativo ao Direito Consuetudinárioé merecedor de reflexões mais específicas por parte da pesquisa jurídica que, desde a he-gemonia do Direito Legislado constituída a partir do movimento das codificações, pou-co tem se dedicado a ele – crítica que comparece já na obra original de Eugen Ehrlich,datada da primeira década do século 20. Merece destaque o fato de que os líderes das As-sociações de Moradores buscam no Direito dos Costumes o fundamento de legitimidadee de juridicidade da intermediação das vendas de imóveis pela Associação, e da respecti-va cobrança de uma “taxa” em favor dela, a ser custeada por uma das partes da venda. Es-te argumento, de maneira geral, apresenta alguns riscos, tais como: 1) classificar como Di-reito e, logo, naturalizar e trivializar, práticas que são ilegais; 2) diminuir os direitos queas pessoas possuem à luz da legislação (não são apenas costumes; não precisamos recorrera essa categoria, sob pena de recairmos na perspectiva do déficit de juridicidade, já critica-da); 3) não dar conta do híbrido da situação em que se é titular de direitos apesar da ile-galidade que possa existir na apropriação da terra, na realização de edificações, no não-pa-gamento de impostos e taxas, etc. Essa constitui uma das questões a serem elucidadas napesquisa futura, qual seja, se a institucionalidade e os rituais encontrados na prática dosmoradores de favelas podem ser classificados no âmbito do Direito Consuetudinário, bemcomo quais as implicações teóricas e práticas de as Associações de Moradores já recorre-rem a tal classificação.

Em segundo lugar, deve ser ressaltada a importância da análise e interpretação, à luzdo Direito oficial vigente, das relações jurídicas travadas no âmbito das favelas. Os con-tratos de compra e venda de imóveis nas favelas, mesmo que não transfiram propriedade,entendida enquanto Direito Real (no sentido técnico-jurídico da expressão), geram, à luzda própria ordem estabelecida, direitos de natureza Obrigacional (decorrentes quer docontrato, quer da realização de acessões e benfeitorias) e de natureza Possessória, tal comodemonstrado no trabalho. Assim, os contratantes são sujeitos de diversos direitos reco-nhecidos pela ordem jurídica oficial, alguns deles em processo de amplo fortalecimento

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na legislação, na teoria e na jurisprudência, havendo argumentos jurídicos para sustentá-los e veiculá-los em juízo. Em suma, dos negócios jurídicos realizados nas favelas decor-rem diversas implicações jurídicas da ordem do Direito oficial, não constituindo um te-ma que deva ficar relegado a um ambíguo plano pára ou extra-estatal. O problemaconcreto reside no não-reconhecimento claro disso por parte do Judiciário e mesmo pelaliteratura jurídica, o que constitui elemento que reforça os obstáculos objetivos existentesao exercício pleno dos direitos por parte dos moradores de favelas, especialmente a aludi-da visão das favelas como regiões anômicas.

Não obstante esses obstáculos, o exercício de reconhecimento das implicações jurí-dicas atuais dos negócios ora em curso nas favelas constitui, em nosso ponto de vista, umexercício estratégico, quer do ângulo teórico-jurídico, quer do ângulo das suas implica-ções sociopolíticas. Do ângulo teórico, tal exercício pode esclarecer as possibilidades deefetivação dos direitos, o que nos parece constituir um indicador indispensável para aqui-latar a qualidade e/ou o grau da integração das favelas à cidade. Do ângulo sociopolítico,ele muito pode contribuir para a afirmação da cidadania e da condição de sujeito de di-reito por parte das coletividades objeto de segregação socioespacial. Julgamos que, até opresente momento, tal exercício foi pouco realizado (aquém do que seria necessário), sen-do esse mais um dos efeitos da barreira ideológica de natureza dualista à qual nos referi-mos anteriormente – que atira de forma acrítica a quase totalidade das relações e negó-cios jurídicos realizados entre pobres no terreno da extralegalidade –, reproduzindo aquiloque Boaventura Santos (1980) denominou “ilegalidade existencial”. Esta seria, provavel-mente, uma das grandes barreiras para que se possa configurar a almejada integração, queconfiguraria a vigência do Estado de Direito no espaço das favelas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Alex Ferreira Magalhãesé advogado, especialistaem Sociologia Urbana, mes-tre em Direito da Cidade edoutorando em Planejamen-to Urbano e Regional no IP-PUR/UFRJ.E-mai l : [email protected]

Artigo recebido em junho de2009 e aprovado para publi-cação em agosto de 2009.

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A B S T R A C T This paper consists of a discussion on the particularities of State’sattitude towards the slums in Rio de Janeiro, focused on the case of the so called LegislativeState, which is materialized into the creation of abstract and general rules and also throughdepartments and procedures implemented in order to make the legislation effective. At astarting point, analysis of some interviews is provided. These interviews were developed in2008 with dwellers of a slum which has been receiving public works of urbanization and landregularization in order to provide its urban integration. These interviews aimed to realizewhich rules have actually been working within the slum area, especially the rules related toneighborhood, the use of the land and building matters. Likewise, this research aimed atdiscovering something about the rules sources, i.e., if they would derive from the StateLegislation, or from dwellers’ creation (a “community based law”), or from any other process,as a gathering of both of them. Grounded in such information set, it is desired to develop atheoretical discussion on the nature of these rules, on its social meanings, especially regarded toits space regulation qualities, as well as on social and spatial effects of land regularizationpolitics.

K E Y W O R D S Slums; slums’ law; land regularization; legislative state; legalpluralism; community based law.

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EFEITOS LOCAIS DE POLÍTICASPÚBLICAS FEDERAIS

OBSERVAÇÕES A PARTIR DA LEI DE INFORMÁTICA

NO DESENVOLVIMENTO DO SETOR DE SOFTWARE

DE CAMPINA GRANDE, PB1

F E R N A N D O R A M A L H OA N A C R I S T I N A F E R N A N D E S

R E S U M O Fundamentado na observação de estudo de caso da dinâmica interativaentre agentes do proto-sistema local de inovação em software de Campina Grande, Paraíba,estimulada pela Lei de Informática, o presente artigo objetiva chamar atenção para a impor-tância da interferência de políticas públicas nacionais sobre o espaço local. Como pano de fun-do, está a noção de aprendizado por interação, apontada como importante aspecto do proces-so de inovação e de estratégias recentes de desenvolvimento regional. Neste contexto, CampinaGrande apresentaria elementos objetivos para implementar estratégia de desenvolvimento ba-seada em inovação, guardadas as peculiaridades do retardatário desenvolvimento brasileiro.Observam-se ali instituições de produção de conhecimento e suporte à inovação em softwareque têm estimulado a criação de um aglomerado de pequenas e micro empresas do setor. Emfunção da existência na cidade de reconhecidas competências de pesquisa, particularmente naUFCG, estas vêm recebendo aportes expressivos de grandes empresas estimuladas pela Lei deInformática, cujo objetivo é ampliar a capacidade inovativa da indústria nacional de bens deinformática, tanto aquela realizada dentro das firmas como em parceria entre estas e institui-ções de pesquisa. A lei prevê também que parte dos investimentos em P&D seja aplicada nasregiões Norte, Nordeste e Centro-oeste. Embora contemple, assim, objetivos de redução de dis-paridades regionais e o crescimento do software nacional, o argumento aqui defendido é quea Lei de Informática não propicia os efeitos esperados de adensamento da estrutura produtivanacional, especialmente em regiões menos desenvolvidas. O estudo das interações de P&D ob-servadas em Campina Grande mostra que o atual formato da Lei pode propiciar drenagem derecursos locais e barreiras às interações entre competências de pesquisa e estrutura produtiva lo-cais. O estudo sugere que o marco regulatório seja aperfeiçoado, considerando-se a importân-cia da inovação tanto para o desenvolvimento do setor, caracterizado por grande dinamismoinovativo, como para o desenvolvimento regional.

P A L A V R A S - C H A V E Desenvolvimento regional e inovação; Lei de Infor-mática; setor de software; redes sociais para P&D; efeitos locais de política pública nacional;Campina Grande, PB.

INTRODUÇÃO

Territórios são construídos socialmente como sistemas cujos elementos relacionam-se de forma específica entre si e com elementos externos, em busca do alcance de interes-ses variados (objeto, portanto, de diversos conflitos), o que pode desencadear ou bloque-

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1 Este artigo resulta da pes-quisa “Políticas regionais deinovação: contribuições apartir de dois sistemas deinovação periféricos”, quecontou com o apoio do CNPq, ao qual registramosnossos agradecimentos. Es-ta versão consta dos Anaisdo XIII ENANPUR, realizadoem Florianópolis, de 25 a29 de maio de 2009.

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ar processos de desenvolvimento. Como o processo de inovação está no cerne da acumu-lação capitalista, o conhecimento torna-se fator crescentemente decisivo para o desenvol-vimento dos territórios. Por consequência, dispor de mecanismos eficazes de produção,transferência e assimilação de conhecimento é um importante fator que diferencia os ter-ritórios mais inovadores dos menos inovadores, interferindo sobre a dinâmica econômicae a qualidade de vida de seus habitantes.

Fundamentado na observação de um estudo de caso da dinâmica interativa dosagentes do proto-sistema local de inovação em software de Campina Grande, localizadaem pleno sertão paraibano, o presente artigo objetiva chamar atenção para a importânciada interferência de políticas públicas de escala nacional sobre o território local e regional,a partir da observação das redes de conhecimento entre empresas e instituições de ensinoe pesquisa locais, cuja construção foi estimulada pela Lei de Informática. Como pano defundo, está a noção de aprendizado por interação (learning by interacting), a qual vem sen-do crescentemente apontada como importante aspecto do processo de inovação, desde oreconhecimento da distinção entre conhecimento tácito e conhecimento codificado(Lundvall e Johnson, 1994; Lundvall, 2005; Malerba, 2005; Morgan, 2004; Cooke,2004). Aprender por interação é parte relevante das estratégias de desenvolvimento re-gional por meio de inovação.

Guardadas as peculiaridades do retardatário desenvolvimento brasileiro, CampinaGrande pode ser considerada um desses territórios em que se verifica a presença de ele-mentos objetivos para o desenvolvimento de estratégia de desenvolvimento baseada eminovação. No nordeste brasileiro, a aglomeração produtiva no setor de software, além da-quelas das metrópoles regionais de Salvador, Recife e Fortaleza, se observa apenas nestacidade paraibana. Diante de um processo cumulativo que ao longo do tempo deu origema diversas instituições de produção de conhecimento e suporte à inovação em software, acidade se tornou uma localização atraente para pequenas e micro empresas do setor, mui-tas das quais criadas por egressos dos cursos de engenharia elétrica e de sistemas de com-putação da Universidade Federal de Campina Grande.

Mais recentemente, as estruturas de pesquisa e desenvolvimento da UFCG passarama receber aportes expressivos de grandes empresas de capital externo estimuladas pela Leide Informática. Esta compreende um arcabouço legal composto de leis, decretos e regu-lamentações que tem por objetivo ampliar a capacidade produtiva da indústria de bens deinformática no país por meio de atividades de P&D, tanto aquelas realizadas dentro dasfirmas como as desenvolvidas em parceria entre estas e instituições de pesquisa. Além dis-so, se prevê que parte dos investimentos em P&D no país seja aplicada obrigatoriamentenas regiões menos desenvolvidas: Norte, Nordeste e Centro-oeste. Embora contemple, as-sim, objetivos de redução de disparidades regionais e o crescimento do setor no país, o ar-gumento aqui defendido é de que a Lei de Informática não propicia os efeitos esperadosno que concerne ao adensamento da estrutura produtiva, especialmente em regiões me-nos desenvolvidas do país. Ao contrário, no caso destas regiões, os efeitos podem até serno sentido de produzir drenagem de recursos locais, além de dificultar o desenvolvimen-to de interações entre a competência de pesquisa e a estrutura produtiva locais.

O argumento será desenvolvido a partir de um breve histórico sobre o setor de in-formática e o software dentro dele, ao qual se seguirão uma apresentação da Lei de Infor-mática e a discussão do estudo de caso. Ao final, uma análise dos efeitos da Lei sobre osetor de software campinense será desenvolvida com a expectativa de que possa contribu-ir para o aperfeiçoamento do marco regulatório, tendo em vista a importância da inova-

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ção tanto para o desenvolvimento do setor, caracterizado por um grande dinamismo ino-vativo, como para o desenvolvimento regional.

O SOFTWARE E A EVOLUÇÃO DO SETOR NO BRASIL

Como se sabe, a evolução da indústria de software é algo recente no mundo, e nãoapenas no Brasil. Muitas transformações ocorreram no tratamento do software desde osurgimento do primeiro computador eletrônico, em 1946, nos Estados Unidos, o ENIAC,até o advento das tecnologias de comunicação, capazes de aumentar exponencialmente avelocidade do processamento e difusão de informação, conhecimento e de inovações. Aevolução acelerada do mercado mundial de software, em 2003, levou o governo brasilei-ro a incluí-lo na Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE) comoum dos quatro setores estratégicos para o país, junto a fármacos e medicamentos, semi-condutores e bens de capital.

Este dinamismo pode ser facilmente verificado. Em 2005, o mercado mundial detecnologia da informação (TI) já teria ultrapassado a marca de um trilhão de dólares, se-gundo estudo encomendado ao International Data Corporation (IDC) pela AssociaçãoBrasileira das Empresas de Software (ABES). Nele, a IDC considera como TI os setores dehardware, software e serviços, responsáveis por fazer girar 38,7, 20,5 e 40,8% desse to-tal, respectivamente. O mercado mundial de software junto com o de serviços teriam as-sim ultrapassado já naquele ano os 800 bilhões de dólares, bem antes de 2008, segundoestimativas anteriores. Os Estados Unidos respondiam em 2005 pela maior fatia do mer-cado de TI, com US$ 416 bilhões, seguidos pelo Japão, que respondia por US$ 108 bi-lhões, pelo Reino Unido, China e Espanha, responsáveis por US$ 73 bilhões, US$ 30 bi-lhões e US$ 17 bilhões, respectivamente. Em 2007, o mercado dos EUA cresceu para US$ 466 bilhões, o do Japão caiu um pouco para US$ 107 bilhões, enquanto os três de-mais países juntos saltaram para US$ 167,9 bilhões. Nesse cenário, segundo a ABES, oBrasil, que teria movimentado US$ 11,9 bilhões, em 2005, ocupando a 16ª colocação,saltou para a 12ª em 2007, com um mercado de aproximadamente US$ 11,12 bilhões,equivalentes a 0,86% do PIB brasileiro deste ano. A Associação estima que o crescimen-to médio anual do mercado doméstico brasileiro seja superior a 10% até 2010, em quepese a atual crise financeira.

Apesar deste dinamismo, a fragilidade do setor brasileiro está expressa em sua baixainserção internacional, particularmente quando comparado aos da Índia e da China. Em2001, a China possuía um mercado doméstico de software de dimensões semelhantes aobrasileiro – algo em torno de US$ 7,9 bilhões, e US$ 7,7 bilhões, respectivamente. Já a Ín-dia apresentava um mercado interno ainda pequeno diante do seu potencial, que chega-va a apenas US$ 2 bilhões. No entanto, com relação ao mercado externo, em 2000, a Ín-dia já exportava US$ 4 bilhões em software, enquanto a China não ultrapassava US$ 500milhões, e o Brasil apenas US$ 100 milhões (SOFTEX, 2002).

A importância dada ao software bem como o crescimento acelerado de seu mercadose devem à sua natureza transversal. Todas as atividades econômicas necessariamente re-querem a utilização de algum tipo de software, à medida que se modernizam e passam aautomatizar rotinas através de equipamentos eletrônicos, ou precisam realizar análises eprocessamento de dados mais complexos. O desenvolvimento deste setor tem sido vital

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para o desenvolvimento dos outros setores da economia, e foi caracterizado por vários au-tores como a fonte de uma nova grande onda ou paradigma tecnológico, com extraordi-nária capacidade de difusão por todo o sistema produtivo e através do território (Castells,1989 e 1996; Freeman e Soete, 1994, entre outros).

O software inicialmente não era compreendido de forma isolada do hardware. Essadissociação só começa a se dar quando o matemático Von Neumann projeta pela primeiravez um equipamento que prevê o armazenamento de programas em sua memória e que po-dem ser modificados para a execução de novas funções, o EDIVAC (Freire, 2002). Com aprodução de “chips” em larga escala na década de 1960, os computadores começaram a serproduzidos a custos mais baixos e com mais capacidade de processamento, e se difundiramde forma bastante rápida, aumentando enormemente a demanda por software. Durante adécada de 1980, evoluíram também as estruturas de informática em rede, elevando aindamais a importância do software, o que requereu evolução constante do setor de engenhariade software, aumentando cada vez mais a eficiência na produção de sistemas computacio-nais e na geração de código. Surgem então linguagens de programação orientadas a objetoe ferramentas CASE (Computer-Aided Software Engineering), as quais permitem a auto-mação de diversas tarefas anteriormente custosas para os desenvolvedores (Duarte, 2003).

Os países centrais se mostraram eficientes em produzir e difundir tais inovações,consolidando suas vantagens tecnológicas sobre o resto do mundo. Contudo, outros paí-ses montaram estratégias eficientes de transferência de conhecimento, tirando proveito daindústria emergente, instalando sólidos parques tecnológicos que tanto complementamcomo concorrem com as grandes potências. A indústria de software brasileira, em contra-partida, evoluiu de forma bastante distinta das economias centrais. Os Estados Unidos,por ser o berço por excelência dessa indústria, têm no software pacote o seu maior trun-fo. Este tipo de produto, apesar de ser um investimento de risco, é produzido em largaescala e tem custo marginal virtualmente zero para novas vendas, o que traz altos retor-nos financeiros. Já no Brasil, com a abertura para o mercado internacional e a concor-rência estrangeira a partir da década de 1990, as empresas nacionais acabaram por se es-pecializar mais no mercado de software customizável e de serviços – pois tinham naverticalidade dos mercados uma característica que as protegiam da concorrência das gran-des multinacionais. Esse fato se deve fundamentalmente a uma demanda interna consi-deravelmente grande dos diversos setores da indústria nacional, ávida por se modernizar,mas caracterizados por mercados de nicho bastante específicos que não atraíam as gran-des empresas estrangeiras interessadas em ganhos de escala.

EVOLUÇÃO RECENTE DO SETOR DE SOFTWARE BRASILEIRO

Atualmente, a indústria de software do Brasil tem apontado novas tendências dentroda prestação de serviços em informática. A compreensão dessa evolução requer antes umadefinição do termo software. Todo software se materializa em parte em um programa decomputador, pois organiza instruções que descrevem precisamente operações a serem exe-cutadas. Porém, o conceito de software vai além do conceito de programa, pois, segundoJorge Fernandes (apud Netto, 2004), é “uma entidade descritiva, complexamente hierar-quizada, cognitivo-linguística e histórica, concebida através de esforços geralmente cole-tivos durante um considerável período de tempo”. O software é também um produto quese expressa sob três formas: como um conjunto de instruções ou código-fonte, desenvol-vido e organizado a partir de qualquer linguagem computacional; como um aplicativo ou

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executável, que consiste no programa que o usuário tem interesse de operar; e como ma-terial de apoio, ou seja, tudo aquilo que possa facilitar o entendimento da obra (um pro-grama), como manuais de instrução ou diagramas de funcionamento e comportamentode programas.

A inovação em software, por sua vez, tem peculiaridades que requerem um maior en-tendimento da estrutura do setor e da natureza de seus produtos e serviços. Segundo Fricke Nunes (apud Freire, 2002, 19), o setor pode ser classificado segundo a forma de chega-da ao mercado e o tipo de mercado de destino. Segundo a forma, o software pode ser dotipo: pacote, padronizado e sem interação entre o cliente e o desenvolvedor; serviço (ou porencomenda), atende às necessidades específicas de cada cliente; embarcado, embutido emalgum equipamento automatizado. Já segundo o tipo de mercado de destino, pode ser:de mercado horizontal, conteúdo proveniente da área de informática; ou de mercado ver-tical, programas desenvolvidos para uma determinada atividade econômica.

Considerando essas caracterizações, optou-se por adotar aqui a classificação sugeri-da por Roselino (2006), que dividiu o setor de informática em quatro categorias segun-do o tipo de fonte de receita predominante das empresas: categoria 1 – serviços de infor-mática; categoria 2 – serviços em software de baixo valor agregado; categoria 3 – serviçosem software de alto valor agregado; e categoria 4 – desenvolvimento e comercialização desoftware-produto. Estas categorias foram cotejadas com as estabelecidas pela ClassificaçãoNacional das Atividades Econômicas (CNAE), com o objetivo de analisar a evolução dosetor no país como um todo, e no nordeste em particular, no período 2000-2005, e paratanto, foram utilizados dados da RAIS (Relação Anual de Informação Social), do Ministé-rio do Trabalho, agrupando-os às categorias 3 e 4, que se referem ao desenvolvimento desoftware propriamente.2

Analisando-se apenas os dados dos anos 2002, 2003 e 2005, relativos ao número deestabelecimentos ligados às atividades de prestação de serviço de baixo ou alto valor agre-gado em software ou desenvolvimento de software produto, verifica-se um aumento daparticipação dos serviços em software de mais alto valor agregado e software-pacote, emdetrimento dos serviços em software de baixo valor agregado. Isto se verifica em todas asregiões, porém, de forma mais acentuada na região Sudeste, a qual apresenta crescimen-to da participação das categorias 3 e 4 de 44,17% em 2002 para 54,08% em 2005 (verGráfico 1), o que significa mais que dobrar o número absoluto de empresas na região demaior densidade econômica do país.

Gráfico 1 – Proporção do número de estabelecimentos das categorias 2, 3 e 4 nos servi-ços em software de cada macrorregião brasileira

Fonte: Base de Dados RAIS / Ministério do Trabalho e Emprego, 2000-2005.

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2 Esse artifício foi necessá-rio, pois só a partir de 2002é que a CNAE começa a le-var em consideração a dife-rença entre as categorias 3e 4, através das classes7229-0 e 7221-4, ao con-trário dos anos anteriores,quando as agrupava na clas-se 7220-6 (Desenvolvimen-to de Programas de Informá-tica). Por isso, a análiserelativa à evolução do setorproceder-se-á a partir dascategorias 1 e 2 isolada-mente e das categorias 3 e4 de forma agregada (com-postas estas últimas pelasclasses 7229-0, 7221-4 e aextinta 7220-6).

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Percebe-se que é a categoria 3, relativa ao desenvolvimento de software sob encomen-da, a que mais responde por esse crescimento, pois como se verifica na região Sudeste, es-ta apresenta uma participação bastante expressiva, muito próxima àquela da categoria 2.Já a categoria 4 apresenta um número de empresas mais de quatro vezes e meia menor,comparativamente à categoria 3 (ver Gráfico 2). Os dados refletem, portanto, que o Bra-sil continua se especializando cada vez mais fortemente em nichos de mercado, emborauma grande quantidade de empresas já atue no país produzindo software-pacote.

O fato novo é que se percebe uma maior participação no número de empresas de in-formática voltadas a atividades de software de mais alto valor agregado, as quais desenvol-vem efetivamente novos softwares. Isso se verifica em contraposição à diminuição da par-ticipação do setor de serviços em software de baixo valor, tais como processamento dedados e distribuição online de conteúdo eletrônico, atividades que, apesar de requereremmão-de-obra qualificada, são de mais baixa complexidade quando comparadas aos softwa-res de alto valor, o que faz com que garantam menores retornos financeiros e menor pos-sibilidade de inserção internacional.

Gráfico 2 – Número de estabelecimentos das categorias 2, 3 e 4 nos serviços em softwarede cada macrorregião brasileira em 2005

Fonte: Base de Dados RAIS / Ministério do Trabalho e Emprego, 2005.

Outro fato importante (ver Gráfico 2) é a concentração espacial da indústria desoftware no país. Este fato suscita algumas questões em relação à natureza da atividade dedesenvolvimento de software, pois embora para se montar uma empresa de software o ca-pital inicial não tenha que ser tão grande como em outros setores – reduzindo as barrei-ras à entrada no mercado de software –, a natureza do mercado limita seu crescimento.Por exigir, relativamente, intensa interação entre cliente e fornecedor, em especial nosprincipais segmentos em que as empresas brasileiras se inserem, cujos mercados são emi-nentemente relacionais, as novas tecnologias de informação e comunicação não permitema completa superação da fricção espacial. Embora possibilitem a contração das distânciaspelo tempo (Harvey, 1992), aproximando clientes e fornecedores, as novas TICs não subs-tituem a proximidade geográfica entre clientes e fornecedores, principalmente no mo-mento da troca de conhecimento necessária para o desenvolvimento do produto. Sendoassim, se de um lado o mercado para os produtos eminentemente relacionais encontrabloqueios ao crescimento (Pinho, Fernandes e Côrtes, 2001), de outro são expressivas asforças que atuam no sentido de acentuar a concentração do setor no Sudeste.

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A LEI DE INFORMÁTICA

A história da Lei de Informática começa ainda no contexto do nacional-desenvolvi-mentismo, em meados da década de 1980, quando se adota no Brasil uma política desubstituição de importações para o fomento à indústria de bens e equipamentos de infor-mática, em vista da emergência do setor e da existência já de considerável demanda inter-na por tecnologias que promovessem a modernização do processo produtivo, especial-mente o da indústria nacional. Já em plena crise fiscal do Estado, a política estimulou amontagem de expressivo parque industrial de informática no país. A operacionalizaçãodessa estratégia, contudo, impediu que a indústria doméstica nascente contasse com a ex-posição à concorrência externa, mesmo monitorada, como fator crucial de crescimento.O isolamento subtraiu-lhe as competências necessárias para acompanhar as inovaçõesmundiais em andamento, justo em um setor especialmente dinâmico. A abertura da eco-nomia nos anos 1990 encontrou uma indústria completamente desprovida de capacida-de para enfrentar a concorrência externa, aplicando-lhe, assim, um profundo golpe. Mui-tas empresas não resistiram; movimentos de transferência de capital para empresasmultinacionais ou encerramento de atividades se sucederam, enquanto a política desmo-ronava. Mesmo assim, o país havia constituído durante a fase da substituição de impor-tações a base tecnológica industrial essencial para a ampliação da nascente indústria desoftware que se desenvolveria após 1990 (SOFTEX, 2002).

A política para o setor sofre, a partir disso, uma grande inflexão, mesmo sendo man-tido o objetivo da lei definido em 1984: promover a “capacitação nacional nas atividadesde informática, em proveito do desenvolvimento social, cultural, político, tecnológico eeconômico da sociedade brasileira” (Lei n° 7.232, Art. 2º). Prioriza-se a oferta de incenti-vos à instalação de empresas multinacionais no país, em paralelo à implementação de pro-gramas de fomento para a indústria brasileira. A antiga legislação de 1984, que regulava osetor e garantia uma considerável proteção à indústria nacional, chamada de Lei de Infor-mática, deu lugar a nova legislação, a Nova Lei de Informática. Esta compreende uma su-cessão de versões, desde a Lei nº 8.248/91, passando pelas alterações estabelecidas na Leinº 10.176/01, até seu texto mais recente, dado pela Lei nº 11.077/04.3 Sob o contexto dacompreensão de empresa nacional introduzida na Constituição de 1988, o novo arcabou-ço legal estabeleceu duas importantes mudanças: eliminou as restrições ao capital estran-geiro, abrindo-lhe acesso ao sistema de incentivos fiscais nele embutidos, e passou a incen-tivar a pesquisa privada no setor. Passavam a ser isentas de determinadas taxas e impostosas empresas de informática que mantivessem “certo nível de produção local e desenvolves-sem conteúdo e P&D locais” (SOFTEX, 2002). Taxas específicas para as regiões Centro-oes-te, Norte e Nordeste estabeleciam uma dimensão regional à política. O foco da políticapassa então para a atração de multinacionais que convertessem parte do seu faturamentobruto obtido no mercado interno em recursos para financiar atividades de P&D no país(Garcia & Roselino, 2002). Como as atividades de P&D poderiam ser desenvolvidas emparcerias com grupos e institutos de pesquisa nacionais, a ideia subjacente era promover atransferência de tecnologia para o sistema tecnológico nacional, e deste, para a indústriadoméstica, impulsionando-se, assim, a elevação de sua intensidade de tecnologia.

Garcia e Roselino (2002) estimam, com base em dados do Ministério da Ciência eTecnologia, que o valor acumulado dos investimentos em P&D promovidos no escopo danova Lei de Informática no país, entre 1993 e 2000, atingiu cerca de R$ 3 bilhões. Destemontante, R$ 1 bilhão foi aplicado em parcerias com instituições de pesquisa. Do volu-

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3 Diversos decretos e por-tarias ministeriais regula-mentam as leis, entre osquais, os Decretos nº6.233, de 11.10.2007 e nº6.234, de 11.10.2007.

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me total de benefícios, 83% estão associados a atividades desenvolvidas por apenas 30empresas, a maior parte das quais, estrangeira. O sistema de incentivos introduzido na no-va lei está focado na redução de IPI para empresas que declaram imposto de renda sobreo lucro real; beneficia, portanto, empresas industriais de grande porte. Tais mecanismossão inegavelmente importantes para o país, porém, até 2001, apenas 25% dos investimen-tos obtidos com a primeira lei de informática foram investidos especificamente emsoftware (SOFTEX, 2002).

Em 2001 ocorre a modificação da nova Lei de Informática de 1991, sendo aprova-da a Lei n° 10.176 que, apesar de ter o mesmo espírito da lei anterior, modifica os per-centuais a serem aplicados em incentivos e define a obrigatoriedade de se aplicar nas re-giões Norte, Nordeste e Centro-oeste do país (SOFTEX, 2002). Esta lei favoreceu oestabelecimento, particularmente no Nordeste, de convênios entre universidades e gran-des empresas nacionais ou de capital estrangeiro, como é o caso das parcerias que tratare-mos mais adiante entre a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e empresascomo a Motorola e a HP (Hewlett Packard).

A Lei nº 10.176/01 previa valores percentuais de incentivos que iam sendo reduzi-dos no tempo, como também iam sendo reduzidos os percentuais obrigatórios a serem in-vestidos em P&D até 2009. Através desta, também foi instituída a obrigatoriedade de asempresas beneficiadas, a cada três meses, depositarem 0,5% dos investimentos previstosno Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), o qual, pormeio do Fundo Setorial para Tecnologia da Informação (CT-Info), destina recursos à pro-moção de projetos estratégicos de pesquisa e desenvolvimento em tecnologia da informa-ção, inclusive em segurança da informação.4

Já em dezembro de 2004, foi aprovada a Lei n° 11.077, que alterava fundamen-talmente os prazos e os valores dos incentivos definidos anteriormente, prorrogando-osaté 2019. A lei alterou também o artigo que definia que o investimento das empresasem P&D deveria ser realizado com 5% do seu faturamento bruto, redefinindo-o para5% do faturamento da empresa com os produtos incentivados. Em troca deste investi-mento, a lei isenta ou reduz o imposto sobre produtos industrializados (IPI) para osbens de informática e automação por ela produzidos de acordo com processo produti-vo básico (PPB), o qual é definido pelo poder executivo e corresponde ao conjunto mí-nimo de operações no estabelecimento fabril, que caracteriza a efetiva industrializaçãode determinado produto.

Mesmo que, para os fins desta lei, “programas para computadores, máquinas, equi-pamentos e dispositivos de tratamento da informação e respectiva documentação técni-ca associada (software)” sejam considerados um bem ou serviço de informática e auto-mação, a forma de incentivo dada, através da redução do IPI, exclui como beneficiáriasas empresas voltadas exclusivamente para a produção de software, pois este imposto nãorecai sobre a concessão de licenças de software. Portanto, o desenvolvimento do setor sedá de forma indireta a partir das atividades de P&D em software desenvolvidas por em-presas que tenham o software como produto secundário ou complementar, ou através deprojetos com recursos do FNDCT.

Os aspectos da lei que levam em consideração a questão regional no país são defini-dos fundamentalmente por meio de taxas diferenciadas de isenção de IPI e de percentualdo faturamento convertido em investimentos de P&D para empresas que investirem nasregiões de influência da Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA), da Agência deDesenvolvimento do Nordeste (ADENE) e na região Centro-oeste.

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4 A lei define ainda que o se-tor de Tecnologia da Infor-mação (TI) é constituído pe-las empresas que ofertambens e serviços capazes depermitir o acesso à informa-ção, sejam eles da Indústriade Computação, Telecomu-nicações, Automação, Ins-trumentação, Microeletrôni-ca, Software e serviçostécnicos associados (MCT,2003).

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Entre os objetivos da Lei está: “estimular a pesquisa, o desenvolvimento tecnológico ea inovação, por intermédio do relacionamento entre universidades, centros de pesquisa eempresas, assim como a ampliação da capacidade produtiva da indústria de bens de infor-mática” (MCT, 2003). Destarte, a intenção da lei não vai muito além de atuar apenas co-mo uma forma de financiamento para pesquisas nas universidades e institutos de pesquisacredenciados, mesmo as atividades de P&D nas grandes empresas brasileiras, sejam elas decapital nacional ou estrangeiro. O fato é que por trás da aplicação e função específica da leifaltam mecanismos que efetivamente estimulem a inovação nas empresas nacionais, a par-tir de interação destas com as grandes empresas incentivadas, a fim de aumentar sua com-petitividade e capacidade de exportação. A legislação chega a prever a “contratação de pro-jetos de pesquisa e desenvolvimento com empresas vinculadas a incubadoras credenciadaspelo CATI” (Decreto 5906/06, Art. 25, § 7º), contemplando, assim, a possibilidade de co-operação com pequenas empresas e o desejado fluxo de conhecimento entre pequenas fir-mas nacionais e grandes organizações estrangeiras. Entretanto, como não define incentivosespecíficos para essa cooperação, são as parcerias entre grandes empresas multinacionais decapital estrangeiro e as universidades e demais instituições de pesquisa pública que acabamsendo estimuladas pela lei. Não sendo capazes de promover por si só o aumento da capaci-dade nacional no setor de TI, as parcerias entre as grandes empresas e as ICTs, por sua vez,não asseguram que o conhecimento acumulado a partir dessas cooperações seja, pelo me-nos em parte, apropriado pelo setor de produção local. Esta falta de articulação entre o se-tor nacional e o setor estrangeiro inviabiliza a constituição de redes de cooperação e trans-ferência de tecnologia, aspecto dos mais importantes para a aprendizagem e troca deconhecimento tácito, com efeitos significativos não apenas sobre a indústria nacional, massobre as localidades em que se concentram as ICTs credenciadas, como veremos a seguir.

CAMPINA GRANDE E O SETOR DE SOFTWARENO CONTEXTO NORDESTINO

Localizada na região central do planalto da Borborema, entre o litoral e o sertão pa-raibano, Campina Grande, devido a sua altitude, é uma cidade de clima ameno, que seformou como um local de passagem e de descanso para viajantes que iam do sertão ao li-toral a cavalo, devido à existência de um grande açude no local. Essa característica conso-lidou Campina Grande como um entroncamento importante de várias estradas que hojeligam o Agreste, o Sertão e a Zona da Mata nordestina (ver Mapa 1). Até a década de1960, rivalizava economica e politicamente com João Pessoa, superando esta em muitosaspectos e chegando a possuir empresas de capital local de telefonia, eletricidade e distri-buição de água. Essa importância se consolida durante as primeiras décadas do século 20,quando se torna importante centro comercial de algodão.

A cidade ocupava de fato alguma centralidade regional tanto em relação às ativida-des comerciais, principalmente na época do “ouro branco”, quanto em relação a serviçose reparos mecânicos, devido à demanda dos viajantes e caminhoneiros que por ali passa-vam. Correlacionada com esta dinâmica econômica, observa-se posteriormente forteatuação da prefeitura, com apoio do governo do Estado e da sociedade campinense, paraatrair escolas técnicas e superiores na cidade. Em 1954 é criada a Escola Politécnica(POLI), por lei estadual, com cursos de Engenharia Civil e, posteriormente, EngenhariaElétrica e Engenharia Industrial.

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A Escola Politécnica logo foi incorporada à Universidade Estadual da Paraíba, e jáem 1960, à Universidade Federal da Paraíba. No final da década de 1980, o curso de pós-graduação em Engenharia Elétrica já era considerado um dos melhores do país, atingin-do conceito 7 pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Supe-rior). A presença destas competências de ensino e pesquisa na cidade explicam aauto-proclamada “vocação tecnológica” que a cidade hoje difunde. Apelidada de “OásisHigh Tech do Nordeste”, é considerada um importante centro de formação de profissio-nais qualificados na área de software, graças ao Centro de Ciências e Tecnologia da UFCG.

Mapa 1 – Localização de Campina Grande

Fonte: Malha Municipal, IBGE, 2001; Cartas Digitais ao Milionésimo, IBGE, 2000.Org./Ed.Gráf.: Fernando Ramalho.

A presença da UFCG pode explicar a importância da cidade entre os municípios nor-destinos com relevância no setor. Por ordem de importância, segundo a RAIS, as regiõesmetropolitanas de Salvador, Recife e Fortaleza ocupam posição destacada (com a lideran-ça da RM de Recife no setor de desenvolvimento de software). Além destas, destacam-seapenas, no setor de serviços de informática, Feira de Santana, na Bahia, e Campina Gran-de (com 84 e 76 empresas, respectivamente, em 2005). Contudo, observando-se especi-ficamente o setor de desenvolvimento de software (categorias 3 e 4), Campina Grande éa única cidade fora das RMs e capitais que aparece em 2005 com mais de 10 empresas, oque fornece indícios da existência de uma dinâmica que a distingue de outras cidades dointerior do Nordeste.

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O AMBIENTE INSTITUCIONAL E AS EMPRESASLOCAIS

Além da UFCG, cujo Centro de Ciências e Tecnologia (CCT) inclui os Departamen-tos de Sistemas e Computação (DSC) e de Engenharia Elétrica (DEE), ambos credencia-dos pelo Comitê da Área de Tecnologia da Informação (CATI) do MCT, a cidade abrigaum conjunto de instituições que também contribuem para impulsionar uma cultura ino-vativa no tecido econômico local. Este ambiente institucional inclui: (i) o Consórcio deExportação de Software – PBTech, criado em dezembro de 2002, com o objetivo de pro-mover o desenvolvimento do mercado de software paraibano; financiado pelo Sebrae e pe-la Agência de Promoção de Exportações (Apex), conta com o apoio da Sociedade Softex,e reúne 9 empresas de software da Paraíba);5 (ii) o Projeto Farol Digital, projeto mais am-plo, posterior à consolidação do PBTech, com forte relação entre as empresas consorcia-das e o Sebrae, e que tem por objetivo promover a competitividade e a sustentabilidadedos empreendimentos do setor por intermédio da difusão tecnológica e de acesso a mer-cados, reunindo quase 70 empresas; (iii) Agente Softex de Campina Grande – CGSoft,presta apoio operacional às empresas de software em duas linhas de ação: preparação deempreendimentos nascentes para o ingresso no mercado, e apoio a empresas já consolida-das, acompanhando as etapas de produção e comercialização de produtos e serviços, efuncionando como braço operacional da SOFTEX em articulação com a iniciativa priva-da, governos estadual e municipal, com o suporte de centros acadêmicos e instituições defomento para atingir as metas do setor de software confiadas à SOFTEX; (iv) PaqTcPB –Fundação Parque Tecnológico da Paraíba, instituída pelo CNPq, UFCG e Governo do Es-tado da Paraíba; está voltada para o avanço científico e tecnológico do Estado, geração deemprego e renda através da interação entre academia e setor empresarial, gestão e trans-ferência de tecnologia, incentivo e suporte à criação de empresas de base tecnológica,difusão da informação, capacitação técnico-científica e articulação e cooperação tecnoló-gica institucional; e (v) ITCG – Incubadora Tecnológica de Campina Grande, cujas em-presas apoiadas são, principalmente, das áreas de eletroeletrônica e software.

Papel central entre as instituições descritas é desempenhado pelo PaqTcPB, comomostra a Figura 1. O Parque Tecnológico abriga vários programas e recebe aporte de vá-rias organizações; como mencionado, agrega projetos como o PBTech e o Farol Digital,fornece serviços como o de incubação de empresas a partir da ITCG, realiza testes para cer-tificação de produtos através do LIHM, abriga o núcleo Softex de Campina Grande e man-tém estreita relação com a UFCG e a UEPB, além de articular fontes de financiamento pa-ra pesquisas através de órgãos como FAPESQ (Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado daParaíba), FINEP, SEBRAE, APEX, entre outros.

Figura 1 – Rede Institucional relacionada ao PaqTcPB

Fonte: Elaboração de Fernando Ramalho.

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5 Dos consórcios de expor-tação de Tecnologia da In-formação financiados noBrasil, o único caso mencio-nado como sucesso emPassaporte para o Mundo,lançado em maio pela agên-cia de Promoção à Exporta-ção (APEX/BRASIL), foi oconsórcio paraibano.

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O setor empresarial local, por sua vez, foi identificado entre as empresas campinen-ses especializadas no setor de TI que haviam sido mencionadas como empresas inovado-ras em sítios oficiais de notícias, em várias bases de dados disponíveis na web e em ór-gãos locais. A partir dessas fontes, foram identificadas 35 empresas especializadas nacategoria 2 (atividade de bancos de dados, distribuição online de conteúdo eletrônico ouprocessamento de dados) e 25 empresas nas categorias 3 e 4 (desenvolvimento de softwa-re sob encomenda e outras consultorias em software ou desenvolvimento de software pa-cote/produto).

A base de dados mais completa foi conseguida junto ao Sebrae, mas esta se refere aoano de 2002. Portanto, ao se comparar o número de empresas encontrado com o núme-ro de estabelecimentos da base de dados da RAIS, sabendo-se a limitação desta compara-ção,6 é preciso fazê-lo para o mesmo ano. Assim, segundo a RAIS, para 2002, havia 12 estabelecimentos na categoria 2 em Campina Grande, e 8 estabelecimentos nas cate-gorias 3 e 4. Apesar de os números estarem bastante diferentes da lista encontrada noSebrae, percebe-se ao menos uma correspondência na proporção de empresas por catego-ria, confirmando que aproximadamente 60% das empresas dos setores de serviços emsoftware de Campina Grande em 2002 eram da categoria 2, enquanto aproximadamente40% faziam parte das categorias 3 e 4.

Devido aos problemas de inconsistência das listagens fornecidas pelos órgãos con-sultados, optou-se por refinar essa base ainda mais, mantendo apenas as empresas comatuação e especialização verificada em campo. Chegou-se, assim, a um total de 14 empre-sas. Todas mantêm ou mantiveram algum tipo de relação institucional com o PaqTcPB,seja via Incubadora (ITCG), seja via PBTech, ou seja até via Sebrae/Farol Digital.

Considerando as 13 empresas de Campina Grande e a empresa Zênite, que iniciousuas atividades na cidade, 11 delas prestam serviços de alto valor em software, 5 desen-volvem e comercializam software do tipo pacote e 4 têm, em alguns de seus produtos,softwares embarcados. Dentre estas 14 empresas, figuram 10 das 12 empresas que inte-gram ou integraram o Consórcio PBTech, as quais compõem com as outras duas empre-sas de João Pessoa (Tradesoft/Ziontek e Phoebus) a totalidade dos participantes e ex-par-ticipantes do consórcio.

Com a finalidade de se caracterizar essas empresas locais, foram realizadas entrevis-tas em 7 das 13 empresas de interesse, o que possibilitou ainda um reconhecimento dasprincipais vantagens locacionais de Campina Grande, suas desvantagens, como se dá a in-teração entre as empresas no ambiente local e a relação destas com a universidade.7 Agrande maioria das empresas listadas atua em um mercado maior que o próprio estado, eaponta a distância com relação aos grandes centros consumidores (São Paulo, Brasília eRio de Janeiro) como desvantagem de estarem localizadas em Campina Grande. A maiorvantagem identificada pelas empresas é, sem dúvida, a alta qualificação dos profissionais.Aspectos como qualidade de vida e baixo custo da mão-de-obra também são citados co-mo importantes. Um fator que favorece a manutenção de algumas dessas empresas e seussócios em Campina Grande é a relação que eles têm com a cidade, pois muitos deles nas-ceram e se formaram nela.

As atividades de P&D são percebidas por todas as empresas como algo de grande im-portância, porém, poucas possuem departamentos de P&D estruturados, embora a maio-ria afirme ter profissionais voltados para essas atividades. Percebe-se que as maiores em-presas do setor local foram geradas a partir de spinoffs de projetos da universidade, comoé o caso da Apel e da Zênite, ou da reunião de professores e ex-alunos da universidade,

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6 A empresa é uma unidadejurídica e tem uma determi-nada razão social, podendoconter uma ou mais unida-des locais ou estabeleci-mentos. Já unidade local ouestabelecimento se refereao espaço físico e contínuoem que a atividade é desen-volvida, correspondendo aapenas um endereço (Rose-lino, 2006).

7 As empresas entrevistadasforam: Light Infocon, Apel,Era Digital, C.G. Sistemas,LEE, G.Farias e New Ink.

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como a Light Infocon. As empresas de desenvolvimento de software de Campina Grandesão de pequeno porte. Destas empresas, destacam-se, também, pelo número maior de em-pregados, a Light Infocon (40 pessoas), empresa essencialmente voltada ao desenvolvi-mento de software, e a Apel, (50), voltada primordialmente para o setor eletroeletrônico.8

A APLICAÇÃO DA LEI DE INFORMÁTICA EMCAMPINA GRANDE

Devido à excelência e ao conceito dos cursos tecnológicos de Campina Grande,principalmente a Engenharia Elétrica, e a partir dos incentivos proporcionados pela Leide Informática (nas suas várias edições), grandes empresas multinacionais e até nacionaisse interessaram em estabelecer parcerias para desenvolvimento de P&D com o Centro deCiência e Tecnologia da Universidade Federal de Campina Grande. Credenciados no Mi-nistério da Ciência e Teconologia, o DEE e o DSC têm mantido recentemente parceriascom as multinacionais Motorola, HP (Hewlett Packard), Nokia e Nortel Networks. Aocontrário de lugares como Campinas (SP) e São Paulo, onde as multinacionais têm plan-tas industriais, a presença da multinacional se dá em Campina Grande apenas a partir dasparcerias com a universidade, as quais são, muitas vezes, apenas garantidas pela obrigato-riedade definida na Lei de Informática.

A partir da versão da lei editada em 1991 (n° 8.248), segundo artigo sobre a avalia-ção dos resultados da Lei de Informática, publicado pelo Ministério de Ciência e Tecno-logia, e relato do chefe do Departamento de Sistemas e Computação, professor BrunoQueiroz, a primeira parceria da Universidade Federal de Campina Grande, através dos in-centivos da lei, foi a cooperação técnico-científica com a empresa IBM (International Bu-siness Machines), através de sua subsidiária no Brasil, que propiciou recursos para a recu-peração e ampliação da infraestrutura computacional da Universidade. O programaviabilizou ainda a realização de diversas pesquisas, construção de laboratórios e estaçõesde trabalho, além da construção de uma rede corporativa de comunicação de dados porfibra ótica interligando vários centros em Campina Grande e João Pessoa.

Outra parceria foi a estabelecida com o Instituto de Pesquisas Eldorado, uma OSCIP

(Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) sediada em Campinas (SP) queatua na área de Tecnologia da Informação e Comunicação e se dedica a pesquisa e desen-volvimento de novas tecnologias e à capacitação profissional dos colaboradores do Insti-tuto. A cooperação técnico-científica teve como foco um Programa de Capacitação Tec-nológica (PCT), no qual o Instituto fazia a ponte entre o DSC, o DEE e a empresaMotorola, tendo funcionado na UFCG entre 2000 e 2002. A implantação do PCT resul-tou na atualização de laboratórios, acervos bibliográficos, disciplinas da graduação e ca-pacitação de 40 alunos de graduação em tecnologias utilizadas pela empresa (MCT, 2004).

A parceria com a Motorola tinha como base um projeto de P&D em aplicações usan-do a tecnologia IDEN (Integrated Digital Enhanced Network), um conjunto de soluçõessem fio de última geração para permitir o desenvolvimento de aplicações como comércioeletrônico e conferências. Teve como resultado a criação de um novo laboratório, o trei-namento de alunos e pesquisadores, a atualização de disciplinas da graduação e a buscapor certificação CMM (MCT, 2004).

O convênio firmado entre a UFCG e a HP, com recursos da Lei nº 10.176/01, temno Projeto OurGrid, e tinha no Projeto Failure-Spotter, seus principais eixos de coopera-

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8 Quanto ao faturamento,de todas as empresas entre-vistadas, apenas uma forne-ceu informação relativa a fa-turamento anual, o qualgirava em torno de R$ 2 mi-lhões em 2005. Entre notí-cias veiculadas na mídia erelatos dos entrevistados,estima-se por alto que o se-tor de tecnologia da infor-mação de Campina Grandecomo um todo tenha um fa-turamento anual próximo deR$ 60 milhões, o que possi-velmente inclui também acomercialização de equipa-mentos. Quanto a exporta-ções, estima-se que, em2007, as empresas associa-das ao PBTech, principal-mente Light Infocon, NewInk, Zênite e Insiel, consi-gam, juntas, faturar com avenda de equipamentos esoftwares para o exteriorum total de US$ 3 milhões.

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ção. O Projeto OurGrid tem como foco a criação de tecnologias que viabilizem o uso de“Grids” computacionais9 da forma mais rápida e direta possível. Por sua vez, o ProjetoFailure-Spotter consistiu principalmente na pesquisa de procedimentos para detecção etratamento de falhas em sistemas distribuídos (MCT, 2004). Alguns resultados principaisdessa parceria com a HP foram indicados: a montagem de 2 laboratórios de pesquisa, otreinamento de alunos e pesquisadores, a publicação de 7 artigos científicos, a submissãode 2 patentes em conjunto com a Hewlett Packard, a interação com pesquisadores no ex-terior, a formação de mestres e doutores, a atração de novos pesquisadores e a fixação detalentos locais (MCT, 2004).

Um dos laboratórios de pesquisa beneficiados pela parceria com a empresa HP, o La-boratório de Sistemas Distribuídos (LSD), teve a construção de seu prédio-sede financia-da com recursos advindas dela. Segundo Marcelo Meira, gerente de projetos do LSD, o la-boratório não realiza projetos exclusivamente com a HP; ele já existia como Laboratóriode Pesquisa antes da Lei de Informática. Apesar disso, percebe-se que a maior quantida-de de recursos humanos está voltada para a parceria. Outros projetos estabelecidos a par-tir das obrigações da Lei de Informática são desenvolvidos em parceria entre o DSC e aNokia, e entre o DEE e a Nortel Networks. Além das multinacionais, Campina Grandecomeça a atrair a atenção de empresas nacionais de grande porte do setor de software. Éo caso da Politec, especializada no setor de serviços de alto valor agregado. Esta empresaé uma das cinco maiores do setor no país, e possui várias filiais no Brasil e no exterior.Com a instalação da unidade em Campina Grande, a empresa pretende se aproveitar daalta capacidade técnica da mão-de-obra local.

OS EFEITOS DA LEI DE INFORMÁTICA NA REDE SOCIAL DO SETOR DE SOFTWARE LOCAL

Apesar dos aspectos positivos proclamados e que advieram da parceira entre as uni-versidades e as grandes multinacionais, melhorando as infraestruturas de pesquisas de vá-rios laboratórios, alguns efeitos resultantes da prática cotidiana das parcerias e os reflexosna economia local requerem uma análise mais acurada.

Para se entender os possíveis efeitos perversos da lei, deve ser mencionado o estudode Diegues e Roselino (2006) sobre Campinas (SP). Um dos maiores pólos de tecnologiado país, Campinas tem sido palco, assim como Campina Grande, de uma dinâmica detransferência de conhecimento norteada pela aplicação da Lei de Informática. A região deCampinas teve sua trajetória evolutiva bastante modificada a partir dos anos 1990, quan-do a abertura comercial e a onda das privatizações tomaram conta do país. Com a trans-formação em uma fundação de caráter privado do CPqD/Telebrás (Centro de Pesquisa eDesenvolvimento da Telebrás) – órgão estatal que, junto com a UNICAMP (UniversidadeEstadual de Campinas), formava uma estrutura central de difusão de conhecimento e decapacidade inovativa na região – e a instalação de várias multinacionais na região em bus-ca dos incentivos da lei e do conhecimento construído na região, o setor local de produ-ção tecnológica foi extremamente afetado (Diegues & Roselino, 2006).

Antes de 1990, a interação entre os atores locais era intensa, e a dinâmica de transfe-rência de conhecimento, principalmente tácito, era uma das maiores virtudes daquele ter-ritório (Diegues & Roselino, 2006). Hoje, verifica-se uma distinção clara entre a dinâmicainovativa das subsidiárias estrangeiras e a das empresas locais. Às empresas multinacionais

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9 “Grids” computacionaisou computação em grade éum modelo computacionalcapaz de processar uma al-ta taxa de processamentodividido em diversas máqui-nas – podendo ser em redelocal ou rede de longa dis-tância – que formam umamáquina virtual. Esses pro-cessos serão executadosno momento em que as má-quinas não estão sendo utili-zadas pelo usuário, evitan-do, assim, o desperdício deprocessamento da máquinautilizada.

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não têm interessado a interação com as empresas locais ou a geração de spinoffs a partir doconhecimento adquirido internamente por seus funcionários ou a partir de suas parceriascom institutos para desenvolvimento tecnológico (Diegues & Roselino, 2006).

O que se verifica em Campina Grande é algo parecido, pois, apesar de as multina-cionais não estarem presentes no território, elas estabelecem relações formais com a uni-versidade, reunindo os melhores pesquisadores das áreas de interesse da empresa, semconstatar qualquer iniciativa na direção de se estabelecer relações cooperativas entre asmultinacionais e as empresas de Campina Grande, nem sequer com as mais dinâmicas.

Em um Sistema Local de Inovação, as interações são essenciais para o fluxo do co-nhecimento, fazendo dos territórios espaços diferenciados com maior potencial inovati-vo. Essas interações são essencialmente sociais; mesmo que se trate de relações organiza-cionais, elas são estabelecidas e mantidas por indivíduos que não encerram seu cotidianono ambiente de trabalho. Então, como nos mostra Storper (2005), retomando o que járessaltou Adam Smith, Marshall e Jane Jacobs, a cidade constitui “o locus da inventivida-de”, pois se configura através dos contatos humanos, centros de produção de ideias e deconhecimento. O autor ressalta ainda que a “proximidade espacial amplia os fluxos de in-formação de que os inovadores se utilizam para se comportarem como tal” (Storper,2005). As redes sociais configuram-se, portanto, como o principal meio de circulação deum bem intangível como o conhecimento tácito. Como explicam Côrtes et al (2005), asrelações econômicas são regidas pelo mercado e pela hierarquia criada nas relações de tra-balho; porém, sob a perspectiva das redes sociais, “busca-se analisar estas estruturas levan-do em conta o caráter relacional dos agentes envolvidos no sistema”.

As redes, segundo Marteleto (2004), são “sistemas compostos por ‘nós’ e conexõesentre eles que, nas ciências sociais, são representados por sujeitos sociais (indivíduos, gru-pos, organizações etc.) conectados por algum tipo de relação”. Uma caracterização das re-lações entre os elementos de uma rede é sugerida por Granovetter (1973 apud Côrtes etalli), que classifica as ligações entre os nós como ligações fortes e ligações fracas. As liga-ções fortes se referem aos laços entre indivíduos, em que se despende mais tempo, inten-sidade emocional e trocas. A amizade é um exemplo claro de um laço forte. Já as ligaçõesfracas são aquelas nas quais o investimento é menor ou nulo, como nas relações entre pes-soas apenas conhecidas. Então, em relação ao processo inovativo, poderia se pensar que omais importante para uma rede seria o estreitamento de laços fortes. Entretanto, emboraestes últimos sejam importantes, o essencial, e que caracteriza o potencial de expansão ede “oxigenação” de uma rede, são efetivamente os laços fracos. É principalmente a partirdesses laços fracos que novos conhecimentos são transferidos e internalizados por atorespresentes na rede.

Com base nesses conceitos e com a identificação do ambiente institucional realiza-do no setor local que suporta e influencia a atividade de desenvolvimento de software emCampina Grande, permite-se esboçar graficamente a rede de interações sociais materiali-zada em âmbito local, como mostra a Figura 2. Através do diagrama da rede de interaçõessociais, percebe-se um nítido afastamento entre as grandes empresas, principalmente mul-tinacionais, do setor e as empresas locais pequenas e médias, as quais mantêm relações es-treitas somente via PaqTcPB, seja através da Incubadora Tecnológica (ITCG), seja atravésdo consórcio de exportações (PBTech), ou seja através do Projeto Farol Digital, financia-do pelo Sebrae e pelo Governo do Estado da Paraíba (ver Figura 2).

A dinâmica de transferência de conhecimento, que possibilitou a criação de empre-sas como Apel, Light Infocon e Zênite, teve nas relações estabelecidas entre a Universida-

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de Federal de Campina Grande e pessoas destas empresas um fator fundamental. O co-nhecimento pôde ser transferido tanto através de processos de socialização, envolvendoconhecimento tácito externo à firma, quanto do próprio desenvolvimento de atividadesde P&D desenvolvidas nos projetos com a universidade.

Figura 2 – Rede de Interações Sociais do Setor de Software de Campina Grande

Fonte: Elaborado por Fernando Ramalho.

Atualmente, existem projetos como o PBTech e o Farol Digital que contribuem pa-ra que as empresas locais interajam, seja buscando mercado de forma conjunta ou mes-mo se inserindo em projetos cooperativos ligados ao Farol Digital. Porém, a dinâmica deinterações do setor local é menos direcionada ao investimento direto em P&D e à criaçãode novos produtos ou processos, e bastante distinta daquela verificada entre as multina-cionais e a universidade. O diretor presidente da empresa Era Digital, ao explicar por queo setor de software de Campina Grande não se desenvolve de forma mais eficiente, apon-ta a formalização de parcerias entre a UFCG e multinacionais como um fator importante.Explica que as parcerias atraem, com complementação de salário e bolsas mais altas, osmais brilhantes pesquisadores e estudantes, afastando-os do setor local, o qual tem baixopoder de barganha diante das multinacionais.

CONCLUSÕES

Partindo do objetivo de investigar a importância do setor de software no eventual sis-tema de inovação local de Campina Grande, a pesquisa que originou o presente artigoconstruiu uma análise da configuração institucional e da rede de interação social estabe-lecida entre diferentes agentes presentes nesta cidade. Tal análise acabou conduzindo àidentificação de alguns desdobramentos da principal política voltada à indústria de bensde informática do país, até então desconhecidos ou não registrados.

O sistema de inovação de Campina Grande – se assim pode ser chamado – é seto-rialmente orientado para a atividade de informática, devido à criação e consolidação nacidade de competências de pesquisa e ensino nas áreas de engenharia elétrica e ciências dacomputação, com articulações não desprezíveis com o mundo empresarial, por meio de

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instituições que dão suporte ao desenvolvimento de spinoffs de projetos de pesquisa e ini-ciativas de ex-alunos. Sob o arcabouço legal da Lei de Informática, o sistema envolve tam-bém a presença de empresas multinacionais beneficiárias dos instrumentos fiscais conti-dos naquela Lei, o que inclui a priorização de investimentos em P&D destinados à regiãode influência da ADENE. Estas empresas utilizam os recursos disponibilizados pela lei emprojetos de P&D realizados em parceria com laboratórios dos departamentos de Sistemase Computação e de Engenharia Elétrica da UFCG. A cooperação é sistemática, envolve umnúmero expressivo de pesquisadores e alunos, mas não desencadeia desdobramentos po-sitivos claros no conjunto do sistema local. Entrevistas realizadas com representantes dasempresas de software de capital local e dos grupos de pesquisa envolvidos em projetos fi-nanciados pelos instrumentos da Lei revelaram que não ocorre interação entre estes agen-tes, nem projetos em cooperação envolvendo o capital local e o capital externo.

Dessa forma, as interações sociais identificadas a partir das entrevistas mostram umarede cuja configuração espacial reflete o distanciamento entre o setor produtivo local, deum lado, e os grupos de pesquisa em engenharia de software e ciências da computação eempresas multinacionais, de outro. O desenho dessa rede apresentado na Figura 2 sugereque são ou inexpressivos, ou esporádicos ou inexistentes os processos de transferência deconhecimento entre a competência de pesquisa e o setor de produção de bens de infor-mática locais, em que pese o esforço das instituições de apoio às EBTs existentes na cida-de. Os efeitos sobre a consolidação do sistema de inovação local e sobre o desenvolvimen-to de Campina Grande e sua região são pequenos. Não apenas as empresas locais não sebeneficiam como poderiam das competências de pesquisa e desenvolvimento construídasna UFCG, inclusive por meio da absorção de egressos dos departamentos e dos grupos depesquisa (que priorizam os projetos envolvendo as multinacionais), como não se viabili-zam estratégias de crescimento das EBTs locais a partir de projetos de P&D cooperativo etransferência de tecnologia entre estas e as multinacionais ali presentes.

Os fatores que produzem tal situação são complexos, têm origens variadas e envol-vem tanto o caráter retardatário da economia e a imaturidade (como prefere Albuquer-que, 2005) do sistema de inovação brasileiro, de um lado, como fatores específicos ao ter-ritório regional, de outro. No que concerne a estes últimos, a formação da socioeconomiaregional assentada sobre uma estrutura fundiária e de poder próprias da pecuária extensi-va do sertão nordestino, de baixa produtividade e submetida a razoável isolamento fren-te a mercados mais competitivos, tende a produzir estímulos de sustentação de uma ca-deia de valor curta com poucos elos para frente e para trás, e orientada para mercados debaixo poder aquisitivo, bem aos moldes da noção de path dependence. Neste contexto, emcontrapartida, não deixa de surpreender a emergência de um conjunto importante de ins-tituições científicas e tecnológicas pioneiras e mesmo originais para os padrões do sertãonordestino. No entanto, mesmo a presença desta base local de C&T não é suficiente paraproduzir inflexões expressivas no território campinense, o que inclui mudanças marcan-tes nas relações de poder entre os diversos grupos de interesse que configuram este terri-tório. Por estas razões, é pequeno o número de novas empresas criadas; observa-se umatendência de relocalização de algumas em direção à capital, João Pessoa, ao mesmo tem-po em que não cresce qualitativamente a densidade da economia local que, por isso, é in-capaz de absorver a mão-de-obra qualificada egressa da UFCG. Baixa densidade econômi-ca torna aquele território não apenas pouco atraente para o capital local como para ocapital externo, especialmente no que concerne aos elos mais intensivos em conhecimen-to e inovação das cadeias de valor em que operam.

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Os conhecidos fatores gerais que constituem a fisionomia da economia e do sistemade inovação à escala nacional – incluindo fatores macroeconômicos que afetam o investi-mento e a competitividade das firmas, além dos aspectos históricos responsáveis pelas ca-racterísticas da estrutura econômica brasileira e sua inserção internacional – só tendem areiterar este panorama. Nesta escala, porém, os resultados da pesquisa sugerem que aspec-tos de ordem institucional merecem atenção: o desenho da política de fomento ao setorde informática praticada no país pode ser observado como uma das fontes de explicaçãopara a inexistente cooperação observada em Campina Grande entre os agentes econômi-cos locais e externos, assim como para o baixo dinamismo do sistema de inovação brasi-leiro e de todos os sistemas subnacionais regidos pelo mesmo marco regulatório.

Partimos da concepção, concordando com o argumento de Gertler (2007), que a açãodos indivíduos, inclusive os altos dirigentes de corporações multinacionais, é operacionali-zada segundo um conjunto de possibilidades condicionado por forças “superiores” – algopróximo da noção de superestrutura de Marx. Sabendo que, como defende Storper (1997),mercados de trabalho, instituições públicas e regras nacionais e regionais que presidemações, costumes, valores e visões de mundo compartilhadas são parte das interdependên-cias que dão sustentação ao crescimento inovativo localizado, reconhecemos que tais visõesque caracterizariam o contexto social das regiões e nações não ocorrem no vácuo. Comoressalta Gertler, mais que resultado da cultura local ou nacional, deve-se reconhecer, nas re-giões e nações concretas, origens institucionais. Instituições envolveriam as estruturas enormas de operacionalização de organizações educacionais e de treinamento, o sistema fi-nanceiro e toda uma série de sistemas regulatórios relativos ao mercado de trabalho e aomundo empresarial que também afetam a ação de governos e indivíduos, mesmo que elesnão tenham clara consciência disto. Nesta linha de raciocínio, o baixo dinamismo inovati-vo observado em algumas regiões derivaria não apenas da sua especialização em atividadestradicionais, pouco demandadoras de conhecimento e tecnologia, e da “cultura” caracterís-tica do contexto local, mas também do conjunto de instituições em vigor que presidem alio comportamento dos indivíduos no que concerne a aprender pela interação e a inovar. Damesma forma, o marco regulatório pode induzir comportamentos desejados como fontesde estímulos ao desenvolvimento que espontaneamente não aconteceriam.

Voltando à Lei de Informática, sabemos que esta foi formatada sem levar em consi-deração nem especificidades das estruturas produtivas regionais/locais, nem os efeitos quepoderia nelas causar. O foco estava em uma entidade subjetiva conhecida como “econo-mia nacional”. Entretanto, ao não diferenciar empresas de capital nacional de empresasde capital estrangeiro com sedes no Brasil, o mecanismo legal induz ao estabelecimentode parcerias para o desenvolvimento de atividades de P&D, e considera a inovação resul-tante de uma parceria desenvolvida entre uma empresa multinacional e uma universidadedo Nordeste como um aumento na capacidade do setor nacional de bens de informática.Não parece importar ao legislador se esta inovação vai ser apropriada e, até mesmo, im-plementada fora do país, nem se propicia ou não efeitos multiplicadores sobre o sistemade inovação e sobre a estrutura produtiva da região onde se deu a cooperação financiadapelos instrumentos da lei.

Em uma região menos dinâmica economicamente são estabelecidas parcerias com osmelhores e poucos pesquisadores locais, que tendem a inibir a transferência de conheci-mento e a aprendizagem via interação a partir de parcerias que envolvam as empresas lo-cais, a universidade e as empresas estrangeiras. O marco regulatório poderia prever meca-nismos que propiciassem estímulos para a realização destas parcerias, o que poderia se

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traduzir em uma política regional mais eficaz que o simples percentual mínimo reserva-do para as regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste. Além disso, recursos públicos e escas-sos acabam sendo apropriados pelas empresas multinacionais estrangeiras para simples-mente monitorar o conhecimento acumulado por pesquisadores locais e a emergência deeventuais talentos e ideias em seu benefício privado, sem contrapartidas para o desenvol-vimento regional e mesmo nacional. Dessa forma, o mecanismo legal apenas estimula aintensa fuga de cérebros de regiões que, a exemplo de Campina Grande, nem o pioneiris-mo na constituição de agentes locais de C&T, nem a formação de mão-de-obra qualifica-da no setor de software, nem mesmo a existência de agentes econômicos de capacidadeinovativa e dinamismo comprovados conseguem reter. Uma revisão dos instrumentos, nosentido de premiar projetos que contemplem interações com o tecido produtivo local pa-ra transferência de tecnologia e aprendizagem pela interação entre agentes locais e exter-nos, pode propiciar importantes resultados para o efetivo desenvolvimento regional.

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Fernando Ramalho é geó-grafo pela UFPE e mestran-do pela USP.E-mail: [email protected]

Ana Cristina Fernandes éprofessora do Programa dePós-Graduação em Geogra-fia da UFPE e pesquisadorado CNPq.E-mail: [email protected]

Artigo recebido em junho de2009 e aprovado para publi-cação em agosto de 2009.

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A B S T R A C T Supported on a case-study of the interactive dynamics carried outamong agents of the so-called proto-system of local innovation on software of CampinaGrande, Paraíba, stimulated by the Law of Informatics, the present paper aims at callingattention to the effects of national public policies on local spaces. Its theoretical frameworkemphasizes the notion of learning by interacting, recognized as an important aspect of both theinnovation process and recent regional development strategies. Accordingly, Campina Grandewould present objective elements necessary for the implementation of innovation-leddevelopment strategies, as far as a less-developed Brazilian economy is concerned. The cityhouses a set of research institutions and innovation supporting agencies focused on the softwaresector which have fostered the emergence of a cluster of small and medium software firms. Asthese research institutions are well recognized for their excellence, especially those establishedin the Federal University of Campina Grande, they have been attracting large amounts offunds from large firms under the fiscal mechanisms of the Law of Informatics. The objectiveof the latter is to expand the innovation capabilities of the national informatics goods, boththose carried out internally in the firms and those performed in cooperation with universitiesand research institutions. The law also indicates that part of the benefitted investments must

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be located in Brazil's North, Northeast and Centre West regions. Thus, although it also aimsat reducing regional disparities and the development of the national software sector, we arguethat the Law of Informatics does not lead to the expected results in terms of enhancing thenational production structure, particularly that of backward regions. The survey carried outon the R&D interactions in Campina Grande's software firms and institutions shows that thelaw's current format may lead to leakages of local resources and barriers to interactions amonglocal research capabilities and the industry. These findings suggest that regulation shouldevolve to include stimulus for stronger links between local and inward firms connected to localresearch institutions, as long as the software sector is as important for the overall dynamism ofthe Brazilian and its different local economies, as for reducing the country's regionalimbalances.

K E Y W O R D S Regional development and innovation; informatics law; softwaresector; social networks for R&D; local effects of national public policies; Campina Grande, PB.

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PALESTRA

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PLANEJAMENTO E GESTÃOESPACIAL DA POBREZA1

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O início deste século foi marcado por uma extraordinária conscientização globalsobre temas como a mudança climática e a pobreza. Em minha obra, denomino esseconjunto de ideias e de práticas “desenvolvimento milenário” (millenial development).Desde a ratificação das Metas de Desenvolvimento do Milênio, as grandiosas campanhasglobais contra a pobreza, a reformulação do Banco Mundial sob Wolfensohn, até os mo-vimentos sociais globais, o que o desenvolvimento milenário busca é refrear aquilo queJoseph Stiglitz (1999) considerou criticamente como o “fundamentalismo de mercado”da era passada.

O desenvolvimento milenário apresenta desafios excepcionais ao campo disciplinare profissional do planejamento e dos estudos urbanos. Enquanto diversos temas e setores– no âmbito da pobreza: saúde, empoderamento associado ao gênero, educação, geraçãode renda e direitos humanos; no âmbito da mudança climática: energia renovável e bio-combustíveis – são superestimados no desenvolvimento milenário, pouca atenção é dis-pensada às cidades. Os principais interlocutores do desenvolvimento milenário estão ape-nas tangencialmente informados sobre questões relativas ao planejamento urbano. Porexemplo, a única dentre as Metas de Desenvolvimento do Milênio que possui algum con-teúdo urbano é a Meta 7. Essa meta, imprecisamente formulada, baseia-se no que DavidSatterwaite (2003) denominou “estatísticas non sense”. Ainda assim, pode-se argumentarque a condição urbana, que será a condição humana dominante no século 21, é central atodas as metas de desenvolvimento do milênio. Como os urbanistas, os planejadores e osarquitetos irão se posicionar frente ao desafio de uma pobreza que é persistente? Como asua compreensão das questões urbanas poderá se tornar relevante, ou mesmo central, aodesenvolvimento milenário? Mas o desafio é ainda mais crucial do que isso: irão as for-mas do planejamento urbano aprofundar, em vez de mitigar, a pobreza e a desigualdade?

O papel do planejamento na produção da pobreza é particularmente evidente na Ín-dia. A Índia, assim como a China, vem sendo anunciada como uma nova superpotênciaeconômica mundial. Mas essa imagem de uma “Índia dourada” (India shinning) mereceum exame mais acurado. Se a Comissão de Planejamento da Índia aponta uma quedaabrupta nos índices de pobreza na última década, é preciso levar em conta que a linha depobreza indiana é, na verdade, uma linha de inanição – 40 centavos de dólar por dia.Quando o limite internacional de pobreza (2 dólares por dia), ajustado segundo a parida-de do poder aquisitivo, é aplicado à Índia, cerca de 70% da população indiana, isto é, 800milhões, e não 300 milhões de pessoas, são reconhecidas como pobres. A maior democra-cia do mundo é, de fato, o que um estudioso indiano chamou de “República da Fome”(Patinaik, 2007).

A pobreza na Índia tem raízes em um setor agrícola devastado, mas também são im-portantes suas manifestações urbanas, sob a forma da migração rural-urbana, das ocupa-ções informais, das favelas, do trabalho informal e temporário, da frágil sobrevivência.Particularmente surpreendente na Índia de hoje é a criminalização da pobreza por parte

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1 Texto escrito para pales-tra proferida no ENANPUR2009. Tradução de AliciaDuarte Penna.

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de diversos governos municipais. Enquanto países latino-americanos como o Brasil avan-çaram em direção a uma compreensão abrangente do “direito à cidade”, em uma buscapela democratização tanto da participação no planejamento quanto da própria noção depropriedade, as cidades indianas tornaram-se perversas, repelindo brutalmente a pobrezarural-urbana. Esses são processos de acumulação primitiva, um deslocamento e um fecha-mento que asseguram, na Índia, os esforços de criar cidades de excelência mundial (world-class cities).2

Esse tipo de urbanismo não pode ser tomado como uma estratégia de globalizaçãoou de ajuste estrutural imposta pelo Ocidente ao resto do mundo. No caso da Índia, eudiria, trata-se de um neoliberalismo endógeno, voltado à produção de cidades de excelên-cia mundial. Arquitetura, desenho urbano e planejamento são elementos cruciais no en-genho dessa globalidade. O que há de fascinante nesses circuitos de produção urbana éque eles tomam como modelo não as cidades ocidentais, mas, em um processo de auto-referência, imagens ideais como Cingapura, Shangai ou Dubai. Trata-se de uma circula-ção Sul-Sul de ideias e modelos de planejamento, cujas consequências são, contudo, de-sastrosas para a pobreza urbana. Tais tendências requerem que dediquemos uma atençãoredobrada ao papel do planejamento urbano na produção e gestão da pobreza.

OS ESPAÇOS DA POBREZA

A consolidação da pobreza é uma tendência global. Sabemos que, a despeito dos de-créscimos gerais nos índices de pobreza, em muitos países, os números absolutos de po-bres têm se mantido, se não aumentado. Sabemos que a desigualdade tem se agravadotanto internamente aos países quanto entre eles. Sabemos também que os perfis estatísti-cos da pobreza não mostram o que seria um conjunto de mudanças estruturais radicaistanto nas nações industrializadas quanto naquelas em desenvolvimento. Na realidade, éprovável que as atuais e simultâneas crises de alimentos e financeira aumentem o núme-ro de pobres em milhões ainda neste ano.

No norte global, no contexto do que Robert Reich (2007) denominou “supercapi-talismo”, ocorre o que muitos têm chamado de “marginalidade pós-industrial” – a con-solidação de formas severas de desemprego e desproletarização, associadas ao retraimentodo estado do bem-estar social. No sul global, verifica-se o que Janice Perlman (2004), emseu estudo sobre o Rio de Janeiro, denominou “a realidade da marginalidade”. Trata-se,então, de economias desarticuladas, marcadas pela difusão do trabalho informal e poruma persistente vulnerabilidade. Para os planejadores, são significativos os aspectos es-paciais dessa pobreza consolidada. Em seu último relatório (2009), o Chronic PovertyResearch Centre, com base na Inglaterra, aponta a “desvantagem espacial” como uma dasdimensões-chave da pobreza extrema e crônica. Em uma interpretação mais acadêmica,Loic Wacquant (2007) chama atenção para a “estigmatização territorial” como uma clarafeição da marginalidade pós-industrial.

Contudo, as geografias da pobreza são mais complexas do que isso. Atentemos paraos seguintes aspectos desconcertantes. Enquanto Wacquant e outros têm focado a estig-matização territorial como uma marca da pobreza na América contemporânea, tendên-cias recentes apontam para o que vem sendo nomeado “nova pobreza suburbana”, umageografia mais dispersa do que aquela caracterizada pelo ícone do gueto isolado. No sulglobal, é algo bastante distinto o que nos desconcerta. Favelas e ocupações informais, ao

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2 Nota do editor. De acordocom a autora, “world-classcities” seriam “cities thatconform to global norms ofeconomic competitiveness,urban design, and elite li-festyles”, isto é, “cidadesem conformidade com asregras da competitividadeeconômica, desenho urbanoe modos de vida da elite”.

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contrário do que Mike Davis (2006) poderia nos fazer acreditar, não são novidade; elasprecedem a era do ajuste estrutural e da liberalização. A questão desconcertante é a se-guinte: por que, na era passada, tais configurações espaciais eram lugares do emprego, doacesso, da mobilidade, e por que são, agora, geografias da exclusão e da marginalização?Em síntese, para usar as palavras de Susan Eckstein (1990), por que as favelas da esperan-ça tornaram-se favelas do desespero?

Neste ensaio, examino a relação entre planejamento e pobreza, com o objetivo decolocar esta questão: o planejamento é relevante para os desafios colocados neste novo mi-lênio? Gostaria, em particular, de discutir como o planejamento empreende a gestão es-pacial da pobreza e o quanto essa abordagem é apropriada. Mas se o objetivo é exploraro tema planejamento e pobreza, é preciso examinar também como o planejamento pro-duz a pobreza. Não se trata meramente de como o planejamento pode mitigar a pobreza.Ao contrário, trata-se de como o planejamento está implicado na produção da pobreza.É indefensável, creio eu, caracterizar a pobreza simplesmente como uma questão de ne-gligência do Estado. Em vez disso, a pobreza e as geografias da pobreza devem tambémser compreendidas como efeitos do Estado, na medida em que envolvem tanto a exclusãoterritorial quanto a estigmatização territorial. Assim, no contexto dos Estados Unidos, sepensamos sobre a estigmatização territorial que está associada ao gueto como espaço fe-chado e isolado, então precisamos pensar sobre um espaço que está inextricavelmente li-gado ao gueto: o intocável subúrbio. Nesse contexto, muitas décadas de políticas públi-cas criaram um enclave apartado, distintivo, seguro, e fechado. Na história da expansãometropolitana nos Estados Unidos do século 20, guetização e suburbanização são dois la-dos de uma mesma moeda. A verdadeira política habitacional dos Estados Unidos não foia construção de enclaves para os pobres, e sim o contrário, sólidos subsídios para a classemédia proprietária, mediante deduções de impostos em suas hipotecas. Isso é planejamen-to urbano nos Estados Unidos. Isso é produção de vantagem espacial. Isso é desenvolvi-mento territorial.

O planejamento também produz desvantagem espacial. Se desejamos, de fato, avan-çar nessa questão, creio ser crucial compreendermos a difícil história do papel do plane-jamento na produção da vantagem e da desvantagem espaciais. Exemplos cabais, nesseâmbito, são as cidades coloniais francesas no norte da África. Embora seja possível descar-tar o urbanismo colonial como uma forma anômala de planejamento, seria um erro fazê-lo. A arquitetura e o urbanismo modernos, como observaram Paul Rabinow, GwendolynWright e muitos outros, foram refinados no excruciante colonialismo do século 19 (veja-se AlSayad, 1992). Efetivamente, as colônias foram fronteiras de experimentação de pla-nejamento e de projeto, uma extensão da haussmanização posterior ao encerramento des-sa era na Europa.

Assim foi quando Le Corbusier chegou a Argel em 1930, durante as comemoraçõesdo centenário da ocupação francesa na Argélia. Em sua concepção, o colonialismo é re-tratado como um eixo de ideias, partindo de Argel, e daí se estendendo mais longe ao sul,em direção à África francesa. Esse era, evidentemente, o eixo ao longo do qual se estavainstalando uma distinta troca colonial – de acumulação primitiva e modernização san-grenta. Corbusier proclamou a cidade de Argel como “a mais bela do mundo”, uma cida-de branca debruçada sobre o mar. Mas como esse espaço urbano poderia ser planejado egerido? O Plano Obus de Le Corbusier pretendia preservar intacta a casbá: sobre ela, umavia expressa flutuante ligaria as expansões planejadas da zona residencial europeia à zonade negócios europeia. Os viadutos serviriam como habitação para os trabalhadores arge-

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linos, uma pungente imagem da infraestrutura colonial, uma cidade literalmente cons-truída nas costas dos trabalhadores nativos. Representada tal como uma mulher reclusa,a casbá permaneceria em quarentena, detrás de um cordon sanitaire vertical. Eis aqui a po-tencialidade de uma estigmatização territorial cujo legado tem sido difícil apagar – a di-visão colonial entre a cidade branca e a nativa, entre a mobilidade espacial e a segregaçãoespacial. Ironicamente, foi mediante a demarcação da casbá como um espaço protegido econtrolado que o estado francês colonial tornou-se capaz de articular sua missão de admi-nistrar aquele território. Assim, o plano de Corbusier apresentou as razões de uma “regrada diferenciação”, segundo a qual o mundo europeu e o muçulmano, sendo essencialmen-te diferentes, assim deveriam permanecer. Cabe lembrar que esse mesmo plano tem sidocelebrado como um ícone do planejamento modernista. Manfredo Tafuri (1979) descre-ve o Plano Obus como a “mais elevada hipótese teórica do urbanismo moderno... o repo-sitório de uma nova escala de valores... uma estratégia de integração coletiva”.

Uma observação: conquanto o Plano Obus jamais tenha sido implantado, as formasde segregação espacial, previstas por Corbusier, já eram uma peça-chave no planejamen-to colonial francês. Não obstante, seria nesses guetos de nativos que a grande luta pela in-dependência da Argélia (Lamprakos, 1992) teria início. O aparato militar do regime co-lonial mostrou-se incapaz de penetrar, compreender e controlar o próprio espaço que elecriara, história magistralmente contada no filme de Gillo Pontecorvo, Battle of Algiers.

A GESTÃO ESPACIAL DA POBREZA

Ao narrar essas histórias no contexto contemporâneo do planejamento e da pobre-za, pretendo indicar os complexos legados da exclusão e da estigmatização territorial comque devemos nos confrontar. Desejo iluminar, em especial, aquilo que caracteriza as in-tervenções do século 20: a gestão espacial da pobreza. Detenhamo-nos agora, ainda quebrevemente, em dois paradigmas comuns da gestão espacial da pobreza e em como elespermanecem inadequados como modelos de planejamento.

O primeiro é mais conhecido por seu nome um tanto burocrático: urbanização de fa-velas. Popular na década de setenta do século 20, sob a forma de programas assistenciaislocais, a urbanização de favelas retorna na década de 1990. Embora associada à ideia, maisambiciosa, de regularização fundiária, é a urbanização de favelas, mais do que a própria re-gularização fundiária, que tem sido a via mais comum da gestão da pobreza. A urbaniza-ção de favelas é uma alternativa ao mesmo tempo humana e pragmática para a devastaçãoe a expulsão resultantes de demolições e remoções. Há, porém, inegáveis limitações à ur-banização de favelas. Tais limitações estão evidentes nos debates em curso sobre o Progra-ma Favela-Bairro, os quais são familiares aos arquitetos e urbanistas brasileiros.

No sul da Ásia há um programa semelhante e bem conhecido: o Slum NetworkingProject, em Indore, na Índia. Idealizado pela British Aid Agency, DFID, e implementadopela Indore Development Authority, esse projeto objetiva integrar as favelas ao sistema desaneamento da cidade. Uma ideia-chave do programa é assegurar que cada família na fa-vela seja servida por um banheiro próprio, por sua vez ligado ao sistema de esgotamentosanitário da cidade. Vencedor de prestigiosas premiações internacionais, do Prêmio AgaKahn ao Habitat, o programa, na realidade, foi um desastre. Em uma crítica mordaz, GitaDewan Verma (2000), uma das consultoras sênior do projeto, revela o quanto famíliaspobres são incapazes de pagar por banheiros individuais, e o quanto relutam em fazê-lo –

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elas não dispõem nem do espaço nem dos recursos necessários a tais instalações. Não obs-tante, os engenheiros não só haviam presumido que todos os moradores das favelas prio-rizariam mais do que qualquer coisa aqueles banheiros, como planejado um sistema desaneamento cuja ligação seria completa. Sem essa ligação completa, as redes se obstruíramrapidamente, deixando as favelas literalmente imersas na lama.

Esses projetos, bem-intencionados mas desastrosos, requerem um exame cuidadoso,por revelarem pressuposições e ideologias presentes na gestão espacial da pobreza. A maisimportante dentre elas é a que denomino “ideologia do espaço”. A urbanização de fave-las objetiva melhorar e valorizar o espaço físico, mas raramente conduz à valorização dosmodos de vida, à valorização do poder político, à valorização das redes sociais. O parale-lo com a gentrificação é óbvio. Assim, não é surpreendente que projetos de urbanizaçãode favelas dêem início a processos de gentrificação. Em muitos casos, as famílias pobressão expulsas, incapazes de arcar com a regularização imposta pelo processo. Na verdade,ao tomar o espaço simplesmente como um objeto a ser melhorado, a urbanização de fa-velas ignora os aspectos temporais da pobreza, esquece que, na realidade, os serviços dis-ponibilizados dificilmente podem ser sustentados pelos pobres urbanos, pois há uma in-compatibilidade entre a sistemática irregularidade do seu emprego e a regularidadeinstitucionalizada dos pagamentos que passam a dever na favela urbanizada.

A urbanização de favelas, portanto, pode se tornar uma estranha combinação de es-tigmatização territorial e nostalgia. Ela é caracterizada pela imaginação da “favela”, um es-paço de uma exótica diferença – tão absoluta quanto a casbá em quarentena de Corbu-sier – e, ainda assim, nas práticas de urbanização de favelas de planejadores e arquitetos,um espaço que pode se tornar lindo, um espaço que arquitetos e planejadores frequente-mente imaginam como uma atemporal “aldeia comunitária”. Esses planejadores e arqui-tetos são então surpreendidos quando, entre os pobres, agentes buscam resistir a esses am-bientes qualificados. Afinal, isso resulta, como Ismail Serageldin (1997) definiu, numanova “arquitetura do empoderamento” – essa em que, mediante as melhorias físico-terri-toriais, os pobres são largados ao seu próprio destino. Em minha obra, venho chamandoessa abordagem de esteticização da pobreza.

A ideologia do espaço tem uma longa história no planejamento e na arquitetura –ela fala ao determinismo ambiental, do qual esses profissionais parecem não poder se li-vrar; ela fala à combinação entre ordem visual e ordem funcional. Trata-se também deuma romantização, tal como a celebrada concepção de Hernando de Soto [2000], que vêos pobres como empresários heróicos, e o seu urbanismo informal como um exemplo derevolução popular. Cabe perguntar, porém, se melhorias físico-territoriais podem mudaro destino das favelas do Rio e dos slums da Índia, ou se não passam, como um crítico ob-servou, de um rearranjo de espreguiçadeiras enquanto o Titanic afunda (Auyero, 1999).

É provável que o maior desafio colocado pela urbanização de favelas, em relação àgestão espacial da pobreza, seja a realidade do urbanismo, aquela que um filósofo fran-cês, Henri Lefebvre (1974), designou como “a produção do espaço” – fronteira de desen-volvimento, onde o espaço é, de fato, mercadoria preciosa e circuito vital da acumulaçãode capital. Não é de se surpreender então que a urbanização de favelas tenha sido substi-tuída pelo que atualmente está sendo chamado de reassentamento conduzido pela comu-nidade. Por exemplo, em Mumbai, o Banco Mundial conta com organizações da socie-dade civil, tais como a SPARC – Society for the Promotion of Area Resource Centers, paraabrir espaço para a extensão de ferrovias e vias expressas. Milhares de moradores de ocu-pações informais e favelas demoliram, voluntariamente, suas próprias casas, e se muda-

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ram para assentamentos negociados pela SPARC. Isso, para a SPARC, é “fazer as pazes” coma cidade, já que os pobres não têm outra opção que não seja dar lugar ao desenvolvimen-to. Desse modo, a ideologia do espaço torna-se uma estratégia de produzir o espaço pa-ra um urbanismo de elite, para a cidade de excelência mundial que não pode admitir adesordem visual. O planejamento fará as pazes com essa cidade de excelência mundial, emesmo a favorecerá? Ou buscará confrontar e transformar a produção do espaço? Mui-tos dos que trabalhamos nessas partes do mundo olhamos com grande esperança para oBrasil, pois é aqui que a produção mesma do espaço está sendo confrontada pelo aparatodo planejamento.

Um segundo paradigma do controle espacial da pobreza é o populismo urbano. To-mei esse termo emprestado do livro seminal de Manuel Castells [1983], The city and theGrassroots. Numa análise influente, Castells designa as políticas de provimento de servi-ços aos assentamentos urbanos periféricos como populismo urbano, como cooptação dospobres pelo aparelho político do clientelismo. Isso também é gestão espacial da pobreza,pois se trata de prestar serviços e apoio a uma particular comunidade ou formação socio-espacial.

Essas formas de populismo – evidentes nos serviços provisionados pelas milícias ur-banas, tal como o Hezbolá, no Líbano – atravessam o espectro político. Sem dúvida, nossubúrbios ao sul de Beirute, na região conhecida como gueto xiita, ou Al-Dahiya, oHezbolá é o Estado de facto, provendo água, escolas, refeitórios, e mesmo controlando osprocessos de planejamento urbano e de reconstrução pós-guerra.

A Venezuela de Chávez, um dos mais controversos contextos de desenvolvimento domundo, é um exemplo desse populismo? Desde que chegou ao poder, Chávez está empe-nhado em usar os recursos gerados pelo petróleo venezuelano para mitigar a pobreza, pro-jeto que ele próprio intitulou “socialismo do petróleo”. Em comunhão com as ideias deSimon Bolívar, seu governo vem estabelecendo missões bolivarianas, iniciativas anti-po-breza que incluem escolas, clínicas cujo corpo de funcionários é composto por médicoscubanos, e postos de abastecimento em que os alimentos são subsidiados. Os gastos pú-blicos em setores-chave do desenvolvimento social aumentaram, e a pobreza parece ter seretraído. Mas, quando os preços do petróleo caem, como ocorreu recentemente, o petro-socialismo é capaz de se sustentar? E o que fazer com os subsídios para os ricos, que tam-bém fazem parte desse mesmo petro-socialismo, cujos incríveis subsídios concedidos aoscombustíveis beneficiam não os pobres que dependem de transporte público, mas espe-cialmente os proprietários de automóveis? A Venezuela continua a ser um dos países maisdesiguais do mundo, a despeito da suposta revolução bolivariana. Em uma dissertação emcurso na University of Califórnia, Berkeley, Carmen Rojas analisa esse “urbanismo revo-lucionário”, descobrindo sua hostilidade com alguns segmentos da pobreza urbana. Elaregistra as constantes expulsões dos camelôs, acusados pelos planejadores de Caracas de –e esse é um ponto sensível para mim, pois nasci em Calcutá – “ter transformado Caracasem Calcutá”. Para mim, a Venezuela de Chávez é um exemplo de “petro-populismo”, uminstrumento de clientelismo seletivo patrocinado pelo Fundo para o DesenvolvimentoNacional, um fundo de 14 bilhões de dólares despendido segundo a vontade soberana deChávez. Em um ensaio escrito há alguns anos, em parceria com Nezar Al Sayyad, intitu-lado “Modernidade Medieval”, argumento que essas várias formas de populismo, que de-veriam servir aos pobres, criam uma geografia fractal de enclaves, de sistemas privados degovernança e para-Estados que operam como senhores feudais medievos. Sob o populis-mo, a cidadania deve ser compreendida como algo condicional, parcial e situacional, pois

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os pobres são incluídos, mas no sentido mais dramaticamente reduzido de clientelismo.Na verdade, esses tipos de medievalismo questionam o próprio ideal moderno de cidade,de civitas.

O que pode ser feito então? Voltemos aos programas anti-pobreza que não empre-endem o controle espacial da pobreza – em outras palavras, que não buscam mitigar a po-breza localizada em uma comunidade ou região demarcada, e nem se valem dos instru-mentos do determinismo ambiental. Eles são, creio eu, bastante promissores.

O ENFRENTAMENTO DO “SOCIAL”

Um das mais importantes ações no âmbito da pobreza é o movimento pelo “direi-to à cidade” no Brasil, formalizado no Estatuto da Cidade. O Estatuto objetiva demo-cratizar o acesso a terra e a habitação nas cidades brasileiras, bem como democratizar oprocesso de gestão urbana. Ele inclui a afirmação de direitos coletivos, inclusive o direi-to ao planejamento urbano, o direito à captação da mais-valia, e o direito à regulariza-ção de assentamentos informais. Trata-se, como Edésio Fernandes (2007) observou, deum novo “projeto de cidade”, tradução, em termos espaciais, do “projeto social” propos-to por Henri Lefebvre.

O modelo brasileiro é também inovador em relação a outras ações empreendidas naAmérica Latina. Por exemplo, Bogotá tem sido aclamada mundialmente como um mo-delo de democratização do espaço urbano. Chamo essa espécie de planejamento urbanode “urbanismo pedagógico”, já que são exemplos de ações de planejamento implemen-tadas por prefeitos carismáticos, tais como Peñalosa, na intenção de criar uma pedago-gia da cidade – o respeito ao pedestre, a valorização do espaço público, a restrição ao au-tomóvel. Trata-se de um modelo importante que traz semelhanças interessantes comexperimentos urbanos no outro lado do mundo como, por exemplo, em Cingapura. Maso Estatuto da Cidade brasileiro é de uma espécie diferente. Em vez de propor um modode gerir o espaço, ele busca alterar os próprios modos pelos quais o espaço produz valore funciona ao mesmo tempo como uma mercadoria e um bem coletivo. Isso é um avan-ço em relação ao controle espacial da pobreza. No contexto africano, Abdoumaliq Simo-ne (2005) fala sobre o “direito à cidade” como o “direito a múltiplas aspirações”. A pro-messa do Estatuto da Cidade é a de que, mediante o planejamento, tal direito sejareconhecido e institucionalizado. Evidentemente, resta verificar se essa promessa foi, ounão, cumprida.

Há ainda outro tipo de programa anti-pobreza que acredito ser promissor: a prote-ção social. Esse é um termo que, tendo se tornado amplo, abrange uma amplitude deações que merecem ser examinadas. Uma delas é a transferência condicional de recursos:pequenos pagamentos feitos às famílias pobres, mas sob condições ante as quais lhes sãoconfiados vários itens de desenvolvimento social, tais como mandar as crianças para a es-cola, visitar postos de saúde, e assim por diante. Um dos programas de transferência con-dicional de recursos mais conhecidos é mexicano: o Programa Oportunidades, antes po-pularizado como Progresa. Focado principalmente nas mulheres, creditam-se a esseprograma substanciais decréscimos na pobreza. O programa persegue metas ao mesmotempo geográficas e econômicas, visando aos pobres, mas não admite discriminação localalguma, centralizando a alocação da transferência de recursos com a finalidade de desviar-se dos sistemas populistas de clientelismo. No contexto brasileiro, um dentre esses pro-

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gramas é o Bolsa Família, ao qual se credita a garantia da reeleição de Lula, no pleito de2006, pelos votos dos “de baixo”.

Os programas de transferência condicional de recursos são alvo de calorosos deba-tes. Alguns críticos vêem-nos como políticas neoliberais que meramente provêm incenti-vos monetários com a finalidade de transformar a “cultura da pobreza”; outros argumen-tam que são programas populistas, que mantêm, ou mesmo aprofundam, os sistemas declientelismo; e outros, ainda, defendem – e essa crítica é muito frequente em relação aoBolsa Família – que esses programas são realizados à custa do investimento a longo prazoem desenvolvimento, especialmente orientado a setores-chave como educação, habitaçãoe saneamento. Em um artigo na New Left Review, Francisco de Oliveira (2006) declara:“O Bolsa Família serve para despolitizar a questão da pobreza, transformando a desigual-dade em problema administrativo, vedando a possibilidade de qualquer projeto de desen-volvimento nacional ou transformação radical das relações sociais”. Mas há quem veja es-ses programas de forma diferente. De Janvry e Sadoulet (2004) argumentam que eles sãoum experimento social-democrático, devendo ser compreendidos como contratos sociais,com beneficiários, para a distribuição de um serviço. Talvez a interpretação mais interes-sante da transferência condicional de recursos venha de um antropólogo, James Ferguson(2008), imerso nos debates sul-africanos sobre a introdução da Concessão de Renda Bá-sica. Ele vê esse programa de proteção social como uma “renda cidadã”, em que se reco-nheceria uma espécie de associação e de solidariedade de toda a nação que transcenderiaos rituais políticos (frequentemente vazios), tais como votar, para incluir direitos à sobre-vivência e ao consumo.

A proteção social também está no centro das ações sobre a pobreza em Bangladesh.Nos últimos anos, venho pesquisando a configuração de suas instituições e de seus pro-gramas. Quase sempre reconhecidas por suas iniciativas de microcrédito, essas institui-ções de fato fazem algo mais, e algo bem diferente. Seguramente, é uma vergonha quetais instituições sejam conhecidas somente pelo microcrédito. O microcrédito, acredito,é um tipo de empréstimo de risco, em que a exclusão dos pobres do acesso às institui-ções financeiras é substituída pela inclusão, mas por uma forma severamente segmenta-da de inclusão. Em Bangladesh, essas instituições alcançam resultados bem distintos.Hoje, credita-se ao seu trabalho o que tem sido popularmente chamado de “paradoxo deBangladesh” – o de que este, que é um dentre os países mais pobres do mundo, afligidopor desastres naturais e instabilidade política, tenha realizado poderosos avanços em de-senvolvimento humano. A história do paradoxo de Bangladesh não é contada nos círcu-los internacionais do planejamento, mas é hora de fazê-lo. O trabalho de instituiçõesfocadas na pobreza é a chave para a compreensão dos avanços em Bangladesh. De fato,essas instituições, dentre as quais o Grameen Bank e a BRAC – Bangladesh RuralAdvancement Committee (atualmente Building Resources Across Communities) são asmais conhecidas, atendem a milhões de famílias, e são possivelmente as maiores institui-ções anti-pobreza do mundo.

No meu ponto de vista, há três elementos-chave no sucesso dessas instituições e deseus programas para a pobreza em Bangladesh. Primeiro, elas focam em crédito habitacio-nal e serviços para os pobres, uma ênfase que as coloca entre os programas de proteção so-cial à família. É assim que o Grameem torna possível que as mulheres mais pobres do mun-do tenham suas próprias casas. Esse modelo não é exclusivo do Grameen Bank. Na Índia,a SEWA – Self-Employed Women’s Association, que é o maior sindicato de mulheres domundo, organiza trabalhadoras do setor informal. Reconhecendo que raramente as mulhe-

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res têm acesso à propriedade da terra, informal ou não, a SEWA concede-lhes financiamen-to habitacional. Embora grande parte desse financiamento habitacional seja empregado pe-las mulheres em reformas e melhoramentos em suas casas, os empréstimos servem a umpropósito muito mais amplo. Eles constituem uma oportunidade de afirmar o direito dasmulheres à habitação, de insistir em sua participação na propriedade da terra, de reivindi-car a segurança do título de posse. E a SEWA faz isso registrando o nome delas nos títulosde propriedade, nas guias dos impostos prediais, nas contas de energia elétrica – em resu-mo, nos documentos formais e informais que constituem a agenda de reivindicações dospobres urbanos. Essas ações anti-pobreza não são, portanto, tão atreladas assim às finançasou ao crédito, mas à negociação da desigualdade social, à mudança das regras do jogo.

Segundo, essas instituições criam uma infraestrutura de desenvolvimento que seestende à maior parte da Bangladesh rural. O último relatório (2009) divulgado peloChronic Poverty Research Centre afirma que a infraestrutura, assim como os serviços detransporte e de saúde, são a chave para pôr fim à desvantagem espacial vivida pelos po-bres. Em Bangladesh, a BRAC, por exemplo, atende a cerca de 12 milhões de pessoas atra-vés de suas organizações comunitárias, clínicas de saúde e escolas primárias, e de projetosde economia popular e solidária, os mais recentes envolvendo setores como laticínios eavicultura. Tais infraestruturas não necessariamente substituem o papel do Estado; aocontrário, eu diria, pressionam o Estado a corresponder àqueles serviços.

Terceiro, e isso pode ser surpreendente: a chave para esses programas anti-pobrezanão é o crédito – a despeito de toda a propaganda que o próprio Grameen Bank faz cir-cular sobre o crédito como um direito humano. A chave está em poupar. Essas institui-ções encorajam, na verdade forçam, os pobres a poupar. Essa poupança permite não so-mente às instituições, mas também aos pobres, gerir os riscos do financiamento. Trata-sede uma gestão não do espaço, mas do tempo. Se concebemos a pobreza, nas palavras doantropólogo Arjun Appadurai (2001), como a “tirania da emergência”, então o valor deuma abordagem como essa fica evidente.

Esses programas de proteção social em Bangladesh não se engajam na gestão espa-cial da pobreza, mas são, tal como o é o direito à cidade, inevitavelmente espaciais. Poruma razão, ao atacar a pobreza rural, eles pretendem mitigar as desigualdades rural-urbanas e reduzir a torrente de imigrantes desafortunados do campo para a cidade. EmBangladesh, onde todas as maiores instituições anti-pobreza atuam em áreas rurais, atendência, sem dúvida chocante, é a de que, enquanto os indicadores de desenvolvi-mento humano continuam a melhorar nas áreas rurais, eles continuam a piorar nasáreas urbanas.

Penso que o planejador pode extrair lições muito importantes desses programas. Aprimeira, acredito, é a de que o planejamento tem que deslocar seu foco do uso da ter-ra para a propriedade. Esse é o caso do Brasil – e é o movimento acertado –, mas não oque estamos vendo nas outras partes do mundo. Ao focar por tanto tempo o espaço aoqual as coisas pertencem, os planejadores esqueceram-se de perguntar a quem as coisaspertencem. É claro que não há uma resposta simples para isso, pois há múltiplas e con-troversas respostas à questão: a quem as coisas pertencem? O modelo da propriedade pri-vada insiste no “direito de excluir”. Mas, nas cidades pelo mundo afora, o direito de ex-cluir é desafiado por aqueles que reivindicam o direito de não ser excluído.

A segunda, a de que arquitetura e planejamento terão que lidar com uma nova rea-lidade material, aquela da marginalidade avançada, da reestruturação econômica difundi-da tanto no norte quanto no sul global, a tal ponto que já não é mais possível fundamen-

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tar as ideias de justiça social na realidade do trabalho. De fato, como Ferguson (2008) ob-serva em relação à África do Sul, a informalização generalizada da economia sugere que aprópria noção de “índice de desemprego” é arcaica – “um indicador de meados do século20 inadequado à economia e à sociedade do século 21”. É por essa razão que os progra-mas de proteção social devem ser efetivamente programas anti-pobreza, e não se basearemna ideia de trabalho assalariado.

Finalmente, a de que o planejamento terá que se confrontar com um desenvolvi-mento associado ao gênero. A alavanca de muitos dos programas anti-pobreza nesse mi-lênio são as mulheres pobres. Antes meras vítimas indefesas, hoje as mulheres pobres dosul global são vistas como salvadoras. Muitos dentre esses programas que descrevi depen-dem de mulheres pobres. Por exemplo, a chave do sucesso do aclamado programa mexi-cano de transferência de recursos, Oportunidades, é a incorporação em seus quadros deOrganizações de Mães. O programa fundamenta-se na ideia de “co-responsabilidade”, fa-zendo das mães “as principais responsáveis por assegurar os resultados dos programas”. Ateórica feminista Maxine Molyneux (2006), acertadamente, pergunta se isso não seria um“altruísmo feminino a serviço do Estado”. De fato, estamos testemunhando uma “femi-ninização da responsabilidade e do dever”, em que as mulheres pobres estão carregandonas costas os pesados fardos do desenvolvimento comunitário, da mitigação da pobreza,e mesmo do que se pode chamar de planejamento (Chant, 2008). Esses fardos aprofun-darão a exploração associada ao gênero, ou alterarão as hierarquias de gênero?

Cada um desses temas tem um componente espacial, inevitavelmente. Na verdade,pode-se perguntar o que é o planejamento senão organização do espaço. Além do mais,esses três temas não podem ser abordados mediante técnicas de gestão espacial, como aurbanização de favelas ou a espacialização do clientelismo. Eles requerem novas formas designificação urbana, uma nova compreensão de justiça social, e a confrontação com hie-rarquias sociais. Tenho a esperança de que o planejamento, nesse novo milênio, será ca-paz de lidar com essas questões, superando, assim, o legado do determinismo ambiental.

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Ananya Roy é professorado Department of City andRegional Planning da Univer-sidade da Califórnia, Berke-ley. É também diretora deEducação do Blum Centerfor Developing Economies eco-directora do Global Metro-politan Studies Center. É au-tora de City Requiem, Calcut-ta: Gender and the Politics ofPoverty e co-editora de Ur-ban Informality: Transnatio-nal Perspectives from theMiddle East, Latin America,and South Asia. Em brevelançará Poverty Capital: Mi-crofinance and the Frontiersof Millenial Development.E-mail: [email protected]

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RESENHAS

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CARTOGRAFIAS SOCIAIS E TERRITÓRIO Henri Acselrad (Org.)Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2008

Ana Maria Daou Professora do Departamento de Geografia e do

Programa de Pós-graduação em Geografia/IGEO/UFRJ

Cartografias sociais e território é o título da coletâ-nea organizada por Henri Acselrad, pesquisador doInstituto de Planejamento Urbano e Regional IPPUR/

UFRJ, vinculado ao Laboratório Estado, Trabalho, Ter-ritório e Natureza ETTERN/IPUR/UFRJ. Lançada no fi-nal do ano de 2008, reúne artigos que trazem a públi-co reflexões que entrelaçam temáticas contemporâneasexpressivas de processos de transformações pelos quaisvem passando, desde os anos 1970, a produção de ma-pas e de representações espaciais. O tema é vasto e suacomplexidade amplia-se em face da crescente difusãodas novas tecnologias de informação geográfica, disse-minadas em experiências inovadoras por todo o mun-do nos últimos vinte anos.

Os artigos reunidos no pequeno volume que inau-gura a coleção, cujo título relaciona território, ambientee conflitos sociais no Brasil, não tratam da discussão dacartografia em sua acepção usual, qual seja, o “conjuntode estudos e operações científicas, técnicas e artísticasque orienta trabalhos de elaboração de cartas geográfi-cas”, como consta na primeira acepção do dicionárioHouaiss (2001). Tampouco é possível dizer que versamsobre mapa como “representação gráfica e convencional,em papel, cartolina, tela etc. dos dados referentes à su-perfície do globo terrestre, a uma região dessa superfície,à esfera celeste; carta geográfica” (idem). O propósito dapublicação é revelar um conjunto de questões e reflexõesrelacionadas aos mapeamentos participativos que, noBrasil, em que pese sua diversidade, têm sido denomina-das de cartografia social. Assim, o sugestivo epíteto espe-cifica e circunscreve uma outra modalidade de cartogra-fia em que sujeitos e coletividades se colocam nãoapenas ou não mais como usuários de mapas, mas como“fazedores de mapas” e intérpretes de suas cartografias.

Como indica Acselrad, as cartografias sociais de-lineiam um subcampo da cartografia, e este se particu-

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lariza pela ênfase na participação de não-especialistasnos processos de elaboração de mapas. Um vasto con-junto de experiências contemporâneas de mapeamen-to, embora se diferenciem pelas metodologias utiliza-das, pelos arranjos institucionais e financeiros e pelosobjetivos que encerram, abandona a perspectiva usualem que os mapas eram objetos acabados, utilizados pa-ra consulta. Nesses processos, os grupos que ocupam asáreas a serem mapeadas vêm a tornar-se parte ativa einteressada na elaboração de cartas, no levantamentode recursos, na definição de limites territoriais, entreoutras temáticas contempladas pelas cartografias so-ciais. O resultado são mapas, em papel ou em base di-gital, que carregam inúmeros potenciais, inclusive o depoderem ser frequentemente atualizados e reelabora-dos na proporção em que se ampliam as legendas e sealteram as referências espaciais neles inseridas, consti-tuindo cartografias dinâmicas ou situacionais.

A apresentação e o capítulo introdutório da cole-tânea situam a atualidade do tema e enfatizam particu-laridades assumidas pela temática no Brasil. “Distin-tos processos de disputas e equacionamento deconflitos na Amazônia brasileira têm se configuradocomo políticas públicas” e, nestes casos, o reconheci-mento do território, a delimitação do uso dos recursosnaturais ou as negociações relativas à demarcação deunidades de conservação e diversas territorialidadesconcorrentes têm certamente se favorecido das novasmodalidades de cartografia.

A coletânea apresenta a reflexão de nove autoresestrangeiros – em sua maioria geógrafos – inseridos eminstituições de ensino e pesquisa de universidades ame-ricanas e europeias (francesas e suíça). Nesses ambien-tes acadêmicos, desenvolveram-se debates e iniciativasefetivas que favoreceram a democratização das tecnolo-gias de informação geográfica correlatas a mudançassignificativas nos processos de consecução de mapas esua utilização através dos Sistemas de Informação Geo-gráfica. Essas mudanças tanto facilitaram quanto tor-naram complexa a tarefa de mapeamento de processossociais de expressão espacial. Os artigos trazem uma re-flexão crítica sobre experiências ocorridas em realida-des distintas e expressivas de disseminação das novastecnologias de informação por todo o mundo.

Desta forma, os artigos disponibilizados no livroCartografias sociais e território mostram o “estado da ar-te” em relação ao aprimoramento e ao uso “social”,

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“participativo”, da cartografia ancorada nas tecnologi-as digitais. Seja no contexto internacional, seja no con-texto nacional, é significativo que desde as primeirasexperiências de mapeamento participativo tenha sidorecorrente a mobilização de diferentes esforços porparte de universidades, agências dos governos e organi-zações não-governamentais.

Assim, os avanços tecnológicos assumiram umaimportância primordial para o desenvolvimento de umnovo modo de fazer cartografia. Tanto houve uma pro-fusão das imagens do conjunto do planeta quanto umaampliação espetacular do uso das tecnologias que vie-ram facilitar, estimular e democratizar a produção demapas e imagens de lugares outrora remotos ou de par-ca visibilidade. Os SIGs (Sistemas de Informação Geo-gráfica) e os GPS (Global Positioning System) – cujoacesso foi difundido para além das universidades nosanos 1990 – têm possibilitado uma significativa ampli-ação do uso dos mapas e de sua apropriação, as maisdistintas e inovadoras, seja por instituições do governo,seja por ONGs e grupos sociais subalternos que, muni-dos de seus mapas, se veem capacitados a negociar e areivindicar terras e recursos.

Sheppard, do Departamento de Geografia daUniversidade de Minnesota, apresenta a trajetória doque veio a ser o SIG crítico como resultado da combi-nação de forças e interesses de profissionais conhecedo-res dos SIGs e aqueles identificados com a teoria socialna geografia humana. A implantação de um programade pesquisa que envolveu profissionais das duas áreaspossibilitou uma profícua interlocução entre os des-confiados profissionais. Resultaram daí significativosavanços para a criação de contextos em que o softwaredo SIG viesse a se tornar parte de um processo decisó-rio democrático, com a anexação de informações lo-cais, com adicionais que permitiram a incorporação deoutras mídias aos softwares.

Desde então tem sido crescente o uso das tecno-logias de informações geográficas para os mais diversosfins na sociedade contemporânea. São cada vez maio-res as demandas de grupos sociais subalternos no sen-tido de se “inserirem“ no mapa, delimitarem seus ter-ritórios e darem a conhecer seus espaços vividos. Háinúmeros relatos de mapeamentos participativos emcontextos africanos, asiáticos e, embora predominemas ações entre populações camponesas ou em socieda-des tradicionais, são também significativas as experiên-

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cias de uso das novas tecnologias em contextos urba-nos, seja no planejamento do território, seja no levan-tamento dos patrimônios identitários.

A coletânea promove uma refinada reflexão sobreos desdobramentos das novas formas de produzir ma-pas com inúmeras resoluções, cartogramas, mapas emmídias digitais, automapeamentos a serem posterior-mente georreferenciados entre outros resultados, assimcomo traz inúmeras questões teórico-metodológicasrelacionadas ao uso participativo de tecnologias de in-formação geográfica. Apresenta experiências levadas atermo em outros países, as quais estimulam a compa-ração com os casos brasileiros. São significativos osexemplos contemporâneos de “populações tradicio-nais” – outrora fadadas ao silêncio ou ao congelamen-to no tempo e no espaço como efeito do progresso dopaís – que ganham voz e preenchem, a partir de seusreferenciais, o mapa do Brasil com novas legendas. Oacesso às tecnologias de informação, favorecido pelaatuação de organizações não-governamentais e pelaimplementação de projetos ligados às universidades,tem lhes permitido fazer frente à disputa pelo territó-rio, que resulta da expansão da fronteira e das dinâmi-cas territoriais recentes que incorporam os recônditosdo país aos fluxos e às redes nacionais e internacionais.

Levy problematiza o valor do mapa na sociedadecontemporânea em que a mobilidade crescente das po-pulações e as dinâmicas do presente remetem a ideiasde “espaços descontínuos”, de territórios parcialmenterecobertos, ou de espaços que se superpõem sem quenecessariamente se comuniquem, como são propostasas articulações entre territórios e redes. Tais fenômenosquestionam a cartografia ancorada na métrica euclidia-na, ao mesmo tempo contínua, contígua e uniforme, epromovem o desafio relativo à inclusão no mapa degeografias dinâmicas de referenciais simbólicos super-postos nas paisagens cotidianas.

A coletânea, além das contribuições específicas,tem o mérito de trazer para o público brasileiro a sele-ção e a tradução de artigos que, em conjunto, levantaminúmeras e complexas questões relativas ao uso da car-tografia articulada às tecnologias de informação geo-gráfica. O fenômeno nas últimas quatro décadas temalterado as características e o papel dos mapas na socie-dade contemporânea, tema cujo interesse tem sido re-dobrado através de diversas experiências no caso brasi-leiro, e que tem possibilitado o empoderamento de

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diferentes grupos sociais, como quilombolas, gruposindígenas, populações tradicionais. É crescente a mo-bilização de esforços institucionais e de coletividadesno sentido da utilização dos SIGs e das tecnologias deinformação em diferentes contextos sociais, iniciativasestas que, de modo crescente, vêm dando suporte àsdisputas por terras, ancorando reivindicações de garan-tias de acesso aos recursos naturais ou reivindicando amanutenção dos patrimônios identitários.

No Brasil, a discussão reflexiva sobre o uso dastecnologias de informação geográfica associada aosprocessos decisórios que privilegiam a participação deagentes sociais no uso dos SIGs tem sido reduzida. Oscasos apresentados por Acselrad e Coli sobre cartogra-fias sociais, mapeamentos participativos, ou o simplesuso de mapas convencionais no âmbito de um proces-so de negociação têm se favorecido da atuação de an-tropólogos e sociólogos. Neste sentido, a participaçãode geógrafos e cartógrafos nas equipes e na produçãoda reflexão sobre os processos em jogo vem sendo pou-co evidenciada, e isso vale também para as discussõesteórico-metodológicas relacionadas ao uso das carto-grafias participativas.

A cada artigo se segue uma rica bibliografia quedisponibiliza para o leitor brasileiro uma vasta seleçãode trabalhos – em inglês ou em francês – de autores,perspectivas da produção e reflexão sobre os usos so-ciais das tecnologias de informação na elaboração demapas. A produção sobre o tema remonta aos anos1970, e é notável o crescimento dos títulos nos anos1990, quando o uso dos SIGs e do GPS se disseminoumundialmente. É significativo o avanço da discussãoteórica e metodológica sobre as potencialidades e asrestrições promovidas pelo uso das tecnologias de in-formação geográfica em experiências no campo e noscontextos urbanos em âmbito internacional. São varia-dos os trabalhos sobre o uso dos recursos entre popu-lações autóctones, mapeamento de recursos naturais,gestão de águas e uso da terra, entre outras temáticascontempladas. A avaliação da dimensão da participa-ção e da gestão do território, do meio ambiente, ouainda as cartas multimídias no debate de políticas pú-blicas e o uso dos SIGs no ensino da geografia contem-plam sugestivo conjunto de questões, como sugeremos títulos em francês.

Com as tecnologias de informações geográficas,os mapas passaram a ter como suporte o meio magné-

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tico, que ampliou de forma inédita a inclusão de múl-tiplas variáveis em um mesmo mapa. No entanto, asquestões suscitadas pelos mapeamentos participativossugerem que uma de suas riquezas ou potencialidadesreside sobretudo nos processos desencadeados, sejamos de elaboração das cartas, sejam os procedimentosque permitem o levantamento de variáveis socialmen-te relevantes e, ainda, as negociações que o desenhodos mapas oferece. Muitas vezes, na ausência de polí-ticas públicas, os projetos de mapeamentos partici-pativos tornam-se oportunos para que as populaçõesmapeiem recursos e necessidades expressas na multipli-cidade das legendas ou traduzidas por meio de reivin-dicações junto às agências do governo.

Cartografias apoiadas por computador contribuí-ram enormemente para a profusão dos mapas e para autilização crescente destes recursos, de tal forma que ca-da indivíduo possa se situar no mundo, reconhecer o seuchão na superfície do planeta ou viajar por sua vizinhan-ça a partir de uma imagem do Google Earth. Naturali-zam-se assim os procedimentos de projeção espacial an-corados nas coordenadas geográficas e a capacidade dese situar em relação aos outros. Tais processos ganhamenorme complexidade ao envolverem populações atéentão distanciadas das formas letradas e científicas de re-presentação espacial, ou mesmo por abarcarem sujeitosnão familiarizados com a projeção bidimensional do es-paço ancorada nas coordenadas geográficas. Os recursostecnológicos parecem promover um atalho, e são demais fácil apreensão que os mapas tradicionais.

A diversidade de experiências entendidas comocartografias sociais ensejam questões relativas ao po-tencial de mobilização carreado por esses processos,que podem estimular o surgimento de novas assime-trias sociais. Em sua positividade, a atuação de popula-ções locais nos processos de mapeamento tem estimu-lado afirmações identitárias, traduzidas na ideia deempoderamento, e parece promover um suporte para aelaboração de uma narrativa sobre o espaço, o territó-rio, a paisagem. Narrativas estas apoiadas nos referen-ciais compartilhados pelos sujeitos envolvidos nas ofi-cinas e nos processos de consecução das novascartografias. Neste sentido, não se trata apenas de seinserir no mapa ou de ser inserido no mapa, mas de seinscrever no mundo.

Diversas iniciativas que propõem a inclusão depopulações locais nos processos cartográficos têm se

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disseminado mundialmente desde os anos 1990. NoBrasil, conforme o balanço apresentado por Acselrad, jáno final dos anos 1980, é possível reconhecer três pro-cessos significativos para o notável aumento do mapea-mento participativo entre os anos de 2005 e 2007. Éexatamente na Amazônia que um maior número de ex-periências vem ocorrendo, e através delas, novas territo-rialidades se delineiam no mapa da região. O caso daReserva de Mamirauá, em 1992, expressa as demandase negociações relacionadas ao mapeamento de áreasprotegidas, vinculadas ao sistema nacional de unidadesde conservação; uma outra situação pioneira foi a deli-mitação de terras tradicionalmente ocupadas, como é ocaso das reservas extrativistas, e um terceiro exemploparadigmático é o caso da Grande Carajás, em que umenorme mapa – originalmente em suporte de papel,que depois foi ampliado para ser mostrado à populaçãodurante uma audiência pública–, permitiu que parte dapopulação envolvida fortalecesse sua luta com vistas àgarantia da posse e ao acesso aos recursos naturais.

Embora sejam numerosas as experiências e osprojetos realizados junto a populações situadas sobre-tudo na Amazônia, fixadas no campo e envolvidas emprocessos de demarcação de territórios tradicional-mente ocupados ou de unidades de conservação, nocontexto brasileiro não estão de todo ausentes as expe-riências que privilegiam a inserção de populações urba-nas em processos de planejamento e gestão territorialparticipativos. Nos dois contextos, os processos de ela-boração de cartografias sociais relacionam-se a disputasterritoriais e a disputas cartográficas, pois, como indi-cam Acselrad e Coli, mapas são “abstrações do mundo”comprometidas com algum ponto de vista.

Se as cartografias sociais se ancoram em longa ca-deia de recursos tecnológicos e abstrações que per-mitem aos sujeitos sociais se perceberem em um con-junto mais amplo, partem invariavelmente darepresentação do espaço próximo, conhecido – cujoslimites são mediados pelas práticas e pelos saberes da-queles que interagem com as equipes detentoras do co-nhecimento técnico nas etapas de levantamento dosdados, no registro e no georreferenciamento, ou ainda,na leitura pública dos mapas tradicionais, como suge-rem os relatos das experiências brasileiras apresentadasna coletânea. Assim, as implicações que as cartografiassociais promovem internamente nos grupos onde sãoproduzidas merecem o tratamento analítico. Se muitos

dos projetos de mapeamento participativo pretendemdar voz a segmentos sociais subalternos, é preciso terclareza em relação às estruturas de poder nas quais seinserem as experiências. Ao discutir o lugar dos mapasnas abordagens participativas, Joliveau enfatiza a perti-nência da questão em face das assimetrias que os pro-cessos de mapeamento desencadeiam, seja por veicula-rem novos conhecimentos, seja por darem acesso arecursos tecnológicos e a conhecimentos tradicionaisde forma inédita.

Pesquisas sobre “empoderamento, marginalizaçãoe participação pública” nos SIGs foram realizadas porpesquisadores americanos desde os primórdios da uti-lização das novas tecnologias. É, portanto, vasta a pau-ta de pesquisa para aqueles que têm se preocupadocom os usos contemporâneos dos mapas, com as car-tografias sociais e com os mapeamentos participativoscujo resultado promove a emergência de variadas terri-torialidades, as quais colorem, animam, concorrem ouse superpõem no grande mapa da nação. Neste senti-do, é sugestivo o mosaico composto por imagens decartografias sociais, mapeamentos etnoecológicos, ma-peamentos culturais, mapeamentos participativos oudiagnósticos ambientais que ilustram a capa do livroCartografias sociais e território.

A discussão sobre o potencial heurístico e as im-plicações sociais do uso das tecnologias junto às popu-lações e ao planejamento territorial vem se desenvol-vendo desde os anos 1990 fora do Brasil, como indicamos artigos de Albertus Pramono, Eric Sheppard, JacquesLévy, Jeremy W. Crampton, John Kryiger, KrusnawatiSurinata, Luis Régis Coli, Peter Hershok e ThierryJoliveau. Ainda assim, Sheppard considera ser reduzidaa reflexão sobre os processos desencadeados pela utiliza-ção do SIG crítico, seja do ponto de vista dos planeja-dores, seja na perspectiva dos sujeitos sociais envolvidosem trabalhos, programas e projetos que se favorecemdas tecnologias de mapeamento.

A observação estende-se ao caso brasileiro em queé especialmente reduzida a reflexão feita por geógrafose/ou cartógrafos em relação à discussão teórico-meto-dológica vinculada ao uso dos SIGs e das novas tecno-logias em projetos de mapeamento participativo ou douso das cartografias sociais. Tal ausência é mais signifi-cativa por não ser correlata à crescente demanda e efe-tiva atuação de profissionais de geografia com domíniodas novas tecnologias de informação geográfica.

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Considero a coletânea um estímulo à reflexão so-bre as diferentes experiências relacionadas a processoscartográficos no Brasil, assim como ao debate críticosobre os usos das novas tecnologias, seus impasses e es-tratégias utilizadas em situações particulares de mape-amento. Tais contribuições certamente serão profícuaspara o equacionamento dos desafios que os processosde cartografia contemporâneos trazem. Além do reco-nhecimento do território comum – questão de funda-mental interesse na solução dos conflitos relacionadosaos processos jurídicos de demarcação de terras e aces-so aos recursos –, as potencialidades que as novas mo-dalidades de cartografias participativas promovem sãosignificativas, pois podem vir a revelar, de forma inédi-ta, visões de mundo e marcadores simbólicos dos espa-ços pouco valorizados nas cartografias tradicionais,dando visibilidade a distintas modalidades de demar-cação e aos usos sociais do espaço que processos demo-cráticos ensejam.

ESPAÇO PÚBLICO: DO URBANO AO POLÍTICO Sérgio Luís AbrahãoEd. Annablume/Fapesp, 2008, 1ªed.

Sarah Feldman Professora livre docente do Programa de Pós-

graduação em Arquitetura e Urbanismo da EESC–USP

O livro Espaço Público: do urbano ao político, deSérgio Luís Abrahão, traz importantes contribuiçõespara o debate e a reflexão sobre o espaço público – te-ma que, nas últimas duas décadas, vem mobilizandomúltiplos campos disciplinares. O argumento que es-trutura o livro é a atribuição de uma dimensão políti-ca à materialidade dos espaços urbanos, que Abrahãodetecta como elemento persistente nos trabalhos de-senvolvidos na área de Arquitetura e Urbanismo.

O autor situa a origem desta articulação na análi-se crítica do urbanismo modernista formulada na dé-cada de 1950. É a partir desse momento que, em opo-sição ao “espaço racionalizado”, as relações sociais noespaço urbano são retomadas como valores positivosda vida urbana, e são mobilizados conceitos, métodosde interpretação do espaço e proposições de urbanismo

que levam à perspectiva do que o autor define como“uma forma de materializar no urbano o espaço políti-co das sociedades democráticas” (p.177).

O autor historiciza a construção conceitual deste“espaço público político” a partir da interação de idei-as formuladas no âmbito da filosofia, sociologia, an-tropologia, geografia com proposições urbanísticas. Opercurso delineado por Abrahão destaca três momen-tos de inflexão nesse processo. Os Congressos Interna-cionais de Arquitetura Moderna (CIAMs), quando asbases para as propostas de “centros cívicos” e para pro-jetos que conferem às ruas o estatuto de lugares de en-contro e de reunião da comunidade são introduzidaspor Jose Luis Sert, Siegfried Giedion e por arquitetosdo Team X Group, como Peter e Allison Smithson. Osanos de 1960, período em que os estudos de JaneJacobs e de Henri Lefebvre, pautados na observaçãoda vida social orgânica e espontânea de comunidades,assim como os métodos analíticos desenvolvidos porAldo Rossi, reforçam esta perspectiva humanista dascidades. E o período mais recente, em que esta dimen-são humanista dá lugar a uma dimensão política queinclui a totalidade do território urbano. A cidade pas-sa a ser entendida como lugar cívico. Amplia-se, nessemomento, o leque de abordagens sobre o espaço pú-blico que destacam os impasses e a crise dos valorescontemporâneos. Estudos realizados por Michel Brill,Sharon Zukin, Gilles Lipovetsky e Rosalyn Deutscheexpressam esta diversidade, que Abrahão qualifica co-mo “polifonia”. Nestas formulações, ganham impor-tância concepções de espaço público moldadas noscampos da filosofia e das ciências sociais, destacando-se os trabalhos de Hanna Arendt, Jürgen Habermas eRichard Sennet.

Ao mesmo tempo em que recupera esta tramaconceitual, Abrahão detecta sua repercussão em inves-tigações e em experiências de planejamento urbano de-senvolvidas no Brasil. Mostra a mudança da aborda-gem da rua, na década de 1970, para uma abordagemdo espaço público, na década de 1990, e a relação des-te deslocamento a contextos políticos diversos – o pe-ríodo militar e o período democrático, respectivamen-te. Mostra, ainda, que nos estudos realizados nosúltimos vinte anos, prevalece o debate sobre o chama-do “recuo do espaço público”, associado às mudançasna produção e na gestão do espaço urbano determina-das pelo neoliberalismo.

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No que se refere ao debate brasileiro, o livro trazuma preciosa recuperação da figura do arquiteto Car-los Nelson Ferreira dos Santos. Em um capítulo intei-ramente dedicado ao seu percurso intelectual e profis-sional, mostra seu pioneirismo como pesquisador eurbanista devotado à re-significação do espaço públicocomo lugar político. Na análise dos trabalhos de Carlos Nelson desenvolvidos na Favela Brás de Pina, ainda como estudante, no bairro do Catumbi e noconjunto Selva de Pedra, nos anos de 1970, assim co-mo na análise de sua dissertação de mestrado e de de-zenas de textos que publicou em revistas especializadas,Abrahão apresenta os vínculos que manteve com a an-tropologia social, sua atuação política na prática dourbanismo, todas as referências internacionais que mo-bilizou em suas críticas ao que denominava “planeja-mento racionalista-progressista”, além do enfoque cen-tral dado à rua em seus projetos e reflexões.

Ao utilizar o percurso de Carlos Nelson comosíntese da reflexão desenvolvida no Brasil sobre o espa-ço público político, o livro traz uma contribuição rele-vante para a historiografia do urbanismo, pois ajuda acompreender a combinação de fatores locais envolvi-dos na construção e a apropriação de ideias no campodo urbanismo.

Finalmente, gostaria de destacar um segundo pla-no de leitura permitido pelo livro. Na recuperação datrajetória do debate sobre o espaço público, em parale-lo às evidências apontadas por Abrahão, pode-se dis-tinguir um discurso exaltando os atributos e a reto-mada da vida das cidades tradicionais, estruturado deforma enfática e persistente em oposição aos princípiosdo Movimento Moderno. Há um determinismo nestasargumentações que permite vislumbrar a construçãodo que John R. Gold chama “as grandes narrativas so-bre o Movimento Moderno”.1 Ou seja, há um discur-so revelado de forma quase clandestina no livro, queexplicita ambiguidades e simplificações em relação aoideário construído nos CIAMs anteriores à década de1950 que merecem ser exploradas.

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1 Gold, John R. The Experience of Modernism. Modern architects andthe future city 1928-1953. Londres. E & FN Spon, 1997, pp.3-6.

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