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Revista Aproximação – 2° semestre de 2008 – N° 1
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao 1
Revista Aproximação (Revista eletrônica dos estudantes de graduação em Filosofia da UFRJ)
Volume 1 – Edição 2008/02
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
A Revista Aproximação é uma publicação acadêmica eletrônica especializada em Filosofia. Seu objetivo principal é veicular o trabalho de pesquisa dos graduandos da UFRJ. Estamos abertos, entretanto, a qualquer proposta cujo principal interesse seja o
da pesquisa filosófica.
© Instituto de Filosofia e Ciências Sociais / Universidade Federal do Rio de Janeiro
Expediente – Comissão Editorial
Fernanda Krauss Campello, Filipe Ferreira Pires Völz, Victor Galdino Alves de Souza, Vinícius Moraes Rezende de Carvalho.
Conselho Editorial
Carolina de Melo Bomfim Araújo, Celso Martins Azar Filho, Ethel Menezes Rocha, Fernando José de Santoro Moreira, Franklin Trein, Guilherme Castelo Branco, Marco Antonio Caron Ruffino, Marcus Reis Pinheiro, Mário Antônio de Lacerda Guerreiro,
Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa, Pedro Costa Rego, Pedro Duarte de Andrade, Rafael Mello Barbosa, Ricardo Jardim Andrade, Ulysses Pinheiro, Wilson John Pessoa
Mendonça.
Contatos:
[email protected] Índice Editorial ........................................................................................................................... 2 A busca do necessário na dialética do Ser e do parecer no livro II de A República ........ 4 A melancolia freudiana em Benjamin: um estudo barroco sobre a modernidade ........... 9 Loucura e genialidade na filosofia de Arthur Schopenhauer .........................................18 O povo em armas: democracia e violência em Spinoza ................................................ 27 O sentido de uma filosofia brasileira ............................................................................. 43
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EDITORIAL INAUGURAL
Dá-se a público, enfim, o primeiro número da Revista Aproximação. A jornada que conduziu até estas linhas foi longa e árdua. Acreditamos ter dado o primeiro passo rumo ao nosso objetivo: o de suprir a carência de publicações em nível de graduação em filosofia na UFRJ e de servir como veículo para a investigação filosófica original, ainda que incipiente, de nossos companheiros de curso. Todo graduando deve perguntar-se em algum momento de sua carreira: "como farei filosofia?". E essa pergunta deve provocar questões e aporias a nível conceitual, pois envolve ainda a da natureza específica do exercício filosófico, o seu caráter necessário ou contingente; além disso, acaba por desenvolver, necessariamente, os nebulosos dilemas acerca de questões como a vocação para a filosofia ou o talento filosófico. Estas e outras permanecem insolúveis até agora -- e duvidamos que a existência de nossa módica revista seja sequer um tijolo na edificação interminável de suas soluções. Todavia, a mesma pergunta "como farei filosofia?" impõe uma série de outras a nível prático. São algumas dessas questões que a Revista Aproximação propõe-se a resolver.
As sociedades complexas que historicamente têm institucionalizado a Filosofia são obrigadas a deixar de lado ou embrulhar como peça de museu um dos ideais preconizados pela mesma disciplina que põem em relevo. A vida contemplativa. O exercício da filosofia como prática institucional (acadêmica) exige dos seus aspirantes mais do que a postura de sábios, exigindo também a de técnicos, secretários ou professores. O conjunto de aptidões requisitado é mais amplo do que o manuseio de conceitos. À moção de publicar um trabalho conjuga-se a ordem de problemas de caráter institucional: normas técnicas e princípios editoriais que os veículos devem necessariamente seguir. Nesse sentido, a Revista Aproximação, como revista acadêmica, propõe-se como princípio editorial máximo o de ser o princípio daqueles que estão principiando. Isso pode significar, para alguns, que a revista não dispõe de critérios. Nada mais distante da verdade: a Revista procura publicar, em regime espartano, apenas artigos de graduandos cuja experiência com publicações acadêmicas seja pouca ou mesmo nula.
A vida acadêmica de um graduando pode ser reduzida a três passos: 1) integralização do currículo 2) eleição de um tema/orientador 3) pesquisa e trabalhos voltados ao tema eleito. Entre os passos 2 e 3 uma linha retilínea costuma seguir-se. No entanto, entre o primeiro e o segundo passos costumam, ao contrário, acontecer muitas voltas e indecisões. Nesses desvios uma quantidade enorme de reflexões não chega a ganhar voz nem acabamento. A Revista abre suas portas para esses "ensaios de ocasião".
A revista também serve como um laboratório para os professores da graduação. Espera-se que a publicação seja capaz de proporcionar uma amostra, ainda que pequena, das primeiras inflexões do conteúdo depositado nos cérebros dos graduandos. A publicação passa então a servir como uma ferramenta para a análise das tendências e carências de nossa faculdade -- como a maioria dos graduandos é egressa do ensino médio, a revista é capaz de coletar dados objetivos para o debate sobre a presença ou ausência de ambiente filosófico nas nossas escolas, sobre a presença -- ou ausência -- de uma formação filosófica no ensino brasileiro.
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Para terminar, gostaríamos de registrar aqui um sincero agradecimento a todos os que contribuíram para a realização desta primeira edição através de pareceres, sugestões, ajuda técnica, participação no Conselho Editorial da revista, e/ou até mesmo através da simples confiança depositada em nosso projeto. Somos especialmente gratos ao doutorando Renato Bittencourt, da UFRJ, que contribuiu de maneira essencial para que chegássemos até estas linhas, que marcam a concretização da etapa inicial da nossa jornada. Deixamos os leitores, agora, com a edição inaugural da Revista Aproximação, que conta com alguns dos trabalhos apresentados no V Seminário de Graduação em Filosofia da UFRJ.
Comissão Editorial - Revista Aproximação.
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A BUSCA DO NECESSÁRIO NA DIALÉTICA DO SER E DO PARECER NO LIVRO II DE A REPÚBLICA
Luciano Brazil Graduando em Filosofia da UFRJ
“Ora vamos lá! Fundemos em logos uma cidade. Serão, ao que parece, as nossas necessidades
que hão de fundá-la”. (Platão, 2007, 369c).
Resumo: No vigor do questionamento acerca da justiça, surgem as noções de aparência e realidade, verdade e falsidade, justiça e injustiça; bem como a relevância dessas dicotomias perante a necessidade e a felicidade. Na plenitude dessa questão, Platão constrói no livro II de A República uma dialética que visa conciliar o problema da aparência com a justiça e a felicidade, e a constrói a partir de um bem comum, a cidade justa. Nessa dialética, impera o valor que a aparência precisa ter perante uma vontade de justiça.
Palavras-chave: Justiça. Ontologia. Platão.
O esforço de Platão em expor conceitualmente a justiça parece tão mais um
esforço entre uma oposição já bastante difundida no ocidente; o Ser e o não-Ser, a
realidade e a aparência, verdade e falsidade. A leitura de A República evidencia essa
problemática do início ao fim, que, entretanto, mostra numerosas faces e numerosos
obstáculos a ser ultrapassados. Mas não é antes uma busca meramente conceitual, é,
sobretudo, uma tentativa de estabelecer uma verdade que desague na vida prática, uma
verdade que se apresente em existência. É, pois, o esforço de aprofundar radicalmente
toda a questão do pensamento nas suas diversas interrogações.
Neste artigo, pretendo traçar um esboço a partir da discussão do livro II que
perpasse de um modo geral e ligeiro estes elementos discutidos e que têm sua forma
decisiva em todo o diálogo A República. Ver nesses elementos sua importância, desde o
argumento do livro que serve de pórtico para o restante da obra, ou seja, aquele de
Trasímaco, o de que a justiça é aquilo que está no interesse do mais forte (Platão, 2007,
338c), cuja aporia que fecha o livro I abre o livro II e revigora o nosso protagonista
Sócrates a seguir seu caminho filosófico de investigação através do logos, através de
uma gênese da polis e do trabalho; tarefa que deságua na questão da educação e que
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segundo o modelo, não apenas ático, mas de toda a Hélade, se liga intimamente à
questão da poesia e da mitologia. Portanto, a tarefa do artigo é fazer enxergar como a
dialética do Ser e do parecer animada no livro II se estende e determina cada passo dado
pelo velho protagonista na composição da cidade justa, quer seja em crítica pedagógica,
quer seja em teoria do conhecimento, quer seja, enfim, como estatuto ontológico da
justiça do justo. Vamos à tarefa.
No livro II, o mito proferido por Glauco dá continuidade a uma investigação
filosófica levantada no início do livro I, que tinha por protagonistas Sócrates, o velho
Céfalo e seu filho, e o sofista Trasímaco. Glauco, que até então participava como
ouvinte da discussão, adentra no assunto a fim de renovar o problema defendido pelo
sofista, elevando a tese deste a um limite extremo, que é o usufruto de possibilidades da
maneira mais individual possível: sem ser notado por ninguém. Nesse sentido, a justiça
é uma convenção. É porque existe o constrangimento perante a aparência que se busca
uma maneira justa de agir. Mas o interessante é que a aparência de justiça não resolve o
problema; pelo contrário, ela o duplica. Isso significa que o justo pode ser justo tanto na
aparência quanto na realidade, e da mesma forma o injusto; são quatro possibilidades.
Decorre disso que a verdadeira justiça só poderá realizar sua perfeição se ignora,
sobretudo, a aparência que lhe cobre, ao passo que a verdadeira injustiça, se torna
perfeita, na medida em que permanece o máximo possível no limite de mera aparência.
Lembremos que a discussão omitida aqui, do livro I, é uma discussão que se
pergunta não somente a oposição justiça/injustiça, mas que busca mostrar em qual das
duas há a felicidade. O que vemos no início do livro II é uma tentativa de separação
mais radical a respeito da justiça e da injustiça e onde encontraremos a felicidade. Ao
passo que se supõe a injustiça como um privilégio da aparência e a justiça não, parece
haver aí implícita uma conotação moral, ou ao menos, assim feita a divisão, restaria
indagar em qual das duas oposições há efetivamente uma superioridade qualitativa. É o
que fazem Glauco e Adimanto nesta primeira exposição do livro II. Primeiro Glauco,
tentando se convencer do contrário, defende que (Platão, 2007, 361a) “O supra-sumo da
injustiça é parecer justo sem o ser” e, posteriormente, Adimanto que (Platão, 2007,
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365c) “uma vez que a aparência subjuga a verdade, e é senhora da felicidade, é para este
lado que devemos voltar-nos por completo”.
Na conclusão do discurso dos dois irmãos, vemos nascer pela boca de Sócrates
uma cidade justa. Uma fundação em aparência, em logos, e em “letras grandes”. É que a
justiça de um único se realiza na justiça de um todo que é maior. Não é do indivíduo
para a cidade, mas da cidade para o indivíduo, que devemos compreender uma justiça
atrelada à felicidade. A dialética ontológica entre o Ser e o parecer ganha conformidade
na fundação da cidade justa; um mundo sensível que não seja destituído do inteligível,
mas que esteja afirmativamente em pleno acordo com as Formas perfeitas.
A fundação ocorre numa busca pelo necessário1, mas em um necessário que não
é exclusivamente material ou ideal. Se nos indagarmos onde se insere a origem desse
necessário a que Sócrates se refere, perceberemos que ele surge no cerne da dualidade
entre inteligível e sensível. É preciso lembrar que, de início, Sócrates inflama a cidade
de excessos, mas posteriormente a descobre muito incapaz de dar conta de si própria –
estamos falando do livro IV, cuja reflexão acerca da pobreza e da riqueza remete tanto
aos guardiões quanto ao cumprimento das demais artes. Acerca disso, é como se a
necessidade material expusesse outra necessidade, para além do material, como se o
necessário fosse um ponto de equilíbrio e de divisão que parte do plano material para o
plano imaterial. Isso permite compreender que o Ser e o parecer não se esgotam cada
um em si, mas que mantêm uma relação inerente.
Cabe notar que podemos interpretar o discurso dos irmãos de Platão; há em suas
palavras elementos suficientes para compreender uma forçosa intangibilidade a respeito
da superioridade da justiça. O que prevalece é a vontade de tornar a justiça uma virtude,
e isso é consensual tanto em Glauco e Adimanto, quanto em Sócrates. Com isso, fica
exposta também uma possível inversão da relação ser/parecer, donde a verdadeira
justiça é mera aparência, enquanto a injustiça é o verdadeiro Ser das coisas. Essa
inversão, ou paradoxo, não parece se resolver em toda A República. A fundação da
cidade ocorre, portanto, no esforço em privilegiar a vontade de justiça (Platão, 2007, 1 369c: “Serão, ao que parece, as nossas necessidades que hão de fundá-la”.
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368b): “Pois não tenho maneira de defender a justiça. Parece-me que sou incapaz [...] E,
por outro lado, não posso deixar de a defender”. A aparência subjuga a verdade, e não
se deve ignorá-la. Sendo assim, a virtude há de ser construída levando em conta o
fenômeno, o que se mostra à vista, para que com este se chegue à felicidade.
Mas afirmar essa tensão não é associar erradamente o necessário com o aparente,
e isso se aplica na configuração da cidade; da divisão dos trabalhos à adesão dos
guardiões filósofos, por exemplo: o que marca a escolha de uma determinada natureza
do guardião é ele ser capaz de discernir os amigáveis dos inimigos, e, além disso, saber
quando agir.
É preciso, portanto, enxergar criando distinções – antes de tudo distinções, pois
se quer superar o argumento de Trasímaco, que joga tudo para o plano da indistinção.
Poderíamos dizer que Trasímaco não possui uma preocupação moral, ao passo que a
ótica de Platão é profundamente moral; esse olhar que cria distinções, separações, por
isso esta pesquisa por essência e aparência e o desdobramento de um necessário, um
meio termo que se liga entre as forças da vontade, da individualidade junto ao
comunitário, ao político; e, entretanto não poderíamos afirmar como Trasímaco, que se
tratasse de um acordo; não se trata de uma convenção, a busca do necessário nos remete
para além do político e nos coloca novamente no plano ontológico. O necessário é o
ontológico, o que se liga intimamente às formas, ainda que só se possa falar de teoria
das formas a partir do livro VI. Em última instância deveríamos afirmar que o problema
do Ser, conforme as tentativas de solução forem feitas, irão convergir numa teoria do
conhecimento, presente nos livros posteriores ao livro II, sobretudo no mencionado
livro VI, onde se discutirá precisamente as Formas perfeitas e o nível de conhecimento
capaz de distinguir filósofos dos filodoxos. Para a presente tarefa, cabe a nós mantermo-
nos no cerne da tensão que se abre nos dois primeiros livros, acerca da aparência e do
Ser.
O necessário é a importância do essencial dentro deste jogo de relações. Isso
significa que destituído do essencial existe um modo de vida das cidades e dos
indivíduos que não está adequado a uma justiça. Esse é o tema do livro IV, que reflete
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acerca da importância da moderação da riqueza, da opulência, da grandeza. E que tal
moderação só torna os homens melhores em suas respectivas artes, demonstrando aí que
o necessário convém à moderação, e que esta se liga intimamente à natureza das coisas.
Decorre pensar, finalmente, não em uma negação da vontade, mas da afirmação de um
estatuto ontológico da justiça que torna possível fundar uma cidade perfeita. Se há uma
teoria do conhecimento, bem como todas as outras investigações ao longo dos livros
seguintes, estas se voltam, quer seja como método, quer como conteúdo, a saber, aos
cidadãos da polis, prezando esse estatuto ontológico do que é justo.
Ora, a remissão aos livros posteriores ao II nos leva a concluir, por fim, que a
busca pelo necessário extrapola o livro II, e que em última instância, a constatação desse
necessário é um pressuposto que converge o aparente e o essencial, e que atravessa toda
a criação da cidade perfeita e caminha junto à aporia acerca da justiça na busca por esta.
A cidade que se funda baseada no necessário e que tem na natureza das coisas o
ideal só pode revelar sua sabedoria dentro de um projeto educacional, isto é, a cidade
justa é um projeto ético que tem a educação como base, donde o extenso trabalho e o
esforço expansivo de Platão em toda a obra A República procedem. Um conjunto de
seres que, condicionados pela aparência, compreenda uma verdade ontológica e exerça
sua superioridade no conjunto de suas ações; esse é o trabalho que A República tenta
realizar.
Referências bibliográficas:
Platão. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
MORAIS, Emília Maria Mendonça de. Justiça e Ontologia: a dialética do ser e do parecer na República, in: Cadernos de Atas da ANPOF, nº1, 2001.
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A MELANCOLIA FREUDIANA EM BENJAMIN:
UM ESTUDO BARROCO SOBRE A MODERNIDADE
Felipe de Oliveira Castelo Branco Graduando em Filosofia da UFRJ
Mestrando em Psicanálise do PGPSA/UERJ
Resumo: O que liga três autores de épocas e estilos tão distintos? O fio que este trabalho buscará seguir encontrará na reflexão desses pensadores sobre a melancolia um cruzamento com o tema da criação. Aristóteles, em seu Problema XXX-1, apontará o “homem de gênio” da poesia, das artes, e da filosofia, como efeito da natureza melancólica. Freud, em Luto e melancolia e O eu e o isso, encontrará na desfusão pulsional, característica da melancolia, o motor da sublimação. E Benjamin, em Origem do drama barroco alemão, verá na melancolia uma das fontes da eleição da morte e da história decomposta como tema da alegoria barroca.
Palavras-chave: Arte. Filosofia. Melancolia. Psicanálise.
Introdução
No início do século XX, a influência da medicina humoral de Hipócrates não se
faz mais presente. A teoria hipocrática dos quatro humores, teoria médica da Grécia
clássica que até o século XIX influenciou diversos campos da medicina, especialmente
o campo das “afecções mentais” onde se incluíam os estudos sobre a melancolia, vai
paulatinamente perdendo força. Suas ressonâncias, que foram recebidas por autores
como Aristóteles (em seu Problema XXX), Hildegar de Bingen, e Robert Burton, para
citar apenas alguns, às portas do século XIX sofrem profundos golpes que decretam
definitivamente a morte de seu poder de influência. Sem dúvida, no que diz respeito à
melancolia, o mais profundo e frutífero desses golpes é o nascimento de um novo
campo e de um novo modo de pensamento que toma a cena das reflexões sobre a
melancolia e sobre as afecções mentais com o surgimento da psiquiatria clássica, e do
seu empreendimento classificatório que culmina no que Foucault chamou de o
“monopólio médico da loucura”. A melancolia surge primeiramente na psiquiatria com
Pinel e Esquirol como um delírio em torno de um único objeto. Delírio empobrecido, de
fala limitada, que carrega uma lamentação e uma culpa muito profundas. Entretanto,
desde o fim do século XIX, o psiquiatra Emil Kraepelin, pai da psiquiatria moderna,
eliminou gradualmente das descrições de seu Tratado de psiquiatria (especialmente a
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partir da 8ª edição do tratado, em 1913) o termo ‘melancolia’, substituindo-o, numa
descrição “menos complexa”, pelo termo ‘depressão’; este último também incluído na
classe maior da psicose maníaco-depressiva, primeira etapa do futuro transtorno bipolar.
Freud e Luto e melancolia
Contudo, seu contemporâneo vienense e interlocutor crítico, o psicanalista e
criador da psicanálise, Sigmund Freud, escreve, em 1917, um texto onde, numa atitude
profundamente corajosa, propõe retomar o termo ‘melancolia’ e empreende um estudo
indispensável a todos os pesquisadores do tema. Luto e melancolia é um texto que
produz uma comparação constante entre a melancolia e o processo de luto, apontando
uma grande complexidade do primeiro caso, ao mesmo tempo em que destaca o luto
como um processo necessário à manutenção das ligações de objeto nos momentos de
perda. Com esse artigo metapsicológico, Freud introduz um elemento fundamental e até
então inédito nos quase dois mil anos de teoria da melancolia, a saber: a melancolia é
causada por uma perda de objeto. Não se trata mais, conforme acreditavam Pinel e
Esquirol (e poderíamos ainda incluir aí, cada qual com suas características teóricas
próprias, todos os autores da psiquiatria clássica) apenas de um delírio empobrecido que
não se alastrava e se pluralizava em outros objetos (como é o caso do delírio paranóico);
mas sim, segundo o estudo de Freud, de uma perda que se mostra muito grave e
ameaçadora para o eu. Tal objeto perdido pode ser uma pessoa amada, um ideal, um
sonho ou até mesmo a pátria (lembrando que o texto foi escrito durante uma guerra,
onde o exílio era extremamente comum).
A diferença entre a melancolia e o luto se marca principalmente pelo fato de, no
primeiro caso, a dependência do homem em relação a esse objeto se mostrar muito
profunda, a ponto de tornar-se uma identificação patológica: sem o laço de amor que
ligava o melancólico a seu objeto, instala-se um vazio extremamente penoso, fazendo
com que ele prefira “canibalizar” o objeto, introjetar seus traços numa ânsia de
pertencimento, oferecendo-se ele mesmo como um objeto (ou melhor, convertendo o eu
em objeto). A perda da melancolia atinge diretamente o eu do doente porque a
identificação com o objeto perdido era justamente aquilo que o sustentava, segundo
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Lacan, numa mimetização de sua imagem. Isso nos dá pistas sobre o motivo pelo qual,
na melancolia, a perda parece ir muito além da morte de alguém, ou de uma decepção
amorosa ou ideal.
O luto é uma forma de evidenciar a infinita variabilidade do objeto da pulsão
onde todo objeto eleito faz, da mesma maneira, contorno a esse vazio (vazio do objeto
da pulsão, onde, segundo Freud2, qualquer objeto pode ocupar seu lugar); o luto se
apresenta, portanto, como trabalho de perda, um mecanismo que busca elaborar o
choque daquilo que foi perdido, retirando momentaneamente as ligações sexuais entre o
eu e os objetos do mundo externo, possibilitando ao fim desse processo eleger um outro
objeto no lugar daquele que foi perdido.
Freud afirma que no caso patológico da melancolia, há um momento da
constituição do eu onde algo não se efetuou, onde o eu se construiu sobre ruínas, onde
falhou a identificação primária (1921: 133-140). Em função disso, posteriormente, o
melancólico estabelece uma intensa ligação do objeto diretamente com o eu, efetuando,
portanto, uma identificação com o objeto. Não há “espaço de respiração” entre a
melancolia e seu objeto: o eu, na melancolia, é o objeto. A identificação, portanto, é
uma tentativa patológica de manter esse laço amoroso tão fundamental entre o eu e o
objeto que foi perdido, ainda que o objeto não esteja mais acessível.
Em O eu e o isso, texto de 1923, Freud vai mostrar que numa tentativa de
dessexualizar os investimentos do isso (que se direcionavam ao objeto perdido) e
lançando o eu no empreendimento de substituir esse objeto, o melancólico se torna
vítima fácil para a ação do supereu. O eu se oferece ao massacre e às humilhações do
supereu na expectativa de “proteger” o laço com o objeto que agora é ele mesmo. Por
outro lado, o supereu se destaca do eu, e o ataca como se ele fosse o objeto. Aí está uma
das marcas da melancolia para Freud: a ambivalência. Toda ambivalência em
psicanálise não significa nunca a capacidade de expressar ora amor, ora ódio contra um
mesmo objeto. Mais do que isso, a ambivalência é a expressão de amor e ódio contra o
mesmo objeto, onde parte desse afeto (ou o amor ou o ódio) permanece recalcada na
2 Cf. Freud (1915: 143).
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neurose. Mas na melancolia o eu ama o objeto por meio da identificação; e o supereu
odeia o objeto através do eu.
Se nesse laço patológico o eu se identifica com o objeto, em outras palavras, o
eu se torna o próprio objeto introjetando seus traços e sendo, portanto, alvejado pelo
supereu; não há mais laço entre o melancólico e o mundo, e sua apatia e seu fechamento
em si são sintomas disso. Há, conclui Freud, uma retirada da pulsão sexual que não se
interessa mais por nenhuma ligação objetal, permanecendo unicamente no interior do
eu, e cultivando dentro de si mesmo seu laço de amor que foi perdido. Sem a presença
da pulsão sexual, a melancolia se torna refém unicamente da pulsão de morte. Sem o
aspecto sexual da pulsão, resta ao melancólico apenas o que Freud chamou de “uma
cultura pura da pulsão de morte”, desfazendo-se com isso todos os laços que ligavam o
doente às coisas e à vida.
É justamente em meio a este turbilhão de fatores destrutivos, de desligamento de
laços, e de desfusão pulsional, que Freud vai encontrar a origem da apatia de da
morosidade melancólicas. Se a psiquiatria clássica via nas lamentações e no delírio
melancólico um empobrecimento das faculdades mentais, Freud vai enxergar nesta
apatia o efeito de três fatores fundamentais: a perda do objeto, a ação do supereu (que
tem como efeito a auto-culpabilização), e a falha na identificação que tem como efeito
gerar a dependência do eu ao objeto.
Benjamin e o Barroco
Uma espécie de epistemologia surge na obra de Walter Benjamin, em 1925, em
sua tese de livre-docência sobre a Origem do drama barroco alemão. É na alegoria
barroca que, ao contrário do símbolo, estabelece uma relação não-necessária entre
sentido e imagem, que Benjamin vai encontrar o modelo do objeto de saber. Enquanto o
símbolo se pretende universal e instantâneo na sua ligação com aquilo que representa,
ou melhor, o símbolo sendo aquilo mesmo que ele representa numa totalidade imediata,
numa evidencia do sentido e numa unidade entre ser e palavra; a alegoria barroca é
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“historicizada” e sempre arbitrária porque inacabada, evidenciando uma fuga, um
deslizamento eterno do sentido definitivo. A alegoria “sabe” do tempo como fugidio, do
instante como precário, e do momento em que ela se instala através da violência da
arbitrariedade como um “entre”.
Só extraindo o particular de suas relações e ligações espaciais e temporais que
podemos ter o objeto de saber, ou, diríamos, um objeto alegórico. Apenas eliminando a
relação entre o objeto e a ilusão de um continuum histórico que o determina, tornamo-
nos capazes de produzir significação (alegórica). E se o símbolo era valorizado no
classicismo pela sua fidelidade com a coisa, a alegoria será valorizada no barroco por
evidenciar o objeto como perdido definitivamente no tempo. Mas por que a necessidade
recorrer ao barroco?
No barroco, Benjamin reconhece traços da modernidade. A inspiração máxima
da alegoria barroca é a constatação da precariedade do mundo, dividida entre “os
dogmas da fé cristã e a cruel imanência do político” (GAGNEBIN, 2004: 36); o poeta
barroco se encontra desamparado num mundo onde ele não se reconhece no passado
histórico, e o futuro se mostra prenhe de imprevisibilidade. Ao se debruçar sobre seu
objeto, o homem barroco evidencia seu caráter obsoleto e fugidio, inscrevendo a morte
nas coisas. E a alegoria funciona no barroco como a “visão da transitoriedade das
coisas” tão cara a essa concepção imanente do mundo, onde as antigas figuras da
transcendência e da tradição se mostram esvaziadas de seu sentido.
O próprio estilo de investigação de Benjamin se confunde com o barroco. Ao
tomar a história a partir das rupturas, da descontinuidade, da impossibilidade de
sucessão, ele pinta o historiador marxista como um alegorista barroco. Ao retirar a
história de sua conexão linear temporal, numa temporalidade partida em “agoras”, cada
instante histórico passa a ser significável em relação a qualquer outro instante, como a
França de Robespierre re-significava a Roma antiga. Como afirma S.P. Rouanet (1981:
18): “Morrendo enquanto objetos do mundo histórico, as coisas ressuscitam enquanto
suportes de significações alegóricas”.
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Reencontramos aqui o melancólico freudiano, que retira ou dessexualiza sua
relação com o mundo para cultivar exclusivamente seu laço com o objeto que fora
amado, mas perdido. Ao identificar-se com o objeto, canibalizando seus traços, o
melancólico de Freud “recria” o objeto em si. Utilizando-se desta concepção, o homem
barroco de Benjamin vai ter como paradigma a melancolia. Ao enxergar o mundo como
um acúmulo de ruínas, o poeta barroco toma cada fragmento do mundo arruinado, e
constrói um mosaico onde todas as partes se relacionam arbitrariamente umas com as
outras. O homem barroco é o homem da melancolia que retira o objeto do mundo e o
faz revelar a morte, numa ruminação do seu sentido. O ruminar de idéias, característica
do melancólico desde o primeiro trabalho psiquiátrico de Philippe Pinel, é para
Benjamin o modo como a alegoria extrai do seu objeto sua significação: o melancólico
homem barroco vira as costas para o mundo em busca de penetrar nas coisas, “é para
salvá-las que as penetra com seu olhar, que as trespassa com sua ruminação”
(ROUANET, 1981: 17).
Mas se a melancolia de Freud, na sua perda inapelável do objeto que lhe era caro
pode servir de paradigma do homem barroco/moderno que perdeu as garantias da
transcendência e da tradição ao qual ele estava identificado, é preciso acrescentar ainda
uma das características do melancólico freudiano a este homem barroco: a culpa. Se o
objeto alegórico revela o esvaziamento das garantias transcendentes do classicismo, não
é para reinar sobre ele, mas para apontar o desamparo do imanente: “[a alegoria] não
constitui o monumento epigônico de uma vitória, e sim a palavra que pretende exorcizar
um remanescente intato da vida antiga” (BENJAMIN, 1925: 246).
Ao exorcizar a transcendência, as figuras do transcendente perdem sua força.
Reaparecem carregadas de culpa. Diz-nos Benjamin (1963: 247): “a culpa é imanente
tanto ao contemplativo alegórico, que trai o mundo por causa do saber, como aos
próprios objetos de sua contemplação”. Um mundo que abandona a segurança da
transcendência clássica em nome da imanência que destrona as coisas de seu lugar
estável é um mundo culpado. Na “troca” dos deuses pelo efêmero, pelo mundo
material, e da tradição pelo instante fugidio, instala-se a culpa no mundo que o barroco
criou. “Foi absolutamente decisivo para a formação desse modo de pensar que não
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somente a transitoriedade, mas também a culpa se instalassem visivelmente no reino
dos ídolos, como reino dos corpos” (BENJAMIN, 1925: 247).
Não há mais garantias nem pontos fixos para a melancolia do barroco. A
alegoria barroca esvaziou a verdade de conhecimento do mundo e do próprio sujeito da
interpretação. Esse isolamento melancólico na arte barroca desconfia, portanto, do
sentido do mundo e busca dar um sentido novo aquilo que tal arte ainda ama.
Entretanto, esse sentido novo deve evidenciar o luto da perda e da morte definitiva de
seus antigos ideais. Morte do sujeito clássico, coerente consigo mesmo; morte da
significação simbólica, preenchida por uma ponte entre símbolo e coisa. E aqui, no
centro daquilo que toca ao barroco, reencontramos a modernidade “dividida entre a
nostalgia de certezas desaparecidas e a leveza trágica do herói nietzschiano”
(GAGNEBIN, 2004: 39). É desse “entre dois”, desse vazio de certeza, desse “entre o
passado e o futuro” que escreve Baudelaire, retomando a forma alegórica que o barroco
se utilizou. Evidenciando a transformação moderna da poesia em mercadoria de dentro
da própria poesia, Baudelaire denuncia, na passagem ao moderno, a perda da dignidade
escoada na perda da tradição. E é a partir de formas esvaziadas produzidas pela
literatura de esquerda, mas consumidas pela alta burguesia, e que, portanto, produzem
um radicalismo intelectual que não corresponde a nenhuma ação política, que leva
Benjamin a denunciar uma “melancolia de esquerda” diagnosticada no niilismo
profundo da poesia de Kästner. Também o anjo da história, o Angelus Novus de Paul
Klee, é um melancólico. Tudo que ele vê são catástrofes e a crescente acumulação de
ruínas as quais ele gostaria de deter-se por alguns instantes e recolher alguns elementos.
No entanto, a tempestade do progresso sopra um forte vento que torna o luto das ruínas
da história impossível. Seu esforço é fazer com que o tempo pare, e esse anjo da história
torne-se capaz de criar um estado de exceção voltado agora para os oprimidos,
acordando das ruínas os mortos.
Da auto-anulação do melancólico de Freud, que perde a si mesmo, perde o
objeto, perde o mundo, mas jamais é capaz de perder seu antigo laço de amor, nasce o
vazio, o desligamento das coisas e a destrutividade que se direciona ao doente na forma
da culpa. Pela emergência de uma dor silenciosa e sem fim, dor de um luto patológico
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que não encontra no mundo em que está lançado, qualquer objeto que possa ser amado
tal como aquele que foi perdido (esta é a diferença da melancolia em relação ao luto, em
Freud), é que Benjamin encontra a motivação do barroco para criar sua arte, arte
reveladora da morte de seus ideais. Lançada na mesma dor, a modernidade padece. É da
queda radical de toda transcendência e da tradição em seu tempo, transcendência que
permanece ilustrada no barroco com um lugar vazio dentro da imanência, é que nasce a
“tristeza dos saturados” no moderno. Nas palavras de Benjamin (1930: 77): “estupidez
torturada: é a última metamorfose da melancolia, em sua história de dois mil anos”. É o
homem moderno, estupidificado diante da constatação do vazio da perda de todas as
garantias da tradição, com o qual ele vai ter que lidar.
Referências bibliográficas:
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1963. (1925)
______. Melancolia de esquerda: a propósito do novo livro de poemas de Erich Kästner. In: Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1996. (1930)
______. Experiência e pobreza. In: Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1996. (1933)
______. Sobre o conceito de história. In: Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1996. (1940)
FREUD, Sigmund. Os instintos e suas vicissitudes. ESB – Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1973. (1915)
______. Luto e melancolia. ESB – Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1973. (1917)
______. Psicologia de grupo e analise do ego. ESB – Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1973. (1921)
______. O ego e o id. ESB – Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1973. (1923)
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004. (2004)
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ROUANET, Sergio Paulo. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, 1981. (1981)
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LOUCURA E GENIALIDADE NA FILOSOFIA DE ARTHUR SCHOPENHAUER
Victor Galdino Alves de Souza
Graduando em Filosofia da UFRJ
“Que racionalidade, firme compostura, visão absoluta e completa, total certeza e regularidade de conduta mostram os bem providos homens normais, em comparação com a presente absorção sonhadora, com as
atuais excitações violentas do gênio, cuja agonia interior é o ventre das obras imortais!” (SCHOPENHAUER, 1977, II 461, tradução do autor).
Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar as concepções sobre loucura e genialidade apresentadas pelo filósofo Arthur Schopenhauer em sua obra “O Mundo como Vontade e Representação” (tomos I e II), assim como a relação entre ambas. E, embora o próprio Schopenhauer não tenha examinado semelhante idéia de modo mais profundo, pretendo, ainda, mostrar como a loucura pode aparecer como uma consequência da capacidade genial do criador, que, por estar voltado, em muitos momentos, para a apreensão puramente intuitiva das Idéias, torna-se muito mais suscetível à irracionalidade e à loucura do que o indivíduo comum; idéia que, em minha opinião, permaneceu predominantemente implícita nos trechos de sua obra que versam sobre a genialidade e loucura.
Palavras-chave: Arte. Genialidade. Loucura.
Começo este trabalho com um breve resumo do contexto no qual aparecem as
idéias sobre genialidade e loucura na obra de Schopenhauer. Ao longo do terceiro livro
(onde Schopenhauer apresenta a parte de seu pensamento relacionada à “Metafísica do
Belo”) do primeiro tomo de Die Welt als Wille und Vorstellung, o filósofo apresenta um
novo tipo de conhecimento diferente do que estava sendo examinado até então; tal
conhecimento não se mostra mais a serviço da Vontade, preso aos seus interesses e ao
seu querer. Esse conhecimento, portanto, não se encontra obrigado a conhecer o mundo
através das relações estabelecidas pelo princípio de razão (meio de conhecimento do
homem subordinado à Vontade), mas pode agora contemplar puramente os objetos que
lhe são oferecidos pelo mundo circundante, desligando-os de todas as suas conexões e
relações com outros objetos e consigo mesmo, e mergulhando nessa contemplação de
maneira totalmente desinteressada e desvinculada da Vontade, na qual toda
personalidade e subjetividade se encontram dissolvidas.
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Abandonando o modo comum de consideração das coisas, o homem torna-se o
sujeito puro do conhecimento, que, segundo Schopenhauer, é capaz de apreender os
objetos fora de suas relações com tudo o que é exterior a eles, justamente por ver a
essência do objeto que está expressa em todas as suas relações possíveis, e de onde
todas elas partem. O conhecido não é mais a coisa particular, mas a Idéia, a forma
eterna e imutável desse objeto, que é verdadeiramente em todos os tempos e lugares, de
acordo com a doutrina das Formas (Idéias) de Platão. Esse modo de conhecimento é
puramente intuitivo, encontrando-se em oposição direta ao conhecimento mediado por
conceitos, ou seja, o conhecimento abstrato ou racional. Logo, é no domínio intuitivo
que encontramos as Idéias platônicas, que são utilizadas por Schopenhauer para
designar os diversos graus da Vontade, nos quais sua essência se manifesta,
constituindo todo o mundo como representação do qual possuímos conhecimento. São
essas Formas (as Idéias), e não as suas cópias (os fenômenos particulares), que serão
apreendidas no novo modo de conhecer apresentado, que é o conhecimento estético. No
§ 36, vemos que a obra de arte traz à luz as Idéias, as formas essenciais dos fenômenos
que chegaram ao gênio através da pura contemplação intuitiva, e que, totalmente
isoladas, tornam-se representantes de um todo.
A capacidade de retirar do mundo o essencial e torná-lo objeto da arte é
característica do gênio, embora a capacidade de contemplar tais Idéias (através de suas
cópias apresentadas pelas obras de arte ou pela própria natureza) se encontre distribuída
em todos os homens, mas em graus bem menores, segundo Schopenhauer. Por isso, para
o indivíduo comum, é mais fácil ver algo das Idéias na arte do que na natureza, pois na
observação de um quadro ou escultura, não se volta para seus interesses e para as
relações que a obra de arte possa ter com seu querer, mas é impelido, de certa forma, a
contemplá-los de maneira desinteressada. Essa dificuldade em observar uma obra
através de um olhar interessado se daria devido ao fato de que o único objetivo da
criação artística verdadeira é comunicar as Idéias que foram apreendidas pelo criador.
Os homens comuns, que, em oposição aos gênios, são destituídos de uma maior
inclinação para a contemplação intuitiva, não conseguem encontrar nas obras de arte
alguma utilidade, pelo menos não com a mesma facilidade com a qual encontrariam um
uso para as coisas que lhe são oferecidas pela Natureza.
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No capítulo 31 do segundo tomo (vom Genie), vemos a genialidade, ou seja, a
capacidade humana necessária para a apreensão das Idéias, surgir de um
desenvolvimento da faculdade de conhecer que vai para além do exigido pela Vontade.
Esse excesso, fora do controle do querer, não encontra uso algum no âmbito das coisas
particulares, e por isso passa a ser direcionado de maneira desinteressada (desligada da
Vontade) para aquilo que é universal, ou seja, para as Idéias platônicas no âmbito da
filosofia de Schopenhauer. Na mente vulgar, essa visão completamente pura e objetiva
das coisas não é possível, pois toda a sua capacidade perceptiva se torna inativa assim
que não é mais movida pela Vontade. Ela não é capaz de funcionar sem um propósito,
só conseguindo obter das coisas aquilo que diz respeito ao seu querer. Vemos, no
entanto, que no gênio surge uma capacidade de direcionar o conhecimento para algo
inútil, algo que não está presente em meio aos seus interesses. O intelecto deixa o seu
posto de “guardião” da Vontade para apreender de modo perceptivo o universal na
existência. Esse abandono é característica essencial do gênio, mas vai contra a própria
natureza humana, já que a faculdade de razão veio a ser unicamente com o propósito de
estar a serviço da Vontade, e toda sua capacidade deve ser subordinada ao
conhecimento ligado ao princípio de razão. A genialidade, portanto, é apresentada como
uma anormalidade (e, portanto, uma raridade no mundo), e que coloca o próprio gênio
em uma posição vulnerável diante dos grandes afetos e paixões do mundo, não só no
âmbito particular, mas também no universal, das Idéias. Mais adiante mostrarei como
essa suscetibilidade pode abrir as portas para a loucura no indivíduo genial.
A grande proximidade entre loucura e genialidade, tema analisado neste texto, é
algo que tem sido notado desde a Antiguidade, como indica o próprio Schopenhauer. A
palavra enthousiasmós, que designava o estar possuído ou inspirado por algo divino, era
freqüentemente usada para nomear o estado em que o poeta se encontrava no momento
em que se dava sua criação. Entre os exemplos usados por Schopenhauer (2005, §36, p.
260), indico Horácio, que em sua Ode Ad Calliopen, ao ouvir a Musa da poesia épica e
sentir sua inspiração, pergunta se não está sendo iludido por uma amável loucura
(amabilis insania); e Platão, que, no diálogo Fedro, apresenta através de Sócrates a
idéia de que os verdadeiros poetas são tomados por uma espécie de loucura divina que
lhes permite criar. Em 244a, diz (1892, tradução do autor): “Mas, atualmente, os
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maiores dos bens vêm a ser em nós através da loucura, quando nos é dada como
presente pela divindade”.
Após valorizar a loucura (mania) causada pelos deuses, Sócrates distingue os
delírios divinos em quatro espécies, sendo as Musas as responsáveis pelos delírios
ligados à produção poética. O gênio aparece como canal de comunicação do humano
com o sobre-humano e extraordinário, e a possessão divina, o momento delirante da
criação, afasta o homem do que é racional, lançando-o em direção a um estado de
insanidade necessário para que se torne um verdadeiro poeta (criador). Assim como,
para Schopenhauer, aqueles que possuem somente o talento não possuem a genialidade,
pois o talento reside na excelência restrita ao que diz respeito ao conhecimento
discursivo, e não ao intuitivo; da mesma forma, para o Sócrates do Fedro (em 245a),
aqueles que pretendem ser poetas somente através da techné não obterão o sucesso
almejado, e suas obras se extinguirão muito antes daquelas produzidas pelos
enlouquecidos através da inspiração divina.
Esse momento de enlouquecimento em que se dá a criação poética verdadeira
era considerado por muitos dos antigos um momento de possessão, que durava apenas o
tempo em que o poeta realizava sua obra. Mas, assim como Aristóteles, que, no
Problema XXX (953a), considerou a causa de certos homens se mostrarem excepcionais
(perittoí) na Filosofia, nas Artes e na Política, um aumento da bílis negra (mélaina
cholé) que desfazia a harmonia entre os humores presentes no corpo humano, ou seja, a
melancolia, Schopenhauer não considera a causa da genialidade algo exterior, e sim
uma disposição anormal interna. Mas, mesmo a genialidade não sendo fruto de uma
intervenção divina temporária, não acredita que o gênio seja capaz de permanecer
absorto durante todo o tempo no seu modo de conhecimento especial, pois a grande
tensão exigida para se manter na pura apreensão das Idéias não pode ser mantida por
períodos prolongados, e nem deveria. O gênio, durante a maior parte de sua existência,
assemelha-se ao indivíduo comum, embora tenha sempre dentro de si aquela disposição
intuitiva que nega a racionalidade, o que justifica, para Schopenhauer, a antiga idéia de
que os grandes criadores eram dominados por uma força divina e ao mesmo tempo
irracional no momento de seu produzir.
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O comportamento irracional dos grandes gênios, para Schopenhauer, tem sua
origem naquele desenvolvimento do intelecto para além do necessário, que, por estar
livre do serviço que deve prestar à Vontade e que consiste em sua própria razão de ser,
pode virar as costas ao modo de conhecimento racional, mediado por conceitos, e seguir
uma orientação intuitiva. Não sendo mais o agir (e o próprio pensar) guiado pela razão,
que, para o homem comum, “é a lanterna com a qual ilumina o seu caminho”
(SCHOPENHAUER, 2005, §36, p. 257), o gênio se encontra livre para se deter na
consideração da vida em seus aspectos mais universais, “e em cada coisa à sua frente
esforça-se por apreender a sua Idéia, não as suas relações com as outras coisas”
(SCHOPENHAUER, 2005, §36, p. 257). No entanto, o agir se torna irracional, e a
impressão causada pelo conhecimento intuitivo arrasta o gênio para o “irrefletido, o
afeto, a paixão” (SCHOPENHAUER, 2005, §36, p. 259), pois tudo o que importa é o
que se mostra presente, em si mesmo e livre de relações com outros objetos, apreendido
de modo excessivamente vívido. O que antes se apresentava como uma simples peça
inserida numa interminável cadeia de causas e efeitos, agora aparece em sua totalidade,
estendendo-se ao extremo de seu próprio ser. Essa apreensão tão vivaz das coisas
presentes em sua forma mais universal domina suas atividades intelectuais, ofuscando
os conceitos e assim a própria razão. O gênio, portanto, está mais sujeito às paixões
descontroladas do que as pessoas comuns, o que faz com que seu sofrimento seja ainda
maior.
Além de estar mais vulnerável a paixões extremas e ao comportamento
excessivamente irracional, o indivíduo genial está condenado a um perigo ainda maior.
Ao mergulhar na contemplação pura das Idéias, ele é como alguém que olha
diretamente para o Sol, contemplando-o em toda sua magnitude, após sair da caverna
em que esteve durante anos. O indivíduo é levado ao extremo da objetividade, onde
tudo aparece em sua forma mais perfeita. Se admitirmos, portanto, a existência de Idéias
referentes a sentimentos “negativos” e hostis ao indivíduo, como vemos no § 52, no
qual Schopenhauer menciona a Dor e a Aflição elas mesmas, ou seja, suas Formas
universais; se admitirmos tais Idéias, então se poderia falar na apreensão puramente
objetiva de sentimentos perturbadores em todo o seu ser. A própria visão da terrível
essência do mundo, que, sendo Vontade, é necessariamente sofrimento (seguindo o
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pensamento de Schopenhauer), pode atormentar de maneira excessiva o gênio. Todo
esse tipo de informação é armazenado no indivíduo dotado de genialidade, que, durante
a apreensão das Idéias, se encontra dissolvido no objeto de sua contemplação como um
puro sujeito do conhecer, tendo seu “eu” e a Vontade nele ambos suprimidos, e,
portanto, não pode experimentar sofrimento algum. Contudo, em algum momento
posterior essa informação pode ser acessada, pois permaneceu disponível em seu
interior como um saber ou pensamento excessivamente doloroso e atormentador. Outro
motivo pelo qual não é possível que a loucura atinja o gênio no momento de sua
contemplação da mais perfeita objetividade, é que, para Schopenhauer, a loucura está
intimamente ligada à supressão de memórias que não podem ser suportadas pelo
espírito.
Assim, como no caso de uma pessoa que não suporta a lembrança de um
acontecimento terrível que se deu em determinado momento de sua vida, o espírito do
gênio de tal maneira torturado pela visão daquilo que uma vez (ou muitas vezes) foi
apreendido é forçado a recorrer a um último meio de preservação de si como fenômeno
no mundo. Esse meio é a loucura (como vemos no § 36), cuja possibilidade de irromper
no gênio reside na enorme resistência da Vontade em permitir que o intelecto se volte
para as coisas hostis a si, e que, após a visão da perturbadora perfeição das Idéias,
aparecem de maneira ainda mais hostil. É importante notar, contudo, que essa
resistência da Vontade em permitir a assimilação dos eventos ou circunstâncias nas
quais se encontra aquela visão tão terrível que não pode ser suportada de maneira
alguma, pode se dar mesmo naqueles que não estão condenados a contemplar
diretamente as Idéias. Basta que tal indivíduo experimente um sofrimento
excessivamente nocivo à Vontade, para que a resistência por parte dela alcance um grau
tão elevado que é negada ao intelecto a assimilação das circunstâncias em que se
encontra a fonte desse sofrimento, provocando a supressão das mesmas. Nesse
momento, o intelecto se subordina à Vontade para evitar que o indivíduo-fenômeno
sucumba diante de tão grande tormento. Tal “atitude” por parte do intelecto se
assemelha a que é tomada pelo ego (Eu) nesta analogia apresentada pelo psicanalista
Sigmund Freud no texto O Ego e o Id (1996, p. 39):
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Assim, em sua relação com o id, ele [o ego] é como o cavaleiro que tem de manter controlada a força superior do cavalo [...] A analogia pode ser levada um pouco além. Com freqüência um cavaleiro, se não deseja ver-se separado do cavalo, é obrigado a conduzi-lo onde este quer; da mesma maneira, o ego tem o hábito de transformar em ação a vontade do id, como se fosse sua própria.
O intelecto, seguindo as exigências de seu cavalo, ou seja, da Vontade, suprime
o insuportável para que o indivíduo não seja aniquilado. No entanto, os nexos e as
relações entre as coisas na memória precisam ser preservados; entra em cena, então, a
imaginação (Phantasie). A imaginação, no caso do gênio, possui a função de ampliar o
horizonte deste para além do que está presente efetivamente à sua pessoa, ajudando-o a
construir as imagens universais da existência a partir daquilo que foi obtido de modo
puramente perceptivo, e que não poderiam ser utilizadas com a finalidade de comunicar
aos outros a Idéia apreendida se fossem deixadas sob o domínio do acaso, pois a
natureza não produz com outro objetivo que não seja a própria produção e a manutenção
desse processo produtivo. A fantasia permite ao gênio ver nos fenômenos imperfeitos a
Idéia em toda sua perfeição, como um claro espelho da Vontade, e reproduzi-la em sua
arte de maneira organizada e precisa, no tempo certo, podendo a qualquer momento
retornar àquilo obtido através da percepção para produzir novas obras.
No caso do louco, a imaginação tem como função o preenchimento das lacunas
deixadas após a expulsão violenta do indesejável que estava presente na memória da
pessoa. As ficções produzidas pela imaginação, no entanto, não podem preencher
perfeitamente o vazio deixado pela supressão, e, embora o sofrimento seja esquecido, a
concatenação e as relações verdadeiras entre os eventos e circunstâncias, assim como os
próprios eventos e circunstâncias, são sacrificadas. O louco pode conhecer o presente e
as coisas particulares (mesmo as que estão presentes somente em sua memória), mas é
incapaz de ligar a coisa particular a outras que sejam verdadeiras, e não produtos de sua
imaginação. A relação verdadeira entre o passado e o presente também é substituída por
uma relação ilusória. Entregue à loucura, o indivíduo depende de relações e eventos
passados falsos, que podem permanecer durante o resto de sua existência, ou apenas
momentaneamente. À mercê de suas ficções, o louco freqüentemente erra em suas falas,
e até mesmo na imagem que tem de si mesmo e das outras pessoas que fazem parte de
sua vida.
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O esquecimento da concatenação das coisas é o principal ponto de contato entre
o gênio e o louco. O conhecimento das relações, característica do conhecimento
mediado pelo princípio de razão, também é abandonado pelo gênio durante os períodos
prolongados nos quais ele esquece de tudo para mergulhar na contemplação das Idéias.
Os objetos dessa contemplação, totalmente isolados de todo o resto, assim como o
presente efetivo apreendido fora de qualquer relação com passado ou futuro, ofuscam,
em toda a sua vivacidade, o conhecimento discursivo (racional), aparecendo para o
gênio como a mais clara luz, mas que só ilumina o apreendido intuitivamente.
Como vimos anteriormente, o gênio está mais suscetível à loucura do que os
indivíduos comuns, que seguem suas vidas sendo guiados seguramente pelo princípio
de razão. A apreensão de coisas que provocam reações negativas no homem, não mais
enfraquecidas como meros fenômenos, mas apresentadas como Idéias, ou seja, em suas
formas mais verdadeiras, acumula o gênio de experiências perturbadoras. Enquanto ele
se encontra durante a contemplação das Idéias, esquecido de si mesmo e de sua vontade,
nada pode sofrer. Mas depois que a Vontade não se encontra mais suprimida pelo puro
sujeito do conhecimento, toda a possibilidade de sofrimento retorna, pois enquanto
houver Vontade, haverá sofrimento. Aquilo que ficou armazenado na memória do gênio
pode, a qualquer momento, tornar-se objeto de investigação por parte do intelecto,
estando disponível para atormentá-lo enquanto esses dados guardados não forem
reprimidos e “esquecidos”. E, por estar mais sujeito às paixões violentas, por ver e
sentir tudo de forma extrema, também está destinado a sofrer mais do que os homens
comuns; portanto, está mais sujeito à loucura como meio de salvá-lo do grande
tormento.
Como vemos, ao gênio é negado aquele pouco conforto que os homens vulgares
podem possuir numa vida que é fruto da Vontade. Ele se encontra condenado a ter seu
sofrimento aumentado proporcionalmente à sua capacidade de ver no mundo o essencial
e mais verdadeiro, e, exatamente por isso, está sempre no limite entre a sanidade e a
loucura, tendendo à última. E nem mesmo pode encontrar o consolo da compreensão
por parte de seus contemporâneos, pois o que preenche sua mente não pertence a
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nenhuma época ou lugar especifica, raramente encontrando algo alem de solidão em
meio à multidão de indivíduos comuns, produzidos em série pela natureza. E nisso tudo
se percebe a situação trágica do gênio, que (SCHOPENHAUER, 2005, § 52, p. 350)
[...] apresenta-nos um teatro pleno de significado [...] Detém-se nele, sem se cansar de considerá-lo e expô-lo repetidas vezes. Entrementes, ele mesmo arca os custos de encenação desse teatro, noutras palavras, ele mesmo é a Vontade que objetiva a si mesma e permanece em contínuo sofrimento. Aquele conhecimento profundo, puro e verdadeiro da essência do mundo [...] não se torna para ele um quietivo da Vontade, não o salva para sempre da vida, mas apenas momentaneamente [...], contrariamente ao santo que atinge a resignação.
Referências bibliográficas:
Aristóteles. Problema XXX. Tradução de Elisabete Thamer. [S.l.]: [s.n.]. Disponível em: <http://www.ifcs.ufrj.br/~fsantoro/ousia/traducao_problema30.htm>. Acesso em: nov. 2008.
FREUD, Sigmund. O Ego e o Id, Edição Standard Brasileira, Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
Platão. The Dialogues of Plato, vol. 1., translated into English with Analyses and Introductions by B. Jowett, M.A. in Five Volumes. 3rd edition revised and corrected. Oxford: Oxford University Press, 1892.
SCHOPENHAUER, Arthur. Die Welt als Wille und Vorstellung, Zürcher Ausgabe: Werke in zehn Bänden, Band 4. Zürich: Diogenes Verlag, 1977.
______. O mundo como vontade e como representação, 1º Tomo. Tradução, apresentação, notas e índice de Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
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O POVO EM ARMAS: DEMOCRACIA E VIOLÊNCIA EM SPINOZA
Alexandre Pinto Mendes Graduando em Filosofia da UFRJ
Mestrando em Direito da PUC-RIO
Resumo: O objetivo do trabalho é analisar a teoria spinoziana do povo armado, prática democrática de exercício da violência estatal exposta no Tratado Político. Como Spinoza esclarece na carta 50 a Jelles, a diferença entre sua concepção política e a de Hobbes consiste na manutenção do estado natural no seio do estado civil. Isso se relaciona com o fato de que a potência da multidão é inalienável e, neste sentido, o poder detido pelos governantes é precário, dada a permanência da capacidade de resistência da multidão no estado civil. A instituição de um exército permanente a serviço do soberano, portanto, resulta na servidão. Deste modo, analisaremos a demonstração spinoziana de como a liberdade se relaciona com a instituição a milícia popular, mesmo diante da prevalência dos afetos na constituição do corpo coletivo e, conseqüentemente, da inconstância da multidão.
Palavras-chave: Democracia. Resistência. Spinoza. Violência.
1. Introdução
Em que pese o papel da violência das guerras e revoluções na constituição das
instituições políticas modernas, a filosofia política, desde Hobbes, se encarregou de
reconstruir teoricamente a trajetória de formação do Estado moderno como conquista
civilizatória, ancorada justamente na possibilidade de eliminação ou pelo menos
redução drástica da violência política. As diferentes formulações do contrato social,
passando por Locke e Rousseau, tentam, em grande medida, dar conta deste problema: a
passagem do estado de natureza para o estado civil deve ser concebida como abdicação,
pelos indivíduos, de um direito à violência inerente às necessidades de auto-conservação
humana, em favor do poder de uma coletividade.
Spinoza parece ter sido um pensador dissonante no que diz respeito à
formulação teórica de tal problema. Neste trabalho, procuramos mostrar por que não
podemos dizer que Spinoza elabore uma teoria do contrato equivalente à encontrada em
Hobbes, Locke e Rousseau, que, apesar das dissonâncias evidentes, dependem da
afirmação do caráter absoluto da soberania estatal. Um dos fatores comuns entre os três
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pensadores na construção deste caráter absoluto é o reconhecimento do monopólio da
violência por parte do poder soberano, assim como a restrição do direito de resistência à
esfera individual e aos casos extremos em que a ordem do soberano se contradiz com
seu dever de preservar a vida do súdito.
Para expor nosso argumento faremos, inicialmente, uma breve reconstrução do
pensamento de Hobbes a este respeito, especialmente por ser o pensador inglês o
principal interlocutor de Spinoza quando este enfrenta os problemas relacionados à
política3. Em seguida, procederemos a uma análise dos argumentos spinozianos em
diversas passagens de sua obra, através da qual esperamos marcar tanto as diferenças
com a concepção hobbesiana quanto à originalidade do pensamento de Spinoza ao
afirmar, seguindo os passos de Maquiavel, a necessidade de que a soberania tenha como
sustentação não um exército permanente, mas o próprio povo em armas.
2. Democracia e Violência na Contraposição entre Hobbes e Spinoza
2.1 Soberania absoluta e monopólio da violência em Hobbes
Quando comparamos a análise hobbesiana da guerra civil inglesa no Behemoth,
e obras como o De Cive e o Leviatã, percebemos mais claramente as origens de sua
afirmação do caráter absoluto da soberania e, conseqüentemente, da necessidade do
monopólio da violência pelo Estado. Como mostrou Macpherson (1979, p. 71-78), a
sociedade descrita por Hobbes no Behemoth é uma sociedade de mercado
razoavelmente completa. Nessa obra não interessa a Hobbes escrever mais uma crônica
da guerra, mas o estudo das causas pelas quais os homens são levados a agir de modo
insensato como na guerra civil. Os postulados da natureza humana deduzidos em suas
obras teóricas, em especial das paixões que geram a discórdia (competição,
desconfiança e glória), coincidem com a descrição feita por Hobbes das causas das
ações dos homens na guerra civil, o que reforça a tese de Macpherson de que a dedução
de tais postulados não tem como modelo o homem primitivo ou o homem isolado, mas
antes o homem nas condições em que ele se encontra já em sociedade. Podemos então
3 Um dos fortes indícios disto é a Carta 50 a Jelles. Cf. Spinoza (1988, p. 308).
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dizer que o desenvolvimento das relações sociais capitalistas na Inglaterra do XVII,
onde prevalecem nos homens as paixões ligadas à acumulação e à apropriação privada
em detrimento do benefício comum, conduziram para Hobbes ao estado de guerra a
partir do qual ele cria sua hipótese do estado de natureza.
Explica-se, portanto, o motivo pelo qual Hobbes atribuía à capacidade concreta
de utilização da violência para evitar o estado de guerra uma importância capital para a
soberania. O desequilíbrio de forças gerado pelo fortalecimento do poder capitalista em
comparação com o poder monárquico coloca imediatamente em questão o monopólio da
violência que sustentara o soberano. É o que revela o debate no Parlamento durante a
guerra civil sobre o direito de constituir um exército, direito que, para Hobbes (1992, p.
103), “de fato é todo o poder soberano. Pois quem tem o poder de recrutar e mandar nos
soldados tem todos os demais direitos que a soberania pode reclamar”.
Conseqüentemente, a alternativa teórica hobbesiana contra a violência deste estado de
guerra se funda numa avaliação sobre o que é necessário para conter nos homens estas
paixões naturais que em si mesmas não são reprováveis (HOBBES, 1979, p. 76). É a
instituição da soberania que pode garantir um critério seguro de avaliação das ações
humanas, a partir do qual é possível cobrar obediência dos cidadãos, para que se
abstenham de usar a violência uns contra os outros.
Ora, se a conformação passional das relações sociais está na base deste estado de
guerra, é necessário fazer com que ela não influa na forma de instituição da soberania,
que se dá unicamente segundo um cálculo racional, segundo o qual cada um decide pela
alienação absoluta do direito natural através do contrato. Neste sentido, a relação entre o
estado civil instituído pelo contrato e a sociedade tal como Hobbes a concebe é
necessariamente de transcendência; o poder soberano torna-se o único autorizado a
utilizar a violência com vistas a garantir a ordem política, porque se é o único capaz de
decidir o justo e o injusto, e não poderia decidir contra sua própria existência e
conservação; daí que, como dirá Agamben, ele se encontra acima ou fora do contrato, e
conserva-se no estado de natureza4. Deste modo, compreende-se que a concepção
4 Embora Hobbes, por exemplo, reconheça a possibilidade de utilização da violência em legítima defesa, não admite que o súdito conserve este direito em nenhuma outra hipótese, nem mesmo para repelir uma decisão do soberano que possa ser iníqua, uma vez que Hobbes também não admite que tal decisão possa
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hobbesiana de paz seja a ausência de disposição para a guerra, e não ausência da guerra
em si mesma. Trata-se, antes, do reconhecimento do caráter absoluto da soberania, a
partir do qual se julga como absolutamente negativa a capacidade de resistência
organizada contra o poder constituído. A guerra civil implica a perda de uma
característica central da soberania, o monopólio da coação física, resultando na própria
suspensão de sua posição absoluta que permite dizer o que é justo ou o que é injusto.
Hobbes tentou mitigar esta limitação concreta da soberania através da
idealização dos efeitos do contrato social: seja qual for o motivo pelo qual se forma a
vontade que dá origem ao pacto, uma vez instaurado, a sujeição ao soberano é absoluta,
justamente por ser voluntária5. E como a condição humana no estado de natureza é o
isolamento e a solidão, os homens se reúnem para pactuar enquanto indivíduos; logo,
embora se reconheça a liberdade de resistir nos casos em que a finalidade da instituição
da soberania, a auto-preservação, seja contrariada, “ninguém tem a liberdade de resistir
à espada do Estado, em defesa de outrem, seja culpado ou inocente”, como diz Hobbes
(1979, p. 134). Pela resistência, individual ou coletiva, o poder soberano de vida e de
morte não fica abolido ou limitado, porque deste poder depende a segurança dos
súditos. Ademais, como a concepção hobbesiana de soberania implica a referida
transcendência absoluta do poder em relação aos cidadãos, a participação da multidão
na tarefa de conservação comum é, desde o início, excluída (HOBBES, 1979, p. 104):
Mesmo que haja uma grande multidão, as ações de cada um dos que a compõem forem determinadas segundo o juízo individual e os apetites individuais de cada um, não poderá esperar-se que ela seja capaz de dar defesa e proteção a ninguém, seja contra o inimigo comum, seja contra as injúrias feitas uns aos outros. Porque divergindo em opinião quanto ao melhor uso e aplicação de sua oposição mútua reduzem a nada a sua força. E devido a tal não apenas facilmente serão subjugados por um pequeno número que se haja posto de acordo, mas, além
ser injusta. Como mencionamos, o que não pode ser considerado justo ou injusto é justamente aquilo que, para Hobbes, encontra-se no estado de natureza. Esta interpretação é a mesma, por exemplo, de Agamben. Ver Agamben (1997, p. 115-122). 5 Quanto a este ponto, as teorias hobbesiana e rousseauniana não se distinguem. Embora, por exemplo, Rousseau critique Hobbes ao dizer que ninguém transfere seu direito senão para ser livre, e que o medo não pode ser o fundamento do contrato, ele implica na alienação total dos direitos à comunidade toda (O Contrato Social, I, VI), de maneira unânime, ato pelo qual se forma o corpo político dirigido pela vontade geral. O poder do corpo político sobre seus membros, enquanto dirigido pela vontade geral, é absoluto (O Contrato Social, II, IV). Mas como vontade geral não se confunde com a vontade de todos ou da maioria (ela é, antes o atributo comum à diversidade opiniões), ela vale também para aqueles que não aceitam o ato soberano. Não sem razão, Rousseau desaconselha a existência de partidos (1979, p. 47): “importa, pois, para alcançar o verdadeiro enunciado da vontade geral, que não haja no Estado sociedade parcial, e cada cidadão só opine de acordo com si mesmo”.
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disso, mesmo sem haver inimigo comum, facilmente farão guerra uns aos outros por causa de seus interesses particulares. Pois se fosse lícito supor uma grande multidão capaz de consentir na observância da justiça e das outras leis da natureza, sem um poder comum que mantivesse a todos em respeito, igualmente o seria supor a humanidade inteira capaz do mesmo. Nesse caso não haveria, nem seria necessário, qualquer governo civil, ou qualquer Estado, pois haveria paz sem sujeição.
A história da guerra civil inglesa mostrou, no entanto, que mesmo violência e o
terror da soberania são impotentes para transformar as vontades e manter os homens em
respeito. Vê-se que, sem a obediência, a extensão ilimitada da soberania adquire uma
existência puramente teórica. No balanço hobbesiano da guerra, por conseguinte, a
ignorância do vulgo supera seu medo da morte violenta: atenta apenas a seu interesse
particular e, portanto, disposta a se considerar livre em detrimento das razões de
segurança comum, a multidão está sujeita a ser persuadida por qualquer discurso
sedicioso que ensine desobedecer (HOBBES, 1992, p. 9). Em virtude disso, Hobbes
reivindica a difusão, através da educação pública, de uma “ciência da obediência”
(1992, p. 207):
Pode ser que penses que, para que alguém conheça o dever que tem para com seu governante e saiba qual é o direito que este tem para lhe ordenar, não necessita senão que um bom juízo natural; mas não é assim. Pois isto constitui uma ciência, construída sobre princípios claros e seguros e que deve ser aprendida mediante um estudo profundo e cuidadoso, ou de mestres que a estudaram profundamente.
2.2 Obediência, imaginação e as origens do poder violento
Se para obedecer é preciso ter ciência, perguntaria Spinoza, por que razão seriam
os seres humanos, imersos na dinâmica passional, levados a pactuar a alienação absoluta
de seu direito natural? Com efeito, só a violência soberana pode garantir este tipo de
transferência de direitos e, nesse caso, sendo a finalidade da instituição do Estado a
segurança comum, parece claro que a soberania é a própria ameaça à paz e à
conservação coletiva. Devemos concluir que tal alienação violenta é, sobretudo,
precária e contraditória com o direito natural. Por ela, o soberano mantém seu direito
apenas enquanto durar seu poder de fazer tudo o que quiser; mas é imediatamente
privado deste direito perante alguma força superior a sua. Além disso, como a força dos
pactos reside na sua utilidade, o menor sinal de fraqueza do poder violento é motivo
para rompê-lo, pois é “insensatez uma pessoa pedir a outra que jure para todo sempre,
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sem tentar, ao mesmo tempo, fazer com que a ruptura desse pacto traga ao que o romper
mais desvantagens que vantagens” (SPINOZA, 2003, [193-194], p. 238).
É mesmo a utilidade, segundo Spinoza, que leva à obediência. Contudo não é
tanto pela posse da ciência e da razão que os homens são levados a obedecer, mas por
razões da experiência imaginativa e afetiva. A noção de utilidade surge daquilo que, ao
nos afetar, estimula nossa potência de agir (dispõe nosso corpo a afetar e ser afetado de
muitas maneiras) e que, por ser coerente com nosso esforço de auto-conservação,
desejamos obter e nos esforçamos, na sua ausência, por imaginar (SPINOZA, 2007, IV,
Prop. 38). Até aqui, podemos ver uma argumentação muito próxima do individualismo
apropriador hobbesiano, pois pelas leis de nossa natureza temos direito a todos os bens
que sirvam a nossa utilidade. Todavia, quanto mais uma coisa nos é útil e, portanto,
aumenta nossa potência de agir e de existir, acrescenta Spinoza (2007, IV, Prop. 29-30),
mais tem algo em comum com a nossa natureza. De maneira que nenhuma coisa
singular pode nos fazer experimentar tanto o aumento de nossa potência de agir quanto
aquilo que mais tem em comum conosco, ou seja, nada é mais útil ao homem do que o
próprio homem e sendo, assim, o desejo de apropriação é tão intenso entre os homens
quanto o desejo de ajuda mútua e cooperação6. Ao contrário do que sustenta Hobbes,
portanto, a condição natural humana é tanto definida pelo conflito como pela
cooperação.
É raro que os homens vivam sob a condução da razão. Em vez disso, o que ocorre é que eles são, em sua maioria, invejosos e mutuamente nocivos. Mas, apesar disso, dificilmente podem levar uma vida solitária, de maneira que, em sua maior parte, apreciam muito a definição segundo a qual o homem é um animal social. E, de fato, a verdade é que, da sociedade comum dos homens advêm muitas mais vantagens que desvantagens. Riam-se os satíricos, pois, das coisas humanas, o quanto queiram; execrem-nas os teólogos; enalteçam os melancólicos, o quanto possam, a vida inculta e agreste, condenando os homens e maravilhando-se dos animais. Nem por isso deixarão de experimentar que, por meio da ajuda mútua, os homens conseguem muito mais facilmente aquilo de que precisam, e apenas pela união de suas forças podem evitar os perigos que os ameaçam por toda parte. (SPINOZA, 2007, IV, Prop. 15, Esc.).
6 Hobbes concebe a competição e o isolamento como resultados necessários do processo de socialização anterior à instituição do Estado. “Os homens não tiram prazer algum da companhia dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder comum capaz de mantê-los em respeito [...] De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro: a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória”. (HOBBES, 1979, p. 75).
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A sociedade baseada na ajuda mútua, como disposição natural humana fundada
no esforço de conservação comum, tem sua potência aumentada no estado civil,
instituído na esperança de preservar e ampliar as vantagens da cooperação. Spinoza não
pretende afirmar, contudo, que a instauração de uma sociedade fundada na cooperação,
ou os efeitos que dela decorrem, seja um processo idílico, utópico. Embora a violência
das dissensões e as causas de discórdia na sociedade sejam minimizadas na mesma
proporção em que a cooperação prevalecer sobre outras formas de relação social, ainda
assim é impossível eliminá-las. Seria imaginar os homens e as sociedades
diferentemente do que são: perpassadas por uma luta constante entre o desejo de
liberdade e o desejo de dominação entre as diferentes classes que compõem o corpo
social. Por este motivo, a alienação de todo o poder ao soberano com vistas a garantir a
paz pela eliminação de toda possibilidade de guerra e de luta será duramente criticada
por Spinoza (1979, VI, § 4, p. 324):
[...] se a paz tem que possuir o nome de servidão, barbárie e solidão, nada há de mais lamentável para o homem que a paz. Entre pais e filhos há certamente mais disputas e discussões mais ásperas que entre senhores e escravos e, todavia, não é do interesse da família, nem do seu governo, que a autoridade paterna seja um domínio e que os filhos sejam como escravos. É, pois, a servidão, e não a paz, que requer que todo poder esteja nas mãos de um só; tal como já dissemos, a paz não consiste na ausência de guerra, mas na união das almas, na concórdia.
Ao definir o direito natural por tudo aquilo que fazemos em função de nossa
potência e, portanto, tanto pelo que fazemos sob a condução da Razão quanto pelo que
fazemos em função de nossos desejos, Spinoza estabelece (1979, II, §15, p. 312), ao
mesmo tempo, as bases para a crítica do que chamou de estado de natureza puramente
teórico, definido pela barbárie e pela solidão. Pois se é verdade que os homens, em
função dos afetos, lutam entre si, é igualmente verdadeiro que são tanto mais potentes
para se defender de qualquer violência quanto mais cooperarem7. A potência é, pois,
limite e sustentação do poder que os homens exercem uns sobre os outros. Ela
determina um desejo coletivo de liberdade e de governar inerentes à sociabilidade
natural, uma vez que buscamos o que é útil não apenas para nós mesmos, mas para
todos, esforçando-nos para que todos vivam segundo nosso ingenium, nosso
7 “Chegamos, portanto, a esta conclusão: que o direito natural, no que respeita propriamente ao gênero humano, dificilmente se pode conceber, a não ser quando os homens têm direitos comuns, terras que podem habitar e cultivar em comum, quando podem vigiar a manutenção do seu poder, proteger-se, combater qualquer violência e viver segundo uma vontade comum”. (SPINOZA, 1979, II, § 15, p. 312).
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temperamento (SPINOZA, 2007, IV, Prop. 37, Esc. 2). A transição para o estado civil,
tal como o pensamento spinoziano a concebe, é a título precário. A ordem está sujeita a
ser rompida quando sua utilidade desaparece; o jusnaturalismo de Spinoza, portanto,
não se prende à figura do contrato: poderíamos dizer que se trata mais propriamente de
uma teoria da hegemonia, ou seja, da capacidade de equilibrar força e consenso
(imaginativo), que explica a conservação, sempre tensa e sujeita a revezes, do Estado8.
Por este motivo, Spinoza vai além, procurando demonstrar por que os homens, levados
por seus desejos, tornam-se inconstantes e suscetíveis a ser arrastados em direções
opostas em face das diversas dificuldades e incertezas, podendo ser levados pelo medo e
pela esperança a assumir uma tendência contrária a sua própria vida, como no caso da
instituição de um poder violento ou uma tirania. Trata-se do que poderíamos chamar
não tanto de um desejo de servidão, mas de um desejo de ordem, um mecanismo afetivo
espontâneo pelo qual lidamos com a violência das causas exteriores que ameaçam
“desordenar” nosso corpo. De início, podemos afirmar que, se tal violência é
internalizada e passa a conformar os traços do caráter humano, isto se dá apenas à
medida que, pelas limitações relativas de nossa resistência imediata e corporal a ela,
podemos ser levados a imaginar muitas coisas nocivas como vantajosas. Em todo caso,
buscando seguir as deduções de Spinoza, reconhecemos que todas as instituições, sejam
as que instituem e preservam a liberdade, sejam as que fundam a tirania, parecem ter
uma raiz comum: a “superestrutura” composta pelo direito, pela religião e pela moral é
expressão imaginativa da reação coletiva às diferentes formas de violência
experimentadas pelo corpo social, cujo caráter será condicionado pelas “ações
recíprocas” entre seres humanos e suas circunstâncias materiais.
A imaginação é entendida por Spinoza (2007, II, Prop. 40, Esc. 2) como modo
espontâneo de funcionamento da mente, enquanto ela forma idéias mutiladas e confusas
daquilo que ocorre ao corpo9 e, como tal, é um gênero de conhecimento enraizado em
nossa experiência imediata. Não importa aqui que nos aprofundemos na seqüência de
8 A perspectiva de Spinoza é, como define François Zourabichvili, de um conservadorismo paradoxal: quanto mais aberto a mudança e ao conflito, como no caso da democracia, mais o Estado tende a se conservar, em função de sua plena coerência com a condição natural humana. Ver Zourabichvili (2002). 9 Spinoza entende por unidade entre mente e corpo o fato de que o objeto que constitui a idéia da mente humana não é senão o seu corpo, ou seja, uma coisa singular existente em ato.
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proposições e demonstrações de sua dedução na Ética. Basta dizer que, sendo a “ordem
e a conexão das idéias é mesma que a ordem e a conexão das coisas” (SPINOZA, 2007,
II, Prop. 7), uma vez que nosso corpo retém traços dos corpos que o afetam, formamos
idéias de tais afecções, seja percebendo o modo pelo qual as partes constituintes do
corpo afetam umas as outras, seja percebendo o modo pelo qual estas partes são
afetadas pelos corpos exteriores, ainda que de maneira parcial. Tais idéias, pelo mesmo
princípio, são formadas segundo a mesma ordenação e concatenação das afecções do
corpo, ou seja, nossa mente as concebe segundo a ordem como elas nos afetam
habitualmente10.
Spinoza rejeita, assim, uma ficção central do pensamento moderno, segundo a
qual a mente tem um poder absoluto sobre o corpo, podendo dirigi-lo e determiná-lo
como bem queira11. O corpo individual e coletivo se constitui como memória de suas
afecções, determinando a mente a imaginar as coisas tal como elas foram ordenadas
pelo hábito. Por si mesmo, este fato não pressupõe nenhuma valoração moral prévia; é,
aliás, a partir dele que são construídas as noções morais de justo/injusto, bem/mal,
pecado/mérito: “não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a
queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrário, é por nos esforçarmos
por ela, por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la que a julgamos boa” (SPINOZA,
2007, III, Prop. 9, Esc.). Do mesmo modo, uma ação pode ser considerada violenta
unicamente quando remetida a estes valores que, contudo, são externos à própria ação
(SPINOZA, 2007, IV, Prop. 59, Dem. Alt. e Esc.):
Diz-se que uma ação é má apenas à medida que surge por sermos afetados de ódio ou de algum outro afeto mau. Ora, nenhuma ação, considerada em si só, é boa ou má [...]. Explica-se isso mais claramente com um exemplo. A ação de golpear, enquanto fisicamente considerada, e se nos limitarmos a observar que o homem levanta o braço, cerra o punho e move, com força, o braço para baixo, é uma virtude que se concebe por causa da estrutura do corpo humano. Agora, se um homem, levado pela ira ou pelo ódio, é determinado a cerrar o punho ou a mover o braço, isso ocorre, como mostramos na segunda parte, porque uma só e mesma ação pode estar associada às mais diversas imagens das coisas. Podemos, assim, ser determinados a uma só e mesma ação, tanto por causa de imagens das coisas que concebemos confusamente, quanto por imagens das coisas que concebemos clara e distintamente. É, pois, evidente que, se os homens
10 Deste modo, dá-se a gênese da memória para Spinoza (2007, II, Prop. 18). 11 No Prefácio da Parte V da Ética, Spinoza ironiza Descartes, por sua incoerência metodológica ao formular uma teoria da “glândula pineal”, órgão responsável por mover o corpo segundo as determinações da alma (Ibid., V, p. 367): “não posso, certamente, surpreender-me o bastante de que tal filósofo admita uma hipótese mais oculta que todas as qualidades ocultas. Que compreende ele, afinal, por união da mente e do corpo?”. Ver também Spinoza (Ibid., II, Prop. 49).
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pudessem ser conduzidos pela razão, todo desejo que surge de um afeto que é uma paixão seria ineficaz.
Daí a importância decisiva da teoria dos afetos em Spinoza (2007, III,
Definições): nossa potência de agir e pensar é aumentada ou diminuída por eles de
modo necessário e independente de nossa vontade, tanto quanto não controlamos as
afecções do corpo ou as idéias destas afecções. Consideradas em si mesmas, tampouco
as imaginações são erros ou defeitos, mas espécies de afirmações da mente que colocam
a existência de nosso corpo e dos corpos exteriores, mesmo que estes não lhe estejam
presentes (SPINOZA, 2007, II, Prop. 17, Esc.). Mas tal afirmação não depende da
explicação da natureza de nosso corpo nem dos corpos exteriores; enquanto
determinada pelo encontro fortuito com as coisas, a mente forma idéias parciais ou
inadequadas, ou seja, idéias das quais ela mesma só é causa parcial, em concurso com as
idéias das coisas que lhe afetam. Há, portanto, afetos ativos e afetos passivos, ações e
paixões da mente: enquanto os primeiros decorrem de uma autodeterminação da mente,
produzindo idéias que são adequadas, os segundos são produzidos pelos encontros das
partes que constituem o nosso corpo, seja com outras partes, seja com os corpos
exteriores, determinando a mente a formar idéias inadequadas.
Ressaltemos que, quando falamos de corpos exteriores, nos referimos também
aos corpos humanos, que imaginamos como semelhantes a nós. Eis que, para Spinoza, a
base material da sociabilidade não é uma identificação racional entre consciências e
interesses, mas um mimetismo afetivo: imaginamos nosso próprio corpo sendo afetado
pelos mesmos afetos que supomos afetar algo semelhante a nós e, deste modo, somos
capazes de coletivamente nos alegrarmos, nos entristecermos e, enfim, desejamos as
mesmas coisas. Entretanto, nos esforçamos por perseverar em nosso ser por uma
duração indefinida, mesmo quando estamos sujeitos a paixões (SPINOZA, 2007, III,
Prop. 9); em todas as circunstâncias, nossa mente esforça por imaginar e realizar
aquelas coisas que estimulam ou aumentam a potência de agir de nosso corpo
(SPINOZA, 2007, III, Prop. 12) e, por isso mesmo é levada a desejá-las. Assim, do
mesmo modo, esforçamo-nos por imaginar e afastar de nós aquilo que nos leva à
impotência (SPINOZA, 2007, III, Prop. 28). Em outros termos, não há contradição
interna entre nosso conatus e a imaginação: ela não suprime a potência de nossa mente,
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que consiste em ordenar e concatenar a as afecções do corpo de maneira a afirmar sua
existência tanto quanto é possível, ainda que de maneira inadequada.
Mas uma vez que a potência das causas exteriores, dos afetos passivos ou
paixões, pode superar indefinidamente nossa própria potência de pensar e de agir,
quanto mais determinada por estas causas, menos a mente está propriamente na posse de
sua potência de pensar, ou seja, menos temos o poder de ordenar as afecções de nosso
corpo. Como diz Spinoza (2007, IV, Prop. 4), seria absurdo supor que os seres humanos
não estão submetidos a esta potência enquanto parte da natureza, que não existe nem
pode ser concebida sem as demais. A tal ponto que nosso esforço por perseverar na
existência pode nos levar a desejar a única ordem que, em meio à confusão e à
desestabilização dos afetos, nos é dada: a ordenação imaginária do real12, os símbolos e
práticas que constituem as instituições, as quais pensamos desejar livremente, pois
estamos conscientes apenas do próprio desejo e não de suas causas.
E como as coisas que podem ser imaginadas facilmente são mais agradáveis do que as outras, os homens preferem a ordenação à confusão, como se a ordenação fosse algo que, independente da nossa imaginação, existisse na natureza (SPINOZA, 2007, I, Apêndice).
2.3 A precariedade do poder violento e a necessidade da instituição do povo em
armas
Paradoxalmente, o mesmo fundamento passional torna qualquer poder violento
pouco durável: de fato, aquele que detém o poder também está submetido às paixões, a
tal ponto que, quanto mais concentrado for este poder, mais imagina que todos devem
se submeter a seu arbítrio, ainda que suas ordens sejam absurdas e contrárias à
preservação da vida dos súditos. É por isso que, se “o maior poder é o daquele que reina
sobre o ânimo dos súditos”, ainda assim é forçoso constatar que “não se podem
submeter os ânimos da mesma forma que se submetem as línguas” (SPINOZA, 2003,
[202-203], p. 252). Se pretenderem ser duradouras, portanto, as instituições devem ser
12 Seria importante desenvolver a relação entre a ordenação imaginária e hábito, tal como Spinoza faz no escólio da prop. 18 da parte II da Ética. Com efeito, o hábito projeta no tempo a constituição imaginária de um corpo individual e coletivo. Ver Bove (1996).
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de tal modo constituídas que visem apenas a refrear os excessos decorrentes das paixões
humanas, de maneira que cada um imagine obter delas a maior vantagem, segundo
aquilo que deseja e que julga lhe ser útil. Em outros termos, quando a multidão associa
o seu próprio esforço de auto-conservação às instituições vigentes, prestará a elas sua
obediência, independentemente de sua origem violenta. Esta mesma ratio institucional
calcada no imaginário leva Spinoza a conceber a democracia como o regime o mais
natural possível, ainda que a experiência mostre ser este regime o mais suscetível à
discórdia e à sedição. Neste caso, a própria multidão reconhece sua potência de agir e
existir como fundamento das instituições, sendo desnecessário, portanto, produzir
obediência através do medo e esperança.
Ainda que por razões de sobrevivência a imaginação coletiva seja levada a
perceber a utilidade comum na tirania, em função do desejo de ordem que mencionamos
anteriormente, o poder constituído depende da potência da multidão e é nele que busca
se apoiar, tanto quanto possível, para se conservar. Neste caso, o detentor do poder
percebe que, pela violência e pela força, pode-se submeter o corpo ou a mente de um
indivíduo ou de uma coletividade apenas durante certo tempo, já que esta força não
produz obediência senão enquanto supera a potência destes. No caso em que a própria
dinâmica passional do soberano lhe impeça de reconhecer a debilidade intrínseca de seu
poder, seu esforço será constituir e reforçar um corpo militar capaz de prolongar esta
submissão indefinidamente.
Uma vez constituída a milícia a serviço do soberano, a grande dificuldade para
os militares estaria, segundo Spinoza, em aceitar ordens daqueles cujos corpos
imaginam estar ou efetivamente estão sob sua dependência13. A vida ordinária e
comum, o excesso de procedimentos da democracia e a passionalidade do vulgo são
como corpos estranhos para seu metabolismo combatente. Seguindo a lógica
maquiaveliana – lembremos que Maquiavel rejeitava qualquer alternativa a não ser um
exército composto por todos os cidadãos em idade adulta, mobilizado apenas nas
13 Hobbes, por exemplo, reconhece que o direito de rectrutar e mandar nos soldados é essencial para a soberania. Ver, na p. 3 deste trabalho, a citação do Behemoth de Hobbes.
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situações de emergência para o Estado14 – Spinoza compreende (1979, VI, § 31, p. 329)
que a necessidade do armamento popular decorre da assimetria, em termos da própria
potência, que a burocratização da atividade militar gera, fazendo com que o poder se
apóie não mais na potência da multidão, mas na potência dos corpos armados, o que se
agrava quando a profissão militar é remunerada. Na perspectiva spinoziana, nada
poderia ser mais nocivo à conservação de um Estado: remunerar com soldo a milícia
significa premiar a atividade que consiste justamente em colocar sob sua dependência o
corpo da multidão15 e estimular o que já é tendência presente em todo corpo social, de
que um grupo se aproprie pela força das armas da potência coletiva. É claro, como
vimos anteriormente, que quando o poder só depende da força das armas é muito
precário e está sujeito a ser superado por uma maior força militar. Portanto, o problema
torna-se mais grave se, além disso, na imaginação da multidão as instituições militares
são a única e verdadeira força da soberania.
Cabe lembrar que cada corpo social tem demandas próprias neste sentido, já que
é constituído de modo singular pela ordenação habitual de certos afetos e imagens
decorrentes das relações que suas partes componentes estabelecem entre si, ou seja, do
modo de produção da vida no interior do qual muitos indivíduos participam da
consecução de um esforço comum de perseverar na existência. As necessidades de
defesa integram necessariamente este esforço, e a criação de instituições que visam
assegurar este objetivo imanente ao conatus coletivo é sua expressão no imaginário
popular. Este é o motivo pelo qual, para Spinoza, o povo armado é a base de sustentação
segura de qualquer regime político e, ao mesmo tempo, garantia da preservação da
liberdade, já que possibilita à multidão resistir à violência do soberano16. A democracia
14 O Príncipe,caps. X, XII, XIII, XIV e Discursos, Livro I, caps. II, XL, XLVI, LIV, Livro II, caps. XVI, XX, Livro III, caps. XVI, XXIV. 15 “Segue-se, do que precede, que cada qual está na dependência de outrem na medida em que esta no poder desse outro, e que pode repudiar qualquer violência, castigar como julgar bem o dano que lhe é causado e, de maneira geral, viver segundo a sua própria compleição. Esse é o que tem outro em seu poder, que o mantém aprisionado, ou ao qual tomou todas as armas, qualquer meio de se defender ou escapar, ou a quem soube inspirar temor, ou que a si ligou por favores, de tal maneira que esse outro lhe queira agradar mais que a si mesmo, e viver consoante o seu próprio desejo”. (SPINOZA, 1979, II, § 9-10, p. 311). 16 No caso da monarquia, Spinoza utiliza o exemplo dos Aragoneses, que depois de se libertar do domínio mouro, não apenas elegeram o rei, mas criaram instrumentos para refrear seu poder e, nos primórdios, inclusive depô-lo. Direito que foi abolido, mas “com esta, condição, todavia, os cidadãos poderiam, em qualquer altura, tomar armas contra quem quisessem, pela violência usurpar o poder em seu detrimento, contra o próprio rei e contra o príncipe herdeiro, se tentassem semelhante usurpação. Estipulando essa condição, corrigiram o direito anterior. Pois como demonstramos nos parágrafos 5 e 6 do capítulo IV, é
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é, entre eles, o mais absoluto dos regimes, pois apesar dos conflitos e dissensões que a
perpassam, é mais potente para se conservar já que cada um obedece e defende a si
mesmo.
A força armada deve ser composta apenas por cidadãos e por todos sem exceção. Um homem armado, com efeito, é mais senhor de si mesmo do que um homem desarmado, e os cidadãos transferem absolutamente o seu direito a um outro e entregam-se inteiramente à sua lealdade quando lhe deixam as armas e lhe confiam a defesa das cidades. (SPINOZA, 1979, VII, § 17, p. 346-347).
3. Conclusão
Com base nas considerações precedentes, a recusa da alienação política total
parece ser a característica central da crítica de Spinoza ao absolutismo burguês e sua
concepção jurídica: para Spinoza, não apenas é contraditório, mas impossível que
alguém transfira seu direito natural absolutamente. Uma vez que há uma variedade de
modos de exercer o poder e, conseqüentemente, de organização coletiva ou resistência,
a cada forma política corresponde um quantum de direito natural, preservado no interior
do Estado. Spinoza compreende que isto é um problema de proporção geométrica e se
dedica no Tratado Político à análise dos diferentes regimes políticos – monarquia,
aristocracia e democracia – segundo essa ordem. É por isso que, aliás, a democracia é
para Spinoza o único regime inteiramente absoluto: na democracia spinoziana é a
potência da multidão que detém e exerce diretamente a soberania, e o faz em virtude de
seu próprio direito natural.
Como diz Spinoza, numa cidade em que o soberano concentra em suas mãos a
tarefa de garantir a segurança e a defesa comuns, instituindo uma milícia unicamente em
proveito da conservação de seu poder, e não segundo os interesses e desejos da
multidão, podemos dizer que “a paz é efeito da inércia dos súditos conduzidos como um
pelo direito de guerra, não pelo direito civil que o rei pode ser privado de seu poder; à sua violência os súditos não podem resistir senão pela violência”. (Ibid., VII, § 30, p. 340). Com relação à constituição aristocrática, a igualdade não é mais entre todos os cidadãos, mas entre os patrícios, que devem estar, no entanto, reunidos em assembléia em número suficiente para evitar que o poder caia na mão de poucos. Por este motivo, deve-se não apenas garantir que a milícia seja uma função extraordinária, quanto que os chefes militares sejam nomeados apenas em tempo de guerra, com tempo de mandato estabelecido previamente. Ver Spinoza (Ibid., VIII, § 9, p. 344).
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rebanho e formados unicamente na servidão” e, neste sentido, “merece mais o nome de
solidão que de cidade” (SPINOZA, 1979, V, § 4, p. 322). Por isso, podemos dizer que
encontramos em Spinoza a paradoxal afirmação de que a estabilidade da cidade está na
razão direta da manutenção do “direito à insurreição” pelos súditos que, ao assumirem a
tarefa de por si próprios preservarem as instituições, evitam as usurpações que podem
levar à tirania.
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O SENTIDO DE UMA FILOSOFIA BRASILEIRA
Márcio Daniel da Costa Nicodemos Graduando em Filosofia da UFRJ
Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar em que sentido é possível falar de uma filosofia brasileira; discorrendo, para isso, sobre três questões: (1) a universalidade versus a particularidade dos problemas filosóficos, (2) a importância da tradição filosófica (tanto a universal como a particular) e (3) a originalidade do pensamento; tomando como exemplo ilustrativo para a discussão de tais questões a vida e a obra do filósofo brasileiro Farias Brito, a fim de mostrar como o seu pensamento filosófico que surge profundamente relacionado com as questões particulares da realidade nacional, atinge um nível universal, insere-se, ao mesmo tempo, na tradição mundial e brasileira, e é original. Palavras-chave: Farias Brito. Filosofia Brasileira.
1. Introdução
Em que sentido é possível falar de uma filosofia brasileira? Tal questionamento
é formado, na realidade, por outros dois questionamentos aí implícitos: (1) em que
sentido é possível falar de uma filosofia no Brasil? E (2) em que sentido é possível falar
de uma filosofia do Brasil? Para responder ao primeiro questionamento podemos
recorrer à história, pois observando a trajetória do ensino de filosofia no Brasil, veremos
que desde o século XVI, com a chegada dos jesuítas ao país e a fundação dos colégios
da Companhia de Jesus, até hoje, com as mais diversas faculdades, institutos e centros
de pesquisa, há uma cultura filosófica presente no país através de um estudo
disciplinado da filosofia com cursos, aulas, professores, alunos, pesquisa e produção de
trabalhos; de modo que se torna claro que neste sentido é que é possível falar de uma
filosofia no Brasil. Porém, para respondermos ao segundo questionamento,
complementando o primeiro e respondendo à questão inicial, precisaremos recorrer não
somente à história, mas também à própria filosofia, pois teremos que investigar algumas
questões como: (1) a universalidade versus a particularidade dos problemas filosóficos,
(2) a importância da tradição filosófica (tanto a universal como a particular) e (3) a
originalidade do pensamento.
2. Universalidade versus particularidade
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A primeira questão que investigaremos será a universalidade versus a
particularidade dos problemas filosóficos:
A eterna luta entre o universal e o particular é um dos grandes problemas
filosóficos existentes que se reflete em todos os outros problemas filosóficos e está
presente na própria essência da filosofia, pois o filósofo quando investiga determinado
problema tem como objetivo realizar um esforço para libertar-se de suas condições
históricas e culturais e atingir um ponto de observação universal; ou seja, ele tem como
objetivo temporariamente afastar-se da instância particular para aproximar-se da
instância universal e é a filosofia enquanto uma atividade permanente do espírito
humano, tal Farias Brito a entendia, na tentativa do homem de colocar-se acima de sua
condição, de ver sua condição fora de si mesmo, tal Vilém Flusser a entendia, que torna
possível ao filósofo realizar a desestruturação dos padrões histórico-culturais vigentes
de sua época para situar-se frente ao mundo e frente a si mesmo de outro ponto de vista,
mais amplo e isento. De modo que:
Do ponto de vista de sua universalidade, a filosofia é indiferente à pessoa do filósofo exatamente porque o alcance e a validade dos argumentos, doutrinas e idéias não se limitam ao tempo nem ao espaço da existência histórica de seus autores (CERQUEIRA, 2002: 20).
[...] [e] embora a universalidade da filosofia seja indiferente à pessoa do filósofo, ela não exclui a pessoa do filósofo. O que se concebe como problema filosófico supõe a sua historicidade no sentido de que a autoconsciência implica a existência histórica do filósofo, bem como do estudante de filosofia, dentro de um contexto cultural (CERQUEIRA, 2002: 29).
Por isso, ao iniciarmos algum estudo filosófico é sempre importante
considerarmos os aspectos histórico-culturais da época a qual se estuda porque somente
assim teremos uma visão completa e correta das respostas particulares que foram dadas
às questões universais e poderemos conduzir com segurança nossa investigação, pois
situar um pensamento filosófico em sua época de origem é o que nos permite
vislumbrar todas as épocas, percebendo que embora haja variações nas respostas as
questões são sempre as mesmas, donde se conclui que a universalidade e a
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particularidade são as duas instâncias em eterna tensão nos problemas e no pensamento
filosófico.
3. A importância da tradição
A segunda questão que investigaremos será a importância da tradição filosófica
(tanto a universal como a particular):
A tradição, na filosofia, é o que permite que o conhecimento acumulado ao
longo dos séculos possa conservar-se e transmitir-se, estabelecendo para as futuras
gerações de filósofos sempre um ponto inicial mínimo de investigação sobre as questões
a serem tratadas devido às repostas que já foram dadas anteriormente. Assim, todo
filósofo está inserido sempre em duas tradições, uma universal e outra particular, que
permitem situá-lo em relação aos filósofos de outras épocas e às mais diversas correntes
filosóficas, seja em relação a aspectos históricos, geográficos ou à própria evolução das
idéias como um todo.
Quanto à tradição filosófica universal podemos dizer que ela tem início na
Grécia e chega até os dias de hoje, não sendo muito difícil tomar conhecimento sobre
ela consultando qualquer bom livro de história da filosofia ou dicionário filosófico. No
entanto, quanto à tradição filosófica particular podemos dizer que ela varia de acordo
com o aspecto enfocado, de modo que é possível falarmos em uma tradição filosófica
antiga, medieval, moderna e contemporânea, ou idealista, realista, existencial,
fenomenológica, analítica, etc., ou ainda, numa tradição filosófica grega, espanhola,
inglesa, alemã, e, porque não, brasileira?
O Brasil possui uma tradição filosófica riquíssima, infelizmente, ignorada – ou
em alguns casos pior: negada – pela maioria dos professores de hoje, de modo que não
há uma constante crítica interna com conseqüente fortalecimento da mesma, mas ao
contrário, há um enfraquecimento que precipita nosso país numa queda em relação aos
debates atuais, pois se desconhecemos nosso passado filosófico particular, ou seja, as
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necessidades que despertaram em nós a vontade de investigar e partir em busca de
respostas universais, o modo como conduzimos tais investigações e as respostas que já
demos a algumas dessas perguntas, será em vão a tentativa de se agarrar a algum
modismo filosófico estrangeiro para dar alguma contribuição significativa ao debate
mundial.
Em linhas gerais, a tradição filosófica brasileira se inicia com Domingos José
Gonçalves de Magalhães e sua obra Fatos do Espírito Humano (1858), com a qual ele
rompe com as influências dogmáticas lusitanas e cria uma tradição autêntica, que segue
adiante com Tobias Barreto, Farias Brito, e até mais recentemente com Miguel Reale,
Vicente Ferreira da Silva, Vilém Flusser e tantos outros, todos internacionalmente com
enorme prestígio e reconhecidos como filósofos, mas praticamente desconhecidos em
seu próprio país.
Assim, fazendo um caminho inverso, podemos ver que criamos uma tradição
brasileira com o rompimento com Portugal, mas nos inserimos filosoficamente numa
tradição mundial por intermédio de Portugal e negar essa particularidade histórica e
cultural é fechar as portas que nos levam à filosofia medieval e daí à filosofia antiga, ou
mesmo à filosofia moderna e daí à filosofia contemporânea e perder-nos, como já foi
dito, em diálogos vazios com filósofos estrangeiros.
4. Originalidade do pensamento
A terceira questão que investigaremos será a originalidade do pensamento:
Um pensamento filosófico é original: “[...] na medida em que ‘original’
significa aquilo cuja existência se deve à singularidade e exclusividade de sua origem”
(CERQUEIRA, 2002: 25); ou seja, a originalidade na filosofia consiste em alguém criar
algo novo, inédito, nunca antes visto num plano universal, mas intrinsecamente
relacionado com as particularidades histórico-culturais nas quais ele surge, de modo que
sintetizamos assim uma teoria personalista da história das idéias, na qual pessoas
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geniais aparecem com idéias geniais e unicamente por sua força e vontade são capazes
de modificar toda uma época, com uma teoria naturalista da história das idéias, na qual
o Zeitgeist – o espírito intelectual reinante de determinada época – criaria respostas às
necessidades temporais imediatas, independente da pessoa, de modo que se uma idéia
não surgisse através uma pessoa surgiria, de qualquer modo, através de outra.
5. Farias Brito – um filósofo brasileiro
Agora, tomaremos a vida e a obra do filósofo brasileiro Farias Brito como
exemplo ilustrativo para as três questões que foram discutidas:
Em relação à tensão entre o universal e o particular, é interessante observar que
Farias Brito viveu no Brasil durante o turbulento período de transição do século XIX
para o século XX e toda a gênese e desenvolvimento de sua obra está profundamente
relacionado à realidade histórico-cultural brasileira; seu pensamento surge e toma forma
num momento em que o Brasil encontra-se numa profunda crise em todos os sentidos:
havia uma crise política, pois o Império estava em declínio e a proclamação da
República era iminente; havia uma crise religiosa, pois a Igreja não mantinha uma boa
relação com o Império e não era bem vista pela sociedade, se enfraquecendo e perdendo
cada vez mais prestígio; havia uma crise intelectual, pois o positivismo – que havia
chegado ao país através dos líderes republicanos se espalhava rapidamente por todos os
setores da sociedade sem encontrar resistência; e havia uma crise moral e social, pois os
brasileiros cada vez mais desorientados vagavam sem rumo; e é observando este cenário
caótico que ele começa a elaborar seu pensamento filosófico: ele observou que a crise
não era só brasileira, mas uma crise de valores ocidental que remontaria ao
Renascimento e que era preciso restaurar o sentido de ordem que estava se perdendo, de
modo que fez duras e profundas críticas ao positivismo e ao cientificismo; ou seja, é
com base em determinadas questões muito particulares que o filósofo cearense faz suas
investigações filosóficas com o objetivo de reorientar-se para reorientar o Brasil e o
mundo, e que seu pensamento cresce em profundidade até atingir um nível universal.
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Em relação à tradição, Farias Brito se insere perfeitamente numa tradição
brasileira, pois dá continuidade e aprofunda os estudos de Tobias Barreto, de modo que
por aí se insere também numa tradição mundial, numa linha fenomenológica (em
relação ao método utilizado) e existencial (em relação aos temas tratados), dialogando
no plano das idéias com filósofos como Husserl e Bergson.
E em relação à originalidade, seu pensamento filosófico foi primeiramente
considerado como tal por um professor de filosofia norte-americano chamado Fred
Gillette Sturm, segundo o qual:
A originalidade de Farias Brito consiste no fato de que ele se transformou no intérprete da crise cultural brasileira oitocentista (que culminou com a abolição da escravatura e a proclamação da república), situando-a no âmbito de uma crise da cultura ocidental que remonta ao Renascimento (CERQUEIRA, 2002: 202).
[Ela] vem da realidade cultural brasileira como origem das preocupações e inquietações que fizeram com que ele, em vista da mudança essencial na maneira moderna de pensar, conforme a “revolução copernicana” de Kant, se pusesse a investigar acerca da necessidade de um novo conceito de filosofia que, por um lado, não se reduzisse ao domínio da explicação científico-natural, e, por outro, não prescindisse daquela exigência de rigor intrínseca ao método das ciências da natureza (CERQUEIRA, 2002: 204-205).
6. Conclusão
Enfim, após toda essa discussão e após o exemplo dado, acreditamos ter
respondido à segunda questão implícita e como já havíamos respondido à primeira,
podemos então responder à questão inicial: em que sentido é possível falar de uma
filosofia brasileira?
Podemos falar de uma filosofia brasileira tanto no sentido de que há uma
filosofia no Brasil como no sentido de que há uma filosofia do Brasil; ou seja, temos
tanto faculdades e cursos, pesquisas, produções e publicações de professores e
estudantes de filosofia, configurando há séculos uma cultura filosófica presente no
Brasil, como temos intelectuais brasileiros que realizam (ou realizaram) um esforço
filosófico para elevarem seus pensamentos de um nível de interesse particular a um
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nível de relevância universal, preocupados em se inserir e dialogar corretamente com a
tradição mundial e brasileira, além de terem dado contribuições originais para
responderem a determinadas questões; de modo que podemos dizer que temos
verdadeiros filósofos, configurando também uma filosofia do Brasil.
Referências bibliográficas
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