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Revista Aproximação – 2° semestre de 2008 – N° 1 http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao 1 Revista Aproximação (Revista eletrônica dos estudantes de graduação em Filosofia da UFRJ) Volume 1 – Edição 2008/02 http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao A Revista Aproximação é uma publicação acadêmica eletrônica especializada em Filosofia. Seu objetivo principal é veicular o trabalho de pesquisa dos graduandos da UFRJ. Estamos abertos, entretanto, a qualquer proposta cujo principal interesse seja o da pesquisa filosófica. © Instituto de Filosofia e Ciências Sociais / Universidade Federal do Rio de Janeiro Expediente – Comissão Editorial Fernanda Krauss Campello, Filipe Ferreira Pires Völz, Victor Galdino Alves de Souza, Vinícius Moraes Rezende de Carvalho. Conselho Editorial Carolina de Melo Bomfim Araújo, Celso Martins Azar Filho, Ethel Menezes Rocha, Fernando José de Santoro Moreira, Franklin Trein, Guilherme Castelo Branco, Marco Antonio Caron Ruffino, Marcus Reis Pinheiro, Mário Antônio de Lacerda Guerreiro, Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa, Pedro Costa Rego, Pedro Duarte de Andrade, Rafael Mello Barbosa, Ricardo Jardim Andrade, Ulysses Pinheiro, Wilson John Pessoa Mendonça. Contatos: [email protected] Índice Editorial ........................................................................................................................... 2 A busca do necessário na dialética do Ser e do parecer no livro II de A República ........ 4 A melancolia freudiana em Benjamin: um estudo barroco sobre a modernidade ........... 9 Loucura e genialidade na filosofia de Arthur Schopenhauer .........................................18 O povo em armas: democracia e violência em Spinoza ................................................ 27 O sentido de uma filosofia brasileira ............................................................................. 43

Revista Aproximação · passa então a servir como uma ferramenta para a análise das tendências e carências de ... uma gênese da polis e do trabalho; ... mas que busca mostrar

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Revista Aproximação – 2° semestre de 2008 – N° 1

http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao 1

Revista Aproximação (Revista eletrônica dos estudantes de graduação em Filosofia da UFRJ)

Volume 1 – Edição 2008/02

http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao

A Revista Aproximação é uma publicação acadêmica eletrônica especializada em Filosofia. Seu objetivo principal é veicular o trabalho de pesquisa dos graduandos da UFRJ. Estamos abertos, entretanto, a qualquer proposta cujo principal interesse seja o

da pesquisa filosófica.

© Instituto de Filosofia e Ciências Sociais / Universidade Federal do Rio de Janeiro

Expediente – Comissão Editorial

Fernanda Krauss Campello, Filipe Ferreira Pires Völz, Victor Galdino Alves de Souza, Vinícius Moraes Rezende de Carvalho.

Conselho Editorial

Carolina de Melo Bomfim Araújo, Celso Martins Azar Filho, Ethel Menezes Rocha, Fernando José de Santoro Moreira, Franklin Trein, Guilherme Castelo Branco, Marco Antonio Caron Ruffino, Marcus Reis Pinheiro, Mário Antônio de Lacerda Guerreiro,

Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa, Pedro Costa Rego, Pedro Duarte de Andrade, Rafael Mello Barbosa, Ricardo Jardim Andrade, Ulysses Pinheiro, Wilson John Pessoa

Mendonça.

Contatos:

[email protected] Índice Editorial ........................................................................................................................... 2 A busca do necessário na dialética do Ser e do parecer no livro II de A República ........ 4 A melancolia freudiana em Benjamin: um estudo barroco sobre a modernidade ........... 9 Loucura e genialidade na filosofia de Arthur Schopenhauer .........................................18 O povo em armas: democracia e violência em Spinoza ................................................ 27 O sentido de uma filosofia brasileira ............................................................................. 43

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EDITORIAL INAUGURAL

Dá-se a público, enfim, o primeiro número da Revista Aproximação. A jornada que conduziu até estas linhas foi longa e árdua. Acreditamos ter dado o primeiro passo rumo ao nosso objetivo: o de suprir a carência de publicações em nível de graduação em filosofia na UFRJ e de servir como veículo para a investigação filosófica original, ainda que incipiente, de nossos companheiros de curso. Todo graduando deve perguntar-se em algum momento de sua carreira: "como farei filosofia?". E essa pergunta deve provocar questões e aporias a nível conceitual, pois envolve ainda a da natureza específica do exercício filosófico, o seu caráter necessário ou contingente; além disso, acaba por desenvolver, necessariamente, os nebulosos dilemas acerca de questões como a vocação para a filosofia ou o talento filosófico. Estas e outras permanecem insolúveis até agora -- e duvidamos que a existência de nossa módica revista seja sequer um tijolo na edificação interminável de suas soluções. Todavia, a mesma pergunta "como farei filosofia?" impõe uma série de outras a nível prático. São algumas dessas questões que a Revista Aproximação propõe-se a resolver.

As sociedades complexas que historicamente têm institucionalizado a Filosofia são obrigadas a deixar de lado ou embrulhar como peça de museu um dos ideais preconizados pela mesma disciplina que põem em relevo. A vida contemplativa. O exercício da filosofia como prática institucional (acadêmica) exige dos seus aspirantes mais do que a postura de sábios, exigindo também a de técnicos, secretários ou professores. O conjunto de aptidões requisitado é mais amplo do que o manuseio de conceitos. À moção de publicar um trabalho conjuga-se a ordem de problemas de caráter institucional: normas técnicas e princípios editoriais que os veículos devem necessariamente seguir. Nesse sentido, a Revista Aproximação, como revista acadêmica, propõe-se como princípio editorial máximo o de ser o princípio daqueles que estão principiando. Isso pode significar, para alguns, que a revista não dispõe de critérios. Nada mais distante da verdade: a Revista procura publicar, em regime espartano, apenas artigos de graduandos cuja experiência com publicações acadêmicas seja pouca ou mesmo nula.

A vida acadêmica de um graduando pode ser reduzida a três passos: 1) integralização do currículo 2) eleição de um tema/orientador 3) pesquisa e trabalhos voltados ao tema eleito. Entre os passos 2 e 3 uma linha retilínea costuma seguir-se. No entanto, entre o primeiro e o segundo passos costumam, ao contrário, acontecer muitas voltas e indecisões. Nesses desvios uma quantidade enorme de reflexões não chega a ganhar voz nem acabamento. A Revista abre suas portas para esses "ensaios de ocasião".

A revista também serve como um laboratório para os professores da graduação. Espera-se que a publicação seja capaz de proporcionar uma amostra, ainda que pequena, das primeiras inflexões do conteúdo depositado nos cérebros dos graduandos. A publicação passa então a servir como uma ferramenta para a análise das tendências e carências de nossa faculdade -- como a maioria dos graduandos é egressa do ensino médio, a revista é capaz de coletar dados objetivos para o debate sobre a presença ou ausência de ambiente filosófico nas nossas escolas, sobre a presença -- ou ausência -- de uma formação filosófica no ensino brasileiro.

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Para terminar, gostaríamos de registrar aqui um sincero agradecimento a todos os que contribuíram para a realização desta primeira edição através de pareceres, sugestões, ajuda técnica, participação no Conselho Editorial da revista, e/ou até mesmo através da simples confiança depositada em nosso projeto. Somos especialmente gratos ao doutorando Renato Bittencourt, da UFRJ, que contribuiu de maneira essencial para que chegássemos até estas linhas, que marcam a concretização da etapa inicial da nossa jornada. Deixamos os leitores, agora, com a edição inaugural da Revista Aproximação, que conta com alguns dos trabalhos apresentados no V Seminário de Graduação em Filosofia da UFRJ.

Comissão Editorial - Revista Aproximação.

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A BUSCA DO NECESSÁRIO NA DIALÉTICA DO SER E DO PARECER NO LIVRO II DE A REPÚBLICA

Luciano Brazil Graduando em Filosofia da UFRJ

“Ora vamos lá! Fundemos em logos uma cidade. Serão, ao que parece, as nossas necessidades

que hão de fundá-la”. (Platão, 2007, 369c).

Resumo: No vigor do questionamento acerca da justiça, surgem as noções de aparência e realidade, verdade e falsidade, justiça e injustiça; bem como a relevância dessas dicotomias perante a necessidade e a felicidade. Na plenitude dessa questão, Platão constrói no livro II de A República uma dialética que visa conciliar o problema da aparência com a justiça e a felicidade, e a constrói a partir de um bem comum, a cidade justa. Nessa dialética, impera o valor que a aparência precisa ter perante uma vontade de justiça.

Palavras-chave: Justiça. Ontologia. Platão.

O esforço de Platão em expor conceitualmente a justiça parece tão mais um

esforço entre uma oposição já bastante difundida no ocidente; o Ser e o não-Ser, a

realidade e a aparência, verdade e falsidade. A leitura de A República evidencia essa

problemática do início ao fim, que, entretanto, mostra numerosas faces e numerosos

obstáculos a ser ultrapassados. Mas não é antes uma busca meramente conceitual, é,

sobretudo, uma tentativa de estabelecer uma verdade que desague na vida prática, uma

verdade que se apresente em existência. É, pois, o esforço de aprofundar radicalmente

toda a questão do pensamento nas suas diversas interrogações.

Neste artigo, pretendo traçar um esboço a partir da discussão do livro II que

perpasse de um modo geral e ligeiro estes elementos discutidos e que têm sua forma

decisiva em todo o diálogo A República. Ver nesses elementos sua importância, desde o

argumento do livro que serve de pórtico para o restante da obra, ou seja, aquele de

Trasímaco, o de que a justiça é aquilo que está no interesse do mais forte (Platão, 2007,

338c), cuja aporia que fecha o livro I abre o livro II e revigora o nosso protagonista

Sócrates a seguir seu caminho filosófico de investigação através do logos, através de

uma gênese da polis e do trabalho; tarefa que deságua na questão da educação e que

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segundo o modelo, não apenas ático, mas de toda a Hélade, se liga intimamente à

questão da poesia e da mitologia. Portanto, a tarefa do artigo é fazer enxergar como a

dialética do Ser e do parecer animada no livro II se estende e determina cada passo dado

pelo velho protagonista na composição da cidade justa, quer seja em crítica pedagógica,

quer seja em teoria do conhecimento, quer seja, enfim, como estatuto ontológico da

justiça do justo. Vamos à tarefa.

No livro II, o mito proferido por Glauco dá continuidade a uma investigação

filosófica levantada no início do livro I, que tinha por protagonistas Sócrates, o velho

Céfalo e seu filho, e o sofista Trasímaco. Glauco, que até então participava como

ouvinte da discussão, adentra no assunto a fim de renovar o problema defendido pelo

sofista, elevando a tese deste a um limite extremo, que é o usufruto de possibilidades da

maneira mais individual possível: sem ser notado por ninguém. Nesse sentido, a justiça

é uma convenção. É porque existe o constrangimento perante a aparência que se busca

uma maneira justa de agir. Mas o interessante é que a aparência de justiça não resolve o

problema; pelo contrário, ela o duplica. Isso significa que o justo pode ser justo tanto na

aparência quanto na realidade, e da mesma forma o injusto; são quatro possibilidades.

Decorre disso que a verdadeira justiça só poderá realizar sua perfeição se ignora,

sobretudo, a aparência que lhe cobre, ao passo que a verdadeira injustiça, se torna

perfeita, na medida em que permanece o máximo possível no limite de mera aparência.

Lembremos que a discussão omitida aqui, do livro I, é uma discussão que se

pergunta não somente a oposição justiça/injustiça, mas que busca mostrar em qual das

duas há a felicidade. O que vemos no início do livro II é uma tentativa de separação

mais radical a respeito da justiça e da injustiça e onde encontraremos a felicidade. Ao

passo que se supõe a injustiça como um privilégio da aparência e a justiça não, parece

haver aí implícita uma conotação moral, ou ao menos, assim feita a divisão, restaria

indagar em qual das duas oposições há efetivamente uma superioridade qualitativa. É o

que fazem Glauco e Adimanto nesta primeira exposição do livro II. Primeiro Glauco,

tentando se convencer do contrário, defende que (Platão, 2007, 361a) “O supra-sumo da

injustiça é parecer justo sem o ser” e, posteriormente, Adimanto que (Platão, 2007,

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365c) “uma vez que a aparência subjuga a verdade, e é senhora da felicidade, é para este

lado que devemos voltar-nos por completo”.

Na conclusão do discurso dos dois irmãos, vemos nascer pela boca de Sócrates

uma cidade justa. Uma fundação em aparência, em logos, e em “letras grandes”. É que a

justiça de um único se realiza na justiça de um todo que é maior. Não é do indivíduo

para a cidade, mas da cidade para o indivíduo, que devemos compreender uma justiça

atrelada à felicidade. A dialética ontológica entre o Ser e o parecer ganha conformidade

na fundação da cidade justa; um mundo sensível que não seja destituído do inteligível,

mas que esteja afirmativamente em pleno acordo com as Formas perfeitas.

A fundação ocorre numa busca pelo necessário1, mas em um necessário que não

é exclusivamente material ou ideal. Se nos indagarmos onde se insere a origem desse

necessário a que Sócrates se refere, perceberemos que ele surge no cerne da dualidade

entre inteligível e sensível. É preciso lembrar que, de início, Sócrates inflama a cidade

de excessos, mas posteriormente a descobre muito incapaz de dar conta de si própria –

estamos falando do livro IV, cuja reflexão acerca da pobreza e da riqueza remete tanto

aos guardiões quanto ao cumprimento das demais artes. Acerca disso, é como se a

necessidade material expusesse outra necessidade, para além do material, como se o

necessário fosse um ponto de equilíbrio e de divisão que parte do plano material para o

plano imaterial. Isso permite compreender que o Ser e o parecer não se esgotam cada

um em si, mas que mantêm uma relação inerente.

Cabe notar que podemos interpretar o discurso dos irmãos de Platão; há em suas

palavras elementos suficientes para compreender uma forçosa intangibilidade a respeito

da superioridade da justiça. O que prevalece é a vontade de tornar a justiça uma virtude,

e isso é consensual tanto em Glauco e Adimanto, quanto em Sócrates. Com isso, fica

exposta também uma possível inversão da relação ser/parecer, donde a verdadeira

justiça é mera aparência, enquanto a injustiça é o verdadeiro Ser das coisas. Essa

inversão, ou paradoxo, não parece se resolver em toda A República. A fundação da

cidade ocorre, portanto, no esforço em privilegiar a vontade de justiça (Platão, 2007, 1 369c: “Serão, ao que parece, as nossas necessidades que hão de fundá-la”.

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368b): “Pois não tenho maneira de defender a justiça. Parece-me que sou incapaz [...] E,

por outro lado, não posso deixar de a defender”. A aparência subjuga a verdade, e não

se deve ignorá-la. Sendo assim, a virtude há de ser construída levando em conta o

fenômeno, o que se mostra à vista, para que com este se chegue à felicidade.

Mas afirmar essa tensão não é associar erradamente o necessário com o aparente,

e isso se aplica na configuração da cidade; da divisão dos trabalhos à adesão dos

guardiões filósofos, por exemplo: o que marca a escolha de uma determinada natureza

do guardião é ele ser capaz de discernir os amigáveis dos inimigos, e, além disso, saber

quando agir.

É preciso, portanto, enxergar criando distinções – antes de tudo distinções, pois

se quer superar o argumento de Trasímaco, que joga tudo para o plano da indistinção.

Poderíamos dizer que Trasímaco não possui uma preocupação moral, ao passo que a

ótica de Platão é profundamente moral; esse olhar que cria distinções, separações, por

isso esta pesquisa por essência e aparência e o desdobramento de um necessário, um

meio termo que se liga entre as forças da vontade, da individualidade junto ao

comunitário, ao político; e, entretanto não poderíamos afirmar como Trasímaco, que se

tratasse de um acordo; não se trata de uma convenção, a busca do necessário nos remete

para além do político e nos coloca novamente no plano ontológico. O necessário é o

ontológico, o que se liga intimamente às formas, ainda que só se possa falar de teoria

das formas a partir do livro VI. Em última instância deveríamos afirmar que o problema

do Ser, conforme as tentativas de solução forem feitas, irão convergir numa teoria do

conhecimento, presente nos livros posteriores ao livro II, sobretudo no mencionado

livro VI, onde se discutirá precisamente as Formas perfeitas e o nível de conhecimento

capaz de distinguir filósofos dos filodoxos. Para a presente tarefa, cabe a nós mantermo-

nos no cerne da tensão que se abre nos dois primeiros livros, acerca da aparência e do

Ser.

O necessário é a importância do essencial dentro deste jogo de relações. Isso

significa que destituído do essencial existe um modo de vida das cidades e dos

indivíduos que não está adequado a uma justiça. Esse é o tema do livro IV, que reflete

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acerca da importância da moderação da riqueza, da opulência, da grandeza. E que tal

moderação só torna os homens melhores em suas respectivas artes, demonstrando aí que

o necessário convém à moderação, e que esta se liga intimamente à natureza das coisas.

Decorre pensar, finalmente, não em uma negação da vontade, mas da afirmação de um

estatuto ontológico da justiça que torna possível fundar uma cidade perfeita. Se há uma

teoria do conhecimento, bem como todas as outras investigações ao longo dos livros

seguintes, estas se voltam, quer seja como método, quer como conteúdo, a saber, aos

cidadãos da polis, prezando esse estatuto ontológico do que é justo.

Ora, a remissão aos livros posteriores ao II nos leva a concluir, por fim, que a

busca pelo necessário extrapola o livro II, e que em última instância, a constatação desse

necessário é um pressuposto que converge o aparente e o essencial, e que atravessa toda

a criação da cidade perfeita e caminha junto à aporia acerca da justiça na busca por esta.

A cidade que se funda baseada no necessário e que tem na natureza das coisas o

ideal só pode revelar sua sabedoria dentro de um projeto educacional, isto é, a cidade

justa é um projeto ético que tem a educação como base, donde o extenso trabalho e o

esforço expansivo de Platão em toda a obra A República procedem. Um conjunto de

seres que, condicionados pela aparência, compreenda uma verdade ontológica e exerça

sua superioridade no conjunto de suas ações; esse é o trabalho que A República tenta

realizar.

Referências bibliográficas:

Platão. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.

MORAIS, Emília Maria Mendonça de. Justiça e Ontologia: a dialética do ser e do parecer na República, in: Cadernos de Atas da ANPOF, nº1, 2001.

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A MELANCOLIA FREUDIANA EM BENJAMIN:

UM ESTUDO BARROCO SOBRE A MODERNIDADE

Felipe de Oliveira Castelo Branco Graduando em Filosofia da UFRJ

Mestrando em Psicanálise do PGPSA/UERJ

Resumo: O que liga três autores de épocas e estilos tão distintos? O fio que este trabalho buscará seguir encontrará na reflexão desses pensadores sobre a melancolia um cruzamento com o tema da criação. Aristóteles, em seu Problema XXX-1, apontará o “homem de gênio” da poesia, das artes, e da filosofia, como efeito da natureza melancólica. Freud, em Luto e melancolia e O eu e o isso, encontrará na desfusão pulsional, característica da melancolia, o motor da sublimação. E Benjamin, em Origem do drama barroco alemão, verá na melancolia uma das fontes da eleição da morte e da história decomposta como tema da alegoria barroca.

Palavras-chave: Arte. Filosofia. Melancolia. Psicanálise.

Introdução

No início do século XX, a influência da medicina humoral de Hipócrates não se

faz mais presente. A teoria hipocrática dos quatro humores, teoria médica da Grécia

clássica que até o século XIX influenciou diversos campos da medicina, especialmente

o campo das “afecções mentais” onde se incluíam os estudos sobre a melancolia, vai

paulatinamente perdendo força. Suas ressonâncias, que foram recebidas por autores

como Aristóteles (em seu Problema XXX), Hildegar de Bingen, e Robert Burton, para

citar apenas alguns, às portas do século XIX sofrem profundos golpes que decretam

definitivamente a morte de seu poder de influência. Sem dúvida, no que diz respeito à

melancolia, o mais profundo e frutífero desses golpes é o nascimento de um novo

campo e de um novo modo de pensamento que toma a cena das reflexões sobre a

melancolia e sobre as afecções mentais com o surgimento da psiquiatria clássica, e do

seu empreendimento classificatório que culmina no que Foucault chamou de o

“monopólio médico da loucura”. A melancolia surge primeiramente na psiquiatria com

Pinel e Esquirol como um delírio em torno de um único objeto. Delírio empobrecido, de

fala limitada, que carrega uma lamentação e uma culpa muito profundas. Entretanto,

desde o fim do século XIX, o psiquiatra Emil Kraepelin, pai da psiquiatria moderna,

eliminou gradualmente das descrições de seu Tratado de psiquiatria (especialmente a

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partir da 8ª edição do tratado, em 1913) o termo ‘melancolia’, substituindo-o, numa

descrição “menos complexa”, pelo termo ‘depressão’; este último também incluído na

classe maior da psicose maníaco-depressiva, primeira etapa do futuro transtorno bipolar.

Freud e Luto e melancolia

Contudo, seu contemporâneo vienense e interlocutor crítico, o psicanalista e

criador da psicanálise, Sigmund Freud, escreve, em 1917, um texto onde, numa atitude

profundamente corajosa, propõe retomar o termo ‘melancolia’ e empreende um estudo

indispensável a todos os pesquisadores do tema. Luto e melancolia é um texto que

produz uma comparação constante entre a melancolia e o processo de luto, apontando

uma grande complexidade do primeiro caso, ao mesmo tempo em que destaca o luto

como um processo necessário à manutenção das ligações de objeto nos momentos de

perda. Com esse artigo metapsicológico, Freud introduz um elemento fundamental e até

então inédito nos quase dois mil anos de teoria da melancolia, a saber: a melancolia é

causada por uma perda de objeto. Não se trata mais, conforme acreditavam Pinel e

Esquirol (e poderíamos ainda incluir aí, cada qual com suas características teóricas

próprias, todos os autores da psiquiatria clássica) apenas de um delírio empobrecido que

não se alastrava e se pluralizava em outros objetos (como é o caso do delírio paranóico);

mas sim, segundo o estudo de Freud, de uma perda que se mostra muito grave e

ameaçadora para o eu. Tal objeto perdido pode ser uma pessoa amada, um ideal, um

sonho ou até mesmo a pátria (lembrando que o texto foi escrito durante uma guerra,

onde o exílio era extremamente comum).

A diferença entre a melancolia e o luto se marca principalmente pelo fato de, no

primeiro caso, a dependência do homem em relação a esse objeto se mostrar muito

profunda, a ponto de tornar-se uma identificação patológica: sem o laço de amor que

ligava o melancólico a seu objeto, instala-se um vazio extremamente penoso, fazendo

com que ele prefira “canibalizar” o objeto, introjetar seus traços numa ânsia de

pertencimento, oferecendo-se ele mesmo como um objeto (ou melhor, convertendo o eu

em objeto). A perda da melancolia atinge diretamente o eu do doente porque a

identificação com o objeto perdido era justamente aquilo que o sustentava, segundo

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Lacan, numa mimetização de sua imagem. Isso nos dá pistas sobre o motivo pelo qual,

na melancolia, a perda parece ir muito além da morte de alguém, ou de uma decepção

amorosa ou ideal.

O luto é uma forma de evidenciar a infinita variabilidade do objeto da pulsão

onde todo objeto eleito faz, da mesma maneira, contorno a esse vazio (vazio do objeto

da pulsão, onde, segundo Freud2, qualquer objeto pode ocupar seu lugar); o luto se

apresenta, portanto, como trabalho de perda, um mecanismo que busca elaborar o

choque daquilo que foi perdido, retirando momentaneamente as ligações sexuais entre o

eu e os objetos do mundo externo, possibilitando ao fim desse processo eleger um outro

objeto no lugar daquele que foi perdido.

Freud afirma que no caso patológico da melancolia, há um momento da

constituição do eu onde algo não se efetuou, onde o eu se construiu sobre ruínas, onde

falhou a identificação primária (1921: 133-140). Em função disso, posteriormente, o

melancólico estabelece uma intensa ligação do objeto diretamente com o eu, efetuando,

portanto, uma identificação com o objeto. Não há “espaço de respiração” entre a

melancolia e seu objeto: o eu, na melancolia, é o objeto. A identificação, portanto, é

uma tentativa patológica de manter esse laço amoroso tão fundamental entre o eu e o

objeto que foi perdido, ainda que o objeto não esteja mais acessível.

Em O eu e o isso, texto de 1923, Freud vai mostrar que numa tentativa de

dessexualizar os investimentos do isso (que se direcionavam ao objeto perdido) e

lançando o eu no empreendimento de substituir esse objeto, o melancólico se torna

vítima fácil para a ação do supereu. O eu se oferece ao massacre e às humilhações do

supereu na expectativa de “proteger” o laço com o objeto que agora é ele mesmo. Por

outro lado, o supereu se destaca do eu, e o ataca como se ele fosse o objeto. Aí está uma

das marcas da melancolia para Freud: a ambivalência. Toda ambivalência em

psicanálise não significa nunca a capacidade de expressar ora amor, ora ódio contra um

mesmo objeto. Mais do que isso, a ambivalência é a expressão de amor e ódio contra o

mesmo objeto, onde parte desse afeto (ou o amor ou o ódio) permanece recalcada na

2 Cf. Freud (1915: 143).

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neurose. Mas na melancolia o eu ama o objeto por meio da identificação; e o supereu

odeia o objeto através do eu.

Se nesse laço patológico o eu se identifica com o objeto, em outras palavras, o

eu se torna o próprio objeto introjetando seus traços e sendo, portanto, alvejado pelo

supereu; não há mais laço entre o melancólico e o mundo, e sua apatia e seu fechamento

em si são sintomas disso. Há, conclui Freud, uma retirada da pulsão sexual que não se

interessa mais por nenhuma ligação objetal, permanecendo unicamente no interior do

eu, e cultivando dentro de si mesmo seu laço de amor que foi perdido. Sem a presença

da pulsão sexual, a melancolia se torna refém unicamente da pulsão de morte. Sem o

aspecto sexual da pulsão, resta ao melancólico apenas o que Freud chamou de “uma

cultura pura da pulsão de morte”, desfazendo-se com isso todos os laços que ligavam o

doente às coisas e à vida.

É justamente em meio a este turbilhão de fatores destrutivos, de desligamento de

laços, e de desfusão pulsional, que Freud vai encontrar a origem da apatia de da

morosidade melancólicas. Se a psiquiatria clássica via nas lamentações e no delírio

melancólico um empobrecimento das faculdades mentais, Freud vai enxergar nesta

apatia o efeito de três fatores fundamentais: a perda do objeto, a ação do supereu (que

tem como efeito a auto-culpabilização), e a falha na identificação que tem como efeito

gerar a dependência do eu ao objeto.

Benjamin e o Barroco

Uma espécie de epistemologia surge na obra de Walter Benjamin, em 1925, em

sua tese de livre-docência sobre a Origem do drama barroco alemão. É na alegoria

barroca que, ao contrário do símbolo, estabelece uma relação não-necessária entre

sentido e imagem, que Benjamin vai encontrar o modelo do objeto de saber. Enquanto o

símbolo se pretende universal e instantâneo na sua ligação com aquilo que representa,

ou melhor, o símbolo sendo aquilo mesmo que ele representa numa totalidade imediata,

numa evidencia do sentido e numa unidade entre ser e palavra; a alegoria barroca é

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“historicizada” e sempre arbitrária porque inacabada, evidenciando uma fuga, um

deslizamento eterno do sentido definitivo. A alegoria “sabe” do tempo como fugidio, do

instante como precário, e do momento em que ela se instala através da violência da

arbitrariedade como um “entre”.

Só extraindo o particular de suas relações e ligações espaciais e temporais que

podemos ter o objeto de saber, ou, diríamos, um objeto alegórico. Apenas eliminando a

relação entre o objeto e a ilusão de um continuum histórico que o determina, tornamo-

nos capazes de produzir significação (alegórica). E se o símbolo era valorizado no

classicismo pela sua fidelidade com a coisa, a alegoria será valorizada no barroco por

evidenciar o objeto como perdido definitivamente no tempo. Mas por que a necessidade

recorrer ao barroco?

No barroco, Benjamin reconhece traços da modernidade. A inspiração máxima

da alegoria barroca é a constatação da precariedade do mundo, dividida entre “os

dogmas da fé cristã e a cruel imanência do político” (GAGNEBIN, 2004: 36); o poeta

barroco se encontra desamparado num mundo onde ele não se reconhece no passado

histórico, e o futuro se mostra prenhe de imprevisibilidade. Ao se debruçar sobre seu

objeto, o homem barroco evidencia seu caráter obsoleto e fugidio, inscrevendo a morte

nas coisas. E a alegoria funciona no barroco como a “visão da transitoriedade das

coisas” tão cara a essa concepção imanente do mundo, onde as antigas figuras da

transcendência e da tradição se mostram esvaziadas de seu sentido.

O próprio estilo de investigação de Benjamin se confunde com o barroco. Ao

tomar a história a partir das rupturas, da descontinuidade, da impossibilidade de

sucessão, ele pinta o historiador marxista como um alegorista barroco. Ao retirar a

história de sua conexão linear temporal, numa temporalidade partida em “agoras”, cada

instante histórico passa a ser significável em relação a qualquer outro instante, como a

França de Robespierre re-significava a Roma antiga. Como afirma S.P. Rouanet (1981:

18): “Morrendo enquanto objetos do mundo histórico, as coisas ressuscitam enquanto

suportes de significações alegóricas”.

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Reencontramos aqui o melancólico freudiano, que retira ou dessexualiza sua

relação com o mundo para cultivar exclusivamente seu laço com o objeto que fora

amado, mas perdido. Ao identificar-se com o objeto, canibalizando seus traços, o

melancólico de Freud “recria” o objeto em si. Utilizando-se desta concepção, o homem

barroco de Benjamin vai ter como paradigma a melancolia. Ao enxergar o mundo como

um acúmulo de ruínas, o poeta barroco toma cada fragmento do mundo arruinado, e

constrói um mosaico onde todas as partes se relacionam arbitrariamente umas com as

outras. O homem barroco é o homem da melancolia que retira o objeto do mundo e o

faz revelar a morte, numa ruminação do seu sentido. O ruminar de idéias, característica

do melancólico desde o primeiro trabalho psiquiátrico de Philippe Pinel, é para

Benjamin o modo como a alegoria extrai do seu objeto sua significação: o melancólico

homem barroco vira as costas para o mundo em busca de penetrar nas coisas, “é para

salvá-las que as penetra com seu olhar, que as trespassa com sua ruminação”

(ROUANET, 1981: 17).

Mas se a melancolia de Freud, na sua perda inapelável do objeto que lhe era caro

pode servir de paradigma do homem barroco/moderno que perdeu as garantias da

transcendência e da tradição ao qual ele estava identificado, é preciso acrescentar ainda

uma das características do melancólico freudiano a este homem barroco: a culpa. Se o

objeto alegórico revela o esvaziamento das garantias transcendentes do classicismo, não

é para reinar sobre ele, mas para apontar o desamparo do imanente: “[a alegoria] não

constitui o monumento epigônico de uma vitória, e sim a palavra que pretende exorcizar

um remanescente intato da vida antiga” (BENJAMIN, 1925: 246).

Ao exorcizar a transcendência, as figuras do transcendente perdem sua força.

Reaparecem carregadas de culpa. Diz-nos Benjamin (1963: 247): “a culpa é imanente

tanto ao contemplativo alegórico, que trai o mundo por causa do saber, como aos

próprios objetos de sua contemplação”. Um mundo que abandona a segurança da

transcendência clássica em nome da imanência que destrona as coisas de seu lugar

estável é um mundo culpado. Na “troca” dos deuses pelo efêmero, pelo mundo

material, e da tradição pelo instante fugidio, instala-se a culpa no mundo que o barroco

criou. “Foi absolutamente decisivo para a formação desse modo de pensar que não

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somente a transitoriedade, mas também a culpa se instalassem visivelmente no reino

dos ídolos, como reino dos corpos” (BENJAMIN, 1925: 247).

Não há mais garantias nem pontos fixos para a melancolia do barroco. A

alegoria barroca esvaziou a verdade de conhecimento do mundo e do próprio sujeito da

interpretação. Esse isolamento melancólico na arte barroca desconfia, portanto, do

sentido do mundo e busca dar um sentido novo aquilo que tal arte ainda ama.

Entretanto, esse sentido novo deve evidenciar o luto da perda e da morte definitiva de

seus antigos ideais. Morte do sujeito clássico, coerente consigo mesmo; morte da

significação simbólica, preenchida por uma ponte entre símbolo e coisa. E aqui, no

centro daquilo que toca ao barroco, reencontramos a modernidade “dividida entre a

nostalgia de certezas desaparecidas e a leveza trágica do herói nietzschiano”

(GAGNEBIN, 2004: 39). É desse “entre dois”, desse vazio de certeza, desse “entre o

passado e o futuro” que escreve Baudelaire, retomando a forma alegórica que o barroco

se utilizou. Evidenciando a transformação moderna da poesia em mercadoria de dentro

da própria poesia, Baudelaire denuncia, na passagem ao moderno, a perda da dignidade

escoada na perda da tradição. E é a partir de formas esvaziadas produzidas pela

literatura de esquerda, mas consumidas pela alta burguesia, e que, portanto, produzem

um radicalismo intelectual que não corresponde a nenhuma ação política, que leva

Benjamin a denunciar uma “melancolia de esquerda” diagnosticada no niilismo

profundo da poesia de Kästner. Também o anjo da história, o Angelus Novus de Paul

Klee, é um melancólico. Tudo que ele vê são catástrofes e a crescente acumulação de

ruínas as quais ele gostaria de deter-se por alguns instantes e recolher alguns elementos.

No entanto, a tempestade do progresso sopra um forte vento que torna o luto das ruínas

da história impossível. Seu esforço é fazer com que o tempo pare, e esse anjo da história

torne-se capaz de criar um estado de exceção voltado agora para os oprimidos,

acordando das ruínas os mortos.

Da auto-anulação do melancólico de Freud, que perde a si mesmo, perde o

objeto, perde o mundo, mas jamais é capaz de perder seu antigo laço de amor, nasce o

vazio, o desligamento das coisas e a destrutividade que se direciona ao doente na forma

da culpa. Pela emergência de uma dor silenciosa e sem fim, dor de um luto patológico

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que não encontra no mundo em que está lançado, qualquer objeto que possa ser amado

tal como aquele que foi perdido (esta é a diferença da melancolia em relação ao luto, em

Freud), é que Benjamin encontra a motivação do barroco para criar sua arte, arte

reveladora da morte de seus ideais. Lançada na mesma dor, a modernidade padece. É da

queda radical de toda transcendência e da tradição em seu tempo, transcendência que

permanece ilustrada no barroco com um lugar vazio dentro da imanência, é que nasce a

“tristeza dos saturados” no moderno. Nas palavras de Benjamin (1930: 77): “estupidez

torturada: é a última metamorfose da melancolia, em sua história de dois mil anos”. É o

homem moderno, estupidificado diante da constatação do vazio da perda de todas as

garantias da tradição, com o qual ele vai ter que lidar.

Referências bibliográficas:

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1963. (1925)

______. Melancolia de esquerda: a propósito do novo livro de poemas de Erich Kästner. In: Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1996. (1930)

______. Experiência e pobreza. In: Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1996. (1933)

______. Sobre o conceito de história. In: Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1996. (1940)

FREUD, Sigmund. Os instintos e suas vicissitudes. ESB – Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1973. (1915)

______. Luto e melancolia. ESB – Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1973. (1917)

______. Psicologia de grupo e analise do ego. ESB – Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1973. (1921)

______. O ego e o id. ESB – Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1973. (1923)

GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004. (2004)

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ROUANET, Sergio Paulo. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, 1981. (1981)

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LOUCURA E GENIALIDADE NA FILOSOFIA DE ARTHUR SCHOPENHAUER

Victor Galdino Alves de Souza

Graduando em Filosofia da UFRJ

“Que racionalidade, firme compostura, visão absoluta e completa, total certeza e regularidade de conduta mostram os bem providos homens normais, em comparação com a presente absorção sonhadora, com as

atuais excitações violentas do gênio, cuja agonia interior é o ventre das obras imortais!” (SCHOPENHAUER, 1977, II 461, tradução do autor).

Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar as concepções sobre loucura e genialidade apresentadas pelo filósofo Arthur Schopenhauer em sua obra “O Mundo como Vontade e Representação” (tomos I e II), assim como a relação entre ambas. E, embora o próprio Schopenhauer não tenha examinado semelhante idéia de modo mais profundo, pretendo, ainda, mostrar como a loucura pode aparecer como uma consequência da capacidade genial do criador, que, por estar voltado, em muitos momentos, para a apreensão puramente intuitiva das Idéias, torna-se muito mais suscetível à irracionalidade e à loucura do que o indivíduo comum; idéia que, em minha opinião, permaneceu predominantemente implícita nos trechos de sua obra que versam sobre a genialidade e loucura.

Palavras-chave: Arte. Genialidade. Loucura.

Começo este trabalho com um breve resumo do contexto no qual aparecem as

idéias sobre genialidade e loucura na obra de Schopenhauer. Ao longo do terceiro livro

(onde Schopenhauer apresenta a parte de seu pensamento relacionada à “Metafísica do

Belo”) do primeiro tomo de Die Welt als Wille und Vorstellung, o filósofo apresenta um

novo tipo de conhecimento diferente do que estava sendo examinado até então; tal

conhecimento não se mostra mais a serviço da Vontade, preso aos seus interesses e ao

seu querer. Esse conhecimento, portanto, não se encontra obrigado a conhecer o mundo

através das relações estabelecidas pelo princípio de razão (meio de conhecimento do

homem subordinado à Vontade), mas pode agora contemplar puramente os objetos que

lhe são oferecidos pelo mundo circundante, desligando-os de todas as suas conexões e

relações com outros objetos e consigo mesmo, e mergulhando nessa contemplação de

maneira totalmente desinteressada e desvinculada da Vontade, na qual toda

personalidade e subjetividade se encontram dissolvidas.

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Abandonando o modo comum de consideração das coisas, o homem torna-se o

sujeito puro do conhecimento, que, segundo Schopenhauer, é capaz de apreender os

objetos fora de suas relações com tudo o que é exterior a eles, justamente por ver a

essência do objeto que está expressa em todas as suas relações possíveis, e de onde

todas elas partem. O conhecido não é mais a coisa particular, mas a Idéia, a forma

eterna e imutável desse objeto, que é verdadeiramente em todos os tempos e lugares, de

acordo com a doutrina das Formas (Idéias) de Platão. Esse modo de conhecimento é

puramente intuitivo, encontrando-se em oposição direta ao conhecimento mediado por

conceitos, ou seja, o conhecimento abstrato ou racional. Logo, é no domínio intuitivo

que encontramos as Idéias platônicas, que são utilizadas por Schopenhauer para

designar os diversos graus da Vontade, nos quais sua essência se manifesta,

constituindo todo o mundo como representação do qual possuímos conhecimento. São

essas Formas (as Idéias), e não as suas cópias (os fenômenos particulares), que serão

apreendidas no novo modo de conhecer apresentado, que é o conhecimento estético. No

§ 36, vemos que a obra de arte traz à luz as Idéias, as formas essenciais dos fenômenos

que chegaram ao gênio através da pura contemplação intuitiva, e que, totalmente

isoladas, tornam-se representantes de um todo.

A capacidade de retirar do mundo o essencial e torná-lo objeto da arte é

característica do gênio, embora a capacidade de contemplar tais Idéias (através de suas

cópias apresentadas pelas obras de arte ou pela própria natureza) se encontre distribuída

em todos os homens, mas em graus bem menores, segundo Schopenhauer. Por isso, para

o indivíduo comum, é mais fácil ver algo das Idéias na arte do que na natureza, pois na

observação de um quadro ou escultura, não se volta para seus interesses e para as

relações que a obra de arte possa ter com seu querer, mas é impelido, de certa forma, a

contemplá-los de maneira desinteressada. Essa dificuldade em observar uma obra

através de um olhar interessado se daria devido ao fato de que o único objetivo da

criação artística verdadeira é comunicar as Idéias que foram apreendidas pelo criador.

Os homens comuns, que, em oposição aos gênios, são destituídos de uma maior

inclinação para a contemplação intuitiva, não conseguem encontrar nas obras de arte

alguma utilidade, pelo menos não com a mesma facilidade com a qual encontrariam um

uso para as coisas que lhe são oferecidas pela Natureza.

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No capítulo 31 do segundo tomo (vom Genie), vemos a genialidade, ou seja, a

capacidade humana necessária para a apreensão das Idéias, surgir de um

desenvolvimento da faculdade de conhecer que vai para além do exigido pela Vontade.

Esse excesso, fora do controle do querer, não encontra uso algum no âmbito das coisas

particulares, e por isso passa a ser direcionado de maneira desinteressada (desligada da

Vontade) para aquilo que é universal, ou seja, para as Idéias platônicas no âmbito da

filosofia de Schopenhauer. Na mente vulgar, essa visão completamente pura e objetiva

das coisas não é possível, pois toda a sua capacidade perceptiva se torna inativa assim

que não é mais movida pela Vontade. Ela não é capaz de funcionar sem um propósito,

só conseguindo obter das coisas aquilo que diz respeito ao seu querer. Vemos, no

entanto, que no gênio surge uma capacidade de direcionar o conhecimento para algo

inútil, algo que não está presente em meio aos seus interesses. O intelecto deixa o seu

posto de “guardião” da Vontade para apreender de modo perceptivo o universal na

existência. Esse abandono é característica essencial do gênio, mas vai contra a própria

natureza humana, já que a faculdade de razão veio a ser unicamente com o propósito de

estar a serviço da Vontade, e toda sua capacidade deve ser subordinada ao

conhecimento ligado ao princípio de razão. A genialidade, portanto, é apresentada como

uma anormalidade (e, portanto, uma raridade no mundo), e que coloca o próprio gênio

em uma posição vulnerável diante dos grandes afetos e paixões do mundo, não só no

âmbito particular, mas também no universal, das Idéias. Mais adiante mostrarei como

essa suscetibilidade pode abrir as portas para a loucura no indivíduo genial.

A grande proximidade entre loucura e genialidade, tema analisado neste texto, é

algo que tem sido notado desde a Antiguidade, como indica o próprio Schopenhauer. A

palavra enthousiasmós, que designava o estar possuído ou inspirado por algo divino, era

freqüentemente usada para nomear o estado em que o poeta se encontrava no momento

em que se dava sua criação. Entre os exemplos usados por Schopenhauer (2005, §36, p.

260), indico Horácio, que em sua Ode Ad Calliopen, ao ouvir a Musa da poesia épica e

sentir sua inspiração, pergunta se não está sendo iludido por uma amável loucura

(amabilis insania); e Platão, que, no diálogo Fedro, apresenta através de Sócrates a

idéia de que os verdadeiros poetas são tomados por uma espécie de loucura divina que

lhes permite criar. Em 244a, diz (1892, tradução do autor): “Mas, atualmente, os

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maiores dos bens vêm a ser em nós através da loucura, quando nos é dada como

presente pela divindade”.

Após valorizar a loucura (mania) causada pelos deuses, Sócrates distingue os

delírios divinos em quatro espécies, sendo as Musas as responsáveis pelos delírios

ligados à produção poética. O gênio aparece como canal de comunicação do humano

com o sobre-humano e extraordinário, e a possessão divina, o momento delirante da

criação, afasta o homem do que é racional, lançando-o em direção a um estado de

insanidade necessário para que se torne um verdadeiro poeta (criador). Assim como,

para Schopenhauer, aqueles que possuem somente o talento não possuem a genialidade,

pois o talento reside na excelência restrita ao que diz respeito ao conhecimento

discursivo, e não ao intuitivo; da mesma forma, para o Sócrates do Fedro (em 245a),

aqueles que pretendem ser poetas somente através da techné não obterão o sucesso

almejado, e suas obras se extinguirão muito antes daquelas produzidas pelos

enlouquecidos através da inspiração divina.

Esse momento de enlouquecimento em que se dá a criação poética verdadeira

era considerado por muitos dos antigos um momento de possessão, que durava apenas o

tempo em que o poeta realizava sua obra. Mas, assim como Aristóteles, que, no

Problema XXX (953a), considerou a causa de certos homens se mostrarem excepcionais

(perittoí) na Filosofia, nas Artes e na Política, um aumento da bílis negra (mélaina

cholé) que desfazia a harmonia entre os humores presentes no corpo humano, ou seja, a

melancolia, Schopenhauer não considera a causa da genialidade algo exterior, e sim

uma disposição anormal interna. Mas, mesmo a genialidade não sendo fruto de uma

intervenção divina temporária, não acredita que o gênio seja capaz de permanecer

absorto durante todo o tempo no seu modo de conhecimento especial, pois a grande

tensão exigida para se manter na pura apreensão das Idéias não pode ser mantida por

períodos prolongados, e nem deveria. O gênio, durante a maior parte de sua existência,

assemelha-se ao indivíduo comum, embora tenha sempre dentro de si aquela disposição

intuitiva que nega a racionalidade, o que justifica, para Schopenhauer, a antiga idéia de

que os grandes criadores eram dominados por uma força divina e ao mesmo tempo

irracional no momento de seu produzir.

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O comportamento irracional dos grandes gênios, para Schopenhauer, tem sua

origem naquele desenvolvimento do intelecto para além do necessário, que, por estar

livre do serviço que deve prestar à Vontade e que consiste em sua própria razão de ser,

pode virar as costas ao modo de conhecimento racional, mediado por conceitos, e seguir

uma orientação intuitiva. Não sendo mais o agir (e o próprio pensar) guiado pela razão,

que, para o homem comum, “é a lanterna com a qual ilumina o seu caminho”

(SCHOPENHAUER, 2005, §36, p. 257), o gênio se encontra livre para se deter na

consideração da vida em seus aspectos mais universais, “e em cada coisa à sua frente

esforça-se por apreender a sua Idéia, não as suas relações com as outras coisas”

(SCHOPENHAUER, 2005, §36, p. 257). No entanto, o agir se torna irracional, e a

impressão causada pelo conhecimento intuitivo arrasta o gênio para o “irrefletido, o

afeto, a paixão” (SCHOPENHAUER, 2005, §36, p. 259), pois tudo o que importa é o

que se mostra presente, em si mesmo e livre de relações com outros objetos, apreendido

de modo excessivamente vívido. O que antes se apresentava como uma simples peça

inserida numa interminável cadeia de causas e efeitos, agora aparece em sua totalidade,

estendendo-se ao extremo de seu próprio ser. Essa apreensão tão vivaz das coisas

presentes em sua forma mais universal domina suas atividades intelectuais, ofuscando

os conceitos e assim a própria razão. O gênio, portanto, está mais sujeito às paixões

descontroladas do que as pessoas comuns, o que faz com que seu sofrimento seja ainda

maior.

Além de estar mais vulnerável a paixões extremas e ao comportamento

excessivamente irracional, o indivíduo genial está condenado a um perigo ainda maior.

Ao mergulhar na contemplação pura das Idéias, ele é como alguém que olha

diretamente para o Sol, contemplando-o em toda sua magnitude, após sair da caverna

em que esteve durante anos. O indivíduo é levado ao extremo da objetividade, onde

tudo aparece em sua forma mais perfeita. Se admitirmos, portanto, a existência de Idéias

referentes a sentimentos “negativos” e hostis ao indivíduo, como vemos no § 52, no

qual Schopenhauer menciona a Dor e a Aflição elas mesmas, ou seja, suas Formas

universais; se admitirmos tais Idéias, então se poderia falar na apreensão puramente

objetiva de sentimentos perturbadores em todo o seu ser. A própria visão da terrível

essência do mundo, que, sendo Vontade, é necessariamente sofrimento (seguindo o

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pensamento de Schopenhauer), pode atormentar de maneira excessiva o gênio. Todo

esse tipo de informação é armazenado no indivíduo dotado de genialidade, que, durante

a apreensão das Idéias, se encontra dissolvido no objeto de sua contemplação como um

puro sujeito do conhecer, tendo seu “eu” e a Vontade nele ambos suprimidos, e,

portanto, não pode experimentar sofrimento algum. Contudo, em algum momento

posterior essa informação pode ser acessada, pois permaneceu disponível em seu

interior como um saber ou pensamento excessivamente doloroso e atormentador. Outro

motivo pelo qual não é possível que a loucura atinja o gênio no momento de sua

contemplação da mais perfeita objetividade, é que, para Schopenhauer, a loucura está

intimamente ligada à supressão de memórias que não podem ser suportadas pelo

espírito.

Assim, como no caso de uma pessoa que não suporta a lembrança de um

acontecimento terrível que se deu em determinado momento de sua vida, o espírito do

gênio de tal maneira torturado pela visão daquilo que uma vez (ou muitas vezes) foi

apreendido é forçado a recorrer a um último meio de preservação de si como fenômeno

no mundo. Esse meio é a loucura (como vemos no § 36), cuja possibilidade de irromper

no gênio reside na enorme resistência da Vontade em permitir que o intelecto se volte

para as coisas hostis a si, e que, após a visão da perturbadora perfeição das Idéias,

aparecem de maneira ainda mais hostil. É importante notar, contudo, que essa

resistência da Vontade em permitir a assimilação dos eventos ou circunstâncias nas

quais se encontra aquela visão tão terrível que não pode ser suportada de maneira

alguma, pode se dar mesmo naqueles que não estão condenados a contemplar

diretamente as Idéias. Basta que tal indivíduo experimente um sofrimento

excessivamente nocivo à Vontade, para que a resistência por parte dela alcance um grau

tão elevado que é negada ao intelecto a assimilação das circunstâncias em que se

encontra a fonte desse sofrimento, provocando a supressão das mesmas. Nesse

momento, o intelecto se subordina à Vontade para evitar que o indivíduo-fenômeno

sucumba diante de tão grande tormento. Tal “atitude” por parte do intelecto se

assemelha a que é tomada pelo ego (Eu) nesta analogia apresentada pelo psicanalista

Sigmund Freud no texto O Ego e o Id (1996, p. 39):

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Assim, em sua relação com o id, ele [o ego] é como o cavaleiro que tem de manter controlada a força superior do cavalo [...] A analogia pode ser levada um pouco além. Com freqüência um cavaleiro, se não deseja ver-se separado do cavalo, é obrigado a conduzi-lo onde este quer; da mesma maneira, o ego tem o hábito de transformar em ação a vontade do id, como se fosse sua própria.

O intelecto, seguindo as exigências de seu cavalo, ou seja, da Vontade, suprime

o insuportável para que o indivíduo não seja aniquilado. No entanto, os nexos e as

relações entre as coisas na memória precisam ser preservados; entra em cena, então, a

imaginação (Phantasie). A imaginação, no caso do gênio, possui a função de ampliar o

horizonte deste para além do que está presente efetivamente à sua pessoa, ajudando-o a

construir as imagens universais da existência a partir daquilo que foi obtido de modo

puramente perceptivo, e que não poderiam ser utilizadas com a finalidade de comunicar

aos outros a Idéia apreendida se fossem deixadas sob o domínio do acaso, pois a

natureza não produz com outro objetivo que não seja a própria produção e a manutenção

desse processo produtivo. A fantasia permite ao gênio ver nos fenômenos imperfeitos a

Idéia em toda sua perfeição, como um claro espelho da Vontade, e reproduzi-la em sua

arte de maneira organizada e precisa, no tempo certo, podendo a qualquer momento

retornar àquilo obtido através da percepção para produzir novas obras.

No caso do louco, a imaginação tem como função o preenchimento das lacunas

deixadas após a expulsão violenta do indesejável que estava presente na memória da

pessoa. As ficções produzidas pela imaginação, no entanto, não podem preencher

perfeitamente o vazio deixado pela supressão, e, embora o sofrimento seja esquecido, a

concatenação e as relações verdadeiras entre os eventos e circunstâncias, assim como os

próprios eventos e circunstâncias, são sacrificadas. O louco pode conhecer o presente e

as coisas particulares (mesmo as que estão presentes somente em sua memória), mas é

incapaz de ligar a coisa particular a outras que sejam verdadeiras, e não produtos de sua

imaginação. A relação verdadeira entre o passado e o presente também é substituída por

uma relação ilusória. Entregue à loucura, o indivíduo depende de relações e eventos

passados falsos, que podem permanecer durante o resto de sua existência, ou apenas

momentaneamente. À mercê de suas ficções, o louco freqüentemente erra em suas falas,

e até mesmo na imagem que tem de si mesmo e das outras pessoas que fazem parte de

sua vida.

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O esquecimento da concatenação das coisas é o principal ponto de contato entre

o gênio e o louco. O conhecimento das relações, característica do conhecimento

mediado pelo princípio de razão, também é abandonado pelo gênio durante os períodos

prolongados nos quais ele esquece de tudo para mergulhar na contemplação das Idéias.

Os objetos dessa contemplação, totalmente isolados de todo o resto, assim como o

presente efetivo apreendido fora de qualquer relação com passado ou futuro, ofuscam,

em toda a sua vivacidade, o conhecimento discursivo (racional), aparecendo para o

gênio como a mais clara luz, mas que só ilumina o apreendido intuitivamente.

Como vimos anteriormente, o gênio está mais suscetível à loucura do que os

indivíduos comuns, que seguem suas vidas sendo guiados seguramente pelo princípio

de razão. A apreensão de coisas que provocam reações negativas no homem, não mais

enfraquecidas como meros fenômenos, mas apresentadas como Idéias, ou seja, em suas

formas mais verdadeiras, acumula o gênio de experiências perturbadoras. Enquanto ele

se encontra durante a contemplação das Idéias, esquecido de si mesmo e de sua vontade,

nada pode sofrer. Mas depois que a Vontade não se encontra mais suprimida pelo puro

sujeito do conhecimento, toda a possibilidade de sofrimento retorna, pois enquanto

houver Vontade, haverá sofrimento. Aquilo que ficou armazenado na memória do gênio

pode, a qualquer momento, tornar-se objeto de investigação por parte do intelecto,

estando disponível para atormentá-lo enquanto esses dados guardados não forem

reprimidos e “esquecidos”. E, por estar mais sujeito às paixões violentas, por ver e

sentir tudo de forma extrema, também está destinado a sofrer mais do que os homens

comuns; portanto, está mais sujeito à loucura como meio de salvá-lo do grande

tormento.

Como vemos, ao gênio é negado aquele pouco conforto que os homens vulgares

podem possuir numa vida que é fruto da Vontade. Ele se encontra condenado a ter seu

sofrimento aumentado proporcionalmente à sua capacidade de ver no mundo o essencial

e mais verdadeiro, e, exatamente por isso, está sempre no limite entre a sanidade e a

loucura, tendendo à última. E nem mesmo pode encontrar o consolo da compreensão

por parte de seus contemporâneos, pois o que preenche sua mente não pertence a

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nenhuma época ou lugar especifica, raramente encontrando algo alem de solidão em

meio à multidão de indivíduos comuns, produzidos em série pela natureza. E nisso tudo

se percebe a situação trágica do gênio, que (SCHOPENHAUER, 2005, § 52, p. 350)

[...] apresenta-nos um teatro pleno de significado [...] Detém-se nele, sem se cansar de considerá-lo e expô-lo repetidas vezes. Entrementes, ele mesmo arca os custos de encenação desse teatro, noutras palavras, ele mesmo é a Vontade que objetiva a si mesma e permanece em contínuo sofrimento. Aquele conhecimento profundo, puro e verdadeiro da essência do mundo [...] não se torna para ele um quietivo da Vontade, não o salva para sempre da vida, mas apenas momentaneamente [...], contrariamente ao santo que atinge a resignação.

Referências bibliográficas:

Aristóteles. Problema XXX. Tradução de Elisabete Thamer. [S.l.]: [s.n.]. Disponível em: <http://www.ifcs.ufrj.br/~fsantoro/ousia/traducao_problema30.htm>. Acesso em: nov. 2008.

FREUD, Sigmund. O Ego e o Id, Edição Standard Brasileira, Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.

Platão. The Dialogues of Plato, vol. 1., translated into English with Analyses and Introductions by B. Jowett, M.A. in Five Volumes. 3rd edition revised and corrected. Oxford: Oxford University Press, 1892.

SCHOPENHAUER, Arthur. Die Welt als Wille und Vorstellung, Zürcher Ausgabe: Werke in zehn Bänden, Band 4. Zürich: Diogenes Verlag, 1977.

______. O mundo como vontade e como representação, 1º Tomo. Tradução, apresentação, notas e índice de Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005.

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O POVO EM ARMAS: DEMOCRACIA E VIOLÊNCIA EM SPINOZA

Alexandre Pinto Mendes Graduando em Filosofia da UFRJ

Mestrando em Direito da PUC-RIO

Resumo: O objetivo do trabalho é analisar a teoria spinoziana do povo armado, prática democrática de exercício da violência estatal exposta no Tratado Político. Como Spinoza esclarece na carta 50 a Jelles, a diferença entre sua concepção política e a de Hobbes consiste na manutenção do estado natural no seio do estado civil. Isso se relaciona com o fato de que a potência da multidão é inalienável e, neste sentido, o poder detido pelos governantes é precário, dada a permanência da capacidade de resistência da multidão no estado civil. A instituição de um exército permanente a serviço do soberano, portanto, resulta na servidão. Deste modo, analisaremos a demonstração spinoziana de como a liberdade se relaciona com a instituição a milícia popular, mesmo diante da prevalência dos afetos na constituição do corpo coletivo e, conseqüentemente, da inconstância da multidão.

Palavras-chave: Democracia. Resistência. Spinoza. Violência.

1. Introdução

Em que pese o papel da violência das guerras e revoluções na constituição das

instituições políticas modernas, a filosofia política, desde Hobbes, se encarregou de

reconstruir teoricamente a trajetória de formação do Estado moderno como conquista

civilizatória, ancorada justamente na possibilidade de eliminação ou pelo menos

redução drástica da violência política. As diferentes formulações do contrato social,

passando por Locke e Rousseau, tentam, em grande medida, dar conta deste problema: a

passagem do estado de natureza para o estado civil deve ser concebida como abdicação,

pelos indivíduos, de um direito à violência inerente às necessidades de auto-conservação

humana, em favor do poder de uma coletividade.

Spinoza parece ter sido um pensador dissonante no que diz respeito à

formulação teórica de tal problema. Neste trabalho, procuramos mostrar por que não

podemos dizer que Spinoza elabore uma teoria do contrato equivalente à encontrada em

Hobbes, Locke e Rousseau, que, apesar das dissonâncias evidentes, dependem da

afirmação do caráter absoluto da soberania estatal. Um dos fatores comuns entre os três

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pensadores na construção deste caráter absoluto é o reconhecimento do monopólio da

violência por parte do poder soberano, assim como a restrição do direito de resistência à

esfera individual e aos casos extremos em que a ordem do soberano se contradiz com

seu dever de preservar a vida do súdito.

Para expor nosso argumento faremos, inicialmente, uma breve reconstrução do

pensamento de Hobbes a este respeito, especialmente por ser o pensador inglês o

principal interlocutor de Spinoza quando este enfrenta os problemas relacionados à

política3. Em seguida, procederemos a uma análise dos argumentos spinozianos em

diversas passagens de sua obra, através da qual esperamos marcar tanto as diferenças

com a concepção hobbesiana quanto à originalidade do pensamento de Spinoza ao

afirmar, seguindo os passos de Maquiavel, a necessidade de que a soberania tenha como

sustentação não um exército permanente, mas o próprio povo em armas.

2. Democracia e Violência na Contraposição entre Hobbes e Spinoza

2.1 Soberania absoluta e monopólio da violência em Hobbes

Quando comparamos a análise hobbesiana da guerra civil inglesa no Behemoth,

e obras como o De Cive e o Leviatã, percebemos mais claramente as origens de sua

afirmação do caráter absoluto da soberania e, conseqüentemente, da necessidade do

monopólio da violência pelo Estado. Como mostrou Macpherson (1979, p. 71-78), a

sociedade descrita por Hobbes no Behemoth é uma sociedade de mercado

razoavelmente completa. Nessa obra não interessa a Hobbes escrever mais uma crônica

da guerra, mas o estudo das causas pelas quais os homens são levados a agir de modo

insensato como na guerra civil. Os postulados da natureza humana deduzidos em suas

obras teóricas, em especial das paixões que geram a discórdia (competição,

desconfiança e glória), coincidem com a descrição feita por Hobbes das causas das

ações dos homens na guerra civil, o que reforça a tese de Macpherson de que a dedução

de tais postulados não tem como modelo o homem primitivo ou o homem isolado, mas

antes o homem nas condições em que ele se encontra já em sociedade. Podemos então

3 Um dos fortes indícios disto é a Carta 50 a Jelles. Cf. Spinoza (1988, p. 308).

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dizer que o desenvolvimento das relações sociais capitalistas na Inglaterra do XVII,

onde prevalecem nos homens as paixões ligadas à acumulação e à apropriação privada

em detrimento do benefício comum, conduziram para Hobbes ao estado de guerra a

partir do qual ele cria sua hipótese do estado de natureza.

Explica-se, portanto, o motivo pelo qual Hobbes atribuía à capacidade concreta

de utilização da violência para evitar o estado de guerra uma importância capital para a

soberania. O desequilíbrio de forças gerado pelo fortalecimento do poder capitalista em

comparação com o poder monárquico coloca imediatamente em questão o monopólio da

violência que sustentara o soberano. É o que revela o debate no Parlamento durante a

guerra civil sobre o direito de constituir um exército, direito que, para Hobbes (1992, p.

103), “de fato é todo o poder soberano. Pois quem tem o poder de recrutar e mandar nos

soldados tem todos os demais direitos que a soberania pode reclamar”.

Conseqüentemente, a alternativa teórica hobbesiana contra a violência deste estado de

guerra se funda numa avaliação sobre o que é necessário para conter nos homens estas

paixões naturais que em si mesmas não são reprováveis (HOBBES, 1979, p. 76). É a

instituição da soberania que pode garantir um critério seguro de avaliação das ações

humanas, a partir do qual é possível cobrar obediência dos cidadãos, para que se

abstenham de usar a violência uns contra os outros.

Ora, se a conformação passional das relações sociais está na base deste estado de

guerra, é necessário fazer com que ela não influa na forma de instituição da soberania,

que se dá unicamente segundo um cálculo racional, segundo o qual cada um decide pela

alienação absoluta do direito natural através do contrato. Neste sentido, a relação entre o

estado civil instituído pelo contrato e a sociedade tal como Hobbes a concebe é

necessariamente de transcendência; o poder soberano torna-se o único autorizado a

utilizar a violência com vistas a garantir a ordem política, porque se é o único capaz de

decidir o justo e o injusto, e não poderia decidir contra sua própria existência e

conservação; daí que, como dirá Agamben, ele se encontra acima ou fora do contrato, e

conserva-se no estado de natureza4. Deste modo, compreende-se que a concepção

4 Embora Hobbes, por exemplo, reconheça a possibilidade de utilização da violência em legítima defesa, não admite que o súdito conserve este direito em nenhuma outra hipótese, nem mesmo para repelir uma decisão do soberano que possa ser iníqua, uma vez que Hobbes também não admite que tal decisão possa

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hobbesiana de paz seja a ausência de disposição para a guerra, e não ausência da guerra

em si mesma. Trata-se, antes, do reconhecimento do caráter absoluto da soberania, a

partir do qual se julga como absolutamente negativa a capacidade de resistência

organizada contra o poder constituído. A guerra civil implica a perda de uma

característica central da soberania, o monopólio da coação física, resultando na própria

suspensão de sua posição absoluta que permite dizer o que é justo ou o que é injusto.

Hobbes tentou mitigar esta limitação concreta da soberania através da

idealização dos efeitos do contrato social: seja qual for o motivo pelo qual se forma a

vontade que dá origem ao pacto, uma vez instaurado, a sujeição ao soberano é absoluta,

justamente por ser voluntária5. E como a condição humana no estado de natureza é o

isolamento e a solidão, os homens se reúnem para pactuar enquanto indivíduos; logo,

embora se reconheça a liberdade de resistir nos casos em que a finalidade da instituição

da soberania, a auto-preservação, seja contrariada, “ninguém tem a liberdade de resistir

à espada do Estado, em defesa de outrem, seja culpado ou inocente”, como diz Hobbes

(1979, p. 134). Pela resistência, individual ou coletiva, o poder soberano de vida e de

morte não fica abolido ou limitado, porque deste poder depende a segurança dos

súditos. Ademais, como a concepção hobbesiana de soberania implica a referida

transcendência absoluta do poder em relação aos cidadãos, a participação da multidão

na tarefa de conservação comum é, desde o início, excluída (HOBBES, 1979, p. 104):

Mesmo que haja uma grande multidão, as ações de cada um dos que a compõem forem determinadas segundo o juízo individual e os apetites individuais de cada um, não poderá esperar-se que ela seja capaz de dar defesa e proteção a ninguém, seja contra o inimigo comum, seja contra as injúrias feitas uns aos outros. Porque divergindo em opinião quanto ao melhor uso e aplicação de sua oposição mútua reduzem a nada a sua força. E devido a tal não apenas facilmente serão subjugados por um pequeno número que se haja posto de acordo, mas, além

ser injusta. Como mencionamos, o que não pode ser considerado justo ou injusto é justamente aquilo que, para Hobbes, encontra-se no estado de natureza. Esta interpretação é a mesma, por exemplo, de Agamben. Ver Agamben (1997, p. 115-122). 5 Quanto a este ponto, as teorias hobbesiana e rousseauniana não se distinguem. Embora, por exemplo, Rousseau critique Hobbes ao dizer que ninguém transfere seu direito senão para ser livre, e que o medo não pode ser o fundamento do contrato, ele implica na alienação total dos direitos à comunidade toda (O Contrato Social, I, VI), de maneira unânime, ato pelo qual se forma o corpo político dirigido pela vontade geral. O poder do corpo político sobre seus membros, enquanto dirigido pela vontade geral, é absoluto (O Contrato Social, II, IV). Mas como vontade geral não se confunde com a vontade de todos ou da maioria (ela é, antes o atributo comum à diversidade opiniões), ela vale também para aqueles que não aceitam o ato soberano. Não sem razão, Rousseau desaconselha a existência de partidos (1979, p. 47): “importa, pois, para alcançar o verdadeiro enunciado da vontade geral, que não haja no Estado sociedade parcial, e cada cidadão só opine de acordo com si mesmo”.

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disso, mesmo sem haver inimigo comum, facilmente farão guerra uns aos outros por causa de seus interesses particulares. Pois se fosse lícito supor uma grande multidão capaz de consentir na observância da justiça e das outras leis da natureza, sem um poder comum que mantivesse a todos em respeito, igualmente o seria supor a humanidade inteira capaz do mesmo. Nesse caso não haveria, nem seria necessário, qualquer governo civil, ou qualquer Estado, pois haveria paz sem sujeição.

A história da guerra civil inglesa mostrou, no entanto, que mesmo violência e o

terror da soberania são impotentes para transformar as vontades e manter os homens em

respeito. Vê-se que, sem a obediência, a extensão ilimitada da soberania adquire uma

existência puramente teórica. No balanço hobbesiano da guerra, por conseguinte, a

ignorância do vulgo supera seu medo da morte violenta: atenta apenas a seu interesse

particular e, portanto, disposta a se considerar livre em detrimento das razões de

segurança comum, a multidão está sujeita a ser persuadida por qualquer discurso

sedicioso que ensine desobedecer (HOBBES, 1992, p. 9). Em virtude disso, Hobbes

reivindica a difusão, através da educação pública, de uma “ciência da obediência”

(1992, p. 207):

Pode ser que penses que, para que alguém conheça o dever que tem para com seu governante e saiba qual é o direito que este tem para lhe ordenar, não necessita senão que um bom juízo natural; mas não é assim. Pois isto constitui uma ciência, construída sobre princípios claros e seguros e que deve ser aprendida mediante um estudo profundo e cuidadoso, ou de mestres que a estudaram profundamente.

2.2 Obediência, imaginação e as origens do poder violento

Se para obedecer é preciso ter ciência, perguntaria Spinoza, por que razão seriam

os seres humanos, imersos na dinâmica passional, levados a pactuar a alienação absoluta

de seu direito natural? Com efeito, só a violência soberana pode garantir este tipo de

transferência de direitos e, nesse caso, sendo a finalidade da instituição do Estado a

segurança comum, parece claro que a soberania é a própria ameaça à paz e à

conservação coletiva. Devemos concluir que tal alienação violenta é, sobretudo,

precária e contraditória com o direito natural. Por ela, o soberano mantém seu direito

apenas enquanto durar seu poder de fazer tudo o que quiser; mas é imediatamente

privado deste direito perante alguma força superior a sua. Além disso, como a força dos

pactos reside na sua utilidade, o menor sinal de fraqueza do poder violento é motivo

para rompê-lo, pois é “insensatez uma pessoa pedir a outra que jure para todo sempre,

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sem tentar, ao mesmo tempo, fazer com que a ruptura desse pacto traga ao que o romper

mais desvantagens que vantagens” (SPINOZA, 2003, [193-194], p. 238).

É mesmo a utilidade, segundo Spinoza, que leva à obediência. Contudo não é

tanto pela posse da ciência e da razão que os homens são levados a obedecer, mas por

razões da experiência imaginativa e afetiva. A noção de utilidade surge daquilo que, ao

nos afetar, estimula nossa potência de agir (dispõe nosso corpo a afetar e ser afetado de

muitas maneiras) e que, por ser coerente com nosso esforço de auto-conservação,

desejamos obter e nos esforçamos, na sua ausência, por imaginar (SPINOZA, 2007, IV,

Prop. 38). Até aqui, podemos ver uma argumentação muito próxima do individualismo

apropriador hobbesiano, pois pelas leis de nossa natureza temos direito a todos os bens

que sirvam a nossa utilidade. Todavia, quanto mais uma coisa nos é útil e, portanto,

aumenta nossa potência de agir e de existir, acrescenta Spinoza (2007, IV, Prop. 29-30),

mais tem algo em comum com a nossa natureza. De maneira que nenhuma coisa

singular pode nos fazer experimentar tanto o aumento de nossa potência de agir quanto

aquilo que mais tem em comum conosco, ou seja, nada é mais útil ao homem do que o

próprio homem e sendo, assim, o desejo de apropriação é tão intenso entre os homens

quanto o desejo de ajuda mútua e cooperação6. Ao contrário do que sustenta Hobbes,

portanto, a condição natural humana é tanto definida pelo conflito como pela

cooperação.

É raro que os homens vivam sob a condução da razão. Em vez disso, o que ocorre é que eles são, em sua maioria, invejosos e mutuamente nocivos. Mas, apesar disso, dificilmente podem levar uma vida solitária, de maneira que, em sua maior parte, apreciam muito a definição segundo a qual o homem é um animal social. E, de fato, a verdade é que, da sociedade comum dos homens advêm muitas mais vantagens que desvantagens. Riam-se os satíricos, pois, das coisas humanas, o quanto queiram; execrem-nas os teólogos; enalteçam os melancólicos, o quanto possam, a vida inculta e agreste, condenando os homens e maravilhando-se dos animais. Nem por isso deixarão de experimentar que, por meio da ajuda mútua, os homens conseguem muito mais facilmente aquilo de que precisam, e apenas pela união de suas forças podem evitar os perigos que os ameaçam por toda parte. (SPINOZA, 2007, IV, Prop. 15, Esc.).

6 Hobbes concebe a competição e o isolamento como resultados necessários do processo de socialização anterior à instituição do Estado. “Os homens não tiram prazer algum da companhia dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder comum capaz de mantê-los em respeito [...] De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro: a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória”. (HOBBES, 1979, p. 75).

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A sociedade baseada na ajuda mútua, como disposição natural humana fundada

no esforço de conservação comum, tem sua potência aumentada no estado civil,

instituído na esperança de preservar e ampliar as vantagens da cooperação. Spinoza não

pretende afirmar, contudo, que a instauração de uma sociedade fundada na cooperação,

ou os efeitos que dela decorrem, seja um processo idílico, utópico. Embora a violência

das dissensões e as causas de discórdia na sociedade sejam minimizadas na mesma

proporção em que a cooperação prevalecer sobre outras formas de relação social, ainda

assim é impossível eliminá-las. Seria imaginar os homens e as sociedades

diferentemente do que são: perpassadas por uma luta constante entre o desejo de

liberdade e o desejo de dominação entre as diferentes classes que compõem o corpo

social. Por este motivo, a alienação de todo o poder ao soberano com vistas a garantir a

paz pela eliminação de toda possibilidade de guerra e de luta será duramente criticada

por Spinoza (1979, VI, § 4, p. 324):

[...] se a paz tem que possuir o nome de servidão, barbárie e solidão, nada há de mais lamentável para o homem que a paz. Entre pais e filhos há certamente mais disputas e discussões mais ásperas que entre senhores e escravos e, todavia, não é do interesse da família, nem do seu governo, que a autoridade paterna seja um domínio e que os filhos sejam como escravos. É, pois, a servidão, e não a paz, que requer que todo poder esteja nas mãos de um só; tal como já dissemos, a paz não consiste na ausência de guerra, mas na união das almas, na concórdia.

Ao definir o direito natural por tudo aquilo que fazemos em função de nossa

potência e, portanto, tanto pelo que fazemos sob a condução da Razão quanto pelo que

fazemos em função de nossos desejos, Spinoza estabelece (1979, II, §15, p. 312), ao

mesmo tempo, as bases para a crítica do que chamou de estado de natureza puramente

teórico, definido pela barbárie e pela solidão. Pois se é verdade que os homens, em

função dos afetos, lutam entre si, é igualmente verdadeiro que são tanto mais potentes

para se defender de qualquer violência quanto mais cooperarem7. A potência é, pois,

limite e sustentação do poder que os homens exercem uns sobre os outros. Ela

determina um desejo coletivo de liberdade e de governar inerentes à sociabilidade

natural, uma vez que buscamos o que é útil não apenas para nós mesmos, mas para

todos, esforçando-nos para que todos vivam segundo nosso ingenium, nosso

7 “Chegamos, portanto, a esta conclusão: que o direito natural, no que respeita propriamente ao gênero humano, dificilmente se pode conceber, a não ser quando os homens têm direitos comuns, terras que podem habitar e cultivar em comum, quando podem vigiar a manutenção do seu poder, proteger-se, combater qualquer violência e viver segundo uma vontade comum”. (SPINOZA, 1979, II, § 15, p. 312).

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temperamento (SPINOZA, 2007, IV, Prop. 37, Esc. 2). A transição para o estado civil,

tal como o pensamento spinoziano a concebe, é a título precário. A ordem está sujeita a

ser rompida quando sua utilidade desaparece; o jusnaturalismo de Spinoza, portanto,

não se prende à figura do contrato: poderíamos dizer que se trata mais propriamente de

uma teoria da hegemonia, ou seja, da capacidade de equilibrar força e consenso

(imaginativo), que explica a conservação, sempre tensa e sujeita a revezes, do Estado8.

Por este motivo, Spinoza vai além, procurando demonstrar por que os homens, levados

por seus desejos, tornam-se inconstantes e suscetíveis a ser arrastados em direções

opostas em face das diversas dificuldades e incertezas, podendo ser levados pelo medo e

pela esperança a assumir uma tendência contrária a sua própria vida, como no caso da

instituição de um poder violento ou uma tirania. Trata-se do que poderíamos chamar

não tanto de um desejo de servidão, mas de um desejo de ordem, um mecanismo afetivo

espontâneo pelo qual lidamos com a violência das causas exteriores que ameaçam

“desordenar” nosso corpo. De início, podemos afirmar que, se tal violência é

internalizada e passa a conformar os traços do caráter humano, isto se dá apenas à

medida que, pelas limitações relativas de nossa resistência imediata e corporal a ela,

podemos ser levados a imaginar muitas coisas nocivas como vantajosas. Em todo caso,

buscando seguir as deduções de Spinoza, reconhecemos que todas as instituições, sejam

as que instituem e preservam a liberdade, sejam as que fundam a tirania, parecem ter

uma raiz comum: a “superestrutura” composta pelo direito, pela religião e pela moral é

expressão imaginativa da reação coletiva às diferentes formas de violência

experimentadas pelo corpo social, cujo caráter será condicionado pelas “ações

recíprocas” entre seres humanos e suas circunstâncias materiais.

A imaginação é entendida por Spinoza (2007, II, Prop. 40, Esc. 2) como modo

espontâneo de funcionamento da mente, enquanto ela forma idéias mutiladas e confusas

daquilo que ocorre ao corpo9 e, como tal, é um gênero de conhecimento enraizado em

nossa experiência imediata. Não importa aqui que nos aprofundemos na seqüência de

8 A perspectiva de Spinoza é, como define François Zourabichvili, de um conservadorismo paradoxal: quanto mais aberto a mudança e ao conflito, como no caso da democracia, mais o Estado tende a se conservar, em função de sua plena coerência com a condição natural humana. Ver Zourabichvili (2002). 9 Spinoza entende por unidade entre mente e corpo o fato de que o objeto que constitui a idéia da mente humana não é senão o seu corpo, ou seja, uma coisa singular existente em ato.

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proposições e demonstrações de sua dedução na Ética. Basta dizer que, sendo a “ordem

e a conexão das idéias é mesma que a ordem e a conexão das coisas” (SPINOZA, 2007,

II, Prop. 7), uma vez que nosso corpo retém traços dos corpos que o afetam, formamos

idéias de tais afecções, seja percebendo o modo pelo qual as partes constituintes do

corpo afetam umas as outras, seja percebendo o modo pelo qual estas partes são

afetadas pelos corpos exteriores, ainda que de maneira parcial. Tais idéias, pelo mesmo

princípio, são formadas segundo a mesma ordenação e concatenação das afecções do

corpo, ou seja, nossa mente as concebe segundo a ordem como elas nos afetam

habitualmente10.

Spinoza rejeita, assim, uma ficção central do pensamento moderno, segundo a

qual a mente tem um poder absoluto sobre o corpo, podendo dirigi-lo e determiná-lo

como bem queira11. O corpo individual e coletivo se constitui como memória de suas

afecções, determinando a mente a imaginar as coisas tal como elas foram ordenadas

pelo hábito. Por si mesmo, este fato não pressupõe nenhuma valoração moral prévia; é,

aliás, a partir dele que são construídas as noções morais de justo/injusto, bem/mal,

pecado/mérito: “não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a

queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrário, é por nos esforçarmos

por ela, por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la que a julgamos boa” (SPINOZA,

2007, III, Prop. 9, Esc.). Do mesmo modo, uma ação pode ser considerada violenta

unicamente quando remetida a estes valores que, contudo, são externos à própria ação

(SPINOZA, 2007, IV, Prop. 59, Dem. Alt. e Esc.):

Diz-se que uma ação é má apenas à medida que surge por sermos afetados de ódio ou de algum outro afeto mau. Ora, nenhuma ação, considerada em si só, é boa ou má [...]. Explica-se isso mais claramente com um exemplo. A ação de golpear, enquanto fisicamente considerada, e se nos limitarmos a observar que o homem levanta o braço, cerra o punho e move, com força, o braço para baixo, é uma virtude que se concebe por causa da estrutura do corpo humano. Agora, se um homem, levado pela ira ou pelo ódio, é determinado a cerrar o punho ou a mover o braço, isso ocorre, como mostramos na segunda parte, porque uma só e mesma ação pode estar associada às mais diversas imagens das coisas. Podemos, assim, ser determinados a uma só e mesma ação, tanto por causa de imagens das coisas que concebemos confusamente, quanto por imagens das coisas que concebemos clara e distintamente. É, pois, evidente que, se os homens

10 Deste modo, dá-se a gênese da memória para Spinoza (2007, II, Prop. 18). 11 No Prefácio da Parte V da Ética, Spinoza ironiza Descartes, por sua incoerência metodológica ao formular uma teoria da “glândula pineal”, órgão responsável por mover o corpo segundo as determinações da alma (Ibid., V, p. 367): “não posso, certamente, surpreender-me o bastante de que tal filósofo admita uma hipótese mais oculta que todas as qualidades ocultas. Que compreende ele, afinal, por união da mente e do corpo?”. Ver também Spinoza (Ibid., II, Prop. 49).

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pudessem ser conduzidos pela razão, todo desejo que surge de um afeto que é uma paixão seria ineficaz.

Daí a importância decisiva da teoria dos afetos em Spinoza (2007, III,

Definições): nossa potência de agir e pensar é aumentada ou diminuída por eles de

modo necessário e independente de nossa vontade, tanto quanto não controlamos as

afecções do corpo ou as idéias destas afecções. Consideradas em si mesmas, tampouco

as imaginações são erros ou defeitos, mas espécies de afirmações da mente que colocam

a existência de nosso corpo e dos corpos exteriores, mesmo que estes não lhe estejam

presentes (SPINOZA, 2007, II, Prop. 17, Esc.). Mas tal afirmação não depende da

explicação da natureza de nosso corpo nem dos corpos exteriores; enquanto

determinada pelo encontro fortuito com as coisas, a mente forma idéias parciais ou

inadequadas, ou seja, idéias das quais ela mesma só é causa parcial, em concurso com as

idéias das coisas que lhe afetam. Há, portanto, afetos ativos e afetos passivos, ações e

paixões da mente: enquanto os primeiros decorrem de uma autodeterminação da mente,

produzindo idéias que são adequadas, os segundos são produzidos pelos encontros das

partes que constituem o nosso corpo, seja com outras partes, seja com os corpos

exteriores, determinando a mente a formar idéias inadequadas.

Ressaltemos que, quando falamos de corpos exteriores, nos referimos também

aos corpos humanos, que imaginamos como semelhantes a nós. Eis que, para Spinoza, a

base material da sociabilidade não é uma identificação racional entre consciências e

interesses, mas um mimetismo afetivo: imaginamos nosso próprio corpo sendo afetado

pelos mesmos afetos que supomos afetar algo semelhante a nós e, deste modo, somos

capazes de coletivamente nos alegrarmos, nos entristecermos e, enfim, desejamos as

mesmas coisas. Entretanto, nos esforçamos por perseverar em nosso ser por uma

duração indefinida, mesmo quando estamos sujeitos a paixões (SPINOZA, 2007, III,

Prop. 9); em todas as circunstâncias, nossa mente esforça por imaginar e realizar

aquelas coisas que estimulam ou aumentam a potência de agir de nosso corpo

(SPINOZA, 2007, III, Prop. 12) e, por isso mesmo é levada a desejá-las. Assim, do

mesmo modo, esforçamo-nos por imaginar e afastar de nós aquilo que nos leva à

impotência (SPINOZA, 2007, III, Prop. 28). Em outros termos, não há contradição

interna entre nosso conatus e a imaginação: ela não suprime a potência de nossa mente,

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que consiste em ordenar e concatenar a as afecções do corpo de maneira a afirmar sua

existência tanto quanto é possível, ainda que de maneira inadequada.

Mas uma vez que a potência das causas exteriores, dos afetos passivos ou

paixões, pode superar indefinidamente nossa própria potência de pensar e de agir,

quanto mais determinada por estas causas, menos a mente está propriamente na posse de

sua potência de pensar, ou seja, menos temos o poder de ordenar as afecções de nosso

corpo. Como diz Spinoza (2007, IV, Prop. 4), seria absurdo supor que os seres humanos

não estão submetidos a esta potência enquanto parte da natureza, que não existe nem

pode ser concebida sem as demais. A tal ponto que nosso esforço por perseverar na

existência pode nos levar a desejar a única ordem que, em meio à confusão e à

desestabilização dos afetos, nos é dada: a ordenação imaginária do real12, os símbolos e

práticas que constituem as instituições, as quais pensamos desejar livremente, pois

estamos conscientes apenas do próprio desejo e não de suas causas.

E como as coisas que podem ser imaginadas facilmente são mais agradáveis do que as outras, os homens preferem a ordenação à confusão, como se a ordenação fosse algo que, independente da nossa imaginação, existisse na natureza (SPINOZA, 2007, I, Apêndice).

2.3 A precariedade do poder violento e a necessidade da instituição do povo em

armas

Paradoxalmente, o mesmo fundamento passional torna qualquer poder violento

pouco durável: de fato, aquele que detém o poder também está submetido às paixões, a

tal ponto que, quanto mais concentrado for este poder, mais imagina que todos devem

se submeter a seu arbítrio, ainda que suas ordens sejam absurdas e contrárias à

preservação da vida dos súditos. É por isso que, se “o maior poder é o daquele que reina

sobre o ânimo dos súditos”, ainda assim é forçoso constatar que “não se podem

submeter os ânimos da mesma forma que se submetem as línguas” (SPINOZA, 2003,

[202-203], p. 252). Se pretenderem ser duradouras, portanto, as instituições devem ser

12 Seria importante desenvolver a relação entre a ordenação imaginária e hábito, tal como Spinoza faz no escólio da prop. 18 da parte II da Ética. Com efeito, o hábito projeta no tempo a constituição imaginária de um corpo individual e coletivo. Ver Bove (1996).

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de tal modo constituídas que visem apenas a refrear os excessos decorrentes das paixões

humanas, de maneira que cada um imagine obter delas a maior vantagem, segundo

aquilo que deseja e que julga lhe ser útil. Em outros termos, quando a multidão associa

o seu próprio esforço de auto-conservação às instituições vigentes, prestará a elas sua

obediência, independentemente de sua origem violenta. Esta mesma ratio institucional

calcada no imaginário leva Spinoza a conceber a democracia como o regime o mais

natural possível, ainda que a experiência mostre ser este regime o mais suscetível à

discórdia e à sedição. Neste caso, a própria multidão reconhece sua potência de agir e

existir como fundamento das instituições, sendo desnecessário, portanto, produzir

obediência através do medo e esperança.

Ainda que por razões de sobrevivência a imaginação coletiva seja levada a

perceber a utilidade comum na tirania, em função do desejo de ordem que mencionamos

anteriormente, o poder constituído depende da potência da multidão e é nele que busca

se apoiar, tanto quanto possível, para se conservar. Neste caso, o detentor do poder

percebe que, pela violência e pela força, pode-se submeter o corpo ou a mente de um

indivíduo ou de uma coletividade apenas durante certo tempo, já que esta força não

produz obediência senão enquanto supera a potência destes. No caso em que a própria

dinâmica passional do soberano lhe impeça de reconhecer a debilidade intrínseca de seu

poder, seu esforço será constituir e reforçar um corpo militar capaz de prolongar esta

submissão indefinidamente.

Uma vez constituída a milícia a serviço do soberano, a grande dificuldade para

os militares estaria, segundo Spinoza, em aceitar ordens daqueles cujos corpos

imaginam estar ou efetivamente estão sob sua dependência13. A vida ordinária e

comum, o excesso de procedimentos da democracia e a passionalidade do vulgo são

como corpos estranhos para seu metabolismo combatente. Seguindo a lógica

maquiaveliana – lembremos que Maquiavel rejeitava qualquer alternativa a não ser um

exército composto por todos os cidadãos em idade adulta, mobilizado apenas nas

13 Hobbes, por exemplo, reconhece que o direito de rectrutar e mandar nos soldados é essencial para a soberania. Ver, na p. 3 deste trabalho, a citação do Behemoth de Hobbes.

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situações de emergência para o Estado14 – Spinoza compreende (1979, VI, § 31, p. 329)

que a necessidade do armamento popular decorre da assimetria, em termos da própria

potência, que a burocratização da atividade militar gera, fazendo com que o poder se

apóie não mais na potência da multidão, mas na potência dos corpos armados, o que se

agrava quando a profissão militar é remunerada. Na perspectiva spinoziana, nada

poderia ser mais nocivo à conservação de um Estado: remunerar com soldo a milícia

significa premiar a atividade que consiste justamente em colocar sob sua dependência o

corpo da multidão15 e estimular o que já é tendência presente em todo corpo social, de

que um grupo se aproprie pela força das armas da potência coletiva. É claro, como

vimos anteriormente, que quando o poder só depende da força das armas é muito

precário e está sujeito a ser superado por uma maior força militar. Portanto, o problema

torna-se mais grave se, além disso, na imaginação da multidão as instituições militares

são a única e verdadeira força da soberania.

Cabe lembrar que cada corpo social tem demandas próprias neste sentido, já que

é constituído de modo singular pela ordenação habitual de certos afetos e imagens

decorrentes das relações que suas partes componentes estabelecem entre si, ou seja, do

modo de produção da vida no interior do qual muitos indivíduos participam da

consecução de um esforço comum de perseverar na existência. As necessidades de

defesa integram necessariamente este esforço, e a criação de instituições que visam

assegurar este objetivo imanente ao conatus coletivo é sua expressão no imaginário

popular. Este é o motivo pelo qual, para Spinoza, o povo armado é a base de sustentação

segura de qualquer regime político e, ao mesmo tempo, garantia da preservação da

liberdade, já que possibilita à multidão resistir à violência do soberano16. A democracia

14 O Príncipe,caps. X, XII, XIII, XIV e Discursos, Livro I, caps. II, XL, XLVI, LIV, Livro II, caps. XVI, XX, Livro III, caps. XVI, XXIV. 15 “Segue-se, do que precede, que cada qual está na dependência de outrem na medida em que esta no poder desse outro, e que pode repudiar qualquer violência, castigar como julgar bem o dano que lhe é causado e, de maneira geral, viver segundo a sua própria compleição. Esse é o que tem outro em seu poder, que o mantém aprisionado, ou ao qual tomou todas as armas, qualquer meio de se defender ou escapar, ou a quem soube inspirar temor, ou que a si ligou por favores, de tal maneira que esse outro lhe queira agradar mais que a si mesmo, e viver consoante o seu próprio desejo”. (SPINOZA, 1979, II, § 9-10, p. 311). 16 No caso da monarquia, Spinoza utiliza o exemplo dos Aragoneses, que depois de se libertar do domínio mouro, não apenas elegeram o rei, mas criaram instrumentos para refrear seu poder e, nos primórdios, inclusive depô-lo. Direito que foi abolido, mas “com esta, condição, todavia, os cidadãos poderiam, em qualquer altura, tomar armas contra quem quisessem, pela violência usurpar o poder em seu detrimento, contra o próprio rei e contra o príncipe herdeiro, se tentassem semelhante usurpação. Estipulando essa condição, corrigiram o direito anterior. Pois como demonstramos nos parágrafos 5 e 6 do capítulo IV, é

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é, entre eles, o mais absoluto dos regimes, pois apesar dos conflitos e dissensões que a

perpassam, é mais potente para se conservar já que cada um obedece e defende a si

mesmo.

A força armada deve ser composta apenas por cidadãos e por todos sem exceção. Um homem armado, com efeito, é mais senhor de si mesmo do que um homem desarmado, e os cidadãos transferem absolutamente o seu direito a um outro e entregam-se inteiramente à sua lealdade quando lhe deixam as armas e lhe confiam a defesa das cidades. (SPINOZA, 1979, VII, § 17, p. 346-347).

3. Conclusão

Com base nas considerações precedentes, a recusa da alienação política total

parece ser a característica central da crítica de Spinoza ao absolutismo burguês e sua

concepção jurídica: para Spinoza, não apenas é contraditório, mas impossível que

alguém transfira seu direito natural absolutamente. Uma vez que há uma variedade de

modos de exercer o poder e, conseqüentemente, de organização coletiva ou resistência,

a cada forma política corresponde um quantum de direito natural, preservado no interior

do Estado. Spinoza compreende que isto é um problema de proporção geométrica e se

dedica no Tratado Político à análise dos diferentes regimes políticos – monarquia,

aristocracia e democracia – segundo essa ordem. É por isso que, aliás, a democracia é

para Spinoza o único regime inteiramente absoluto: na democracia spinoziana é a

potência da multidão que detém e exerce diretamente a soberania, e o faz em virtude de

seu próprio direito natural.

Como diz Spinoza, numa cidade em que o soberano concentra em suas mãos a

tarefa de garantir a segurança e a defesa comuns, instituindo uma milícia unicamente em

proveito da conservação de seu poder, e não segundo os interesses e desejos da

multidão, podemos dizer que “a paz é efeito da inércia dos súditos conduzidos como um

pelo direito de guerra, não pelo direito civil que o rei pode ser privado de seu poder; à sua violência os súditos não podem resistir senão pela violência”. (Ibid., VII, § 30, p. 340). Com relação à constituição aristocrática, a igualdade não é mais entre todos os cidadãos, mas entre os patrícios, que devem estar, no entanto, reunidos em assembléia em número suficiente para evitar que o poder caia na mão de poucos. Por este motivo, deve-se não apenas garantir que a milícia seja uma função extraordinária, quanto que os chefes militares sejam nomeados apenas em tempo de guerra, com tempo de mandato estabelecido previamente. Ver Spinoza (Ibid., VIII, § 9, p. 344).

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rebanho e formados unicamente na servidão” e, neste sentido, “merece mais o nome de

solidão que de cidade” (SPINOZA, 1979, V, § 4, p. 322). Por isso, podemos dizer que

encontramos em Spinoza a paradoxal afirmação de que a estabilidade da cidade está na

razão direta da manutenção do “direito à insurreição” pelos súditos que, ao assumirem a

tarefa de por si próprios preservarem as instituições, evitam as usurpações que podem

levar à tirania.

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O SENTIDO DE UMA FILOSOFIA BRASILEIRA

Márcio Daniel da Costa Nicodemos Graduando em Filosofia da UFRJ

Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar em que sentido é possível falar de uma filosofia brasileira; discorrendo, para isso, sobre três questões: (1) a universalidade versus a particularidade dos problemas filosóficos, (2) a importância da tradição filosófica (tanto a universal como a particular) e (3) a originalidade do pensamento; tomando como exemplo ilustrativo para a discussão de tais questões a vida e a obra do filósofo brasileiro Farias Brito, a fim de mostrar como o seu pensamento filosófico que surge profundamente relacionado com as questões particulares da realidade nacional, atinge um nível universal, insere-se, ao mesmo tempo, na tradição mundial e brasileira, e é original. Palavras-chave: Farias Brito. Filosofia Brasileira.

1. Introdução

Em que sentido é possível falar de uma filosofia brasileira? Tal questionamento

é formado, na realidade, por outros dois questionamentos aí implícitos: (1) em que

sentido é possível falar de uma filosofia no Brasil? E (2) em que sentido é possível falar

de uma filosofia do Brasil? Para responder ao primeiro questionamento podemos

recorrer à história, pois observando a trajetória do ensino de filosofia no Brasil, veremos

que desde o século XVI, com a chegada dos jesuítas ao país e a fundação dos colégios

da Companhia de Jesus, até hoje, com as mais diversas faculdades, institutos e centros

de pesquisa, há uma cultura filosófica presente no país através de um estudo

disciplinado da filosofia com cursos, aulas, professores, alunos, pesquisa e produção de

trabalhos; de modo que se torna claro que neste sentido é que é possível falar de uma

filosofia no Brasil. Porém, para respondermos ao segundo questionamento,

complementando o primeiro e respondendo à questão inicial, precisaremos recorrer não

somente à história, mas também à própria filosofia, pois teremos que investigar algumas

questões como: (1) a universalidade versus a particularidade dos problemas filosóficos,

(2) a importância da tradição filosófica (tanto a universal como a particular) e (3) a

originalidade do pensamento.

2. Universalidade versus particularidade

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A primeira questão que investigaremos será a universalidade versus a

particularidade dos problemas filosóficos:

A eterna luta entre o universal e o particular é um dos grandes problemas

filosóficos existentes que se reflete em todos os outros problemas filosóficos e está

presente na própria essência da filosofia, pois o filósofo quando investiga determinado

problema tem como objetivo realizar um esforço para libertar-se de suas condições

históricas e culturais e atingir um ponto de observação universal; ou seja, ele tem como

objetivo temporariamente afastar-se da instância particular para aproximar-se da

instância universal e é a filosofia enquanto uma atividade permanente do espírito

humano, tal Farias Brito a entendia, na tentativa do homem de colocar-se acima de sua

condição, de ver sua condição fora de si mesmo, tal Vilém Flusser a entendia, que torna

possível ao filósofo realizar a desestruturação dos padrões histórico-culturais vigentes

de sua época para situar-se frente ao mundo e frente a si mesmo de outro ponto de vista,

mais amplo e isento. De modo que:

Do ponto de vista de sua universalidade, a filosofia é indiferente à pessoa do filósofo exatamente porque o alcance e a validade dos argumentos, doutrinas e idéias não se limitam ao tempo nem ao espaço da existência histórica de seus autores (CERQUEIRA, 2002: 20).

[...] [e] embora a universalidade da filosofia seja indiferente à pessoa do filósofo, ela não exclui a pessoa do filósofo. O que se concebe como problema filosófico supõe a sua historicidade no sentido de que a autoconsciência implica a existência histórica do filósofo, bem como do estudante de filosofia, dentro de um contexto cultural (CERQUEIRA, 2002: 29).

Por isso, ao iniciarmos algum estudo filosófico é sempre importante

considerarmos os aspectos histórico-culturais da época a qual se estuda porque somente

assim teremos uma visão completa e correta das respostas particulares que foram dadas

às questões universais e poderemos conduzir com segurança nossa investigação, pois

situar um pensamento filosófico em sua época de origem é o que nos permite

vislumbrar todas as épocas, percebendo que embora haja variações nas respostas as

questões são sempre as mesmas, donde se conclui que a universalidade e a

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particularidade são as duas instâncias em eterna tensão nos problemas e no pensamento

filosófico.

3. A importância da tradição

A segunda questão que investigaremos será a importância da tradição filosófica

(tanto a universal como a particular):

A tradição, na filosofia, é o que permite que o conhecimento acumulado ao

longo dos séculos possa conservar-se e transmitir-se, estabelecendo para as futuras

gerações de filósofos sempre um ponto inicial mínimo de investigação sobre as questões

a serem tratadas devido às repostas que já foram dadas anteriormente. Assim, todo

filósofo está inserido sempre em duas tradições, uma universal e outra particular, que

permitem situá-lo em relação aos filósofos de outras épocas e às mais diversas correntes

filosóficas, seja em relação a aspectos históricos, geográficos ou à própria evolução das

idéias como um todo.

Quanto à tradição filosófica universal podemos dizer que ela tem início na

Grécia e chega até os dias de hoje, não sendo muito difícil tomar conhecimento sobre

ela consultando qualquer bom livro de história da filosofia ou dicionário filosófico. No

entanto, quanto à tradição filosófica particular podemos dizer que ela varia de acordo

com o aspecto enfocado, de modo que é possível falarmos em uma tradição filosófica

antiga, medieval, moderna e contemporânea, ou idealista, realista, existencial,

fenomenológica, analítica, etc., ou ainda, numa tradição filosófica grega, espanhola,

inglesa, alemã, e, porque não, brasileira?

O Brasil possui uma tradição filosófica riquíssima, infelizmente, ignorada – ou

em alguns casos pior: negada – pela maioria dos professores de hoje, de modo que não

há uma constante crítica interna com conseqüente fortalecimento da mesma, mas ao

contrário, há um enfraquecimento que precipita nosso país numa queda em relação aos

debates atuais, pois se desconhecemos nosso passado filosófico particular, ou seja, as

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necessidades que despertaram em nós a vontade de investigar e partir em busca de

respostas universais, o modo como conduzimos tais investigações e as respostas que já

demos a algumas dessas perguntas, será em vão a tentativa de se agarrar a algum

modismo filosófico estrangeiro para dar alguma contribuição significativa ao debate

mundial.

Em linhas gerais, a tradição filosófica brasileira se inicia com Domingos José

Gonçalves de Magalhães e sua obra Fatos do Espírito Humano (1858), com a qual ele

rompe com as influências dogmáticas lusitanas e cria uma tradição autêntica, que segue

adiante com Tobias Barreto, Farias Brito, e até mais recentemente com Miguel Reale,

Vicente Ferreira da Silva, Vilém Flusser e tantos outros, todos internacionalmente com

enorme prestígio e reconhecidos como filósofos, mas praticamente desconhecidos em

seu próprio país.

Assim, fazendo um caminho inverso, podemos ver que criamos uma tradição

brasileira com o rompimento com Portugal, mas nos inserimos filosoficamente numa

tradição mundial por intermédio de Portugal e negar essa particularidade histórica e

cultural é fechar as portas que nos levam à filosofia medieval e daí à filosofia antiga, ou

mesmo à filosofia moderna e daí à filosofia contemporânea e perder-nos, como já foi

dito, em diálogos vazios com filósofos estrangeiros.

4. Originalidade do pensamento

A terceira questão que investigaremos será a originalidade do pensamento:

Um pensamento filosófico é original: “[...] na medida em que ‘original’

significa aquilo cuja existência se deve à singularidade e exclusividade de sua origem”

(CERQUEIRA, 2002: 25); ou seja, a originalidade na filosofia consiste em alguém criar

algo novo, inédito, nunca antes visto num plano universal, mas intrinsecamente

relacionado com as particularidades histórico-culturais nas quais ele surge, de modo que

sintetizamos assim uma teoria personalista da história das idéias, na qual pessoas

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geniais aparecem com idéias geniais e unicamente por sua força e vontade são capazes

de modificar toda uma época, com uma teoria naturalista da história das idéias, na qual

o Zeitgeist – o espírito intelectual reinante de determinada época – criaria respostas às

necessidades temporais imediatas, independente da pessoa, de modo que se uma idéia

não surgisse através uma pessoa surgiria, de qualquer modo, através de outra.

5. Farias Brito – um filósofo brasileiro

Agora, tomaremos a vida e a obra do filósofo brasileiro Farias Brito como

exemplo ilustrativo para as três questões que foram discutidas:

Em relação à tensão entre o universal e o particular, é interessante observar que

Farias Brito viveu no Brasil durante o turbulento período de transição do século XIX

para o século XX e toda a gênese e desenvolvimento de sua obra está profundamente

relacionado à realidade histórico-cultural brasileira; seu pensamento surge e toma forma

num momento em que o Brasil encontra-se numa profunda crise em todos os sentidos:

havia uma crise política, pois o Império estava em declínio e a proclamação da

República era iminente; havia uma crise religiosa, pois a Igreja não mantinha uma boa

relação com o Império e não era bem vista pela sociedade, se enfraquecendo e perdendo

cada vez mais prestígio; havia uma crise intelectual, pois o positivismo – que havia

chegado ao país através dos líderes republicanos se espalhava rapidamente por todos os

setores da sociedade sem encontrar resistência; e havia uma crise moral e social, pois os

brasileiros cada vez mais desorientados vagavam sem rumo; e é observando este cenário

caótico que ele começa a elaborar seu pensamento filosófico: ele observou que a crise

não era só brasileira, mas uma crise de valores ocidental que remontaria ao

Renascimento e que era preciso restaurar o sentido de ordem que estava se perdendo, de

modo que fez duras e profundas críticas ao positivismo e ao cientificismo; ou seja, é

com base em determinadas questões muito particulares que o filósofo cearense faz suas

investigações filosóficas com o objetivo de reorientar-se para reorientar o Brasil e o

mundo, e que seu pensamento cresce em profundidade até atingir um nível universal.

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Em relação à tradição, Farias Brito se insere perfeitamente numa tradição

brasileira, pois dá continuidade e aprofunda os estudos de Tobias Barreto, de modo que

por aí se insere também numa tradição mundial, numa linha fenomenológica (em

relação ao método utilizado) e existencial (em relação aos temas tratados), dialogando

no plano das idéias com filósofos como Husserl e Bergson.

E em relação à originalidade, seu pensamento filosófico foi primeiramente

considerado como tal por um professor de filosofia norte-americano chamado Fred

Gillette Sturm, segundo o qual:

A originalidade de Farias Brito consiste no fato de que ele se transformou no intérprete da crise cultural brasileira oitocentista (que culminou com a abolição da escravatura e a proclamação da república), situando-a no âmbito de uma crise da cultura ocidental que remonta ao Renascimento (CERQUEIRA, 2002: 202).

[Ela] vem da realidade cultural brasileira como origem das preocupações e inquietações que fizeram com que ele, em vista da mudança essencial na maneira moderna de pensar, conforme a “revolução copernicana” de Kant, se pusesse a investigar acerca da necessidade de um novo conceito de filosofia que, por um lado, não se reduzisse ao domínio da explicação científico-natural, e, por outro, não prescindisse daquela exigência de rigor intrínseca ao método das ciências da natureza (CERQUEIRA, 2002: 204-205).

6. Conclusão

Enfim, após toda essa discussão e após o exemplo dado, acreditamos ter

respondido à segunda questão implícita e como já havíamos respondido à primeira,

podemos então responder à questão inicial: em que sentido é possível falar de uma

filosofia brasileira?

Podemos falar de uma filosofia brasileira tanto no sentido de que há uma

filosofia no Brasil como no sentido de que há uma filosofia do Brasil; ou seja, temos

tanto faculdades e cursos, pesquisas, produções e publicações de professores e

estudantes de filosofia, configurando há séculos uma cultura filosófica presente no

Brasil, como temos intelectuais brasileiros que realizam (ou realizaram) um esforço

filosófico para elevarem seus pensamentos de um nível de interesse particular a um

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nível de relevância universal, preocupados em se inserir e dialogar corretamente com a

tradição mundial e brasileira, além de terem dado contribuições originais para

responderem a determinadas questões; de modo que podemos dizer que temos

verdadeiros filósofos, configurando também uma filosofia do Brasil.

Referências bibliográficas

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