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Revista Berro (Ano 02, Nº 05, Julho/Agosto 2016)

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Na quinta edição da Revista Berro, uma reportagem sobre as pessoas, grupos e movimentos que resistem, sonham e agem pela construção de uma outra sociedade. Trazemos também uma entrevista maravilhosa com a médica e educadora popular Vera Dantas.

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Ano II | Edição 05Julho-Agosto/2016

Mais esperada que delação premiada!

Aurora de Sonhação!As raízes de um mundo novo

Nem tudo é desesperança! Pessoas, grupos e movimentos resistem,sonham e agem na construção de uma outra sociedade!

reportagem

entrevista

Vera Dantas"Quero conjugar o verboesperançar, porque nesse

verbo tem ação!"

artigo

Vanessa douradoA cultura do estupro

berro hq

Bode BerroUma visita às

escolas ocupadas

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Aff maria! Qu'essa revistinha quase não sai mais, hein? Foiuma gestação, um longo parto de um ano desde a última ediçãopra esta. Mas ó, depois de um tempão de prenhez, estamos aquide novo, berrando alto presse mundão! E com um bocado decoisa nova: a partir de agora serão 32 páginas, deixando aindamais claro pra vocês “de que lado a gente samba”. Não somos deficar em cima do muro, e a imparcialidade da mídia é umagrande mentira da qual não faremos parte!

De novidade também para esta edição tem a seção Umbode-mah, na qual o Bode Berro vai descer a lenha nas besteiras quefizemos e escrevemos ao longo das últimas quatro edições. To-me carão viu!! Falando nele, esse bode sem vergoim vem de carae chifres diversos, sob os traços de três quadrinistas diferentes(HQs iradas!). Sim, o Bode Berro tem vida própria (ele é inclusivenosso guru espiritual e mentor intelectual), mas ele precisa ser de-senhado, né? Mas o grande "babado" dessa edição é o novoprojeto gráfico! Novo papel, novas tipografias, uma invocadaconceituação estética (tá vendo? até falando bonito a gente tá!),no intuito de proporcionar um maior prazer visual pra leiturade vocês. Contem-nos depois o que acharam!

Essa edição traz ainda uma reportagem que tenta lançar umfeixe de luz a esses tempos tão sombrios. Se a política tradicio-nal nos desesperança cada vez mais, as pessoas, movimentos egrupos retratados na matéria são raízes de um novo mundopossível que se apresenta para nós. Este mundo revolucionadonão depende da política tradicional, mas do que fazemos no diaa dia. A vida e a política são construções do cotidiano, do não-esperar pelos(as) “políticos(as) profissionais” nas nossas rela-ções sociais diárias; do sonhar, mas também do agir. Somenteassim transformaremos o mundo!

Ainda tem muita coisa legal nessa revistinha enxerida: tem aSolta o Berro, com o danado do Bode Berro respondendo aoscomentários e críticas das leitoras e leitores; a Lusco-Fusco compoesias; um artigo crítico sobre a cultura do estupro; umaEntrevista maravilhosa com a médica e educadora popular VeraDantas; e, na Lambe-lambe, uma crônica e um ensaio fotográficolindão da Clara Capelo. É isso: a Berro é toda sua! Goze-a!

“A escuridão é luz bastante para a experiência revolucionária”(Roberto Freire, Utopia e Paixão)

aquecendo o gogo

Revista BERRO

revistaberro.com | [email protected]: RevistaBerroCE | Twitter: @revistaberro

Tiragem: 1.500 exemplaresImpressão: Expressão Gráfica e Editora

A Berro é uma publicação alternativa e satírica sobre sociedade, arte,cultura, política, comunicação e muito mais, que tem o Bode Berro comomentor e guru. Aos poucos, você vai se acostumar com ela. Ou não!

Ajude a Berro a financiar aspróximas edições! S'intere mais!revistaberro.com/ajudeaberro/

berradores Guru espiritual e mentor intelectualBode Berro | [email protected]

Sonhador irresponsávelArtur Pires | [email protected]

Boêmio da madrugadaThiago Zé | [email protected]

Menino da informáticaRafael Salvador | [email protected]

Poeta tocador de pífanoJoão Ernesto | [email protected]

Escritor do muroRamon Sales | [email protected]

Berraram também nesta ediçãoClara Capelo | [email protected] Lima | [email protected] Dourado | [email protected]

berreiro

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aí negada, tudo bem? Ó, nessa edição a gente vai es-trear essa seção aqui. Nesses jornalões que têm poraí, existe uma figura chamada “ombudsman”. Não

me perguntem de onde veio esse nome que eu num sei não.Pensava no começo que era até xingamento. Então, essa fi-gura de nome esquisito existe pra meter a bronca na nega-da, dizer onde o jornal ou a revista erraram, o quepoderiam ter feito melhor... na verdade, verdade mesmo,existe pra criticar a negada, e até xingar, no nosso caso,quando for preciso. Pois bem, o pessoal aqui da Berro tam-bém tá precisando de uns puxões de orelha e de umas cutu-cadas. Tamo chegando na 5ª edição, mas nas quatroanteriores teve uma ruma de vacilo que eu, Bode Berro,num podia deixar passar batido. Como esse nome ombuds-man é muito complicado de dizer e de escrever, aqui vai serdiferente: eu não sou ombudsman coisa nenhuma, eu souum bode, mah. Ora mais! É isso mesmo: Umbodemah!

Mas bora começar nosso trabalho, que tem muita coi-sa pela frente. Óia, na 1ª edição, a gente cometeu umasbesteiras grandes viu! Pra começar o besteirol, logo na ca-pa me colocaram como “porteiro” e que eu tinha aceitadotrabalhar aqui “por abrigo, comida e auxílio-merenda”. Ena seção Berro HQ (pág.16), inventaram de me desenharnuma tal “entrevista de emprego”. Eu me recuso a fazerparte duma historinha daquelas. Olhe, minha gente, numpodiam ter feito baboseira maior. Primeiro, porque aquina Berro num existe essa divisão formal e quadradona detrabalho. Nunca teve uma entrevista de emprego pra euentrar aqui. Isso é coisa de revista séria, não duma revistasem vergonha como a nossa. Se a gente num tem nem umcantim rochêda, comé que esse diacho de revista vai terporteiro? Se essa revista, que é de graça, num dá rendanem pra comprar um pastel de vento com caldo de canalá no Centro, comé que eu vou receber auxílio-merenda?Pra acabar logo com essa reclamação e partir pro próxi-mo ponto, e sem querer me amostrar (mas já me amos-trando!), aqui nessa revistinha fuleragem minha função éde mentor intelectual e guru espiritual. E já me dá um tra-balho danado, ora marminina e marminino!

Não satisfeitos, na mesma capa da 1ª edição, mais umababoseira, tão abestalhada quanto a primeira. Vieram di-zer que eu era “sex-symbol”. Leram bem? Sex-symbol! Óia,meu povo, diante disso, me desculpem o palavrório, maseu só tenho uma coisa a dizer: SEX-SYMBOL É MEU ZÓ-VO! Negoço de sex-symbol. Eu sou só um bode mah! Deixaesse negoço de sex-symbol prêsse povo que acha que ocorpo é mais importante que as ideias e os valores. Isso desex-symbol num é coisa pra nós não!

Na 2ª edição, logo na capa, teve outro vacilo que podeparecer pequeno, mas que não é. Diz muito do machismoque tem na sociedade. A gente anuncia: “Bode Berro con-versa com nossos leitores”. Ôxe, e por acaso eu só conver-sei com macho? Não, ora mais! Conversei também comleitoras, ôxe! Essa coisa de usar só as palavras que se refe-rem aos machos quando querem falar dos machos e dasfêmeas num tá certo não. E isso já aconteceu outras vezesna revista. E tomara que não se repita. Sempre esse ma-chismo disfarçado na língua que nós escreve. No caprinês,a língua das cabras e dos bodes, num existe isso não.Quando a gente vai falar na mesma frase de uma cabra ede um bode, existe uma palavra que significa pros dois.Querem saber qual é? É essa aqui ó: Bééé-béé! Pegaram aí?Pois é, o caprinês num é tão fácil assim de aprender. Masó, sempre que nós for escrever essas coisas, tem que ficarmuito atento que no mundo tem outros gêneros, e não sóos hômi. A partir dessa edição a gente já tomou muuuitocuidado em relação a isso.

Na 3ª edição, eu vou falar a verdade pra vocês: comitanta da erva que num consigo ter uma opinião negati-va sobre aquela revista. Acho ela ótima, foi tãããoooo le-gal.. . . hahahahahaha!!! Mas na 4ª edição, aí tem umamancada fenomenal que eu não posso deixar passar dejeito nenhum. Os caras vão fazer uma entrevista com aLaerte, grande cartunista transgênera... Até aí, massa,mas onde diabos eles acham que o “travestismo” é uma“escolha”? Primeiro, a palavra "travestismo" num é legal,o melhor termo era “transgeneridade”, e isso num é umaescolha, é um jeito livre de ser. Bem que mereceram aresposta da entrevistada: “Já dei centenas de entrevistasmas ainda tenho que ouvir ‘escolha pelo travestismo’.Que cansaço”. Tôôooomaaa!!! Vai comendo, mininão!Mereceram! A transgeneridade é um negoço complexo, eque nunca vai ser só uma “escolha”. Pra entender ela émais difícil do que andar de bicicleta no trânsito de For-taleza. Aprendam, berradores!

Negada, por enquanto é isso! Sempre que espiaremalguma merda sendo publicada por essa revistinha semvergonha, mandem mensagens pelas redes sociais ou pe-lo saite, mas principalmente mandem i-mêius aqui pramim que eu vou ler com muita atenção. Agora, umtchau-tchau em caprinês: Bé-bé!

umbodemah

[email protected]

bit.ly/berro-impressas

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3ª Edição

2ª Edição

solta o berro

Anônima Afrodite: Estoulendo a 2ª edição, desde jáparabéns! O quadrinho dacapa final ficou foda! Ado-raria compartilhar!

Oxe, muié... pois comparti-lha que eu vou achar ébom! Taí em cima o link!Ali foi durante a época daseleições e as ruas tavamcheias desses papel véi des-ses(as) políticos(as), cadaum(a) com um sorriso maisfalso que outro... Nam, des-se papel eu nunca comerei!

Bode Berro e a manifestação dos“politiblocs” bit.ly/politiblocs

Maylla Pita: O Suricate jáestava na minha lista de"bixo lindo", agora, acabade entrar o Bode Berro.

O bodim aqui tem sualindeza sim! Brigado pelabuniteza do comentário,quando eu encontrar oSuricate eu aviso a ele doelogio, tá certo?

Bode Berro entrevista SuricateSeboso bit.ly/berro_e_suricate

Emílio Figueiredo: Sou advogado pela reforma da política de drogas edefensor de cultivadores domésticos e usuários medicinais decannabis. Escrevo para parabenizar pela reportagem que vocêsescreveram sobre a Política de Drogas. É muito bom ver o tema sendotratado dessa forma. Espero que o tema volte em breve, pois ainda hámuito a ser falado. Abraços!

Valeu pela força, Emílio. Poisé, a gente entende que precisa legalizartodas as drogas e bater um papo sobre a redução de danos e maisinformações sobre os efeitos das substâncias que a pessoa decidecolocar no seu corpo. Já cansei de ver mãezinhas chorando e jornaistransformando vítimas em culpadas.

É proibido proibir! bit.ly/proibidoproibir

Henrique Sousa: Eu quero a legalização tbm, mas imagine como seriatds as drogas livres? Teria muito mais usuários do que cachaceiros;imagine a legalização do crack: é isso que vcs querem? Pq para o meupivete esse futuro eu dispenso.

Henrique, a legalização é só um primeiro ponto dentro do paposobre as drogas no Brasil. A gente não compreende a legalizaçãocomo algo distante do debate de consumo consciente ou redução dedanos. Imagina quanto homicídio vai deixar de acontecer só com alegalização? Imagina quanta substância de origem duvidosa que vaideixar de aparecer? Imagina quanta gente se preocupando emproduzir para o consumo, numa outra relação com os próprioshábitos? A conversa é longa e a legalização é só a ponta (comtrocadilhos!... hehehehe!).

Léllis Luna: Estava eu vindo dos Correios e entro no Museu do Ceará.Lá me deparo com a revista. A moça gentilmente me ofereceu e qualnão foi a surpresa de uma publicação GENUINAMENTE cearense eoutro "susto" bom foi a foto (Lambe-lambe) da Analice Diniz. Tudomuito invocado. Sucesso e muitos anos editando coisas do nosso jeito.

A gente não teria essa paixão toda em produzir essa revistinha se nãofosse a colaboração das nossas amizades, Léllis. Te convidamos acolaborar com o que você puder-quiser: ensaio fotográfico, pintura,conto, crônica, poesia, sugestão de pauta, reportagem, etc... Temos arestrição de não aceitar expressões homofóbicas, racistas, misóginas(óia como tô falando bonito!), ou coisas do tipo, isso a grande mídia jáfaz, nossa abordagem é outra. Brigado!

Lambe-lambe: Talita bit.ly/fototalita

[email protected]

4 revistaberro.com

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4ª Edição

Juliana Evandro:   Excelenteentrevista! Adorei.

A Laerte é uma grandeartista, com umaexperiência de vida massa,e a entrevista tentourefletir parte da trajetóriadela. Valeu!

Entrevista Laerte: “Não há limiar para o humor” bit.ly/entrevista-laerte

Itinerância Poética:   Nempara o Humor nem para oAmar... dá-lhe Laerte...

O humor também é umaforma de amar. Por isso agente se inspira um pouconela pra trazer essacombinação aqui pra Berro!

Laerte Coutinho:Berradores, ficou muito boaa Berro. Parabéns! Beijo!

Que bom que você gostou,Laerte. Sabíamos daresponsabilidade que era teentrevistar e a conversa foimuito legal. Um beijo!

Marília Coutinho: Honestamente, não sei como vocês tiveram coragem de publicar a entrevista. Eu mesentiria completamente envergonhada se fosse um editor sério. Entendo que o ensino superior brasileirosolta no mercado jornalistas sem nenhuma formação metodológica, mas, wow, não saber formular umaúnica pergunta? Nenhuma. Isso foi irritando a entrevistada. O resultado foi um conteúdo que certamentedeve ter dado um pico de hits na página porque pegou carona com a celebridade da entrevistada, mas éhorrível e constrangedora. Embora eu não tenha nenhuma esperança de que isso ocorra, poderia haveraprendizado aqui. Mesmo quando o entrevistado não se identifica com a proposta da mídia, se a entrevistafor conduzida de maneira metodologicamente adequada, é possível produzir conteúdo. Aqui... zero. Eu não liaté o fim. Li até o meio por motivos óbvios: é natural que eu tenha interesse no que disse meu irmão aqui ouali, mas, putz, eu dei aula na ECA, os estudantes não me pareciam tão despreparados naquele tempo...

Oi Marília! A gente teve coragem de publicar a entrevista porque não estamos preocupados em esconder osacertos e desacertos que surgem de uma entrevista não-editada. Para nós, isso traz uma riqueza do que defato é falado numa "entrevista real", muito além de uma entrevista toda editada, aquelas bonitinhas eordinárias que a gente vê na mídia empresarial. Outra coisa: "editor sério" aqui não tem; é um bando decabra sem vergoim, que leva a revista debaixo do braço pra distribuir no meio da rua! Aceitamos a crítica eentendemos que as leitoras e leitores têm capacidade reflexiva pra avaliar os conteúdos às suas maneiras.Mas o interessante – e que foi importante para nós, de certa forma – é que a opinião da sua irmã, aentrevistada Laerte Coutinho, foi completamente diferente. Lê aí acima! Por fim, gostaríamos de deixar claroque não temos um pingo de apreço às normas impositivas e "metodológicas" dos manuais de redação. Nossojornalismo é livre dessas amarras, porque assim é que entendemos a comunicação e a vida.

Assis Viana: Quantas pessoas morrem a cada 1000 reaisdesviados pelos políticos?

Não só pelos desvios, mas é a forma de governar tão atrasada, Assis.Pautando remoções, grandes obras e a vida das pessoas sempresendo deixada de lado, nunca como prioridade. É de lascar viu, mah!

Cidade para quem? Salve-se quem puder! bit.ly/cidade-para-quem

Fabricio Porto:   Esclarecedor infográfico.

Mapa da Desigualdade em Fortalezabit.ly/fortaleza-desigualdade

Kleiton Moraes:   Massa esse mapa!!

Daniel Araújo:   Triste realidade!

Falcão Junior:   Perfeito para uma revolução...

Pois bó fazer essa revolução?Ter uma moradia não era praser privilégio, mas umdireito. Quando isso é negadopelo estado, a situação dacoisa se torna absurda.

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entrevista

la é do sertão do Rio Grande do Norte. Foi criada à base desertanices próprias do semiárido nordestino, como o contatopróximo à terra e o cuidado por meio de plantas medicinais.

Única filha médica de um casal camponês. No sotaque, nos olhos fa-lantes e nos grandes gestos vívidos, ainda carrega as marcas da cria-ção sertaneja. Estão no espírito!

Já adulta, vivendo em Fortaleza, e em permanente diálogo com ou-tras sonhadoras e sonhadores, causou um rebuliço danado no univer-so da educação popular no Brasil. A medicina já não a abarcava mais!Transcendeu-a. Tendo como referências duas almas libertárias, a psi-quiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999) e o educador pernambu-cano Paulo Freire (1921-1997), se lançou à liberdade de sonhação: essepropósito de fazer da vida um misto de sonhar e agir! Desacreditou dapolítica tradicional para transformar a própria vida cotidiana em fa-zer política! Esteve na vanguarda da construção do "Ekobé", um centroirradiador de formação e cuidados em saúde, com práticas integrati-vas e populares de cuidado, totalmente gratuito.

A gente conversou com Vera Dantas no próprio Ekobé. E saímosde lá com o coração mais rico, encharcado de esperança.

6 revistaberro.com

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Vera Dantas

Vera, tu é uma médica... (Ela inter-

rompe: “não sei nem se ainda sou”; e

cai na gargalhada) Pois é, justamente

sobre isso que a gente vai falar. O

que tu, enquanto médica “diferente”,

pensa sobre a indústria farmacêutica

e toda essa medicalização da vida?

Acho que nem todo médico é da bio-medicina, nem todo médico é capita-lista, nem todo médico defende amedicalização e a mercantilização davida, né? Eu fico feliz porque não soutão minoria assim, temos ummovi-mento hoje, que começa a ficar forte,dessas pessoas que estão caminhandoem outra direção. O tempo vai passan-do e o universo vai oferecendo opor-tunidades de romper e seguir poroutro caminho que não o da medicali-zação e da mercantilização da vida. Ea gente tem essas possibilidades noSUS (Sistema Único de Saúde), emboraisso seja boicotado.

Voltando um pouco aqui pro lance da

indústria farmacêutica. O que tu

pensa sobre essas teorias de que ela

detém soluções pra certas doenças e

esconde isso pra ganhar dinheiro,

vender remédio, pra lucrar mais. Tu

acha que isso é factível? Eu acho queisso é real! Na realidade, no campo dasaúde – e falo campo da saúde que nãoé só medicina – nós trabalhamos comum olhar contemporâneo ocidental,que é um olhar pautado na ideia meca-nicista de que o corpo é umamáquinae, como umamáquina, composto porpeças que você substitui ou compra ascoisinhas pra ajeitar. Hoje, quem temdinheiro não quer mais parir normal(óia a pág. 19), com poucas exceções; to-do mundo quer emagrecer colocando obalãozinho bariátrico no estômago, ouentão vai tirando os pedaços do corpo.Se você olhar pra lógica do plano desaúde, as pessoas pagam pra ter direitoa uma hotelaria, que é mais ou menosrefinada de acordo com o valor que sepaga. Mas nas medicinas tradicionais,sejam as indianas, as chinesas, as afri-canas, sejam as tradições milenaresdos nossos povos nativos, todas têmum outro olhar sobre a saúde e sobre a

vida, que o corpo não é umamáquina,que tudo está dentro de tudo. (O “teólo-go da libertação”) Leonardo Boff falauma coisa muito bonita sobre isso, queem cada célula está o todo, né? E quenós sobrevivemos por causa da solida-riedade. O (biólogo e filósofo chilenoHumberto)Maturana vai falar do serhumano como ser ontologicamenteamoroso e dessa solidariedade que táem cada célula e que vai contrariar es-se olhar sobre a imunologia que dizque a doença é provocada pelo micró-bio e pelo microrganismo, né?

Né! Falando um pouco do SUS agora.

No papel, ele é um sistemaúnico no

mundo, mas infelizmente aindanão

operaacontento.

Quais as estratégias

de viabilidade praele

funcionar?A estraté-gia dele funcionar é aparticipação popular.Porque o SUS tem ummecanismo de partici-pação instituído quesão os conselhos desaúde. Infelizmente, dojeito como os conse-lhos foram implanta-dos, eles tambémviraram espaços decristalização de deter-minados poderes. Nãosão todos os movimen-tos que conseguem chegar, namaioriados lugares precisa de CNPJ pra ser re-presentante de conselho. Então, a difi-culdade do SUS se efetivar é porquevocê tem amesma situação que a gentepassa no Brasil: você tem uma elite quenão aceita dividir os privilégios com amaioria, que não aceita que os que nun-ca tiveram nada possam ascender eacessar as coisas. Então, eu penso quepro SUS se efetivar são esses três movi-mentos que nós devemos fazer: cuida-do, formação e participação política.

Pela forma como tu vive, tu acredita

que é necessário criar também for-

mas autônomas e independentes ao

SUS, de tá cuidando da gente de uma

forma solidária, fora da institucio-

nalidade, né? Como aqui no Ekobé.

Aliás, uma curiosidade: esse nome

Ekobé é indígena? É um nome Tupique quer dizer “vida”.

Massa! Então, a gente viu que vocês

têm atendimentos gratuitos, comu-

nitários, que se baseiam sempre nessa

multiplicação dos saberes, esses sabe-

res ancestrais… como é estar aqui no

Ekobé? Olhe, aqui nós atendemos atoda a comunidade, é aberto a quemchegar. Às vezes as pessoas dizem: vo-cê tá trabalhando demais. Eu não tôtrabalhando no Ekobé naquele senti-do original do trabalho. Pra mim aquieu crio, aqui eu dou e recebo...

Mas esse talvez seja o

sentido original do

trabalho, que depois

foi desvirtuado. O

trabalho ontológico

talvez seja esse, né?

Isso, o trabalho dolo-roso é porque o traba-lhador tá alienadodele. Eu não estou ali-enada, eu ajudei aconstruir esse espaçoaqui. Não fui eu só,têm muitos e muitasaqui, né? Isso aqui,minha gente, foi todoum processo. Aqui a

gente faz sonhação, a gente não tá es-perando que outro mundo aconteça.O mundo possível vai acontecendoaqui, agora. O Paulo Freire dizia as-sim: eu não vou esperar na pura espe-ra, porque o tempo de espera é umtempo de espera vã, eu quero conju-gar o verbo esperançar, porque nesseverbo tem ação. O (poeta de Marangua-pe - CE) Ray Lima gosta muito de usara palavra “sonhação”, e no Ekobé esta-mos fazendo a sonhação!

Esse termo é lindo, “sonhação”!

Lindo demais!

Vera, pensando no que vocês fazem

aqui, qual tua visão sobre práticas

Aqui a gentefaz sonhação,

a gente não tá es-perando que outromundo aconteça. Omundo possível vaiacontecendo aqui,agora (...) O tempode espera é um tem-po de espera vã, euquero conjugar overbo esperançar ,porque nesse verbotem ação.

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integrativas como o Reiki ou a medi-

tação no sentido da autocura? De co-

mo a gente tinha esse poder (de

autocura) e esqueceu? Pois é, exata-mente. Nós passamos a vida inteiraentregando o nosso corpo pro outro.Nós entregamos nosso corpo pro mé-dico, pro fisioterapeuta, pra enfermei-ra; a gente não cuida mais da nossaalimentação, já que é o nutricionistaque passa a dieta. Como a ideia desaúde da biomedicina é a ideia meca-nicista, do corpo como máquina, en-tão você aprende a formatar amáquina, a condicionar e automatizara máquina. No caso do Ekobé é dife-rente, não é à toa que a construção éem espiral, o movimento de espiral é omovimento da vida. Aqui as práticassão complementares: o reiki se juntacom a yoga, que se junta com a medi-cina ayurvédica (de origem indiana),que se junta com a medicina tradicio-

nal chinesa, que se juntacom a prática xamâni-

ca, que se juntacom as prá-

ticas da religiosidade... o movimentode espiral que se espalha, que produzredes, que produz teias, esses são osmovimentos da natureza e que produ-zem autogestão.

Em relação a essas práticas integra-

tivas (reiki, yoga, acupuntura, xama-

nismo, entre outras) e à própria

permacultura, a gente percebe que

voltaram com tudo no Brasil nos úl-

timos cinco, dez anos. Tem um movi-

mento crescente de mais pessoas

interessadas e a gente percebe que o

mercado disso está crescendo avas-

saladoramente. Formações em yoga

e reiki em pouco mais de um ano e já

se pode atender profissionalmente;

cursos de bioconstrução e pacotes

de permacultura vendidos caríssi-

mos, e depois quem aprende sai ven-

dendo também. Tão ganhando muito

dinheiro com isso... A Ivânia (do Ci-

clovida) disse certa vez numa con-

versa - e isso nos tocou - que esses

saberes são ancestrais, de todas(os)

nós, que deveriam ser repassados

sem a mediação pelo dinheiro. A per-

gunta é: esses movimentos já foram

também cooptados pela grana?Olhe,aqueles que têm a lógica de merca-

do aprisionaram isso nosconsultórios privados.

Não só médicos,mas também psicó-logos, fisioterapeu-tas, e por aí vai. A leido mercado é muitoforte, porque contacom a mídia, contacom o dinheiro. Mi-nha mãe usava unsremedim homeopá-ticos na gente lá nosertão do Rio Gran-de do Norte. Ela cui-dava da gente comas plantas medici-nais e com a homeo-patia. Quandocheguei no Ceará,conheci logo o mo-vimento de saúdemental do Bom Jar-

dim (bairro periférico da zona oeste deFortaleza), então comecei a ver o povofazendo eneagrama e fui fazer home-opatia lá porque não queria fazer emconsultório privado. No (Conjunto)Palmeiras a mesma coisa. Nós tivemosalgumas pessoas que foram importan-tes: o professor Abreu Matos, por ex-emplo, um grande pesquisador daárea de plantas medicinais, disse: “euquero devolver pro povo o que apren-di com ele”. E ele fez a formação defarmácia viva lá (no Conjunto Palmei-ras). Esse era pra ser o princípio: ensi-nar e compartilhar. Hoje no Ekobé,nós já iniciamos gratuitamente maisde 300 pessoas em reiki espalhadaspelo Brasil... isso é a nossa sonhação!

A gente agora queria falar um

pouquim de educação popular. Tu,

sendo uma das figuras mais

reconhecidas nacionalmente nesse

cenário, pode falar resumidamente

o que é essa prática? Educaçãopopular é uma prática que foisistematizada no Brasilprincipalmente por Paulo Freire, eparte de duas questões: primeiro, é aexperiência que produz o conheci-mento; e, segundo, as pessoasaprendem com a sua experiência a seconstituir na vida e aprendem a leresse mundo antes de ler a palavra. Porisso que o Paulo Freire criou ummétodo revolucionário de alfabetiza-ção em 40 horas. Ele vai dizer: como éque eu me liberto? Me liberto quandome inquieto, quando consigoproblematizar minha realidade e aíconstruo uma consciência crítica, queele chamou de "conscientização", queme leva a agir, transformar arealidade e fazer novas reflexões.Experiência, reflexão crítica e o olharlibertário pra entender que as coisas(sociais) não são naturais, queacontecem porque existe um processoque as determina. Então, a educaçãopopular é um ato político, que permiteàs pessoas se perceberem capazes deconstruir, e que não se constróisolitariamente. A gente aprende a lerisso na educação popular!

entrevista

8 revistaberro.com

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Vera Dantas

E que “ninguém educa ninguém”. As

pessoas se educam em comunhão, né?

Isso! João Santiago, que é um poeta deCrateús (CE), que hoje vive no Paraná,diz assim (no poema “Educação Freirea-na”): “Mas o que é educar?/ Tem a edu-cação bancária, tem a educaçãopopular/ Uma ensina a obedecer, a ou-tra a aprender, porque ensina a pen-sar/ Educação popular é por si sódiferente/ Ninguém educa ninguém,faz-se coletivamente/ Não tem um sa-ber maior, porque não tem ummenor,tem o saber que é diferente/ Educaçãopopular não se faz na solidão/O cami-nho da liberdade é o mesmo da educa-ção/ Somente o amor humaniza/ Aeducação deve e precisa acontecer emunião”. O Paulo Freire, além do olharpolítico, da ideia de libertação, trazuma questão que são os dois princípiosfundamentais pra essa educação acon-tecer: o diálogo, que não se resume narelação eu-tu, mas como essa possibili-dade de construção compartilhada devida e de conhecimento; e o outro prin-cípio é o da amorosidade, que não é es-sa amorosidade piegas, romântica, eletá falando dessa possibilidade de sercom o outro, da compaixão.

Paulo Freire é massa! No teu douto-

rado, tua tese falava da perspectiva

popular das “cirandas da vida”. E

aqui no Ekobé vocês trabalham com

ciranda, teatro, biodança... Como é

essa dimensão da arte dentro da

educação popular? Eu digo inclusiveque a arte é cuidado, né? Porque agente concebe essa dimensão da artecomo essa capacidade que todo serhumano tem de transcender, comosoube muito bem trabalhar Nise (daSilveira, psiquiatra alagoana que a par-tir de meados dos anos 1940 revolucio-nou o tratamento psiquiátrico no Brasilatravés do incentivo à prática das artesplásticas pelas pessoas com transtornospsicológicos). Então, eu transcendoquando faço uma massagem, umaaplicação de reiki, e quando consigobrincar e dialogar com o outro, com aoutra, numa vivência de teatro, numaciranda. Na educação (tradicional), a

gente ainda tem um olhar instrumen-tal sobre a arte, do mesmo jeito que agente tem um olhar mecanicista nasaúde. É muito potente quando as pes-soas cuidam com arte, se expressamcom arte. Mas infelizmente, no geral,ainda não ocorre assim.

Vera, chegando aos finalmentes da

entrevista, a gente não podia deixar

de falar sobre a situação política do

país, tudo o que tá acontecendo. Pau-

lo Freire - mais uma vez ele - dizia que

o homem de esquerda se equivoca

quando tenta “domesticar o tempo”,

algo como domesticar a História e se

apegar docilmente às velhas técni-

cas de representação. Como tu vê o

cenário brasileiro hoje e como tu vê a

questão das eleições? Olhe, eu fui mi-litante do PT (Partido dosTrabalhadores) desde a criação dele.Mas hoje o nosso so-nho foi virando pesa-delo exatamente poressa ótica mercanti-lista, capitalista, quevai moldando os pro-cessos da burocracia ede governo pros inte-resses... E aí as pessoasque estão à frente dosprocessos estão tãoengrenadas naquelasgarras que vão, né?Não acredito mais nesse modelo de de-mocracia, acho que temos que cons-truir outra coisa. E isso não é do nossopaís, isso é do mundo.

Como seria esse modelo? Pra mim éummodelo pautado nesse caminhoque nós vamos construindo aqui noEkobé: libertário, autogestionário.Acho que temos algumas possibilida-des que já existem: o Ekobé é uma de-las, o movimento Bem-Viver dos índiosda América do Sul, essas possibilidadesde se trabalhar com as grandes assem-bleias populares, de se sair desse mo-delo da democracia. Nós precisamossair desse modelo da democracia re-presentativa. Ela já deu o que tinha dedar. Esse modelo tá totalmente bicha-

do. E isso precisa vir das bases, né? Souuma esperançosa incorrigível!

E vive de sonhação, né? E vivo de so-nhação, não tô parada na pura esperae nem vou ficar. Eu vou pra rua! Ago-ra, não vou pra rua defender partidonenhum, não vou pra rua defenderLula nem Dilma. Agora, como esta-mos num cenário que tem muitas for-ças complexas, nós precisamos nessemomento saber quem são os aliados equem são os adversários. Hoje euamanheci o dia lembrando de um po-ema do Agostinho Neto e queria com-partilhar com vocês. Não sei selembro todo, mas vou dizer a parteque conheço (ela se apruma na cadeira,numa postura ereta, e recita): “Dos quevieram e conosco se aliaram, muitostraziam sombras no olhar, intençõesestranhas/ Para alguns a razão da luta

era só ódio: um ódioantigo e duro comouma lança/ Para ou-tros era uma bolsa va-zia, queriam enchê-lade coisas sujas, incon-fessáveis/ Outros vie-mos. Lutar pra nós éum destino, uma pon-te entre o amanhecere o desejo de ummun-do novo/ Queremosummundo novo/ Na

mesma barca nos encontramos/ To-dos decidem: vamos lutar/ Lutar praquê? Pra dar vazão ao ódio antigo? Oupra construirmos a liberdade de terpra nós o que queremos?/ Sim, quere-mos ter pra nós o que queremos!/ Namesma barca nos encontramos/Quem há de ser o timoneiro?/ Quemhá de ser o timoneiro?”... Eu acho quenão tem que ter um timoneiro, todos etodas temos que ser os timoneiros!

A entrevista acabou com uma entu-siasmada salva de palmas, após toda abeleza da poesia e a interpretação visce-ral de Vera.

Nós precisa-mos sair des-

se modelo dademocracia repre-sentativa. Ela jádeu o que tinha dedar. Esse modelo tátotalmente bicha-do. E isso precisavir das bases, né?

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ntolerância racial, religiosa, étnica, política e degênero; mulheres sendo mortas por serem... mu-lheres; homossexuais sendo mortas(os) por se-

rem... homossexuais; indígenas e agricultoras(es) sendomassacradas(os) e expulsas(os) de suas terras para dar lu-gar aos grandes latifúndios monocultores; pescadoras(es)perdendo seus pedaços de chão para os resorts à beira-mar; crianças fazendo malabarismo nos sinais de trânsitopara conseguir alimento ou crack; pessoas dormindo em-baixo de marquises e viadutos e disputando restos de co-mida com gatos e cachorros nos lixões; moradoras(es) defavelas sendo enxotadas(os) de suas casas para a constru-ção de estádios, avenidas e viadutos; a polícia matandoseis pobres todo dia; áreas verdes e parques ecológicossendo derrubados para a construção de arranha-céus; ge-nocídio e encarceramento em massa da população perifé-rica em nome da “guerra às drogas”; falsas polarizaçõesideológicas que disfarçam a unidade da miséria moral dapolítica tradicional; lei antiterrorismo e tantas outras fa-lácias jurídico-legislativas que servem tão somente aocontrole social da pobreza e da revolta; pessoas morrendonas filas dos hospitais públicos porque faltam remédios,leitos e estruturas mínimas de atendimento de urgência eemergência; cidades consumidas pela poluição, pelo trân-sito sufocante, pela violência difusa (advinda da desigual-dade social), pela especulação imobiliária via urbanismopredatório; centros urbanos tornando-se majoritariamen-te redes de sociabilidade mediadas pelo consumo; pessoassendo ressignificadas como coisas consumidoras...

Todas essas mazelas sócio-históricas endossadas porum fictício “Estado Democrático de Direito” (e suas insti-tuições legislativas, executivas e judiciárias), legitimadaspor uma narrativa midiática fascista, um “consenso fabri-cado” – como disse Chomsky –, e entorpecidas pela ilusãopublicitária, que, ao usar técnicas rebuscadas de manipu-lação e fetiche, transforma tudo o que não é vivo num si-mulacro artificial da vida permeado pelo consumo.

Não há respiro à liberdade na tão alardeada “demo-cracia representativa”. O povo não está representadonela, nem nas instâncias ilusórias de "participação po-pular" e tampouco nas eleições. Este regime de podernão promove a igualdade; pelo oposto: garante privilé-gios atávicos a uma elite patriarcal. A democraciarepresentativa é, na verdade, uma mera construção teó-rico-jurídica, completamente apartada da prática soci-al. Na pragmática real, o que existe é a tiraniademocrática , encoberta e “colorida” por uma elaboraçãodiscursiva padronizada, que tergiversa e persuade comuma retórica fabricada por marqueteiros(as) e políti-cos(as) profissionais. Essa mentira é tão insustentávelna prática que as vítimas sacrificiais que desapareciame eram mortas na ditadura, por exemplo, continuamsumindo e morrendo atualmente, sob o véu da “demo-cracia”. A diferença é que nas décadas de 1960/70, alémdas pessoas pobres, negras, indígenas, quilombolas,etc., também desapareciam intelectuais e universitá-rias. Hoje, a classe média foi poupada desse modelo detruculência estatal, mas as populações indígenas, qui-

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lombolas e das favelas nunca souberam, em termos demodus operandi do Estado, o que é o fim da violência ins-titucional (vide o Exército – no Rio de Janeiro – e a PMinvadindo as favelas em todo o país e ativando um esta-do de exceção ou as incontáveis ações truculentas de“reintegração de posse”, muitas com mortes, capitanea-das pelas polícias Federal e estaduais contra comunida-des indígenas e quilombolas).

Que fique claro: a ditadura civil-militar foi um regi-me hediondo e odioso, profundamente corrupto, quecensurou a arte e o livre direito à expressão e manifes-tação, institucionalizou a tortura (física e psicológica) ematou, por isso deixou marcas indeléveis na sociedadebrasileira, e cujos algozes e torturadores deveriam tersido punidos rigorosamente – a exemplo do que ocor-reu nos vizinhos Argentina e Chile –, não fosse a bene-volência das leis nacionais (e a anistia de 1979).Contudo, a democracia que surgiu posteriormente pre-cisa ser também problematizada, pois ela manteve osmesmos privilégios atávicos aos grupos empresariais emidiáticos que apoiaram o regime ditatorial e, no quediz respeito ao controle social capitaneado pelo seuaparelho repressor, reproduz sobre as populações vul-neráveis os mesmos métodos violentos e, por meio deuma verborragia discursiva, simula uma fictícia igual-dade jurídica que não existe na prática. É sob a tutela“democrática” e do “Estado de Direito”, por exemplo,que o morador de rua Rafael Braga Vieira foi condena-do a cinco anos de prisão, sem direito a recorrer em li-

berdade, por portar desinfetante e água sanitáriadurante manifestação no Rio de Janeiro em junho de2013; ao passo que os(as) diretores(as) da Vale e da Sa-marco, que poluíram com lama tóxica o rio Doce e des-truíram milhares de vidas de pessoas, animais eplantas, estão inimputáveis. A balança da “Justiça de-mocrática” muda de peso de acordo com circunstânciassociais e econômicas. Thoreau, em A desobediência civil,afirma que o “Estado de Direito” é uma ficção.

Em resumo, as consequências sócio-históricas apre-sentadas nos parágrafos anteriores deixam claro que oEstado Democrático de Direito é um conto de fadas quenão tem base concreta para garantir os direitos humanosnem a relação harmoniosa com a natureza. Nesse sentido,cabe dizer que uma manifestação a favor desse modelo ti-rânico de democracia é tão genérica, inócua e vazia de sig-nificado prático quanto uma contra a corrupção.

Entretanto, dentro do contexto por mudançastransformadoras e estruturais, há uma riqueza de pos-sibilidades que enchem de coragem e luta nossos cora-ções. São pessoas, grupos e movimentos que, aoproporem se libertar das inclusões enganadoras do siste-ma político tradicional, conjugam os verbos sonhar eagir na primeira pessoa do plural: nós sonhamos e agi-mos! Pensei em nominá-las sementes, mas eis que bro-taram, já sentem a respiração e a seiva da vida e, assimcomo as raízes vegetais estão para as plantas, são o ali-cerce para a construção de um devir possível para a hu-manidade: são as raízes de um mundo novo!

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Comecemos o passeio por estas experiências de liber-dade em um sítio no distrito de Mangabeira, em Casca-vel, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF): oBrotando Emancipação. A localidade pertence à CríticaRadical, grupo formado ainda no início dos anos 1970,em plena resistência à ditadura civil-militar, e que desdeo início da década de 1990 propõe uma ruptura totalcom a política eleitoral e as práticas partidárias. Com oBrotando Emancipação, planejam viver uma sociedadesem dinheiro: “A ideia é quetudo que for produzido sejausufruído pelos moradores e oexcedente distribuído com apopulação, o que já estamosfazendo.  Nada deve ser vendi-do”, frisa Rosa da Fonseca, in-tegrante do grupo.

A Crítica Radical tem aindamuitas ideias para o sítio: pla-cas solares, torre eólica, umaciclovereda margeando toda aárea de 55 hectares, a constru-ção de um açude, entre outrasvontades. Quando lá estivemos, fomos ciceroneados peloEdvaldo Lopes, 45 anos que mais pareciam 30 e poucos,agricultor e pescador de ostra, que fez questão de dar umavolta conosco: nos mostrou a fossa de bananeira, o olhod’água, os pés de maxixe, jerimum, feijão, macaxeira, asmangueiras de diferentes tipos, os pés de graviola, sirigue-la, caju, limão, laranja, os coqueirais, o campo de futebol,as bananeiras a perder de vista (que lembravam paisagensda Colômbia descrita por García Márquez). Comemos tan-gerina e manga tiradas do pé, e outras frutinhas do matoque não recordo o nome. Os pássaros, às rumas, voavampara longe com a nossa aproximação. “Tu acha que os pás-saros conversam, Edvaldo?”, perguntei. O agricultor bebeuum gole de ar... e expirou sabedorias: “Sim, e eles têm me-do da gente porque eles veem o que a gente tá fazendocom a natureza, destruindo tudo; eles sabem que a gentetá agindo erradamente”, replicou, com a sabença de quemconversa com os bem-te-vis. “A natureza tá sendo privilé-gio de uns e os outros num têm nem direito”, completou.

Após o passeio, acompanhado em certo momentopor uma chuva de inverno no sertão, já era próximo àhora-aberta do meio-dia, e o sol do Ceará já tinha des-pontado novamente, latejando em nossos corpos. Pingá-vamos em bica, de chuva e sol; tomamos água, comemosbanana e sentamos em volta da mesa no alpendre parabater um dedo de prosa com seu José Siriaco da Costa, 68anos, pai de Edvaldo e ajudante nos trabalhos do Brotan-do Emancipação. Seu Zé, de fala firme, olhar vívido e“árvore de gestos” (como poetizou Rilke), comentava da

lida na roça desde os 12 anos e de como as coisas muda-ram de lá para cá: “Não existia remédio não, os remédioseram tudo caseiro. Hoje, nós tamo comendo as coisas en-venenadas, o comer vem todo envenenado”, diz o agri-cultor, com os olhos saudosos.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde(OMS), anualmente há 3 milhões de casos de intoxicaçãopor uso de agrotóxicos e 20 mil mortes; 14 mil delas nasnações pobres. Entretanto, grupos ativistas de direito à

terra consideram essa estatísti-ca subestimada pela OMS e fa-lam em 250 mil mortes por anodevido à contaminação por es-sas substâncias tóxicas. Em-presas como Monsanto, Bayer,Dupont, Syngenta/Astra, Zene-ca/Novartis, Dow e Basf espa-lharam veneno pelo mundo,no intuito de garantirem mai-or lucratividade nas safras doagronegócio. O Brasil, desde2008, ultrapassou os EstadosUnidos e é o “campeão mundi-

al” em uso de agrotóxico, sendo responsável por cerca de80% de todo o consumo desses pesticidas na América La-tina. Os documentários de Silvio Tendler O veneno está namesa I e II discutem com profundidade essa questão.

Seu Zé se levanta no meio da conversa, vai até a hor-ta, colhe uma melancia e inspira, com um sorriso largo:“É tão bom, né? A gente ir ali, pegar a fruta e comer, né?”É impressionante como a simplicidade das pequenascoisas, dos gestos miúdos, das falas aparentemente de-simportantes nos ensinam tanto. Como diria o mestreManoel de Barros: “Passava os dias ali, quieto, no meiodas coisas miúdas. E me encantei”. “Ô, Edvaldo, vai alipegar uma faca pra nós repartir essa bichona aqui”, dis-se seu Zé, com a grande melancia nas mãos. Peeense nu-ma bicha doce viu! Delícia!

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É também no sertãocearense, no município dePentecoste, distrito deBarra do Leme, que brotae se enraíza uma das ex-periências libertárias maisincríveis que já conheci: lo-calizado no assentamentoMandu Ladino (uma home-nagem ao índio homônimoque liderou uma revolta indí-gena no início do século XVIIIcontra os pecuaristas nos sertões doCeará, Maranhão e Piauí), de onde a cearense deQuixadá, Ivânia Cavalcante, e o paraibano de Cajazeiras,Manoel Inácio do Nascimento, dão vida, criam e recriamo Ciclovida, movimento autogestionário que ganhou cor-po em 2006 com a iniciativa socioecológica e cultural depercorrer parte da América do Sul de bicicleta trocandosementes crioulas (espécies antigas, que milenarmentemantiveram um gene natural: a garantia de existênciadessas sementes é essencial para a autonomia e seguran-ça alimentar das camponesas e camponeses em todo omundo). Na viagem por nuestra Sudamerica, que se esten-deu de junho de 2006 a junho de 2007, pedalaram mais dedez mil quilômetros por Brasil, Argentina, Paraguai eUruguai, e permutaram com outras(os) camponesas(es)cerca de 100 espécies de sementes crioulas.

Em 2010, os irmãos estadunidenses Matt e LorenFeinstein produziram o filme Ciclovida (Lifecycle), a partirde imagens captadas por Ivânia, Inácio e outras pessoasdurante a viagem. O documentário rodou o mundo e foivencedor do Byron Bay Film Festival, na Austrália, e do Gre-en Screen Environmental Festival Film, em São Francisco(EUA), além de ter sido selecionado para o Blue Planet FilmFestival, em Los Angeles (EUA). A repercussão foi tamanhaque, em 2011, a "parêia" do interior do Ceará foi convidadapara participar de um evento sobre meio ambiente e parti-lhar de suas experiências em Nova Iorque (EUA). O Ciclovi-da alargava fronteiras para nunca mais voltar ao tamanhooriginal. Hoje, dez anos após a viagem inicial, o movimen-to se reinventa cotidianamente, “com a colaboração mú-tua de aprendizagem e vivências das muitas pessoas de

todos os lugares do mundoque aqui se achegam, vi-vem e partilham: tem sidoum processo permeado detrocas e aprendizados”,pontua Ivânia.

Uma vez por ano, pes-soas de diversos estados

brasileiros e de outros paí-ses se encontram no assenta-

mento durante o EncontroAnual do Ciclovida para trocar

ideias, conhecimentos e saberes sobreecologia, bioconstrução, formas libertárias de orga-

nização, etc. Dessa maneira, construíram uma redemundial de ativistas comprometidas(os) com a autoges-tão e com mudanças estruturais nas relações sociais,buscando eliminar de suas práticas cotidianas elemen-tos de hierarquia, burocracia e poder autoritário. No res-tante do ano, o Ciclovida recebe voluntárias(os),promove mutirões de bioconstrução e atividades cultu-rais no distrito de Barra do Leme. Em 2016, o EncontroAnual será na última semana de julho.

É curioso que Ivânia e Inácio são assentados(as) doMandu Ladino, junto com mais 21 famílias (integrandoos quatro assentamentos da Barra do Leme são 90 fa-mílias), mas não reivindicam pertencimento a organi-zações agrárias. Vivem, não apenas na retórica, mas napráxis diária a procura por libertarem-se de qualquerinstituição hierárquica que possa aprisioná-los(as), ain-da que este cárcere seja psicológico. Oriundos(as) doPartido da Libertação Proletária (PLP), desde meadosdos anos 1980 já militavam pelo direito à terra e foinessa luta que conseguiram o assentamento, em 1996.Contudo, romperam politicamente com todas as orga-nizações partidárias e burocráticas no final dos anos1990, sob influência das experiências dos índios zapa-tistas no México; do 3° Encontro pela Humanidade econtra o Neoliberalismo, que ocorreu em Belém (PA),em 1999; e por ouvirem falar e se informarem sobre asmanifestações em Seattle (EUA) contra a OrganizaçãoMundial do Comércio (OMC), também em 1999, van-guardeadas por grupos anarquistas.

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“Vimos que o Estado sempre vai ser um órgão daclasse dominante. Começamos a ouvir e aprender sobrehorizontalidade: não mandar nem ser mandado”, dizInácio. Tiveram que desconstruir todo o modelo repre-sentativo que acreditavam até então para buscarem aautonomia de suas próprias vidas: “Isso nos deu um rea-linhamento pra viver, e percebemos que as coisas acon-tecem em processos, tanto de rupturas como derenascimentos. Tivemos de buscar o controle de nossasvidas, de travar uma batalha até com nós mesmos”, filo-sofa Ivânia, com a sabedoria de quem conhece os cami-nhares, em consonância sertaneja com o jagunçoRiobaldo, de Grande Sertão: Veredas: “Ser dono definitivode mim, era o que eu queria”.

Passamos um final de semana convivendo com a"parêia" camponesa no assentamento Mandu Ladino. Aju-damos a regar a horta, recolhemos água das cisterrâneas(covas largas para acúmulo de água da chuva, um projetodesenvolvido por Inácio), carregamos nos ombros estacasde marmeleiro para construir o poleiro das galinhas, nosassustamos com um filhote de jararaca que estava entreas madeiras, aprendemos sobre os tipos de pau para fazerfogueira (tem o sabiá, a jurema, o marmeleiro...). Enfim,foi um prazer de companhia, reconhecemos ali a humani-dade que somos, em cada gesto verdadeiro, em cada olharlímpido e penetrante, em cada movimento desapressadode quem é “dono do seu tempo”, como nos disse o seu Zé,lá do Brotando Emancipação.

No campo, a vida caminha devagar, sem aperreio; o si-lêncio, bastante apreciado, é entrecortado por palavras.

As conversas se deram, na maioria das vezes, em volta damesa da cozinha. Inácio preparava o cuscuz ou a tapiocano fogão a lenha e mostrava toda a sua habilidade com ofogo. O café era adoçado com raspa de rapadura. A águaera apanhada da cisterna e depois ia para os filtros debarro. O céu, de azul infinito, não esperançava chuva. Fa-lavam da seca, e que em 2016 já iam para o quinto invernocom precipitações abaixo da média. Ivânia apertou os lá-bios, mas não conseguiu conter dois filetes de lágrimasque lhe escaparam de cada olho ao comentar que, nosanos de estiagem, perderam 80% de tudo o que planta-vam, resultando no fim da autossuficiência alimentar:“Nunca tinha passado por uma seca tão grande, foi muitotriste pra gente ter que voltar a comprar frutas e verdurasna cidade, vocês nem imaginam”. A indústria da seca, empleno 2016, continua a fazer vítimas.

O casal libertário reconhece que o meio rural não es-tá isolado das teias da estrutura totalitária de domina-ção, vide o agro e o hidronegócio, e uma vez que,segundo Inácio, até mesmo a reforma agrária realizadapelo Estado quer levar a cabo o processo de aculturaçãocampesina: “Ela quer estender a cidade para o campo,produzir o extermínio da nossa cultura”. Mesmo com to-das as cruezas da realidade agrária, fincam o pé e reafir-mam com convicção que de lá não se retiram. É lá aondeplantam, colhem, sonham. Voltar à cidade não é uma op-ção sequer cogitada. Sabem, no fundo da alma, comodisse o jagunço Riobaldo, “que o sertão é onde o pensa-mento da gente se forma mais forte do que o poder dolugar”. O campo... ainda pulsa!

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Agora, a gente vai viajar até a serra do Cipó, no cerra-do mineiro, para o distrito de Lapinha da Serra, no mu-nicípio de Santana do Riacho. É lá, no sítio Entoá, ondemora o casal Christiane Netto, arte-educadora, aprendizde raizeira e produtora de biocomésticos, e GustavoBarhuch, professor de português e literatura da rede pú-blica mineira. Decidiram fugir de Belo Horizonte (MG)em 2004, compraram um terreno e refugiaram-se na La-pinha, um local ermo, pouco habitado, à época sem águae sem luz, para terem um outro contato com a terra. Co-mo diz Thoreau, em Walden - A vida nos bosques: “Parasugar todo o tutano da vida. Para aniquilar tudo o quenão era vida e, para quando morrer, não descobrir quenão vivi”. Construíram a casa na base de mutirões, comtijolos de terra e materiais que tinham sido descartadosno lixo. Só depois, no Fórum Social Mundial de PortoAlegre (RS), em 2005, descobriram que existia um nomeao que já vinham fazendo: permacultura.

Em 2006, criaram o Instituto de Permacultura EcoVi-da São Miguel, movimento autogestionário e anti-hierá-quico que congrega diversas experiências depermacultura em Minas Gerais e promove cursos, vivên-cias, programas de voluntariado e visitas guiadas nos sí-tios permacultores. Desde então, não pararam mais depensar suas vidas permeadas o tempo todo pelas leis na-turais e biodinâmicas dessas técnicas. Exploraram diver-sas formas possíveis de resgatar as sabedorias ancestraisde bioconstrução e relação harmoniosa com a natureza:pau-a-pique, adobe, taipa de pilão, hiperadobe, cobwood,tinta de terra, telhado vivo, fossa de bananeiras, banheiroseco, forno solar, fogão foguete, reboco natural, carpinta-ria com materiais de demolição... Trabalham também

com plantas medicinais, produção de óleos essenciais(muitos doados à comunidade) e práticas integrativas enaturais de promoção de saúde (atendem à comunidadegratuitamente). De acordo com Chris, “a natureza nosmostra os padrões, as formas, os sistemas que funcionamnaturalmente. Todo esse conhecimento ancestral é umpatrimônio da humanidade. As construções com barrotradicionais e o conhecimento das plantas medicinais de-vem ser levados à frente e praticados cada vez mais, poisnos trazem esse empoderamento sobre nossa própria vi-da e a reconexão com a nossa natureza interior”. Ivânia,do Ciclovida, também afirmava que a sabedoria da terraé ancestral e esses saberes pertencem a todas as pessoas,não podem ser restritos a poucos grupos nem transfor-mados emmercadoria.

Estive na Lapinha da Serra (MG) por dez dias, em umdos programas de voluntariado do Instituto EcoVida,convivendo e ajudando nas atividades da família, apren-dendo com Chris e Gustavo, mas também com as peque-nas Ana Rosa e Flora, filhas do casal. Lembro quando AnaRosa, de 7 anos, me explicou muito claramente por queos bichos são mais inteligentes que os humanos: “Olha is-so”, disse ela, apontando para o fogão, para a geladeira,para a estante de livros, para a pia de sua casa, “os bichosnão precisam de nada disso para viver e mesmo assimsão felizes”. A menininha, com uma frase absurdamentesimples e verdadeira, tocou minha alma. A maneira hori-zontal de relação familiar, que integra com autonomia ascrianças às atividades, reverbera na construção psicosso-cial das pequenas: “Em nossa casa dividimos igualmenteas funções e ensinamos pra nossas filhas que todos so-mos responsáveis pelo lar”, diz Chris.

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Numa das muitas conversas que tivemos em voltada mesa da cozinha, comendo um pequi do cerrado,perguntei sobre essa opção de construir boa parte dacasa a partir de restos de materiais descartados nos li-xões de Belo Horizonte. “A sociedade do lixo transformaa natureza em bens de consumo que servem apenas pa-ra dar às pessoas uma falsa sensação de felicidade, e es-sa felicidade vai pro lixo junto com o produto, que édescartável. Vivemos na sociedade do desperdício. Des-perdiçamos tempo, desperdiçamos a natureza, descar-tamos pessoas como lixo”, exclama Chris. Para Gustavo,o modo de vida consumista nos centros urbanos é umgrande problema ao tratamento dos resíduos sólidosque lidamos no dia a dia: “Você pode se tornar respon-sável pelo lixo que gera, reaproveitá-lo, transformá-lo emelhorar o lugar em que vive. Pois não existe jogar lixofora. Afinal, não existe fora, continuamos todos no mes-

mo planeta. Temos que ter a consciência que o proble-ma do lixo está ligado ao modelo de falsa felicidadebaseado num consumismo insustentável”.

Durante a estadia com a família, depois de dias puxa-dos de trabalho na roça, na bioconstrução, na carpinta-ria, etc., ia dormir muito cedo para os padrões urbanos:às 22 horas estava caindo de sono; algumas vezes, antesde me recolher na barraca, deitei de barriga para cima eolhos para o céu. Um baita ceuzão estrelado do sertãodas Gerais! Conversei com a estrela d’alva, naquela lin-guagem muda que trazemos conosco. Ficava lá, respi-rando lentamente, mirando aquela infinitude. Sonhavaali, no mato, de papo para o ar, ouvindo a voz do silêncioe o estalinho das estrelas... O céu estrelado do sertão émagia e mistério, beleza e encantamento. Eu sentia n’al-ma que aquilo era “nós”, como ensinou o mestre Guima-rães Rosa: “O sertão é dentro da gente!”

Os centros urbanos são espaços cada vez mais desu-manizadores, repletos de distrações ilusórias (shoppingscomo carros-chefes) e locais-símbolos da miséria moraldas sociedades modernas. Embora o campo também so-fra com o processo de desumanização, é nas cidades queestá a maior parte das contradições estruturais da vidacontemporânea. Já discutimos com profundidade aquestão urbana na reportagem da 4ª edição (óia aqui:bit.ly/cidade-para-quem). A complexidade de ação,(re)criação e transformação que os tecidos urbanos pro-porcionam aos corpos e mentes se hegemomiza, na soci-edade do espetáculo, num duplo papel, como pontuaLefebvre em O Direito à Cidade: “lugar de consumo e con-sumo do lugar”. Cidades-mercadorias! Eis aí uma sínteseda metrópole do século XXI.

No entanto, “onde estiver, seja lá como for, tenha féporque até no lixão nasce flor”, exclama o Racionais MC’sem Vida Loka: parte I. Se Inácio, do Ciclovida, nos contavaque a função real da reforma agrária, por trás dos discur-sos marqueteiros, é de aculturação campesina, ao levar asmarcas da cidade para o campo, as próximas duas experi-

ências que vamos mostrar fazem o caminho inverso: sepropõem a subverter as marcas citadinas numa ecologiade resistência. São os pinos redondos nos buracos quadra-dos, como escreveu Jack Kerouac.

A Floresta Urbana Sombra do Cajueiro é uma área demata preservada de 2.500 m2 dentro da Cidade dos Funci-onários, um dos bairros de Fortaleza (CE) que mais sofrecom o processo nocivo de especulação imobiliária. É umailha verdejante cercada de cimento e concreto por todosos lados, refúgio para fauna e flora abundantes dentro deum espaço urbano: já foram catalogadas lá mais de 50 es-pécies de aves, 15 de répteis e anfíbios, 32 espécies de fru-teiras e inúmeras hortaliças, a depender da época. Nolocal, moram quatro famílias, mas é uma delas que cuidadas atividades desenvolvidas pelo espaço: a bailarina e ar-tista plástica Marcionília Pimentel e o educador LucasBrito já realizaram diversos eventos sobre permacultura,meditação, parto normal, saneamento sustentável e rece-beram grupos de estudantes do IFCE de Crateús (CE) e daEscola Vila, da capital cearense, para falar a respeito domeio ambiente. A Floresta Urbana abre as portas também

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para outras pessoas que queiram facilitar atividades ao arlivre, em contato com a natureza: é o caso do professor deyoga Vinícius da Paz. De acordo com Lucas, “a ideia agoraé oferecer outras atividades, como cursos de artesanato,bioconstrução, permacultura urbana e culinária natural.Estamos preparando atendimentos terapêuticos de auto-conhecimento. Vamos iniciar com a tenda de suor – co-nhecida como temazcal – e futuramente iremos ampliarpara reiki, florais, leitura de aura e ecoterapias diversas”.

As atividades da família e do espaço são todasdesenvolvidas de forma autogestionária, e o pequenoOtto, de dois anos, participa dessa construção: ele ajudao pai e a mãe nas atividades da horta, por exemplo.Para o educador, essa forma horizontal de propor avida e as relações é “um modelo que tem por finalidadeuma existência pacífica, progressiva e sustentável.Proporciona para cada indivíduo um maior grau deautonomia e liberdade, e só pode funcionar se todosentram dispostos a somar e a caminhar juntos”. Comotoda floresta, todos os resíduos orgânicos produzidospor lá são reincorporados ao ecossistema. SegundoLucas, “a própria concepção de lixo já é inadequada.Resíduos orgânicos podem ser revertidos em matériaorgânica. Os resíduos inorgânicos podem ser recicladosou reutilizados. Em último caso, quando os resíduosnão podem ser redirecionados, é importante buscaruma compactação máxima deles antes do envio aosaterros e lixões”.

Ainda em relação ao problema do “lixo” nas grandescidades, conhecemos uma experiência inspiradora noMondubim, bairro da zona oeste de Fortaleza. É lá ondefica a casa do Hugo Theophilo, analista de redes, quelargou o emprego numa multinacional para virarjardineiro e padeiro. “O que eu faço aqui são tentativasde dar passos de libertação”. O que Hugo faz por lá? Bom,essa história começou quando ele conheceu o coletivo“Do meu lixo cuido eu”, uma iniciativa autogestionária eindependente que está representada em seis estadosbrasileiros: Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina,Rio de Janeiro, São Paulo e Ceará. O movimento buscadisseminar as práticas de compostagem, reutilização epreciclagem. “A maior parte do que chamamos de lixo é,na verdade, nutriente, que poderia voltar facilmentepara o ciclo da vida”, diz Hugo, representante do grupo

em Fortaleza. Segundo ele, “lixo é o que foi sequestradodo ciclo da vida e impedido de voltar. Se a quasetotalidade dos resíduos de uma sociedade é impedida deretornar à natureza, então basicamente se tem aí umasociedade desequilibrada, insustentável. Cada vez maisas cidades, além de separarem os dois ciclos da vida –crescimento e decomposição –, que na naturezaaparecem juntos, privilegiam apenas o do crescimentoem detrimento do de decomposição”.

As inquietações existenciais surgiram quando ele sedeu conta de que quase todas as coisas que podia ver epegar estavam mortas, não tinham vida, eram apenasmercadorias, que em pouquíssimo tempo estariam pron-tas para o descarte. Logo depois, sua companheira, Va-nessa, engravidou. O pequeno Caio viria ao mundo. “Omeu filho estava prestes a nascer e eu perdi o sono quan-do percebi que ele passaria a ingerir veneno dado pormim”, conta Hugo. Foi aí que ambos decidiram revoluci-onar suas vidas: mudaram os hábitos de alimentação econsumo, e transformaram a casa num espaço produtorde frutas, hortaliças, adubo, mel e pão - e puseram fim àemissão de lixo orgânico da cozinha, com a criação degalinhas no quintal. Estive na casa do Hugo e constateium “milagre”. Se a Floresta Urbana é um mundo verdede 2.500 m2, o jardim do padeiro se resume a dois pés demuro, que somados dão 7,2 m2, mas produz cajaranaanã, quiabo, macaxeira, tangerina, milho, banana maçã,joão-gomes, três variedades de manjericão, quatro espé-cies de hortelã, taioba, cebolinha, couve-manteiga, ca-pim-santo, chambá, orégano, alecrim, pimenta biquinho,açafrão, moringa, tomate, alface, rúcula e coentro... Ufa!O milagre de plantar, colher, aprender-a-viver!

A experiência foi gerando frutos, para além das fru-tas e hortaliças. Hoje, o espaço recebe quinzenalmentepessoas interessadas em aprender jardinagem e agricul-tura urbana, a cuidar melhor dos resíduos sólidos, a fa-zer compostagem, e a mudar hábitos de consumo ealimentação. O mais rico de todo o processo é o seu efei-to multiplicador: “As pessoas vêm, constatam a viabilida-de de tudo, se inspiram e levam as ideias pra executaremem suas casas, nos seus entornos”. A Floresta Urbana e opequeno jardim no Mondubim resistem em meio à selvade pedras, pautando suas ações ancorados numa novaprática socioecológica. O mundo agradece!

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Agora, a gente vai dar um passeio de bicicleta. Ouquase isso. Vamos falar de duas experiências autogestio-nárias e marcadamente urbanas, que lançam mão do te-ma da mobilidade como combustível para lutar por umaoutra sociedade: Massa Crítica e Ciclanas. A Massa Críti-ca é um movimento mundial que despontou espontane-amente em São Francisco (EUA), em 1992, e entre suasprincipais características estão uma bicicletada por mêse a ausência de hierarquia e vínculos com partidos polí-ticos ou outras organizações burocráticas. Surgiu comouma crítica à cultura do automóvel e hoje transcendeu areflexão para diversos temas da sociedade contemporâ-nea. Atualmente, está presente em mais de 400 cidadesno mundo, 95 delas no Brasil (óia o infográfico abaixo!), eem Fortaleza teve início no ano de 2006.

Não é fácil falar com algum representante do grupona capital cearense. “Ninguém fala pelo Massa Crítica.Qualquer nota pública é construída e aprovada coletiva-mente”, disseram-nos, após mandarmos algumas per-guntas via rede social. “O coletivo busca se organizar deforma horizontal, anônima e sem líderes. Todas as deci-sões são tomadas na assembleia antes de cada bicicleta-da. Quem estiver presente pode participar e decidir”,frisaram. Em Fortaleza, o grupo é responsável por inter-venções em várias regiões da cidade, com ações diretascomo pinturas de ciclofaixas e faixas de pedestres emdiversas ruas e avenidas, criação de um parklet popularno Campo do América (área periférica da capital cea-rense), organização de uma bicicletada mensal e mani-festações frequentes. É interessante notar que em quasetodos os lugares aonde a Massa Crítica de Fortaleza pin-tou ciclofaixas, tempos depois a Prefeitura implemen-tou-as oficialmente.

Com uma atuação semelhante, no que diz respeito àautogestão, à horizontalidade e à independência em re-lação a partidos políticos e outras organizações buro-cráticas, as Ciclanas, formado em março de 2015, é ummovimento de mulheres que substituíram o carro pelabicicleta nas ruas e avenidas de Fortaleza e, consequen-

temente, lutam pelo direito à mobilidade urbana, per-meando a linha de ação com problematizações críticassobre os direitos das mulheres e a estrutura social.“Com as Ciclanas, e pedalando na cidade, foi que enten-di melhor as palavras empoderamento e coletivo”, diz aartista visual Ceci Shiki. Para ela, na forma como o gru-po está estruturado, “sempre há um partilhar de dúvi-das, soluções, caminhos. Somos um coletivo que tentaser horizontal em sua organização e atuação. Dentro dogrupo qualquer mulher pode propor uma oficina ou al-guma ação”. A também artista Aspásia Mariana vai aoencontro das palavras de Ceci: “A organização é orgâni-ca, vai de acordo com as demandas, vontades e desejos.A não conexão com partidos potencializa nossa autono-mia e militância na luta da mulher e da bicicleta”. Empouco mais de um ano de atuação, as Ciclanas já orga-nizaram debates que discutiram a luta da mulher atra-vés e na utilização da bicicleta; sobre os direitos edeveres das(os) ciclistas urbanas(os), motoristas e pe-destres; cicloviagens; oficinas de mecânica, stencil ecostura; aulas de alongamento e postura corporal; cine-debates; ações diretas; participação no programa Per-cursos Urbanos; colaboração com outros grupos demobilidade urbana; pedaladas etc.

Os coletivos Massa Crítica e Ciclanas mostram que aação direta, o “faça você mesma(o)”, é uma das saídas pa-ra o anestesiamento psicossocial da contemporaneidade.Ao se configurarem de maneira autogestionária e hori-zontal, sem vínculos partidários e burocráticos, não têmque esperar pela política tradicional, não entregamaos(às) políticos(as) profissionais, por procuração eleito-ral (voto), o papel de agentes político-sociais do mundoonde vivem. Agem hoje, vivem a política do cotidiano, napráxis transformadora do dia a dia, sem apego às arcai-cas formas de representação baseadas no poder e na hie-rarquia (presente nos partidos, sindicatos, igrejas eoutras organizações burocráticas de coação psíquica).Em resumo, pedalam caminhos de redenção para as me-trópoles e práticas de liberdade para as pessoas.

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A partir das últimas décadas do século XIX, nas na-ções europeias, a medicina começou lentamente a levar ospartos, antes majoritariamente domiciliares, para os hos-pitais. Hoje, segundo dados da Organização Mundial daSaúde (OMS), 84% dos partos realizados na rede privadano Brasil são cesáreas. No Sistema Único de Saúde (SUS),esse índice cai para 40%, mas ainda continua muito aci-ma da taxa entre 10% e 15% recomendada pela OMS. OBrasil é o país com o maior número percentual de cesáre-as no mundo, com 57% dos nascimentos sendo realizadosatravés desse procedimento cirúrgicoinvasivo e antinatural. Com o intentode diminuir essa taxa, no ano passa-do, a Agência Nacional de Saúde(ANS) estabeleceu regras para asoperadoras de planos a fim de esti-mular o parto natural.

Para a bióloga e doula LianaQueiroz, o parto humanizado é umamaneira de resgatar a natureza sa-grada do nascimento e, à medidaque a mãe é totalmente atuante nes-sa parição, empoderá-la enquanto ser que gera outra vi-da. De acordo com ela, quando os hospitais abarcaram atarefa de trazer as pessoas ao mundo, mecanizando oprocesso, a parteira foi substituída pela(o) médica(o) e adoula, que “é como se fosse aquela vizinha e amiga quedava o suporte no processo de parto”, desapareceu. O fil-me O Renascimento do Parto, de Érica de Paula e EduardoChauvet, aborda essa questão de maneira aprofundada.

A artesã Bruna Ianara, de 23 anos, e o professor emúsico Renan Rebouças, de 27, tiveram a pequena Inaê,de 1 ano, em casa, na companhia de Liana e enfermeirasobstetras. Bruna comenta que o trabalho de parto durou10 horas, e proporcionou-lhe um “renascimento”. “Foimuito forte, muito intenso; é pura emoção, intuição,consciência corporal...”, relembra, afagando com cari-nho a filha, que se lança em caras e bocas para mim, fa-zendo graça. Renan ressalta que o homem pode seentregar à experiência também, e vivê-la com intensida-

de: “Eu entrei em trabalho de partojunto com a Bruna, as funções sãocomplementares, gritava junto comela, não parei um minuto durante otrabalho, e aparei a Inaê”.

À primeira vista, falar sobre partohumanizado pode parecer destoantede tudo o que vínhamos discutindo aolongo da reportagem. Mas, definitiva-mente, não é. Não à toa o obstetrafrancês Michel Odent, um dos defen-sores mundiais do parto domiciliar,

disse que “para mudar o mundo, é preciso primeiro mu-dar a forma de nascer”. A epidemia de cesáreas em todoo planeta tem indissociável relação com o homo urbanuse seu modo de vida em crescente dessincronia com asleis da natureza. Essa espécie urbanóide tenta acelerar anoção de tempo-espaço de diversas formas, busca dissi-mular, com procedimentos cirúrgicos e entorpecimentosanestésicos, as dores existenciais da vida, estas sem asquais não aprendemos-a-viver. O parto humanizado éum ato de coragem e empoderamento, é a Vida prenhede sentido, nos ensinando na prática aquilo que ela ma-nifesta de mais essencial: seu sagrado mistério de nascere morrer. “Quando a mulher pare naturalmente, morreali uma mulher e nasce outra”, exclama Bruna!

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Em 1971, o filósofo austríaco Ivan Illich publicousua obra clássica Sociedade sem escolas, na qual, entreseveras críticas ao modelo escolar, afirmava que os in-divíduos de “mentalidade escolarizada” estão acorren-tados a uma lógica sacrificial marcada por rotinizaçãoe movimentos automáticos. O sociólogo francês PierreBourdieu sublinha, em Os excluídos do interior, que osistema escolar se sustenta à base de dissimulação,uma vez que sua estratégia de controle e garantia deprivilégios é camuflada por uma fictícia e apenas apa-rente “democratização da educação”. É nesse sentidoque o pensador francês alerta que estudantes que jáperceberam essa farsa mantêm com a escola uma rela-ção de resignação desencantada .

Entretanto, as recentes ocupações de escolas encampa-das por secundaristas em alguns estados do Brasil, notada-mente Ceará, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Rio Grande doSul, Rio de Janeiro e São Paulo, mostram que a resignaçãoe os movimentos automáticos deram lugar à ação políticadireta (óia o infográfico na página ao lado!). Fui a algumasescolas em Fortaleza conversar e me solidarizar com as(os)ocupantes. Me disseram que não aceitam mais que as coi-sas sejam empurradas de cima para baixo pela gestão semnenhum diálogo, e que estão vivendo na prática o que é or-ganizar-se para desorganizar, como cantou Chico Science. Aforma horizontal e anti-hierárquica de organização que agrande maioria das escolas ocupadas optou é tambémuma maneira de dizer que os métodos tradicionais de “fa-zer política” (com partidos, líderes permanentes, “entida-des” estudantis etc.) não mais interessam a essa juventudecorajosa. As meninas e meninos que ocupam as escolasmetamorfosearam-se em professoras e professores quenos ensinam sobre construir um mundo novo. São umbálsamo de esperança em meio às desilusões da realidadepolítica e um molotov poderoso que nos chacoalha das “zo-nas de conforto”. Queimam como fogos de artifício pelanoite (para usar as palavras de Kerouac), e subvertem osdiscursos engravatados. São as netas e netos do Maio de1968 reatualizando-o em 2016!

Retornando a Illich, ele foi o primeiro intelectual doOcidente a defender uma proposta radical: o fim das esco-las, desenvolvendo conceitos como o de autoaprendiza-gem em permanente diálogo com o mundo social e de

“estruturas relacionais em teia”, ou seja, uma rede esprai-ada e interrelacional de trocas de saberes independentedos métodos escolares. À época, foi considerado um utó-pico sem fundamento. Hoje, 45 anos após Sociedade semescolas, experiências de desescolarização em todo o mun-do mostram que Illich foi, sim, um utópico à frente do seutempo, e que as utopias existem para que não deixemosde caminhar, como escreveu Galeano.

A doula e bióloga Liana Queiroz, mãe da Nalu, de 5anos, relutou muito em colocar a pequena na escola. “Nãovejo nenhuma que tenha saído desse paradigma de pa-drões e rotinas. Não enxergam a singularidade da crian-ça”, critica. No entanto, a coerção social foi maior e elateve a contragosto que matricular Nalu na escola da Uni-versidade Federal do Ceará (UFC). “O pior é que a gentegasta nossa melhor hora pra trabalhar e quando chega-mos em casa os filhos só têm nossos cacos”, desabafa. Já aatriz e cineasta francesa Clara Bellar teve a oportunidadede fazer diferente. Na produção do filme Ser e vir a ser, noqual ela conviveu durante dois anos na França, Alema-nha, Inglaterra e Estados Unidos com famílias que opta-ram pela não escolarização das suas crianças, Claraembarcou na ideia e desescolarizou o filho ainda durantea filmagem. No Brasil, a ex-bailarina e educadora AnaThomaz é uma reconhecida porta-voz do processo de de-sescolarização. Aos 13 anos, seu filho Gutto pediu para sairda escola. Após um susto inicial, Ana decidiu experimen-tar a vontade dele, e ambos passaram a trocar conheci-mentos em casa. O garoto cresceu e hoje, aos 22 anos, éilusionista, com apresentações no Brasil e no exterior. Apartir daquela decisão, um mundo de novas possibilida-des abriu-se para a educadora paulista. As outras duas fi-lhas, que vieram depois em partos domiciliares, nuncaforam à escola. Ela conta isso e mais coisas importantesno documentário O que aprendi com a desescolarização, deLuiza de Castro, e também no seu blog, o Vida Ativa.

Quase dez anos após o pedido de Gutto, Ana está con-victa de que a desescolarização, que ela também chamade “desmassificação” ou “descolonização”, é um processovivificante, que nos esvazia de condicionamentos, cren-ças e dogmas sociais adoecedores e limitantes à nossaprópria liberdade. Batemos um papo com ela para enten-der mais sobre o assunto. Espia a conversa ao lado!

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O que é a desescolarização? Estamoscheios de crenças, que foram sendo co-locadas ao longo de nossa escolariza-ção. Chegou o momento de esvaziar,de reestruturação, de recomeçar aconstruir a partir de outras bases, deoutros princípios, de outros valores.Na desescolarização é preciso desape-gar das crenças que impedem as trans-formações e os movimentos naturaisda vida. Tirar as crianças da escola, ouensiná-las em casa, não garante nada,pois os pais e a sociedade também es-tão escolarizados e repetirão o papelda escola. A desescolarização é tirar aescola de dentro de nós, desapegar dascrenças e abrir espaço para o movi-mento e a criação.

Como a desescolarização pode

transformar a sociedade? Quandodesinvestimos nas crenças, surge umoutro modo de pensar, sentir e agirna vida. Assim, paramos de susten-tar esse modelo e nos abrimos para acriação de uma vida mais conectada

à natureza humana. Deixamos de tera ilusão de que esse modo de viver éo único e nos tornamos responsáveispor uma vida mais plena e alinhadaa nossos propósitos e designos.

O que é atualmente a escola? Cadavez menos sei o que é a escola, poisestou muito distante dela, mas ontemmesmo alguns professores vieramconversar comigo, pois estavammui-to descontentes com o ensino formale descreviam cenas realmente tristes.Porém, esses professores estão tão es-colarizados que o máximo aondechegam é na angústia e na reclama-ção, não conseguem enxergar naação. Por isso, a mudança precisa co-meçar em cada um de nós e não nareforma de um sistema, senão nãosairemos do mesmo lugar.

Além da desescolarização, que ou-

tras iniciativas sociais podem ser

tomadas para transformar a socie-

dade? Além de tirar a escola de den-

tro de nós, podemos tirar também ainstitucionalização e tudo mais quenos determinam de fora. Reconhecera legitimidade do ser humano, a nos-sa incondicionalidade e nos reconec-tarmos com o que sustenta abiologia humana: o amor. Amor é acapacidade de aceitar incondicional-mente a própria existência e a exis-tência do outro. Para isso,precisamos desinvestir muitas cren-ças que mantêm nossas mentes chei-as e estagnadas, e gerar uma relaçãode criação e fluxo com a vida.

Qual sua opinião sobre a autoges-

tão de nossas vidas cotidianas? Oser humano tem todas as possibilida-des de se autogerir. Biologicamente,somos seres autopoiéticos (teoria de-senvolvida pelos biólogos e filósofos chi-lenos Francisco Varela e HumbertoMaturana), isso quer dizer, nos cons-truímos a nós mesmos constante-mente em relação, e isso é muitodiferente da gestão que reproduz omesmo sistema hierárquico com opensamento de escassez, nas relaçõesbaseadas no julgamento, na compa-ração, na competição, nas quais fo-mos treinados. A autogestão é umprocesso que se inicia em cada um denós, por isso é possível começar ago-ra e assim teremos tempo de ver issorefletido na nossa sociedade.

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No processo de transmutação para um novo mun-do, nada é tão imprescindível quanto a força coletiva dapopulação marginalizada dos grandes centros urbanos.Estas pessoas que, mais do que quaisquer outras, en-frentam diariamente na pele e na alma opressões histó-ricas são o molotov indispensável para um devir detransformação social possível.

Há 16 anos frequento costumeiramente favelas emFortaleza (principalmente a Vila Cazumba e o TancredoNeves, na zonal sul da cidade), não para desenvolver proje-tos sociais salvacionistas, mas para, vivendo as contradi-ções da existência, apre(e)nder na prática a luta de classes.Nessas quase duas décadas de convivência com moradorase moradores estigmatizadas(os), construí uma diversifica-da rede de sociabilidades de relação direta ou indireta, sejapelo comércio varejista de entorpecentes ilegais, pelo lazerrecreativo em casas de show de funk, rap e “forró da fave-la”, pelas gangues de pichação, pelo futebol de subúrbio,ou pelos movimentos de torcidas organizadas. Não tenho apretensão malinowskiana de pensar, agir e sentir espiritu-almente como essas pessoas – muitas delas amigas de lon-ga data –, uma vez que não sofro as mesmas tensões eopressões sócio-históricas, mas me junto a elas empatica-mente, em carne e sangue, para, à maneira como propôs oantropólogo estadunidense Clifford Geertz, tentar compre-ender suas ferramentas simbólicas de representação (ima-gens, comportamentos, gestos, palavras, códigos, etc.). Paraser bem sincero, não sabia cargas d’água de antropologiaou de Geertz quando aos 15 anos comecei a andar no Tan-credo Neves e na Vila Cazumba. Aliás, a Vida é bem maiorque qualquer teoria. É nesse sentido que sinto uma pro-funda empatia afetiva quando percebo a periferia unindo-se para ir à luta por direitos.

De acordo com estatísticas do 9º Anuário Brasileirode Segurança Pública, 58.559 pessoas morreram no Bra-sil em 2014 de forma violenta. Fortaleza tem o maior ín-dice de homicídios de adolescentes, segundo analisouuma pesquisa do Observatório das Favelas, organizaçãodo Rio de Janeiro (RJ). Dados da Secretaria de SegurançaPública e Defesa Social do Ceará (SSPDS/CE) relatamque em 2015 houve 4.019 assassinatos na capital cearen-se, redundando numa média absurda de 12 homicídiospor dia. Essas mortes estão ocorrendo majoritariamentenas periferias. Na estatística do Anuário, a polícia mataseis pessoas por dia no país. As favelas no Brasil hoje sãoverdadeiros campos de extermínio, como muito bem re-tratou o grupo de rap Facção Central, em São Paulo: Aus-chwitz Versão Brasileira; espaços sociais criminalizadosnos quais matar e morrer são faces da mesma moeda. Aolongo dos anos, muitos amigos, que não dá mais paracontar nos dedos, morreram por conta desse banho desangue doentio. Este quadro social violento é o rosto vi-sível e eloquente do cruzamento nocivo entre sociedadedo consumo e exclusão social.

Na madrugada do dia 12 de novembro de 2015, Fortale-za viveu momentos de terror: 11 jovens foram mortos e ou-tros sete ficaram feridos em ummesmo bairro no intervalode poucas horas. 45 policiais (entre civis e militares) foramindiciados à Justiça como diretamente responsáveis peloscrimes. A tragédia, que ficou conhecida como Chacina daMessejana, ainda está muito viva na mente do João (nomefictício), de 23 anos, morador da Mangueira, comunidadeque teve cinco jovens assassinados no episódio sangrento.“Isso que aconteceu foi um tapa de realidade na nossa cara,pra gente tomar vergonha e ir pra luta, né?”, disse ele, comolhar vívido. O jovem, que perdeu dois amigos no morticí-

reportagem

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nio, se juntou com mais moradoras(es) da GrandeMessejana e então organizaram o coletivo Voz eVez das Comunidades, que em poucos meses já re-alizou diversas ações, como manifestações que pa-ralisaram a CE-040 (uma das principais rodoviasque liga Fortaleza ao litoral leste do Estado), açõesculturais (encontros musicais, esportivos e saraus)e, em parceria com os coletivos Zóio e Nigéria, pro-duziram o documentário Onze: A maior chacina dahistória do Ceará, que denuncia e explica, a partirde relatos de pessoas que presenciaram as mortes,como ocorreu a matança. O Voz e Vez das Comu-nidades não tem ligação com nenhum partido po-lítico ou instituição governamental, tampoucohierarquia de cargos e funções. “Aqui, todo mundotem seu ponto de vista e pode falar o que quiser”,enfatiza Carlos (nome fictício), 21 anos.

No mesmo dia, na praça do Liceu na Messeja-na, conversei com o rapper e professor de Históriada rede pública cearense, Moita Brava, de 32 anos,integrante do Movimento Hip Hop - Nós por Nós,composto por jovens das comunidades Barroso II,Jardim União e Jangurussu, zona sul de Fortaleza.“Por meio do rap, queremos dar voz a quem nãotem voz. A palavra é resistência, pois o povo negrohistoricamente resistiu pela arte, pelo samba, peloreggae, pelas religiões afro, pelo hip hop”, contex-tualiza ele, com vibração no falar. O movimento éautogestionário e anticapitalista, sem hierarquiaou líderes, e não possui vínculo com partidos ououtras organizações burocráticas. “Apesar dos(as)integrantes poderem se associar a um partido, opartido não pode intervir no movimento e nemum membro nosso pode se candidatar, por exem-plo”, relata o professor. Desde 2009, o Nós por Nóspromove debates em escolas públicas sobre ques-tões sociais, realiza saraus, eventos de hip hop emais recentemente nos últimos anos, junto comoutros grupos, constrói e organiza a Marcha daPeriferia em Fortaleza.

Quem também organiza a Marcha da Periferia nacapital cearense é o Quilombo Raça e Classe, movimentonacional fundado em 2008 e no Ceará em 2015, que tam-bém atua em manifestações, piquetes, e realiza seminá-rios de formação política. A professora de línguaportuguesa e artes da rede estadual cearense, Lara Bor-ges, uma das integrantes, diz que o grupo é “um coletivoaberto, independente de organizações partidárias e asdecisões são tomadas de forma democrática, em nossosfóruns de discussão”. Segundo Lara, “a periferia reúne asprincipais vítimas da desigualdade social no nosso país,é nela que vivem os sujeitos da mudança. Os trabalhado-res moram na periferia, os operários que constroem to-da a riqueza vivem na periferia, e a classe trabalhadorado Brasil é negra. Ou seja, o caminho é o da organizaçãodos explorados e oprimidos a nível mundial”.

Foi também na periferia da capital cearense que nas-ceu o Coletivo Zóio, formado por jovens sonhadoras(es)em junho de 2015, após um curso de fotografia ministra-do por José Albano no Centro Urbano de Cultura, Arte eEsporte (CUCA) do Mondubim, zona oeste de Fortaleza.Desde então, desenvolvem formações políticas e ensaiosfotográficos em comunidades, e gravaram, junto com oscoletivos Nigéria e Voz e Vez das Comunidades, o curta-metragem Onze, sobre a Chacina da Messejana. “Não te-mos vínculo com partidos políticos porque não temosinteresses eleitoreiros e o nosso foco é a emancipação daperiferia e do seu povo. A autogestão é uma das nossasprincipais bases, é a nossa única saída. Acreditamos quecada tarefa e função desenvolvidas são importantes paraa manutenção do coletivo, por isso não temos hierar-quia”, disseram. Para o Coletivo Zóio, as pessoas das fa-velas são as grandes protagonistas das mudançassociais, pois “é a periferia que sente de forma mais in-tensa a desigualdade social nas suas mais diferenciadasinstâncias. Acreditamos que a união do povo para a lutaé a saída para um novo mundo”.

Saindo da zona oeste e voltando à periferia da zonasul de Fortaleza, há um projeto lindo sendo desenvolvidodesde 2007, no Conjunto Palmeiras, bairro com o piorÍndice de Desenvolvimento Humano (IDH) na capital ce-arense (0,11 numa escala de 0 a 1): a Cia Bate Palmas éuma banda musical formada por jovens de lá, e, além deapresentações em todo o Estado e formação musical pa-ra a comunidade, realiza saraus, grupos de estudos, for-mações, escambos e encontros dos projetos idealizadospela companhia, tudo totalmente gratuito. Para a inte-grante Kassia Oliveira, a autogestão “é a melhor formade se trabalhar, pois não precisamos de patrão, temos osmesmos direitos e deveres e todos participam de formadireta nos projetos realizados, na manutenção da casa enos demais afazeres”. Bonito de viver!

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Partindo agora para a zona leste de Fortaleza, visita-mos duas experiências de resistência e autonomia. A pri-meira parada é no Serviluz, na comunidade doTitanzinho. O mar quebrava em ondas esverdeadas, esua brisa era abafada pelo calor do início da tarde. Pes-soas simpáticas nos olhavam com sinceridade. Foi lá quebrotou, há dez meses, o Servilost, um movimento de jo-vens que se comprometem em “intervir na comunidade,nos aspectos cultural, social e ambiental”, diz o grafitei-ro Spote, 27 anos. De lá para cá, já realizaram eventosculturais, como saraus e reggaes, mutirões de pinturadas fachadas das casas, de limpeza na praia do Titanzi-nho e no Farol do Serviluz (tombado como patrimôniohistórico desde 1983, mas que vivia sob total abandono),oficina de artesanato de brinquedos com materiais reci-cláveis, aulas práticas de parkour nas escadas do Farol, eestão continuamente trocando ideias que contribuampara o empoderamento das pessoas da comunidade. Se-gundo Spote, “a gente percebe de geração em geraçãoque é um descaso que os governantes têm com a gente,não dá mais pra esperar por ninguém, é nós por nósmesmo”. O coletivo não tem ligação comnenhum partido e nenhuma outra organi-zação burocrática. Pergunto a ele se prati-cam a autogestão. Depois de pensar umpouco, responde com franqueza: “Nem sei oque é autogestão”, para depois falar da ma-neira autônoma como se organizam. Ins-tantaneamente refleti, e deparei com abeleza da vida prática, do fazer acontecer,para além da teoria. “Autogestão é o quevocês já realizam aqui Spote, vocês não es-peram por ninguém para fazer as coisas, são donos dassuas vidas, sabem do que são capazes, vão lá e fazem!”,disse-lhe, ainda internamente em rebuliço.

Nossa próxima parada é na comunidade Raízes daPraia, uma ocupação na Praia do Futuro que reúne 84 fa-mílias desde julho de 2009. De acordo com seu FranciscoAssis da Silva, 55 anos, morador desde o primeiro dia daocupação, “o terreno nunca teve função, vivia abandona-do há bem 20 anos. Foi só a gente ocupar que num ins-tante apareceu o dono; os caras (capangas) chegaramaqui tudo armado”. A comunidade não tem saneamentobásico, e o esgoto escoa por um pequeno córrego quepassa na frente das casas. Meninas e meninos brinca-vam próximo, com anticorpos resistentes às mazelas danegligência social. Boa parte dos oito lotes que compõemo terreno é da família Otoch, grupo empresarial que acu-mula muitos imóveis e outras propriedades na cidade.Outra pequena parcela da família Diogo. Para Ju, 35anos, também moradora da comunidade desde o início,“isso é ambição de quem tem mais poder; quem tá lá em

cima não olha pra quem tá lá embaixo”, diz, numa de-monstração sábia de quem vive na prática a luta de clas-ses. Segundo ela, os sucessivos governos negligenciam aregularização fundiária daquela comunidade, e as pesso-as continuam vivendo a angústia de a qualquer momen-to serem removidas: “Uma gestão empurra pra outra, eterminam sem fazer nada”. Seu Francisco Assis corrobo-ra: “É uma falta de vontade da prefeitura, não acreditoque ela não tenha recursos pra resolver nossa situaçãoaqui. Não liga pras pessoas pobres”. A luta pelo direito àcidade e pelo direito à terra é o que move as pessoas noRaízes da Praia: “A terra é um direito nosso, de todos,tem que ser distribuída”, desabafa seu Francisco. O geni-al Patativa do Assaré cantou essa verdade em A terra dosposseiros de Deus: “Esta terra é desmedida, e devia ser co-mum, devia ser repartida, um taco pra cada um, modemorar sossegado”. Ave poesia, asas de luta!

“Aqui, é muito comum você conhecer alguém quefoi preso ou já foi morto. Tenho vários amigos que jámorreram”, me disse Alberlan Neto, 30 anos, moradordo Titanzinho. O poder público, que praticamente só

chega às periferias com a função de re-pressão e controle social, é responsável di-reto pelas mortes e pelo encarceramentoem massa desumano (vide as condiçõesdegradantes nos presídios superlotados).Mas talvez não imagine que, alheias aosseus métodos de coerção, surgem resistên-cias irrefreáveis. O sociólogo inglêsAnthony Giddens teorizou acerca da dialé-tica do controle, na qual toda forma decontrole social, ao mesmo tempo em que

restringe ou nega modos de atuação, abre a contragostooutras possibilidades de ação. Falando sem rodeios: ocontrole, como contrapartida indesejável, vai semprepromover estratégias para fugir dele. Quem também te-oriza sobre esse aspecto é o sociólogo francês Michel deCerteau, quando sublinha acerca das táticas, astúcias ecriatividades das pessoas em seu cotidiano que esca-pam ao controle e à disciplina impostos pelas estrutu-rais sociais (governos, leis, etc.). São as linhas de fuga,das quais fala Deleuze. É isso o que fazem todas essasexperiências autogestionárias na periferia que acaba-mos de ver, sem provavelmente nunca terem lido Gid-dens, Certeau ou Deleuze: a experiência da vidacotidiana mostra que a prática é a senhora de qualquerteoria. São mentes e corações vivificantes, que conju-gam os verbos resistir e autogerir-se na primeira pessoado plural: nós resistimos e nos autogerimos! Buscam a li-berdade, não como um elemento dado por outros(as),mas construído diariamente por eles(as) mesmos(as),em comunhão. Que nos sirvam de inspiração!

reportagem

é um des-caso queos gover-

nantes têm com agente, não dá maispra esperar porninguém, é nóspor nós mesmo.

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A História é uma ferramenta de contextualização daqual não podemos prescindir. É ela quem confirma o atu-al quadro político como um modelo burguês. O arquétipodo Estado-Nação “democrático” moderno foi gerado sobideais iluministas a partir da segunda metade do séculoXVIII. Sob o lema de “liberdade, igualdade e fraternida-de”, a burguesia francesa, para ficar em um exemplo clás-sico, usou as classes artesã e operária ao longo doprocesso rebelde para depois descartá-las, uma vez que defato ela queria tirar a dinastia real e a nobreza do poder,para então assumi-lo. O “liberdade, igualdade e fraterni-dade” da Revolução Francesa e, consequentemente, dasdemocracias representativas é seletivo porque não é paratodas, mas apenas para a classe que vai comandar essenovo Estado-Nação. Essa é, de forma bem resumida, a gê-nese das atuais democracias representativas, que desdeentão variam circunstancialmente no tem-po-espaço, mas mantêm sua “base genealó-gica” intocável. Elas não têm solução, pois,ao serem constituídas para a dominação deuma classe, a esta vão servir. No frigir dosovos, a burguesia é o superego da democraciarepresentativa, e diz o que todos(as) devemfazer e obedecer.

Enfim, desenhando com palavras paraser bem claro: a democracia representativa éuma invenção burguesa por excelência. E nun-ca poderemos transformar a sociedade a partirde práticas, estratégias, valores e ferramentasde controle desse modelo político. A sua famosamáxima de que “todos são iguais perante alei” é uma grande mentira muito bem en-gendrada. O Estado Democrático de Direito não é “demo-crático”, muito menos de “direito”. No Brasil, as duascorrentes políticas que hoje se digladiam visam somente àmanutenção ou à tomada do poder. Bourdieu comentaque estas aparentes polarizações ideológicas são na ver-dade dissimulações sustentadas pela retórica, uma vezque são sempre os de cima lutando por mais capital políti-co e econômico. Guy Debord, no clássico A sociedade do es-petáculo, diz que “sob as oposições espetacularesesconde-se a unidade da miséria. A contradição oficial seapresenta como a luta de poderes que são partes da uni-dade real”. Nada mais parecido com o quadro político bra-sileiro hoje, né? O golpe? O golpe já foi dado desde que nosfizeram crer que esse modelo de democracia garante a li-berdade. O mestre Eduardo Galeano mostrou sua sagaci-dade nesse aforismo: “A liberdade de eleição permite quevocê escolha o molho com o qual será devorado”. ErricoMalatesta afirmava que “a melhor maneira de sujeitar um

povo consiste em lhe dar a ilusão de que participa de deci-sões". Não posso me furtar a lançar mão de uma célebre (eclichê) citação de Aldous Huxley: “A ditadura perfeita teráa aparência da democracia, uma prisão sem muros naqual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Umsistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao di-vertimento, os escravos terão amor à sua escravidão”.

Ou seja, em contraposição à verborragia discursivados palanques e tribunas, nesse sistema de governo (comotambém nos sistemas fascistas, ditatoriais, monárquicos,etc.), o que predomina é o arbítrio e a violação aos direitoshumanos, e quem mais sofre suas consequências são aspopulações socioeconomicamente vulneráveis: indígenas,quilombolas, periféricas, ribeirinhas, costeiras, imigran-tes, etc. Quando defendemos a democracia, é isso mesmoo que queremos defender? A vida é inesgotável e por isso

infinitas são suas possibilidades. Então, porque esse apego tão arraigado às carcomidasortodoxias teórico-ideológicas? Por que essaentrega à submissão representativa? Por queinsistimos tanto nas velhas técnicas e práti-cas de representação político-social criadaspela burguesia, como se as formas de práxise ação históricas fossem intransformáveis?Thoreau, em A desobediência civil, de 1849,lançava a seguinte reflexão: “Será a demo-cracia o último desenvolvimento possívelem matéria de governo? Não será possíveldar um passo mais além no sentido do reco-nhecimento e da organização dos direitoshumanos?” De lá para cá, infelizmente ain-da não demos esse passo à frente.

Nas paredes da Universidade Estadual do Ceará(UECE), há uma pichação contundente: “Viver não cabeno Lattes”. Readaptando-a, diria que viver não cabe nu-ma democracia representativa (como também num re-gime fascista, numa ditadura, numa monarquia, etc.)porque ao ceder a outros(as) – leia-se “políticos(as) pro-fissionais” – nossa representação, abrimos mão de nosautogerirmos, de exercer a nossa autonomia; entrega-mos, por procuração eleitoral, os rumos de nossa vida apessoas alheias à nossa vida . Em resumo, um mundo novonão será gerado jogando o jogo da democracia representa-tiva : eleições, partidos, sistema político, barganhas elei-toreiras, etc. É imprescindível que joguemos na lata delixo da História todas essas engrenagens ilusórias, quedesconstruamos essa visão messiânica e paternalistade que um partido ou um(a) político(a) vai nos conduzirrumo à “salvação”. Essa é uma concepção dogmática(por vezes, religiosa) do que é política.

Será a de-mocracia oúltimo de-senvolvi-

mento possível emmatéria de gover-no? Não será pos-sível dar um passomais além no sen-tido do reconhe-cimento e daorganização dosdireitos humanos?

Aurora de Sonhação: As raízes de ummundo novo

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Quando eu olho para a sociedade hoje e vejo toda abarbárie reinante, fortifico-me no que aprendi com o ja-gunço Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas: “O mais im-portante e bonito do mundo é isto: que as pessoas nãoestão sempre iguais, ainda não foram terminadas – masque elas vão sempre mudando... o real não está na saídanem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio datravessia”. Não há saídas prontas, estanques, permanentespara a Vida, por isso é preciso estar de alma aberta às suasinfinitas possibilidades de semear o novo. Assim, as expe-riências retratadas nessa reportagem tentam e perseve-ram no sentido de criar novas formas de ação no mundo(sem a mediação por hierarquias ou burocracias), de so-nhar e agir para que venha à tona essa nova sociedade.Todas as pessoas, grupos e movimentos mostrados aqui,em que pese as diferenças de prática social, almejam a li-berdade e sabem que, apesar de não sentirem seu gostototalmente, enamoram-se de seu aroma e caminham navereda da esperança, rumo ao vazio das descobertas, por-que, como disse Dostoiévski, “o vazio é o espaço da liber-dade, a ausência de certezas” e “para voar é preciso tercoragem para enfrentar o terror do vazio”. O vazio abreclareiras, como sublinhou Certeau.

Todas as vezes que penso em desesperançar, lembrodas crianças do Lagamar, em Fortaleza, brincando e ensi-

nando a viver em meio à enchente que invadia suas casas;e dos beija-flores que vêm bicar as papoulas aqui no jar-dim; recordo dos olhos de nuvens (é quando enxergamosmais longe) da Ivânia, do Ciclovida, falando de autogestão;e do sorriso radiante do seu Zé, do Brotando Emancipa-ção, quando apanhou da horta a grande melancia. Menta-lizo o seu Francisco Assis, do Raízes da Praia, e suafirmeza de espírito ao dizer que vai lutar até o fim por umpedaço de chão; lembro da menina Ana Rosa, de 7 anos,me ensinando que os animais para serem felizes não pre-cisam de nenhuma dessas parafernálias eletrônicas e mo-biliadas que enchemos nas nossas casas. E, ao lembrar eescrever, choro! Choro porque encontro beleza em tudo is-so. E sinto que a beleza não está distante de nenhum denós. E aí renasço! E percebo que não posso entregar meuestar no mundo a ninguém. Quero me lançar no vazio dovoo rumo à liberdade. Quero ser também uma raizinha deum mundo novo: enraizar, brotar e... voar! Quero ajudar aconstruir uma nova forma de ser com as pessoas e o mun-do, uma maneira de pensar revigorada, baseada no amor,na ecologia, na liberdade, e numa estética que liberte. Queajamos – e voemos! – em comunhão. Eu, você, nós, elas eeles. Que, juntas e juntos, construamos a alvorada doamanhã e conjuguemos a Vida à base de sonho e ação: se-rá a nossa Aurora de Sonhação!

reportagem

bit.ly/berro_mundo-novo

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Dos 49 mortosO que contraria a estatística é o filho de afegãoQue poderia muito bem ser ummorador do castelão a próxima vítimaOu algoz.Se 49, ou cinqüenta,Configura atentadoNo mesmo dia, o mesmo dadoColocado lado a ladoMuda a retóricaDe quem absurda o númeroe desconsidera a história.

Em um fuzil cabem algumas balasUm corpo cravejado de hematomas por escolher serO que se é.

Em uma boate cabem, além de pessoas,Tantos amores, afetos.Corpos abertos por escolher ser o que se é.

Um dia desses uma travesti foi espancada, desfigurada.Teve seus cabelos arrancados a faca.Outro dia, outra travesti em Aracaju,Outra emManaus, Sobral, Juazeiro.Rostos desfigurados à pedra.Atentados por ser o que se é.

Atentados. Atentadas.Numa tentativa simples em ser o que se é.

É simples.Ser o que se seria seum tanto mais tolerantes.Aceitar o normaldesejo e afetoComo sendo simplesmente como... Normal.Como sendo se seríamos

Nunca vi cachorro mordendo outro por estar pinando em perna alheia.Nunca vi elefante dando trombada por que seu filhote tá rolando no chão de forma afeminada.Sejamos bem honestos quanto a isso:Atentado é coisa de bicho genteQue mata e maltrataMaldizoutra gente apenas por ser gente.de sentir e partilhar o que se senteenquanto gente.

lusco - fusco

[email protected]

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berro hq

Conheça o trabalho rochêda do Jadiel em amarebicho.wordpress.com e portfoliodojadiel.tumblr.com

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Bode Berro na ocupação secundarista / Saci na cidade

ramon

@revistab

erro.com

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as últimassemanas, vá-rias manifes-

tações contra a culturado estupro circularampelas redes sociais. O casoda jovem de 16 anos que foiestuprada por 33 homens, noRio de Janeiro, chocou o país.Foram dias de reflexão, demuita revolta e, principalmente,de educação. As feministas e osmovimentos feministas aproveita-ram o acontecimento para trazerum pouco mais de informação sobreo tema, as reações demonstram que asociedade ainda não compreende o queé a cultura do estupro e como ela é re-produzida diariamente, gerando a falsaideia de que certa vulnerabilidade criauma classe de mulheres estupráveis.

No Brasil, a cada 11 minutos uma mulheré estuprada e apenas 35% dos casos são de-nunciados. Além da falta de estrutura para oacolhimento das mulheres vítimas de violência,já que em muitos casos as delegacias não estãopreparadas para o atendimento, muitas agressõesnão são denunciadas porque a vítima sente vergo-nha de dizer que sofreu um estupro. Não são poucosos relatos de mulheres que chegaram à delegacia e fo-ram indagadas sobre sua vestimenta, como se o ato deestuprar fosse, na verdade, uma resposta a uma provo-cação emitida pela vítima.

As mulheres são atravessadas por uma violênciasimbólica que é reproduzida na sociedade de diversasformas, compreende um conjunto de padrões sociaispassados através de canais de comunicação dominan-tes e de massas, que validam e legitimam estes pa-drões. As mulheres usadas como propaganda demarcas, que supostamente seriam de consumo mas-culino, transformam-se, no imaginário dos homens,no próprio produto, no objeto de prazer. As propa-

gandas que dissemi-nam a ideia da vio-lência contra a mulhercomo sendo um ato deempoderamento mascu-lino, de demonstração desuperioridade, reforçam anarrativa de que toda mu-lher precisa de um homemforte, um macho. E não sãopoucas as pessoas que acredi-tam que o sonho de toda mu-lher é ser forçada a praticarrelações sexuais não consentidas- ou seja, de sofrerem estupro.

Essa mulher, que passa a ser cor-po desprovido de alma, é vista comoinstrumento de satisfação masculina.Os homens acreditam que as mulheresescolhem roupas, maquiagens, lugares etêm certos comportamentos com umúnico objetivo: provocá-los. Por isso, tam-bém acreditam que podem violar este cor-po que pede para ser usado. É nestemomento em que a violência simbólica seconcretiza em violência física e, muitas vezes,faz com que a própria vítima acredite que teveculpa por ser estuprada.

No caso das mulheres negras, a objetificaçãoé ainda maior. Não somente por uma questão declasse - já que a maior parcela da população ne-gra brasileira é empobrecida, marginalizada e aque sofre mais violência -, mas também pelo seulugar ocupado por vários anos na história: a deescrava sexual.

A cultura do estupro precisa ser combati-da. O feminismo deve ser apoiado por todasas pessoas que desejam viver em um mundocom menos violência. O primeiro passo é en-tender como os padrões machistas e patriar-cais são inseridos na sociedade e, sobretudo,não reproduzi-los.

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lambe lambe

O ocaso nos domingos é o pior.

Vou dormir com medo. De repente vejo o medo cartografado em minha cidade. Não, na minha cidade, não. Na verdade, onde nasci.Minha cidade é grande, onde nasci é pequeno, uma parte.Acordo, mais um dia, vejo a igreja. Como ela me oprime! Todos os dias! Acordo na cidade branca, que conserva aquilo, logo aquilo, que mecorrói, que me esmaga.Percorro pela cidade graduada, cada esquina sua me parece um tanto católica, hoje. Suas ruas me lembram medos que senti, as dores quebateram no peito naquele final de tarde de um domingo.O ocaso nos domingos é o pior.O ocaso nos domingos, vendo o mar, é o pior.O ocaso nos domingos, vendo o mar, na minha cidade, é o pior.Quanto ruído, quanto corpo, quanta dobra, eu posso expor isso? Não sei, sei que guardado na gaveta de minha escrivaninha não cabe.Dentro do peito, não cabe. Só resta isso?Me revolvo.A linha tênue entre luz e sombra no meu corpo, no corpo da minha cidade, é onde vejo a morte.Talvez o que resta seja respirar onde essas linhas (tão tênues!) não chegam, onde elas não encostam.Talvez, ali, no claro de luz, ou ali (ali, ó!) naquela sombra lisa e também segura, seja onde eu consiga, finalmente, respirar.

Fortaleza, 14 de setembro de 2015, 20:35.

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