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REVISTA BRASILEIRA - 52 - DUOTONE.v p - academia.org.bracademia.org.br/abl/media/RB52 - POESIA.pdf · A palavra do guardião A linguagem é uma pergunta. Ouço sua voz quando transponho

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Poemas

Lêdo Ivo

O esquartejador

Ao contemplar um diaa leitosa e azulada

tarde que desciasobre o Rio de Janeiro

disse Alberto de Oliveira:“É uma tarde de opala”.

Numa parnasianatarde de opala

que pede um sonetofrio e impecável

o esquartejadorviaja na barca

167

Ocupante daCadeira n.º 10,na AcademiaBrasileira deLetras.

Poes ia

Rio-Niteróie leva o seu amor

tudo espedaçadodentro de uma mala.

Ele vê passaremilhas e navios

e ouve o grasnir de um roucopássaro marinho.

Como a vida é estranhadentro de uma barca!

Ele a esquartejouporque muito a amava.

Amar é terrível.O corpo esquartejado

pelo amor cabe tododentro de uma mala.

A barca vai sulcandoas águas da baía

que Alberto de Oliveiratanto contemplou

antes de um sonetodo mais puro lavor.

168

Lêdo Ivo

E a barca vai passandoentre ilhas e águas.

Leva o esquartejadorcom o seu amor e mala.

E em toda a Guanabaraa tarde é de opala.

O oitavo dia

O mundo, criado em apenas sete dias,traz a marca ostensiva da pressa de Deus.Meu Deus, como é imperfeito! Eu desciaa escura correnteza de vozes e gestosos degraus do metrô da Cidade do Méxicoe em redor de mim o mundo se esvaía.Na caverna coleante que zumbianós éramos insetos que esperavamna manhã barulhenta de domingoem que se ouvia o toque taciturnodo sino negro da melancoliaque raiasse a manhã do oitavo dia.

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Poemas

Aparição de Mallarmé

Todas as vezes em que eu ia a Paris costumava subir a rue de Rome e de-ter-me diante do edifício em que morou Stéphane Mallarmé.

Os silvos dos trens na gare Saint-Lazare não feriam o silêncio que imperavanessas visitas iniciadas desde a juventude.

Certa manhã, quando eu cumpria mais uma vez a peregrinação, uma dasjanelas do seu apartamento, no quarto andar, se abriu e Mallarmé apareceucom o seu rosto de fauno, barba grisalha e o plaid legendário a lhe descer dosombros.

Do balcão, ele me olhou demoradamente, como se eu fosse o visitante tardiomas sempre esperado nas reuniões de terça-feira, quando a sua voz se elevava nosilêncio religioso dos discípulos como a flor ausente de todos os buquês.

A partir dessa manhã, deixei de subir a rue de Rome. A aparição de Mallar-mé, que recompensava a minha fidelidade, jamais haveria de repetir-se.

A palavra do guardião

A linguagem é uma pergunta. Ouço sua vozquando transponho a porta alta do almoxarifadoe espanto os morcegos que se evadem dos caibros apodrecidose rumam em direção ao oceano.Eles não foram feitos para sobrevoar a água estrangeirae enceguecidos pelo sol haverão de regressar à terrae refugiar-se no teto dos velhos armazéns de açúcar.Como sempre, estou onde nascie uma voz me pergunta: “Onde está Maceió?”

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Lêdo Ivo

Mesmo estando aqui, habito uma cidade perdidae engastada no vento e na maré, uma cidade que escorre dos esgotoscomo uma veia aberta no dia sanguinário.A brisa sopra sempre e lava a paisagem.Sou o guardião de tudo o que desapareceue tomou a rumo do mar como os morcegos espantados.

A promessa do relâmpago

É assim que protegemos as coisas que são nossas:para evitar que a queimada no pasto vizinho atingisse as minhas terrasabri um aceiro na divisa da florestados meus eucaliptos intocáveis.A mão que ateou fogo ao capim crestado pela secaignorava que nem sempre a morte é a vitória da cinza.Às vezes ela é a véspera da ressurreiçãocomo, após a sombra, a claridade se infiltrano caminho exposto à visita do dia.

Junto à cerca que marca a partilha do mundo pelos homenseu, proprietário, confio na promessa do relâmpagoque anunciou a passagem da chuva e do vento.Na terra negra e amarela todo verdor renascerá.

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Poemas

Fim do passeioVou perdido entre a gente. Não me guianenhum braço ou lanterna no caminhoonde a noite pousou ao sol do dia.

Para tamanha dor, ando sozinho.Nenhuma claridade me alumia.Nenhuma medicina cura a dor

que me punge e me fere, negro espinhocravado para sempre no que restada vida em que vivi tamanho amor.

Uma luz se apagou após a festae neste escuro nem a morte assombrao defunto que está desenterrado.

De mim mesmo me sinto despojado,sombra errante que esconde a sua sombraentre as sombras do chão desamparado.

Este é o fim do caminho. Nada resta.E o própio nada se dissolve comoa folha que apodrece na floresta.

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Lêdo Ivo

Poemas

Carlos Nejar

O país dos cegos

“Uma estranha enfermidade se abateu sobre eles...foram atacados pela cegueira” (H.G. WELLS)

Meu país ficou cego num dos olhosE noutro, cego de si mesmo.Meu país é pedra na laringe.Mais secreta, quanto mais finge.E a ceguez de infância como da voz,a foz, toda ali se transmitepor decreto voraz. Uma polpanoturna sob as pálpebrase noturnos semblantes.E se apaga um povo em nós?Se os corpos são piedosos, as almasnão. Basta respirar e o amor trazuma polpa de trevas, um pulsarofegante, entre os amantes.

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Poes ia

Ocupante daCadeira n.o 4 daABL, gaúcho,poeta, ficcionistae cronista.

Meu país cego está de automóveise pombos. Tento perceber por elee a consciência é uma palavrafora da raiz. Talvez venha dosmortos a moléstia. Não se aquietamna terra e se levantam, desfilamcom os vivos sua festa. Como pésnão avançando o estribo.

Se até as mãos são cegas, que fazercom esta democracia sem infância,entre o bico de fome e pânico,o esqueleto desplumando-se?

Aonde foram a América da infânciae os veleiros inflados junto ao peito?

A luz não se fabula, nem fabricacomo antes. É cada vez menor,ou delirante. A luz truncadajamais volta e apenas corre adiante.

Meu país ficou cego de memórias, cegono ventríloquo direito. E goteja sua históriano bordão do vento. E os heróis sãocúmplices. E nem sabem a distânciaentre a escuridão e a tarde. E talvezseja a infância o que nunca mais mude.

Meu país tem montanha de lobose serpentes sobre os olhos.

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Carlos Nejar

Meu país é uma enfermidadeestranha do tempo. Hamlet cegocom a dinamarca de almas.

E um cheiro de pólvora queimada.

E tudo o que apaga morrepela água. Ou serei profeta,alguma vez, na ciosa república?

Governantes cegos puxam cegospara as regiões mais úmidasdo medo. E o país está presono escuro. Cego por descuido.

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Poemas

O sentido

A história não é dosque lembram, édos que esquecem.

E ao gravar bisontesou pássaros na rocha,fomos nomeandoo tempo, antes, bemantes que ele nosnomeasse.

E a vida não se escrevena rocha. A lei sim,a morte. A vida temraiz de mel. E nãoteme a si mesma.

A história dormecom a roupa no corpo,ou o corpo na alma,embora a vida tenharealidade que baste.

Para não morrer.

E a história está caída.no meio da batalha

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Carlos Nejar

E ninguém a levanta,ninguém percebea gravura do Céuna gruta de uma árvore.

Nada tem revelia na luz.

E o que os historiadoresnão lêem é por falta de infância.

Jamais poderão memoriaro que o sonho não diz.

E a história humanaé a dos sonhos,

Ainda que elesnem saibam disso.

E quando os ancestraisdos ancestraistiravam lumedas pedras,não viramquanto falavam,fosforeando,falavam de coisasdentro das coisas.

E porque elas têm alma,tudo se acende

177

Poemas

de uma palavraà outra. A históriasoluça na história,entre um monte de lavase a cratera do sangue.

Tem esperança na boca.

Mas a boca já não temhistória alguma.

A boca está mudacom os mortos.

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Carlos Nejar

Desfiladeiro do nome

Conto como caí do medonhodesfiladeiro do nome e me ergui.E se as coisas não tivessem existido,elas próprias contariam. Desaprendide morrer por estar em viageme contar é desapegar-se das imagens,até que todas tomem liberdade.Ou formas se aninhemnos ramos da aragem.E morrer não leva a nada.Amar, sim, viver na voltagemde Deus, ou sob a pedradasibilante da história.A fala é um estampidono rigor mais raro,na surda gramáticados gemidos. Convulsivoo tempo é como um galoe não carrega maisnenhum sentido.E com a fala disfarçao estrangeiro ruído.Morrer não leva nemO morrido. Fica galardoadode vermes e formigasna terra, sozinhoe adormecido. Na línguaprovincial , algum apodrecidosaibro de pele e andar,

179

Poemas

agora é traduzido. E o mitoé o limo que retiro do rioempedernido. Contominha infância, virocom a mente velozos pés das corças.A fala é um estampidoE a linguagem, o tiro.

180

Carlos Nejar

Poemas

Francisco Carvalho

A tarde e o rio

A tarde molha as asas de águia nas águas do rio,enquanto sol, albatroz sonolento,é engolido pela sombra do tigre ou da montanha.

Pombas arrulham docemente nas copasdas árvores. Cigarras de alumínio se despedem do dia.Aves de rapina se entrelaçam no azulpolido de um verão que está chegando ao fim.

Pássaros de agouro pousam nas cumeeiras das casas.Morcegos e andorinhas desenham revoadasnupciais em memória das igrejas brancas dos arrabaldes.

Pastor tange de volta seu rebanho de ovelhas,ao som de uma flauta que o vento semeianas encruzilhadas e ermos onde as sombras se bifurcam.

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Ex-Secretárioexecutivo doConselhoUniversitário deEnsino e Pesquisada UniversidadeFederal do Ceará.Membro daAcademia Cearensede Letras. Poemastraduzidos parao francês,alemão, etc.Ganhador dosprêmios Nestléde literatura eABL de poesia.Participou de maisde 18 antologiaspublicadas noBrasil e no exterior.

Poes ia

Lobos uivam à espera da lua banhada de sangue.É a hora em que os olhos dos afogadospedem para não morrer.

Imagem fraturada

Agonia a caminho do imponderável,somos o problema insolúvel.Nascer é o começo da utopia.A felicidade não passa de uma vertigemdos sentidos.

O ser agônico mal se dá contade que a vida fosse uma orgia de fantasmas.Um jogo de sombras que se bifurcam,em que até o destino trapaceia.

O ser humano é a imagem fraturadaem cada reflexo do espelho.A agonia desenha o seu rosto dilaceradopelas flechas do insólito.

Somos o que não morreu às vésperasdo enterro. O que ovacionou a matéria,quando passava a caminho da eternidade.

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Francisco Carvalho

Curvas e esquinas do corpo

Quando ama ou odeia, o corpo é uma esfingemutilada pelos abutres do mar.Pórtico de catedral para as núpcias dos pássaros,uma galáxia que se move à volta de si mesma.Afluente da lágrima, jogral da vertigem,o corpo é uma adaga.

Semeia vestígios de luxúria entre os brolhos das vinhas.Barco à deriva, o corpo de regresso à infânciade Ulisses. Ainda recorda quando o gameta flutuavanuma bolha de líquido amniótico.Corpo de pobre por quem o sino não dobra.Corpo cravejado de pérolas falsas.

Desde a aurora do mito, procura a forma exatado corpo de delito.Sósia do meteoro, trapaceia seu desdém de ouro.Corpo de bailarino, vai à missa de réquiempela meretriz assassinada.Corpo aveludado de borboletaDe vespa trespassada pelas flechas de Vésper.

Corpo de célula sufocado pelas mãos do déspota.Corpo de Lázaro expulso do túmulo.Corpo de esfinge polido pelo cristal do vento.Corpo de primata à deriva da eternidade.Corpo de chuva e relva seduzidopelo aroma da cavalgada das éguas.

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Poemas

Soneto da morte anunciada

Pelo vento que sopra das janelas,sei que o anjo da morte se aproximados leitos irrigados de morfina,num cavalo de crinas amarelas.

Sei que os gatos se afogam nas tigelase o amor esconde ausências nas retinas.Sei que o mistério espreita numa esquinapelo vento que sopra das janelas.

Sei que um pássaro pousa na cornijade uma igreja esquecida da colina,numa tarde de nuvens e aquarelas.

Sei que à noite os cavalos da neblinasão fantasmas expulsos da quadrigapelo vento que sopra das janelas.

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Francisco Carvalho

Ouro Preto me visita

Não vi as casas de Ouro Pretonem seus declives e ladeiras,nem seus pórticos e janelascoloniais. Nem as varandasvisitadas pelos fantasmas.

Nem escadas de puro cedronem volúpias arquitetônicasnos telhados e nas cornijas.Vejo a cidade na penumbrados desmaios crepusculares.

Vejo-a nas fotos e nas lendas,nos perfis dos mortos sem máscaras,nas estrofes de seus poetas.No sangue que explode as retinasdos monumentos de seus mártires.

Vejo-a no limo dos sobrados,na memória dos azulejose nos retratos de Marília.Nos olhos, que já não suplicamprimaveras para as abelhas.

Vejo-a nas fontes que ainda arrulham,no sangue que jorra das pedras,nas retinas das esmeraldas.Olhos verdes que seduziramChico Rei com flechas e dardos.

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Poemas

Vejo-a no Paço da Cadeia,nos Profetas do Aleijadinho,nas curvas dos anjos barrocos.Que às vezes passeiam nos adrosou fazem xixi nos devotos.

Vejo-a no Arraial do Ouro Podre,nas pinceladas de Athayde.Nas igrejas e monumentos,nos museus, na Casa da Óperae nos devaneios do gótico.

Sonhei que estava em Ouro Pretonuma sexta-feira de Páscoa.Choviam cânticos a cântaros.Corujas rasgavam mortalhasao som sinistro das matracas.

Ouro Preto não se desvela,e nisso imita algumas divas.Guardam seus dons a sete chaves,e as relíquias de seus encantosdas emboscadas dos lascivos.

Visitei capelas, igrejas.Nossa Senhora do Pilarmais a do Rosário dos Brancos.Na Casa dos Contos, conteicem degraus de assombros e espantos.

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Francisco Carvalho

Tardes de Ouro Preto. No azuldo céu, o azul das turmalinas.Heras nos muros de outras eras.Na meia-cana dos chafarizesbebi do espírito de Minas.

Em Nossa Senhora do Carmo,ouvi salmos e misereres.Fui a Casa da Baronesa,que permutava diamantespor inconfidências do Alferes.

Ouro Preto ultrapassa o tempo,além das curvas e das retas.Está na ausência das paredes,no barroco das esculturas,no parapeito das janelas.

Vila Rica foi Vila Pobre,num passado mais que pretérito.Patrimônio da Humanidade,pastoreia a infância de Minassob a cavalgada dos séculos.

Ouro Preto pagava compatacas de sangue à Coroa,pelo quinto das nossas dívidas.Ali se plantava a sementeda liberdade e das intrigas.

187

Poemas

Cidade que outrora escutavaas serestas da metafísica.E, sob o luar das candeias,enfeitiçava as mais bonitas,herdava o alazão das mais feias.

Cidade dos Inconfidentes,das pedras que escondem segredosnas rachaduras das cavernas.Teus sobrados viram fantasmasdecapitados pelos espelhos.

Viram fantoches de outras eras,impostores da Monarquia.Arlequins, talvez foragidosde alguma ribalta vazia.E o luar descendo dos morros.

Viram Tiradentes na forca.Esqueleto aos ventos de abril,exposto à fúria dos cachorros.O sangue a jorrar das artériasdas paredes e anjos barrocos.

Ouro Preto, tu me visitasnos teus espectros e revérberosque incendeiam minhas retinas.Loba de mamilos de pedra,que amamenta os veios de Minas.

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Francisco Carvalho

Poemas

Vera Lúcia de Olive ira

� Notas biobibliográficasVera Lúcia de Oliveira nasceu em Cândido Mota e cresceu em

Assis, no Estado de São Paulo. Atualmente reside na Itália, onde en-sina Literaturas Portuguesa e Brasileira na “Università del Salento”,em Lecce. É autora de trabalhos sobre poetas contemporâneos, pu-blicados em revistas brasileiras e estrangeiras. Além da produção en-saística, recebeu diversos prêmios, entre os quais o Prêmio de Poesiada Academia Brasileira de Letras (2005), o Prêmio Sandro Penna(Itália, 1988), o Prêmio Nacional de Poesia de Senigallia (Itália,2000), o Prêmio “Popoli in cammino” (Itália, 2005), o “PrêmioInternacional de Poesia Pasolini” (Roma, 2006). A autora, que es-creve tanto em português como em italiano, tem seus poemas tradu-zidos e publicados em antologias de vários países.

Entre os livros publicados, citamos: Geografia d’ombra (poesia),Fonèma, Venezia, 1989; Tempo de Doer / Tempo di Soffrire (poesia),Pellicani Editore, Roma, 1998; Poesia, Mito e História no Modernismo

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Poesias do livroEntre as Junturasdos Ossos (Brasília,Ministério daEducação, 2006)

Poes ia

Brasileiro (ensaio), Unesp e Edifurb, São Paulo, 2002; La Guarigione (poesia), LaFenice, Senigallia, 2000; A Chuva nos Ruídos - Antologia Poética, Escrituras, SãoPaulo, 2004; Verrà l’anno (poesia), Fara Editore, Santarcangelo di Romagna,2005; Storie Nella Storia: Le Parabole di Guimarães Rosa (ensaio), Pensa Multimedia,Lecce, 2006; No Coração da Boca, Escrituras, São Paulo, 2006; Entre as Junturasdos Ossos, Ministério da Educação, Brasília, 2006.

Traduziu e organizou as antologias poéticas de Lêdo Ivo, Illuminazioni,Multimedia, Salerno, 2002; Carlos Nejar, Miei Cari Vivi / Meus Estimados Vivos,Salerno, Multimedia, Salerno, 2004; Nuno Júdice, Por Dentro do Fruto a Chuva,Escrituras, São Paulo, 2004.

Para dentro

como águas que jorrampara dentro

dei para pisaro rangido dos ventos

dei para virarem volta dos passos

dei para lavrar a veiaem que piso

dei para revolveros ossos

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Vera Lúcia de Olive ira

Aprendi o vento

aprendi o vento nas traves doendoaprendi no escuro das travesaprendi nas telhasmoendo seu soproaprendi como um bichoaprende o uivode outro bichocomo a vigao estalidode outra viga

Aqui não são

aqui não são músculos de tijoloaqui já a porta estralacomo de vértebrasaqui as tesouras cortamos cabelos da casaaparam as unhas dos mortosaqui os passos têm fomeaqui a porta batecortando no meio a noiteaqui as paredes abrigamouvidos de carne

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Poemas

O que carrega

o que carrega a seivaque seu musgo de úmidodo seu escuro de bosquedo meu sangue no úmidodo meu corpo no escurodo meu olho no fundodo seu nome

Memória

abundância de rastrosque não se cancelamfascinados pelo assombrode atravessar as esperascom seus passos abortossubindo pelas artériasem busca de outro corpo

Os pássaros

os pássaros de pedra dilatam as oferendasos pássaros de carne batem-se contra as gradesos pássaros de lata arrulham nas ferrovias dos nervosos pássaros de madeira mascam o macio dos músculosos pássaros de papel voam para dentro das crasesos pássaros de carvão rabiscam suas asas no ventreos pássaros de fogo puxam os pássaros de chuvaos pássaros de pano acalentam os pássaros de pranto

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Vera Lúcia de Olive ira

A noite

o abajur o relógio o guarda-roupaa janela a lâmpada a roupana cadeira os chinelos o cachecolo penico embaixo da cama o tapeteo penhoar o colar de pérolas o anela prata da luz da lua na paredeo rangido das traças no assoalhoo ronco de um vizinho o latidode um cachorro o miado de umgato vadio o canto de um galoo barulho do entregador de jornal

Quase

quase não dormiana noiteem que o tambordas coisaspulsavanos tímpanos

quase mudava de pêlorespirava um cabeloum rangidopalpava no mioloa substânciade um ponteiroa densidadede um gemido

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Poemas

Revés

caminhava pelo revésdizia que o chão era duro, que as pedrasferiam sua sombra, que o vento rangia a vozpor dentro de uma menina em surdina, quedescalça quanto mais pisava mais caí dentrodo seu próprio sentido

Meu corpo é sempre

meu corpo é sempredo mesmo tamanhominha alma é que carregao ofício de engordaras sombrasde esticar os membrospostiçosque ao corpo vai juntandosem que o volume da formaavulte junto com a roupasem que a sombra no chãonote a desproporção

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Vera Lúcia de Olive ira

Rastros

não se desmembrapisado de sombracomo pisado de corpo

o primeiro porque de leveesquiva o esquecimentoo segundo porque de mágoanão se desgruda da escada

o primeiro porque de fugazvaga latente na aragemo outro porque de minério(osso pêlos cartilagens)crava nos vãos dos degrauso latejar das falanges

A cicatriz

muita ferida possoquer no amor quer no ódiodesatrelo freiosmonto muito murodivisório

reconstruo a cicatrizcomo um arco romanoque nem o tempocorrói

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Poemas

A lamaa lama de que brotou o ossoa lama de casa própriapegadiça e lentaa lamade fundo de quintala lama de chuva fina(ancoradourode enxurradas)

a lama por onde defluia essência do nosso sanguea lama onde roçao nosso pisadoa lama de que se moldaa substânciado cordão umbilical

Pelo fogo da falapelo fogo das palavraspela sarça ardente das palavraspisando por rugas de telhasenquanto o coração crescia

pelo fogo da falapelo pavio secreto da línguapela fagulha ardentecrescia meu coraçãocomo crescem as folhasque o vento arrasta no ardor da combustão

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Vera Lúcia de Olive ira