11
Poesia Américo Facó Noturno* Quando jamais na ausência escura, Na imensa noite sem memória, Há de repetir-se a aventura Da antiga floresta ilusória? Dormência lunar vaga e pura, Flores, folhas, troncos, raízes, Revivas de extinto mistério... Quando na tépida espessura Há de tornar o sono aéreo, Os límpidos sonhos felizes? Mimar de múrmura magia! Remansear de sombra fremente! Magia e sombra pesam onde 275 Poesia * In: FACÓ. Américo. Poesia Perdida. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1951, pp. 15-21. Poeta cearense (1885-1953), autor de Sinfonia Negra (1946) e Poesia Perdida (1951). Cf. artigo de Floriano Martins impresso neste edição.

REVISTA BRASILEIRA 64-DUOTONE - academia.org.br BRASILEIRA 64-Poesia.pdf · E o deus aspira a morna essência ... Nem se teme do mal que prova ... E vem de novo, como vinha, A meu

  • Upload
    dinhnga

  • View
    218

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: REVISTA BRASILEIRA 64-DUOTONE - academia.org.br BRASILEIRA 64-Poesia.pdf · E o deus aspira a morna essência ... Nem se teme do mal que prova ... E vem de novo, como vinha, A meu

Poesia

Américo Facó

Noturno*

Quando jamais na ausência escura,Na imensa noite sem memória,Há de repetir-se a aventuraDa antiga floresta ilusória?Dormência lunar vaga e pura,Flores, folhas, troncos, raízes,Revivas de extinto mistério...Quando na tépida espessuraHá de tornar o sono aéreo,Os límpidos sonhos felizes?

Mimar de múrmura magia!Remansear de sombra fremente!Magia e sombra pesam onde

275

Poes ia

* In: FACÓ. Américo. Poesia Perdida. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1951,pp. 15-21.

Poeta cearense(1885-1953),autor de SinfoniaNegra (1946) ePoesia Perdida(1951). Cf.artigo deFloriano Martinsimpresso nesteedição.

Page 2: REVISTA BRASILEIRA 64-DUOTONE - academia.org.br BRASILEIRA 64-Poesia.pdf · E o deus aspira a morna essência ... Nem se teme do mal que prova ... E vem de novo, como vinha, A meu

Se ouvia a voz de um deus presente...De ouvir a terra estremecia,O céu profundo se acendia,Noturnamente, brandamente!Depois... Depois a voz sombriaSe velou na treva, que a esconde,Atrás do universo silente.

Ó tempo em flor e folha, menosAmarga fora esta lembrança,O mais sutil de teus venenos,Se cansasse do que não cansa...Lembrança! filtro acerbo e quente,Que eu bebo, e quero mais! – espelho,Mágico espelho contemplado,Miragem de cristal vermelhoQue fixa o tempo eternamente,E faz presente do passado!

Imagem nunca mais perdida,Surta na sombra, que demora!Noturno ardor, boca de auroraQue oferta a fruta apetecida!Forma de si mesma despida,Imagem sempre a mesma – emboraPaire suspensa além da vida,Penso que a vejo viva agora,Não porque a veja revivida,Só por sonhá-la a igual de outrora.

276

Américo Facó

Page 3: REVISTA BRASILEIRA 64-DUOTONE - academia.org.br BRASILEIRA 64-Poesia.pdf · E o deus aspira a morna essência ... Nem se teme do mal que prova ... E vem de novo, como vinha, A meu

277

Poes ia

Sonho! É sonho, minha alma! VedeO avito engano em que se agitaPara matar a própria sede,Aumentando a própria desdita...É sonho! Traz no riso mudoCerteza e dádiva de tudo...Sonho!... E sonho, por ele a nuaNegra floresta reverdece;Por ele, outra vez, no ar flutuaA Presença, que não esquece.

Odor e flor a terra, estuante,Trescala, arrouba-se no espaço,Esto que impele ansiosa amanteA procurar no ansiado abraço,Maviosa vertigem do instante,A unidade do ser disperso;E o deus aspira a morna essênciaPor que se desvela, diverso,Múltiplo e solto na consciênciaPredestinada do universo.

De novo a Lua, mãe propícia,Derrama o leite de seu seio;A vida, a vida esponsalícia,Vibra total no que era alheio!Desce de novo a claridadePor nova confusa carícia,Enquanto o gesto de bondadeDa vestal dourada derramaEm lábios eleitos a flamaDa mais que perfeita delícia.

Page 4: REVISTA BRASILEIRA 64-DUOTONE - academia.org.br BRASILEIRA 64-Poesia.pdf · E o deus aspira a morna essência ... Nem se teme do mal que prova ... E vem de novo, como vinha, A meu

Delícia eterna sempre nova!Porque a merece a alma sinceraNem se teme do mal que provaNem teme a dor que desespera...Respiro da noite sonora,Cujo segredo o dia ignora!Repouso ao fim de escusas trilhas!Recompensa de estranho rito,Maravilha das maravilhas,Dom do Infinito, – indefinito!

278

Américo Facó

Page 5: REVISTA BRASILEIRA 64-DUOTONE - academia.org.br BRASILEIRA 64-Poesia.pdf · E o deus aspira a morna essência ... Nem se teme do mal que prova ... E vem de novo, como vinha, A meu

Em teu limiar, porta secreta,Onde a imensidade começa,Ressoa a resposta completa,Murmúrio florido em promessa...Livre, – livre da aérea brumaPor que o mistério azul inquieta,Cria o sonho de si a sumaGraça, a ingênua suma surpresa,A novidade que perfumaEsta promessa de beleza.

Fecham-se os braços sobre a escolhaSem nome, nata do desejo;De flor a flor, de folha a folha,A selva salva o suave ensejo,Encontro prometido e lento,Ou sonho ou destino, compostoEm um só beijo, – claro intento,Um mel de música no gosto,Rosto abismado em outro rosto,Forma prima de pensamento.

Eu beijo o beijo e abraço o abraço,Meu raro instante luminoso,Que se exclui do tempo e do espaçoNa eternidade de um regaço,A dar-me sem medir seu gozo...Mago instante que não refaço!Divino instante que me adverte!Fugiu-me cedo...

– Onde ir a esmo,Alma ferida, corpo inerte,Buscar a ilusão de mim mesmo?

279

Poes ia

Page 6: REVISTA BRASILEIRA 64-DUOTONE - academia.org.br BRASILEIRA 64-Poesia.pdf · E o deus aspira a morna essência ... Nem se teme do mal que prova ... E vem de novo, como vinha, A meu

Ar da floresta noturna*

Sumida sombra, secreta espessura,– A noite em meio, ou lembrança do dia,Selva! selva abismal do tempo, escura,Onde a força renasce, que não dura,E fulge a imagem, forma fugidia:

Selva – assombro, sombrio fundo emerso!Ardor indene, força fria e mansa!Ventre que gera a suma do universo!– Tornas o sonho múltiplo, diverso,O tempo em sonho tornas, sem mudança.

Ou tempo ou sonho, em teu seio, sozinha,Perdeu-se uma alma, e sozinha consultaA sombra e, sombra ela mesma, caminha...Acaso busca, alma enganosa e minha,Atrás da sombra a maior sombra oculta.

Eu mesmo, o mesmo, bebo neste engano,E outro, que sou, indago, diferente,Se a aparência me engana, ou se me engano,Ao pensar dispartir-me ao desenganoQue faz sentir mais grave o que se sente.

Perdidos evos, quem vos acha o traço?Existe um norte onde não adivinho?Qual nume ou nome procuro de espaço?Importa apenas o gesto que faço?– No chão noturno escondeu-se o caminho.

280

Américo Facó

*In: FACÓ. Américo. Poesia Perdida. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1951, pp. 47-53.

Page 7: REVISTA BRASILEIRA 64-DUOTONE - academia.org.br BRASILEIRA 64-Poesia.pdf · E o deus aspira a morna essência ... Nem se teme do mal que prova ... E vem de novo, como vinha, A meu

Muda-se o mudo momento em surpresa,Ambíguo pasmo, ao vir de outro momento...Jamais se muda a sutil incerteza,Jamais! jamais! – porta de ouro defesaDa Fábula, que alerta um mundo isento.

O perpassar de uma sombra ligeiraCorta a noite, vai onde a noite a some...

281

Poes ia

Page 8: REVISTA BRASILEIRA 64-DUOTONE - academia.org.br BRASILEIRA 64-Poesia.pdf · E o deus aspira a morna essência ... Nem se teme do mal que prova ... E vem de novo, como vinha, A meu

Assim perpassa a doce mensageiraSaudade, que não sinta quem não queira,E a noite acorda a música de um nome!

Talvez de novo a dileta presença,Atando enleios de amorosa trama,Ora tornasse, eterna amante infensa,Para fugir quando menos se pensa...E volta, e parte, e quer, e ilude, e chama!

E chama! E vem de novo, como vinha,A meu desejo, adorada visita,Perdida para sempre, e mais vizinha,A minha toda bela, a minha minha;Meu bem! meu mal! minha amante infinita!

Ela, e não ela, imagem dela ainda,Certeza dela, e divina conquista,Veste as rosas da noite, e vem, bem-vinda...Florido engano! E o doce engano finda,E se deflora sobre a imagem vista.

Bem longe estais, meus tesouros de outrora,– Carícias de sol, palores de lua,Cúmplice olhar ofertando o que implora,Vermelho riso esparzido na auroraDa paisagem de linho branca e nua!

Nomais a mim, nomais de mim suponhoRever-me a ver renovar-se de opressaPena de amor um tumulto risonho!

282

Américo Facó

Page 9: REVISTA BRASILEIRA 64-DUOTONE - academia.org.br BRASILEIRA 64-Poesia.pdf · E o deus aspira a morna essência ... Nem se teme do mal que prova ... E vem de novo, como vinha, A meu

283

Poes ia

Na sombra a Sombra desfez-se... Foi sonho,Mal acabou... – Novo sonho começa.

Como se aspira a presença ignoradaDe uma flor – pura flama de mil vidas,Que tanto mais esparsa mais agrada,Aqui se ouve o silêncio... Ó tudo! ó nada!Silêncio – voz de harmonias perdidas!

Silêncio – trama infinita do instante!No afastamento, onde a memória alcança,Move-se imensa tua vaga, avante,Inunda, vai, sorve a noite de amante,Até morrer na inconcessa lembrança...

Lembrança inútil, silêncio indiviso!Espelho de arremedos e de mágoas!Sepultou-se na treva um paraíso,Entre águas negras... Treva! nem me avisoDo espírito que voga sobre as águas.

Luz, mas luz presa no abismo indistinto,O pensamento furta-me o que penso,Outro abismo... Atro abismo! – E cedo! e sinto,Imagem dupla de mim mesmo, o instinto,Meu ser de treva entre dois caos suspenso.

A mão de leve se alonga, palpita,Procede lenta no ar soturno e quedo,Procura... – Que procura a mão aflita?Quem guarda a sombra assombrosa onde habitaO instante, imoto, eviterno segredo?

Page 10: REVISTA BRASILEIRA 64-DUOTONE - academia.org.br BRASILEIRA 64-Poesia.pdf · E o deus aspira a morna essência ... Nem se teme do mal que prova ... E vem de novo, como vinha, A meu

Não sou? não fui? – A unânime verdadeSe faz ínvio jardim de ausência pura;E no aroma selvagem que as invade,Gêmeas fatais, a noite e a soledadeRespiram sós de impossível doçura...

Respira livre a noite sem destino,Sem limite... Respira, ignota e calma,Respira sobre um delírio divino,Transmuta-se em temor quando imagino,E a magia do Sol me extingue na alma!

Recresce o caos... Onde a purpúrea argilaSe turba, tombam as rosas que dantesFrescas sangravam da manhã tranquila...E tomba a flor de sonho, que cintila,– Ouro sutil das estrelas distantes!

Eu cego! Eu só! E a negra plenitudeNo ausente espaço urde a surpresa enormeDe um mundo esconso, ermo, repulso, rude...Não mente a noite, a mente não se ilude,É teu, minha alma, este mundo que dorme.

É tua a noite, a voragem secreta,Fora do tempo, alheia ao tempo insonte,E as aves torvas do fundo sem meta,– Lascívias idas, que a palavra inquieta,Imagens, nuvens de inviso horizonte:

284

Américo Facó

Page 11: REVISTA BRASILEIRA 64-DUOTONE - academia.org.br BRASILEIRA 64-Poesia.pdf · E o deus aspira a morna essência ... Nem se teme do mal que prova ... E vem de novo, como vinha, A meu

É tua a soledade em que te apagas,Imane mar de morte sonolento...E elas revoam de inauditas plagas,Informes, – formas dissolutas, vagas,Flutuantes entre a noite e o pensamento.

Meu pensamento – minha noite escura!Desejos, iras, penas, alegrias,Foram de novo insuspeita amarguraSe foram mais que a sombra, que perduraNo abismo das memórias erradias...

Dormi, lembradas iras! Dormi, penas,Desejos baldos que nunca dormistes!As alegrias passaram apenasComo as furtivas mágoas mais serenas...

Dormi, sombras! Dormi, fantasmas tristes!

285

Poes ia