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REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA, vol. 5

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REVISTA BRASILEIRA

DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA

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A Revista Brasileira de História da Ciência (ISSN 1983-4713) é uma publicação semestral da Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) voltada para a história da ciência e da tecnologia, e áreas correlatas.

The Revista Brasileira de História da Ciência, (ISSN 1983-4713) published two times a year by Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC), is dedicated to the history of science and technology, and correlated areas.

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CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO | SCIENTIFIC EDITORIAL COUNCILColegiado integrado por associados da SBHC Academic body formed by SBHC’s associates

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Ficha catalográfica preparada pela biblioteca do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST)

Revista Brasileira de História da Ciência / Sociedade Brasileira de História da Ciência – Vol. 5, suplemento . – Rio de Janeiro: SBHC, 2012 – v.: il.

Semestral

Continuação de: Revista da SBHC

Sumários em inglês e português

ISSN 1983-4713

1. História da ciência - Periódicos. I.Título.

CDU 5: 6 (091)

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VOLUME 5, SUPLEMENTO, 2012

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09 Apresentação

Antonio Carlos Robert Moraes

12 Do veneno ao antídoto: Barbosa Rodrigues e os estudos e controvérsias científicas sobre o curare Frompoisontoantidote:BarbosaRodriguesandthestudiesandscientific controversialaboutcurare

Magali Romero Sá

22 Saberes e práticas sobre plantas: a contribuição de Barbosa Rodrigues PlantWisdomandpractices:acontributionbyBarbosaRodrigues

Ariane Peixoto, Rejan R. Guedes-Bruni, Moacir Haverroth e Inês Machline Silva

31 Barbosa Rodrigues e os estudos botânicos na Amazônia BarbosaRodriguesandhisbotanicalstudiesinAmazonia

William Rodrigues

41 Barbosa Rodrigues e os sambaquis da Amazônia BarbosaRodriguesandtheAmazonian’skökknmödding

Heloisa Bertol Domingues

51 João Barbosa Rodrigues – cientista ilustrador JoãoBarbosaRodrigues–illustratorscientist

Paulo Ormindo

60 Delimitando as fronteiras: a musealização da botânica Demarcatingborders:themuzealizationofbotany

Luisa Maria Rocha

72 Os museus e o projeto republicano brasileiro ThemuseumsandtheBrazilianrepublicanprojec

Cícero Antônio F. de Almeida

80 Lepidosirengiglioliana: uma homenagem do botânico João Barbosa Rodrigues ao zoólogo Enrico Hillyer Giglioli Lepidosirengiglioliana:ahomagepaidbythebotanistJoãoBarbosaRodrigues tothezoologistEnricoHillyerGiglioli Antonio Carlos Sequeira Fernandes, Andrea Siqueira D’Alessandri Forti, Vittorio Pane, Marina Jardim e Silva e Cecilia de Oliveira Ewbank

88 João Barbosa Rodrigues, um naturalista entre o Império e a República JoãoBarbosaRodrigues,anaturalistbetweentheempireandtheRepublic

Alda Heizer

95 O PaísdasAmazonas e naturalistas brasileiros: a natureza amazônica nas viagens científicas da Comissão Rondon e do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (1907-1931) O País das Amazonas and the brazilian naturalists: the amazonian nature in scientificvoyagesoftheRondonCommissionandtheRiodeJaneiro´sBotanical Garden(1907-1931)

Dominichi Miranda de Sá e Ingrid Fonseca Casazza

110 Congressos internacionais e a atuação de Barbosa Rodrigues no evento de 1905 InternationalmeetingsandtheBarbosaRodriguesroleonthe1905event

Ana Maria Ribeiro de Andrade

EDITORIAL | Editorial

ARTIGOS | Articles

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E D I T O R I A L

Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 5, suplemento, p. 6-8, 2012

Este número especial da Revista Brasileira de História da Ciência apresenta um conjunto de reflexões que resultam do Seminário João Barbosa Rodrigues – Um naturalista brasileiro, promovido pela Escola Nacional de Botânica Tropical - Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro e pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz em homenagem ao centenário de morte do botânico João Barbosa Rodrigues (1909-2009) e realizado entre os dias 21, 22 e 23 de outubro de 2009, ano em que o Ministério da Ciência e Tecnologia elegeu como tema cen-tral “A Ciência no Brasil”. Tratou-se de uma oportunidade única de trazer à cena um dos mais importantes cientistas brasileiros, discutir o seu legado e a atualidade das questões propostas por ele em sua obra.

Considerado um dos mais importantes naturalistas brasileiros, Barbosa Rodrigues teve atuação expressiva como cientista na segunda metade do século XIX e primeira década do século XX.

Dentre os seus estudos em história natural, encontram-se a botânica, a etnografia, a arqueologia, a fisiologia e a farmacologia.

Afinado com o perfil de seus interlocutores à época, como o botânico Francisco Freire Allemão e o barão de Capanema, Guilherme Schüch, João Barbosa Rodrigues, um cientista ama-dor, conseguiu se firmar como botânico profissional respeitado no Brasil e no exterior. Nos anos 1870, pesquisou intensamente na Amazônia brasileira, coletando e herborizando principalmente palmeiras e orquídeas. Seus estudos botânicos e etnobotânicos, abrangendo desde a taxonomia até a ilustração científica e a aplicação de plantas medicinais, levaram-no a ser indicado como diretor do primeiro Museu Botânico de Manaus, no coração da região amazônica, em 1883. Foi responsável ainda por importantes contribuições para o conhecimento de línguas e culturas indígenas dessa região. Com a instalação da República, o cientista foi convidado, em 1890, a assumir a direção do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, dando início a uma série de mudanças que marcariam profundamente a instituição até hoje. João Barbosa Rodrigues vivenciou, através dos anos, uma troca científica expressiva com seus contemporâneos de diferentes instituições e contou com o apoio do imperador D. Pedro II e da princesa Isabel.

Abrimos o fascículo com o artigo de Antonio Carlos Robert Moraes. O pesquisador chamou especial atenção para a trajetória de Barbosa Rodrigues, “que contraria a tese de um caminho único e homogêneo na formação da comunidade científica do Brasil”. Além disso, aborda questões relevantes como a importância de pensarmos “a apropriação simbólica do território nacional”, “a especialização do trabalho intelectual no século XIX”, “a importância da prática de catalogação da fauna e da flora e seu percurso histórico”.

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Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 5, suplemento, p. 6-8, 2012

Este número da Revista Brasileira de História da Ciência dá continuidade ao projeto de publicação de um dossiê temático por ano. Abrimos o volume com uma coletânea de artigos que versam sobre Engenharia e Política, formando o dossiê proposto por Pedro Eduardo Mesquita Marinho. Tendo como objeto o trabalho e a trajetória de cientistas e técnicos, as instituições que os formavam, as agremiações e as escolas, as revistas e os espaços de atuação destes homens, o que sintoniza os artigos aqui publicados é a premis-sa de que as atividades profissionais dos engenheiros, aqui entendidos como intelectuais, formam e viabilizam uma rede de relações objetivas entre distintas agências e agentes. É, portanto, fundamental conhecer as tensões sociais que cercam essas relações, o peso rela-tivo dos grupos nelas comprometidos e as idéias predominantes. Os trabalhos e as trajetórias desses homens nos revelam as experiências individuais e também as coletivas. Suas histórias estão unidas, ao mesmo tempo, num marco de referência social e numa linguagem construída a partir de suas experiências, que também são modificadas por esses elementos. Os textos escritos por Sonia Regina de Mendonça, Pedro Eduardo Mequista Marinho, Maria Letícia Corrêa e Dilma Andrade de Paula demonstram a importância das análises que revelam as relações entre estes homens e instituições com a esfera da política nacional nos séculos XIX e XX, realizando uma aproximação da História da Ciência e da Tecnologia com as discussões no âmbito mais alargado da historiografia.

A apresentação mais substancial do dossiê fica a cargo de Silvia Figueirôa.

A sessão de artigos reafirma nossas intenções de ampliar o diálogo internacional, trazen-do dois trabalhos de colegas de Portugal. Em O “Museu de Geologia Colonial” das comissões geológicas de Portugal: contexto e memória, José Manuel Brandão nos brinda com uma reflexão sobre o papel das coleções científicas coloniais, tanto do ponto de vista mais imediato do co-nhecimento e da exploração dos recursos naturais situados no ultramar, neste caso em África, como também aborda como estas coleções fornecem, hoje, um acervo rico para os estudos da História das Geociências. Ao refletir sobre o contexto do desenvolvimento da indústria de plástico em Portugal, a partir da década de 1930, Maria Elvira Callapez, em Plásticos na socie-dade portuguesa rural, reforça uma vez mais, por meio de suas análises, a importância de se observar a complexa teia entre ciência, tecnologia, política, economia e sociedade.

Voltando-nos para o texto escrito por André Luís Mattedi Dias e Eliene Lima intitulado “O Curso de Análise Matemática de Omar Catunda: uma forma peculiar de apropriação da análise matemática moderna, verificamos a riqueza dos livros didáticos e anotações para aulas produzidos para cursos universitários como fontes para a análise de processos de difusão e afirmação de teorias científicas. Neste caso, a abordagem dos autores contribui para os estudos da institucionalização e profissionalização da Matemática no Brasil e dialoga, intimamente, com a História da Educação, em particular com a História do ensino científico.

Encerrando a sessão de artigos, Isabel Cafezeiro, Edward Hermann Haeusler, Henrique

Magali Romero Sá, especialista nos estudos sobre o naturalista, pretendeu em seu artigo “resgatar os estudos sobre o curare realizados por Barbosa Rodrigues, ressaltando o lado polêmico do naturalista e a repercussão de seus experimentos entre os seus pares e na imprensa da época”.

O lugar da etnobotânica na prática científica de Barbosa Rodrigues foi abordado por Ariane Peixoto, Rejan R. Guedes-Bruni, Moacir Haverroth e Inês Machline Silva. Os autores destacaram, entre outros aspectos, “a importância da classificação botânica indígena para a afirmação de uma ciência brasileira, cujo entendimento só seria possível pela convivência com os índios, com o entendimento da língua e de conhecimentos botânicos”.

William Rodrigues, biólogo que ocupa a cadeira de Barbosa Rodrigues na Academia de Letras da Amazônia, em Manaus, traçou um paralelo entre a vida pública e a de cientista de João Barbosa Rodrigues, destacando o autodidatismo e sua especialização em taxonomia das Orchidaceae e Arecaceae, além de suas contribuições nas áreas de arqueologia, zoologia, antropologia, geologia, filologia e etnologia indígena.

Heloisa Bertol Domingues destacou em seu artigo que entre os trabalhos de campo de Barbosa Rodrigues, aqueles voltados para os sambaquis ganharam destaque.

O artista plástico e professor Paulo Ormindo analisou a arte botânica como uma forma de expressão artística e de pesquisa científica nas ciências naturais e na história da arte, exempli-ficada nos desenhos e aquarelas do cientista e ilustrador botânico João Barbosa Rodrigues.

Os museus não ficaram de fora das análises. Dois museólogos discorreram sobre Barbosa Rodrigues e os museus: Luisa Maria Rocha apresentou uma reflexão acerca da trajetória de construção e transformação do Museu Botânico do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, concebido por João Barbosa Rodrigues com o intuito de compreender o processo de musealização dessa área especializada do conhecimento a partir de uma articulação no âmbito institucional, social e epistêmico.Cícero Antônio F. de Almeida analisou “a reconfiguração dos museus brasileiros após a implantação da República, destacando os ideais de ‘progresso’ e a inserção dos museus nas agendas políticas de ‘instrução pública’, de ‘educação do povo’ e de ‘formação das almas’, tendo como base casos exemplares”.

Antonio Carlos Sequeira Fernandes, Andrea Siqueira D’Alessandri Forti,Vittorio Pane, Marina Jardim e Silva e Cecilia de Oliveira Ewbank destacaram a relação científica e de amizade entre Barbosa Rodrigues e Enrico H. Giglioli, alicerçada no interesse de ambos pela antropologia e a etnografia, o que resultou na inserção do naturalista brasileiro como membro honorário na

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prestigiada Sociedade Italiana de Antropologia e Etnografia, em reconhecimento aos seus trabalhos em prol da antropologia brasileira.

Alda Heizer refletiu sobre a atuação de Barbosa Rodrigues na transição entre o Império e a República, tentando compreender Barbosa em diálogo com diferentes interlocutores e em diferentes momentos, com o objetivo de demonstrar a complexidade das pesquisas que pretendem circunstanciar um naturalista como Barbosa Rodrigues nessa transição.

Dominichi Miranda de Sá e Ingrid Fonseca Casazza discorreram sobre o papel dos museus, jardins botânicos e comissões de exploração no inventário sistemático da natureza da fronteira noroeste do território nacional, ressaltando que sob a direção de Barbosa Rodrigues ocorreu incentivo à pesquisa científica, com o aumento das coleções, a criação do cargo de naturalista viajante e o incremento do intercâmbio com outras instituições científicas.

Por fim, Ana Maria Ribeiro de Andrade analisou a atuação e contribuição científica de João Barbosa Rodrigues para a 3ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano, realizada na cidade do Rio de Janeiro em 1905, e concluiu que os dois trabalhos de Barbosa Rodrigues “publicados nos anais são relevantes para a botânica, história da ciência e do meio ambiente. As advertências feitas ao governo e especialistas no trabalho ‘A diminuição das águas no Brasil’ permanecem muito atuais”.

Assim, esta publicação de caráter interdisciplinar – reunindo historiadores, museólogos, ilustradores científicos, botânicos, antropólogos e cientistas sociais –aborda, além do próprio legado científico de Barbosa Rodrigues, a história do desenvolvimento da botânica no Brasil.

Finalmente, registramos o apoio da Faperj (APQ2), que possibilitou a edição deste número especial, que, esperamos, irá contribuir para aprofundar as discussões sobre o tema aqui apresentado.

Magali Romero Sá e Alda Heizer

Editoras convidadas

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Apresentação

ANTONIO CARLOS ROBERT MORAES

Departamento de Geografia, FFLCH-USP

Não é preciso ser um seguidor de Friedrich Ratzel para constatar que o Estado-nação – essa construção política da “segunda” modernidade – se alimenta, sempre que possível, da expansão territorial para fortalecer sua unidade interna e que os processos expansionistas jogaram um papel considerável na consolidação das identidades nacionais modernas. Em face de tal constatação, uma particularidade histórica bem evidente da formação brasileira residiu na possibilidade de os agentes estatais efetuarem esse movimento expansivo (sua territorialização) num espaço em sua quase totalidade não submetido à soberania de outros estados. Essa possibilidade de uma “expansão para dentro”, já expressa na autoqualificação como “império” (conforme a arguta indicação de Ilmar Mattos),1 fundamentou-se no fato geográfico de o “território usado” do novo país não abarcar o conjunto de seu domínio territorial acatado pela diplomacia ocidental. Isto é, o território colonial português na América do Sul, cujos contornos foram delineados no “Mapa das Cortes”, no processo de elaboração do Tratado de Madri, em 1755, apresentava-se no cenário pós-colonial como uma herança para o novo Estado: uma área de pretensão de soberania fundamentada na continuidade dinástica e no conhecimento geográfico (mesmo que incerto em suas bordas, principalmente).2

A adoção do princípio do utis possidetis na delimitação das fronteiras brasileiras reforçou as práticas de reconheci-mento do território, pois alargava a base da ideia de apropriação encaminhando-a também para o campo do levantamento e da representação do espaço. No contexto após a Independência, a publicação do material das expedições da segunda metade do século XVIII ganhava potência, assim como o incentivo à realização de novas viagens e à composição de coleções dos variados aspectos dos meios naturais e das populações agora “brasileiras”. Aliavam-se a esse propósito a necessidade de reconhecer os lugares aptos a certas explorações produtivas e a confecção de um inventário dos recursos naturais disponíveis para diversas atividades. Pode-se considerar que uma ciência brasileira foi animada inicialmente por tais objetivos de afirmação e desenvolvimento nacionais. Cabe salientar que o campo para tais práticas era extrema-mente extenso, posto que o espaço do país encontrava-se, em sua maior parte, constituído de “fundos territoriais”, isto é, de porções ainda não incorporadas de forma sistemática à economia nacional.3 Muito havia a levantar, a registrar e a catalogar, sendo tais exercícios também um instrumento geopolítico de domínio e de propriedade estatais.

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A apropriação simbólica do território nacional, a inscrição de suas características e componentes nos cânones da ciência moderna, jogava um papel adicional na legitimação da monarquia brasileira, que se apresentava no “concerto das nações” como uma representante da ilustração nos trópicos. A taxonomia ganhava, assim, um status de aferição do intuito civilizador, o que transparecia ao submeter uma natureza selvagem às luzes do conhecimento científico. Sabe-se que naquelas sociedades em que a história não é prodigiosa na alimentação dos mitos de origem, a geografia vem em seu socorro oferecendo material para a doutrinação patriótica:4 paisagens diferentes, espécies desconhecidas, acidentes geomorfológicos extraordinários, habitantes autóctones exóticos, etc. Nessa situação, a afirmação da identidade nacional plasma-se ao solo, ganhando uma grande carga de ideologias geográficas, característica que se acentua nos países pós-coloniais construídos num forte processo de expansão. No entanto, tais elementos necessitam ser organizados e expostos (assim como os registros históricos) para serem eficientes em sua função ideológica. A composição de um imaginário geográfico e territorial nacional demanda a instituição de monumentos, museus e coleções (como já foi bem apontado por Benedict Anderson, entre outros).5

O Brasil do século XIX conheceu um conjunto significativo de agências estatais e paraestatais dedicadas ao trabalho acima descrito. Essas instituições congregavam um círculo de especialistas que transitavam numa circulação inter pares sempre próxima ao governo, do qual não raro participavam ativamente. É difícil estabelecer um nome ou uma categoria que abarque todo esse segmento usando os rótulos atuais: eram letrados, mas também naturalistas, etnógrafos, botânicos, zoólogos, geólogos, engenheiros, médicos, militares, políticos, diplomatas, que compunham a clientela do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - do Museu Imperial, das faculdades, etc. Envolviam-se com a política e com a imprensa, mas também dirigiam órgãos oficiais e ocupavam cargos públicos, além, muitas vezes, de tocar rentáveis negócios privados.6 Cabe, acima de tudo, assinalar que viajavam e liam bastante, estando sintonizados com as ideias científicas mais sofisticadas em voga na época. Não se tratava de amadores ou miméticos, como tentou caricaturar uma primeira historiografia republicana universitária, mas de intelectuais que reagiam a uma ambiência so-cial peculiar posta pela dinâmica da modernidade periférica neste confim do Ocidente. A seleção de teorias e filiações que professavam respondia aos princípios e aos interesses que esposavam, assim como em qualquer outra parte do mundo moderno.

Com o caminhar do Oitocentos, à ideia legitimadora de civilização vem se associar o tema da modernização, tra-zendo a tecnologia e o maquinismo para o centro de preocupações da elite brasileira. O espetáculo da modernidade se expressa como paisagem e, notadamente, como sistemas de engenharia que redesenham as cidades e os caminhos. A renovação urbana, a construção de ferrovias e a iluminação elétrica definem um projeto de país que vai conviver com as frentes de expansão em franco movimento e com a incorporação de espaços pioneiros em diferentes quadrantes do território nacional.7 A tentativa de articular essas duas características fica bem evidenciada nas práticas associativas e científicas da época, animando um novo surto de reconhecimento do espaço brasileiro com a realização de viagens e expedições, a confecção de mapas e roteiros, a publicação de textos e a organização de coleções naturais, tudo construído e disposto segundo as recomendações das teorias científicas então vigentes. O advento da República, com um forte conteúdo de redescoberta e de refundação do país, estimulava tal tendência. Nesse contexto, certa especia-lização do trabalho intelectual começava a se consolidar no final do século XIX, propiciando identificar melhor se não as instituições, ao menos os indivíduos. As comunidades especializadas começavam a ganhar forma.

A catalogação das espécies da flora e fauna brasileiras sempre foi uma atividade que acompanhou o processo de colonização da América portuguesa, atraindo o interesse dos viajantes estrangeiros e das autoridades metropolitanas. A emergência do Brasil como entidade geopolítica autônoma só reforçou esse objetivo taxonômico pelos motivos já mencionados no início do presente texto. Seja por um viés utilitarista, seja por um desejo puro de conhecimento, os elementos da natureza do espaço brasileiro foram sendo levantados, identificados e catalogados, gerando acervos que eram expostos como uma apresentação do país. Não raro eram apresentados ao lado dos produtos da indústria nacional e das grandes obras modernizadoras do território, permitindo criar a imagem da articulação buscada entre riqueza natural e capacidade industrial (o que atava o “berço esplêndido” a uma promessa de futuro grandioso, alimen-tando a figura tão repetida do “gigante adormecido”). Por essa via discursiva, o pensamento romântico de afirmação da

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nacionalidade não se opunha às posturas e práticas cientificistas, antes concorriam para o projeto comum de conhecer e, nesse ato, construir o país. Como em todas as sociedades pós-coloniais, a aferição do sucesso de cada empreitada em muito residia na acolhida dos resultados obtidos nos fóruns adequados dos países centrais. Como já apontaram vários autores, a colonialidade do saber é um componente essencial da modernidade periférica.8

Se o Brasil aparecia para a prática da descrição e da classificação como um depósito infinito de novidades, a Amazônia representava a exacerbação dessa qualidade nacional. Era a terra incógnita por excelência, onde a exuberância natural era proporcional ao desconhecimento de suas características, qualificando-se, assim, como um paraíso para os levantamentos de campo naturalistas e etnográficos. Diga-se de passagem que, na visão evolutiva da ciência da segunda metade do século XIX, os habitantes autóctones eram analisados como parte da paisagem local na sua condição de “povos naturais” (cuja imagem era apresentada conforme o destino que lhes era reservado em cada projeto nacional).9

Viajar pela Amazônia era uma garantia de obtenção de resultados inéditos em diferentes áreas do conhecimento, o que permitia ao pesquisador abrir a porta de entrada no grand monde da ciência, o que, no caso brasileiro, podia ser atestado no ingresso como sócio das instituições consagradas, a começar pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Uma mesma expedição levantava dados arqueológicos, linguísticos, etnográficos, geológicos, botânicos, zoológicos, astronômicos, além de elaborar descrições geográficas e representações cartográficas das terras visitadas.

A trajetória de João Barbosa Rodrigues é exemplar em face da interpretação esboçada nos parágrafos anteriores. Contemporâneo da “geração de 1870” (sem inserção aparente nas ações que a qualificam), filho de um comerciante e sem titulação acadêmica formal na área, acaba por se credenciar como um dos mais importantes botânicos do país, apoiado em uma formação prática de campo, na qual vai apurando sua capacidade taxonômica. Sem acesso, durante décadas, ao universo institucional da ciência na corte, acaba, já na República, por se tornar o dirigente de um dos mais importantes lugares de cultivo de seu campo de especialização: o Jardim Botânico do Rio de Janeiro.10 Trata-se, portanto, de um personagem interessante, que ilustra a variedade de situações de vida e que contraria a tese de um caminho único e homogêneo na formação da comunidade científica no Brasil. O presente dossiê ilumina diversas facetas de sua vida e de sua obra, inserindo sua biografia numa análise contextual do campo disciplinar.

Notas e referências bibliográficas

Antonio Carlos Robert Moraes é geógrafo e sociólogo, mestre, doutor e livre-docente em Geografia Humana. É professor titular do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, onde coordena o Laboratório de Geografia Política (Geopo-USP). E-mail: [email protected]

1 MATTOS, Ilmar R.Construtores e herdeiros. A trama dos interesses na construção da unidade política. In: JANCSÓ,István. (Org.) Independência: História e Historiografia. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2005.

2 Ver: CINTRA, Jorge Pimentel. O Mapa das Cortes: perspectivas cartográficas. In: Anais do Museu Paulista, v. 17, número 2, 2009.

3 MORAES, Antonio Carlos R. Geografia Histórica do Brasil. São Paulo: Annablume, 2009.

4 ESCOLAR, Marcelo. Crítica do discurso geográfico. São Paulo: Hucitec, 1996.

5 Comunidades imaginadas. Reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993.

6 Como exemplo arquétipo, entre outros, ver: FIGUEIRÔA, Silvia F. M. Ciência e tecnologia no Brasil Imperial – Guilherme Schüch, Barão de Capanema (1824-1908). Varia História, v. 21, n. 34, 2005.

7 Ver: HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma. A modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

8 Ver, por exemplo: LANDER, Edgardo. (Org.) La Colonialidad del Saber: Eurocentrismo y ciências sociales. Buenos Aires: CLACSO, 2003.

9 TREECE, David. Exilados, aliados, rebeldes. O movimento indianista, a prática indigenista e o Estado-nação imperial. São Paulo: Nankin/Edusp, 2008.

10 SÁ, Magali R., O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segunda metade do século XIX. História, Ciência, Saúde. Manguinhos, v. VIII (suplemento), 899-924, 2001.

[ Artigo recebido em 09/2010 | Aceito em 11/2010 ]

Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 5, suplemento, p. 9-11, 2012

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Do veneno ao antídoto: Barbosa Rodrigues e os estudos e controvérsias científicas sobre o curare

Frompoisontoantidote:BarbosaRodriguesandthestudiesand

scientificcontroversialaboutcurare

MAGALI ROMERO SÁ

Casa de Oswaldo Cruz | Fiocruz

RESUMO João Barbosa Rodrigues iniciou em 1878 uma série de debates públicos com o médico e naturalista João Batista de Lacerda, mediado pela Academia de Medicina do Rio de Janeiro, sobre a origem do veneno utilizado pelos índios amazônicos em suas flechas e seu provável antídoto. Utilizando-se de material trazido da Amazônia pelos naturalistas viajantes do Museu Nacional, Lacerda atribuiu poderes curarizantes a uma espécie botânica de menispermácea, contrariando a hipótese de Barbosa Rodrigues de que somente espécies de estricnos eram as responsáveis pela toxidade do curare. Barbosa Rodrigues passou três anos em comissão botânica do governo imperial na região amazônica onde adquiriu seus conhecimentos sobre o curare. Defendia, como alguns viajantes dos séculos XVII e XVIII, que o cloreto de sódio era utilizado como antídoto do curare, fato controverso no meio científico da época e não aceito por Batista de Lacerda. O presente trabalho resgata os estudos sobre o curare, realizados por Barbosa Rodrigues, ressaltando o lado polêmico do naturalista e a repercussão de seus experimentos entre os seus pares e na imprensa da época.

Palavras-chave Barbosa Rodrigues, controvérsias científicas, curare, Amazônia, Museu Nacional, João Batista de Lacerda.

ABSTRACT João Barbosa Rodrigues initiated in 1878 a series of public debates with the physician João Batista de Lacerda, intermediate by the Medical Academy of Rio de Janeiro, on the origin of the arrow and dart poisons used by the Amazonian Indians and its probably antidote. Using material brought back from Amazonia by traveling naturalists of Museu Nacional, Lacerda attributed curarizing powers to a botanical specie of Menispermaceae, in opposition to Bar-bosa Rodrigues hipothese that only Strychnos species were responsible for the curare toxicity. Barbosa Rodrigues spent three years in a botanical commission in the Amazon region financed by the Imperial government, where he acquire his knowledge on curare. As XVII and XVIII travelers, he advocate that sodium chloride was used as an antidote to curare. A polemic fact not accepted by scientists and João Batista de Lacerda. The present article brings to light the studies on curare written by Barbosa Rodrigues emphasizing the polemic side of the Brazilian naturalist and the repercussion of his experiments among his peers and the press at the time.

Keywords Barbosa Rodrigues, scientific controversy, curare, Amazônia, Museu Nacional, João Batista de Lacerda.

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Introdução

No início do século XX, o naturalista brasileiro João Barbosa Rodrigues publicou em Bruxelas o trabalho “L’uirarêry ou Curare. Extraits et complément des notes d’um naturaliste Brésilien”. Nele, o botânico brasileiro expôs suas pesquisas sobre o curare, iniciadas quando de sua primeira viagem ao vale do Amazonas, em 1873, e a disputa que manteve com o médico e pesquisador do Museu Imperial de História Natural, João Batista de Lacerda, em fins do século XIX, sobre o antídoto do curare.

O poderoso veneno dos indígenas da América do Sul gerou grande curiosidade nos primeiros exploradores que chegaram à região do vale do Amazonas e Orenoco nos séculos XVI e XVII. Desconhecido dos europeus, o veneno de ação paralisante, utilizado por algumas tribos indígenas nas pontas das flechas e dardos lançados pelas zarabatanas para a caça, era fabricado em um ritual conduzido pelo curandeiro da tribo, com a utilização de diferentes tipos de lianas e raízes em sua composição, o que levou a intensa especulação sobre que espécie seria responsável pela toxidade do veneno. Um dos primeiros exploradores que entraram em contato com o curare e descreveu os seus efeitos foi o espanhol Alonso Perez de Tolosa durante exploração do lago Maracaibo, na Venezuela, em 1548. Cristóbal Diatristán de Acuña, padre jesuíta que acompanhou Pedro Teixeira em sua exploração do Amazonas em 1639, descreveu o veneno no relato de sua viagem publicado em Madri, em 1641.1 Cronistas que nunca haviam viajado para o Novo Mundo também relataram o veneno mortal dos índios, como o italiano Pietro d`Anghiera que, vivendo na Espanha e utilizando-se de documentos e descrições pessoais dos exploradores que estiveram nas Américas, enviava cartas para a Itália descrevendo o que ouvia. Essas cartas foram parcialmente publicadas em 1504, 1507-8, e todos os seus escritos reunidos na obra De Orbe Novo. publicada em 1516, na qual descreve a técnica dos selvagens em usar arco e flechas envenenadas2 (McIntyre, 1947, p. 5-6). 3

Lawrence Keymis, comandante da expedição de Walter Raleigh à Guiana em 1596, relacionou, em sua narrativa de viagem, as ervas venenosas utilizadas pelos indígenas, e foi o primeiro a usar o termo “ourari”.4 O explorador francês Charles Marie de La Condamine, em sua viagem pelo Amazonas em 1743, conseguiu dos índios ticunas flechas envene-nadas, com as quais fez demonstrações em galinhas, ao chegar a Caiena, para o comandante da colônia, os oficiais e o médico do rei. Repetiu a experiência para vários professores quando regressou à Europa, mais precisamente em Leiden, na Holanda. La Condamine (1992 [1745], p. 121-122)5 descreveu o veneno como “um extrato produzido por meio de fogo, do sumo de diversas plantas, e particularmente de certas lianas onde entravam mais de trinta espécies de ervas ou raízes na preparação do veneno”, não especificando as espécies usadas. Outros viajantes, posteriormente, descreveriam, com mais precisão, o preparo do curare e mesmo identificariam as plantas usadas no fabrico do veneno, como Alexander von Humboldt e Aimé Bonpland. Humboldt, em sua Voyage aux régions équinoxiales du nouveau continent, publicada em 1816, relatou em detalhes a preparação do veneno, a qual presenciou quando em Esmeralda, no Orenoco.

Estaoperaçãoquímica,aqualovelhohomem(índio)deumuitaimportância,nospareceserextrema-mente simples.A liana (bejuco)usadaemEsmeraldaparaapreparaçãodo venenopossui omesmonome daquele usado nas florestas de Javita. É o bejuco de Mavacure, coletada em grande abundân-cia a leste da missão, no banco esquerdo do Orenoco, além do rio Amaguaca, nas trilhas monta-nhosas e rochosas de Guanaya e Yumariquin. Apesar do feixe de bejuco o qual nós encontramos nacabanado índioestar inteiramentesem folhas,nósnão tivemosdúvidadesereledamesma famíliados estricnos ((próximo ao Rouhamon de Aublet), o qual nós examinamos na floresta de Pimichin.(Humboldt,inMcIntyre,ibid.,p.28)

Durante o século XIX, o interesse científico pelo curare se intensificou, principalmente após os relatos de Humboldt que, juntamente com Karl Friedrich Philip von Martius e os irmãos Richard e Robert Schomburgk, atribuíram a toxidade do veneno às plantas do gênero Strychnos. Martius e Johann Baptist von Spix assistiram aos Juris, nas margens do rio Japurá, prepararem o curare com a casca da Strychnos [castelneana], à qual juntavam a de cipós que denominavam imene (Abuta imene), além de raiz de piperácea, Arthante geniculata, etc. Richard Schomburgk descreveu em detalhes

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a preparação do curare, enumerando, pelo menos, três espécies diferentes de Strychnos na preparação do veneno (McIntyre, ibid., p. 33). Já Francis de la Porte Castelnau, que chefiou a expedição que o governo francês enviou à América do Sul entre 1843 e 1847, desceu o Amazonas vindo de Lima e identificou no curare fabricado pelos índios Ticunas, além da Strychnos castelneana, outra espécie do grupo das menispermáceas, a Abuta caudicans, que consideraria a principal responsável pelo efeito curarizante. Para ele, essas duas espécies eram os principais constituintes do curare daquela tribo indígena, tido como um dos mais ativos de todos quantos eram preparados no vale do Amazonas.6

Oswaldo Brasil e João Campos, em seu artigo sobre Lacerda e a origem botânica do curare,7 publicado em 1951, chamam a atenção para a presença de animais venenosos na mistura elaborada pelos índios, levando alguns viajantes a atribuir a eles a toxidade do veneno.

Alguns naturalistas também faziam distinções entre os curares de acordo com os potes utilizados no armazena-mento, como os tubos de bambu, potes de barro ou cabaças.

Um dos primeiros progressos para o entendimento das plantas que compõem o veneno, veio de Bogotá, em 1828, no trabalho desenvolvido pelos pesquisadores franceses: o químico Jean-Baptiste Boussingault e o médico François Desire Roulin. Em 1822, Simon Bolivar incumbiu a Francisco Antonio Zea, ministro da Colômbia na França, contratar professores para um centro de ensino superior que pretendia estabelecer na Colômbia, com o objetivo de desenvolver a história natural do país. Zea consultou Alexander Humboldt, que indicou Boussingault e Roulin.8 Quando em Bogotá, os dois desenvolveram pesquisas químicas com o curare e demonstraram que este não possuía estricnina, mas um princípio ativo solúvel em água e de difícil cristalização (Marini-Bettòlo, 1973).9

Pouco avanço houve em relação à química do curare desde as pesquisas iniciadas em Bogotá, até que o químico alemão Rudolf Boehm isolou, em 1886, um alcaloide quaternário extremamente tóxico, que denominou tubocurarina, além de outros dois terciários fisiologicamente inativos. Assim, Boehm formulou uma classificação empírica sobre as variedades de curare, baseada, essencialmente, nos recipientes em que as mesmas estavam contidas. Pesquisadores passaram, então, a utilizar o método classificatório de Boehm até as primeiras décadas do século XX. Segundo Carneiro, esse método não apresentava qualquer base científica e era desprovido de qualquer fundamento botânico, químico ou fisiológico (Sá, 2004, p. 53).10

As pesquisas brasileiras sobre o curare

Na segunda metade do século XIX, naturalistas brasileiros tentaram determinar a composição botânica do curare. Em 1872, João Barbosa Rodrigues chegou à Amazônia, comissionado pelo governo imperial, para fazer levantamento das espécies de palmeiras da região. Durante os dois anos e meio que passou na região, o botânico brasileiro viven-ciou inúmeras experiências que foram utilizadas durante toda a sua carreira. Acompanhado de um servo, Barbosa percorreu o interior da região coletando espécimes de orquídeas e palmeiras. Aproveitava a sabedoria popular para fazer anotações importantes quanto à utilização da flora local na medicina, na culinária e habitação, principalmente em relação às palmeiras; fez coletas em sítios arqueológicos e geológicos e aprendeu com os indígenas a arte do curare. Barbosa Rodrigues explorou, ainda, os rios Capim, Tapajós, Trombetas, Urubu e Jatapu, e Jamundá, tendo publicado o resultado de sua exploração em cinco relatórios, entre 1875 e 1878. Barbosa Rodrigues aprendeu a feitura do curare com uma índia miranha e constatou que os estricnos seriam responsáveis pela curarização e a morte (B. Rodrigues, 1903, p. 6-11).11

Alguns anos após Barbosa Rodrigues ter retornado ao Rio de Janeiro, em 1878, foram enviados ao vale do Ama-zonas os naturalistas viajantes do Museu Imperial Carl August Wilhelm Schwacke12 e Clément Jobert, com o objetivo de reunir coleção botânica para a instituição. Durante os meses que passaram na região, os dois naturalistas assistiram à preparação do curare pelos índios ticunas, no alto Solimões, próximo às fronteiras do Peru, e identificaram as plantas principais que entravam na composição do veneno: as denominadas pelos indígenas como “uirari” entravam em maiores

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proporções, e as “icu”, identificadas por Schwacke como Strychnos castelneana e Anomospermum grandifolium Eichler. Os naturalistas do Museu Imperial trou-xeram, além de potes de curare, caules de Anomospermum e de outras espécies para futuras experiências. Em experiência, alguns anos mais tarde, com o extrato fluido de Anomospermum, o médico João Batista de Lacerda demonstrou, pela primeira vez, os efeitos curarizantes dessa espécie vegetal, comprovando as observações de Schwacke e Jobert.13

Lacerda passou a defender a to-xidade do curare às espécies de menis-permácea após realizar experiências com espécies de Strychnos dos arredores do Rio de Janeiro (S. triplinervia e Strychnos gardneri) e não conseguir comprovar nenhum efeito paralisante. Seu primeiro trabalho com Strychnos triplinervia foi pu-blicado em nota, no Jornal do Commercio de 24 de agosto de 1878. Além de negar a toxidade ao Strychnos, afirmou que não

considerava o cloreto de sódio como antídoto do curare. A publicação do trabalho de Lacerda foi interpretada por Bar-bosa Rodrigues como uma provocação a ele e às ideias que defendia. Para Barbosa, eram as espécies de Strychnos as responsáveis pela toxidade do curare, e o cloreto de sódio, o único antídoto para o veneno dos índios. Barbosa estava prestes a fazer uma demonstração sobre o valor do sal como antídoto para os membros da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e Lacerda tinha conhecimento disso.

Sentindo-se desafiado, o extremamente combativo João Barbosa Rodrigues iniciou uma grande polêmica com João Batista de Lacerda, mediada pela Academia Imperial de Medicina, com uma série de demonstrações públicas para comprovar a sua tese.

A disputa travada entre Barbosa Rodrigues e João Batista de Lacerda

No dia seguinte à publicação do artigo de Lacerda, em 25 de agosto, ocorreu a primeira demonstração para comprovar o valor do sal como neutralizador do curare. Realizada na casa de Barbosa Rodrigues, situada na Rua Haddock Lobo, n. 43, a sessão ocorreu na presença dos médicos Gama-Lobo, Fernando Francisco da Costa, Ferraz, Domingos José Freire, Agostinho José de Souza-Lima, Joaquim Monteiro Caminhoá, Luís de Souza Lobo, João Baptista dos Santos, Samuel Brandão de Souza-Barros, Henrique Carlos Feldhagem, Belfort e José Jeronymo de Azevedo Lima, Theodore Peckolt.14

Barbosa Rodrigues iniciou a demonstração utilizando uma flecha com curare fabricado pelos índios uaupes em uma incisão feita num porquinho da índia, e, após alguns minutos, o animal já demonstrava sinais de paralisia, vindo a morrer.

A segunda experiência consistiu em aplicar uma injeção hipodérmica na cobaia e, em seguida, aplicar urina retirada da bexiga da cobaia morta. Dezoito minutos depois, o animal se encontrava sem nenhum sintoma de envenenamento.

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Figura 1 Strychnos spp. Hans Solereder – 1892-1895. Loganiaceae In: ENGLER, Prantl.

(Ed.) Die natürlichen Pflanzenfamilien [...] IV. Teil. 2. Abteilung Leipzig, W. Engelmann.

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A terceira experiência foi realizada em uma cobaia jovem, aplicando uma flecha envenenada em incisão feita na coxa direita. Após trinta minutos, estando o animal completamente anestesiado, foi aplicado sal de cozinha dissolvido em água na ferida e na boca, além de água fria na testa. O animal se recuperou completamente.

Barbosa Rodrigues realizou mais três experiências aplicando o sal de cozinha como antídoto. Duas foram bem-sucedidas; na terceira, não conseguiu recuperar o animal, tendo concluído que, após completa paralisia, era impossível combater os efeitos do veneno.

A segunda demonstração ocorreu em 01 de setembro, também em casa de Barbosa Rodrigues, agora na presença de um número maior de médicos – lentes da Faculdade de Medicina e membros da Academia Imperial de Medicina – além de curiosos. Entre eles, encontravam-se João Baptista de Lacerda, Nicolau Moreira, Costa Ferraz, Souza Lobo, Joaquim da Rocha, Joaquim Monteiro Caminhoá, Nuno de Andrade, José Jeronymo Azevedo Lima, Furquim Werneck, Baptista dos Santos, Henrique Carlos Fildhagen, Alfredo de Almeida Rego, Henrique Schutel.

Barbosa Rodrigues, antes de iniciar, fez questão de ler para os presentes o relatório de demonstração anterior, realizada com sucesso em 03 de agosto de 1878, na casa de Guilherme Schüch de Capanema e na presença do Dr. Henrique Schutel. Barbosa mostrava, assim, aos presentes, o apoio que vinha recebendo de seu amigo e protetor Guilherme de Capanema.15

A experiência começou com uma injeção de dois miligramas de curare em um porquinho da índia e, em seguida, uma aplicação intradérmica de uma solução de sal de cozinha em 20 gotas de água, tendo o efeito do veneno sido neutralizado.

A experiência seguinte consistiu em infeccionar o animal com a mesma dose de veneno misturada com a mesma quantidade de água salinizada. O animal, após receber a mistura, não apresentou sinal de envenenamento. A terceira experiência foi injetar em outro porquinho da índia somente o veneno, tendo o mesmo falecido em minutos. Na quarta experiência, Barbosa Rodrigues utilizou uma flecha envenenada e, após 40 segundos, a flecha foi retirada do animal e, sobre a ferida, colocado o sal. O animal, após apresentar sinais de envenenamento, recuperou-se. Por último, a expe-riência foi realizada em um cachorro, que também foi flechado duas vezes e, após a aplicação do sal, ficou curado.

Bastante impressionados, os médicos presentes convidaram Barbosa Rodrigues a continuar suas experiências na Faculdade de Medicina (O Cruzeiro, 02-09-1878).16

Na ocasião, Barbosa Rodrigues clamou para si a prioridade na divulgação do sal de cozinha como o antídoto do curare, tendo o Dr. Costa Ferraz proposto que fosse criada uma Sociedade de Fisiologia Experimental para que se iniciassem experiências com outros venenos e substâncias.17

Batista de Lacerda, presente ao experimento, não quis atestar a experiência feita por Barbosa e convidou a todos os presentes para assistirem a uma demonstração feita por ele no Museu de História Natural. Para ele, o curare utilizado por Barbosa era de baixa toxidade e, em sua experiência, ele utilizaria um curare de alta toxidade depositado na coleção do Museu.

No dia seguinte, na presença de Barbosa Rodrigues e de oito médicos membros da Academia e professores da Faculdade, João Batista de Lacerda e Clément Jobert iniciaram a demonstração nas dependências do Museu.

Barbosa Rodrigues questionou a origem do curare que havia sido escolhido pelos naturalistas do Museu, sendo então convidado por Batista de Lacerda para realizar a experiência, o que recusou. Interpelado por Jobert, iniciou calorosa discussão com o colega francês, apaziguada pelos membros presentes. A experiência finalmente foi iniciada. Fez-se uma incisão na cobaia e colocou-se a flecha envenenada em contato com a ferida. Após alguns segundos, foi introduzido na incisão o sal de cozinha. O animal veio a morrer dezoito minutos depois.

Após nova discussão com Clément Jobert, Barbosa Rodrigues convidou a todos os presentes que o acompanhasse à sala de etnografia, para que fosse escolhido um curare autêntico, e ele mesmo faria a demonstração. Escolhido o material,

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Barbosa iniciou a experiência com a cobaia e, após aplicar o sal de cozinha na incisão contaminada pelo veneno, o animal se recuperou em alguns minutos. Questionado por ter usado um curare que já estava depositado no Museu há mais de vinte anos, Barbosa Rodrigues repetiu a experiência sem utilizar o sal como antídoto, e o animal acabou morrendo.

A demonstração de Barbosa Rodrigues continuou sendo desacreditada pelos pesquisadores do Museu que, em publicação no jornal Gazeta de Notícias, de 09 de setembro de 1978, comunicaram que:

AdmitindocomoperfeitamenteexatososresultadosdasexperiênciasdeCl.Bernard,Reynoso,BalbianteJobert,queprovamnãoserosalmarinhonemumantídotoquímiconemumantagonistadocurare,instituiuodr.LacerdaFilho,comacooperaçãododr.Jobert,umasériedeexperiênciasnoMuseuNacionalparaseverificaraquelesal,assimcomooutrassubstânciaspodemexerceralgumaaçãolocalsobreasferidasenvenenadaspelocurare.Dessasexperiênciasconcluíramoseguinte:

•queosalmarinhoatuandosobreasfibrasmusculareslisasdapeleedosvasosquesedistribuemnotecidocelularsubcutâneo,retardaaabsorçãodocurare;

•quedetodososmeiosqueatuamlocalmente,osalmarinhoéomaisinfiel;

•queoalumen[sic]éumexcelentemeiolocalquedámuitosbonsresultadosenquantoovenenonãotementradonacirculação;

•queosresultadosaparentementebrilhantes,obtidosemoutrasexperiênciascomosalmarinhoexpli-cam-seporumprocessooperatóriodefeituosoeabsolutamentediferentedaquelequesedáemcondiçõesnaturaisecomuns.

Chegandoaestasconclusões,baseadasemfatosnumerosos,osdrs.LacerdaFilhoeJobertdãodesdejáporterminadaestaquestãodeantidotismodosalmarinho.18

O médico Nuno de Andrade, que vinha acompanhando os experimentos de Barbosa Rodrigues, saiu em sua defesa e publicou declaração, no Jornal do Commercio de 10-09-1878,19 de que as conclusões de Lacerda eram sem fundamento e insustentáveis. Lacerda decidiu esclarecer em definitivo a questão do antídoto do curare e publicou no jornal O Cruzeiro, e no Progresso Médico de 12 e 15 de setembro, longo artigo, no qual expôs que o cloreto de sódio era uma antiga tradição indígena, propagada na Venezuela, Guianas e Brasil, e combatida por Claude Bernard, após sérias e nobres experiências. Referindo-se indiretamente a Barbosa Rodrigues, dizia que “recentemente, essa crença tinha um ardente defensor em um dos exploradores da região amazônica e que este havia realizado alguns experimentos demonstrativos [com o sal] com aparente sucesso” (Lacerda, 1878. In: Barbosa Rodrigues, 1903).20 Expôs, então, em detalhes, as experiências que realizou, descrevendo todos os efeitos fisiológicos produzidos pelo curare e a inocuidade do sal, que tinha somente a propriedade de retardar a absorção do veneno. Concluiu que não havia ainda sido descoberto o antídoto do curare como queria fazer acreditar Barbosa Rodrigues.

Desde a descoberta do curare, sempre houve grande interesse em se conhecer seu antídoto. O viajante italiano Gonzalo Fernandez de Oviedo descreveu em seu relato de viagem, publicado em 1530, que, nas missões, asseguravam aos viajantes europeus que eles não precisavam mais temer as flechas mergulhadas em curare, se tivessem um pouco de sal em suas bocas.21

Para Condamine, era o açúcar que funcionava como antídoto. Humboldt, em seu diário de viagem, também dizia que, nos bancos do Amazonas, a preferência era para o açúcar e que o sal não era conhecido pelos índios da floresta. Descreveu que não havia cura para o curare fresco, bem concentrado, deixado por um longo período na ferida e entrando livremente na circulação. Porém, relatou que, entre os [curares] específicos empregados nos bancos do Orenoco, o antídoto mais celebrado era o muriato de soda [cloreto de sódio]. A ferida era esfregada com sal, e o produto também era tomado internamente. Humbodt afirmava não estar completamente convencido da eficácia do sal e afirmava que os experimentos efetuados pelos franceses Alire Raffeneau-Delille, botânico e médico, e François Magendie, fisiologista, não comprovavam a sua eficácia.

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Em 1855, o fisiologista francês Claude Bernard (professor da cadeira de Fisiologia do Colégio de França) iniciou uma série de experimentos com curare, esclarecendo muitas dúvidas sobre a atuação do veneno e de seu antídoto. Como enfatizado por Michael Radcliffe Lee (2005, p. 88) Bernard foi a grande influência nos estudos sobre o curare no século XIX.v Como um dos resultados de suas pesquisas, Bernard provou que a respiração artificial era o único meio eficaz para recuperar os efeitos do curare. Os resultados de suas pesquisas foram:23

•Paraqueovenenocauseefeito,énecessárioentrarnacorrentesanguínea.

•Aabsorçãodocurarepeloestômagoeintestinoépobreevariável.

•Ocurareéumcristaloideepassapordiáliseatravésdeumamembranasemipermeável.

•Amorteécausadapelafalênciarespiratória,semconvulsõesesemdor.Ocoraçãocontinuaabaterapóscessararespiração.Recuperaçãopoderáocorrer,searespiraçãoartificialformantidaporumlongoperíodo.

•Aaçãoessencialdovenenoésobreonervomotor,enquantoosnervossensoriaispermanecemnãoafetados.

•Osnervosvoluntáriosdasextremidades sãoosmais sensíveisaoveneno, seguidosporaquelesdosmúsculostorácicoseentãopelosnervosfrênicosdodiafragma.

•Curareeestricninaatuamemdiferenteslugares:curare,perifericamente,eestricnina,centralmente.

•Ambos,onervociáticoeomúsculogastrocnêmico,retêmsuashabilidadesparafuncionarapósovenenoseraplicado.Dessaforma,olocaldeaçãodeveacontecernaáreadejunçãoentreosdois.

No auge da discussão travada entre Rodrigues e Lacerda, chegou ao Rio de Janeiro, em meados de 1878, um jovem fisiologista francês, Louis Couty, contratado para trabalhar na Escola Politécnica para lecionar Biologia Industrial. Alguns meses após sua chegada ao Brasil, Couty entrou em contato com Batista de Lacerda e engajou-se nas pesquisas sobre curare que estavam sendo realizadas no Museu Imperial. Clemente Jobert havia retornado para a França em fins de 1878.24 O primeiro resultado da parceria entre Couty e Lacerda saiu publicado em 1879, no Comptes Rendus de l´Academie des Sciences de Paris, no qual os pesquisadores expuseram as pesquisas que estavam desenvolvendo para verificar se era nas Loganiaceae (Strychnos) ou nas Meniospermaceae (Anomospermum) que se encontrava o princípio ativo do curare. As experiências que realizavam no Museu eram assistidas pelo imperador e outros membros da comunidade científica da época com grande sucesso. Entusiasmado com os resultados que os pesquisadores vinham obtendo, o imperador apoiou formalmente a criação do primeiro Laboratório de Fisiologia Experimental anexo ao Museu, sendo instalado oficialmente em 1880.25

A teoria de Barbosa Rodrigues em relação ao antídoto, naquele momento, já se encontrava desacreditada. A polêmica com Lacerda o levou a pedir um veredicto oficial da Academia Imperial de Medicina, entendendo que somente ela teria competência para resolver a questão. Rodrigues confiava nos seus resultados e na resposta positiva que tinha recebido dos membros da Academia após a realização de suas experiências. Porém, após alguns adiamentos, qual foi a sua surpresa ao ler o resultado do veredicto da comissão nomeada pela Academia, publicado no Jornal do Commercio de 03 de dezembro de 1878:26 após uma longa exposição de motivos, em que eles corroboravam indiretamente com os argumentos expostos por Batista de Lacerda, os acadêmicos concluíram que o cloreto de sódio não era considerado um neutralizador dos sintomas manifestados após o envenenamento pelo curare.

Indignado e frustrado, Barbosa Rodrigues compareceu à sessão extraordinária na Academia, de 03 de fevereiro de 1879, e discorreu longamente defendendo a sua teoria.

Rodrigues entendia a decisão dos acadêmicos como uma defesa da ciência oficial, já que ele não tinha nenhuma filiação institucional e não era médico de formação. Tentava descredenciar Batista de Lacerda em seus conhecimentos etnográficos e botânicos, valendo-se da sua experiência na região amazônica com tribos indígenas e a flora da região. Nacionalista, rejeitava a opinião dos pesquisadores estrangeiros como Jobert e Schwacke por entender que os mes-

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mos só haviam passado rapidamente pela Amazônia e não tinham adquirido conhe-cimento suficiente dos costumes, língua e diversidade florística da região.27

Conclusão

Ao ser nomeado pelo governo im-perial para o seu primeiro cargo institucio-nal como diretor do Museu Botânico do Amazonas em 1884, Barbosa Rodrigues projetou uma instituição moderna com desenhista, fotógrafo, um laboratório químico para a análise dos princípios ativos das plantas da Amazônia e uma revista científica, denominada por ele Vellosia, para divulgar os trabalhos da nova instituição.28

O curare continuou a ser objeto de suas pesquisas e, no primeiro número da nova revista, em 1888 , publicou um estudo taxonômico sobre as estricnos, de-nominado “Década de Strychnos Novos”, em que descreveu dez espécies novas de Strychnos, continuando a atribuir somente a essas espécies a toxidade do veneno. Esse trabalho foi republicado em 1891, quando já estava de volta ao Rio dirigindo o Jardim Botânico do Rio de Janeiro.29

Em contestação às pesquisas que Lacerda continuava a realizar, com posição

contrária à sua sobre a origem botânica do curare, Barbosa Rodrigues publicou, em 1903, os estudos etnográficos que fez sobre o temível veneno indígena e toda a disputa travada com Batista de Lacerda, divulgada nos jornais de época. Esse foi o último trabalho de Rodrigues sobre o curare.

Batista de Lacerda, que defendia ardorosamente a ação curarizante às menispermáceas (Chondodendron), con-firmou, em 1909, a toxidade dos Strychnos como defendido por Rodrigues. Em seu trabalho, Lacerda afirmou:

Ocurareéumextratovegetal,compostodeuma,duasoumaisplantas,dasquaissóduassãoverda-deiramenteativas,umadelaspertenceàtribodasStrychneas,famíliaLoganiáceas,outraàfamíliadasMenispermáceas.

Pormaisvariávelquepossaseracomposiçãodestevenenoindígena,hádeencontrar-senelesempreumaStrychneaouumamenispermáceaouambasreunidas,embora,conformeasregiõeseastribos,as

espéciesbotânicasempregadas,querdeumaquerdeoutraplanta,sejamdiferentes.

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Figura 2 Strychnos macrophylla. B. Strychnos rivularia. Barbosa Rodrigues, João. Vellosia,

vol. III, 1891

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Barbosa Rodrigues faleceu em abril de 1909 e não teve a oportunidade de ver reconhecida por Lacerda a veracidade de suas observações etnográficas e botânicas. Barbosa errou ao defender tão intensamente a hipótese do cloreto de sódio como antídoto do curare, hipótese descartada por Claude Bernard desde 1844. Ele não era um fisiologista, mas sim um excelente botânico e etnógrafo. No fim, os dois pesquisadores sempre estiveram certos em relação à origem botânica do curare.

Notas e referências bibliográficas

Magali Romero Sá é doutora em History and Philosophy of Science pela University of Durham (1996). É pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz e professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (COC/Fiocruz), sendo atualmente coordenadora-geral deste programa. É bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq, nível 2. Integra o conselho consultivo da Sociedade Brasileira de História da Ciência (2011-2012) e é membro do conselho editorial do periódico Medical History. E-mail: [email protected]

1 ACUÑA, Cristobal. Nuevo Descubrimiento del Gran Río de las Amazonas. Madrid: Imprenta Del Reyno, 1641.

2 Norman Bisset, em seu artigo sobre War and hunting poisons of the New World, expõe que muitas descrições feitas sobre os efeitos produzidos pelos dardos usados pelos indígenas para combater os invasores não eram, em verdade, devido ao curare, mas sim a outro veneno, já que o curare era utilizado pelas tribos da floresta para a caça, e não para a guerra. BISSET, Norman G. War and hunting poisons of the New World. Part 1. Notes on the early history of curare. Journal of Ethnopharmacology, v. 36, n. 1, p. 1-26, 1992.

3 MC’INTYRE, A. R. Curare, its history, nature and clinical use. Chicago, Illinois: The University of Chicago Press, 1947.

4 KEYMIS, L. A relation of the Second Voyage to Guiana. Perfourmed and written in the yeare 1596. T. Dawson, London. 1596.

5 LA CONDAMINE, Charles-Marie . Viagem pelo Amazonas, 1735-1745. São Paulo- Rio de Janeiro: Edusp, Editora Nova Fronteira, 1992.

6 CASTELNAU, F. Expedição às regiões centrais da América do Sul. Coleção Reconquista do Brasil, v. 217. Belo Horizonte-Rio de Janeiro: Editora Itatiaia. 2000.

7 BRASIL, Oswaldo V.; CAMPOS, João S. Lacerda e a origem botânica do curare. In: João Batista de Lacerda. Comemoração do Centenário de Nascimento

(1846-1946). Museu Nacional, Publicações Avulsas, n. 6, p. 69-71, 1951.

8 Sobre a vinda dos professores franceses para a Colômbia, ver: Mariano Eduardo de Rivero y Ustariz (1798-1857) em http://www.pdvsa.com/lexico/pioneros/mariano.htm.

9 BOUSSINGAULT, Jean-Baptiste; ROULIN, François Desire. Examen chimique du curare, poison des Indiens de l’Orénoqué. Annales de Chimie 39, p.24–37. 1828.

10 SÁ, Magali Romero. Paulo Carneiro e o curare: em busca do princípio ativo. In: MAIO, Marcos Chor. (Org.) Ciência, Política e Relações Internacionais. Rio de Janeiro- Brasília: Editora Fiocruz, Unesco, 2004.

11 BARBOSA Rodrigues, João. L`Uiraêry ou curare. Extraits et Complément des notes d´un naturaliste brésilien. Bruxelles: Imprimerie Veuve Monnom, 1903.

12 Schwacke chegou ao Brasil, em 1873. Em 1874, foi contratado pelo Museu de História Natural como naturalista viajante. Em 1891, deixou o Museu e assumiu a cátedra de Botânica na Escola de Farmácia de Outro Preto, onde permaneceu até sua aposentadoria. Voltou para a Alemanha, onde faleceu em 1904.

13 Brasil & Campos, 1951, p. 70.

14 Barbosa Rodrigues, 1903, p. 88.

15 Capanema era considerado o mecenas de Barbosa Rodrigues. Polemista tanto quanto Barbosa, Capanema não simpatizava com muitos pesquisadores do Museu de História Natural e sempre apoiava Barbosa em todas as querelas que envolvessem os pesquisadores dessa instituição. Ver: SÁ, Magali Romero. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na 2ª metade do século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. VIII (suplemento), p. 899-924, 2001.

16 O Cruzeiro de 02 de setembro de 1878. Ata da reunião de 01 de setembro de 1878 para realização das experiências de Barbosa Rodrigues sobre o curare.

17 BARBOSA Rodrigues, João. L`Uiraêry ou curare. Extraits et Complément des notes d´un naturaliste brésilien. Bruxelles: Imprimerie Veuve Monnom, 1903, p. 96.

18 Gazeta de Notícias de 09 de setembro de 1878. Declaração de Lacerda encerrando a questão por não ter Barbosa Rodrigues provado suas asserções.

19 Jornal do Commercio de 10 de setembro de 1878. Declaração do Dr. Nuno de Andrade de que as conclusões de Lacerda são sem fundamento e insustentáveis.

20 O Cruzeiro de 12 de setembro de 1878. Artigo de João Batista de Lacerda sobre os pretensos antídotos do curare.

21 OVIEDO, Gonzalo Fernandez. Sommario della storia naturale delle Indie (La memoria). http://www.parodos.it/anapliromatica/bios/4.htm

22 LEE, Michael Radcliffe. Curare: the South American arrow poison. Journal Royal College of Physicians of Edinburgh, v. 35, p. 83–92, 2005.

23 BERNARD, Claude. New Experiments on the Woorara Poison. Lancet, v. I, p. 298–300, 1851.

24 Jobert, ao chegar de volta à França, apresentou, na sessão de 14 de dezembro de 1878 da Sociedade de Biologia de Paris, palestra sobre sua viagem à Amazônia e a demonstração sobre a fabricação do curare, que teve a oportunidade de presenciar. Barbosa Rodrigues, indignado ao tomar conhecimento

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da palestra de Jobert, publicada no Comptes Rendus e reproduzida no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, escreveu uma longa carta refutando todas as observações do naturalista francês.

JOBERT, Clément. Sur la préparation du curare. Comptes Rendus des Séances Hebdomadaires de l’Academie des Sciences. Paris, n. 86, p. 121-122, 1978.

Gazeta de Notícias de 23 de fevereiro de 1879. Carta de Barbosa Rodrigues contestando as observações de Clément Jobert.

25 DIAS, Mario Vianna. Lacerda Fisiologista. In: João Batista de Lacerda. Comemoração do Centenário de Nascimento (1846-1946). Museu Nacional, Publicações Avulsas, n0 6, p. 50, 1951. O laboratório ocupava dois salões no pavimento térreo do Museu [situado, na época, na Praça da República].

26 A comissão era composta pelos médicos Fernando Francisco da Costa Ferraz, Dr. Carlos Frederico dos Santos Xavier de Azevedo e o farmacêutico Augusto César Diogo.

27 O relatório da comissão nomeada pela Academia foi publicado no Jornal do Commercio de 03 de dezembro de 1878 e no Annaes Brazilienses de Medicina, v. XXX, 1878-70.

O discurso de Barbosa Rodrigues proferido na Academia foi publicado nos Annaes Brazilienses de Medicina, v. XXXI, 1879.

28 Regulamento do Museu Botânico do Amazonas. Regulamento n. 49, de 22 de janeiro de 1884. Publicado na Vellosia, v. II, p. 81-86.

29 No ano de 1883, Barbosa Rodrigues foi convidado pelo governo Imperial para dirigir o então recém-criado Museu Botânico do Amazonas. Responsável pela elaboração básica do Museu, o botânico brasileiro apresentou um plano ambicioso, no qual os estudos de Botânica aplicada à Medicina e indústria mereceram lugar de destaque. Durante os sete anos em que funcionou o Museu Botânico, Barbosa Rodrigues empreendeu inúmeras excursões científicas e dedicou-se aos estudos etnográficos, estudando as línguas indígenas, além de suas lendas e mitos. Com a proclamação da República, foi nomeado diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro em 1890, instituição que dirigiu por 19 anos até a sua morte, em 1909.

[ Artigo recebido em 10/2010 | Aceito em12/2010 ]

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Saberes e práticas sobre plantas: a contribuição de Barbosa Rodrigues

PlantWisdomandpractices:acontributionbyBarbosaRodrigues

ARIANE LUNA PEIXOTO

Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro

REJAN R. GUEDES-BRUNI

Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro

MOACIR HAVERROTH

Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária | Centro de Pesquisa Agroflorestal do Acre

INÊS MACHLINE SILVA

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Departamento de Botânica.

RESUMO João Barbosa Rodrigues (1842-1909) teve rica experiência entre diferentes sociedades. Fez estudos e ilustrações detalhados de plantas e dos ambientes onde ocorriam. Aliando essas experiências às leituras, ex-perimentos em laboratórios e trocas com seus pares, defendeu a hipótese de que as denominações das plantas não eram fruto da união arbitrária de características, mas de uma lógica apoiada em observações aceitas e le-gitimadas pelos nativos, que seguiam um método para classificação das plantas. O tema é detalhado em Mbáe Kaá-Tapyiyetá Enoyndaua, obra aqui contextualizada. No cenário de afirmação de uma ciência brasileira, ele defendia a importância da classificação botânica indígena, cujo entendimento só seria possível pela convivência com os índios, com o entendimento da língua e conhecimentos botânicos.

Palavras-chave Etnotaxonomia, Etnobotânica, classificação botânica, conhecimento tradicional, cientistas brasileiros.

ABSTRACT João Barbosa Rodrigues (1842-1909) had a very rich experience/background from different societies. He prepared detailed papers and illustrations of plants and their habitats. Adding this experience to reading, lab work and exchange with other scientists, Barbosa Rodrigues brought to light the hypothesis that plant names were not a simple junction of their characteristics, but were products of a logical system based on observation, accepted by native Ame-ricans. Thus, they followed a method for plant classification. This idea is detailed in Mbáe Kaá-Tapyiyetá Enoyndaua, the work that the present paper puts into context. In the scenery of Brazilian science, he supported the native botanical classification, and thought that it could only be understood through familiarity with the Indians and their language and botanical knowledge.

Keywords Etnotaxonomia, Etnobotany, Traditional botanical knowledge, Brazilian scientists.

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O botânico Barbosa Rodrigues

João Barbosa Rodrigues (1842-1909), filho de comerciante português e mãe brasileira de ascendência indígena, nasceu no Rio de Janeiro, então capital do Império. Porém, cedo se mudou para a cidade de Campanha, em Minas Gerais, onde viveu até a década de 1850, retornando ao Rio de Janeiro para completar seus estudos. Trabalhou como secretário e professor de Desenho no Colégio Pedro II, onde conviveu com o botânico Francisco Freire Alemão Cysneiros, com o qual aprimorou sua capacidade de observação de estruturas vegetais e seus dons artísticos. Trabalhou ainda como tenente da Guarda Nacional; administrador de uma fábrica de formicida; diretor do Museu do Amazonas e diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Casou-se três vezes e teve 14 filhos. A última esposa, Constança Paca, desem-penhou importante papel em sua trajetória como naturalista, já que, além de tê-lo acompanhado em muitas viagens, também o auxiliou na elaboração de desenhos científicos.1 2 Teve atuação expressiva como cidadão e cientista no seu tempo. Ainda muito jovem, acompanhou Freire Alemão em expedições às serranias do Rio de Janeiro; conviveu com o médico sueco Anders Fredrik Regnell, que residia na cidade de Caldas, em Minas Gerais, que, além de clínico, era coletor e colecionador de plantas; acompanhou o botânico sueco Salamon Eberhard Henschen, pelas serras de Minas Gerais, em 1869, em busca de orquídeas.3 4

Em 1870, na capital do Império, apresentou uma obra tratando de orquídeas brasileiras, em três volumes, com descrições em latim e francês. Até então, era reconhecido como professor de Desenho e não como cientista.5 A obra, apoiada por Guilherme Schünc de Capanema (o barão de Capanema), que, além de cientista, era um colecionador de orquídeas, gerou desconfiança sobre a sua competência na área.6 Um ano depois, apresentou ao imperador um tratado sobre orquídeas do Brasil, afirmando ter sido incentivado em seu trabalho pelos botânicos Freire Alemão e frei Custódio Alves Serrão, solicitando “proteção imperial e permissão para dedicar-lhe a obra”.7 Após muitas polêmicas, houve aprovação de recursos para sua publicação, os quais, entretanto, nunca foram liberados.8

Sob o patrocínio do barão de Capanema, foi comissionado pelo governo brasileiro para explorar o vale do Rio Amazonas, onde permaneceu por dois anos e meio (1872-1874), tendo, entre outros compromissos, o de complementar os estudos sobre palmeiras realizados por Carl Friedrich von Martius. Para Barbosa Rodrigues, era uma oportunidade para se firmar como naturalista. Nesse período, percorreu o baixo Amazonas e alguns de seus tributários, observando, coletando e fazendo anotações sobre a utilização (o saber e o fazer) da flora local na medicina, na culinária e na habi-tação, registrando também os nomes pelos quais as plantas eram conhecidas, dando especial atenção às palmeiras. Além disso, colecionou artefatos indígenas, fósseis, fez anotações sobre as línguas locais e muito mais.9 O herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro tem em sua coleção de exsicatas, nove exemplares coletados por Barbosa Rodrigues no estado do Pará e três no estado do Amazonas, em 1872 e 1873. Em sete desses espécimes, há anotações sobre nomes comuns ou uso nas etiquetas das exsicatas (Figuras 1 e 2).

Em 1883, foi designado pelo governo imperial para dirigir o recém-criado Museu Botânico do Amazonas, em Manaus, do qual foi diretor desde sua abertura até seu fechamento em 1890.10 Nesse período, também fez expedições, observando saberes e fazeres das diferentes sociedades com as quais conviveu e os citou em muitos de seus trabalhos.

Com a proclamação da República, Barbosa Rodrigues foi nomeado, em 1892, diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, cargo que ocupou até a sua morte, em 1909. Empenhou-se em elaborar um projeto integral para o Jardim Botânico, contemplando o arboreto, estufas e viveiros, áreas para experimentos, laboratórios, biblioteca, herbário, escola de Botânica, além de um museu botânico. Sabedor, inclusive pela própria vivência, da importância de expedições de campo para a constituição de coleções representativas da flora brasileira, criou o cargo de naturalista viajante.11 Nesse período, também, trabalhou nas suas anotações de viagens, desenhos e materiais herborizados, consolidando algumas de suas mais importantes obras, entre as quais o Sertum Palmarum Brasiliensium, publicada em 1903, e Mbaé Kaá – Tapyiyetá Enoyndaua (A Botânica – nomenclatura indígena), publicada em 1905, ambas imprescindíveis na compre-ensão da classificação botânica indígena. A convivência com diferentes sociedades humanas, as suas anotações de campo, os exemplares que colecionou bem como a sua experiência com a nomenclatura indígena das palmeiras foram essenciais para a elaboração dessa última obra.12

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Seus estudos sobre palmeiras foram apresentados na obra Sertum Palmarum Brasiliensium,13 na qual trata de 282 espécies e apresenta 174 pranchas ilustrando-as nos ambientes onde ocorrem e, algumas vezes, como são usadas localmente. São, portanto, registros da sua percepção no contexto ambiental e sociocultural.

Barbosa Rodrigues e a etnotaxonomia

Barbosa Rodrigues tinha evidências do uso, pelos indígenas, de um sistema etnotaxonômico com estrutura hie-rárquica de táxons. Suas evidências estavam calcadas em informações recolhidas em suas viagens, quando procurou acompanhar atividades do dia a dia das diferentes sociedades humanas com as quais teve contato, prática pouco comum no fazer científico da época. Utilizando seus conhecimentos sobre taxonomia de palmeiras e outros grupos de plantas, aliando-os ao que era apreendido do saber local, percorreu diferentes ambientes, reconhecendo-os como imprescindíveis na compreensão da classificação botânica indígena. Analisava as plantas e os lugares onde ocorriam levando em conta as divisões espaciais feitas pelos próprios indígenas. O esforço de compreensão e transmissão do saber local perpassa por quase toda a obra do autor, tanto nas iconografias quanto nos textos escritos. Da preocupação com o entendimento do vocabulário indígena resultaram diversas anotações, tanto em publicações quanto em etiquetas de espécimes depositados em herbários. Passados mais de 100 anos, seus dois trabalhos acima referidos são ainda citados em muitas publicações que tratam da etnotaxonomia de plantas. Um tema árduo e ainda pouco trabalhado.

Os espécimes que colecionou e as anotações que os acompanham foram tidos, entretanto, por muito tempo, como perdidos. Dois exemplares foram encontrados por William Rodrigues no herbário do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), e outro, por Gustavo Romero, na coleção do Museu Nacional, Rio de Janeiro.14

Na busca de maiores informações, revisitamos alguns herbários e/ou consultamos as bases de dados disponíveis on line em busca das coletas de Barbosa Rodrigues e anotações de suas etiquetas. Partindo dessas informações, lo-calizamos, no herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, 34 exemplares coletados por ele (Quadro 1), em 14 dos quais há anotações de pertencimento ao Herbário Gustavo Capanema ou à Comissão Capanema. Algumas informações disponíveis nas etiquetas dos exemplares comprovam o empenho de Barbosa Rodrigues em retratar o saber local.

No Sertum Palmarum, já no prefácio, o autor declara que, para as subdivisões dos gêneros das palmeiras, utilizou nomes indígenas empregados pelos nativos (não somente para designar as espécies, como para indicar grupamentos) com o mesmo discernimento que os melhores botânicos. Declara, ainda, que o uso constante que os índios fazem das palmeiras os tornam conhecedores dos caracteres que as distinguem. Sendo assim, eles dão um nome genérico a certo número de espécies que reúne características comuns que expressam esse nome. Segundo Barbosa Rodrigues, graças a essa nomenclatura, os brasileiros e os estrangeiros poderão conhecer mais facilmente as espécies, legitimando, assim, o saber dos indígenas.

Nessa obra, antes das descrições botânicas das espécies, há uma parte denominada “Usage e emploi des palmiers du Brésil”, na qual são descritas, para um grande número de táxons, as formas de uso associadas às partes utilizadas do vegetal. Descreve, por exemplo, que as folhas podem ser usadas para cobrir habitações, fornecer fios para confecção de redes e cestarias em geral; que os brotos servem como palmito, confecção de tipitis e fornecem cera para fazer velas. Revela que, do caule, os índios fazem canoas e zarabatanas para lançar flechas mortais com curare; os frutos servem de alimento, fornecem óleos, sabão, além da confecção de anéis, brincos, etc. Algumas espécies têm raízes usadas como medicinais.

Nessa mesma obra, faz referência e descreve os nomes indígenas atribuídos às espécies. Estes foram, muitas vezes, usados por Barbosa Rodrigues para designar os epítetos específicos, bem como para as seções e subseções de gêneros por ele propostos. Por exemplo, para o gênero Astrocarium, percebeu que existiam naturalmente três divisões (seções). As subseções foram designadas pelos nomes vulgares, tais como, Yauary, Chambira, Mumbaca, Mumbacuçu,

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Quadro 1 Exemplares coletados por Barbosa Rodrigues pertencentes a coleção do Herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, ordenados por data de coleta (RB = Número de registro [tombo]; Coleção HBC = Herbário Brasil Capanema; Coleção CC = Comissão Capanema; No. Col.= Número de coleta de Barbosa Rodrigues).

RB Familia Espécie Estado /LocalidadeColeção

No.Col.

Data de coleta

Nome comume observações

11348 Fabaceae Chamaecrista desvauxii (Collad.) Killip PA, Santarém 54 23.5.1872

186132 Rubiaceae Sipanea PA, Santarém 211 20.6.1872

5229 Fabaceae Inga bullatorugosa Ducke AM, Itaituba (CC) 84 4.7.1872 Ingá

91035 Rubiaceae Sphinctanthus PA, Cachoeira do Apuhy 108 13.8.1872

154967 MenispermaceaeCurarea toxicofera (Wedd.) Barneby & Krukoff

PA, Maloca do Sahy, terra dos Mauhés

70 19.8.1872Timbé =caraape; os índios Mauhés fazem das folhas, torrador para o paricá

374002 Sapindaceae Paullinia cupana Kunth PA, nas terras das Mauhés 98 19.8.1872 Guaraná Medicinal

222151 Lauraceae NectandraPA, Igarapeassú (Santarém)

214 5.10.1872Louro da várzeaEmprega-se a madeira para carvão

5015 Fabaceae Centrosema pubescens Benth. PA, Óbidos (CC) 252 19.11.1872 Flor cor de rosa

5013 Fabaceae Centrosema brasilianum (L) Benth. PA, Óbidos 253 19.11.1872 Flor rosa

11713 Fabaceae Derris spruceana (Benth.) Ducke PA, Óbidos 273 20.11.1872 Turiíva

5332 Fabaceae Tephrosia nitens Benth. AM, Óbidos (CC) 24.11.1872

182824 Malpighiaceae Byrsonima AM 23.6.1873 Muruchi do igapó

4847 Asteraceae Campuloclinium purpurascens (Baker) (Sch. Bip. ex Baker) R.M.King & H.Rob.

MG, São Gonçalo da Campanha (HBC)

15 5.1876

134861 Lauraceae Ocotea glaziovii Mez RJ, Rio Bonito, Sambe 20.7.1876 Com flor

4857Asteraceae Ayapana amygdalina (Lam.) R.M.King &

H.Rob. MG, Serra da Tromba 105 9.1876

91040 Rubiaceae Galianthe angustifolia (Cham. & Schldl.) E.L.Cabral MG, Serra do Iguapé (HBC) 224 9.1876

120413 Solanaceae Brunfelsia uniflora (Pohl) D.Don MG, Cabo Verde (HBC) 261 10.1976

10138 Ericaceae Agarista hispidula (DC.) Hook. ex Nied. MG, Caldas 11.1876 Cor de rosa

8717 Aquifoliaceae Ilex chamaedryfolia Reissek MG, Caldas (HBC) 372 11.1876 Congonha-miuda

14411 Apiaceae Eryngium hemisphaericum Urb. Mathias & Constance MG, Caldas 396 11.1876

4802 Asteraceae Baccharis brevifolia DC. MG, Poços de Caldas (HBC) 460 12.1876

26214 Piperaceae Piper regnellii (Miq.) C.DC MG, Caldas 484 12.1876

26215 Piperaceae Piper mollicomum Kunth MG, Caldas 503 12.1876

4858 Asteraceae Heterocondylus lysimachioides (Chodat) R.M.King & H.Rob.

MG, Caldas, in paludosis (HBC) 582 1.1877

91042 Rubiaceae Galium megapotamicum Spreng. MG, Poços 605 1.1877 Ruivinha

22630 Orobanchaceae Esterhazya macrodota (Cham). Benth. MG, Poços de Caldas, in paludosis (HBC) 638 1.1877

505054 Asteraceae Campuloclinium purpurascens (Baker) R.M.King & H.Rob. MG, Poços de Caldas (HBC) 739 1.1877

4849 Asteraceae Grazielia gaudichaudeana (DC.) R.M.King & H.Rob. MG, Poços de Caldas (HBC) 585 1.1877

4847 Asteraceae Campuloclinium purpurascens (Baker) R.M.King & H.Rob.

MG, Caldas, Campis humidis (HBC) 800 3.1877

22645 Orobanchaceae Melasma stricta (Benth.) Hassl. MG, Poços de Caldas (HBC) 883 3.1877

4847c Asteraceae Campuloclinium purpurascens (Baker) R.M.King & H.Rob. MG, Caldas (HBC) 566 4.1877

183936 Piperaceae Piper aduncum L. MG 1000 5.1877

14400 ApiaceaeEryngium juncifolium (Urb.) Math. & Const.

MG 1024 5.1877

164 Apiaceae Eryngium canaliculatum Cham. & Schltdl. MG 1877

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Ayry, bem como Murumuru. O autor expli-ca que os nomes vulgares são todos de origem Karany (guarany), dá o significado de cada um e observa que esses nomes usados pelos indígenas refletem, de fato, as características observadas, como listado abaixo:

Yauary: fruto cujo tronco vive dentro da água (ua: tronco); y (água). Com efeito, ela cresce na água.

Mumbaca: árvore que expele os fru-tos (mum: expelir, fazer sair); ibac (árvore com fruto). O epicarpo e o endocarpo se rasgam e expelem as sementes.

Airy: corruptela de uáyry, que quer dizer: fruto que dá na água (Uá: fruto); yry (que dá na água). Dos frutos dessa espécie só se aproveita a água, quando eles estão verdes.

Murumuru: é uma corruptela de Moromburu, que significa: muito maldito (moro, prefixo que torna o verbo absoluto); mburu (maldito). Na verdade, toda a planta é coberta por espinhos muito malditos, pois eles são muito venenosos e longos como punhais afiados.

Ao final dessa obra, existe uma re-lação dos nomes vulgares das palmeiras, confirmando a importância destes para Barbosa Rodrigues.

No livro Mbaé Kaá – Tapyiyetá Enoyndaua15 (A Botânica – nomenclatura indígena), Barbosa Rodrigues demonstra mais diretamente que tinha evidências

consolidadas do uso pelos indígenas de um sistema etnotaxonômico com estrutura hierárquica de táxons, como já exposto, em 1903, no Sertum Palmarum. Expõe suas ideias sobre o sistema etnotaxonômico empregado pelos indíge-nas de modo didático, exemplificando-o abundantemente. As suas evidências estavam calcadas também em estudos linguísticos, o que fortalecia a hipótese de que as denominações dadas pelos índios não eram fruto de uma união arbi-trária de características, mas de uma lógica apoiada em observações aceitas e legitimadas pelas tribos, que seguiam um método sintético de classificação tanto do ambiente como das plantas. “Para bem se entrar n’este conhecimento é mister não só saber a lingua como ser também botanista, porque o termo creado e applicado a um vegetal pelo índio é sempre baseado em um estudo da planta e não dado arbitrariamente como o vulgo faz.”

Nessa obra, fundadora da etnotaxonomia nacional, mostra o seu empenho em retratar ao mundo o homem brasileiro e seus saberes. Já na introdução – “A quem ler” –, defende o saber local e o “bom caráter” do indígena:

Figura 1 Curarea toxicofera (Wedd.) Barneby & Krukoff - Fotografia de exsicata do

herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro coletada por Barbosa Rodrigues no estado

do Pará, Maloca do Sahy, terra dos Mauhés, em 19 de agosto de 1872.

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“Quereis conhecer o carater do indio? Ide busca-lo nas selvas, como o fiz, convivei com elles, mas não os julgueis por aquelles que vieram para o nosso meio doutrinados pela cartilha dos regatões e dos gananciosos que faziam outr’ora descimentos” (p.II).

Diz ainda: “Das minhas observações entre índios e tapuyos, ligados pela mesma língua, quer no norte quer no sul do paiz, cheguei a alcançar ver que, por uma chave, uniram caracteristicamente vegetaes, cuja denominação não era arbitraria e sim fructo de observações acceitas e perpetuadas em todo o paiz” (p.III).

A percepção humana sobre agrupamentos biológicos, tanto nas classificações científicas quanto folk (popular), tem como base as similaridades e diferenças compartilhadas pelos agrupamentos, seja de “espécies”, de ambientes ou de paisagens. Em 1905, Barbosa Rodrigues afirmou que “as categorias indígenas de classificação das plantas estão, mais ou menos, de acordo com a taxonomia e a glossologia cientificas, segundo as regras de Linneo”. Considera que os “selvagens, pelo fructo de suas observações, seguiam e seguem um methodo synthetico na classificação das plantas. Designam as espécies por nomes tirados dos caracteres das folhas, das flores, dos fructos, ou de propriedades como o cheiro, o sabor, a dureza, a duração, a cor, o emprego, etc., etc. (...) Denominadas as espécies, as reúnem em gêneros,

Figura 2 Etiquetas de exemplares coletados por Barbosa Rodrigues da coleção de exsicatas do herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

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cujo nome é o da planta mais típica. Formam seções ou famílias. Dessa divisão formam grupos que dividem em ybá (madeiras de lei), ibirá ou muyrá (paus), kaa (ervas) e icipós ou cipós (trepadeiras)” (p.9).

Faz a seguinte referência: “Os índios são muito observadores e, na sua língua, eles têm para as plantas uma classificação bem certa. Eles fazem a botânica à sua maneira, mas ela serve de auxiliar ao botânico. Eles empregam, para designar as plantas, nomes tirados das cores, da duração, da forma, da utilidade, do tamanho; como um botânico, sempre com uma característica servindo como um guia” (p. 19).

A língua de que Barbosa Rodrigues trata é a que ele chama “abanheenga ou nheengatu”, conhecida por Tupy ou Karany, que se estendia de norte a sul do Brasil e servia de elo entre todas as tribos e entre estas e os brancos.16

Informa que, para coleta e uso das plantas, os índios utilizam as florestas virgens (kaá eté), as matas (kaa) e os campos (nhum). As matas de nova aparição (kaapoer) são utilizadas para roças (kó) e plantações (korupaua).

Em relação às partes da planta e seus produtos, apresenta os termos usados pelos indígenas para designá-las. Cita 27 termos e seus produtos, como raiz (çapó), tronco (upi), folha (ob), flor (iboty), galho (takang), fruto (uá, iuá, ybá), semente (ayin), espinho (yu), etc.

Apresenta uma listagem de termos adjetivos na língua indígena, comparando-os ao grego e latim para os estados de caracteres das diferentes partes vegetais. Para a descrição morfológica (forma), cita 10 termos: Akay (pontudo- cuspidatus); Apuau (redondo- rotundus); Peua (chato- planus), entre outros. E exemplifica a composição dos nomes, utilizando espécies botânicas: Caa peua (folha-chata) – Cissampelos pereira Vell.

Em referência às cores, cita também 10 termos: Kuatiar (manchado-maculatus); Pirag, (sanguíneo- rubens), entre outros, exemplificando com espécies, entre as quais Myra yua (pau-amarelo) para Zizyphus joazeiro Mart. Cinco termos foram relacionados ao gosto: Pochy (mau, venenoso- toxicus); Hee (doce - dulcis); Ai (azedo - acidus); Ob (amargo - amarus); Taia ( arde, queima - urens) e, entre os exemplos, cita Kaa roba (planta amargosa) para Jacaranda caroba DC. Para tamanho, fez referência a Açu (grande - magnus); Mirin (pequeno - parvus) e ainda Y, (pequenino - pusilus). Outros termos são usados para direção (3), consistência e textura (13), bem como cheiro (4) e propriedade (2).

Kaá, uá, yuá ou ybá e myra servem de gêneros incertae sedis, em que há dúvida no grupo a que se ligam. Em todos os grupos formados pelos índios, acham-se tais gêneros, assim como a posposição rana (semelhante a oides, affinis ou similis dos botânicos). E exemplifica: Uruku rana (Hyeronima alchorneoides Fr.All.) – parece com Uruku (Bixaceae), mas não é e também Genipá rana (Myrtaceae), que parece com o genipá, mas não é.

Para a formação de um coletivo de plantas, informa que os indígenas empregam o sufixo tyua, tyba, adulterado em tiba, tuba e teua, adicionado ao gênero principal da planta, correspondendo ao al no português: Araçatyba = Araçasal; Umirytyba=Umirisal.

Apresenta exemplos de plantas (etnoespécies e gêneros) reunidos em 36 grupos, correspondentes às famílias botânicas, na conceituação da sua época – as famílias naturais estabelecidas por Jussieu, entre as quais figuram Anno-naceae, Meliaceae, Anacardiaceae, Leguminosae, Passifloraceae e Myrtaceae. Os estudos etnobotânicos serviam para afirmar a sua hipótese de que as línguas dos povos ameríndios partiam de uma só raíz. “Do extremo norte do Brazil ao centro de Matto Grosso, atravez do Paraguay, vemos sempre as plantas, em todas as especies, conservarem o mesmo nome em todos os lugares, mostrando-nos a irradiação da lingua. Tiradas as lettras accrescentadas ou mudadas, temos sempre a pronuncia primitiva e conservada” (p. 35).

As classificações de folk e científica são ambas problemáticas, pois os conceitos que definem os critérios de se-paração e agrupamento perpassam ideologias pertencentes a momentos históricos e conjunturas político-sociais, mas, principalmente, os objetivos e os objetos são inteiramente distintos.17 Não cabe aqui nos determos sobre o histórico das classificações folk ou científicas, um tema inesgotável, nem nas correntes de pensamento que as sustentam. Citamos, entretanto, os trabalhos realizados por Berlin, Breedlove & Raven18 que, na década de 1960, desenvolveram pesquisas em Chiapas, no México, entre falantes da língua Tzeltal, e discutem, entre outros temas, a correspondência entre sistemas

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taxonômicos de folk e o sistema lineano. Esses autores e seus colaboradores coletaram cerca de 10.000 espécimes, correspondendo a cerca de 1.000 espécies e as informações a elas associadas. Definem uma espécie Tzeltal como um táxon que não inclui nenhum outro táxon (táxon terminal). Brent Berlin19 apresentou um modelo de sistema baseado na estrutura hierárquica dos táxons e propôs princípios gerais para sua sistematização, ressaltando que as categorizações etnobiológicas teriam regularidades que persistem além do ambiente local, cultura, sociedade e linguagens. No campo da etnotaxonomia, frequentemente se estabelecem hipóteses para testar os princípios propostos por Berlin.

Os trabalhos etnobiológicos realizados no Brasil que seguiram a linha de investigação etnotaxonômica foram, principalmente, baseados em populações indígenas. Moacir Haverroth,20 estudando os Kaingang, debruçou-se so-bre este tema e aborda a obra de Barbosa Rodrigues. Darrel Posey,21 estudando etnoclassificação de insetos pelos Kayapó-Gorotíre, afirma que os Kayapó dividem seu meio ambiente em “zonas ecológicas”, “subzonas” e “categorias de transição”. Essas categorias estão estabelecidas conforme seus critérios culturais e estão altamente ligadas ao contexto da vida dessa comunidade.

Em populações não indígenas, as abordagens são ainda raras. Entretanto, pesquisas realizadas com peixes, crustáceos e insetos no nordeste brasileiro, entre outros, utilizando-se de diferentes metodologias para estudos etnobiológicos,22 vêm mostrando a riqueza do conhecimento de populações locais sobre classificações etnobiológicas, com utilização de critérios morfológicos e ecológicos, frutos da vivência e do acúmulo de experiências dessas populações. Demonstram como esses conhecimentos podem ser aliados valiosos na conservação das espécies, dos sistemas biológicos e dos saberes e práticas de sociedades humanas em diferentes locais, e essenciais no planejamento do uso sustentável dos recursos naturais.

Barbosa Rodrigues dá indícios, em trechos da sua obra, que, na interpretação do saber sobre as plantas entre indígenas e caboclos, estava calcado em procedimentos metodológicos. “Para bem se achar a etymologia própria dos termos, é necessario conhecer o verdadeiro som do alphabeto, a inflexão da voz e o objeto a que ella se refere; do contrário, veremos traduções que, parecendo exatas, ou mesmo que o sejam, não se ligam ao objeto determinado” (p. 24); dá indícios de caminhadas e perguntas que fazia aos locais, como em “turnês guiadas”, nas quais buscava a confirmação do emprego de plantas e de partes das plantas em artefatos e para outros usos. Entretanto, não se têm, muitas vezes, as plantas como documentos. Os seus desenhos são valiosíssimos como objetos de ciência. As suas obras, particularizadas no campo da etnotaxonomia, constituem objetos para leitura e releitura. Uma observação dada por ele, vinculada a um determinado local ou sociedade, particulariza, assim, uma informação que pode, em si, motivar um ensaio, um experimento a ser feito em nosso tempo ou pelas futuras gerações.

Em suas viagens, Barbosa Rodrigues recolheu informações e procurou acompanhar atividades do dia a dia das diferentes sociedades humanas com as quais teve contato. A importância dada às observações e práticas dos nativos, em suas expedições pela Amazônia e em outras regiões do país, o retratam como um dos principais atores no cenário de afirmação de uma ciência genuinamente brasileira. Terminamos com um parágrafo da obra que brevemente tratamos à guisa de ilustrar as linhas de pensamento às quais esse grande cientista brasileiro se filiava:

“Não sendo meu fim dar a nomenclatura indígena da flora brasileira, e apenas mostrar quanto o índio é observador, perspicaz e intelligente e quanto a sua classificação botanica está, mais ou menos, de accordo com a taxonomia e a glossologia scientificas, segundo as regras de Linneo, não apresentei sinão exemplos que comprovem minhas asserções. Estes exemplos poder-se-iam alongar, mas para que? Os que apresento são mais que sufficientes”.

Agradecimentos

À Rosangela S. Cunha, técnica do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, pelo prestimoso auxílio na busca das exsicatas coletadas por Barbosa Rodrigues na extensa coleção do herbário; a Erika von Sohsten S. Medeiros e Isabel M. R. Oliveira pelo auxílio no tratamento das imagens das exsicatas; a Flavio L. Peixoto e Dean Berck pela leitura do texto e versão do abstract.

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Notas e referências bibliográficas

Ariane Luna Peixoto é doutora em Biologia Vegetal pela Unicamp, professora titular aposentada da UFRRJ, pesquisadora associada do JBRJ e bolsista do CNPq. É professora no Programa de Pós-graduação em Botânica da Escola Nacional de Botânica Tropical/JBRJ e no Programa de Pós-graduação em Biodiversidade Tropi-cal do Centro Universitário Norte do Espírito Santo/Ufes. E-mail: [email protected]

Rejan R. Guedes-Bruni é graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Santa Úrsula, mestre em Botânica pela UFRJ e doutora em Ecologia pela Univer-sidade de São Paulo. É pesquisadora titular do Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e coordenadora do Curso de Ciências Biológicas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). E-mail: [email protected]

Moacir Haverroth é graduado em Ciências Biológicas e mestre em Antropologia Social pela UFSC e doutor em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Pes-quisador da Embrapa, Unidade do Acre, na área de plantas medicinais, aromáticas, condimentares e ornamentais, onde desenvolve projetos entre povos indígenas, extrativistas e agricultores familiares. E-mail: [email protected]

Inês Machline Silva é licenciada em Ciências Biológicas pela UFRRJ, mestre em Botânica pela UFRJ e doutora em Botânica pelo Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro. É professora associada da UFRRJ. Tem experiência na área de Botânica, com ênfase em Etnobotânica, estudando principalmente plantas medicinais, feiras livres, conservação e mata atlântica. E-mail: [email protected]

1 SÁ, Magali Romero. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segunda metade do século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v. VIII (suplemento), p. 899-924, 2001.

2 Cf. ORMINDO, Paulo. Arte botânica em João Barbosa Rodrigues. In: Jardim Botânico do Rio de Janeiro – 1808-2008. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, 2008, p. 57-65.

3 HOEHNE, Frederico Carlos. O Jardim Botânico de São Paulo. São Paulo: Secretaria da Agricultura de São Paulo, 1941.

4 MORI, Scott & FERREIRA, Flora Castano. A distinguished Brazilian botanist, João Barbosa Rodrigues (1842-1909). Brittonia, New York, v. 39, n. 1, p. 73-85, 1987.

5 SÁ, op. cit., 2001.

6 Cf. HOEHNE, op.cit., 1941; MORI & FERREIRA, op. cit., 1987; SÁ, op. cit., 2001.

7 Cf. SÁ., op.cit. 2001, citando carta de Barbosa Rodrigues ao imperador.

8 SPRUNGER, Samuel; CRIBB, Phillip & TOSCANO DE BRITO, Antonio. (Org.) João Barbosa Rodrigues Iiconographie des orchidées du Brésil. F. R. Verlag, Basle. 1996.

9 PEIXOTO, Ariane Luna; SILVA, Inês Machline & GUEDES-BRUNI, Rejan R. O saber sobre as plantas em sociedades humanas: o olhar de Barbosa Rodrigues. In: ABSY, Maria Lúcia; MATOS, Francisca D.A. & AMARAL, Ieda L. (Org.) Diversidade Vegetal Brasileira: conhecimento, conservação e uso. 61º Congresso Nacional de Botânica. Sociedade Botânica do Brasil. Manaus, 2010, p. 71-75.

10 CAMPOS PORTO, Joaquim. Histórico do Museu Botânico do Amazonas. Vellosia, 2. ed., Rio de Janeiro, 1891, p. 61-80.

11 Cf. OLIVEIRA, Ana Rosa. A Construção da paisagem. In: Jardim Botânico do Rio de Janeiro – 1808-2008. Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro. 2008. p. 79-91. PEIXOTO, Ariane Luna & MORIN, Marli Pires. 2008. O Jardim Botânico construindo pontes de saberes. In: Roberto Padilla & Nair P. Soares (Orgs.) Jardim Botânico do Rio de Janeiro 1808-2008. Rio de Janeiro: Artepadilla, p.132-151.

12 Cf. PEIXOTO, SILVA, & GUEDES-BRUNI, op. cit., 2010.

13 RODRIGUES, João Barbosa. Sertum Palmarum Brasiliensium. Relation des palmiers nouveaux du Brésil. Bruxelas. Imprimerie Veuve Monnom, 2 vols. [Fac-símile Ed. Expressão e Cultura, 1989]. 1903.

14 Cf. CRIBB, Phillip & TOSCANO DE BRITO, Antônio. Introdução e história. In: SPRUNGER, Samuel, CRIBB, Phillip & TOSCANO DE BRITO, Antonio (Orgs.). João Barbosa Rodrigues Iiconographie des orchidées du Brésil. F. R. Verlag. Basle. 1996.

15 RODRIGUES, João Barbosa. Mbaé Kaá – Tapyiyetá Enoyndaua ou A Botânica – Nomenclatura indígena. Memória apresentada ao 3º Congresso Scientífico Latino Americano. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional. 1905. 87 p. [+ errata 1 p.]

16 HAVERROTH, Moacir. Etnobotânica: Uma revisão teórica. Antropologia em Primeira Mão UFSC, Florianópolis. n. 20, p. 1-56. Disponível em <http://www.cfh.ufsc.br/~nessi/Etnobotanica % 20.htm>. 1997. Acesso em 22.6.2010.

17 HAVERROTH, op.cit. 1997; HAVERROTH, Moacir. Etnobotânica, uso e classificação dos vegetais pelos Kaingang – Terra Indígena Xapecó. 1. ed. Recife: NUPEEA/SBEE, 2007. 107 p.

18 BERLIN, Brent; BREEDLOVE, D.E. & RAVEN, Peter. Folk taxonomies and biological classification. Science n. 154, p. 273-275. 1966; BERLIN, Brent., BREEDLOVE, D.E. & RAVEN, Peter. Covert catgories and folk taxonomies. American Anthropologist v. 70, p. 290-299. 1968; BERLIN, Brent., BREEDLOVE, D.E. & RAVEN, Peter. General Principles of classification and nomenclature in folk biology. American Anthropologist, n. 75, p. 214-42, 1973.

19 BERLIN, Brent. Ethnobiological classification: principles of categorization of plants and animals in traditional societies. Princeton, New Jersey, Princeton University Press. 1992.

20 HAVERROTH, op.cit., 1997; HAVERROTH, op. cit., 2007.

21 POSEY, D. A. 1986. Etnoentomologia de tribos indígenas da Amazônia. In: Ribeiro, B. Suma Etnológica Brasileira. Petrópolis: Ed. Vozes, p. 251-271.

22 Cf. FERREIRA, Emmanoeala N., MOURÃO, José S., ROCHA, Pollyana D., NASCIMENTO, Douglas M., BEZERRA, Dandara M.M. Folk classification of the crabs and swimming crabs (Crustácea – Brachyura) of the Mamanguape river estuary, Northeastern – Brasil. Jounal of Ethnobiology and Ethnomedicine v.5, n. 22., 11p. (on line), agosto de 2009; COSTA NETO, Eraldo Medeiros & MARQUES, J.G.V. A etnotaxonômia de recursos ictiofaunísticos pelos pescadores da comunidade de Siribinha, norte do estado da Bahia, Brasil. Biociências, v. 8, n. 2, p. 61-76. 2000; MOURÃO, José S Nordi N. Comparação entre as taxonomias folk e científica para peixes do estuário do Rio Mamanguape, Paraíba – Brasil. Interciência, v. 27, n. 12, p. 664-668, 2002.

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[ Artigo recebido em 03/2010 | Aceito em 07/2010 ]

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Barbosa Rodrigues e os estudos botânicos na Amazônia

BarbosaRodriguesandhisbotanicalstudiesinAmazonia

WILLIAM ANTONIO RODRIGUES

Universidade Federal do Paraná | UFPR

RESUMO Trata este trabalho da vida e obra de um dos maiores naturalistas que o Brasil já teve. Natural do Rio de Janeiro, onde nasceu e morreu, João Barbosa Rodrigues (1842-1909) foi um autodidata de grande cultura eclética, especializou-se na taxonomia das Orchidaceae e Arecaceae, mas, também deu grandes contribuições na área de Arqueologia, Zoologia, Antropologia, Geologia, Filologia e Etnologia indígena. Durante 18 anos, de-dicou-se ao estudo da flora amazônica. Foi diretor do Museu Botânico do Amazonas, em Manaus, por sete anos (1883-1890) e, por fim, destacado diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, até o seu falecimento. Um dos seus grandes méritos foi a pacificação dos terríveis índios crichanás do rio Jauaperi, Amazonas. Publicou dezenas de trabalhos, entre eles, Sertum Palmarum Brasiliense, sua obra-prima, rica de ilustrações coloridas, feitas de seu próprio punho no campo, incluindo os aspectos gerais das palmeiras em seu próprio habitat, e a Iconographie des Orchidées du Brésil, cuja parte inédita das ilustrações em cores foi recentemente restaurada e publicada.

Palavras-chave biografia, João Barbosa Rodrigues, vale amazônico, naturalista, botânico, flora brasileira.

ABSTRACT The life and works of João Barbosa Rodrigues (1842-1909), one of the most famous Brazilian natural-ists born and died in Rio de Janeiro, are remembered in this paper. He was a self-taught, vast eclectic culture, stood out as specialist, mainly, in taxonomy of orchids and palms families. He also made important contributions to Brazilian literature, archeology, geology, geography, zoology, and indigenous anthropology, ethnography and philology. During 18 years dedicated to the studies of Amazonian Flora, he published numerous articles dealing with the vast data obtained during his expeditions in the extensive Amazon valley. A remarkable work in his life was to succeed in pacifying the savage Crichanás Indians, of the Jauaperi River, Amazonas He was the single director of the Botanical Museum of Amazonas (1883-1890), created specially for him by the Princess Isabel, and finally distinguished director (1890-1909) of the Botanical Garden of Rio de Janeiro until 6 March 1909, when he died. He is remembered for the countless new species and genera named by him, particularly of palms and orchids. He was author of dozens of important works such as Sertum Palmarum Brasiliense, his masterpiece, rich in colorful illustrations made by his own wrist in field, including the palm trees in their habitat and the Iconographie des Orchidées du Brésil

Keywords biography, João Barbosa Rodrigues, Amazon valley, naturalist, botanist, Brazilian flora.

Introdução

Comemorou-se no país o centenário da morte de João Barbosa Rodrigues, mais conhecido nos meios científicos e culturais como Barbosa Rodrigues. Nasceu em 22 de junho de 1842, no Rio de Janeiro, e faleceu em sua terra natal, em 6 de março de 1909, de septicemia, aos 66 anos de idade. Passou sua infância em Campanha (atual São Gonçalo de Sapucaí, Minas Gerais).

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Destacou-se como um dos maiores botânicos nacionais de seu tempo e de renome internacional. Apesar de autodidata e amador no início de sua carreira, acabou especializando-se, posteriormente, na taxonomia, particularmente de palmeiras e de orquídeas, embora também tivesse dado grandes contribuições no ramo da Geografia, Etnobotânica, Etnografia, Filologia, Zoologia, Paleontologia, Arqueologia, Antropologia, Farmacologia e Filologia indígena. Dedicou-se também ao estudo sobre crenças e costumes indígenas da Amazônia.

Deixou Minas aos 11 anos e foi viver no Rio de Janeiro para estudar e se profissionalizar. Bittencourt1 menciona que Barbosa Rodrigues, durante sua juventude, foi um menino prodígio. Cursou Economia Política e Desenho com brilhantismo no Instituto Comercial do Rio de Janeiro, de cujo estabelecimento de ensino, ao se formar, tornou-se logo secretário. Estudou no tradicional Colégio Pedro II, com distinção em todas as matérias. Devido a sua habilidade em Desenho e intermediação do seu antigo mestre, o barão de Capanema (Guilherme Schüch de Capanema, 1824-1908), ingressou em 1866 como professor dessa disciplina e, mais tarde, secretário do mesmo educandário.

Conforme menciona sua neta Salgado,2 ainda na juventude colaborou em diversos jornais e folhetins mineiros, dedicando-se à poesia e à literatura. Publicou, assim, aos 16 anos, a sua primeira obra poética, intitulada Threnos d´amor (1858) e, em seguida, Livro de Orlinda, páginas íntimas (1861), Memórias de uma costureira (1861) e Contos nocturnos. Estudo (1864). Algumas dessas poesias foram lidas por mim (Rodrigues, 1970), quando tomei posse na Cadeira nº 38, da Academia Amazonense de Letras, cujo patrono é o nosso ilustre naturalista.

Mesmo como naturalista, nunca deixou de ser poeta nos seus escritos. Lendo seus artigos, vê-se neles certo tom de beleza, harmonia, filosofia e patriotismo. Ainda muito jovem, passou a desenhar plantas, dedicar-se às pesqui-sas botânicas e às ciências afins sob influência e orientação de seu mestre e mecenas, o barão de Capanema, e dos botânicos frei Custódio Alves Serrão (1799-1873), Anders Fredrick Regnel (1807-1884) e Francisco Cysneiros Freire Allemão (1797-1874). Por este último, um talentoso artista, botânico e mestre no colégio em que estudou, foi estimulado, também bastante, para que se dedicasse aos estudos de história natural, tendo sido levado algumas vezes em suas excursões botânicas pelos arredores do Rio de Janeiro.3 Seu aprimoramento, entretanto, no estudo das orquídeas se deu em 1869, quando acompanhou, durante seis meses, o botânico sueco Salomon Ebehard Henschen (1847-1930), que veio ao Brasil, a convite de Regnel, para coletar plantas na cidade mineira de Caldas. Nessa ocasião, aprendeu as técnicas de herborização, identificação das orquídeas e recebeu ensinamentos básicos, que lhe serviram para despertar a vocação pelo estudo taxonômico dessa importante família.

Barbosa Rodrigues casou-se três vezes e teve, ao todo, 14 filhos (6 mulheres e 8 homens): uma filha com a sua segunda esposa (Cândica Pereira) e o restante com sua última consorte (Constança Paca).

Expedições na Amazônia

O barão de Capanema, amigo de infância e íntimo de D. Pedro II, conhecedor da potencialidade científica de seu ex-discípulo e sabedor do interesse do governo imperial em encontrar alguém disposto a pesquisar a hileia, com o fim não só de estudar a sua rica flora, mas também rever, atualizar e ampliar o conhecimento das palmeiras que haviam sido motivo de publicação, antes, por naturalistas estrangeiros que estiveram na Amazônia – como Alfred Russel Wallace (1848), Richard Spruce (1849) e, em particular, Carl. Friederich Philipp von Martius (1823-1850) –, apontou o nome de Barbosa Rodrigues para essa importante missão.

Barbosa Rodrigues seguiu para a hileia, juntamente com sua família, em 16/01/1872, onde permaneceu por cerca de três anos e meio (1872-1875). Percorreu os rios Capim, Jamundá, Tapajós, Trombetas, Urubu e Uatumã, deixando-nos cinco importantes relatórios sob o título “Exploração e Estudo do Valle do Amazonas”,4 tratando de dados históri-cos, geológicos, geográficos, botânicos, zoológicos, econômicos, etnográficos e sociológicos das regiões percorridas. Ao regressar dessa viagem, com uma enorme bagagem de dados científicos recolhidos, criou gratuitamente algumas

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inimizades e invejas, em especial entre pessoas mais íntimas de D. Pedro II, as quais o acusaram de “republicano, doido e incompetente”,5 ou “ignorante, astuto, invejoso, hipócrita”.6 Por causa dessa grave e infundada acusação, desentendeu-se com D. Pedro II e terminou demitido do Colégio Pedro II.

Estando Barbosa Rodrigues desempregado, o barão de Capanema o empregou como administrador em sua fabrica de formicida, em Rodeio (Rio de Janeiro). Durante o tempo que passou nessa cidade, não parou. Continuou dedicando-se ao estudo botânico e trabalhando na sua Iconographie des Orchidées de Brésil. Nesse ínterim, publicou Genera et species Orchidearum Novarum (1877 e 1882), em que descreveu 381 espécies e 11 gêneros novos, sem, infelizmente, as ilustrações coloridas, como era seu desejo. Parte dessas ilustrações, todas coloridas, num total de 267, foi, posteriormente, cedida por Barbosa Rodrigues, recopiada em preto e branco, e incluída por Alfred Cogniaux (1893-1906) na monografia sobre Orquidáceas da monumental flora brasiliensis, de Martius. Recentemente, grande parte de suas autênticas ilustrações coloridas das orquídeas, desgastas com o tempo, foram recuperadas e publicadas na Suíça por Sprunger et al.7

Museu Botânico do Amazonas

Em 1882, por indicação do barão de Capanema e valiosa intermediação da princesa Isabel (Condessa D´Eu), foi criado o Museu Botânico do Amazonas, em Manaus, pelo então presidente da Província do Amazonas, Dr. José Lustosa da Cunha Paranaguá, em 18 de junho de 1883, tendo Barbosa Rodrigues tomado posse em 14/12/1883 como seu único pesquisador e diretor até a sua extinção, sete anos após, com a Proclamação da República. A inauguração do Museu se deu em 16/02/1884, num prédio provisório na Chácara do Cachangá, no igarapé da Cachoeirinha.

O plano do Museu, esboçado por Barbosa Rodrigues, compreendia o estudo da flora sob os pontos de vista taxonômico, biológico e econômico, a organização de um herbário representativo da flora regional, a confecção de um catálogo para divulgação da flora amazônica, seus produtos e sua distribuição geográfica, e a criação de uma revista em que se reuniriam todos os trabalhos de pesquisa da referida entidade. Além disso, estava prevista a criação de um curso de Ciências, dividido em Agrimensura e Agricultura, cursos esses que, infelizmente, não chegaram a vingar por razões escusas e falta de dotação orçamentária. Barbosa Rodrigues, durante a sua gestão à frente do referido Museu, nunca foi bem-visto por alguns influentes políticos da Província. Alguns desses motivos encontram-se em Porto.8 Por ter tido muitos obstáculos nesse período, não perdia a oportunidade de atacar pública e veementemente os opositores que dificultavam seu trabalho. Segundo consta,9 Barbosa Rodrigues era de uma energia invulgar, impetuoso e rancoroso com seus contendores, mas generoso e gentil com seus familiares e amigos. Os serviços de limpeza e manutenção do Museu eram, em geral, executados pelos seus filhos e empregados – isto até 1885, quando o Museu logrou contratar um servente para esse fim, segundo Campos Porto.10

Durante os sete anos de sua efêmera existência, o Museu foi transferido três vezes de sede, só encontrando estabilidade quando passou para o Lyceu, hoje conhecido como Colégio Estadual D. Pedro II. Em Vellosia, Campos Porto11 conta minuciosamente como era a nova e derradeira sede. Os recursos orçamentários eram, em geral, sempre muito escassos para a manutenção da instituição e de seus funcionários, e a nomeação de um competente jornalista (Joaquim Augusto de Campos Porto) como secretário só ocorreu em 1887, isto é, três anos antes da extinção do Museu. Diante dessas razões, estava claro que fizeram tudo para que Barbosa Rodrigues deixasse a instituição. Não conseguiram demiti-lo antes porque Barbosa Rodrigues tinha grande respaldo político da corte, tanto que, logo após o fim da monarquia, ele foi sumariamente demitido e a instituição fechada.

Barbosa Rodrigues, no final do prólogo da 1ª edição, transcrita no volume 1 da 2ª edição de Vellosia,12 ponderava que, mesmo dispondo de parcas dotações orçamentárias, o Museu, durante sua existência, não fraquejou um só momento, mesmo diante dos percalços. Não admitia que a entidade tivesse de suspender suas atividades sob “pena de incorrer num crime de leso-patriotismo que ele a si próprio não perdoaria, por isso não esmoreceu um só momento até que deram o golpe de morte na instituição”.

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Trabalho de campo

Barbosa Rodrigues era um naturalista emérito, incansável e apaixonado pelo que fazia, e inteiramente dedicado ao estudo e trabalho em tempo integral. Era dotado de uma curiosidade nata, espírito de aventura, metódico, meticu-loso e corajoso. Durante suas excursões, segundo ele próprio mencionou numa de suas correspondências enviadas ao botânico sueco, Anders Fredrick Regnel (1807-1884), para quem ele coletava material sob a promessa de uma boa messe, “costumava coletar pela manhã até o meio dia, à tarde desenhava e à noite fazia as descrições”.13 Inúmeras vezes demonstrou muita coragem. Não esmorecia mesmo diante de eventuais perigos: lugares tidos como perigosos e doentios, presença de índios selvagens, rios encachoeirados, animais ferozes, etc. Uma de suas maiores bravuras narradas por ele próprio14 foi quando se dispôs a pacificar os temíveis índios crichanás (Waimiri-Atroari, família Karib), do rio Negro, Amazonas, arriscando a sua própria vida. Sá15 cita que o geólogo britânico Charles Brown, que o acom-panhou nas suas excursões pelo rio Trombetas, no Pará, menciona que Barbosa Rodrigues “era dotado de uma energia e ardor quase portentoso, quando começava a trabalhar. Era normalmente o primeiro a sair do barco e a se aproximar do primeiro nativo que encontrasse. Sentado desconfortavelmente em um toco ou outro lugar conveniente, procedia a anotar em sua caderneta tudo que ele conseguia obter de suas numerosas perguntas”.

No estudo das palmeiras e orquídeas, a cujas famílias ele dedicou a maior parte de sua existência, escreveu, em francês, no Sertum palmarum,16 o seguinte:

Auxorchideésj´aisacrifiélêsjoiesdemajeunesse

Auxpalmierslesloisirsdel´agemûr

Também, ao descrever17 algumas espécies novas, cultivadas no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, assim se expressou ao se manifestar orgulhosa e patrioticamente sobre o seu dedicado interesse pelo estudo botânico de nossa flora: “Desejo que elas perpetuem a dedicação que tenho pela terra que me foi berço, à qual desinteressadamente sacrifiquei os melhores dias de minha existência, tendo arriscado em muitas delas, até a própria vida”.

Homenagens especiais

A sua última esposa, D. Constança Eufrosina da Borba Paca (1844-1920), filha de um austríaco, capitão da guarda da princesa Leopoldina, auxiliou-o bastante nas suas pesquisas pela Amazônia como fiel, dedicada e companheira nos cansativos e arriscados trabalhos de campo, e colaboradora nas suas coletas e ilustrações botânicas. Segundo relato de Stapf18 apud Mori,19 ela chegou a ajudar Barbosa Rodrigues na preparação das estampas de orquídeas brasileiras. Como reconhecimento pela inestimável, valiosa e eficaz ajuda que sempre lhe prestou, criou o gênero Constantia (Orchidaceae) em sua homenagem e, quando descreveu Bactris constanciae, Barbosa Rodrigues justificou em francês a escolha do epíteto específico do seguinte modo:

Cetteespèce,jel´aidédiéeàmachèreépouseConstançaBarbosaRodrigues,quiatourjoursétémafidèlecompagneetquim´aprêtésonaideefficacedanstousmestravauxetdansmesdangereusespérégrinationsparlesforêts.

Lenomedel´espècerappelleralecourage,l´amourdesdécouvertesscientifiquesetl´héroïsmedontelleadonnétantdepreuves,notammentle2octobre1873,lorsquenotrepiroguecoulaàfonddanslarivièreYatapu,entrainéeparletourbillondelagrandechuted´eaunomméeUdidyetdansd´autrescirconstanceslorsque,pendantlanuit,nousfûmesattaquésparumtigredanslaforêtoúnousavionsnoshamacsprèsdelaCorredeiraPicapáo,surlesrivesdelamêmerivière.

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Cenomerappeleraausilessouffrances,lafaimetlasoifqu´aenduréesmanobreépousependantmesnombreusesexpéditions.19

Na descrição da nova espécie, consta uma foto da homenageada.

Barbosa Rodrigues, também reconhecido pelos favores recebidos de algumas pessoas especiais que, direta ou indiretamente, sempre o apoiaram, não se esqueceu de homenageá-las, eternizando-as na denominação de alguns gêne-ros de orquídeas, tais como Isabelia, em homenagem à princesa Isabel; Capanemia, dedicado ao seu mecenas barão de Capanema; Orleanesia, lembrando o nome do príncipe Gastão de Orleans, conde d´Eu, amador e protetor da floricultura no Brasil; o gênero Petronia, homenageando o imperador D. Pedro II; e Regnellia, dedicando o nome ao ilustre botânico sueco Anders Fredrick Regnell, de quem Barbosa Rodrigues recebeu grande estímulo no estudo das orquídeas.

Graças aos seus próprios esforços, conseguiu, ainda em vida, inúmeras honrarias tanto nacionais como interna-cionais conforme relacionado em Salgado,20 Rodrigues21 e Carauta.22

Comemorações quando do primeiro centenário de seu nascimento

Durante o centenário de seu nascimento, em 1942, diversos órgãos públicos se manifestaram, dentre eles a Academia Amazonense de Letras, que lhe prestou uma grande e justa homenagem, tendo como orador oficial da en-tidade o acadêmico Nunes Pereira,23 que versou sobre o tema “Um naturalista brasileiro na Amazônia”. Na ocasião, o venerando e inesquecível acadêmico abordou sobre a brilhante passagem de Barbosa Rodrigues pela região Amazônica e os resultados de suas importantes pesquisas para a ciência amazônica e brasileira.

A revista Rodriguésia, importante publicação do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, cujo nome o reverencia, publicou, também na ocasião, alguns artigos celebrando o centenário de seu nascimento.

Redenção econômica

Carauta24 relata que Barbosa Rodrigues, ao regressar da Amazônia, em 1875, foi destituído de todas as suas funções, inclusive de professor de Desenho do Colégio D. Pedro II. Desempregado, passou por momentos difíceis, só contornados pelo barão de Capanema, que lhe deu ajuda financeira e o emprego de administrador de sua fábrica de formicida, em Rodeio (Rio de Janeiro). Como o dinheiro era insuficiente para o sustento de sua numerosa família, sua esposa, D. Constança, chegou a lavar roupa para fora para complementar as despesas de casa. Sua redenção veio bem mais tarde, com a comercialização de um remédio indígena, que ele denominou de Pariquina, em homenagem aos índios pariquis, que habitavam as margens do rio Jatapu, afluente do rio Uatumã, Amazonas. Esse remédio era obtido de uma planta herbácea de nome indígena tangarakaá, também conhecido entre os civilizados por solidônia, pega-pinto ou erva-tostão, cujo nome botânico é Boerhavia paniculata Rich (Nyctaginaceae). Como o próprio Barbosa Rodrigues relata (1905), esse medicamento era usado pelos índios pariquis como um poderoso remédio contra os males do fígado. O preparo e negociação desse remédio por ele solucionou de vez todos seus problemas financeiros e, com o lucro da venda, pôde até comprar uma casa no Rio de Janeiro e custear parte de sua viagem à Europa, acompanhado de sua extensa família, quando o governo brasileiro resolveu custear a impressão do Sertum Palmarum Brasiliense.

O remédio causou na época muito sucesso, especialmente depois que recebeu o aval do famoso sanitarista patrício Oswaldo Cruz, que, numa carta dirigida a ele, mencionava que não só aprovava o medicamento como o estava recomendando aos seus pacientes.25 O remédio foi comercializado até meado de 1930, quando a sua família resolveu vender a patente.

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Barbosa Rodrigues na direção do Jardim Botânico do Rio de Janeiro

Barbosa Rodrigues foi nomeado diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro em 25/04/1890, assumindo suas funções em 31/5/1890, cargo que ocupou com muita galhardia, proficiência e dedicação até sua morte, ocorrida em 06/03/1909. Sua nova missão não foi menos difícil. Encontrou o Jardim Botânico inteiramente desorganizado, necessi-tando de uma reforma geral. Construiu prédios, estufas, aquário, enriqueceu o parque com novas espécies de plantas, dando-lhe nova estrutura digna de todos os encômios. Encontrou o estabelecimento “sem arquivo, sem pessoal regular, sem biblioteca e sem herbário. O grande parque mais parecia uma floresta. Tudo muito agradável à vista, mas cienti-ficamente em estado deplorável”. Esses detalhes vêm descritos em seu Hortus fluminensis.26 Felizmente, conseguiu implantar, com grande sucesso, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, grande parte do que não pôde concretizar no Museu Botânico do Amazonas. O Jardim Botânico do Rio de hoje é um paradigma da ciência brasileira, respeitado e mundialmente conhecido, graças, em grande parte, a sua competência de eficaz administrador. É, ainda hoje, consi-derado um dos melhores diretores que o Jardim Botânico do Rio já teve.

À testa na direção do Jardim, com tanta tarefa a cumprir, esperava-se que ele estacionasse, cuidando apenas da administração, de pôr em dia suas inúmeras anotações e experiências adquiridas durante longos anos de estudos e trabalho de campo. Nada disso. Espírito irrequieto, dado a aventuras, impetuoso e incansável, sempre interessado em adquirir novos conhecimentos sobre nossa flora, lançou-se ainda em novas aventuras por outras plagas, não só no Brasil como Paraguai, Uruguai e Argentina, publicando sempre.

Destino das coleções botânicas

Da primeira viagem encetada por Barbosa Rodrigues entre 1872-1875 à Amazônia, as coleções zoológicas e mineralógicas foram depositadas no Museu Nacional,27 enquanto as raras coleções botânicas atualmente existentes, frutos de sua primeira expedição à Amazônia, encontram-se, hoje, em parte, depositadas no Jardim Botânico do Rio de Janeiro (BR) e Museu Nacional (R). Segundo Carauta,28 as coleções botânicas de Barbosa Rodrigues, guardadas por medida de segurança no porão de sua residência, sito na rua Haddock Lobo, Rio de Janeiro, foram totalmente destruí-das durante uma grande inundação, além, provavelmente também, dos tipos nomenclaturais, peças fundamentais em todo estudo taxonômico - motivo pelo qual se explica por que a maioria da coleção-tipo29 de seus táxons novos está desaparecida, restando apenas as ilustrações tidas como lectótipos.

Campos Porto30 relata que, durante a extinção do Museu Botânico, o herbário dispunha de 10.000 espécimes dis-postos naturalmente por ordem de família; a seção etnográfica, de 1260 objetos recolhidos de mais de sessenta tribos indígenas amazônicas; e a química, de mais de 500 objetos - incluídas nessas coleções botânicas e etnográficas as coletas de propriedade particular de Barbosa Rodrigues, adquiridas durante sua primeira expedição ao vale amazônico, entre 1872-1875, além da doação de cerca de oitocentas exsicatas, recebidas do botânico americano John Donell Smith, segundo Duarte.31 Infelizmente, após a extinção do Museu, não se sabe, até hoje, que destino deve ter sido dado a todo esse acervo. Suas coleções, infelizmente, não se encontram guardadas em instituição alguma, nem no país, nem no exterior, baldados os esforços de inúmeros especialistas em tentar localizá-las para consulta. Estão perdidas ou foram destruídas, com o tempo, por falta de zelo. Em 1980, excepcionalmente, o presente autor encontrou, ocasionalmente, em Manaus, uma parte de tipo de Tynanthus igneus de Barbosa Rodrigues, deixada por ele dentro do volume 5 de Adan-sonia.32 O referido tipo, que serviu de base para a ilustração da nova espécie, comparado com a estampa X em Vellosia, 2ª ed.,33 mostrou que o referido exemplar tinha sido usado por Barbosa Rodrigues para ilustrar sua nova espécie. Esse espécime-tipo encontra-se depositado no herbário do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

Do antigo Museu, infelizmente, não se tem notícia alguma até agora do destino dado a todos os seus pertences, exceto a importantíssima coleção de obras raras: Flora Brasiliensis de Martius; Viagem de D´Orbigny; as coletâneas de

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Adansonia, Linnaea, Buffon, Castenaux, Prodromus de de Candolle; e algumas outras obras clássicas sobre a Amazônia, que estavam nos guardados sem uso do antigo Liceu de Manaus, hoje Colégio Estadual D. Pedro II. Passaram a fazer parte do acervo da Biblioteca do Inpa graças a um convênio com o Estado do Amazonas.34

Produção científica

Durante os 18 anos das pesquisas de Barbosa Rodrigues na Amazônia, sua produção científica foi grande e bas-tante diversificada. A relação encontra-se, especialmente, em Victorino Alves Sacramento Blake,35 Ignatius Urban,36 Hermann von Ihering,37 Anônimo,38 Carauta39 e outros.

Descreveu inúmeras plantas novas; pacificou, com grande risco de vida, a perigosa e soberana tribo indígena dos crichanás (Amazonas); criou a revista Vellosia, cujo nome foi emprestado, segundo Barbosa Rodrigues,40 do nosso ilustre naturalista patrício, frei José Mariano de Conceição Velloso (1742-1811), autor da esplêndida obra Flora Fluminensis, com a seguinte justificativa: “Na falta de um mecenas, sirva o nome de um redivivo, e que as palmas que por ventura colha, prestem para ornar o pedestal da sua glória”.41 Em Vellosia, são descritas 107 espécies, 4 variedades e 4 gêneros novos, tanto medicinais como industriais, entre elas 51 espécies de diversas famílias (incluindo 4 gêneros novos), 21 palmeiras e 35 orquídeas (incluindo 1 gênero novo). No segundo volume,42 constam 25 estampas de plantas novas; os estudos sobre Arqueologia e Paleontologia (os vestígios de uma necrópole dos primitivos habitantes da Amazônia); o folclore ou mitologia da mesma região e os répteis fósseis do vale amazônico; Histórico e Descrição do Museu Botânico - Catálogo da seção etnográfica e arqueológica; e Relação das tribos selvagens representadas na entidade.

Dentre os inúmeros trabalhos de interesse amazônico publicados por Barbosa Rodrigues, destacam-se: Enume-ratio palmarum novarum, em dois volumes;43 Genera et species orchidearum novarum,44 em dois álbuns; Iconographie des Orchidées de Brésil,45 obra iniciada em 1869, incluindo texto e ilustrações em cores de orquídeas baseadas em observações de campo; O rio Yauapery. Pacificação dos crichanás,46 trabalho este em que conta em detalhes como ocorreu a catequização dos temíveis índios do rio Negro, os riscos que correu sem receber remuneração alguma a mais pelo trabalho. Sua missão, nesse caso, não era só catequizar os índios, mas também estudar os produtos na-turais da região dominada por eles no rio Jauaperi. Numa das vezes em que esteve com os crichanás, segundo seu relato na publicação acima mencionada, levou sua família e, nessa ocasião, as índias fizeram com que sua esposa, D. Constança, amamentasse algumas de suas crianças, e ele permitiu que levassem sua filha de 3 anos para satis-fazer a curiosidade dos indígenas, especialmente por ser loura. O risco dessa aproximação com os indígenas foi-lhe muito útil. Não só descobriu inúmeras espécies novas de palmeiras locais e suas utilidades como pôde escrever uma série de outros artigos, tais como: “O canto e a dança selvícola” e “Lendas, crenças e superstições”;47 “Vocabulário indígena comparado para mostrar a adulteração das línguas” (1892);48 “Vocabulário indígena” (1893); “Exploração e Estudo do Valle do Amazonas”;49 “As moléstias do fígado curadas pela Pariquyna” (1897); “O Muirakytan e os ídolos simbólicos” (1889); “Poranduba amazonense” (1890); e “L´uiraêry ou curare. Extraits et compléments des notes d´un naturaliste brésilien”.50

O Sertum Palmarum Brasiliensium,51 sua obra-prima, foi editado em dois grandes e pesados volumes, contendo texto em francês e 174 magníficas estampas coloridas, feitas de seu próprio punho, mandado imprimir na Bélgica pelo nosso Governo.

Algumas de suas publicações são muito pouco conhecidas, especialmente aquelas em que descreve novos táxons, por terem sido efetuadas em revistas de pouca penetração como as revistas de Engenharia e de Horticultura, em que estão descritas, por exemplo, Monostychosepalum monanthum Barb. Rodr. (Burmanniaceae) - Rev. de Horticultura, v.2, p. 184, fig. 82.1877; Esterhazya superba Barb. Rodr. (Scrophulariaceae) - Rev. de Engenharia, v. 5, p.145, est. A 1-7.1883; e Epistephium spruceanum Barb. Rodr. (Orchidaceae) - ibid., v.3, nº 49, 1881) e alguns outros táxons.

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Esteve em Bruxelas, durante dois anos, junto com a família, acompanhando a publicação de sua obra-prima. Dessa viagem, escreveu em 1904 um relato de alguns jardins botânicos europeus visitados e mais alguns outros trabalhos importantes.52

Considerações finais

Barbosa Rodrigues como botânico foi surpreendente. Apesar da falta de bibliografia especializada, na época, para consultar, e de coleções botânicas de referência ou coleções-tipo para consulta longe dos grandes centros de pesquisa, mesmo assim, com grande esforço e muita dedicação, foi o primeiro brasileiro a se dedicar com maestria ao estudo de grupos taxonômicos tão difíceis e complexos como as palmeiras e orquidáceas, e outras famílias botânicas como as mirtáceas, por exemplo, e a dar uma grande contribuição para tornar a nossa rica e diversificada flora mais bem conhecida mundialmente.

D. Pedro II, reconhecendo, no entanto, tempos depois, seus insofismáveis méritos como cientista de renome internacional, estava prestes a lhe conceder o título de barão de Jauaperi, quando foi deposto.53

Não é novidade para muitos, mas é sempre bom lembrar que botânica não se faz apenas dentro de um laboratório. É um trabalho de infantaria. Tem-se que estar, sempre que possível, à frente no campo, à cata de novidades ou de novas fontes de informação sobre qualquer planta de modo geral, mesmo que isso implique grandes sacrifícios, desconfortos, surpresas e riscos constantes. Felizmente, tudo isso Barbosa Rodrigues cumpriu com desenvoltura e muita dedicação; portanto, como um profissional pertinaz, competente, inteligente, de vasta cultura eclética, corajoso, trabalhador e estudioso. Será sempre lembrado como um exemplo para toda a juventude que está se iniciando na nobre e patriótica profissão de naturalista no Brasil.

Ao findar este despretensioso artigo, gostaria de fazer minhas as palavras escritas por Barbosa Rodrigues no prólogo da revista Vellosia, 1ª edição (1891):

A força moral de uma nação não se determina só pelo número de seus soldados ou de seus vasos de guerra, pelo incremento de seu comércio ou de sua indústria, mas principalmente pelo grau a que têm atingido as ciências, as letras e as artes. São estas que inventam o canhão, encouraçam as esquadras, impelem as locomotivas, fazem mover-se as correntes elétricas, desvendam os mistérios das florestas e do solo e, tornando-os realidades, transformam-nos em produtos que se derramam pelas fábricas e pelos mercados. É pela força intelectual, e não pela física, pois, que uma nação progride, que campeia entre outras. Não bastam os arsenais, as fábricas, as alfândegas, é preciso que tudo se mova pela força do gênio de seus filhos, que descobrem os materiais que dão movimento aos operários, às máquinas e às pautas.

Agradecimentos

Agradeço ao prof. Olavo A. Guimarães da Universidade Federal do Paraná pela leitura do texto e correções.

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Notas e referências bibliográficas

William Antonio Rodrigues é graduado em História Natural pela Faculdade de Ciências e Letras/RJ, com especialização em Botânica Médica pela Fiocruz/RJ e Doutorado em Ciências Biológicas (Botânica) pela Unicamp/SP. Pesquisador do Inpa/AM de 1951 a 1991, atualmente é professor sênior da Universidade Federal

do Paraná (UFPR). Tem 81 trabalhos publicados em periódicos e 51 capítulos de livros. E-mail: [email protected]

1 BITTENCOURT, Agnello. Dicionário amazonense de biografias. Vultos do passado. Rio de Janeiro: Conquista, 1976.

2 SALGADO, Dilke de Barbosa Rodrigues. Barbosa Rodrigues, uma glória do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. A Noite, 1945.

3 ORMINDO, Paulo. Arte Botânica do Rio de Janeiro. In: Jardim Botânico do Rio de Janeiro: 1808-2008. Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. (Org.), Rio de Janeiro, 2008. p. 57-67.

4 RODRIGUES, João Barbosa. Exploração e estudo do Valle do Amazonas. Rio Tapajós.Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1875, p. 1-151; RODRIGUES, João Barbosa. Exploração e estudo do Valle do Amazonas. Rio Capim. Relatório. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1875, p.1-52 e mapa; RODRIGUES, João Barbosa. Exploração e estudo do Valle do Amazonas. Rio Trombetas. Relatório. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1875, p. 1-39 e planta do rio Trombetas; RODRIGUES, João Barbosa. Exploração dos rios Urubu e Jatapu. Relatório. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1875, p.1-129 e mapas.

5 CARAUTA, Jorge Pedro Pereira. Biobibliografia de Barbosa Rodrigues. XXV Cong. Nac.Botânica, Mossoró, Rio Grande do Norte, 20 a 26 de janeiro, 1974, p.361- 370.

6 SÁ, Magali Romero. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segunda metade do século XIX. História, Ciências e Saúde – Manguinhos, v. VIII (suplemento), p. 899-924, 2001.

7 SPRUNGER, Samuel; CRIBB, Phillip J. W.; BRITO, Toscano de. (Eds.). In: RODRIGUES, João Barbosa. Iconographie des orchidées du Brésil. The illustrations.Friederich Reinhardt Verlag. Basileia: 1996, 540 p.

8 PORTO, Joaquim Augusto de Campos. Histórico do Museu Botânico do Amazonas. Contribuições do Museu Botânico do Amazonas. Vellosia, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 2 ed., p. 61- 80, 1892.

9 CARAUTA, 1974, op. cit.

10 PORTO, 1982, op. cit.

11 Idem.

12 RODRIGUES, João Barbosa. Descrição do Museu. Contribuições do Museu Botânico do Amazonas. Vellosia. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 2. ed., p.81- 124, 1892.

13 RODRIGUES, João Barbosa. Plantas novas cultivadas no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, descriptas, classificadas e desenhadas. Rio de Janeiro, v. 1, n.1, I-II, p. 1-38, t.9. 1891.

14 RODRIGUES, João Barbosa. O rio Jauapery. Pacificação dos Crichanás. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1885, 275 p.

15 SÁ, 2001, op. cit.

16 RODRIGUES, João Barbosa. Sertum palmarum brasiliense. Relation des palmiers nouveaux du Brésil découverts, décrits et dessinés d’aprês naturele. Bruxelles, 1903, v.1, I-XXIX, p. 1-140, 91 t.

17 Idem, p.1-114, 83 t.

18 MORI, Sott A.; FERREIRA, Flora Castaño. A distinguished Brazilian botanist, João Barbosa Rodrigues (1842-1909). Brittonia, New York, v. 39, n.1, p. 73-85, 1987.

19 RODRIGUES, 1903, op. cit.

20 SALGADO, 1945, op. cit.

21 RODRIGUES, William Antônio. Cadeira 38. Na poltrona de Barbosa Rodrigues. Revista da Academia Amazonense de Letras, Manaus, 1970, ano L, nº 15, p. 238-251, 1970.

22 CARAUTA, 1974, op. cit.

23 PEREIRA, N. Um naturalista na Amazônia. Manaus: Imprensa Publica, 1942.

24 CARAUTA, 1974, op. cit.

25 SÁ, 2001, op. cit.

26 RODRIGUES, João Barbosa. Hortus fluminensis ou breve notícia sobre as plantas cultivadas no Jardim Botanico do Rio de Janeiro para servir de guia aos visitantes. Rio de Janeiro. XXXVIII, p. 1-308. I-X, I-XI, I-XVIII, 13 t, 1895.

27 SÁ, 2001, op. cit.

28 CARAUTA, 1974, op. cit.

29 Segundo o botânico Cláudio Nicoletti (com. pess.), curador das Coleções Vivas do Jardim Botânico do Rio, parte da coleção-tipo das plantas descritas por Barbosa Rodrigues antes de 1890 foi remetida por ele (Barbosa Rodrigues) para o Jardim Botânico de Coimbra.

30 PORTO, 1982, op. cit.

31 DUARTE, Durango. Manaus entre o passado e o presente. 1ª ed., Manaus: Mídia. Ponto Com. 2009. 280p + 14 anexos.

32 RODRIGUES, William Antônio. Descoberta de um tipo raro da coleção Barbosa Rodrigues. Anais do 31º Congresso Nacional de Botânica do Brasil, Ilhéus, Bahia, 1980. p. 81.

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33 RODRIGUES, João Barbosa. Descrição do Museu. Contribuições do Museu Botânico do Amazonas. Vellosia,. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 2ª ed., p.81- 124, 1892.

34 RODRIGUES, William Antônio; SILVA, Marlene Freitas da; SILVA, Algenir Ferraz Suano da; RIBEIRO, Maria de Nazaré Góes. Criação e evolução histórica do Inpa (1954-1981). Acta Amazonica (Supl.), v.11, nº1, p.7-23, 1981.

35 BLAKE, Victorio Alves Sacramento. Barbosa Rodrigues. In: Diccionario bibliographico brazileiro. Rio de Janeiro, 1895, p. 359-365.

36 URBAN, Ignatius. Vitae itineraque collectarum botanicorum. In:.MARTIUS, Carl Friederich von. Flora brasiliensis, 1906, v.1, n. 1, p. 1-154.

37 IHERING, Hermann von. João Barbosa Rodrigues. Revista do Museu Paulista, Universidade e São Paulo, São Paulo, v. 8, p. 23-37, 1911.

38 ANÔNIMO. Vultos da Geografia do Brasil. Barbosa Rodrigues (1842-1909). Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 95-97, abril/junho, 1942; ANÔNIMO. Noticiário. Primeiro aniversário do nascimento de Barbosa Rodrigues. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 4, n.2, p.131-134. abril/junho, 1942.

39 CARAUTA, 1974, op. cit.

40 RODRIGUES, 1891, op. cit.

41 VELLOSO, José Mariano da Conceição. Flora fluminensis. Rio de Janeiro, 1829 (1825) 352 p.; VELLOSO, José da Conceição Velloso. Flora fluminensis. Icones. Paris, 11 vols. 1831 (1827).

42 RODRIGUES, 1892, op. cit.

43 RODRIGUES, João Barbosa. Enumeratio Palmarum Novarum quas Valle Fluminis Amazonum inventas et ad Sertum Palmarum. Rio de Janeiro: Brown & Evaristo, 1875.

44 RODRIGUES, João Barbosa. Genera et species orchidearum novarum quas collegit, descripsit et iconibus illustravit. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1882.

45 SPRUNGER et al., 1996, op. cit.

46 RODRIGUES, João Barbosa. Rio Jauapery: Pacificação dos Crichanás. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1885.

47 Publicados pela Revista Brazileira, 1881.

48 Vocabulario indigena comparado para mostrar a adulteração da lingua (complemento do Poranduba Amazonense). Publicação da Bibliotheca Nacional. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos, 1892.

49 RODRIGUES, João Barbosa. Exploração do rio Yamundá. Relatório. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1875, p. 1-99 e planta do rio Yamundá.

50 L’uiraêry ou curare. Extraits et compléments des notes d’un naturaliste brésilien (1903c). RODRIGUES, João Barbosa. L’uiraery ou curare. Extraits et complément des notes d’um naturaliste brésilien. Bruxelles,1903, p.1-180, 7 t.

51 RODRIGUES, João Barbosa. Sertum Palmarum Brasiliensium. Relation des palmiers nouveaux du Brésil. Bruxelas, Imprimerie Veuve Monnom, 2 vols, 1903.

52 RODRIGUES, João Barbosa. Les noces des palmiers. Remarques prèliminaires sur La fécundation. Bruxelles, 1903. p.1-90, 7 t.; RODRIGUES, João Barbosa. Myrtacées du Paraguay recueillies par Mr. le Dr. Emile Hassler. Bruxelles, 1903, I-VIII, p.1-20, 26 t.

53 CARAUTA, 1974, op. cit.

[ Artigo recebido em 06/2010 | Aceito em 09/2010 ]

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Barbosa Rodrigues e os sambaquis da Amazônia1

BarbosaRodriguesandtheAmazonian’skökknmödding

HELOISA MARIA BERTOL DOMINGUES

Museu de Astronomia | Mast-MCTI

RESUMO Este trabalho discute a visão de Barbosa Rodrigues sobre os sambaquis da Amazônia, a partir de um artigo escrito oitenta anos depois pelo antropólogo Luiz de Castro Faria. Este recuperou aquele estudo de Barbosa Rodrigues por ter identificado ali um traço de identidade entre ambos: os sambaquis como “restos humanos” eram lugares de estudo da cultura social e não deviam ser destruídos. Comissionado pelo governo brasileiro, Barbosa Rodrigues chegou à Amazônia em 1872, para realizar estudos naturalistas, dentre os quais os sambaquis. Esse trabalho de Barbosa Rodrigues se insere nas pesquisas sobre a origem do homem americano que dominaram o século XIX e foi um fio condutor da prática arqueológica brasileira até meados do século seguinte.

Palavras-chave Barbosa Rodrigues, Luiz de Castro Faria, sambaqui, história da arqueologia, história da etno-logia, Amazônia.

ABSTRACT This work discusses the Barbosa Rodrigues vision on the Amazonian sambaquis from a paper written by the Anthropologist Luiz de Castro Faria eighty years after, where he identified in the Barbosa Rodrigues study a common trace between them: the sambaquis considered as “human rests” were places for studies of social culture and should not be destroyed. Commisioned by the Brazilian Government, Barbosa Rodrigues arrived at the Amazonian in 1872 to carry on naturalist studies, among them the sambaquis. This work can be inserted in the researches on the origin of American Man, that dominated the end of XIXth Century and it was the guiding principles of the Brazilian archeological practice until the midle of the next century.

Keywords Barbosa Rodrigues, Luiz de Castro Faria, kökknmödding, History of Archeology, History of Ethnology, Amazonia.

O trabalho de Barbosa Rodrigues sobre os sambaquis na Amazônia, realizado nos anos 1870, se insere nas pesquisas sobre a antiguidade do homem, as quais dominaram o século XIX. Comissionado pelo governo brasileiro, Barbosa Rodrigues chegou à Amazônia, em 1872, com a missão de realizar explorações naturalistas no vale do Ama-zonas, visando estimular os conhecimentos botânicos e completar o gênero Palmarum de Martius.2 Mas não descurou das demais especialidades das ciências naturais e, dentre os seus trabalhos de campo, ganharam destaque, por sua originalidade, aqueles realizados sobre os sambaquis.

Conforme sublinhou Luiz de Castro Faria, o estudo de Barbosa Rodrigues sobre os sambaquis é merecedor de toda a atenção, pois ele possuía um conhecimento direto e profundo da região amazônica, era versado em arqueologia e etnografia indígena e teve oportunidade de examinar pessoalmente diversas jazidas.3 Os trabalhos que publicou sobre os sambaquis dizem respeito a duas jazidas de conchas: a da serra da Taperinha, no rio Aiaiá, e a do Pau Mulato, na margem direita do Amazonas, próxima à borda do Lago Grande de Vila Franca, lago outrora denominado Tucumã e, depois, das Campinas (o sítio denominado Pau Mulato era antigo leito do rio Amazonas).

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O estudo dos montes de conchas, desde longa data, inquietava os estudiosos. Já no século XVI, Leonardo da Vinci preocupou-se com esses montes e, observando-os, rejeitou o Leiscester Codex, que dizia que as conchas tinham sido carregadas pelo Dilúvio, e afirmou, contrariando os neoplatônicos, que os fósseis eram constituídos de restos de organismos antigos.4 Não cogitou, no entanto, a artificialidade desses montes. Os historiadores, hoje, são unânimes em afirmar que, somente no século XIX, a ideia da artificialidade desses montes de conchas passou a ser aceita e deu base à construção da Pré-História.

Para Claude Masset, a Pré-História nasceu em 1859, quando a Royal Society de Londres ultrapassou a congênere francesa e reconheceu o trabalho de Boucher des Perthes.5 Desde os anos 1830, Boucher des Perthes afirmava que existia o homem fóssil, contrariando o que dissera o reconhecido Cuvier, que havia negado essa existência. Na França, esses estudos continuaram e, na segunda metade do século XIX, o abade Bourgeois, que estudara com Boucher des Perthes, confirmou o que este dissera, com descobertas de sílex talhados em terrenos da era Terciária.6

Os estudos nas chamadas concheiras, os sambaquis, viriam confirmar a teoria de Boucher des Perthes. Foi na Dinamarca, em 1837, que as pesquisas arqueológicas nos montes de conchas, sob a liderança de Worsaae, ganharam relevo. Worsaae encontrou as concheiras de ostras a pequena distância da costa, rumo ao interior, e demonstrou que continham vários artefatos pré-históricos, concluindo por sua origem artificial. Levando em consideração suas pesquisas, a Real Academia de Ciências Dinamarquesa criou, em 1838, uma comissão encarregada de estudar as concheiras, com o mesmo Worsaae à frente, juntamente com um biólogo, Steenstrup, e o geólogo J. S. Forchhamer. Em 1845, essa comissão publicou um relatório dos estudos realizados, em seis volumes, mencionando os “restos de cozinha”. Ou seja, concluiu que as concheiras eram de origem humana e definiu-lhes o padrão de acumulação. A comissão determinou, ainda, o cenário paleoambiental (florestas de abetos e pinheiros, com uma pequena quantidade de carvalhos), demonstrou que os únicos animais domesticados naquela época eram cães e que as concheiras eram ocupadas durante o outono, o inverno e a primavera, jamais no verão.7 O único ponto de discordância entre os membros da comissão foi sobre a idade das concheiras. Para Steenstrup, eram neolíticas, contemporâneas às tumbas megalíticas; para Worsaae, eram anteriores, e ele estava correto.8 Esse trabalho correu mundo na época e a arqueologia da Dinamarca tornou-se modelo para os demais países, inclusive para os estudos realizados no Brasil, particularmente os de Barbosa Rodrigues.

Corte vertical do Sernambi da Taperinha. Desenho de Barbosa Rodrigues.

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No Brasil, as pesquisas nos chamados sambaquis tiveram início no litoral sul, onde foram encontrados em maior quantidade, e logo despertaram o interesse dos especialistas internacionais. Rudolf Virchow, um dos mais famosos cientistas europeus do século XIX, criador do Museu de Antropologia de Berlim, a partir de 1872 fez várias comunica-ções sobre os sambaquis brasileiros na Academia Berlinense de Antropologia, Etnologia e Pré-História. Baseou-se em materiais de Santa Catarina (São Francisco e Joinville) e São Paulo (Santo Amaro), certamente enviados pelo engenheiro Kreplin; em relatórios como o do Dr. Von Eye, residente em Joinville; e também nos trabalhos de Charles Wiener e Fritz Muller.9 Wiener fez uma viagem à região Sul e produziu um relatório a pedido de Ladislau Netto, diretor do Museu Nacional. Fritz Muller era, nessa época, contratado como viajante naturalista do mesmo Museu. Para Castro Faria, os trabalhos de Virchow deram impulso decisivo à formação do campo da Arqueologia no Brasil.

Em 1866, Burton já havia publicado referências a sambaquis da Ilha do Governador, Rio de Janeiro, que Wiener posteriormente reproduziu, conforme sublinhou Castro Faria. Em 1871, a Revista do IHGB publicou os trabalhos de Carlos Rath, que serviram também a Virchow, os quais o abade Durant apresentou na Sociedade de Antropologia de Paris, em 1874.10 Nesse mesmo ano, Guilherme Schuch Capanema publicou o seu pequeno estudo sobre os sambaquis do litoral sul do Brasil, na Alemanha e em Londres. O trabalho de Capanema foi publicado no Brasil, no primeiro número da Revista Ensaios de Ciência (V. II, 1876). Para Barbosa Rodrigues, o trabalho de Capanema tornou os sambaquis brasileiros conhecidos no mundo científico. No mesmo número de Ensaios de Ciência, foram publicados os estudos de Barbosa Rodrigues sobre os sambaquis e a arqueologia na Amazônia. Aliás, essa revista foi criada por eles, Barbosa Rodrigues e Capanema, juntamente com Batista Caetano, com a finalidade de publicar “ciência brasileira”.11

Os trabalhos de Barbosa Rodrigues sobre arqueologia e etnografia na Amazônia, dentre os quais aquele sobre os sambaquis, mais tarde foram reunidos num volume chamado Antiguidades do Amazonas.12 Reconhecido internacio-nalmente, principalmente como botânico, os trabalhos etnográficos e arqueológicos de Barbosa Rodrigues, conforme afirmou recentemente o arqueólogo Lucio Menezes Ferreira, ainda são praticamente ignorados.13

O trabalho de João Barbosa Rodrigues

Ao introduzir Antiguidades do Amazonas, Barbosa Rodrigues fez um alerta sobre o “nosso” desconhecimento daquelas relíquias guardadas pela Terra, alegando que tal ignorância se devia à falta de explorações especiais, o que, por sua vez, levava ao desaparecimento e à destruição do material arqueológico, cuja consequência era a ignorância dos costumes e usos dos indígenas. Fazia um apelo à necessidade de realização de trabalhos científicos no ambiente natural e, ao mesmo tempo, deixava claro que a Arqueologia era uma forma de preservação da cultura, questão que ainda hoje aflige os intelectuais e os especialistas que trabalham a memória cultural.

Bem mais tarde, possivelmente na década de 1950, o antropólogo Luiz de Castro Faria escreveu (num artigo que não chegou a publicar) que os estudos de Barbosa Rodrigues sobre os sambaquis na Amazônia são de grande importância pela peculiaridade de ter considerado o problema dos sambaquis ou sernambis numa região que não é marítima, e sim fluvial, mostrando que aqueles montes de conchas podiam aparecer no interior, em margens de rios, e não somente na costa oceânica, onde era comum estudá-los; e por ter sido um trabalho que representou uma indivisibilidade da arqueologia brasileira, pois, embora não tivesse ligação direta com os das jazidas meridionais, mostrava que havia uma sequência histórica nos estudos a respeito do tema. Uma indivisibilidade que chegou até o século XX e permitiu retomá-lo como parte dos trabalhos que estavam sendo desenvolvidos no litoral sul do Brasil, na década de 1940, dentre os quais os de Castro Faria.14 Na verdade, segundo Francisco Pelayo, a discussão sobre a existência e antiguidade do homem fóssil durou até os anos 1940.15 Daí também a continuidade histórica que alcançaram os trabalhos de Barbosa Rodrigues sobre Arqueologia associada à Etnografia. Nas últimas décadas do século XIX, os estudos arqueológicos, abordando a questão da origem do homem, davam base à História, fundamentando o imaginário dos nascentes Estados-nação. Ainda em 1968, Paulo Duarte acreditava que os sambaquis, especialmente os do Brasil, continham a história inteira

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do Novo Continente, talvez do Mesolítico e do Neolítico inferior, e até boa parte das origens do Homem Americano. O problema estava em aprender a interrogá-los antes que fossem destruídos.16

A epígrafe de “Antiguidades do Amazonas” evidencia a inserção de Barbosa Rodrigues no campo das ciências que tratavam do homem fóssil, pois fazia referência direta à arqueologia de Boucher des Perthes:

Aarqueologiaéumaciênciaqueapenasinicia.SomentepenetrandonasprofundezasdaTerrachegareisadescobertasverdadeiramentegrandes.Nósestamosaindanaepiderme,nãofizemosmaisdoqueescavarasuperfícieetirarumpoucodapoeira.(BoucherdesPerthes)17

Bourgeois, discípulo de Boucher des Perthes, também foi citado por Barbosa Rodrigues, ao lado de Lyell, Dellaunay, Büchner e outros, quando falou da antiguidade dos achados arqueológicos na Amazônia. Incluía ainda aí os trabalhos de Lund, em Minas Gerais, realizados na década de 40 do século XIX.

A Dinamarca foi vista como país difusor da cultura dos povos nórdicos, que haviam dominado os mares num dado momento da Antiguidade. Tal influência explicava os sambaquis e outros traços culturais. Explicou que os kjoekken (cozi-nha) modings (restos) na Dinamarca, pesquisados por volta de 1845, eram encontrados próximos ao litoral; hoje, porém, têm sido encontrados longe da costa, evidenciando o deslocamento do mar.

O capítulo dedicado aos sambaquis da Amazônia começou pela afirmação de que os montes de conchas que encontrara eram aná-logos aos kökknmöddings da Dinamarca ou shell mounds dos Estados Unidos. Da mesma forma, concordava com o que dissera o seu colega Guilherme Capanema sobre os sambaquis de Santa Catarina, sublinhando que este dera a conhecer ao mundo científico os kökknmöddings brasileiros. Fazendo um histórico dos trabalhos dinamarqueses, Barbosa Rodrigues explicou ainda o significado que eles haviam dado aos montes de conchas: “restos de cozinha” – com o que também concordava. “Os depósitos de conchas”, disse ele, “chamados sernambis ou sambaquis são os kökknmöddingers, ou restos de cozinha, dos dinamarqueses”.

Ele preferia usar a palavra sernambi, por ser do vocabulário indígena. Segundo Barbosa Rodrigues, os índios denominavam sernambi a todo monte de conchas que encontravam, quer nas praias, quer nas margens dos rios. Quanto à origem da palavra sernambi, dizia ele, exprime o pensamento do índio: significa restos da vazante (deriva-se de seryc, vazante da maré, e sembyr, restos).

Na sua analogia com os trabalhos dos dina-marqueses, Barbosa Rodrigues considerou que os

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Inscrições nas paredes das serras do Irerê e Aruchy, espalhadas em diferentes alturas dos montes de conchas.

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sambaquis da Amazônia tinham sido feitos por imigrantes normandos ou norte-europeus, em épocas remotas. Para ele, aqueles montes representavam “restos da vazante”, ou refugo da maré, pois eram vistos depois da vazante. Para reafirmar a artificialidade dos sambaquis, Barbosa Rodrigues transcreveu um documento, antigo segundo ele, intitulado “Memória sobre duas minas de conchas de sernambi”, pelo ajudante Pedro de Figueiredo Vasconcellos.18 Segundo a descrição, tais minas encontravam-se no meio do seco Miridumba, que dá passagem para a Bahia do Atapu, em direção ao norte. O manuscrito registrava o trabalho de moradores de Cintra, por mais de 80 anos no local, sem se perceber diminuição dos montes de conchas. “Nelas se acham, além de cascas de sernambi, peixes petrificados, ossos de corpos huma-nos, pedaços de louça de barro de cozinhar e de louça branca, muitos ossos de animais terrestres, búzios grandes e pequenos, cascas de ostras e de outros muitos mariscos”. Os moradores locais diziam que, em toda a costa, até o rio Gurupi, havia montes como aqueles.

Segundo a interpretação que fazia da memória, tinha havido no local emersão da costa, mas era perceptível que um povo ali se reunia anualmente, indo à pesca dos moluscos e voltando para, possivelmente, fazer banquetes – prática que era perpetuada entre os índios, como ele mesmo observava para os tempos atuais. No Amazonas, disse Barbosa Rodrigues, “aparecem os sernambis, todo da feitura do homem, e o encontrado mais ainda recorda o uso escandinavo”. As ditas minas encontravam-se em terras de um engenho que aproveitava o monte de conchas para o fabrico da cal, cuja extração era de grande quantidade; por isso, ali o sambaqui era chamado de mina.

Nos dois sítios, foram encontrados, por ele, instrumentos de pedra, fragmentos de louça, já com a superfície decomposta pela ação dos agentes naturais, espinhas de peixe-boi, ossos de pássaros, etc. Ele observou que “esses sernambis, ou restos de cozinha, mostravam um costume que não era geral no Amazonas, “pois se o fosse, havendo facilidade no apanho dos moluscos, como os mesmos monturos o provam, geral devera ser o encontro desses”. As espinhas de peixes e os ossos de pássaros demonstravam-lhe que ali os índios se reuniam, de volta da pesca e da caça, e que não eram tão bárbaros, porque já usavam as comidas cozidas em vasilhas de barro bem preparadas, o que depreendeu dos fragmentos com fuligem que encontrou. Em ambos os sítios, as conchas encontradas eram fluviais, da mesma espécie bivalve, do gênero Castalia, Unio e Hyria.

Barbosa Rodrigues observou, ainda, que os moluscos encontrados nesses montes não eram daqueles de vida social, como o berbigão, e que formavam montes quando ficavam em seco, em situação de emersão da costa do oceano. As espécies que ele havia examinado viviam solitárias e só apareciam na vazante do rio, em muito pequena escala. Esses montes eram artificiais e, pela quantidade encontrada, demonstravam que eram erguidos por tribos que anualmente iam à pesca.

Segundo ele, as inscrições mostravam que os sernambis brasileiros eram “muito mais modernos do que os kökknmöddings dinamarqueses”, mas, a semelhança nas práticas indicava que havia descendência. Os índios que for-maram aqueles montes de conchas ou aterros sepulcrais e deixaram inscrições lapidares que se encontravam cravadas nas rochas, eram imigrados do Norte. Concluiu, assim, que esses restos de cozinha perpetuavam o costume de um povo que aí existiu ou viveu por longos anos, em época anticolombiana.

Não excluiu, portanto, a ideia de origem europeia dos índios brasileiros. Para ele, esses montes encontrados na Amazônia, demonstravam essa origem europeia da antiga civilização indígena da região. Eles eram semelhantes aos já encontrados nos Estados Unidos, anteriormente. Sublinhou ainda que: “Esses depósitos não se encontram no Peru, o que mostra que os invasores do Amazonas não passaram por lá, ou lá se detiveram muito pouco (Terra dos Aymaras)”.

O primeiro sítio examinado por ele, o da serra da Taperinha, no Rio Aiaiá, era distante da margem do rio, na base da serra, onde raríssimos eram os moluscos que se encontravam e onde, naquela ocasião, nem as maiores enchentes atingiam o lugar. Conforme sublinhou Castro Faria, é importante atentar para as observações de Barbosa Rodrigues sobre a situação do local, pois as conchas encontradas estavam todas em decomposição, promiscuamente, dispostas em estratos separados por pequenas camadas horizontais de humus, indicando que o depósito foi feito em várias épocas: “Diferentes depósitos ou montículos destes, existem espalhados, todos com a forma cônica, tendo a base do maior mais de 25 metros de diâmetro. Cerrada vegetação os cobre, deixando transparecer aqui ou ali a sua superfície”.19

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Examinando a estrutura geológica do terreno, Barbosa Rodrigues concluiu que outrora o Amazonas corria quase pela fralda da serra, deixando uma pequena margem onde os índios tinham formado o sernambi. Seguidas enchentes cobriram essa margem quando já o sernambi estava feito, e, retirando-se, este ficou rodeado de terras de aluvião que formavam a margem atual. Os diversos deslocamentos com formações e destruições do rio provocaram o aparecimento de ilhas, e o Aiaiá tomou outro curso e a natureza, novo aspecto.20 No alto da serra da Taperinha, Barbosa Rodrigues encontrou terras pretas e os mesmos instrumentos de pedra, como machados ou fragmentos de cerâmica que encontrara no sernambi, o que, para ele, era indício de que os índios que formaram o sernambi eram os mesmos que posteriormente habitaram o alto da serra.

Nos dois sítios, Barbosa Rodrigues encontrou ossadas humanas, o que o chocou. Ficou na dúvida sobre o porquê de encontrar ali aqueles restos humanos. Mas não admitiu que aquilo pudesse representar antropofagia. Para ele, aqueles dois sernambis que pareciam ter pertencido ao mesmo grupo eram muito anteriores a 1500. Sua importância arqueológica e etnográfica, em geral, era associada a um fato geológico, mas, para ele, tinha uma importância maior, pois dava luz ao descobrimento do Brasil antes de Colombo.

Sobre a origem do homem americano: da arqueologia à etnografia, à história

Os trabalhos de Barbosa Rodrigues sobre a arqueologia na Amazônia encontravam-se no centro da discussão que, na segunda metade do século XIX, ocupava cientistas, geólogos, paleontólogos e arqueólogos, preocupados em definir a origem do homem. No caso, Barbosa Rodrigues estava preocupado com a origem do homem americano, ou homem brasileiro. Essa questão estava na base da periodização da História, quando os historiadores buscavam definir o lugar temporal dos diferentes povos da terra, e acabou na divisão entre Pré-história e História.21

Entre os geólogos, a discussão instaurada dizia respeito à idade geológica da formação dos achados que atestavam a presença do homem na Antiguidade. Barbosa Rodrigues duvidou que o homem no Brasil fosse tão antigo quanto o Quaternário; afirmou não acreditar que a idade da pedra dos brasileiros fosse anterior à vinda dos normandos à América no século X, os quais haviam invadido a Amazônia e influenciado a cultura local. Citou Lund para dizer que este não afirmara que o homem de Lagoa Santa era tão antigo quanto os animais de espécies extintas que o circundavam, quando encontrou o sítio em Minas Gerais. Citou também Emmanuel Liais, dizendo que este, analisando apenas uma ossada, ousou afirmar que o homem do Brasil era contemporâneo ao megatherium. Concluiu, então, que as armas e instrumentos de pedra, historicamente falando, remontavam à alta Antiguidade, mas não à antiguidade geológica. Discutiu, portanto, a geologia em relação à arqueologia, mas não negou a antiguidade do homem brasileiro.22

A conclusão de Barbosa Rodrigues sobre a origem normanda dos índios amazônicos foi extremamente criticada, e uma dessas críticas, de grande repercussão, foi disparada por Silvio Romero que, na História da Literatura Brasileira (1ª edição 1888), classificou-a de hipótese desastrada.23 No mesmo ano, 1888, Silvio Romero publicou o livro Ethnographia, um livro que foi dividido em quatro capítulos, cada um deles dedicado a um naturalista que havia tratado da origem do homem brasileiro. Neste, as críticas a Barbosa Rodrigues estenderam-se a um capítulo inteiro. Os outros três capítulos foram dedicados a Couto de Magalhães (O Selvagem), Teófilo Braga e Ladislau Netto, todos, aliás, criticados. A visão desses autores sobre os índios e o seu passado chocava-se com a de Silvio Romero; no caso de Barbosa Rodrigues, ele discordava dos estudos arqueológicos na Amazônia que o levaram a concluir sobre a origem normanda dos índios; afinal, Romero era um poligenista.

Na verdade, com esses trabalhos, Barbosa Rodrigues engajou-se e marcou uma posição no debate sobre a origem do homem americano que, então, era objeto de discussão científica e também política, uma vez que definia a gênese

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da nacionalidade pela história. A questão de escrever a História do Brasil que mobilizava a todos, incluía o problema da origem do homem do país. Em 1888, Silvio Romero, na História da Literatura Brasileira, confundia a história do país com a literatura e, baseado nas ciências naturais, afirmava que os índios brasileiros eram originários do “solo americano”, contrariando aqueles que, como Barbosa Rodrigues, acreditavam na origem nórdica dos povos americanos – o nó górdio da discussão de Silvio Romero com ele.

Ainda do ponto de vista científico, a discussão sobre a origem do homem, nesta época, passava pelas disputas entre os darwinistas e não darwinistas. Silvio Romero se dizia um darwinista, mas, sendo um spencenriano, abraçava uma ideia evolucionista contrária a Darwin. As críticas a Barbosa atingiam também esse ponto, pois Silvio Romero, poligenista, não admitia a ideia da migração dos índios; para ele, estes eram originários da América. Além do mais, ba-seava-se nas conclusões da Antropologia, que mostrava a diferença intelectual das pessoas pela diferença das medidas craniométricas, dividindo-as em superiores e inferiores. Assim, não era possível comparar o intelectual civilizado com o índio nu. Os argumentos de Silvio Romero tirados da Antropologia davam suporte à sua ideia de história nacional.

Barbosa Rodrigues, numa linha de pesquisa etnológica e arqueológica que negava o evolucionismo darwinista, defendeu a ideia de imigração dos índios para o Brasil, afirmando que, possivelmente, haviam descido pelas nascentes do Amazonas, passando pelo Peru ou vindo pelo Norte, pelo canal de Cassiquiare; com isso, haviam trazido certos traços culturais cuja distinção os restos arqueológicos mostravam. Para ele, através da Arqueologia era possível traçar evidentes pontos de contato entre os povos primitivos da Amazônia e os do Norte da Europa.

A análise dos sambaquis fundamentaram a sua teoria de que, no Brasil, aqueles montes não seriam de idades geológicas muito antigas; eram tanto montes naturais, formados pelos berbigões (cf. dicionário: molusco acéfalo), quanto artificiais, porém, todos eram comparativamente modernos, pertencentes a um período relativamente recente, o que o fez concluir que tinham sido formados por povos migrantes. Uns e outros mostravam a emersão da costa ou o deslocamento do rio, ou seja, a transformação da natureza.

A falta de pesquisas arqueológicas, no Brasil, para Barbosa Rodrigues resultara numa arqueologia brasileira estran-geira, pois, até então, era tirada de escritos de estrangeiros, o que ele não podia aceitar, já que somente as pesquisas de campo davam a dimensão do que, de fato, havia existido. O estudo da Arqueologia – “descurado entre nós” – era visto como um ramo da História, porém, esta, a partir da Arqueologia, somente mostrava a decadência cultural dos índios. Para ele, ao contrário, práticas e técnicas demonstravam que ali viveram civilizações superiores, que, no entanto, haviam degenerado após o contato e a dominação dos europeus, e das suas práticas religiosas. Castro Faria reafirmou o que dizia Barbosa Rodrigues, cujos estudos deveriam merecer toda a atenção, uma vez que o naturalista possuía um conhecimento direto e profundo da região amazônica, era versado em arqueologia e etnografia indígena e teve a oportunidade de examinar pessoalmente diversas jazidas, realizando trabalho original. Sobre o pioneirismo de Barbosa Rodrigues no registro da ocorrência de montes de conchas nas margens dos rios daquela região, o próprio Barbosa Rodrigues declarou ao ministro da Agricultura no Relatório de 1872. Na verdade, ao concluírem que aqueles montes de conchas eram artificiais, os cientistas acabaram por associar as duas ciências, Arqueologia e Etnografia.

De fato, tal associação marcou o trabalho de Barbosa Rodrigues. Ele comparou utensílios antigos e recentes, e práticas como as de enterramento, observando o quanto mudaram e o quanto a cultura perdera seus referenciais após a chegada de religiosos e a adoção de práticas de sepultamento cristão.24 Observou que instrumentos de lugares diferentes indicavam subdivisões da “raça” e que as modificações que fizeram nos seus usos podiam representar a origem de cada grupo. Da mesma forma, falou sobre as pontas de flechas feitas de sílex (primeiro material empregado) ou de cristal e, mais tarde, a taquara ou o ferro, como as que usavam os muras semicivilizados. As mais antigas dessas flechas de sílex tinham sido encontradas na Grécia antiga, estabelecendo, implicitamente, uma continuidade cultural. Para ele, a Arqueologia era um atestado da cultura antiga tanto quanto a Etnografia retratava a cultura atual.

No Amazonas, como acontecia na Idade Média [europeia], encontravam-se arcos direitos e curvos, que serviam para empunhar aquelas flechas para combater o inimigo ou para a caça de animais superiores. Sobre os machados de pedra dos índios da Amazônia, observou que usavam diferentes tipos de machado para diferentes tipos de serviço. Dizia:

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“Os instrumentos de pedra, no Amazonas e para dizer no Brasil, são guias arqueológicos, que só dão luz à etnografia”.25 Demonstrava a forte ligação entre essas ciências: “A arte de então atravessou os séculos nos instrumentos de pedra (...) Estes rústicos monumentos, desprezados até hoje por nós, servem para atestar às gerações futuras quanto foi grande a decadência da raça americana, hoje representada por um povo indolente, quase sem arte e sem indústria...”.

Fez explicações detalhadas de como furavam ou entalhavam as pedras. Os machados, no entanto, não haviam sofrido enormes mudanças desde quando começaram a ser utilizados até os contemporâneos. Os índios do Brasil uti-lizavam os mesmos tipos de machado há milhares de anos, e a sua forma indicava que havia muita semelhança com os utilizados pelos normandos – que teriam vindo para a América no século X. Então, Barbosa Rodrigues afirmava: “... parece fora de dúvida que foram os normandos os mestres dos nossos selvagens”. Disse ele que a um ataque contra normandos a reação teria sido apenas com flechas, e as massas (uma espécie de dardo) não tinham machados. Disse também que os índios usavam ídolos protetores de batalhas ou de pescarias, aos quais não tributavam culto. Desses, ele teria sido o primeiro a encontrar e a descrever um deles: o muiraquitã.

Barbosa Rodrigues mostrou que “... as antiguidades que se encontram, no vale do rio-mar, eram divididas em armas, instrumentos e ídolos de pedra, cerâmica de uso doméstico, aterros e sernambis ou kjokkenmoddingers, urnas mortuárias (ygasáuas) e inscrições ou desenhos”, o que atestava a peculiaridade e a diversidade das culturas. Ele discutiu sobre a antiguidade dos instrumentos de pedra polida que havia encontrado em regiões carboníferas (rio Tapajós, Trombetas, Yamuda e Yatapu) e terrenos devonianos (distrito de Ererê, em Monte Alegre), mas assinalou que não era possível dizer se os instrumentos correspondiam aos períodos dos terrenos, sentindo-se impotente para afirmar a antiguidade desses achados, pois a Geologia vinha afirmando serem os instrumentos de pedra polida anteriores à Gênese bíblica.

Não somente Barbosa Rodrigues ocupava um espaço no campo das ciências naturais, como também tomava posição em relação à história do Brasil que estava sendo escrita. Para ele, “as antiguidades amazônicas” mostravam que a cultura que guardavam não era tão pobre quanto transparecia o laconismo, ou mesmo, o silêncio dos “nossos” historiadores. Nesse caso, ele podia estar respondendo às críticas que vinha recebendo, incluindo-se as de Silvio Romero.

Barbosa Rodrigues elaborou uma concepção particular da história do Brasil. Embora “não admitisse a doutrina evolutiva”, conforme afirmou logo no início do seu trabalho, ao abraçar a causa da origem imigrante dos índios podia estar contribuindo para confirmar o monogenismo – a origem comum dos seres vivos, ideia cara a Darwin – e, ao mesmo tempo, afirmar que a história do Brasil começava com os índios. Negava a evolução, mas, admitia uma evolução degenerativa, dizendo que os índios imigrados vinham de uma cultura superior que desaparecera em função da brutal exploração colonizadora.

Barbosa Rodrigues andava, portanto, no caminho oposto ao de Silvio Romero. Para este último, o Brasil era resultado da colonização europeia. Ambos discordavam da origem do homem americano e, consequentemente, tinham visões opostas sobre o desenrolar da história do Brasil. Para Barbosa Rodrigues, a prática arqueológica, na Amazônia, dera-lhe a certeza de que o Brasil nascera com os índios que vinham da antiguidade muito anterior à Era colombiana. Sua única questão dizia respeito à idade daquelas culturas no país e foi criticado, inclusive por Castro Faria, que tanto admirou todo o resto do seu trabalho. Em última instância, tudo isso evidenciava uma posição política em relação à colonização.

Conclusão

Em seu trabalho, Barbosa Rodrigues manifestou-se contra a maneira colonial de explorar a terra e seus habitan-tes, o que, para ele, destruía a cultura, ou, pelo menos, a empobrecia. Considerava-a uma exploração predatória. Ao apresentar a Memória sobre as minas de conchas e observar a destruição dos montes de conchas para produzir cal, Barbosa Rodrigues afirmou ser aquela prática uma “cobiça da civilização”. Foi a mesma indignação que, mais tarde, no século XX, impulsionou Castro Faria a lutar pela Lei de Preservação do Patrimônio Arqueológico Brasileiro diante da

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destruição dos sambaquis no litoral de Santa Catarina pelas fábricas de cal.26 Uma relação política, portanto, uniu os trabalhos dos dois cientistas. Castro Faria pesquisou intensamente a arqueologia e, particularmente, os sambaquis do litoral sul do Brasil, principalmente em Santa Catarina e no Paraná, trabalhando a Arqueologia como parte da Etnologia. A partir desse trabalho, ele engajou-se politicamente na campanha pela proteção dos sítios arqueológicos e samba-quis, destruídos pela exploração econômica e predatória, e obteve êxito, com a promulgação da Lei de proteção aos sítios arqueológicos em 1961. À época de Barbosa Rodrigues, essa luta não foi cogitada, mas, a preservação de sítios arqueológicos foi uma questão que muito o inquietou.

O debate sobre os sambaquis – entre os que defendiam se tratar de um fenômeno cultural e os que propugnavam a sua origem natural, sendo que essa última posição justificava sua exploração impiedosa para fins econômicos – foi um fio condutor da prática arqueológica brasileira, a sua continuidade histórica, que dominou os dois séculos.

Hoje, tantas décadas depois de todos aqueles estudos e reflexões sobre o fenômeno dos sambaquis, impressiona a atualidade de muitas daquelas ideias, infelizmente ainda não absorvidas – em particular, as que demonstram a diversidade sociocultural das populações formadoras da história do país. Ainda hoje, há quem insista na utilização do termo sambaqui para designar sítios arqueológicos litorâneos resultantes de processos socioculturais muito distintos. Mascara-se, assim, sob um mesmo rótulo, diferentes fenômenos, na contramão da tendência mundial da disciplina, que, a cada dia, refina mais e mais suas teorias, métodos e técnicas, bem como sua sensibilidade, para melhor apreender a heterogeneidade e a diversidade sociocultural das culturas passadas, e, consequentemente, das culturas do presente.

Notas e referências bibliográficas

Heloisa Maria Bertol Domingues é pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins, doutora em História Social pela USP, professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em História, Unirio. Desenvolve pesquisas em História das Teorias e Práticas das Ciências Naturais e História da Antropologia, no Brasil. E-mail: [email protected]

1 Este trabalho é dedicado à memória de Luiz de Castro Faria e insere-se no Projeto História da Antropologia no Acervo Luiz de Castro Faria, sob minha coordenação. No seu arquivo (Fundo CF, Arquivo de História da Ciência, Mast), foi encontrado um artigo inédito, intitulado “O trabalho de João Barbosa Rodrigues” (s/d), em que ele discute exatamente as pesquisas de Barbosa Rodrigues nos sambaquis na Amazônia, artigo que inspirou o presente trabalho.

2 SÁ, Magali R. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segunda metade do século XIX. Revista História, Ciências e Saúde, Manguinhos, v. VIII (suplemento), p. 899-924, 2001.

3 CASTRO FARIA, L. O trabalho de João Barbosa Rodrigues. Doc. Arquivo de História da Ciência, Mast, s/d. Escreveu ainda sobre os sambaquis: CASTRO FARIA, L. A formulação do problema dos sambaquis. In: Antropologia – Escritos Exumados – Dimensões do conhecimento antropológico. V. 2. Niterói, Rio de Janeiro, 2000, p. 187-194; CASTRO FARIA, L. O problema dos Sambaquis do Brasil: escavações recentes nos sítios de Cabeçuda (Laguna, Santa Catarina). In: Antropologia – Escritos Exumados – Dimensões do conhecimento antropológico. V. 2. Niterói, Rio de Janeiro, 2000, p. 205-212.

4 JAY GOULD, Stephen. A montanha de moluscos de Leonardo da Vinci. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 39;

5 MASSET, Claude. Darwinisme et Prehistoire? TORT, Patrick. (Org.) Darwinisme et Société. Paris, PUF, 1992, p. 651-656. Para o autor, apesar de o lançamento, em Londres, das ideias de Perthes coincidir com a publicação de A Origem das Espécies de Darwin, ambas as teorias eram paralelas e não dialogavam.

6 LOPEZ-PELAYO, F. ¿’Hombre Terciario’ o precursor humano?: Sílex, Transformismo y los orígenes de la humanidad. DOMINGUES, H. M. B.; SÁ, M. R.; PUIG-SAMPER, Miguel Angel; RUIZ, Rosaura. (Org.) Darwinismo, meio ambiente, sociedade. Rio: Mast; São Paulo: Via Lettera, 2009, p. 161-176, 169.

7 TRIGGER, Bruce G. História do pensamento arqueológico. São Paulo: Odysseus Editora, 2004, p. 80.

8 Idem.

9 CASTRO FARIA, Luiz de. Virchow e os sambaquis brasileiros: um evolucionismo antidarwinista. DOMINGUES, Heloisa M. Bertol; SÁ, Magali R.; GLICK, Thomas. (Org.) A recepção do darwinismo no Brasil. Rio: Ed. Fiocruz, 2003, p. 125-143. Luiz de CASTRO FARIA escreveu uma série de quatro trabalhos sobre a formação da arqueologia no Brasil, dentre os quais a referência acima e três inéditos e inacabados que se encontram no seu arquivo, entre os quais o citado “O trabalho de João Barbosa Rodrigues”. Segundo Tania Andrade Lima, em 1947, Castro Faria iniciou um trabalho de leitura crítica e de revisão completa da bibliografia até então existente sobre sambaquis, para corrigir “generalizações descabidas e estereotipias comprometedoras” (LIMA, Tânia Andrade L. Luiz de Castro Faria, também um arqueólogo. 2009. http//centrodememoria.cnpq.br/publicacoes3.html. Consulta 15/02/2011). Tais artigos, certamente, constituem resultado de tais leituras.

10 Idem.

11 Em apêndice de seu Antiguidades do Amazonas, Barbosa Rodrigues diz: “ A ciência é cosmopolita, os seus obreiros são irmãos, do concurso de todos nasce o progresso, por isso devemos trabalhar para que não vivamos sempre como filhos – família na ciência” (p. 71). Sobre a relação de Barbosa Rodrigues com

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Capanema, Magali Romero Sá afirma ter sido muito estreita. Capanema teria sido uma espécie de mecenas de Barbosa Rodrigues (2001).

12 BARBOSA RODRIGUES, J. Antiguidades do Amazonas. Revista Ensaios de Ciência, v. II, 1876. Publicado também em: BARBOSA RODRIGUES, J. Antiguidades do Amazonas. Rio de Janeiro: Typographia Central, 1879.Sob o mesmo título, Barbosa Rodrigues publicou outros trabalhos resultantes de suas pesquisas de campo na Amazônia, na Revista Vellosia, que ele criou em Manaus.

13 FERREIRA, L. M. João Barbosa Rodrigues: precursor da etnoclassificação na arqueologia amazônica. Revista de Antropologia, v, 1, n. 1, 2009 (cópia eletrônica);

14 Nos anos 1940, 1950, Castro Faria, juntamente com o arqueólogo Loureiro Fernandes, engajou-se na luta política pela preservação dos sambaquis e dos sítios arqueológicos do país, conforme reconheceu Paulo Duarte, que também estava engajado na mesma luta (Duarte, 1968, p.73). De acordo com Tania Andrade Lima, a luta de Castro Faria pela preservação dos sambaquis e dos sítios arqueológicos começou por volta de 1947 e teve como primeiro resultado a Resolução n. 289, de 5 de setembro de 1951, emitida pelo Conselho Nacional de Geografia, recomendando aos poderes públicos competentes a proteção e conservação de grutas naturais e sambaquis. Nessa resolução, foram nominados os mesmos sítios que Castro Faria trabalhava em Santa Catarina, Minas Gerais (Lagoa Santa) e Saquarema, e ela foi emitida pouco depois de uma conferência sua na Associação de Geógrafos Brasileiros (Lima, 2009).

15 Pelayo, 2009, op. cit.

16 DUARTE, Paulo. Pré-História Brasileira. São Paulo, Instituto de Pré-História da Universidade de São Paulo, 1968, p. 138.

17 L’Archeologie est une science qui commence. Ce n’est que en pénétrant dans les profondeurs de la Terre que vous arriverez à des découvertes vraiment grandes. Nous n’en sommes qu’à l’épiderme, nous n’avons fait que gratter la superfície et soulever un peu de poussière. (Boucher des Perthes)

18 Embora diga que se tratava de documento antigo, não fez referência à data.

19 Sobre a formação do sambaqui, é interessante a observação feita por Paulo Duarte: “Contou-nos Paul Rivet que, no Chile, teve a emocionante impressão de ver como se fazia um sambaqui! Sobre uma área extensa, coberta já de cascas de moluscos ali depositadas anteriormente, isto é, sobre uma base já alta de sambaqui, um grupo de primitivos o recebeu com um banquete constituído de ostras assadas nas brasas de uma grande fogueira acesa no local. Cada um dos comensais, tomando uma concha, comia o conteúdo e atirava a casca para trás, sem a olhar. Informaram a Rivet que aí enterravam também mortos”. (Duarte, 1968, p.126)

20 CASTRO FARIA. Op. cit.

21 DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol. A noção de civilização na visão dos construtores do Império. Niterói, RJ: IFCH-UFF (Dissertação de Mestrado), 1990.

22 Conforme Paulo Duarte, medições realizadas em meados do século XX, com o método do C14, deram mais de 7 mil anos a materiais de sambaquis do Sul do Brasil (op. cit. 1968, p.92).

23 ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira. (5 volumes) Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora , 1943 – 3ª. edição, p. 92.

24 Os enterramentos foram, também, uma preocupação de Castro Faria nos seus estudos arqueológicos.

25 BARBOSA RODRIGUES, op. cit., p. 120.

26 A luta obteve êxito somente em 1961, quando a Lei n. 3.924 foi promulgada. CASTRO FARIA, L. O problema da proteção aos sambaquis. In: Antropologia- Escritos Exumados – dimensões do conhecimento antropológico. V. 2. Niterói, Rio de Janeiro, 2000, p.237-298. SIMÕES, Lucieni de Menezes. Elos do Patrimônio: Luiz de Castro Faria e a preservação dos monumentos arqueológicos no Brasil, Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi – Ciências Humanas, v. 4, n. 3, setembro/dezembro, p. 421-436, 2009.

[ Artigo recebido em 07/2010 | Aceito em 09/2010 ]

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João Barbosa Rodrigues – cientista ilustrador1

JoãoBarbosaRodrigues–illustratorscientist

PAULO ORMINDO

ICHS/UFRRJ e ENBT/JBRJ

RESUMO Este artigo analisa a Arte Botânica, como forma de expressão artística e cientifica dentro das ciên-cias naturais e da história da arte, exemplificado nos desenhos e aquarelas do botânico e ilustrador João Bar-bosa Rodrigues. Para isto, é abordado alguns conceitos sobre a arte e ciência. A obra e a vida de João Barbosa Rodrigues são aqui abordados na busca de um entendimento da importância e do esforço no fazer botânico científico e artístico, em defesa, divulgação e registro do patrimônio ambiental da humanidade tão ameaçado pelas barbáries da humanidade.

Palavras- chave arte; ciência; botânica; ilustração botânica.

ABSTRACT This article analyzes the Botanical Art as a form of artistic expression and scientific research within the natural sciences and art history, exemplified in the drawings and watercolors of the botanist and illustrator João Barbosa Rodrigues. For this, we shall address some concepts on the art and science. The work and life of João Barbosa Rodrigues are addressed in the search for an understanding of the importance and effort in making botanical scientific and artistic, in de-fense, disclosure and registration of the environmental heritage of mankind as threatened by the barbarity of humanity.

Keywords arts; science; botany; botanical illustration.

Nascido na cidade do Rio de Janeiro em 22 de junho de 1842, João Barbosa Rodrigues era filho de um negociante português com uma brasileira descendente de índios. Passou sua infância no Sul de Minas Gerais, em Campanha. Desde cedo, teve muito contato com a natureza, fascinado pela exuberância e variedade das espécies da nossa flora. Retorna ao Rio de Janeiro aos onze anos de idade para frequentar o colégio, tendo como mestre Francisco Freire Allemão de Cisneiros (1797-1874), um talentoso artista e botânico, excelente influência para o jovem Barbosa Rodrigues.

Barbosa Rodrigues teve que lutar desde cedo por melhores oportunidades de educação. Encontrou muitos men-tores no meio intelectual brasileiro da época e logo começou a expressar seus talentos como escritor aos onze anos, ao publicar seus primeiros versos, e aos dezesseis, publica um livro de poesias, além de conduzir estudos nos campos da Linguística, Etnologia, Zoologia e Botânica. Freire Allemão logo percebeu o talento de Barbosa Rodrigues com temas relacionados à História Natural, levando-o a realizar suas primeiras excursões botânicas nos morros dos arredores do Rio de Janeiro. Freire Allemão também introduziu o jovem a Guilherme Schuech, barão de Capanema (1824-1908), que, além de botânico, era político e um dos muitos filhos ilegítimos do imperador Dom Pedro I. Tornaram-se grandes amigos e dele Barbosa Rodrigues obteve muito apoio, homenageando-o com o gênero Capanemia.2

Terminou seus estudos em 1859, na Escola Central de Engenharia, embora tivesse a pretensão de frequentar a Escola de Medicina. A morte repentina de seu pai fez com que abandonasse essa ideia em favor do posto de secretário

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do Instituto do Comércio. Em seguida, o barão de Capanema usou de sua influência para obter-lhe um lugar como secretário, e, logo, como professor de Artes no Colégio Dom Pedro II, tendo estudado, durante esse período, Economia Política e Desenho Técnico no Instituto de Comércio. Nessa época, Barbosa Rodrigues decide devotar seu tempo ao estudo das plantas, especialmente das orquídeas, e, mais adiante, das palmeiras.

Freire Allemão teve importante papel no estímulo e encorajamento prestado a Barbosa Rodrigues no que diz respeito ao aperfeiçoamento de suas técnicas como ilustrador e na participação de expedições científicas.

Em 1871, Rodrigues recebeu uma comissão do governo para explorar o Amazonas, com a intenção de corrigir e completar a monografia sobre palmeiras, feita por Martius para a Flora Brasiliensis.

Suas viagens pelo Amazonas duraram três anos e meio, durante os quais ele descobriu e descreveu setenta e duas novas espécies de palmeiras. O resultado desse trabalho foi publicado, em 1875, no seu Enunmeratio Pal-marum Novarum, e suas ilustrações e observações serviram como base para uma das mais magníficas obras sobre palmeiras, o livro in-folio Sertum Palmarum Brasiliensium, em dois volumes publicados em Bruxelas, no ano de 1903 (Figura 1).

Viúvo duas vezes, Barbosa Rodrigues casou-se pela terceira vez com Dona Constança Eufrosina da Borba Pacca (1844-1920), filha de um austríaco, capitão da guarda da Princesa Leopoldina. Além de ter-lhe dado treze filhos, seis

Figuras 1 e 1a Ilustrações de Barbosa Rodrigues que compõem o livro: “Sertum Palmarum brasiliensium”, Desmoncus paraensis Barb. Rodr., Scheelea corumbaensis Barb. Rodr., S. aniziitziana Barb. Rodr. e S. princips.Karst.

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homens e sete mulheres, nove dos quais nascidos quando viviam em Manaus, Dona Constança o acompanhou em muitas de suas expedições e também o auxiliou na preparação das ilustrações de orquídeas da Icnographie des orchi-dées du Brésil. A qualidade e habilidade do trabalho é fenomenal, levando-se em conta as condições difíceis em que as pinturas foram elaboradas. A descrição do gênero Constantina foi feita por Barbosa Rodrigues em homenagem a Dona Constança, companheira e esposa.

Decepcionado com o governo em virtude de não ter sido enviado para uma segunda expedição na Amazônia, pede demissão do serviço público e vai trabalhar na fábrica de inseticidas, propriedade do barão de Capanema, em Rodeio (atualmente Paulo Frontin). Essa pequena cidade, distante cerca de 86 km do Rio de Janeiro por ferrovia, foi uma sede temporária para seus estudos botânicos na região, que resultaram na descrição de várias orquídeas e palmeiras novas para a ciência.

Em 1883, a princesa Isabel cria o Museu Botânico do Amazonas, em Manaus, e Barbosa Rodrigues ocupa a sua diretoria de 1883 a 1890. Posteriormente, ele a homenageia, dedicando-lhe um novo gênero de orquídea, Isabelia. Barbosa Rodrigues deixa o cargo para assumir a diretoria do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, em abril de 1890. As exsicatas de suas coleções amazônicas parecem ter sido parcialmente perdidas, entretanto duas espécies do seu herbário particular foram, até o momento, encontradas:

Infelizmente,alémdedoisespécimes,oprimeirodescobertoporW.A.Rodriguesem1980eosegundo,CycnochespentactylonLindl.,descobertopeloDr.GustavoA.RomeronoMuseuNacionaldoRiodeJaneiro(Cat.Gen.No.44757ParáCol.J.BarbosaRodriguess.n.–IV-1881,Det.Barb.Rodr.)nãorestamtraçosdaexistênciadoHerbário.3

Foi, porém, uma grande sorte que ele tenha empenhado seu grande talento nas ilustrações das plantas que estu-dou. As 325 pranchas originais de orquídeas e o livro in-fólio Sertum Palmarum Brasiliensium se encontram depositados na Biblioteca João Barbosa Rodrigues, no Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

Em 25 de março de 1890, o naturalista Barbosa Rodrigues foi nomeado para dirigir o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, apresentando, em junho desse mesmo ano, as sugestões necessárias para o seu desenvolvimento. Relata ao ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Francisco Glicério, as condições precárias em que a área se encontrava, destacando:

(...)OlocalconhecidopelonomedeJardimBotâniconãoéactualmentemaisqueumméroparquederecreio,nãoseencontrandoahiamenorbaseparaestudo,quandojustamenteesseestabelicimentonãosãocreadossenãoparaescolaspraticasdehistórianatural,noramoaquesedestinam.Necessidadespalpitantesseoffe-

recem,pois,aquem,comoeu,foidestinguidopelogovernocomahonradedirigiresteestabelecimento.4

Assim, em 23 de junho de 1890, o general Manoel Deodoro da Fonseca, através do Decreto n. 518, determinou reorganizar o Jardim Botânico, norteado pelos pensamentos progressistas do diretor J. Barbosa Rodrigues. Este decreto estabelecia:

(...)“doisHerbários”–umdestinadoàsplantascultivadasnoarboretoeoutroàfloraemgeral,cadaumcomseurespectivoregistro,querepresentavam,naépoca,umacatalogaçãodessasplantas.Alémdisto,o decreto determinava que esse acervo fosse constituído de plantas desidratadas, inclusive os frutos,amostrasdemadeiras,fotografiasedesenhoseainda,umacoleçãoemálcool,tantodefrutosquantodeoutraspartesdaplanta.5

Sendo assim, Barbosa Rodrigues estabeleceu, no Museu Botânico, o herbário e a biblioteca, que não existiam, e, hoje, são os mais importantes do Brasil. Hoje, a biblioteca tem o nome de João Barbosa Rodrigues.

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Ilustrações de Barbosa Rodrigues

Barbosa Rodrigues, como cientista, fez uso da arte para representar seu objeto de estudo, preocupado com a botânica sistemática, obtendo excelentes resultados estéticos. O valor das suas aquarelas vai além da arte, e, somado ao da ciência, é inestimável, pois, em virtude de seu herbário ter sido destruído numa catástrofe natural, algumas de suas pinturas tornaram-se iconotipos, ou seja, as ilustrações valem como referência científica – tipos nomenclaturais, pois o material original das descrições se perderam, sendo os mesmos substituídos pelos desenhos, reconhecidos pelo Código Internacional de Nomenclatura Botânica como Lectotipos.6

As ilustrações de orquídeas de João Barbosa Rodri-gues, completadas no período de 1868-1885, estão entre os mais importantes documentos sobre as orquídeas brasi-leiras e, só em 1996, foram publicadas em toda sua íntegra. A Icnographie des Orchidées du Brésil, publicada por Friedrich Reinhard Verlag, Basileia, na Suíça (Figura 2), é composta por dois volumes: um contém as ilustrações e as identificações atualiza-das, com textos em quatro idiomas – português, inglês, francês e alemão; o outro volume contém a introdução em francês e as descrições originais de Barbosa Rodrigues em latim.

A incomparável contribuição do naturalista para o estudo e conhecimento da nossa flora não se res-tringe apenas às orquídeas: as palmeiras brasileiras foram por ele amplamente estudadas e ilustradas, resultando na magnífica obra em dois volumes Sertum Palmarum Brasiliensium, publicada no ano de 1903, em Bruxelas. Essa obra descreve 282 espécies de palmeiras, sendo 166 novas para a ciência, e contém 174 pranchas, reproduzidas em litografias, ilustrando os textos. As ilustrações desse esplendoroso trabalho é bem abrangente no que diz respeito às descrições das espécies: incluem o aspecto geral da planta em seu habitat, por vezes associadas a outras espécies para serem comparadas entre si, detalhes das flores e dos frutos (Figura 3).

Figura 2 Ilustração de Barbosa Rodrigues. Coryanthes sp. Capa do livro “Icnographie des Orchidées du Brésill”, 1996.

Figura 3 Sertum palmarum, 1903. Desenhos de Barbosa Rodrigues representando o habito e o habitat das palmeiras.

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As orquídeas de Barbosa Rodrigues são o que mais nos interessa no momento, pois ele foi o primeiro botânico brasileiro a ter interesse pelas orquídeas nativas do Brasil, tendo descrito 381 espécies e onze gêneros novos no seu trabalho básico Genera et Species Orchidearum novarum, no período de 1877 a 1882.7 Ele se correspondia com as melhores e mais ilustres figuras europeias dentro da Botânica, como H. G. Reichenbach, Cogniaux, Rolfe e Sir. Joseph Hooker.

Infelizmente, Rodrigues nunca publicou as ilustrações de orquídeas que havia preparado para acompanhar os textos. Entretanto, algumas delas foram amplamente usadas como modelos para as gravuras em preto e branco que acompanham o texto de Cogniaux para a monumental Flora Brasiliensis de Martius. O tratamento da Flora Barsiliensis sobre as orquídeas cobre, ao todo, 1765 espécies, distribuídas em 145 gêneros. Destas, 1455 espécies são nativas do Brasil e 310 ocorrem também nos países vizinhos. Das 372 pranchas ilustrando 762 espécies em tamanho natural, 267 são cópias dos originais de Barbosa Rodrigues (Figura 4). Aqui pode estar a resposta para o surpreendente resultado de Joseph Pohl, na Flora Brasiliensis de Martius (Figura 5). Aqueles desenhos possivelmente foram baseados também nos de Barbosa Rodrigues.

Figura 4 Desenho de Barbosa Rodrigues, usado na “Flora Bra-siliensis” por Von Martius.

Figura 5 Oncindium crispum Lodd . Uns dos desenho de Barbosa Rodrigues, usado na “Flora Brasiliensis” por Von Martius.

Figura 6 Baptistonia echinata Barb.Rodr

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Parte do trabalho de Barbosa Rodrigues ficou, por muito tempo, desconhecido, a despeito de sua real importância, devido à dificuldade de acesso a suas publicações sobre orquídeas e suas ilustrações. As ilustrações foram divididas entre duas instituições em dois países. Cinco volumes estão no Jardim Botânico do Rio de Janeiro: o volume I com 78 pranchas, o volume II com 50 pranchas, o volume III com 76 pranchas, o volume V com 49 pranchas e o volume VI com 72 pranchas, somando ao todo 325 pranchas. O volume IV está no Herbário Oakes Ames, na Universidade de Harvard, USA.

As 325 pranchas examinadas, somadas às da Universidade de Harvard, chegam a 389, apre-sentando o estudo de 576 espécies – informação um tanto conflitante, considerando as 1000 ilustrações mencionadas por Barbosa Rodrigues e seus contemporâneos. Segundo Phillip Cribb e Antônio Toscano de Brito:

Atéomomentonão foi encontradaumarespostasatisfatóriaaestefato,massabe-sequeaspranchassobreviventessãoprin-cipalmentebaseadasnasespéciesnovasdeBarbosaRodrigues.Épossível queaspinturas perdidas tratassem de espéciespreviamente descritas e já conhecidasparaaciência.8

Um conjunto quase completo de cópias das aquarelas de Barbosa Rodrigues, feitas no final do século XIX, encontram-se no herbário de Orquídeas do Royal Botanic Gardens de Kew, Inglaterra. Trata-se das 550 ilustrações que Lady Thiselton-dyer, esposa do terceiro diretor

do Royal Botanic Gardens, Kew, e filha do segundo diretor, Sir Joseph Hooker, copiou dos originais de Rodrigues para a coleção de Kew. As cópias servem como referência para os originais que não se encontravam em boas condições no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Podem-se observar a cor e o estado do original que se encontra na Biblioteca Barbosa Rodrigues (Figura 6), antes e depois da restauração, baseados na cópia que se encontram em Kew, em função principalmente do ambiente inadequado onde são guardadas.

As condições dos cinco volumes que se encontram no Jardim Botânico do Rio de Janeiro eram precárias, o papel estava apresentando sinais do ataque de fungos, descolorido e visivelmente danificado em inúmeras pranchas.Em 1996, esses trabalhos foram restaurados na Suíça, por ocasião da editoração dos manuscritos, e hoje se encontram em melhores condições, mas verifiquei todas as 325 pranchas que aqui se encontram, uma por uma, e constatei que necessitam de um armazenamento mais adequado, pois já apresentam sinais de acidez, e, se algo não for feito elas podem voltar às condições anteriores.

Figura 7 Zygopetalum pedicellatum (Thumb.) Garay.

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Foram necessários 130 anos para vir à tona toda a obra de Barbosa Rodrigues, inclusive as ilustrações deste eminente botânico brasileiro. Na introdução de Genera et Species Orchidearum novarum, Barbosa Rodrigues diz:

(,,,)oobjetivoquesemprequisalcançarédereunireapresentarnumsóvolumetodasasespéciesbrasileiras,tantoasconhecidascomoasnovas,fornecendoaorigemcorretadamaioriadelasedescrevendoariquezaevariedadeeonúmerodeespéciesdestabelaefascinantefamílianomeupaís.9

Ele já havia declarado, em 1877, que suas ilustrações seriam úteis tanto para profissionais como para amadores da Botânica e horticultores, diz no Avant-Propos da Icnographie des orchidées du Brésil:

CetteIconographieseraindispensableausavant,ál’amateuretaufloriculteur;elleleurinspirerad’autantplusdeconfiancequ’ilsaurontlacertitudequ’elleaétéfaitd’aprésdesorchidéesvivantes,etnonsurdesindividusdesséchés,conservésdansdesherbiers,quidonnenttrès-fréquemmentlieuádeserreurssoitdanslesdescripitions,soitsurtoutdanslesdessins.Autantquejel’aipu,ceserreursontétécorrigées.10

RiodeJaneiro,20Jullet1877J.B.Rodrigues

João Barbosa Rodrigues ilustrou quase seiscentas espécies de orquídeas brasileiras, e suas pranchas representam uma fonte fundamental de informações sobre as espé-cies da flora brasileira. A qualidade dessas ilustrações, muitas feitas em seu ambiente natural, o detalhamento das partes florais e seu colorido exato tornam a coleção obra da maior importância, especialmente como referência para aqueles interessados nas orquídeas do Brasil. Mais de 370 delas podem ser consideradas “material tipo” dos nomes, uma vez que não foram localizados as plantas desidratadas que originaram as descrições, tanto na forma de exsicatas quanto preser-vadas em meio líquido.

Possivelmente, muitas das áreas on-de Barbosa Rodrigues coletou amostras, desenhou e trabalhou, hoje se encontrem totalmente desfiguradas, não apresentem mais a vegetação natural, sendo cidades ou áreas de plantio. Algumas das espécies que ele ilustrou, são raras ou até mesmo beiram a extinção. Rodrigues visitou os quatro cantos do país, desde o Rio de Janeiro e Minas Gerais até o Amazonas.

Comentário significativo é apresentado por Samuel Sprunger, editor da Ignographie des orchidées du Brésil, sobre as ilustrações de Barbosa Rodrigues:

Figura 8 Oncindium crispum Lodd. A inflorescência aqui e cortada para compor a prancha em virtude do tamanho da planta e as estruturas internas nas flores são som-breadas com grafite para evidenciar as formas dos calos, que são caracteres mor-fológicos importantes para a classificação das espécies neste grupo de orquídeas.

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Asilustraçõessãoaomesmotemporaras,originaisedealtaqualidade,e,juntamentecomostextosdes-critivos,sãoumaimensafontedeinformação,naqualoautordemonstrouquerigorcientífico,amoraodetalheebelezaartísticanãosãodemodoalgumincompatíveis.OartistabotânicoBarbosaRodrigues,noentanto,nãodevesercomparadoaosseuscontemporâneos,osimpressionistas,queutilizavamanaturezaemseutrabalhoparaexpressaroseuconceitodemundo.BarbosaRodriguesfoiumartistabotânicodealtogabarito,dotipoqueaindahojeéinsubstituívelemcomparaçãocomamelhorfotografiaouimagemgeradaporcomputador,devidoàquantidadedeinformaçãoquepodesertransmitidaatravésdeumasimplesilustração.11

A qualidade técnica das ilustrações é espantosa, algumas cores se mantêm vibrantes, o desenho é superpreciso, a aquarela é usada de maneira clara e, por vezes, ele usa o grafite para marcar alguns detalhes. Muitos desenhos estão “inacabados”, têm partes só com o contorno linear, outras partes pintadas. Os desenhos de Barbosa Rodrigues são feitos com extrema habilidade: ele realiza parte do trabalho em grafite e parte em aquarela, possivelmente por falta de tempo ou simplesmente por não ver necessidade de pintar toda a planta. O resultado parece ser intencional. Barbosa Rodrigues encontrou uma bela solução, que gera um contraste vibrante entre as duas técnicas – aquarela e grafite –, com extraordinário efeito estético (Figura 7). Por vezes, as técnicas de grafite, aquarela e guache se misturam (Figura 8). Ele era habilidosamente meticuloso, extremamente organizado e seguro nas observações morfológicas das plantas e nas composições. Não observei nenhum traço de borrão ou rasura em seus trabalhos (Figura 9).

As pranchas feitas por Barbosa Rodrigues podem conter mais de uma espécie representada, podendo chegar até oito em alguns grupos, como Pleurotalis e Octomeria, devido ao pequeno porte, motivo pelo qual encontram-se mais espécies descritas do que pranchas (Figura 10). Entretanto, algumas espécies já ocupam duas folhas para formar uma prancha, em virtude de todas as plantas terem sido desenhadas em tamanho natural. Outras vezes, talvez tenha usado o recurso de dobrar o ramo floral ou até mesmo cortá-lo e desenhá-lo em partes separadas – os detalhes se encontram com escalas indicando o aumento. Todas as ilustrações estão assinadas e datadas, e, em muitos casos, ele fazia observações que achasse pertinente. O tamanho das pranchas é de 26 cm x 36 cm e, no caso das pranchas duplas, de 52 cm x 36 cm.

As ilustrações associadas aos textos representam uma importante fonte de informação e registro de espécies que podem estar ameaçadas ou até mesmo extintas, sendo considerados o único elemento sobrevivente do material de Barbosa Rodrigues. Neles – ilustrações e textos – vários nomes de orquídeas brasileiras estão baseados e, além do valor histórico, científico e artístico que representam, dentro de suas infinitas pos-sibilidades, têm servido aos brasileiros em

Figura 9 Psilochitus modestus Barb. Rodr. É visível a naturalidade das plantas Ilustradas por Barbosa Rodrigues e o requinte em suas composições.

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Figura 10 Pleurotalis, prancha contendo ilustrações de cinco espécies de orquídeas de um mesmo gênero.

Paulo Ormindo é desenhista botânico. Formado em Gravura pela Escola de Belas Artes da UFRJ, mestre em Ciência da Arte pela UFF, Instituto de Arte e Comunica-ção Social, Programa de Pós-graduação em Ciência da Arte, e especializado em Ilustração Botânica pelo Royal Botanic Garden Kew-UK. É chefe do Departamento de Artes e professor de Ilustração Científica, Desenho e Aquarela Botânica no Curso de Licenciatura em Belas Artes do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Desenvolve pesquisa sobre a Arte Botânica no Brasil e é professor do programa de extensão em Ilustração Botânica da Escola Nacional de Botânica Tropical/JBRJ. E-mail: [email protected]

Agradecimento à biblioteca João Barbosa Rodrigues / JBRJ.

1 O presente artigo é desdobramento de minha dissertação de Mestrado, 2002 UFF, Instituto de Arte e Comunicação Social, Programa de Pós–graduação em Ciência da Arte. “A Ilustração:sua importância na botânica e na arte” e foi apresentado no “Seminário Barbosa Rodrigues. Um naturalista brasileiro”, realizado em outubro de 2009, na Escola Nacional de Botânica Tropical/JBRJ.

2 SPRUNGER, S.; CRIBB, P.J.W. e TOSCANO DE BRITO, A.L.V. (Orgs.), João Barbosa Rodrigues, Icnographie des Orchidées du Brésil. Basileia: Friedrich Reinhard Verlag, 1996.

3 SPRUNGER, S.; CRIBB, P.J.W. e TOSCANO DE BRITO, A.L.V. (Orgs.), João Barbosa Rodrigues, Icnographie des Orchidées du Brésil. Basileia: Friedrich Reinhard Verlag, 1996.

4 MARQUETE, N. F. da S., CARVALHO, L. d’Á. F. de & BAUMGATZ, J. F. A.de. (Orgs.) O Herbário do Jardim botânico do Rio de Janeiro: Um expoente na história da flora brasileira. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, 2001.

5 MARQUETE, N. F. da S., CARVALHO, L. d’Á. F. de & BAUMGATZ, J. F. A.de. (Orgs.) O Herbário do Jardim botânico do Rio de Janeiro: Um expoente na história da flora brasileira. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, 2001.

6 GREUTER, W. International Code of Botanical Nomenclature. Königstein, Germany: Koeltz Scintifc Books, 1994.

7 a 11 SPRUNGER, S.; CRIBB, P.J.W. e TOSCANO DE BRITO, A.L.V. (Orgs.), João Barbosa Rodrigues, Icnographie des Orchidées du Brésil. Basileia: Friedrich Reinhard Verlag, 1996.

12 SALGADO, Dilke de Barbosa Rodrigues. Barbosa Rodrigues uma gloria no Brasil, [1942]).

[ Artigo recebido em 07/2010 | Aceito em 10/2010 ]

duplo sentido: o científico e o político, pois refletem os percalços que nossos ilustres pesquisadores e suas pesquisas enfrentam para o desenvolvimento de uma nação.

João Barbosa Rodrigues faleceu em 1909, ainda como diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Beneficiou o estudo da Botânica adi-cionando com maestria a arte a esta ciência no Brasil, além de preservar e divulgar as orquídeas, uma das “joias” nacionais tanto do ponto de vista artístico como científico. João Barbosa Rodrigues nos legou inesgotável fonte de informação, sendo considerado um gênio por uma de suas descen-dentes, Dilke de Barbosa Rodrigues Salgado:

Gênio,sim,poissomenteumgênioaosvinteeseisanosdeidadepoderiaterconcebidoobratamanha:aIgnographiedesorchidéesduBrésil,aprimeiradasgrandesbatalhasdeBarbosaRodrigues.12

Notas e referências bibliográficas

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Delimitando as fronteiras: a musealização da botânica

Demarcatingborders:themuzealizationofbotany

LUISA MARIA ROCHA

Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro

RESUMO Este artigo propõe uma reflexão acerca da trajetória de construção e transformação do Museu Botânico do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, concebido por João Barbosa Rodrigues, com o intuito de compreender o processo de musealização dessa área especializada do conhecimento a partir de uma articulação no âmbito institucional, social e epistêmico.

Palavras-chave Museu Botânico; musealização; vulgarização; informação; exposição.

ABSTRACT This article proposes a reflection on the path of construction and transformation of Botanical Museum belonging to the Botanical Garden of Rio de Janeiro, designed by João Barbosa Rodrigues, in order to understand the process of musealization of that specialized area of knowledge from a joint in the institutional, social and epistemic scope.

Keywords Botanical Museum; musealization; vulgarization; information; exhibit.

A musealização de uma área do conhecimento pode ser estudada a partir das intenções e estratégias empreen-didas na concepção e constituição do projeto museológico, que confere uma determinada organicidade significativa ao todo.1

Ainda que elegendo um patrimônio material capaz de representá-la simbolicamente, a musealização é decorrência de uma articulação no âmbito institucional, social e epistêmico. A proposta de analisar a “biografia”2 do Museu Botânico do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), concebido por João Barbosa Rodrigues, tem como objetivo apontar alguns momentos de sua trajetória em que essa articulação não apenas propiciou o processo de musealização dessa área do conhecimento, mas, sobretudo, definiu a sua matriz gnosiológica.

O Jardim Botânico constitui um “lugar” privilegiado para compreensão da institucionalização do campo disciplinar da Botânica a partir de um processo de musealização que envolve não somente a formação de coleções ou o inter-câmbio científico, mas, antes, um determinado olhar museológico, que recorta certo objeto de um contexto social, político e cultural, e o insere numa rede institucionalizada de práticas culturais com a intenção de sua permanência e comunicação. Assim, o Jardim e o Museu Botânico de Barbosa Rodrigues constituem uma “construção contextualmente específica que guarda as marcas de uma contingência situacional, que não pode ser adequadamente entendida sem uma análise da sua construção”.3

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Aspecto Institucional

“Sãoosjardinseosmuseusqueclassificamedeterminamosvegetaesdeseupaiz,e,sónãoofazemaquellesquenãoospossuem.”4

No Decreto nº 518 de 23 de junho de 1890, o regulamento proposto pelo então recém-nomeado diretor João Barbosa Rodrigues estabelecia a missão, os objetivos e a estrutura do Jardim, realinhando-os com a Ciência Botânica, ao mesmo tempo que delimitava as fronteiras e aplicações dessa especialidade.

O cunho científico da coleção e da instituição foi assegurado pela missão de estudo e classificação dos vegetais por “methodos scientificos” e pela elaboração do catálogo geral, com a finalidade de realizar intercâmbios com institui-ções congêneres no exterior.5 Ao definir como foco da coleção viva o cultivo de plantas úteis com emprego na Ciência, Agricultura, Artes e Indústria, Barbosa Rodrigues apontou áreas de aplicação e interlocução da Ciência Botânica.6

Essa linha conceitual também nortearia a composição do acervo do Museu Botânico, que abrigaria um herbário a ser formado pelas “plantas cultivadas no parque” e um pela “flora geral”, representados “por folhas, flores, fructos seccos e em álcool e seus produtos”. A preocupação com a Agricultura7 e a Indústria Nacional teve seu reflexo na inclusão no acervo de “instrumentos e apparelhos agrícolas e productos industriaes, tirados dos naturaes”. Algumas máquinas8 e instrumentos eram remanescentes da gestão anterior: “Existindo no jardim grande numero de instrumentos agrários, convem aproveitar os typos de todos elles e expo-los em salão próprio, entregando as duplicatas ao governo, sempre deixando as que puderem servir às culturas”.9

Integraria ainda essa coleção amostras de “madeiras de lei”, algumas encontradas pelo naturalista “no lugar denominado salitre” do Jardim Botânico.10 O acervo11 do Museu Botânico seria exposto nos salões do prédio do “antigo museu industrial”,12 devidamente identificado, classificado e ordenado sob critérios taxonômicos em novos armários e vitrines adquiridos em sua gestão.

A formação e a organização desse acervo precisariam de profissionais qualificados para realizar desde a coleta até a ordenação do material. Para tal, o regulamento criou o cargo de naturalista-viajante, à semelhança do Museu Nacional,13 com essas atribuições, além da responsabilidade pela “conservação do herbário e dos productos que existirem no museu”.14

Determinado a configurar o Jardim como “lugar” da Botânica Brasileira, Barbosa Rodrigues estabeleceu requisitos para nomeação ao cargo de diretor, em particular, a “qualidade de cidadão brasileiro” e a “capacidade profissional provada por trabalhos botânicos que tenham sido aceitos por autoridades scientificas”.15 Seus esforços se direcionaram ainda para a “vulgarização” da Botânica, com o intuito de despertar o interesse e promover o estudo botânico.

No regulamento de 1890, Barbosa Rodrigues não delimita as fronteiras entre Jardim e Museu Botânico; apenas designa o segundo como “lugar” das coleções científicas e das exposições, nele anexando ainda a biblioteca, labora-tório de análises orgânicas e observatório meteorológico. Provavelmente inspirado nos museus de história natural,16 os quais abrigavam em sua estrutura regimental as coleções científicas, estudo, ensino e vulgarização, o naturalista concebeu um museu de caráter científico apoiado na coleção e no estudo, com uma vertente de instrução17 baseada na exposição e nos recursos de visualização.

No regulamento de 1904, Barbosa Rodrigues propõe uma mudança regimental delimitando as fronteiras entre Jardim e Museu, de maneira que ambos fossem complementares na consecução da missão institucional. Essa guinada objetivava não somente a classificação e determinação dos “vegetaes de seu paiz”, conforme citado na epígrafe, mas a afirmação da Ciência Botânica praticada no Brasil.

A transformação da concepção do Museu tem início no deslocamento do herbário, da biblioteca e do observatório para o Jardim, que passaria também a abrigar uma escola botânica, o campo de experiências e viveiros, os refrige-ratorios, os jardins, o laboratório e o arboretum.18 Esse deslocamento acompanha a tendência iniciada na Europa, no

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final do século XIX, de distinguir as coleções de referência e o trabalho científico da ação de observação e educação do público leigo.

O Museu Botânico foi então seccionado nas divisões de Botânica e Florestal. Na primeira, estariam reunidas as coleções de “vulgarização”, “introdução ao estudo da Botânica”, “sistemática elementar” e “flores, frutos e produtos vegetais”. Essas coleções, organizadas e colocadas “ao alcance do público”, serviriam de “poderoso elemento para os estudos feitos, ou por particulares ou nas escolas”.19

Ao priorizar a dimensão da vulgarização e educação, o diretor insiste nos desenhos ou modelos como recurso didático para representar a organização interna e externa das plantas, em especial as estruturas e os fenômenos fisiológicos. Na análise de Irina Podgorny e Maria Margareth Lopes:20 “uma representação gráfica vale muitas vezes mais que a melhor descrição”.

A separação entre a coleção de pesquisa e de vulgarização seria efetivada na formação de uma coleção21 extraída do herbário, dedicada a apresentar a classificação botânica pela representação das principais famílias, por gêneros e espécies, disposta em volumes encadernados para manuseio do público. Uma coleção de amostras de flores, folhas, frutos secos e em álcool e sementes seria preparada para “vulgarização”, de forma a evidenciar a lógica do estudo da Botânica e a organização científica dos espécimes. O caráter científico seria ainda assegurado pela manutenção de uma única numeração para a coleção do museu e do herbário, com vistas à comparação do material de estudo.22

Na divisão florestal do Museu, as amostras de madeiras estariam agrupadas segundo “os caracteres de cada uma, sob os pontos de vista technico e botânico”. Isso porque a apresentação de uma série de amostras classificadas permitiria a comparação e o estudo da Ciência Botânica, ao mesmo tempo que atenderia as necessidades técnicas utilitárias concernentes à política governamental. Tal coleção compreendia “as madeiras de lei, de marcenaria, de construção naval e civil” e era complementada por quadros de flores e folhas, testes de resistência e elasticidade, desenhos microscópicos das estruturas e informação sobre sua procedência.23

As amostras dos produtos vegetais brutos, como resinas, gomas, óleos, fibras e aqueles preparados e manu-faturados seriam exibidas no Museu, juntamente com a coleção de instrumentos agrários.24 A convivência no acervo museológico de naturalia e artificialia tinha como propósito evidenciar o processo de transformação de uma categoria em outra e os instrumentos empregados.25

A fronteira entre pesquisa e exposição, coleção de referência e de vulgarização foi ainda delimitada pelo controle do acesso privado e público. Assim, biblioteca, herbários, viveiros e refrigeratorios eram de “uso privativo do Jardim”.26

A análise dos regulamentos do Jardim evidencia a tentativa de consolidá-lo como “lugar” da Ciência Botânica, através da musealização dessa área especializada de conhecimento. Em 1890, a musealização da botânica repousava na formação de coleções para um público especialista e de amadores que buscavam exemplares para pesquisa e es-tudo comparativo. Em 1904, sem perder seu caráter científico, a musealização se direciona para a apresentação não exaustiva de uma coleção de vulgarização, contemplando os aspectos educativo e didático necessários ao processo de transmissão do saber para o público leigo.

Aspecto Social

“Apossessãodeummuseuseequiparaaumsímbolodecivilizaçãoedeestarnomundodeacordocom

otomdostempos.”27

O Jardim manteve vínculos sociais pautados em intercâmbios com algumas instituições científicas do país e do exterior. Os intercâmbios nacionais foram realizados, na sua maioria, a partir de uma rede de colaboradores

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organizada pelo naturalista, com a nomeação de correspondentes nos diversos estados brasileiros encarregados de remeter plantas vivas e secas, além de produtos naturais e industriais para o enriquecimento da coleção viva, do museu e do herbário.28

Os intercâmbios internacionais tinham como finalidade a troca de informações científicas, além de plantas e sementes. Na visão de Maria Margareth Lopes,29 as coleções dos Museus de História Natural se constituíram no “prin-cipal veículo que garantiu a inserção desses museus no panorama mundial”. Essa afirmação pode ser contextualizada no Jardim Botânico pela frase de Barbosa Rodrigues no relatório de gestão:30 “torna-se cada dia mais accentuada a permuta de correspondencia, plantas e sementes, entre a directoria do Jardim Botânico e os chefes de associações scientificas e jardins dos paizes estrangeiros”.

Na visão de Barbosa Rodrigues, tais relações conferiram à instituição o reconhecimento científico há muito al-mejado.31 Contudo, para alcançar esse patamar, o naturalista enfatizava a importância das informações e observações científicas sobre os espécimes da coleção, bem como sua determinação e classificação. Então, os intercâmbios de publicações científicas possibilitavam atender a demanda de “ordenar a natureza”, na medida em que estas ampliavam a “capacidade de comparar e classificar coleções e estabelecer prioridades científicas”.32

A rede de intercâmbio nacional e internacional, importante para a consolidação da Botânica no Jardim, trouxe a reboque o afloramento da personalidade de seu diretor, que, devido à incipiência organizacional da instituição, nela imprimiu a sua marca pessoal, com força suficiente para influenciar os rumos institucionais em novos contextos culturais. O próprio modelo de museu, inspirado em instituições europeias, sofreu não somente adaptações às condições locais, mas também às suas características biográficas.

Os vínculos sociais foram reforçados em viagens e encontros científicos. Em 1903, a ida de Barbosa Rodrigues para a Europa integrava o que Maria Margareth Lopes33 denominou de uma “tradição de viagens e comentários”, existentes entre os diretores de museus, que divulgavam seus relatos por meio de publicações. Ao acompanhar a publicação de seu livro Sertum Palmarum Brasiliensis, o naturalista visitou os principais jardins e museus de história natural. Suas críticas e elogios às instituições europeias são indícios fundamentais na reorganização do Museu em 1904, com destaque para a transferência das coleções de referência para o Jardim e a ênfase na instrução e vulgarização no Museu.

A participação do naturalista em conferências e encontros científicos, além de contribuir para a sua reputação e profissionalização como diretor de um Jardim Botânico, marcava sua atuação na área da Botânica. Complementam essa rede científica as publicações, principal meio de comunicação do mundo acadêmico, que representavam “entrar na natureza e nas bibliotecas internacionais”. Isso porque possuir uma coleção de referência e uma biblioteca multiplicada por livros e imagens significava conectar “a natureza local com a de todo o planeta”.34

No regulamento de 1904, Barbosa Rodrigues evidencia o “lugar” histórico-social de onde construía as bases de “seu Jardim”. Ao propor uma reestruturação institucional que continuasse a sua “marcha progressiva” e rasgasse “novos horizontes com mais utilidade para o paiz”, o então diretor definia o seu alinhamento com o contexto científico, social e político do Brasil Republicano.35 Ordem, progresso e utilidade da ciência para o país perpassavam as ações de organização da instituição, ao mesmo tempo que patriotismo, dedicação e saber eram requisitos para um “bom botânico” compromissado com o “inventário” e “estudo” da flora nacional.36 Nesse sentido, o “patriotismo” se referia à descoberta e valorização das riquezas naturais para enriquecimento da ciência e do país, a “dedicação” à dupla jornada de trabalho teórica e prática do botânico, e o “saber” envolveria a capacidade comprovada por estudos acadêmicos com referir científico.

As relações sociais e científicas estabelecidas respeitavam os padrões internacionais, mas tentavam também romper com a visão centro-periferia entre Europa e Brasil e construir as bases para galgar um “lugar” no “mundo ci-vilizado”. Como esclarece Margarida de Souza Neves e Alda Lucia Heizer,37 “ser civilizado” significava espelhar-se no modelo e nas necessidades dos grandes centros, em particular França e Inglaterra.

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Esse “lugar” estava calcado no potencial da instituição de, por um lado, formar coleções botânicas que repre-sentassem a riqueza da flora do Brasil e, por outro, promover a “instrução pública” baseada em estimular o espírito científico a partir da observação, estudo e comparação. O objetivo maior residia no processo de formação cultural que, baseado nas disciplinas especializadas das ciências naturais, visava consolidar valores “universais” ressignificados pelas especificidades locais.

A criação de um Museu Botânico também refletia o desejo do naturalista de inserção no mundo civilizado. Ao implantar uma determinada visão de ciência e vulgarização, Barbosa Rodrigues assumiu algumas posições no panora-ma das discussões nacionais, em particular, sobre a importância da instrução pública nos museus e jardins botânicos. O naturalista entendia a vulgarização não apenas como “colocar a ciência na vida das pessoas”,38 mas também com o objetivo pedagógico e formador.39 Tal qual o biólogo francês Louis Couty (1854-1884), o diretor propõe uma vulgarização científica voltada ao público ilustrado, qualificado como botânicos, estudantes e amadores interessados em estudar, descrever e comparar a flora nacional.

A instrução pública, então, estava baseada no arranjo sistemático das coleções e sua classificação científica, para que o visitante aprendesse a “ordem da natureza”. Nesse caminho, o Museu não apenas instruía, mas apresentava a própria “civilização”, com vistas a sua finalidade educadora – a promoção do “processo civilizatório”.40

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Figura 1 O diretor do Museu Botânico João Barbosa Rodrigues em seu gabinete. (Acervo Museu do Meio Ambiente/JBRJ)

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Aspecto epistêmico

“Paizquepossueumafloracomoanossa,precisadarelementosqueformembotanicosparaquesenãoappareçaofactodeseremnossasplantasconhecidassóportrabalhosdebotanicosestrangeiros.”41

No século XIX, a consolidação da História Natural como ciência se deu sob a premissa da “purificação” dos objetos, baseada na neutralidade dos procedimentos descritivos da natureza e no seu ordenamento segundo critérios lógicos de classificação, então apoiados nos seus traços comuns. Naquele momento, o local de reunião destes “documentos” passa a ser o das coleções, em especial, a dos herbários e jardins botânicos.42 Mudando a lógica do conhecimento enciclopédico e extensivo característico do colecionismo, o museu moderno procura as leis universais que “regem a regularidade da natureza” e, com isso, associa sua constituição a diferentes projetos intelectuais: “a ordem reinante nas coleções deriva da ordem que se atribui à Natureza”.43

Nos jardins botânicos, assim como nos museus de história natural, o sistema de classificação do botânico Lineu, de 1735, passou a ser o princípio que organizava os objetos, tanto na coleção quanto na exposição ao público. Os es-paços institucionais se constituíram nos locais de celebração da ciência moderna e acompanharam o desenvolvimento da produção do conhecimento na História Natural44 e de suas especializações.45

O Jardim Botânico do Rio de Janeiro, que, na sua criação, objetivava o desenvolvimento de técnicas de aclimatação de espécies exóticas, aos poucos foi incorporando o papel da pesquisa em ciência, em particular na área da Botânica. Ao assumir esse papel em 1890, Barbosa Rodrigues promoveu um alinhamento com as concepções de ciência e coleção, então vigentes, reorganizando e classificando os acervos, redefinindo a informação científica disponibilizada e requalificando o seu público.

A informação associada ao objeto tornou-se um “certificado” de procedência46 para seu ingresso na coleção e, somada àquelas advindas da identificação, classificação e propriedades técnicas utilitárias, atuava no museu como instrumento educativo de um público interessado no estudo e instrução científicos. Contudo, como afirmam Podgorny e Lopes,47 o caráter útil da coleção não advinha da função pública, mas de sua origem certificada e de sua finalidade científica.

A classificação taxonômica determinou a organização das coleções e forneceu as bases da informação científica apresentada no Museu. A coleção especializada seguia a “lógica intrínseca” de sua série natural específica, baseada na organização por critérios morfológicos.48 Esse critério influenciou o uso de recursos de visualização nas exposições, nos quais desenhos, modelos e fotografias possibilitavam observar detalhes da estrutura vegetal de difícil percepção ao olhar humano, em particular, aquele não treinado.

No processo de configurar o Jardim Botânico como o “lugar” da Ciência Botânica, Barbosa Rodrigues sobrevalorizou a atividade de lazer na sua análise da gestão anterior49 para, em seguida, propor criticamente a ruptura com este modelo e o início de um direcionamento para a ciência e sua especialização. Assim, não se tratou de um “novo” caminho para o Jardim, mas, antes, a adequação da instituição às concepções científicas vigentes, marcadas também pela trajetória biográfica de seu diretor e pelas necessidades decorrentes de seu vínculo político-administrativo.

A criação de um museu, no panorama nacional, conforme análise de Maria Margareth Lopes, encontrava-se favorecida pelo crescimento do número e da importância científica e social dos museus relacionados às Ciências Naturais, em função da “consolidação de diferentes elites locais e de iniciativas científicas regionais”, do “surto de desenvolvimento material do país” e da “valorização da ciência como prática concreta e como instituição social”. No âmbito internacional, os museus ganhavam força com as mudanças das Ciências Naturais em direção à “expansão de diferentes áreas disciplinares e instituições científicas e pelo incremento da especialização e profissionalização dos técnicos e cientistas”.50

A conjuntura nacional e internacional do final do século XIX, associada à formação de uma grande rede de intercâmbios científicos de museus de história natural e jardins botânicos, permite compreender tanto a proposta de

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criação do Museu quanto a escolha arrojada por uma área disciplinar capaz de consubstanciar a imagem do Jardim como o “locus” da Botânica, a despeito da visibilidade e da importância já alcançadas pelo Museu Nacional nessa área do conhecimento. Na visão de Podgorny e Lopes,51 a “criação de cada um destes estabelecimentos ignorava a existência de outros e almejava se consolidar, seu funcionamento se caracterizaria pela competência interinstitucional de obter recursos do Estado”.

No contexto da institucionalização das ciências no Brasil, identificamos, na iniciativa de Barbosa Rodrigues, a busca pela apropriação e delimitação de espaços institucionais que propiciassem não somente a consolidação da ciência, mas da própria comunidade científica. Nesses espaços, tentava-se plasmar determinadas concepções científicas voltadas para especificidades de um campo disciplinar.

Assim, a proposta de institucionalizar e consolidar a área Botânica no país definindo seu locus no Jardim adquire um cunho estratégico sob o ponto de vista institucional, social e epistêmico, na medida em que delimita as fronteiras disciplinares, estabelece uma rede social e científica e fortalece uma determinada visão de ciência, direcionada para a formação e estudo das coleções, sob o viés taxonômico e sistemático, e para o ensino e a “instrução pública” de uma determinada especialidade.

A Taxonomia tornou-se, então, um dos pilares do Jardim Botânico no conhecimento da flora, como explicitado em um comentário do diretor:52 “que nos importa a nós, que temos uma flora gigante e quasi desconhecida, a orga-nização de uma cellula vegetal e a sua transformação, si não conhecemos muitas vezes empiricamente o vegetal a que ella pertence?”.

Defendendo o levantamento da nossa diversidade vegetal pelos cientistas brasileiros, a epígrafe de Barbo-sa Rodrigues é um alerta para a necessidade de consolidar a botânica brasileira institucionalmente, através de relações políticas, científicas e sociais que propiciem a formação de novos cientistas para a tarefa de conhecer a nossa flora nacional.

A musealização da Botânica

“Dicotomiaentrepesquisaeensino,traduzidapelaseparaçãodecoleçõesdeestudoecoleçõesdeexposição;(...)museuscomplexosoumuseusespecializados;maioroumenorvalorizaçãodosaspectoseducativosparaamplospúblicos,essesforamosaspectosespecíficos,locais,queassumiramasquestõescentraisemquesedebateramosmuseusemtodoomundonatransiçãodoséculo.”53

Os museus se definem em função da sua matriz gnosiológica, que envolve não somente as teorias do conhecimento e da aprendizagem,54 como também a de comunicação e informação, essenciais para a reflexão acerca da relação ciência e público. Nos diferentes contextos históricos e sociais, tanto as áreas do conhecimento quanto as teorias que compõem essa matriz sofreram variações em função dos paradigmas vigentes, das perspectivas dos profissionais envolvidos e da interpretação e apropriação das práticas teórico-metodológicas.

A proposta do Museu Botânico pode ser analisada como uma abordagem sistemática tanto na representação quanto na organização museológica, na medida em que a museografia evidencia a estrutura da Ciência Botânica e os seus procedimentos na classificação da flora. Como uma construção de ordem cultural, as regras que operam a construção do espaço museal são decorrentes da racionalidade da época, eminentemente taxionômica.

No âmbito da representação, prevaleceu uma relação de apropriação simbólica do representado que “implica um movimento de tradução do outro para uma ordem e um sentido compatíveis com o mundo do sujeito que repre-senta”, e nesse sentido, no Museu e Jardim Botânico, operou-se a encenação da “subordinação da natureza à ordem sistemática da ciência”.55

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O regime museológico56 predominante pode ser denominado de “espelho epistêmico”, uma vez que organiza e apresenta a musealia como a textualidade material da teoria sistemática científica. Tal regime apoia-se na associação triangular de “ciência”, “natureza” e “verdade”, tornando os termos intercambiáveis e dissolvendo a fronteira entre os museus de ciência e da natureza: “Através da prática da ‘pura descrição’, a ciência coloca um mundo existente ‘objetivo’, que não contempla o específico”.57

A informação é concebida em função da sua adequação a um visitante ideal. A busca pelo “homem civilizado”, que domina um amplo espectro de assuntos, temáticas e referências, tem seu escopo e abrangência relacionados a uma determinada visão e posição social do que seria “cultura” e, portanto, do que seria “ciência”.58

Na apresentação da informação, delimita-se o conteúdo a ser transmitido e trabalha-se linearmente a sua or-ganização lógica em grau crescente de complexidade, dando ênfase às regras universais consideradas como “verda-deiras” em qualquer contexto histórico-social. O conhecimento museografado consolida e institucionaliza os domínios disciplinares, cabendo ao sujeito a assimilação por adição dessa estrutura de caráter científico que independe do seu contexto espaçotemporal.

Nas vitrines do Museu Botânico, “naturalia” e “artificialia” conviviam para evidenciar o processo de transformação técnico-científico das categorias. Segundo Francesco Panese,59 a história da apresentação da “naturalia” está associada às teorias científicas dominantes, materializadas nos arboretos ou nas vitrines dos museus. Assim, na visão de Barbosa Rodrigues, conhecer a natureza e as possibilidades de sua aplicação definia os objetivos museológicos traçados a partir da sua visão de Ciência Botânica.

O momento-chave para a compreensão da influência dos paradigmas vigentes na matriz gnosiológica dos museus foi a dissociação entre coleção e exposição, que tem como pano de fundo a preocupação com a didática dos museus do século XIX . Bragança Gil60 atribui essa dissociação a dois momentos de transformação da lógica na produção do conhecimento, no âmbito da História Natural e da própria Museologia. Foram eles: a obra de Charles Darwin, que promoveu o estudo sistemático dos objetos de coleção e a sua apresentação segundo os critérios dos três reinos da natureza, e a teoria museológica de Mobius,61 que propiciou as bases para a separação entre os princípios de organiza-ção e representação da coleção, orientados pela investigação, e da exposição, baseados na apresentação de objetos representativos ou na reprodução para um público leigo. Van Praet acrescenta que as teorias sintéticas da ciência, como a de Charles Darwin, introduziram ainda a exposição temática e o enfoque didático.62

No Museu Botânico, a dissociação entre coleção e exposição não se processou na sua radicalidade, como no caso das exposições temáticas ou dos dioramas.63 Os objetos presentes na exposição eram selecionados de acordo com a lógica do estudo da Botânica, e a organização dos espécimes se baseava nos conteúdos e procedimentos dessa ciência. Percebemos então que as especificidades locais, como o olhar circunstanciado64 dos profissionais e a própria interpretação e apropriação das práticas teórico-metodológicas, podem determinar a adoção, ou, mesmo, o grau de aceitação das mudanças paradigmáticas.

A proposta de Barbosa Rodrigues caminhou em direção à perda da característica de um museu de acervo de referência, para transformar-se em um acervo de “vulgarização”, entendido naquele momento como instrução e difusão científica. A própria coleção para exposição, ainda que “objeto autêntico”, passou a ser formada para a aprendizagem pela comparação, um objetivo didático-científico preocupado em expor detalhes morfológicos para os visitantes/alunos. Da mesma forma, a exposição da coleção herborizada em livros, uma espécie de “biblioteca de espécimes naturalizados” para o “manuseio do público”, implica supor uma preocupação do naturalista com a dimensão educativa de difusão da disciplina Botânica. Assim, delimitou-se o espaço do saber: “A diferença entre quem sabia olhar as coisas e de quem devia ser guiado e educado dentro do espaço do museu”.65

O recurso didático de utilização de desenhos e modelos explicativos na apresentação da estrutura das plantas revela ainda a constituição de um saber museológico, que, segundo Podgorny e Lopes,66 busca “técnicas de apresen-tação dos objetos para condicionar, dirigir e educar os modos de ver”, tornando “aparente uma estrutura distante de nossos olhos, escondida atrás dos objetos”.

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O olhar museológico de Barbosa Rodrigues buscava “reter um tempo ou um lugar ideal”, como mencionado por Heizer,67 através das coleções organizadas sob princípios sistemáticos, de forma que, através da musealização do objeto tanto disciplinar quanto material, consagrava-se como “valor universal para a humanidade” uma determinada visão de ciência e natureza.

Esse “lugar ideal” se desdobra num “lugar” institucional, social e epistêmico, delimitado pelas fronteiras discipli-nares da especialização, articulado à rede social da comunidade científica de museus e jardins botânico e configurado com a coleção especializada de referência e vulgarização. Mais do que isso, um “lugar” social representativo de uma determinada comunidade científica, associado a uma visão de ciência que “enquadra” objetos e práticas ao tempo que cumpre o papel de pesquisa e instrução pública. E um “lugar epistêmico” para celebrar uma determinada visão e prática científica, legitimar e profissionalizar o “modus vivendi” de um segmento da sociedade.

O título “Delimitando Fronteiras: a Musealização da Botânica” tem o objetivo de provocar uma reflexão acerca do processo de musealização, não de um objeto material, mas de uma área especializada do conhecimento. Como esclarece Mario Chagas,68 “a musealização implica seleção, arbítrio e atribuição de valores”. Deste olhar, resulta uma “musealidade” pela atribuição de sentido ao objeto musealizado. Neste artigo, o objeto foi definido por olhar circuns-tanciado sobre a Ciência Botânica que, através da operação de “delegação”,69 transferiu para o objeto material exposto a atribuição do sentido.70

Se entendermos que a musealidade resultante do processo de delegação é decorrência desse olhar original sobre o patrimônio, então, o museu constitui um sistema ritualizado de ação social com base no patrimônio musealizado, que “reproduz o regime semiótico com que os grupos hegemônicos o organizaram”.71 A interpretação do patrimônio estaria apoiada num “repertório fixo de tradições”, que cristaliza uma posição hierárquica nos museus, definindo unilateralmente a comunicação e informação, excluindo e segmentando o seu público.

Se entendermos que a musealidade resultante do processo de delegação é decorrência de um conjunto de “saberes, valores e regimes de sentido” colocados em jogo na exposição com um fluxo próprio que articula o tempo – presen-te/passado/futuro – num compromisso comunicacional que promove a reflexão e formação de identidades sociais, então, o museu é um sistema processual de ação social e o patrimônio é trabalhado na sua dimensão de devir, na medida em que lida com processos de significação inscritos em diferentes tempos e espaço, em con-textos culturais diversificados.

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Figura 2 Francisco de Albuquerque, ajudante secretário do diretor do Jardim Botânico, ao lado de uma vitrine da carpoteca do Museu Botânico. (Acervo Museu do Meio Ambiente/JBRJ)

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As duas perspectivas de patrimônio têm, atualmente, seu reflexo nos museus e suas exposições, espaços de institucionalização de determinadas visões epistemológicas, que podem tanto avançar no seu entendimento como um movimento de devir, quanto consolidar o seu caráter cristalizado, fragmentar e de transmissibilidade.

Ao refletimos sobre a biografia do Museu Botânico de Barbosa Rodrigues, percebemos o esforço na construção de um museu especializado, voltado ao campo disciplinar da Ciência Botânica, com uma coleção científica de referência, mas que também contemplava outras demandas institucionais. A escolha desse acervo buscava fixar uma “tradição” científica, ainda incipiente do ponto de vista da especialização, e, por isso mesmo, acabava sendo abrangente como a própria formação de naturalista de seu diretor.

No entanto, ao analisarmos o processo de musealização e a sua articulação no âmbito institucional, social e epistêmico, estamos tentando restabelecer um fluxo próprio que coloca em jogo os limites disciplinares, a coleção, a visão e personalidade de um cientista, de forma a propiciar a reflexão e a abertura a novos regimes de sentidos, capazes de propiciar os processos de transformação e rupturas necessários para superação de um olhar cristalizado e de um museu celebração.

Notas e referências bibliográficas

Luisa Maria Rocha é doutora em Ciência da Informação pela UFF-IBICT. Atua como museóloga no Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro e desenvolve pesquisas sobre museus, jardins botânicos e divulgação científica. E-mail: [email protected]

Agradecimentos a Alda Heizer, Magali Romero Sá, Maria Margareth Lopes e Rosana Simões Medeiros.

1 PANESE, Francesco. O significado de mostrar objetos científicos em museus. In: Conferência do Cimuset no Brasil, 34, 2006, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, 2006. CD-ROM.

2 Francesco Panese define biografia como a “trajetória de construção e transformação”. (PANESE, 2006)

3 KNORR-CETINA, K. The manufacture of knowledge: An essay on the Constructivist nature of sciencie. Pergamon press, 1981.

4 RODRIGUES, João Barbosa. Noticias sobre alguns jardins botânicos da Europa. Relatório apresentado ao exmo Sr. Ministro Lauro Muller. Ministro de Viação e Obras Públicas. Rio: Imprensa Nacional, 1904, p.47.

5 BRASIL. Decreto 23 de junho de 1890. Reorganiza o Jardim Botânico. Lex: Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brazil, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890, p. 1408.

6 Ibid., p. 1407.

7 O Jardim estava vinculado ao Ministério de Estado de Negócios, da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.

8 João da Silveira Caldeira, membro da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (Sain) evidencia a importância das máquinas agrícolas para o país: “Enquanto a nação que tira os seus recursos da terra que a sustenta não chega ao estado da indústria, que podemos considerar como o terceiro período do aperfeiçoamento social, e que constitui a verdadeira independência política, é de interesse desta nação introduzir todos os aperfeiçoamentos possíveis nos diferentes ramos de indústria nacional por mais rara que ela seja, e principalmente na prática da agricultura e na preparação dos seus diversos produtos a fim de possuir a vantagem de dar menos e receber mais ...”. LOPES, Maria Margareth. O Brasil descobre a pesquisa cientifica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Huitec, 1997, p.73.

9 RODRIGUES, João Barbosa. Exposição sobre o Estado de Necessidades do Jardim Botânico. 12 de junho de 1890. Publicado em 1893. Rio de Janeiro, p.11.

10 Ibid.

11 A composição desse acervo assemelha-se à do Museu Nacional, assim descrita por Lopes (1997, p.234): “... As plantas dessa seção estavam representadas por suas folhas e órgãos reprodutores (...) frutos secos eram expostos nos armários, os carnudos imersos em álcool e as sementes conservadas em frascos de vidros. A seção ainda possuía uma importante coleção de madeiras do Brasil, todas classificadas...”. LOPES, Maria Margareth. O Brasil descobre a pesquisa cientifica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Huitec, 1997, 369 p.

12 Em 1876, foi aprovada a construção do prédio do Museu Industrial, destinado a objetos dos três reinos da natureza. Em 1877, o museu, agora denominado Museu Agrícola Industrial, é descrito com seis salões, compartimentos para estudo e um lugar próprio para biblioteca. Em 1888, o edifício destinado ao museu passa por uma reforma e abriga “um laboratório analytico”, além do almoxarifado, guarda de coleções e outros serviços” (Brasil, 1888, p.48). BRASIL. Ministério da Agricultura. Relatorio [do ano de 1888] apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil... no anno de 1888. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1888.

13 Desde 1875, o regulamento do Museu Nacional previa a inclusão formal de naturalistas viajantes no quadro de funcionários. LOPES, Maria Margareth. O Brasil descobre a pesquisa cientifica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Huitec, 1997, p.161.

14 BRASIL. Decreto 23 de junho de 1890. Reorganiza o Jardim Botânico. Lex: Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brazil, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890, p.1408.

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15 Ibid., p.1409,1410.

16 Os museus de história natural eram “instituições destinadas à recolha, conservação e estudo de espécimes que permitiam fazer a investigação e o estudo sistemático da natureza”. MARANDINO, Martha. O conhecimento biológico nos museus de ciências: análise do processo de construção do discurso expositivo. 2001. 435 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001, p.33.

17 Barbosa Rodrigues utiliza o termo instrução aludindo ao processo comunicacional de transmissão de conhecimento.

18 RODRIGUES, João Barbosa. Noticias sobre alguns jardins botânicos da Europa. Relatório apresentado ao exmo Sr. Ministro Lauro Muller. Ministro de Viação e Obras Públicas. Rio: Imprensa Nacional, 1904, p.49.

19 Ibid., p.53.

20 PODGORNY, Irina; LOPES, Maria Margareth. El Desierto em una Vitrina: Museos e Historia Natural em La Argentina. México: Limusa, 2008, p.237.

21 “A classificação das plantas será apresentada em uma collecção tirada do herbário que represente as principaes famílias por gêneros e espécies, em volumes encadernados para fácil manuseamento e não haver estragos, ou em pastas por gêneros. Amostras de flores, folhas, fructos seccos e em álcool, sementes, serão collecionados e terão a mesma numeração da do herbário para fácil confronto do estudo”. RODRIGUES, João Barbosa. Noticias sobre alguns jardins botânicos da Europa. Relatório apresentado ao exmo Sr. Ministro Lauro Muller. Ministro de Viação e Obras Públicas. Rio: Imprensa Nacional, 1904, p.54.

22 RODRIGUES, João Barbosa. Noticias sobre alguns jardins botânicos da Europa. Relatório apresentado ao exmo Sr. Ministro Lauro Muller. Ministro de Viação e Obras Públicas. Rio: Imprensa Nacional, 1904, p.54.

23 Ibid.

24 Ibid.

25 “O processo e methodo de extracção e preparação, e os productos preparados, os utensis e machinas empregados para esses fins, de maneira que o visitante segue com as vistas a transformação que se opera desde o estado bruto do vegetal, ate o mais aperfeiçoado”. RODRIGUES, João Barbosa. Noticias sobre alguns jardins botânicos da Europa. Relatório apresentado ao exmo Sr. Ministro Lauro Muller. Ministro de Viação e Obras Públicas. Rio: Imprensa Nacional, 1904, p.15.

26 RODRIGUES, João Barbosa. Noticias sobre alguns jardins botânicos da Europa. Relatório apresentado ao exmo Sr. Ministro Lauro Muller. Ministro de Viação e Obras Públicas. Rio: Imprensa Nacional, 1904, p.54.

27 PODGORNY, Irina; LOPES, Maria Margareth. El Desierto em una Vitrina: Museos e Historia Natural em La Argentina. México: Limusa, 2008, p.12.

28 Em 1893, contava o Jardim com 20 correspondentes distribuídos em 11 estados. BRASIL. Ministério da Agricultura. Relatorio [do ano de 1893] apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil... no anno de 1893. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1893. p.26.

29 LOPES, Maria Margareth. O Brasil descobre a pesquisa cientifica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Huitec, 1997, p.297.

30 BRASIL. Ministério da Agricultura. Relatorio [do ano de 1897] apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil... no anno de 1897. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1897, p.20.

31 “O apreço, em que é tida esta instituição scientifica, revela-se pela correspondência que entretem e pelo empenho que os centros de estudos congêneres manifestam em possuir dados e informações a seu respeito”. BRASIL. Ministério da Agricultura. Relatorio [do ano de 1895] apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil... no anno de 1895. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1895, p.42.

32 PODGORNY, Irina; LOPES, Maria Margareth. El Desierto em una Vitrina: Museos e Historia Natural em La Argentina. México: Limusa, 2008, p.117.

33 LOPES, Maria Margareth. O Brasil descobre a pesquisa cientifica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Huitec, 1997, p.224.

34 PODGORNY, Irina; LOPES, Maria Margareth. El Desierto em una Vitrina: Museos e Historia Natural em La Argentina. México: Limusa, 2008, p.117.

35 RODRIGUES, João Barbosa. Noticias sobre alguns jardins botânicos da Europa. Relatório apresentado ao exmo Sr. Ministro Lauro Muller. Ministro de Viação e Obras Públicas. Rio: Imprensa Nacional, 1904, p.48.

36 Ibid.

37 HEIZER, A. L.; NEVES, M. S. A Ordem é o Progresso. O Brasil de 1870 a 1910. São Paulo: Atual Editora, 2004, p.14.

38 Bensaude-Vincent analisando o processo de vulgarização no século XIX, afirma que este tinha como objetivo “colocar a ciência na vida das pessoas” e, assim, inserir-se no âmbito político, econômico e literário. BENSAUDE-VINCET, Bernadette. Um public pour la science: l’essor de la vulgarisation au XX e siécle. Reseaux, Mons, BE, n. 58, 1993, p. 49-65.

39 O cientista francês Louis Figuier entendia que a vulgarização tinha como objetivo não apenas colocar a ciência como o centro do sistema cultural, mas provar sua característica pedagógica e formadora. BENSAUDE-VINCENT, Bernadette. A Genealogy of the increasing gap between science and the public. Public Understanding of Science, Bristol, GB, v. 10, 2001, p. 99-113.

40 HEIZER, A. L.; NEVES, M. S. A Ordem é o Progresso. O Brasil de 1870 a 1910. São Paulo: Atual Editora, 2004, p.14.

41 RODRIGUES, João Barbosa. Noticias sobre alguns jardins botânicos da Europa. Relatório apresentado ao exmo Sr. Ministro Lauro Muller. Ministro de Viação e Obras Públicas. Rio: Imprensa Nacional, 1904, p.45.

42 MARANDINO, Martha. O conhecimento biológico nos museus de ciências: análise do processo de construção do discurso expositivo. 2001. 435 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001, p.35,36.

43 KURY, Lorelai Brilhante; CAMENIETZKI, Carlos Ziller. Ordem e natureza: coleções e cultura científica na Europa moderna. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v.29, 1997, p.58.

44 Maria Margareth Lopes esclarece que os termos História Natural e Ciências Naturais conviveram de forma não claramente diferenciada na literatura dessas áreas. LOPES, Maria Margareth. O Brasil descobre a pesquisa cientifica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Huitec, 1997, p.78/79.

45 Ibid, p.15,16.

46 No regulamento de 1890, Barbosa Rodrigues menciona que as “plantas vivas e seccas, fructos, sementes e productos vegetaes” fornecidas pelos

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correspondentes deveriam estar acompanhadas de “informações e observações sobre os mesmos”. BRASIL. Decreto 23 de junho de 1890. Reorganiza o Jardim Botânico. Lex: Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brazil, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890, p.1408.

47 PODGORNY, Irina; LOPES, Maria Margareth. El Desierto em una Vitrina: Museos e Historia Natural em La Argentina. México: Limusa, 2008, p.207.

48 KURY, Lorelai Brilhante; CAMENIETZKI, Carlos Ziller. Ordem e natureza: coleções e cultura científica na Europa moderna. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v.29, 1997, p.79.

49 A gestão anterior à de João Barbosa Rodrigues era do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura.

50 LOPES, Maria Margareth. O Brasil descobre a pesquisa cientifica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Huitec, 1997, p.153.

51 PODGORNY, Irina; LOPES, Maria Margareth. El Desierto em una Vitrina: Museos e Historia Natural em La Argentina. México: Limusa, 2008, p.12.

52 RODRIGUES, João Barbosa. Noticias sobre alguns jardins botânicos da Europa. Relatório apresentado ao exmo Sr. Ministro Lauro Muller. Ministro de Viação e Obras Públicas. Rio: Imprensa Nacional, 1904, p.45.

53 LOPES, Maria Margareth. O Brasil descobre a pesquisa cientifica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Huitec, 1997, p.302.

54 George Hein (1995, p.22) define a matriz gnosiológica a partir de dois eixos: conhecimento e aprendizagem. HEIN, George. Constructivist learning theory: The Museum and the needs of people. In: International Committee of Museum Educators. Conference. Jerusalém, Israel, 15-22 October 1991. Disponível em: <http://www.exploratorium.edu/ifi/resources/constructivistlearning.html>. Acesso em: 15 jan. 2007, p.22.

55 GOMES, Helder. Missão Botânica - Transnatural: [Catálogo da Exposição]. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006, p.108.

56 Regime museológico: a totalidade das técnicas que organizam as relações espaciais, sociais e epistêmicas entre os agentes humanos e não-humanos de cada exposição, isto é, os objetos, os lugares, os espaços, os autores e os diferentes públicos. O conceito de “regime museológico” permite a compreensão de algumas tipologias de museus e suas matrizes. PANESE, Francesco. O significado de mostrar objetos científicos em museus. In: Conferência do Cimuset no Brasil, 34, 2006, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, 2006. CD-ROM.

57 PANESE, Francesco. Les régimes muséologiques dans le domaine des sciences. In: COLLECTIF. Sciences au muse, Sciences nomads. Genebra: Georg Éditeur, 2003, p. 8,9.

58 HOOPER-GREENHILL, E. Museum, media, message. London: Routledge, 1995, p.68.

59 PANESE, Francesco. Les régimes muséologiques dans le domaine des sciences. In: COLLECTIF. Sciences au muse, Sciences nomads. Genebra: Georg Éditeur, 2003, p. 16.

60 GIL, Fernando Bragança. Museus de ciência: preparação do futuro, memória do passado. Colóquio ciências. Revista da Cultura Científica, Lisboa, n 3, p. 72-89, out. 1988, p.75.

61 Mobius foi curador do Museu de Zoologia de Kiel, na Alemanha, e cunhou essa teoria em 1891.

62 Van Praet (1995, p.60, apud MARANDINO, 2001, p.40). MARANDINO, Martha. O conhecimento biológico nos museus de ciências: análise do processo de construção do discurso expositivo. 2001. 435 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.

63 Dioramas: objetos preparados didática e artisticamente para apresentar uma visão sintética ecológica. Não evidencia os procedimentos de pesquisa científica (VAN PRAET, 1995, p.62 apud MARANDINO, 2001).

64 Olhar circunstanciado: a qualificação deste olhar advém da sua inserção e articulação em três dimensões: a específica, referente ao olhar individualizado; a local, referente ao compartilhamento de idéias e concepções com uma comunidade científica; e a internacional, referente à validação e consubstanciação deste olhar numa rede social e científica.

65 PODGORNY, Irina; LOPES, Maria Margareth. El Desierto em una Vitrina: Museos e Historia Natural em La Argentina. México: Limusa, 2008, p.23.

66 Ibid., p.22.

67 HEIZER, Alda. Observar o céu e medir a terra: Instrumentos científicos e a participação do Império do Brasil na Exposição de Paris de 1889. 2005. 204 f. Tese (Doutorado em Ensino e História das Ciências da Terra) - Unicamp, Programa de Pós-graduação em Ensino e História das Ciências da Terra, 2005, p.158/166.

68 CHAGAS, Mario. Museália. Rio de Janeiro: JC editora, 1996, p.91.

69 A mediação como significado da transposição de fronteiras entre signos e coisas envolve também a operação que Latour (2001, p.217) denomina de delegação. Essa operação pode modificar tanto a forma quanto a substância de nossa expressão, e produzir significado pela articulação que atravessa a fronteira racional entre signos e coisas. Na operação de delegação, não ocorre somente um desvio com a translação de objetivos e funções, mas também a alteração da própria substância expressiva.

70 LATOUR, Bruno. A esperança de pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru: Edusc, 2001, p.217.

71 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006, p.169.

[ Artigo recebido em 05/2010 | Aceito em 08/2010 ]

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Os museus e o projeto republicano brasileiro

ThemuseumsandtheBrazilianrepublicanproject

CÍCERO ANTÔNIO F. DE ALMEIDA

Escola de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro|UniRio e Instituto Brasileiro de Museus/Ibram

RESUMO O artigo analisa a reconfiguração dos museus brasileiros após a implantação da República, destacando os ideais de “progresso” e a inserção dos museus nas agendas políticas de “instrução pública”, de “educação do povo” e de “formação das almas”, tendo como base casos exemplares.

Palavras-chave Museu, República, Brasil.

ABSTRACT The article makes an analysis of the reconfiguration of brazilian museums after the implement of the Re-public, highlighting the ideas of “progress” and the insertion of museums on the political agendas of “public instruction”, “people’s education” and “soul formation”, having as basis exemplary cases.

Keywords museum, Republic, Brazil.

Considerações Iniciais

A realização do Seminário “João Barbosa Rodrigues: um naturalista brasileiro”, em celebração ao centenário de sua morte (1909-2009), concebido como um evento de caráter interdisciplinar, possibilitou diversas reflexões. Diretor do Museu Botânico do Amazonas ao longo da década de 1880, Rodrigues foi convidado a dirigir o Jardim Botânico do Rio de Janeiro em março de 1890, sendo responsável por significativas modificações naquela instituição. Atuante, portanto, na transição entre o Império e a República, Rodrigues foi personagem submerso num rico período da história brasileira, em especial no que concerne à reconfiguração do papel dos museus no país. Eram os primeiros reflexos da transformação de instituições científicas brasileiras a partir do novo regime político implantado em 15 de novembro de 1889.

Ao lado dos jardins botânicos e zoológicos, gabinetes e museus foram abrigo dos emergentes estudos de História Natural no Brasil, no final do século XVIII e início do XIX, como consequência das atividades sistemáticas de viajantes e naturalistas brasileiros e estrangeiros, que percorreram o país – considerado ainda um território científico inexplorado – com o objetivo de formar coleções particulares ou suprir encomendas de naturalistas e instituições científicas euro-peias. O crescente desejo de estimular os estudos, a formação de coleções e a criação de museus voltados à História Natural fazia parte do contexto “civilizatório” do período, que ganharia novo viés com a República.

A contribuição do presente artigo será feita tangencialmente, a partir de uma visão panorâmica sobre a atuação dos museus brasileiros no final do Império e, especialmente, nos primeiros anos da República, período de atuação de Barbosa Rodrigues. Nesse panorama encontraremos, num primeiro momento, o fortalecimento dos museus de História

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Natural no contexto do aprimoramento dos valores republicanos de “instrução do povo” e, num segundo, uma mudança de sentido dos próprios museus no Brasil, que migram gradativamente do campo da História Natural – tributários da tradição renascentista dos Gabinetes de Curiosidades – para o da “formação científica” e da “formação das almas”. Nesse sentido, os museus também estariam enquadrados num processo de construção da história republicana, que necessitava de símbolos e mitos que compensassem a perda gerada pela transformação radical de regime político.

Buscou-se uma síntese da questão, baseada em casos exemplares, já que eram pouco numerosos os museus no Brasil no final do século XIX.1 Veremos, por exemplo, o caso do Museu Paraense, que, logo após a República, graças ao apoio das lideranças políticas locais, passou por um grande avanço institucional, especialmente durante a gestão do zoólogo suíço Emilio Goeldi, entre 1894 e 1907.2 No caso do Museu Paulista, concebido ainda no Império e criado já sob o novo regime, evidencia-se outra situação. Dedicação à História Natural em seus primeiros anos (o Museu foi criado em 1894), em pouco tempo alterou seu patamar conceitual, através da crescente valorização como território simbólico de construção do papel de São Paulo no contexto da “História Nacional”, especialmente guiado pela administração de Afonso d’Escragnolle Taunay a partir de 1917.3

É importante esclarecer dois pontos. Não são possíveis esquemas rígidos de análise sobre a influência do regime republicano no papel exercido pelos museus. Mesmo no Império, eles não estavam restritos apenas ao campo da His-tória Natural, como atestam os museus do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, ou militares (do Exército e da Marinha), assim como não foram definitivamente abolidas as iniciativas de criação de museus dedicados à História Natural no início da República, como atesta o próprio Museu Paulista. Por outro lado, estamos considerando que os primeiros museus cujo caráter republicano começa a se destacar localizam-se num espaço de tempo que vai da Proclamação até o início da década de 1920.

A influência da “cultura da curiosidade” e da experiência revolucionária francesa nos museus brasileiros (séculos XVIII e XIX)

A relação entre museus e a consolidação dos conhecimentos sobre História Natural não foi, evidentemente, fenômeno local. A noção de museu nas culturas ocidentais esteve ligada, desde o Renascimento até a criação dos primeiros estados nacionais europeus, à ideia de civilização e de desenvolvimento das ciências. O impacto causado pelos primeiros Gabinetes de Curiosidades, ainda no século XVI, foi tamanho, que acabou por influenciar hábitos e costumes. Prelados, cortesãos, médicos, sábios, artistas, príncipes e monarcas estabeleceram a prática colecionista de maneira definitiva no mundo oci-dental graças ao espírito humanista e sua busca pelos “vestígios do berço das civilizações”, criando o que se convencionou chamar de “cultura da curiosidade”. Dentre os exemplos pioneiros, está o do italiano Paolo Giovio (1483/1552), médico por formação, que publicou, em 1550, “Histórias de seu tempo” – biografias dos contemporâneos ilustres. Iniciou, em 1520, uma coleção de retratos pintados, bustos e outros documentos. Entre 1537 e 1543, construiu, na cidade de Como (Itália), uma residência especialmente destinada a abrigar o conjunto de suas coleções, chamada de Musaeum.

Outro caso paradigmático na história dos museus no mundo ocidental foi a criação do Ashmolean Museum, em 24 de maio de 1683, na Universidade de Oxford, voltado ao aprimoramento dos conhecimentos dos estudantes, especialmente no que tangia à História Natural.

Influenciado pelo ideário iluminista português do século XVIII, o vice-rei Luís de Vasconcelos (1779-1790) criou o Gabinete de História Natural do Rio de Janeiro. Enquanto se construía a sede definitiva do Gabinete, um barracão foi improvisado ao lado da futura construção e passou a abrigar animais “empalhados”, predominantemente aves, razão pela qual a população passou a chamá-lo de Casa dos Pássaros. Coube a Francisco Xavier Cardoso Caldeira – Xavier dos Pássaros – a responsabilidade de organizar a Casa, treinando aprendizes. O Museu foi extinto em 1813, logo após o falecimento de Xavier, e suas coleções enviadas à Academia Real Militar.

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A extinção do Gabinete de História Natural do Rio de Janeiro foi, alguns anos mais tarde, compensada pela criação do Museu Real pelo príncipe regente D. João VI. Os tempos eram outros, e a corte portuguesa estava então sediada no Rio de Janeiro, que passou a ser a capital do Reino Unido. Dotar a cidade de “ferramentas civilizatórias” era essencial, à medida que o futuro rei de Portugal percebia que sua permanência no Brasil não seria tão curta quanto se imaginava no momento de sua partida de Lisboa.

Foi a experiência revolucionária na França decisiva para a ruptura do “velho” modelo de museus e gabinetes de história natural. O confisco dos bens da Igreja em novembro de 1789, seguido pelo dos bens da nobreza e da Coroa, em 1792, suscitou uma nova reflexão nos membros da Assembleia, voltada para a identificação do papel do Estado na escolha dos bens de propriedade pública que deveriam ser conservados – como elementos simbólicos de uma identidade nacional – e os que deveriam ser destruídos. Desde 1790, Aubin-Louis Millin, arqueólogo francês, chamava a atenção da Assembleia Constituinte para os “monumentos históricos” da nação, tornando corrente esta expressão. Paralelamente à conservação dos monumentos de arquitetura religiosa e civil, também começaram a ser valorizados, alguns anos após o início do movimento revolucionário, bens artísticos em geral, como esculturas, móveis, joias, me-dalhas, tapeçarias, dentre outros, igualmente representativos do passado “glorioso” da nação.

A criação do Museu dos Monumentos Franceses, em 21 de outubro de 1795, tornou-se emblemática nessas condições, assim como a criação do Museu do Louvre, um pouco antes, em 10 de outubro de 1793, igualmente resul-tado do processo de apropriação dos “bens nacionais”, no caso, tesouros artísticos acumulados pela Coroa francesa ao longo de alguns séculos, confiscados pelo governo revolucionário, instalados no próprio palácio que abrigara a corte francesa. Vale ressaltar que o termo museu já estava sendo empregado desde o Renascimento, resgatado, àquela época, do grego mouseion (ou do latim museum), que identificava, na Antiguidade, tanto o templo das musas sobre a colina de Helicão, na Grécia, onde eram reunidas oferendas, quanto uma ala do Palácio de Alexandria ao tempo de Ptolomeu Filadelfo, onde se reuniam sábios sob o mecenato real.

O museu criado pelos revolucionários franceses foi o espaço dessa simultaneidade, que conciliava a continuidade histórica através dos próprios artefatos colecionados pela realeza ou por representantes do Iluminismo com o “espírito” da Revolução, oferecendo agora à população a fruição desse patrimônio ao criar uma instituição pública, não mais restrita aos membros da corte, baseada nos mouseion da Antiguidade e do Renascimento.

Foi nesse contexto que os museus da recém-proclamada república brasileira buscaram inspiração, como instrumen-tos de legitimação de um “patrimônio nativo”, ou seja, espaços consagrados à reunião dos fragmentos que constituem o sentido da nacionalidade. Ao ser instalado o regime “para o povo” no Brasil, com referenciais norte-americanos e europeus, um desafio se colocava: o de incorporar um maior contingente da população, que estava estruturada de maneira excludente, com grande parte de analfabetos, a maioria descendente dos escravos recém-libertos e muitos imigrantes que começavam a povoar grandes extensões territoriais do Sul do país. O regime republicano deveria aper-feiçoar a velha sociedade imperial, instruindo-a, tornando-a apta ao progresso.

Mas é importante frisar que esses “novos” museus, como espaços de instrução e de recolhimento dos fragmentos da nacionalidade, não foram bem-sucedidos em sua primeira fase, entre 1889 e a década de 1920, já que muitos não superaram a mera intenção, não passando de seus decretos de criação, sem consequência prática. A consolidação definitiva do projeto republicano de museus no Brasil vai se configurar a partir dos anos de 1920 e, especialmente, após a Revolução de 30.

Os museus entre o Império e a República: exemplos a considerar

Para a análise da transição entre o período imperial e o início da República, vamos destacar o papel exercido por alguns museus, considerados, aqui, exemplares, que cobrem um período de quase cem anos, desde a criação

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do Museu Real (atual Museu Nacional, no Rio de Janeiro), em 1818, até a criação do Museu Histórico Nacional (Rio de Janeiro), em 1922, passando pelo Museu Paraense (atual Museu Paraense Emilio Goeldi), pelo Museu Paulista, e por iniciativas na capital Federal (Museu Municipal do Rio de Janeiro e Casa de Rui Barbosa), no Estado de São Paulo (Museu Republicano Convenção de Itu) e no Estado de Minas Gerais (Museu Mineiro).

O Museu Real foi criado em 6 de junho de 1818 por D. João VI, nos moldes das instituições museais científicas da Europa. Em seu decreto de criação, estavam claras duas questões: de um lado, o território brasileiro era ainda um espaço privilegiado na busca pela ampliação do conhecimento sobre a natureza, ainda quase intacto e por ser quase totalmente descoberto, “que encerra em si milhares de objetos dignos de observação e exame”; de outro lado, poderia tornar-se um laboratório para estudar as riquezas potenciais do país, “que podem ser empregados em benefício do comércio, da indústria e das artes”. Assim, por influência direta do ministro e secretário de estado dos Negócios do Reino, e encarregado da presidência do meu Real Erário, Tomás Antonio de Villanova Portugal, D. João VI estabeleceu a criação do Museu Real, “para onde passem quanto antes, os instrumentos, máquinas e gabinetes que já existem dispersos por outros lugares, ficando tudo a cargo das pessoas que Eu para o futuro nomear”.

Nos seus primeiros anos, o Museu consolidou suas coleções através da transferência de máquinas e objetos dispersos em outras instituições, além das coleções oriundas da Casa dos Pássaros, objetos doados pela Família Imperial – alguns de valor artístico –, recolhimento de expedições científicas e, em especial, da coleção mineralógica adquirida pela Coroa portuguesa ainda no final do século XVIII, conhecida por Coleção Werner.

O imperador D. Pedro II atuou de forma decisiva para a consolidação do Museu, patrocinando aquisições im-portantes, especialmente as peças arqueológicas egípcias, greco-romanas e de Pompeia, dentre outras. A República baniu o imperador e sua família, resultando na permanência de seus pertences no Paço de São Cristovão, que foram leiloados por ordem do Governo Provisório, a fim de reverter em benefício econômico para a República emergente e, especialmente, para afastar definitivamente as referências simbólicas materiais ligadas ao Antigo Regime.

O fato de já contar com uma importante coleção no campo da História Natural e a necessidade de ampliação de seus espaços, tanto para o abrigo adequado das coleções quanto para a realização de pesquisas, levou o governo republicano a adotar uma medida de grande benefício para a instituição: transferir o Museu para o Paço de São Cristóvão. Tratava-se de um antigo pleito, registrado em relatórios da direção da instituição ainda nos tempos imperiais. Também estava em jogo o simbolismo do ato: a antiga residência real e imperial abrigava, agora, um museu “para o povo”, onde se misturavam as coleções de História Natural, instrumentos científicos, dentre outros, com o antigo “território monárquico”, agora franqueado à população, à instrução e às ciências.

O Museu Paraense foi resultado da iniciativa da Associação Filomática, em 1866, com destacado papel de Domingos Soares Ferreira Pena, um dos seus fundadores. Nos estatutos da Associação, estava prevista a criação e manutenção de um museu de história natural, reflexo do momento de valorização das ciências naturais na província do Pará. O museu foi efetivamente criado em 6 de outubro de 1866, data da reunião inaugural da Associação. De 1894 (Lei nº 199, de 26 de junho de 1894) a 1900, denominou-se Museu Paraense de História Natural e Etnografia, e, desse último ano até 1931, Museu Goeldi. Por Decreto nº 525, de 2 de novembro de 1931, passou a designar-se Museu Paraense Emílio Goeldi.

O Museu foi instalado em prédio alugado, em outubro de 1867, e, durante seus primeiros anos de funcionamento, encontrou dificuldades técnicas e financeiras. Um fator que proporcionou a afirmação do Museu foi o apoio direto de Charles Frederick Hartt, que chegou a Belém em 1870, com o objetivo de realizar uma expedição científica no baixo Amazonas, e ajudou a enriquecer as coleções da instituição. O Museu foi instalado em sede definitiva em 1871. No ano seguinte, foi incorporado à província, que criou o “museu de história natural” (Lei nº de 12 de abril de 1872). O promissor início do museu foi interrompido por alguns recuos do governo provincial a partir de 1872, ocasionando sua extinção em 1889. Os seus tumultuados primeiros anos acabaram por conformar uma situação de penúria, que foi radicalmente transformada na gestão de Emílio Goeldi, conforme assinalado acima.

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No caso do Museu Paraense, a modificação do quadro político com a República foi fator decisivo para sua recu-peração. Ainda em 1890, o Museu Paraense foi novamente vinculado ao governo, no contexto da reforma da instrução pública do novo estado republicano. O Museu foi formalmente reorganizado em 2 de setembro de 1890 (Decreto nº 187), tornando nula a lei que o extinguira. Um novo regulamento reordena o museu: “Fica reorganizado o Museu paraense, com o fim de proporcionar os meios de estudar as ciências naturais pela exposição de produtos animais, vegetais e minerais, e de conhecer, pelas amostras expostas dos produtos do estado, o proveito que deles podem tirar a indústria e o comércio”.4

Não foi sem sentido que o Museu Paraense foi reorganizado tendo como pano de fundo a reforma do ensino. Nas teses republicanas, era importante “educar o povo” com noções de “civilidade e patriotismo”: “...foi nesse con-texto (...) que o Museu paraense ressurgiu na República. Pode-se considerar que a ruptura política de novembro de 1889 ‘salvou’ a instituição de um fim definitivo”.5 A autonomia dos poderes locais sob o regime federativo, seguido de grande impulso econômico proporcionado pela borracha, possibilitou a grande expansão econômica do Pará, com consequências diretas no aperfeiçoamento das políticas públicas de educação. O primeiro governador eleito do Pará, Lauro Sodré, foi seguidor das teses positivistas regidas pelo racionalismo, em que era dever do Estado “civilizar” a sociedade, não mais no sentido monárquico, mas, sobretudo, na valorização das histórias regionais. Mesmo que o museu não abandonasse as características que o criaram como instituição voltada à investigação da História Natural, tal noção não poderia deixar de frisar a riqueza “amazônica”, marcando uma noção forte no início da República, que era o conceito de identidade baseada no território.

Na reorganização promovida por Emílio Goeldi, o Museu ganhou novo regulamento em 1894, em que destacava, dentre as missões, a “vulgarização da História Natural e Etnologia do Estado do Pará e da Amazônia em particular (...)”. Estava explícito, agora, o recorte territorial, importante para as estratégias de afirmação do princípio republicano. Em relatório apresentado ao governador Lauro Sodré, de 1895, Goeldi afirmou: “... não almejamos nem o elefante da Índia, nem a girafa do continente negro. Queremos o que é nosso, o amazônico, o paraense (...)”.6

O Museu Paulista teve sua origem na edificação de um palácio-monumento em celebração à Independência, às margens do célebre Ipiranga, que foi construído entre 1885 e 1890. Após sua edificação, já sob o regime republicano, o prédio recebeu uma nova incumbência, além da comemorativa: deveria abrigar um museu de História Natural. O Museu foi definitivamente criado pela Lei n. 192, de 26 de agosto de 1893, voltado para o estudo da História Natural. Seria o palácio-monumento destinado ao propósito republicano da instrução e da ciência. Um de seus núcleos originais foi a coleção oriunda do Museu Sertório, que pertencera a Joaquim Sertório. Desde os anos de 1880, a coleção Sertório estava franqueada ao público, sendo conhecida não só pela população, mas também por viajantes estrangeiros, como foi o caso de Carl Von Koseritz, que assim a ela se referiu em Imagens do Brasil: “(...) a coleção foi feita com enorme esforço e grande sacrifício de dinheiro, e seguramente nenhum particular no Brasil fez antes coisa parecida”.7 Com a venda do prédio onde estava instalado o museu do coronel Sertório, em 1890 seu novo proprietário, o Conselheiro Francisco de Paula Mayrink, acabou oferecendo a coleção ao governo do Estado.

Aqui, vemos o caso específico de um museu que foi construído sob o regime republicano, mas com interesse voltado ao estudo da História Natural através de um novo “projeto científico”, com elementos que o diferenciavam do projeto do regime imperial, afinado com as aspirações da nova elite política republicana. O projeto político de unidade territorial do Império buscou amenizar as diferenças regionais, assim como a instrução pública ficava restrita a um corpo seleto da população, já que estavam naturalmente excluídos escravos e trabalhadores rurais de uma forma geral. Assim como no caso da reestruturação do Museu Goeldi, o princípio republicano adotado no Museu Paulista assentava-se também na “educação do povo”, através do aprimoramento do ensino público, e no recorte territorial.

Com o início da gestão de Taunay, em 1917, o Museu Paulista passa por uma profunda mudança: “(...) embora tenha dado continuidade às atividades de História Natural, foi durante sua administração que se iniciou o processo pelo qual esta ciência seria sobrepujada, na instituição, pela História Pátria”.8 Alguns atos do início de sua gestão demons-tram o crescente processo de historicização, como foi o caso dos preparativos para a comemoração de centenário

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da Independência, em 1922, momento em que se empenhou na busca de objetos que assegurassem a salvaguarda dos momentos e dos personagens considerados essenciais para a compreensão da história de São Paulo. Começa, então, uma verdadeira cruzada para constituir definitivamente o Museu Paulista como instituição de referência para se compreender São Paulo como berço da nacionalidade, com especial atenção ao papel das bandeiras paulistas e de seus heróis. O próprio Taunay afirmaria essa nova posição, ao referir-se à mudança empreendida no Museu depois de sua gestão, quando a instituição ganhou “(...) uma feição absolutamente nacionalista, nele se celebrando os grandes feitos dos grandes vultos da História brasileira, especialmente de São Paulo”.9

Na capital federal e no Estado de Minas Gerais, apressou-se a República na busca de afirmação simbólica e política do regime. As novas elites políticas passaram a liderar a construção dos fatos e processos considerados “memoráveis”, cuja hegemonia se deu, em grande parte, devido à ausência de participação popular. Algumas iniciativas traduzem, no campo dos museus, este processo, que veremos adiante.

Em 22 de abril de 1891, o intendente municipal Alfredo Piragibea apresentou um requerimento ao presidente do Conselho Municipal pedindo que se remetessem as peças do Senado da Câmara e da Câmara Municipal do Rio de Janeiro para constituirem o Museu Municipal. Posteriormente, com base no Decreto n° 1641 (13/10/1914) que, em seu art. 19, determinava “Conservar em boa guarda, devidamente catalogadas as peças de numismática, livros raros e objetos de grande valia para o estudo da História da Cidade”, o prefeito Antônio Prado Júnior, pelo Decreto n° 3201 (16/01/1930), determinou que se providenciasse “Sobre a melhor conservação de objetos que interessam à História da Cidade do Rio de Janeiro” e deliberou que todos os objetos existentes em outras diretorias seriam recolhidos pela Diretoria de Estatística e Arquivo, com funcionários designados para conservar e catalogar o acervo histórico da cidade.

O Museu Mineiro foi inicialmente previsto pela Lei estadual nº 126, de 11 de julho de 1895, que criou em Ouro Preto “uma repartição denominada Arquivo Público Mineiro”: “(...) até a criação de um museu serão recolhidos ao arquivo e classificados em sala especial, a proporção que forem adquiridos, os quadros e estátuas, mobílias, gravuras, estofos, esmaltes, obras de cerâmica de quaisquer manifestações da arte no estado, desde que tenham valor propriamente artís-tico ou histórico”.10 Assim deu início um recolhimento sistemático, que se aprofundaria com a criação formal do Museu Mineiro pela Lei nº 528, de 20 de setembro de 1910, que, em seu artigo 1º, estabelecia: “Fica criado nesta Capital, o Museu Mineiro de que cogitaram o art. 2º da Lei nº 126, de 11 de julho de 1895, e o art. 7º do Decreto nº 800 de 29 de setembro desse mesmo ano, para quando as circunstâncias financeiras do Estado o permitissem, a juízo do Governo”.

Sobre a natureza do Museu, assim ficou estabelecido: “O Museu Mineiro além de servir de repositório de amostras das riquezas naturais do estado, de coleções de objetos de história natural, de etnografia e de arte, em geral, mormente de objetos antigos e raros, que se relacionem mais particularmente com a História de Minas (nos três períodos – da Capitania, Província e estado), terá incumbência de zelar pelos monumentos e edifícios históricos existentes no estado, propondo ao governo os meios de sua restauração ou conservação”. No segundo parágrafo da Lei nº 528, de 20 de setembro de 1910, estava assegurado, caso fosse de conveniência do governo, “estabelecer uma de suas seções na cidade de Ouro Preto, como centro de arte histórica de Minas Gerais”. Assim como no caso da capital federal, a efetivação do Museu Mineiro só viria a se consolidar em 10 de maio de 1982, quase um século depois da ideia de sua criação.

Talvez o exemplo mais bem-sucedido e fundador da nova maneira republicana de “enxergar” os museus esteja na criação do Museu Histórico Nacional, também na capital federal. Inaugurado no contexto da grande exposição do Centenário da Independência, em 1922, tornou-se, então, o modelo por excelência do projeto republicano. A reafirmação de conceitos como “nação” ou “tradição” estava no bojo de sua criação, impulsionadas pelo governo da República. Pode-se fazer um paralelo com a mudança experimentada pelo Museu Paulista no mesmo período, também impulsionado pelas efemérides do Centenário, quando seu diretor Afonso d’Escragnole Taunay pensava na presença do homem paulista, dos “bandeirantes”. Para Gustavo Barroso, idealizador e primeiro diretor do Museu Histórico Nacional, a República deveria cultuar a memória dos “grandes homens” do Império.

O Museu Histórico Nacional foi criado em 2 de agosto de 1922, pelo Decreto nº 15.596, e inaugurado em 12 de outubro do mesmo ano, instalado inicialmente em duas salas do prédio do antigo Arsenal de Guerra da corte, no recinto

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dedicado à exposição do Centenário da Independência. Afinado com esse espírito corrente, Barroso baseou na “tradição” seu projeto intelectual para o MHN, como forma de conferir legitimidade a um determinado segmento social, responsável pela edificação de um modelo “moderno” de sociedade. As raízes dessa elite estariam num passado que remontava à chegada da Coroa portuguesa ao Brasil, em 1808. Para Barroso, foi o Estado imperial o responsável por forjar o padrão de nação para os brasileiros. A partir daí, seu projeto para o MHN acentuaria um caráter de permanência no processo histórico, e caberia ao Museu preservar esses “elos” constitutivos da nacionalidade. A tradição brasileira, portanto, no pensamento de Barroso, remontava ao Estado imperial; fragmentos a ele relacionados deveriam ser recolhidos ao Museu como primeiro passo para a implantação do que haveria de chamar de culto da saudade.

O núcleo original do acervo de MHN, constituído por aproximadamente 1.000 objetos, poderia ser considerado uma variada “coleção” de testemunhos ligados ao período imperial. Duas salas formavam o Museu originalmente: a primeira, chamada Da Colônia ao Império; a segunda chamava-se Do Império à República, onde se destacava a maquete em gesso da estátua equestre de D. Pedro II, comemorativa da rendição de Uruguaiana, de autoria do escultor Chaves Pinheiro, e o trono que servia ao imperador nas sessões do Senado. Em artigo publicado no periódico A Pátria, de 24 de agosto de 1922, Barroso afirmava: “Para a felicidade nossa, acabou-se no Brasil a era do descaso pelo passado. Coube ao Exmº Sr. Presidente Epitácio Pessoa a glória de ter instituído no seu país natal, cujas tradições o estreito sectarismo positivista se tem esforçado por matar, o culto da saudade. Ele o iniciou, revogando o banimento da Família Imperial e fazendo com que viessem repousar na Pátria querida as cinzas daqueles que, durante meio século de bondade dirigiu (sic) seus destinos”.

Na exposição de 1924, segundo o Catálogo Geral do Museu Histórico Nacional, aparecia a Sala da República, em cujo acervo predominavam fotografias, retratos a óleo e objetos pessoais de Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto, Benjamin Constant, Epitácio Pessoa, Hermes da Fonseca, dentre outros presidentes e ministros. Mas essa sala também apresentava alguns objetos que se referiam ao período imperial, dentre eles uma pintura a óleo do imperador D. Pedro II, fardado de marechal, rasgada por “pontaços de espada no gabinete do Ministro da Guerra, onde se achava no dia 15 de novembro de 1889”, além do fragmento de uma placa com o nome do conde d’Eu, retirada de uma das ruas de Fortaleza, “despedaçada pelos alunos da extinta Escola Militar daquele Estado, no dia 16 de novembro, quando ali chegou a notícia da proclamação da República”. Neste último caso, havia uma observação no Catálogo que, àquela altura (1924), o logradouro público já havia recuperado o antigo nome, numa tentativa de salientar o justo reparo.

O projeto de Barroso de culto à “tradição” também incluía o culto a “pessoas exemplares”, como afirma Regina Abreu, que materializavam essa tradição: “O MHN tendia a restaurar, conservar e legitimar o papel do Império e da nobreza brasileira no processo de formação da nacionalidade. (...) O culto a uma “pessoa exemplar”, tanto no caso do Imperador quanto no de outras pessoas eleitas como tal, estruturava-se através dos objetos a ela relacionados”.11

Considerações finais

De uma forma geral, o que poderíamos chamar de um “caráter republicano” dos museus transformados ou criados logo após 1889, estava centrado nos ideais de progresso e de instrução pública (de “educação do povo”) e na constru-ção simbólica do novo regime, criado sem o clamor popular e carente de legitimidade. Esses valores se contrapunham à tradição museológica, voltada à propagação dos conhecimentos de História Natural como caminho “civilizatório” e de unidade territorial, projeto seguido com afinco pelo regime monárquico, que tinha na figura do imperador Pedro II um dos seus mais importantes patrocinadores. Esses movimentos marcam uma decadência gradativa do interesse centrado exclusivamente nas ciências naturais como objeto de criação de museus no Brasil, traduzindo-se, mesmo nos dias atuais, numa escassa tradição dessa natureza em nosso país.

Mesmo nas instituições que continuaram concentradas nas coleções de História Natural, houve uma ruptura no caráter enciclopédico e uma valorização das peculiaridades das províncias onde estavam instaladas, ou seja, uma “territorialização” dos museus como um reflexo de um novo pacto federalista pós-republicano.

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Exemplos claros dessa atitude podem ser verificados tanto na criação do Museu Paulista quanto na reforma do Museu Paraense. Em relação ao Museu Paraense, o caráter republicano se materializou especialmente na gestão de Emilio Goeldi, período de grandes mudanças em relação à agenda científica e aos vínculos da instituição com os poderes locais: “... o Museu Paraense cresceu institucionalmente e cientificamente porque foi parte de um projeto político, que tinha na instrução pública, no cultivo das ciências e das artes algumas de suas prioridades. Sob essa perspectiva, os políticos que assumiram a administração do estado do Pará após a proclamação da República foram fundamentais para a requalificação do Museu Paraense nos anos de 1890”.12

O Museu Paulista percorreu rapidamente o território da História Natural, já sob a perspectiva republicana, e se “encaixou” num conceito caro ao regime de 1889, que era o de valorização da “História Pátria”: “...pode-se afirmar que tanto o aspecto simbólico quanto a utilidade instrutiva influenciaram fortemente para que o Museu Paulista fosse criado como parte integrante dos projetos republicanos”.13

No campo da instrução pública, os museus ganharam espaço nas agendas dos primeiros governos locais da República a partir do estímulo à criação de escolas complementares, ginásios específicos para o ensino secundário, além da Escola Normal, peça-chave na formação dos mestres que seriam responsáveis pela difusão do ensino. Em algumas escolas normais no Brasil, foram criados laboratórios científicos e mesmo museus de História Natural, parte fundamental do desenvolvimento científico dos novos alunos.

Notas e referências bibliográficas

Cícero Antônio F. de Almeida é museólogo, professor de Museologia do Departamento de Estudos e Processos Museológicos do CCHS da Unirio, professor do MBA em Gestão Cultural da Universidade Candido Mendes, mestre em Memória Social pela Unirio e diretor do Departamento de Processos Museais do Instituto Brasileiro de Museus/Ibram. E-mail: [email protected]

1 No momento da Proclamação da República, o Brasil contava com 13 museus em funcionamento. A exatidão desse número ainda depende de novas pesquisas.

2 Sobre a transformação do Museu Paraense no período de transição entre o Império e a República, indico o consistente trabalho de Nelson Sanjad, fruto de sua tese de doutorado no Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, publicado sob o título “A Coruja de Minerva: o Museu Paraense entre o Império e a República (1866-1907)”, pelo Instituto Brasileiro de Museus, Museu Paraense Emilio Goeldi e a Fundação Oswaldo Cruz, 2010.

3 A transformação do Museu Paulista (entre sua criação) e as comemorações do Centenário da Independência, com destaque para a atuação de Taunay, são objeto central do livro de Ana Maria de Alencar Alves “O Ipiranga Apropriado: ciência, política e poder. O Museu Paulista – 1893-1922”, de grande ajuda na presente reflexão.

4 SANJAD, Nelson. A Coruja de Minerva: o Museu Paraense entre o Império e a República (1866-1907). Brasília: Instituto Brasileiro de Museus; Belém: Museu Paraense Emilio Goeldi; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2010, p.154.

5 Idem, p. 156.

6 Idem, p. 185.

7 KOSERITZ, Carl Von. Imagens do Brasil, São Paulo: Universidade de São Paulo, 1980. (...). p. 266.

8 ALVES, Ana Maria de Alencar. O Ipiranga apropriado: ciência, política e poder. O Museu Paulista – 1893-1922. São Paulo: Humanitas/FFFLCH/USP, 2001, p. 69.

9 Idem, p. 179.

10 BARATA, Mário. Origens dos museus históricos e de arte no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 147 (350), p. 22-30, jan/mar. Rio de Janeiro, 1986.

11 ABREU, Regina Maria do Rego Monteiro de. Sangue, nobreza e política no tempo dos imortais: um estudo antropológico da coleção Miguel Calmon no Museu Histórico Nacional. Dissertação (Mestrado) apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFRJ, 1990, p. 75.

12 SANJAD, op. cit., p. 374.

13 ALVES, op. cit., p. 187.

[ Artigo recebido em 10/2010 | Aceito em 12/2010 ]

Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 5, suplemento, p. 60-79, 2012

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Lepidosirengiglioliana: uma homenagem do botânico João Barbosa Rodrigues ao zoólogo Enrico Hillyer Giglioli

Lepidosiren giglioliana:ahomagepaidby thebotanist JoãoBarbosa

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ANTONIO CARLOS SEQUEIRA FERNANDES

Universidade Federal do Rio de Janeiro | UFRJ

ANDREA SIQUEIRA D’ALESSANDRI FORTI

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e Universidade Federal do Rio de Janeiro |UFRJ

VITTORIO PANE

Club Alpino Italiano, Sezione de Giaveno, Itália

MARINA JARDIM E SILVA

Universidade Federal do Rio de Janeiro | UFRJ

CECILIA DE OLIVEIRA EWBANK

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro | Unirio

RESUMO Em 1886, o botânico João Barbosa Rodrigues comunicou, no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, ter encontrado um peixe dipnoico, enviando-o ao zoólogo Enrico Hillyer Giglioli, do Real Museu Zoológico, Florença, Itália. Acreditando tratar-se de uma espécie nova, designou-a Lepidosiren giglioliana, em homenagem a Giglioli. O objetivo deste artigo é discutir a origem e razão da relação de amizade entre os dois pesquisadores, certamente resultante do interesse de ambos pela Antropologia e a Etnografia, o que levou à indicação de Barbosa Rodrigues para membro honorário da Sociedade Italiana de Antropologia e Etnografia, como reconhecimento pelos seus trabalhos em prol da antropologia brasileira.

Palavras-chave: Lepidosiren giglioliana, João Barbosa Rodrigues, Enrico Hillyer Giglioli.

ABSTRACT In 1886 the botanist João Barbosa Rodrigues announced in the Jornal do Comércio from Rio de Janeiro he had found a dipnoic fish, later sent to the zoologist Enrico Hillyer Giglioli at the Real Museo Zoologico, Florence, Italy. The discovery was believed to be a new species and was named Lepidosiren giglioliana after Giglioli. This paper aims at investigating the origins and reasons behind the friendship between the two researchers. They defini-tely stem from their interest in anthropology and ethnography, ultimately contributing to the nomination of Barbosa Rodrigues as the Honorary member of the Italian Society of Anthropology and Ethnography, due to his work in favor of the Brazilian Anthropology.

Keywords: Lepidosiren giglioliana, João Barbosa Rodrigues, Enrico Hillyer Giglioli.

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Introdução

O estabelecimento de correspondência entre naturalistas com interesses comuns nos diversos campos da ciência não é fato novo, remontando principalmente aos idos do Renascimento. Com a descoberta do Novo Mundo e a possibilidade de conhecimento de novos elementos naturais, tais interesses se acentuaram com a organização de expedições que poderiam levar para o Velho Mundo as novidades faunísticas, florísticas e antropológicas oferecidas pela exploração das terras “virgens e selvagens” situadas no Ocidente. Grandes coleções assim se formavam, vindo a compor os acervos e exposições de inúmeros gabinetes e museus na Europa, aumentando cada vez mais o interesse científico pelo Novo Mundo. No Brasil, com a organização, a partir do século XIX, de instituições ligadas ao estudo das ciências naturais, como o Museu Nacional, a constituição de um corpo próprio de pesquisadores brasileiros à frente das instituições e a realização de expedições de cunho naturalista e antropológico sob as expensas do governo imperial, acentuou-se a permuta de ideias e exemplares entre os naturalistas brasileiros e os das instituições científicas europeias. Como exemplo dessa “troca” entre naturalistas do Velho e do Novo Mundo na segunda metade do século XIX, tem-se a relação que se estabeleceu entre o naturalista e botânico João Barbosa Rodrigues e o zoólogo e antropólogo Enrico Hillyer Giglioli, a qual, ao que tudo indica, resultou num forte sentimento de amizade entre ambos.

No período de 1876 a 1886, os dois naturalistas devem ter mantido uma constante correspondência em que tratariam de assuntos antropológicos, tema afim a ambos, com a possível remessa, da parte de Barbosa Rodrigues, de objetos etnográficos produzidos pelos índios brasileiros. Tal relação de amizade certamente perdurou até o falecimento de Barbosa Rodrigues, em março de 1909, e ficou evidenciada quando Barbosa Rodrigues decidiu, em 1886, homenagear Giglioli com a adoção de seu nome para designar uma possível espécie nova de peixe dipnoico da região do Amazonas, conhecido, na ocasião, pela raridade de exemplares. Apesar das inúmeras dificuldades de se conseguirem os elementos originais da correspondência trocada entre os dois amigos, tida como perdida na sua quase totalidade, a análise de textos publicados em jornais e periódicos permite traçar hipóteses sobre a origem e a continuidade da relação entre os dois naturalistas, compondo uma história da profunda amizade estabelecida entre ambos, objetivo primordial deste artigo.

Os personagens

Para se entender a relação que se estabeleceu entre Barbosa Rodrigues e Enrico Giglioli, é necessário ressaltar, através de uma breve biografia, os pontos comuns da vida dos dois naturalistas, bem como de dois outros personagens a eles relacionados.

De família mineira, João Barbosa Rodrigues (1842-1909) nasceu no Rio de Janeiro e logo se mudou para Minas Gerais, onde viveu os primeiros anos de sua infância. Após seu retorno à cidade natal, na década de 60, Barbosa Ro-drigues ingressou na Escola Central, atual Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde se formou engenheiro em 1869. Estabelecendo-se na cidade, complementou sua formação no Instituto Comercial do Rio de Janeiro, onde conheceu Guilherme Schüch de Capanema (1824-1908), o barão de Capanema, o qual, além do interesse pela Botânica, ocupou o cargo de geólogo no Museu Nacional e tornou-se seu grande amigo e mentor. Graças a Capanema, Barbosa Rodrigues ocupou o cargo de secretário do Instituto Comercial e, posteriormente, os cargos de secretário e professor de Desenho no Colégio Pedro II, até ser dispensado pelo imperador por considerá-lo partidário dos ideais republicanos.1

Entre os anos de 1872 e 1875, Barbosa Rodrigues, “sob o patrocínio do barão de Capanema, foi comissionado pelo governo brasileiro para explorar o vale do rio Amazonas”,2 atividade que resultou na publicação de cinco importantes relatórios ainda em 1875, “cujas edições foram esgotadas em poucos meses”.3 Barbosa Rodrigues continuou suas pesquisas e, apesar de seus trabalhos já serem conhecidos tanto no âmbito nacional como internacional, foi a partir da década de 1880 que se consolidou no meio científico brasileiro, assumindo sucessivamente os cargos de diretor do extinto

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Museu Botânico de Manaus, a convite da princesa Isabel, e do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, neste último já sob o regime republicano, onde permaneceu até sua morte, em março de 1909.

Em 1876, os relatórios sobre suas atividades na Amazônia chegaram às mãos de Giglioli, que se interessou pelo seu con-teúdo antropológico, iniciando-se, assim, a longa amizade que os dois naturalistas mantiveram nas décadas seguintes.

Nascido em Londres, mas de na-cionalidade italiana, Enrico Hillyer Giglioli (1845-1909) estudou no Instituto Técnico de Pádua e, aos 16 anos, frequentou a Escola Real de Minas de Londres no período de 1861 a 1863, quando teve a oportunidade de estudar as ciências naturais e conhecer, nesse ínterím, os maiores cientistas ingleses do momen-to, como Charles Darwin, Charles Lyell, Richard Owen e Thomas Huxley. De volta à Itália, em 1864, Giglioli formou-se em Ciências Naturais pela Universidade de Pisa, onde seu pai, Vicenzo Giglioli, ocu-pava a cátedra de Antropologia. Nessa época, Giglioli teve contato com Filippo De Filippi, diretor do Real Museu Zooló-gico de Turim, e, graças a ele, tornou-se professor do Instituto Técnico de Casale

Monferrato, no Piemonte, sendo indicado para participar de uma viagem para circundar o mundo, a qual ocorreu de outubro de 1865 a 1868, a bordo da fragata Magenta. Ao final do cruzeiro, Giglioli foi trabalhar na Universidade de Turim com a incumbência de classificar e organizar as ricas coleções zoológicas e entomológicas coletadas durante a viagem. No ano seguinte, em 1869, tornou-se professor de Zoologia e Anatomia Comparada de vertebrados no Real Instituto de Estudos Superiores de Florença e, em 1877, passou a ocupar a direção do gabinete de zoologia de vertebrados do referido instituto, permanecendo no cargo até sua morte, em dezembro de 1909.4 Durante sua vida acadêmica, Giglioli teve interesse por vários temas científicos e, entre eles, a Antropologia, resultado da influência de seu pai. Por esse motivo, manteve grande ligação com renomados antropólogos italianos, como De Filippi e Paolo Mantegazza, chegando a organizar uma rica coleção etnográfica particular com os artefatos obtidos quando da viagem realizada com a fragata Magenta, além de inúmeros outros objetos que conseguiu através de suas relações sociais e científicas com várias partes do mundo,5 incluindo o Museu Nacional do Rio de Janeiro,6 e, certamente, também com Barbosa Rodrigues.

Dois outros grandes personagens tiveram um papel relevante no relacionamento entre Barbosa Rodrigues e Giglioli: o conselheiro brasileiro Felipe Lopes Netto, certamente o primeiro elo entre ambos, e o senador italiano Paolo Mantegazza que, junto com Giglioli, propôs a indicação do naturalista brasileiro para membro da sociedade antropológica e etnográfica de Florença.

Figura 1 Enrico Hillyer Giglioli, em fotografia cedida pela família ao Museu de Florença

por ocasião de sua morte em 16 de dezembro de 1909 (Fotografia do acervo do Museu

de História Natural da Universidade de Florença).

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O destaque principal vai para Felipe Lopes Netto (1814-1895) que, nascido em Recife, começou seus estudos na Faculdade de Direito de Olinda, aos quais deu continuidade na Universidade de Pisa, na Itália, onde os terminou. De volta ao Brasil, teve destacada participação na Revolução Praieira, em 1848, sendo preso após o encerramento da revolta. Anistiado, tornou-se deputado geral pela província de Sergipe, em 1864. Representante brasileiro como diplomata residente em países como o Uruguai, os Estados Unidos e a Itália, Lopes Netto é particularmente conhecido por sua atuação no tratado firmado com a Bolívia, em 1868, e árbitro brasileiro nas questões do Chile com as potências estrangeiras devido à Guerra do Pacífico. Sua atuação na reunião e doação de exemplares ou coleções a instituições científicas nacionais e estrangeiras é citada na literatura. Ladislau Netto, em sua importante obra sobre a história e o acervo científico do Museu Nacional, relacionou seu nome como um dos doadores da instituição,7 sendo também citado por João Baptista de Lacerda8 como doador de vários objetos procedentes da Lapônia, do Egito e da Rússia ao Museu Nacional, em 1873. Três anos depois, em 1876, Lopes Netto, que, certamente já mantinha relações com Giglioli, enviou ao Real Instituto de Estudos Superiores de Florença, onde Giglioli já se encontrava, uma coleção significativa de pássaros, mamíferos e répteis do Brasil.9 No ano seguinte, Lopes Netto encaminhou a Giglioli, então, os relatórios de autoria de Barbosa Rodrigues sobre a antropologia da Amazônia.

Em 1869, oito anos antes de Lopes Netto enviar os trabalhos de Barbosa Rodrigues a Giglioli, Paolo Mantegazza (1831-1910), médico fisiologista e antropólogo italiano, escritor e reconhecido senador do Reino da Itália, fundava, em Florença, o Museu Nacional de Antropologia e Etnologia. Na esteira de seu grande interesse pelos estudos antro-pológicos e etnográficos, em 1871 fundou a Sociedade Italiana de Antropologia e Etnologia, na qual atuou como seu principal dirigente por muitos anos, tendo a seu lado a constante participação de Giglioli.

Um interesse italiano pela etnografia brasileira

Giglioli estabeleceu seu primeiro contato com o Museu Nacional em janeiro de 1866, quando teve a oportuni-dade de passar pelo Rio de Janeiro na célebre viagem ao redor do mundo a bordo da fragata Magenta, que relatou posteriormente em sua obra, publicada cerca de sete anos após o término da viagem.10 Quando de sua permanência na cidade, preocupou-se em conhecer os produtos da terra, a floresta da Tijuca, a parte baixa da cidade e algumas fazendas. Interessou-se pelos costumes locais e observou as condições penosas dos escravos.

Em 6 de janeiro de 1866, cinco dias antes de sua partida para Montevidéu, foi, inclusive, recebido, junto com os oficiais da fragata Regina, pelo imperador D. Pedro II e D. Teresa Cristina, tia do ex-rei de Nápoles.11 Em dia não determinado, visitou o Museu Nacional e suas exposições, sobre as quais apresentou um breve relato, considerando negligenciada a exibição de exemplares da fauna brasileira em detrimento de espécimens provenientes de outras regiões, mas que teriam pouco interesse para os naturalistas estrangeiros que desejassem conhecer melhor os representantes faunísticos do país. Na sua obra, Giglioli destacou a exposição etnológica do Museu, com ênfase aos exemplares re-presentantes das culturas indígenas brasileiras, demonstrando particular interesse pela presença de troféus de cabeça preparados pelos índios da tribo Munduruku.12

A notícia da presença dos troféus de cabeça na exposição do Museu Nacional não era novidade na literatura produ-zida pelos naturalistas viajantes que visitavam a instituição, quando passavam pelo Rio de Janeiro, parada praticamente obrigatória aos navios que se dirigiam ao sul do continente sul-americano, sendo, inclusive, ilustrados em aquarelas por Jean-Baptiste Debret.13 Essas cabeças tornaram-se muito cobiçadas no século XIX pelos colecionadores europeus, parti-cularmente em sua segunda metade, na mesma época, portanto, que Giglioli esforçava-se na montagem de uma coleção antropológica – em 1889, para obter ao menos um exemplar, manteve correspondência com o Museu Nacional, encami-nhando exemplares zoológicos oferecidos em permuta pelos tão cobiçados troféus14 para sua coleção antropológica.

Não há comprovação documental, no Museu Nacional, de que Giglioli tenha entrado em contato com os natu-ralistas da instituição por ocasião de sua passagem pelo Rio de Janeiro, em 1866. Sendo assim, certamente também

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não o fez com Barbosa Rodrigues, e os primeiros contatos entre os dois devem somente ter ocorrido dez anos depois, quando tomou conhecimento dos relatórios elaborados pelo naturalista brasileiro.

Um botânico na sociedade antropológica e etnográfica italiana

Em 1876, quando participava, junto com Paolo Mantegaza, da direção da Sociedade Italiana de Antropologia e de Etnologia, Giglioli recebeu de Lopes Netto exemplares dos relatórios elaborados por Barbosa Rodrigues sobre a antropologia da Amazônia. Com grande interesse na antropologia sul-americana e reconhecendo o inestimável valor dos relatórios publicados por Barbosa Rodrigues, Giglioli preparou uma resenha dos mesmos e as apresentou na reunião da sociedade, realizada em 20 de dezembro do mesmo ano. Na ocasião, junto com Mantegaza, propôs a indicação de Barbosa Rodrigues como membro honorário da sociedade, sendo aprovado pelos seus membros. Em 1877, no primeiro número do ano do Arquivo de Antropologia e Etnologia da sociedade, publicou as resenhas referentes a cada um dos relatórios e grandes elogios ao trabalho de Barbosa Rodrigues, com quem certamente já vinha se correspondendo desde o ano anterior.15

Após a indicação do nome de Barbosa Rodrigues, dois outros brasileiros foram indicados para a sociedade italiana. Na 44ª reunião, realizada em 26 de fevereiro de 1877, Giglioli e Mantegaza propuseram o nome de Pedro de Alcântara, D. Pedro II, imperador do Brasil, o qual se encontrava presente à sessão, sendo eleito sócio honorário por aclamação.16 Na reunião seguinte, realizada em 20 de março do mesmo ano, Giglioli e Mantegaza propuseram então o nome de Lopes Netto, o qual também foi eleito sócio honorário da sociedade.17 A partir de 1877, a sociedade antropológica italiana passara a contar, então, em seu quadro de sócios, os nomes de três brasileiros e um italiano, cujas vidas, de uma forma ou de outra, estavam interligadas.

Figura 2 (A) Foto do exemplar de Lepidosiren “giglioliana” enviado por Barbosa Rodrigues a Giglioli em 1886 e registrado no acervo do Museu de

História Natural, Seção de Zoologia “La Specola”, da Universidade de Florença, sob o número M.2670, e (B) detalhe da etiqueta de identificação

(Fotografia cedida pela Dra. Marta Poggesi).

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Homenageando o “amigo” Giglioli

Após a indicação de seu nome para a sociedade antropológica italiana, Barbosa Rodrigues certamente passou a manter permanente correspondência com Giglioli, a quem se referiu como “amigo” ao lhe prestar uma justa homenagem. Vivendo em Manaus, na década de 80, quando ocupava o cargo de diretor do Museu Botânico, Barbosa Rodrigues tinha, além do conhecimento botânico para dirigir a instituição, também interesse por outros componentes da natureza amazônica, incluindo os faunísticos. Ciente da raridade de exemplares de peixes como a piramboia, então classificada pelos zoólogos como Lepidosiren paradoxa, e da existência de somente dois espécimens até então conhecidos, Barbosa Rodrigues ficou exultante ante a visão de um terceiro exemplar da espécie que lhe chegava às mãos, “vivo e perfeito”. Em 1886, encaminhou o exemplar ao Real Museu Zoológico de Florença para, por intermédio de seu “amigo Henrique Giglioli”, ser estudado por seus especialistas. Desconfiado de que se tratava de uma nova espécie de peixe dipnoico, propôs a denominação de Lepidosiren Giglioliana em homenagem a Giglioli, ficando a sugestão registrada em artigo publicado no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro.18

A correspondência que Barbosa Rodrigues mantinha com Giglioli tinha, muito certamente, outros interesses bem além da fauna regional amazônica. Criado para estudar principalmente a flora da região amazônica, o Museu Botânico “voltava-se também para o estudo da ‘indústria indígena’, ficando encarregado de ‘conservar uma seção etnográfica’”,19 contendo fotografias, desenhos e objetos para estudos antropológicos. No seu acervo, em 1885, a seção etnográfica chegou a contar com “1.103 objetos de coleções variadas de 60 tribos do vale amazônico”20 e as trocas ou permutas eram permitidas, no caso de ocorrência de triplicatas.21 Acredita-se, assim, que a etnografia deveria ser o tema central das cartas trocadas entre os dois naturalistas.22 Apesar dessa ligação com a temática etnográfica, por ser Giglioli um renomado zoólogo italiano, Barbosa Rodrigues decidiu homenageá-lo com a nova espécie de peixe que, na época, era de raríssima ocorrência.

Giglioli não tardou a responder à homenagem do “amigo”. Em 1887, publicou uma nota na revista Nature sobre o exemplar recebido, o qual pessoalmente dedicou-se a analisar. Na nota, destaca ter recebido “from my friend Dr. J. Barbosa Rodriguez, the learned and energitc Director of the Museu Botânico do Amazonas” 23 o espécimen de Lepido-siren, destacando, assim, o sentimento de amizade e respeito estabelecido entre ambos. Por outro lado, seus estudos concluem pela manutenção da designação específica já conhecida (L. paradoxa), embora ressalte a importância da captura do novo exemplar. Quanto à designação Giglioliana, esta teve como destino o rol das designações sinonímicas estabelecidas pela taxonomia zoológica. Ao contrário das cartas não localizadas, o exemplar enviado por Barbosa Rodrigues a Giglioli continua no acervo do antigo Real Museu Zoológico, atualmente Museu de História Natural, Seção de Zoologia “La Specola”, da Universidade de Florença.

Considerações finais

Diversos textos discorrendo sobre a vida e obra de Barbosa Rodrigues foram publicados desde a segunda década do século XX, como os artigos de Hermann von Ihering,24 W. Duarte de Barros,25 Adir Guimarães,26 Magali Romero Sá27 e a obra de Dilke de Barbosa Rodrigues Salgado.28 Embora os relatórios de Barbora Rodrigues sobre a antropologia e etnografia da região amazônica sejam conhecidos e comentados por diversos autores, é quase inexpressiva a menção de sua participação em sociedades estrangeiras, particularmente em uma sociedade antropológica italiana, fato bre-vemente referenciado por Dilke Salgado29 e cuja história procurou-se resgatar.

Não se pode deixar de ressaltar a importância do papel de Lopes Netto na ligação entre a obra de Barbosa Rodrigues e a sociedade italiana. Provavelmente ciente do interesse de Giglioli pela etnografia sul-americana, foi o responsável por lhe enviar os relatórios de Barbosa Rodrigues. Por sua vez, reconhecendo o valor dos textos, Giglioli apresentou-os aos membros da sociedade, propondo sua inclusão nos quadros da instituição como sócio honorário, tendo-o feito

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com o integral apoio de Mantegaza, seu fundador e presidente. Paralelamente, estabeleceu contato com Barbosa Ro-drigues, com quem, através dos anos que se seguiram, consolidou uma forte amizade. Foi do reconhecimento mútuo que surgiram as homenagens entre ambos: Giglioli indicando-o para membro de uma das mais respeitadas sociedades antropológicas da Europa e Barbosa Rodrigues homenageando-o com a proposta de uma nova espécie de peixe com raros exemplares conhecidos na época.

A ligação entre os naturalistas e Lopes Netto permaneceu pelas décadas seguintes. Depois de ser exonerado do cargo de ministro residente que ocupava na Itália, Lopes Netto aposentou-se e estabeleceu residência em Florença, onde veio a falecer em 8 de novembro de 1895. É provável que durante sua morada na cidade mantivesse o contato com a sociedade antropológica de Florença, face aos laços de amizade que mantinha com Giglioli. Curiosamente, Bar-bosa Rodrigues e Giglioli vieram a falecer no mesmo ano, em 1909: o primeiro, em 6 de março, e o segundo, em 16 de dezembro. Findava, assim, uma grande amizade, mas permaneciam para todo o sempre os valores de reconhecimento ético e profissional entre dois grandes naturalistas da segunda metade do século XIX e início do século XX.

Notas e referências bibliográficas

Antonio Carlos Sequeira Fernandes é professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e bolsista de produtividade do CNPq. Bacharel e licenciado em História Natural pela Universidade Gama Filho e licenciado em História pela Universidade Veiga de Almeida, é mestre e doutor em Ciências-Geologia pela UFRJ, coordenando um projeto de recuperação do acervo geopaleontológico oitocentista do Museu Nacional. E-mail: [email protected]

Andrea Siqueira D’Alessandri Forti é graduanda em Museologia pela Unirio e em História pela UFRJ, com atuação no levantamento histórico do acervo geopale-ontológico do Museu Nacional. E-mail: [email protected]

Vittorio Pane é geólogo pela Universidade de Turim, Itália, com especialidade em Paleontologia e Mineralogia dos Alpes, sendo curador do Museu Geológico Experimental do Clube Alpino Italiano em Giaveno, Turim. E-mail: [email protected]

Marina Jardim e Silva é graduanda em História pela UFRJ e bolsista Pibic/UFRJ. E-mail: [email protected] de Oliveira Ewbank é graduanda em Museologia pela Unirio e bolsista Pibic/CNPq. E-mail: [email protected]

Agradecimentos ao CNPq e à Faperj pelo apoio financeiro; à Maria José Veloso da Costa Santos e Sílvia Ninita de Moura Estevão pela disponibilização dos docu-mentos do Setor de Memória e Arquivo do Museu Nacional (SEMEAR); à Marta Poggesi (Museu de História Natural da Universidade de Florença) pela fotografia de Lepidosiren “giglioliana”; ao Museu de História Natural da Universidade de Florença e ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro pelas cessões das imagens

de Enrico Giglioli e do diploma da Sociedade Italiana de Antropologia e Etnologia conferido a D. Pedro II, respectivamente.

1 Comunicação verbal de William Rodrigues em 23 de outubro de 2009.

2 SÁ, Magali Romero. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segunda metade do século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v. VIII (suplemento), p. 906, 2001.

3 IHERING, Hermann von. João Barbosa Rodrigues. Revista do Museu Paulista. São Paulo, v. 8, p. 24, 1911.

4 D’ENTRèVES, Pietro Passerin; LATTANZI, Vito; SHEPHERD, Elizabeth Jane; BARBAGLI, Fausto; VIOLANI, Carlo; CIRUZZI, Sara; CALZOLARI, Silvio. Enrico Hillyer Giglioli: l’uomo, il naturalista, il viaggiatore. L’Universo. Florença, n. 5, p. 625-672, setembro-outubro, 1996.

5 PETRUCCI, Valéria. As coleções etnográficas brasileiras na Itália. In: RIBEIRO, Berta G.; MOREIRA NETO, Carlos Araújo; HOONAERT, Eduardo; PETRUCCI, Valéria. (Ed.). A Itália e o Brasil indígena. Rio de Janeiro: Index Editora, 1983, p. 47-55.

6 FERNANDES, Antonio Carlos Sequeira; PANE, Vittorio; FORTI, Andrea Siqueira D’Alessandri; RAMOS, Renato Rodriguez Cabral. Trocando animais por cabeças-troféu Munduruku: o intercâmbio de Enrico Giglioli com o Museu Nacional na segunda metade do século XIX. In: Encontro de História e Filosofia da Biologia 2009, São Paulo. Resumos... São Paulo: Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia, p. 14-15, 2009.

7 NETTO, Ladislau. Investigações Historicas e Scientificas sobre o Museu Imperial e Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Philomatico, 1870, p. iv (Anexo: Relação dos doadores do Museu Nacional).

8 LACERDA, João Baptista de. Fastos do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905, p. 36.

9 FERNANDES, Antonio Carlos Sequeira; PANE, Vittorio; FORTI, Andrea Siqueira D’Alessandri; RAMOS, Renato Rodriguez Cabral. Trocando espécimens de animais por cabeças-troféu Munduruku: o intercâmbio de Enrico Giglioli com o Museu Nacional na segunda metade do século XIX. Filosofia e História da Biologia. São Paulo, v. 5, n. 1, p. 1-19, 2010.

10 GIGLIOLI, Enrico Hillyer. Viaggio intorno al globo della R. Pirocorvetta Italiana “Magenta” negli anni 1865, 1866, 1867, 1868, sotto il comando del capitano di fregata V. F. Arminjon. Relazione descrittiva e scientifica pubblicata sotto gli auspici del Ministero di Agricoltura, Industria e Commercio. Con introduzione etnologica di Paolo Mantegazza. Milano, V. Maisner e C., 1875, p. 39-41.

11 D’ENTRèVES, op. cit., 1996, p. 654.

12 GIGLIOLI, op. cit., 1875, p. 41.

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13 BANDEIRA, Julio; LAGO, Pedro Corrêa do. Debret e o Brasil: obra completa 1816-1831. Rio de Janeiro: Capivara, 2007.

14 FERNANDES et al., op. cit.,2010, p. 14.

15 GIGLIOLI, Enrico Hillyer. Lo studio dell’Etnologia al Brasile. Archivio per l’Antropologia e la Etnologia. Florença, v. 7, n. 1, p. 40-49, 1877.

16 Ata da 44ª reunião da Sociedade Italiana de Antropologia e de Etnologia. Archivio per l’Antropologia e la Etnologia. Florença, v. 7, n. 1, p. 271-272, 1877.

17 Ata da 45ª reunião da Sociedade Italiana de Antropologia e de Etnologia. Archivio per l’Antropologia e la Etnologia. Florença, v. 7, n. 1, p. 272-273, 1877. Nesta mesma reunião, foi lida em plenário uma carta de D. Pedro II com agradecimentos à sua indicação para membro da sociedade.

18 O artigo de Barbosa Rodrigues, escrito originalmente em 20 de setembro de 1886 em Manaus, quando ocupava a direção do Museu Botânico do Amazonas, foi publicado na íntegra como uma comunicação ao Jornal do Comércio do Rio de Janeiro em sua edição de 18 de outubro do mesmo ano.

19 LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Hucitec, p. 215, 1977.

20 LOPES, op. cit., 1977, p. 216.

21 LOPES, op. cit., 1977, p. 215.

22 Desconhece-se o paradeiro da correspondência recebida por Barbosa Rodrigues, a qual se julga, portanto, perdida; quanto à correspondência recebida por Giglioli, esta ainda não foi localizada, sendo possível que se encontre nos arquivos do Museu Pigorini, em Roma, para onde foi enviado o acervo da coleção antropológica particular de Giglioli. A impossibilidade de consulta aos arquivos do Pigorini tem dificultando uma confirmação documental dos conteúdos que comprovassem a temática abordada entre os dois naturalistas; tampouco foi possível verificar a existência de permuta de material antropológico e etnográfico entre eles.

23 GIGLIOLI, Enrico Hillyer. Lepidosiren paradoxa. Nature. Londres, v. 35, p. 343, 1887.

24 IHERING, Hermann von. João Barbosa Rodrigues. Revista do Museu Paulista. São Paulo, v. 8, p. 23-37, 1911.

25 BARROS, W. Duarte de. Barbosa Rodrigues – Naturalista brasileiro. Rodriguésia. Rio de Janeiro, ano 6, n. 15, p. 3-15, 1942.

26 GUIMARÃES, Adir. Barbosa Rodrigues. Rodriguésia. Rio de Janeiro, ano 15, n. 27, p. 191-212, 1952.

27 SÁ, op. cit., 2001.

28 SALGADO, Dilke de Barbosa Rodrigues. Barbosa Rodrigues, uma glória do Brasil. Rio de Janeiro: A Noite, 1945.

29 SALGADO, op. cit., p.175-176, 1945.

[ Artigo recebido em 05/2010 | Aceito em 07/2010 ]

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João Barbosa Rodrigues, um naturalista entre o Império e a República1

JoãoBarbosaRodrigues,anaturalistbetweentheempireandtheRepublic

ALDA HEIZER

Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro

RESUMO O artigo aborda aspectos da biografia de João Barbosa Rodrigues, naturalista e ex-diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, e aponta possibilidades de reflexão sobre os usos posteriores que fizeram sobre a sua atuação na passagem do império para a república, no Brasil.

Palavras-chave naturalista; biografia; exposição.

ABSTRACT The article approaches aspects of João Barbosa Rodrigues biography, naturalist and ex-director of the Rio de Janeiro’s Botanical Garden of and aims possibilities of reflection about what was written about the naturalist and the subsequent uses that have been made about his role in the passage of the empire for the republic, in Brazil.

Keywords naturalist; biographie; exposition.

“TalfoianossaExposiçãoNacionalde1908,notávelebrilhantíssimae,peloquenellaexibiu,reveladoradegrandeadeantamentodenossasindustriaseartes,patenteandocomonuncaconseguira,aimmensaopulenciadenossasriquezasnaturaes,agrandecapacidadedenossaagriculturae,deummodogeral,aimportânciaeconômicadestevastoeriquissimopaiz,quenodecursodeumseculo,apósaaberturadeseusportosaolivrecommerciodasnações,tantosedesenvolveueprogrediu,offerecendoainda,ecadavezmais,áactividadedocapitaledotrabalho,sobasgarantiasdeumregimenlivreedeumalegislaçãoliberal,asvantagensdosmaioresbenefícios”.2

Em 2007, com vistas a uma publicação a ser lançada3 durante as comemorações do bicentenário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, elaborei um artigo sobre João Barbosa Rodrigues e a Exposição Nacional de 1908.4

Naquele momento, procurei trabalhar duas frentes que me permitiram compreender melhor o lugar do Jardim Botânico do Rio de Janeiro num evento que pretendia comemorar os cem anos da “Abertura dos Portos” e fazer um balanço da história do Brasil desde a chegada da corte portuguesa, em 1808.5

Privilegiei, por um lado, compreender o projeto da Exposição num bairro que surgia naquele momento, as regras de convivência que o evento se lhe impunha numa cidade que passara anos antes por um processo de “reformas físicas e morais”, para usar um termo recorrente na época.6

Procurei também analisar, ainda que timidamente, a história institucional contada por Barbosa Rodrigues, a qual está impressa no álbum comemorativo7 dos cem anos da instituição, elaborado para a referida Exposição – ressalva

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feita ao fato de que o histórico apresentado pelo autor constituía a ampliação do que o naturalista havia escrito no Hortus Fluminensis (1893).8

Naquele momento, interessou-me como o naturalista contou a história do Jardim Botânico desde a sua criação, numa perspectiva muito parecida com a proposta da Exposição Nacional de 1908, que era a de fazer uma retrospectiva histórica.

No entanto, ao realizar o levantamento de fontes para a minha pesquisa, outro documento que Barbosa Rodrigues elaborou para representar o Jardim na Exposição de 1908 me chamou a atenção: trata-se de um impresso indicando as plantas que seriam expostas no evento.9

Algumas considerações sobre a Exposição Nacional de 1908:

A Exposição Nacional de 1908, bem como outras exposições da mesma natureza, aconteceu em data escolhida para comemorar algum evento histórico. Assim, a Exposição de Filadélfia de 1876 foi concebida para comemorar os cem anos da independência dos EUA; a Exposição de Paris de 1889 foi concebida para comemorar o centenário da Revolução Francesa de 1789. A de 1908 foi concebida para comemorar os cem anos da Abertura dos Portos, ato do príncipe regente de Portugal D. João ao chegar ao Brasil, em 1808.

A historiadora Margarida de Souza Neves, autora de um artigo10 que inaugurou, na década de 1980, os estu-dos sobre tais eventos, chamou a atenção, em recente publicação, para o que Caio Prado Jr. já assinalara antes. Em seu “roteiro para a historiografia do II Reinado (1840-1889)”, o político e historiador brasileiro já indicava que os catálogos de exposições, entre outras publicações (podemos certamente incluir os relatórios e resultados de expedições, de congressos...), deveriam ser considerados como fontes da maior importância para os estudos sobre o Segundo Reinado.

De fato, como destaca Neves,11 somente nos anos de 1980 os estudiosos brasileiros deram ouvidos a Caio Prado Jr., e um número considerável de pesquisadores de diferentes formações se debruçou sobre a temática das exposições.

O Brasil participou de exposições durante a segunda metade do século XIX na Europa, nos Estados Unidos e na América do Sul.

Mesmo na Exposição de 1889, que comemorava a liberdade, a igualdade e a fraternidade, a monarquia se apresentou, em meio a divergências internas, como um império nos trópicos, segundo seus organizadores, civilizado e regenerado, dado que, um ano antes, abolira a escravidão.12

Conhecidos como “lições das coisas”, o visitante podia percorrer tais eventos, sempre monumentais, de forma contemplativa ou por meio da interação com o que era exposto.

As exposições obedeciam a divisões internas em vários níveis: os países se apresentavam em pavilhões; dentro destes, havia a exposição de objetos escolhidos como representativos, ou em pavilhões temáticos, como o do café do Brasil, em Filadélfia; o da ótica em 1900, em Paris; e o das máquinas, em 1908, no Rio de Janeiro, para citar alguns exemplos.13

A Exposição Nacional de1908 se apresentou como a concretização da relação íntima entre uma visão otimista do progresso e a referência a um estágio de civilização sempre prestes a conquistar.

A inauguração da Exposição sofreu dois adiamentos devido ao atraso das obras (alargamento da avenida principal e construção de um caminho pelo mar através de um porto) e à demora das remessas das peças dos estados, o que impediu, inclusive, que algumas seções fossem abertas no dia. E também o evento da morte do rei de Portugal, D. Carlos.

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Em agosto, o presidente da República Afonso Penna, em discurso inaugural, afirmou que a exposição tinha uma missão: inventariar o país.

Por meio de uma lógica que privilegiou a retrospectiva histórica, característica também de outras exposições, o evento recebeu milhares de visitantes, que percorreram os pavilhões para conhecer cidades, estados e instituições do Brasil, os quais escolhiam o que consideravam relevante sobre suas atividades.

A Exposição apresentou ao público o palácio principal, os pavilhões: de máquinas, de madeiras, dos carros da Estrada de Ferro Central do Brasil, da imprensa, do teatro, da música, da agricultura, dos Correios e Telégrafos, e do Jardim Botânico – que não ficou de fora desse evento –, além de coretos, cafés, cinematógrafos, eventos de diversão hípicos, teatros, concertos musicais...

Assim como a repartição dos Telégrafos e a Sociedade Nacional de Agricultura, o Jardim Botânico solicitou e obteve terreno próprio para se apresentar.

O naturalista e a exposição

Para organizar a exposição, foi instalada uma comissão formada por um presidente, um secretário-geral, três vice-presidentes e 36 membros.

Em 1907, ou seja, com um ano de antecedência, foi nomeada pelo governo uma comissão organizadora da Ex-posição Nacional. Um dos comissários foi o botânico João Barbosa Rodrigues, ao lado de Rodolpho Bernadelli, Orville Derby, Júlio Benedito Ottoni, André Gustavo Paulo de Frontin, dentre outros. As associações, sociedades e institutos se fizeram representar por delegados especiais.

Para facilitar a visita à exposição, seus organizadores previram livros especiais. Podemos citar o guia oficial com roteiro para os visitantes, o boletim de estatística e dados oficiais; catálogos dos produtos, notícias econômicas, me-mórias históricas, estudos, álbuns, diagramas, mapas, anúncios.

Como memória do evento foram produzidos um relatório, atas dos congressos científicos que aconteciam no interior das exposições e um catálogo geral.

Dentre esse material produzido, interessou-me, em particular, a relação das plantas que seriam expostas pelo JBRJ por João Barbosa Rodrigues. Mais do que uma listagem do que seria exposto, havia uma advertência ao leitor sobre a precariedade com que a instituição se apresentava.

Assim, no início do folheto, Barbosa Rodrigues diz – para lembrar, os visitantes da exposição poderiam “conhecer” o jardim através desse material – que o Jardim não estava preparado para a exposição devido a dois fatores: o tempo curto e o período escolhido, ou seja, a riqueza vegetal que possuía e sua beleza não poderiam ser ali apresentadas por ser uma época inapropriada.

O naturalista advertia que, para preparar a apresentação das plantas, seria necessário tempo e não apenas poucos meses. Isso mostra que Barbosa Rodrigues se preocupava com a adequada participação da instituição no evento.

No entanto, ao consultar o livro de ofícios expedidos pelo mesmo naturalista, em 1907,14 é possível constatar que ele emitira ao Ministério da Justiça a confirmação da participação do Jardim Botânico e o início dos trabalhos preparatórios para o evento, além da preparação de grande número de plantas, solicitação de adubo animal, vagões da Estrada de Ferro Central do Brasil, bem como prestação de contas e um ofício sobre o pessoal empregado para trabalhar especialmente para a exposição.

Da análise das correspondências estabelecidas com outros diretores de instituições de dentro e de fora do país, constata-se que Barbosa Rodrigues já havia exposto os limites de atuação em que se encontrava tanto no museu de

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Manaus, à altura da realização de expedições, como no JBRJ e a urgência de implementar reformas neste último, ao assumi-lo como o primeiro diretor após a Proclamação da República.

No entanto, analisar a advertência citada aumentou, de fato, uma inquietação que já havia me ocorrido a partir da leitura de uma biografia sobre Barbosa Rodrigues, escrita pelo então diretor do museu paulista Herman von Ihering um ano após a morte de Barbosa Rodrigues, em 1910, sob a forma de homenagem ao naturalista.15

Para von Ihering, Barbosa foi um sábio e amigo. O diretor do museu paulista apresentou a extensa produção de Barbosa bem como seus dados biográficos. Para von Ihering, com a morte do naturalista desapareceu o último representante de uma “plêiade de excelentes botânicos” do Rio de Janeiro que, por meio de publicações e coleções, contribuíram para o conhecimento da flora do Brasil.

Na biografia de Barbosa Rodrigues, as críticas por parte de von Ihering ao governo republicano não faltaram: “o governo ao não se fazer representar na altura da morte de Barbosa Rodrigues” reforça a hipótese de que Barbosa Rodrigues não estava afinado com os rumos desejados pelo governo ao JBRJ. Segundo von Ihering, a crítica feita por Afonso Penna em sua última mensagem ao Congresso, ao tratar do JBRJ, é reveladora:

“... não mencionou a morte do único diretor competente daquele estabelecimento, criticando ainda, injusta-mente, a sua obra e promettendo fazer uma reforma, pela qual o jardim devia entrar em outra fase de maior utilidade practica”.

Herman von Ihering abre um parêntese para chamar a atenção para o que foi o Jardim Botânico antes de Barbosa Rodrigues: muito diferente do que sempre foram os Jardins da Europa, por exemplo. Segundo ele, Barbosa implementou uma orientação no JBRJ de “ caráter cientifico” no que diz respeito aos estudos científicos, bem como na apresentação dos vegetais.

A mensagem presidencial teria se queixado do caráter improdutivo do Jardim da capital federal durante a dire-ção de Barbosa, atribuindo-lhe as funções de um campo de experiências de um instituto agronômico, o que tornava a instituição distante das missões de outros jardins botânicos.16

Na mensagem, o presidente (Hermes da Fonseca) declara que:

“OgovernoorganisouoJardimbotânicoeoMuseuNacionaleadaptouessesestabelecimentosscientifi-cosasfunçõespraticasquedevempreencher,deaccordocomosserviçosdependentesdesseministerio,ecomoobjetivodedesenvolveroestudodaflora,danossafaunaedasriquezasmineraesabundantesnoterritórionacional.”

Herman von Ihering critica a fala do presidente da República, chegando a dizer que, para experiências de agricul-tura, o governo teria outras opções, outros locais mais apropriados.

Diante do exposto, talvez seja possível sugerir algumas possibilidades de reflexão:

Barbosa foi um homem de seu tempo17 e precisa ser compreendido na sua relação com o governo imperial bem como com os acontecimentos dos primeiros anos da República.18

Barbosa dirigiu o Museu Botânico de Manaus a convite da princesa Isabel, organizou expedição com o apoio do imperador, assumiu no governo republicano o Jardim Botânico do Rio de Janeiro e implementou modificações; parti-cipou de congresso (1905, no Rio de Janeiro) e exposições, criticando e enviando material. Um dos exemplos é como Barbosa organizou a participação do Jardim na Exposição de 1908.

Por certo, suas críticas a como o Jardim estaria num evento que se propunha a apresentar os cem anos de Brasil não se deteve à advertência da relação de plantas, até porque, desde o ano anterior, Barbosa, em ofício citado, solicitou e prestou contas ao governo. A apresentação do Jardim na Exposição de 1908 não foi improvisada, e os senões de Barbosa podem refletir uma tensão entre como ele atuava frente ao Jardim e os novos interesses do governo que se instalara.

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Portanto, Barbosa, ao implementar modificações no Jardim Botânico, para alguns desviou o curso da instituição que deveria ser aquele que privilegia os estudos de Agronomia e suas aplicações e pode ser analisado num debate maior sobre os caminhos do progresso no Brasil, uma discussão que não é nova: para alguns, o progresso viria pelo caminho da industrialização; para outros, o caminho era justamente a reafirmação de uma suposta “vocação agrícola” do Brasil. E havia certamente quem acreditasse ser a complementariedade desses dois setores da economia o caminho efetivo do progresso.

O fato de Barbosa Rodrigues, ao ser esquecido pelo governo à altura de sua morte, bem como criticado em dis-curso do presidente ao Congresso em 1910 (como chama a atenção Herman von Ihering) reforça que o esquecimento, bem como a lembrança – operações da memória – são seletivos.

Além disso, é preciso analisar quem são os biógrafos dos nossos cientistas,19 e de onde eles falam, como é o caso do antigo diretor do Museu Paulista Herman von Ihering.

Hermann von Ihering, em uma correspondência com o paleontólogo argentino Florentino Ameghino (1854-1911), expressou sua opinião sobre o contexto de sua saída do Museu Nacional, assim denominado em 1891:

AmudançadoGovernonoBrasilfoiadesmoralizaçãonaadministraçãoeciência;ocolegaojulgapossí-velqueoMuseuNacionaldoRiodeJaneirocomoseuorçamentode80contosporanoprovavelmenteomelhordotadonaAméricadoSulagoranãopossuiumúniconaturalista!(...).Noanopassadofoiidéiamenomear[diretordaseçãozoológica],maseunãoquis.Aocontráriofizeramumrescritodeclarandoqueosnaturalistasmorandoforatêmdemudar-separaoRio(...).OcolegasabebemqueMuller,GoeldieeusomosagoraosúnicoszoólogosemtodoovastopaísdoBrasil.Nãoovaliadepagar-nosopequeníssimoordenadoquerecebemosparaquecontinuemosnasnossasinvestigaçõeserespeitadosnomundocientíficoerepresentandobemaciêncianaturaldoBrasil?20

Concluindo, citarei uma carta de Barbosa Rodrigues ao imperador D. Pedro II meses antes de ser indicado ao cargo de diretor do JBRJ, já no governo republicano, a qual está no arquivo do Museu Imperial de Petrópolis, em que o natu-ralista afirma seu desgosto quanto à mudança de regime e pela atuação dos militares, apresenta seus protestos e fidelidade, e lamenta não poder fazê-lo pessoalmente... ficando, diz Barbosa, “Sua Majestade certa que tem em mim um amigo grato e leal ....” e, se fosse preciso derramar o sangue tanto pelo imperador quanto pela imperatriz Tere-sa Cristina (a quem chama de santa), ele estaria disposto a fazê-lo.

Barbosa encerra a carta afirmando ainda que “é com lágrimas nos olhos que digo a Vossa Majestade...” que ele era em Manaus, naquele instante, o único monarquista assumido, dado que todos os que se diziam amigos do trono aderiram à República (republicanos de ultima hora – grifo meu) e censuraram o seu procedimento.21

Sendo assim, compreender Barbosa Rodri-gues em diálogo com diferentes interlocutores

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Figuras Carta de João Barbosa Rodrigues ao imperador

D. Pedro II. Arquivo da Casa Imperial do Brasil / Museu Imperial

de Petrópolis.

Senhor,

AntevossaMagestadeImperialvenhoacabrunhadopelodesgostoprofundoquemecausouatraiçoeirasediçãomilitarbeijarreverenteadestradevossaMagestadeeaprofundarosmeusprotestosdeamorefidelidade.

Seassimprocedoépornãopoderpessoalmenteofazer,ficandovossamagestadecertoquetememmimumamigogratoelealqueseforprecisoporVossaMagestadeouporVossaAugustafilhaderramaráoseusangue.

ÉcomlágrimasnosolhosquedigoàVossamagestadequesouaquioúnicoMonarchista,queàfacedescobertaeempublicodizabertamente,porquetodosaquelesquesedizemamigosdotronoabdusiramàrepública,comasuaassignaturaecensuraramomeuprocedimento.

PeçoàVossaMagestadequeapresenteàsuaMagestadeaImperatriz,àessaSanta,osmeusrespeitososcumprimentoseosvotosquefaçopelasuapreciosasaúde.

BeijandorespeitosoasmãosdeVossaMagestade.SoudeVossaMagestade,JoãoBarbosaRodrigues

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e em diferentes momentos com o objetivo de demonstrar a complexidade das pesquisas que pretendem circunstanciar um naturalista como ele, talvez nos retire do lugar cômodo que o vê como um homem fora de seu tempo, excepcional; por consequência, corremos o risco de perder a riqueza das interlocuções, dos debates e do ambiente científico de sua época.

O historiador Ricardo Salles, em seu criterio-so trabalho22 sobre Joaquim Nabuco, inicia o livro com uma frase contundente: “Joaquim Nabuco, um pensador do império”, para, em seguida, dizer que a afirmação representou durante o trabalho uma interrogação e um desafio. Talvez seja esse um dos procedimentos possíveis para pensar Barbosa Rodrigues, um naturalista brasileiro.

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Notas e referências bibliográficasAlda Heizer é doutora em Ensino e História das Ciências pelo IG/Unicamp. Desenvolve pesquisa sobre coleções científicas em museus e jardins botânicos no Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro e é professora de História da Botânica no Programa de Pós-graduação da Escola Nacional de Botânica Tropical/JBRJ. E-mail: [email protected]

1 O presente artigo é desdobramento de minha apresentação no “Seminário Barbosa Rodrigues. Um naturalista brasileiro”, na mesa intitulada “Naturalistas, Expedições e Congressos”, realizado em outubro de 2009, na Escola Nacional de Botânica Tropical/JBRJ.

2 Relatório apresentado ao presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo ministro de Estado da Indústria, Viação e Obras Públicas Miguel Calmon Du Pin de Almeida. V.1. Anno 1909.

3 HEIZER, Alda. O Jardim Botânico de João Barbosa Rodrigues na Exposição Nacional de 1908. Revista de História e Estudos Culturais (Fênix), v. 4, ano IV, n. 3 (jul-ago-set), 2007. É possível identificar outras referências ao envolvimento de João Barbosa Rodrigues e a participação do Brasil nas grandes exposições do século XIX, como, por exemplo, o catálogo de produtos enviados para a Exposição de Berlim pela província do Amazonas e organizado por João Barbosa Rodrigues. Typographia do Jornal do Amazonas A. B. Bugalho, 1886 (Biblioteca do JBRJ).

4 O tema das exposições provinciais, nacionais e internacionais tem sido estudado, e os resultados desses estudos apresentados em relatórios, artigos, livros, dissertações e teses de Doutorado no Brasil, especialmente da década de 1980 para cá.

5 HEIZER, Alda. A Exposição Nacional de 1908: entre comemorações. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Edição 200 anos da chegada da Família Real. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2008, p. 14-24.

6 Refiro-me às reformas por que passou a cidade do Rio de Janeiro durante a gestão do prefeito Pereira Passos nos primeiros anos da República.

7 RODRIGUES, João Barbosa. O Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Uma lembrança do 1º Centenário (1808-1908). Rio de Janeiro. Officinas da “Renascença” & E. Beviláqua, 1908.

8 RODRIGUES, João Barbosa. Hortus Fluminensis. Notícias sobre as plantas cultivadas no Jardim Botânico do Rio de Janeiro para servir de guia aos visitantes. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger, 1894.

10 RODRIGUES, João Barbosa. Relação das plantas expostas pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro por João Barbosa Rodrigues na Exposição Nacional de 1908. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1908.

11 NEVES, Margarida de Souza. As vitrines do progresso. O Brasil nas Exposições Internacionais. Rio de Janeiro: PUC-Rio/CNPq/Finep, 1986.

12 NEVES, Margarida de Souza. A ‘machina’ e o indígena: o Império do Brasil e a Exposição Internacional de 1862. In: HEIZER, Alda e VIDEIRA, Antonio Augusto. (Orgs.) Ciência, civilização e império nos trópicos. Rio de Janeiro: Access, 2001, p.173-206.

13 HEIZER, Alda. Entre mudanças e permanências. Le Brésil em 1889 e o Bolletim Commemorativo da Exposição Nacional de 1908. In: ALMEIDA, Marta de; VERGARA, Rezende Moema. (Orgs.) Ciência, história e historiografia. Rio de Janeiro: Mast; São Paulo: Via Lettera, 2008, p. 293-303.

14 HEIZER, Alda. Observar o Céu e medir a Terra. Instrumentos científicos e a Exposição de Paris de 1889. Tese de Doutorado em Ensino e História das Ciências. IG/Unicamp, Campinas, 2005. Em minha tese, dedico parte do primeiro capítulo aos autores brasileiros que escreveram sobre exposições na segunda metade do século XIX.

15 A autora agradece à bibliotecária Rosana Simões a indicação do seguinte documento: Livro de Ofícios de Barbosa Rodrigues. Ofícios 2125; 2126; 2132, 2146; 2160; 2253, 2259; 2260 (transcrição por Tania Maura N. Riccieri). Biblioteca João Barbosa Rodrigues/JBRJ/MMA.

16 IHERING, Hermann von. João Barbosa Rodrigues. Revista do Museu Paulista, v. VIII. São Paulo: Typhographia do Diario Official, 1910.

17 BEDIAGA, Begonha. Jardim Botânico do Rio de Janeiro e as Ciências Agrárias. Revista Ciência e Cultura. SBPC, n.1, Ano 62, p. 28-31, 2010; CAPILÉ, Bruno. A mais santa das causas: a Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura (1869-1891). Dissertação de Mestrado em História das Ciências das Técnicas e Epistemologia do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (HCTE/UFRJ), Rio de Janeiro, 2010; MARTINS, Maria Fernanda Vieira. O Imperial Instituto Fluminense de Agricultura: Elites, política e reforma agrícola (1860-1897). Dissertação de Mestrado em História do Curso de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1995; ARAÚJO, Nilton de Almeida. A Escola Agrícola de São Bento das Lages e a institucionalização da agronomia no Brasil (1877-1930). Dissertação de Mestrado em Filosofia e História das Ciências. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006; ARAÚJO, Nilton de Almeida Pioneirismo e hegemonia: a construção da agronomia como campo científico na Bahia (1832-1911). Tese de Doutorado do Curso de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.

18 MELLO, Leitão C. A Biologia no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional. Coleção Brasiliana, v. 99, 1937; RODRIGUES, Barbosa. Vultos do Brasil. Revista Brasileira de Geografia, n. 1, ano IV, p. 253, 1942; GUIMARÃES, Barbosa Rodrigues. Resenha Bibliográfica. Rodriguesia, v.27, p. 191-212, 1952; ROMERO SÁ, Magali. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segunda metade do século XIX. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v.VIII (suplemento), p. 899-924, 2001; Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930). Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Disponível em: http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br

19 MATTOS, Ilmar R. Do Império à República. Estudos Históricos, v. 2, n. 4, p. 161-296, Rio de Janeiro, 1986.

20 VIDEIRA, Antonio Augusto. Anotações para uma biografia de Guido Beck. In: ALMEIDA, Marta de; VERGARA, M. Rezende. (Orgs.) Ciência, história e historiografia. Rio de Janeiro: Mast; São Paulo: Via Lettera, 2008, p. 115-12; FIGUEIRÔA, Silvia Fernanda de Mendonça. Para pensar a vida de nossos cientistas tropicais.In: HEIZER, Alda; VIDEIRA, Antônio Augusto. (Orgs.) Ciência, civilização e império nos trópicos. Rio de Janeiro: Access, 2001, p. 225-234.

21 IHERING, Hermann Von. Apud LOPES, Maria Margaret; FIGUEIRÔA, Silvia Fernanda de Mendonça. A criação do Museu Paulista na correspondência de Hermann Von Ihering (1850-1930). Anais do Museu Paulista, v. 10-11, n. 11. São Paulo, 2002-2003, p. 31; 23-36.

22 Carta de João Barbosa Rodrigues ao imperador D. Pedro II. Maço 201- Doc. 9225. Arquivo da Casa Imperial do Brasil / Museu Imperial de Petrópolis.Outras cartas podem ser analisadas e se encontram no Museu Imperial de Petrópolis, abordando a solicitação do botânico para que o Jardim Botânico fosse contemplado com a biblioteca do imperador, como também a carta ao imperador pedindo autorização para lhe dedicar sua obra sobre orquídeas do Brasil. Agradeço aos colegas do Museu Imperial a indicação das cartas de João Barbosa Rodrigues ao imperador D. Pedro II que se encontram na referida instituição.

23 SALLES, Ricardo. Joaquim Nabuco. Um pensador do império. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002.

[ Artigo recebido em 09/2010 | Aceito em 11/2010 ]

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O PaísdasAmazonas e naturalistas brasileiros: a natureza amazônica nas viagens científicas da Comissão Rondon e do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (1907-1931)

OPaísdasAmazonasandthebraziliannaturalists:theamazonian

natureinscientificvoyagesoftheRondonCommissionandthe

RiodeJaneiro´sBotanicalGarden(1907-1931)

DOMINICHI MIRANDA DE SÁ

Casa de Oswaldo Cruz | Fiocruz

INGRID FONSECA CASAZZA

Casa de Oswaldo Cruz | Fiocruz

RESUMO Em 1909, foi implementado o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio pela República brasileira. Muitas instituições científicas, entre museus, jardins botânicos e comissões de exploração, foram encarregadas, por esta pasta, do inventário sistemático da natureza da fronteira noroeste do território nacional. A região – que, no século XIX, começava a ser sistematicamente conhecida e chamada de “Amazônia” – era fortemente asso-ciada à prodigalidade, exuberância e generosidade dos seus recursos naturais. Para torná-la domínio político efetivo, o Estado brasileiro patrocinou, entre 1907 e 1931, séries de expedições de conhecimento de sua fauna, flora e populações, e dois de seus atores principais foram a Comissão Rondon e o Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Essas instituições organizaram viagens e enviaram à Amazônia séries de naturalistas e profissionais de formação técnico-científica. Essas viagens, seus objetivos, personagens e principais resultados serão analisados neste artigo.

Palavras-chave Amazônia; natureza; viagens científicas; Comissão Rondon; Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

ABSTRACT Brazilian Ministry of Agriculture, Industry and Trade was implemented in 1909. Many of scientific institutions, including museums, botanical gardens and operating committees, were charged by this Ministry to perform the systematic inventory of the nature of country’s northwest border. The region in the nineteenth century began to be systematically known and called the “Amazon”. It was strongly related to the exuberance and generosity of its natural resources. Between 1907 and 1931 the Rondon Commission and the Rio de Janeiro’s Botanical Garden organized scien-tific expeditions and sent to the Amazon naturalists and technical professionals. These expeditions explored Amazon’s fauna, flora and human populations, in an attempt to become it an effective political domain. These voyages, their goals, protagonists and principal results will be presented in this article.

Keywords Amazon; nature; scientific expeditions; the Rondon Commission, the Rio de Janeiro’s Botanical Garden.

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Introdução

Inúmeras são as referências a indicar que o termo “Amazônia” foi usado e consagrado como designação de toda uma região associada à prodigalidade e à generosidade da natureza em um livro publicado, pela primeira vez, em 1883. Seu título era O País das Amazonas, e seu autor, um barão, o de Santa-Anna Nery (1848-1901). Sua primeira versão foi financiada pela Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas, mas o livro foi impresso e reimpresso em francês, por editoras de Paris, em 1885 e 1890. Divulgada, desde a sua primeira impressão, em jornais locais, como o Diário de Notícias, apenas em 1901 trechos da obra foram editados em português, no Álbum do Estado do Amazonas.1

Le Pays des Amazones, L‘El-dorado, Les Terres a Caoutchouc, seu título original, foi concebido como propaganda para atrair, sobretudo, imigrantes estrangeiros. Na conversão da província do Amazonas em Amazônia, Nery, nascido em rica e importante família de Belém e homem de letras formado na Europa, apoiava-se largamente em cronistas e eclesiásticos, e, sobretudo, em viajantes e naturalistas como La Condamine, Humboldt, Wallace, Agassiz, Spix e Mar-tius, os quais, do seu ponto de vista, tinham ilustrado, nos seus escritos, extensão, quantidade, riqueza e qualidades privilegiadas e ilimitadas dos solos, vegetação e águas amazônicos.

Nery tinha, no entanto, forte ressalva aos estudiosos que citava, pois teriam priorizado a descrição de fenômenos particulares e considerado como isolados os reinos da natureza e as populações humanas da região. A Amazônia, no seu dizer, confirmaria o destino de “terra da promissão”, apontado pelos cronistas e naturalistas, se povoada em favor do incremento da agricultura e da mineração; se desmentidas as ideias negativas sobre os pretensos malefícios do clima quente;2 se floresta e matérias-primas exploráveis da região fossem utilizados “racionalmente” e em detrimento do investimento exclusivo na extração da borracha; mas, sobretudo, se os seus elementos naturais fossem conhecidos em conjunto, em sua “harmoniosa unidade”.3 O eixo unificador das imagens que construía e reproduzia sobre a região – terras virgens e vastas, inexploradas e desconhecidas, ricas e de baixa ocupação – parecia ser, na verdade, o apro-veitamento humano dos seus recursos. Não inventava a admiração com a exuberância, tampouco o utilitarismo nas leituras da natureza,4 mas elevava-os à categoria máxima de publicidade e polo de atração e ocupação. A segui-lo, a Amazônia seria uma paisagem única: desde “celeiro” à “farmácia central do mundo inteiro”.5

A despeito de ter sido considerado e de se apresentar, ele próprio, como o grande sistematizador e propagandista da Amazônia como região singular, Nery seguia chave de leitura da própria produção científica dos naturalistas que citava e à qual dizia se opor: o tratamento da diversidade espacial, ou seja, o entendimento de cada conjunto regional como particular na “interação entre os vários elementos da natureza e da vida humana”.6 Tratava-se de nova tendência de representação da natureza brasílica, que vinha sendo verificada desde o final do século XVIII e que seria mesmo adensada no século XIX7 – a da percepção da variedade de territórios e sistemas naturais, com distintas modalidades e potenciais de exploração econômica, que deveriam ser conhecidos em suas diferenças. Dito de outro modo, a natureza seria um “conjunto de conjuntos”.8 Para nomear um desses conjuntos, visto na ocasião como exemplarmente rico e complexo do ponto de vista dos seus recursos naturais específicos, Nery empregava o nome “Amazônia”,9 e convocava a política monárquica tanto para empreender a sua colonização quanto para empregar os cientistas da ocasião no seu estudo sistemático.

Seu apelo não era novo, sequer único entre homens de estado e de ideias no período imperial,10 mas apenas a República brasileira, nos primeiros anos do século XX, financiaria uma política regular de conhecimento científico da diversidade natural e regional brasileiras.11 A Amazônia, ou a fronteira noroeste do Brasil, tornou-se, em particular, objeto frequente e privilegiado de estudos e pesquisas de séries de instituições científicas estatais, entre museus, jardins botânicos e comissões de exploração, sobretudo após a criação e a implementação do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (Maic, 1906-1909).12 Tratava-se de iniciativa de inventário sistemático da natureza da região, vista na ocasião como rica e variada, e de tentativa de conversão de ‘fundos territoriais’13 (em região de frente de expansão e disputas internacionais de limites) em “territórios usados”, ou em domínio político efetivo.14 Mais especificamente, o Estado brasileiro patrocinou séries de expedições de conhecimento de sua fauna, flora e populações, que tiveram

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na Comissão Rondon e no Jardim Botânico do Rio de Janeiro dois de seus principais atores. Essas instituições, entre 1907 e 1931, organizaram viagens e enviaram à Amazônia séries de naturalistas e profissionais de formação técnico-científica, que, além de coletarem, classificarem e catalogarem espécimes, realizaram levantamentos topográficos, redigiram relatórios científicos, proferiram conferências e publicaram textos de divulgação acerca, sobretudo, das novas espécies identificadas. Dessas viagens de conhecimento da natureza amazônica, seus personagens e principais resultados é que tratará este artigo.

Ciência, Estado e inventário da natureza

Nas últimas décadas do século XX, a historiografia brasileira que toma a ciência como objeto vem sendo caracterizada por sua aproximação com a História Social, pela crescente ampliação da demarcação temporal de suas pesquisas, pela diversificação de suas temáticas, pela problematização conceitual da noção “instituição científica” e pela investigação das relações entre Estado e ciência, sobretudo nos séculos XIX e XX.15 Sobre este último tópico em particular, os es-tudos têm salientado que essa aliança, nesse período, tinha como objetivos principais a “civilização” e a modernização do país sob a rubrica geral da “integração nacional”.16 “Integrar”, na ocasião, significava, basicamente, ocupar e povoar os espaços vazios, sobretudo os do interior do território, tornando-os produtivos.17 E para a incorporação dos espaços afastados do interior, o próprio Estado brasileiro, na virada do século XIX para o XX, além de primordialmente promover construção e obras de infraestrutura de transportes e comunicação, como estradas de ferro e expansão de linhas telegrá-ficas, organizou viagens científicas, que constituíram, elas também, projetos oficiais de modernização e exploração das potencialidades econômicas do território brasileiro. As origens desse projeto podem ser localizadas no Império, por meio, por exemplo, das atividades da Comissão Científica de Exploração (1856), da Comissão Geológica Imperial (1875) e da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (1886),18 mas, durante a República, iniciativas semelhantes não apenas se intensificaram como ganharam nova expressão. “Incorporação” e “conhecimento científico” do território – aliança que incluía, não raras vezes, levantamentos nosológicos e atividades de combate a doenças nos sítios a serem ocupados e povoados – passaram a ser aspectos absolutamente indissociáveis nessas viagens de exploração.19

Essas iniciativas estavam subordinadas à Secretaria dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, dirigido pelo engenheiro Miguel Calmon du Pin e Almeida entre 1906 e 1909. Nesse período, inexistia um Ministério da Agricultura; o Macop, criado em 1860, foi extinto com a República, em 1891. Esta Secretaria, na ocasião, representava os interesses da antiga pasta, a qual, durante o Império, vocalizou a aliança entre “progresso nacional”, “progresso das ciências naturais”, sobretudo da Botânica com seus estudos apli-cados sobre plantas e sementes, e “progresso da agricultura”.20 Essas comissões e viagens de exploração deveriam realizar estudos sobre as populações e as riquezas naturais das regiões percorridas.

As atividades de cunho científico de comissões ligadas ao Ministério da Viação só fizeram crescer quando passa-ram a estar atreladas ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (Maic), (re)criado em 1906, mas efetivamente implementado em 1909, a partir da antiga Secretaria dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Ministério da Viação.21 Elas passaram a estar oficialmente encarregadas dos trabalhos de levantamento topográfico, reconhecimento, medição, identificação de caminhos e demarcação de terras nas quais seriam instalados centros agrí-colas e suas lavouras. Nesse período, o levantamento científico do território, por meio do estudo de climas, incidência de doenças, rios, plantas, animais e capacidade das terras para agricultura, mineração ou pecuária, era indissociável dos projetos de diversificação produtiva, de modernização da agricultura, construção de caminhos para o escoamento da produção e fixação de mão-de-obra no interior, das quais se encarregavam todos os diferentes órgãos do Maic na ocasião, segundo o decreto 7.727 de 09/12/1909, que regulamentou a reorganização da pasta.22 Tratava-se de ênfase em ciência aplicada, ou seja, era absolutamente imperativa a necessidade de pôr a natureza (entendida como recurso natural) a serviço do homem.23

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Nossas pesquisas sugerem, baseadas em estudos anteriores,24 que a produção científica brasileira da virada do século XIX para o XX esteve fortemente ancorada no financiamento de Ministérios a instituições e comissões de estu-dos e exploração que acompanhavam obras de construção de infraestrutura e inventário de solos e riquezas naturais para o incremento da agricultura, base da economia do país na ocasião.25 O Maic, em toda a Primeira República, foi um dos principais financiadores de atividades científicas em instituições que estavam sob a sua jurisdição, como, por exemplo, o Museu Nacional; o Jardim Botânico do Rio de Janeiro; a Escola de Minas de Ouro Preto; Diretoria Geral de Estatística; Diretoria Geral do Serviço de Povoamento; Comissões Telegráficas; Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil; Observatório Nacional; Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais; Diretoria de Meteorologia e Astronomia; Diretoria do Serviço de Inspeção, Estatística e Defesa Agrícola; Diretoria do Serviço de Veterinária; Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária; Estação de Biologia Marinha; Estação Central de Química Agrícola; Inspetoria de Pesca e Superintendência de Defesa da Borracha.

Nesse panorama, em função dos potenciais científicos e econômicos dos recursos naturais amazônicos que vinham sendo alardeados em diferentes obras de intelectuais e viajantes, nacionais e estrangeiros,26 não estranha que o Maic tenha direcionado para a região séries de naturalistas e profissionais com formação técnico-científica vinculados às instituições cujas diretrizes orientava. Entre elas, destacam-se a Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, ou Comissão Rondon, e o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, que organizaram diferentes expedições de mapeamento de suas “riquezas”. Em momentos diversos, de 1907 a 1931, seus membros percorreram a Amazônia com vistas ao seu conhecimento, aproveitamento e integração. Consolidavam o reconhecimento cientí-fico de que, como sistema natural, constituía um mundo à parte e, em termos políticos, representavam a convicção republicana de que, ou bem o Estado chegava à Amazônia, ou esse trecho norte e suas populações acabariam por se destacar e distanciar do território nacional.27

A Comissão Rondon na fronteira amazônica

A partir do ano de 1907, vastas regiões da fronteira noroeste do Brasil passaram a ser atravessadas por um grupo de oficiais e praças do exército brasileiro que cumpriam a missão de nelas estender fios telegráficos.28

Compunham uma comissão cujo objetivo era ligar ao Rio de Janeiro os territórios do Amazonas, do Acre (região cedida ao Brasil pela Bolívia em tratado de 1903), do Alto Purus e do Alto Juruá, na fronteira com o Peru, por intermédio da capital do Mato Grosso. Os pontos extremos da linha-tronco seriam Cuiabá, Santo Antônio do Madeira, ponto inicial da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, e Manaus, na região amazônica.29 Era composta basicamente por militares, entre oficiais, inspetores e seus auxiliares, dois médicos, dois farmacêuticos e um fotógrafo, além de dezenas de praças para a execução dos trabalhos pesados. Somavam-se a eles guarda-fios e telegrafistas civis do Ministério da Viação, e totalizavam, assim, de três a seis centenas de homens a formar a Comissão de Linhas Telegrá-ficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMTA) – também conhecida como Comissão Rondon, por ter sido chefiada pelo então coronel Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958).30 No orçamento da Comissão, previa-se ainda a contratação dos “praticantes regionais”, ou seja, de civis, habitantes das regiões percorridas, inclusive índios, que funcionariam como guias, remadores de canoas e auxiliares nos serviços de derrubada da mata e instalação dos postes telegráficos.31

Os membros da Comissão, nas suas diferentes viagens, assim que chegavam às localidades destinadas à inte-gração telegráfica, seguiam rígidas etapas de trabalho: reconhecimento preliminar do terreno por meio de medições, demarcações e determinações dos azimutes para a confecção de mapas, organização de acampamentos e plantas, escolha dos pontos de passagem da linha telegráfica, abertura da picada com derrubada da mata, nivelamento das picadas em caso de terrenos acidentados, definição dos locais dos postes telegráficos e projeção das diretrizes das linhas, extração de madeira para confecção desses postes, abertura dos buracos nos quais esses mesmos postes

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seriam fincados com seus para-raios e isoladores. Tratavam, então, de esticar os fios condutores, que eram, por sua vez, ligados ao aparelho Morse, e, concluída a instalação, procediam aos levantamentos topográficos e coordenadas geográficas dos pontos nos quais as linhas telegráficas tinham sido instaladas. Construíam também pequenas casas para funcionarem como estações. Efetuado o trabalho de instalação, seguiam com acampamentos e equipamentos para as localidades seguintes que dariam continuidade à linha-tronco, que, pretendia-se, rasgaria a floresta amazônica.32

Os trabalhos de construção de postos e linhas telegráficas ligaram Cuiabá a Santo Antônio do Madeira, atual cidade de Porto Velho, mas não se estenderam até Manaus.33 Duraram de 1907 a 1915 (quando a região amazônica foi alcançada), e, nas viagens dessa Comissão, as atividades de levantamento cartográfico e geográfico do território brasileiro intensificaram-se. Aos oficiais do Batalhão de Engenharia e Construção do Exército passaram a se somar, sistematicamente, séries de naturalistas estudiosos em Botânica, Cartografia, Geologia, Zoologia e Antropologia, so-bretudo do Museu Nacional do Rio de Janeiro.34

A constituição da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas foi objeto de vários trabalhos em história do Brasil35 que se ocuparam em examinar a importância da sua atuação, nos primeiros anos da República, para a construção e conservação de redes telegráficas para comunicação, integração, vigilância e defesa das fronteiras brasileiras ao norte. Sua caracterização como “missão civilizatória” do Estado brasileiro para a incorpo-ração do interior, no dizer da ocasião, isolado do país também deve ser destacada nessas abordagens.36 No entanto, na perspectiva da história das ciências, outras atividades da CLTEMTA também merecem atenção. Diretriz ministerial mencionada no ofício que a criou, o inventário científico das riquezas naturais da porção norte do território era absoluta prioridade nas diferentes viagens dos membros da Comissão do Mato Grosso ao Amazonas.37

Quando foi criada, a Comissão de Linhas Telegráficas de Mato Grosso ao Amazonas estava vinculada tanto ao Ministério da Guerra, ao qual o Exército brasileiro estava subordinado, quanto à Secretaria dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas. E por meio das indicações dessa Secre-taria, a Comissão deveria realizar estudos sobre as populações e as riquezas naturais das regiões do Mato Grosso e do Amazonas, de modo a avaliar o potencial do solo daquelas regiões para o cultivo de lavouras, diversificação e moder-nização das áreas de plantio. A seguir as instruções que criaram a Comissão, publicadas no Diário Oficial de março de 1907, vemos que tinha sido designada principalmente para “estudar os recursos naturais da região percorrida” por meio de explorações geológicas, geográficas, botânicas e mineralógicas.38 Os relatórios das viagens, muito documentados e especialmente detalhados, com ênfase no mapeamento dos produtos extrativos da região, foram também expressão dessas determinações de 1907.39

As atividades de cunho científico da Comissão cresceram quando ela passou a estar igualmente atrelada ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (Maic).40 Na verdade, a Comissão continuou ligada aos Ministérios da Guerra e da Viação, mas passou também a estar subordinada ao Ministério da Agricultura, com a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), em 1910. Com membros justapostos desde o diretor Rondon aos chefes de seções, ajudantes técnicos e oficiais, cujos vencimentos, inclusive, eram calculados na forma de gratificações adicionais pela atuação nos dois órgãos do Maic,41 a CLTEMTA e o SPILTN realizavam serviços complementares nas mesmas regiões, Mato Grosso, Acre e Amazonas em trabalhos de levantamento topográfico, reconhecimento, medição, demarcação de terras, identificação e construção de caminhos, e deveriam discriminar as áreas ocupadas por índios42 (nas quais seria lentamente introduzida a indústria pecuária) daquelas nas quais seriam instalados “centros agrícolas” e suas lavouras. Do ponto de vista do Maic, a subsistência e a fixação de populações naquelas regiões só poderiam se efetivar por intermédio da expansão da agricultura.43

A tripla ingerência ministerial conferiu à Comissão uma visão ainda mais “utilitária” do conhecimento. Daí, a parti-cipação mais sistemática nas suas diferentes viagens e, a partir de 1910, de naturalistas do Museu Nacional, instituição que também passara à jurisdição do Ministério da Agricultura nessa mesma ocasião. Seriam esses naturalistas os encarregados, “em benefício do trabalhador nacional”, da realização de “vários estudos, em diferentes estados, todos tendentes à fundação de centros agrícolas (...). Há de se desbravar e povoar-se o interior”.44

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A propósito, os relatórios da Comissão Construtora de Linhas Telegráficas de Mato Grosso ao Amazonas ilustram bem a combinação entre os objetivos mais imediatos e “pragmáticos” de efetivar as comunicações e integração dos sertões às preocupações e estilo de trabalho típicos dos naturalistas: volumosas descrições de espécimes da flora e da fauna; detalhadas descrições geográficas e geológicas acompanhadas de pranchas primorosas; glossário de termos presentes em línguas de vinte sociedades indígenas, entre outras características, fazem do conjunto dos trabalhos realizados, como observou posteriormente o cientista brasileiro Arthur Neiva, uma das mais valiosas contribuições à ciência brasileira. Somam-se a essas contribuições as fotografias e filmes realizados pela Comissão, sobretudo após 1912, com a criação da sua Seção de Cinematografia e Fotografia, dirigida pelo major Luiz Thomaz Reis, que preparou, dentre outros, o filme Ao redor do Brasil, importante registro das viagens ao noroeste do Brasil.45

Os cientistas que participaram da Comissão Rondon, além de coletarem espécimes da flora e fauna das regiões percorridas, classificaram e catalogaram o material coligido, redigiram relatórios científicos detalhados, proferiram conferências e publicaram textos de divulgação durante as décadas de 1910 e 1920 sobre as viagens e seus resultados no que se refere, sobretudo, a novas espécies identificadas. Dentre eles, destacam-se: na Zoologia, Alípio de Miranda Ribeiro, Arnaldo Blake Santana e José Geraldo Kuhlmann; em Geologia e Mineralogia, Cícero de Campos e Euzébio de Oliveira; na Antropologia, Edgard Roquette-Pinto; e na Botânica, Frederico Carlos Hoehne e João Geraldo Kuhlmann. Entre os trabalhos da Comissão, destacam-se, ainda, o percurso pela Serra do Norte (região que hoje conhecemos como o estado de Rondônia), a descoberta de rios até então desconhecidos e a correção de erros cartográficos, o contato e o estudo de sociedades indígenas como os Pareci e os Nambiquara.46

A instituição que teve o acervo mais enriquecido pelos trabalhos da Comissão Rondon foi o Museu Nacional.47 Dados apresentados por um dos principais zoólogos dessa instituição e membro da Comissão, Alípio de Miranda Ribeiro, em conferências de forte teor crítico à própria direção do Museu pelo que considerava ausência de políticas de valorização dos acervos e do trabalho dos naturalistas, trazem informações interessantes. Segundo ele, a “lição científica” dada por Rondon era a melhor resposta ao famoso poeta Olavo Bilac, que afirmara ser o Museu Nacional uma instituição “anquilosada”, ou seja, rígida, imobilizada, paralisada.48

O zoólogo, em conferências realizadas no Museu Nacional em 1916, comparou a formação das coleções de Botânica, Zoologia e Antropologia nos quase 100 anos de existência da instituição, criada em 1818, em relação às contribuições enviadas pela Comissão do Mato Grosso ao Amazonas em apenas 8 anos, enfatizando a diversidade e o volume das médias anuais dos exemplares coletados. Em áreas como a Botânica, a média anual da Comissão era de envio de 1104 exemplares, enquanto a anterior era de 530. Em Zoologia, a média era de 709 contra os 593,14 anteriores. No caso da coleção antropológica, a diferença era ainda mais notável: 422 contra 11,85.49

Miranda Ribeiro fazia questão de destacar que o trabalho científico da Comissão não se teria restringido ao incremento das coleções do Museu; seus relatórios traziam, por exemplo, descobertas e fartas descrições de novas espécies de mamíferos, aves, insetos, plantas e substâncias vegetais medicinais, de peixes e algas de água doce, e suas respectivas figuras, ou em estampas, segundo ele, “belamente executadas”, ou em fotografias, “muitas delas pela primeira vez tiradas em estado natural”. E mais: o material coligido pela Comissão teria permitido uma revisão completa dos crustáceos brasileiros da família Argulidae, assim como teria incrementado o trabalho do então diretor do Museu Paulista Hermann Von Ihering com moluscos – a Comissão teria fornecido dados sobre 20 espécies, 3 delas novas e muito raras. Também em Zoologia, destaca-se a coleção de mosquitos tabanídeos, coligida por Miranda Ribeiro e estudada por Adolpho Lutz, à época cientista do Instituto Oswaldo Cruz. Na área de Botânica, teria fornecido subsídios para as pesquisas de Alberto José de Sampaio, que preparou o trabalho A flora de Mato Grosso, publicado no periódico da instituição: os Arquivos do Museu Nacional.50

Nessa mesma área, entre os naturalistas que acompanharam as viagens da Comissão, destaca-se o botânico Frederico Carlos Hoehne, que, em linhas mais ou menos retas, percorreu 7.350 km dos campos e das florestas do Mato Grosso para coleta de material botânico e observações fitofisionômicas. Sobre o trabalho desenvolvido, o próprio Hoenne comentaria, anos depois, na publicação Índice bibliográfico e numérico das plantas colhidas pela Comissão

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Rondon (1951), que estudar e mapear a região equivaleria a desenvolver a economia de todo o Brasil. Além da sua rica flora, revelada nas viagens da Comissão, a área era vastíssima: Hoehne salientava que nela caberiam, juntos, países e populações inteiras da Europa – da Alemanha, França, Itália, Portugal e Holanda. Para ele, preparada para a agricultura, a região seria capaz de garantir sozinha a alimentação de todos os brasileiros.

Para além da pesquisa científica, vemos, na documentação produzida – entre relatórios (técnicos, científicos e médicos), mapas, plantas (com o reconhecimento e levantamento das regiões), cadernetas de viagem, diários de campo, conferências, textos para jornais e revistas do período –, que os membros da Comissão também delimitavam as áreas de limites com outros países, assim como aquelas propícias ao povoamento, ao cultivo de lavouras e à expansão da pecuária; demarcavam terras indígenas, discriminavam, em levantamentos médicos, a selva, onde grassaria a malária,51 da floresta, objeto que começava, então, a ser discutido como área de “aproveitamento racional”.52

A “floresta amazônica” tornou-se foco especial de atenção dos trabalhos da Comissão Rondon no período de 1915 a 1920, quando seus membros realizaram, sobretudo, o levantamento e a exploração de rios da região. Num empreendimento do Estado brasileiro designado para o conhecimento e a ocupação de uma área entrecortada por rios, não estranha que estes se tenham tornado, por alguns anos, o seu foco prioritário. Naquela conjuntura, os rios – esperava-se – deveriam constituir os caminhos principais: as estradas de penetração, esquadrinhamento e inventário, modernização e ocupação da fronteira noroeste do Brasil.53

Nesse período, foram realizadas expedições de levantamento de diferentes rios, tanto daqueles identificados entre 1907 e 1915, quando o fio telegráfico foi instalado pela Comissão entre o Mato Grosso e o Amazonas, quanto daque-les que seus membros, sobretudo os engenheiros militares, presumiam, pela consulta a mapas dos séculos XVIII e XIX, necessitar de verificação e retificação dos seus cursos. E esses estudos de conhecimento dos rios – realizados, sobretudo, pelos engenheiros militares da Comissão Rondon- podem ser compreendidos pela consulta a um tipo específico de documentação: as cadernetas de anotações de campo feitas por esses mesmos oficiais. Elas contêm os registros numéricos dos estudos e levantamentos feitos, e croquis com a representação gráfica da área explorada. Alguns volumes guardam observações diversas a respeito dos aspectos geográficos, da ocupação humana do território e informações acerca da metodologia e instrumentos utilizados nos trabalhos. No Arquivo Histórico do Exército do Forte de Copacabana do Rio de Janeiro/Brasil, estão armazenadas cerca de 117 cadernetas com dados sobre as incursões aos rios no período de 1915 a 1920.54 Referem-se a expedições de levantamento, reconhecimento e exploração de diferentes rios da região que abarcava o estado brasileiro do Mato Grosso e suas divisas com Goiás e Amazonas – área que engloba, sobretudo, a localidade que hoje conhecemos como o estado de Rondônia. Entre os rios explorados, destacam-se o Jaru, Araguaia, rio das Mortes, Paraguai, Cuiabá, São Lourenço, rio Madeira e Jamari.55

A exploração e levantamento de rios foi uma atividade prioritária no âmbito da Comissão Rondon de 1915 a 1920 em função tanto do objetivo de ratificar ou retificar o traçado dos rios nos mapas então disponíveis quanto de conhecer as características e potencialidades dos seus cursos d’água. Serviria, ao fim dos trabalhos, para produzir novas representações cartográficas e mapas hidrográficos das regiões percorridas por meio do trabalho da Seção de Desenho da Comissão Rondon.

E esse trabalho, nomeado de “reconhecimento” e “levantamento” pelos engenheiros da CLTEMTA, iniciava-se percorrendo o próprio objeto, ou seja, por meio da tomada dos rumos do curso do rio estudado, através da bússola, e a aferição das distâncias pela velocidade média da canoa que os transportava. Com o auxílio do cronômetro, media-se a duração de tempo que a embarcação levava para percorrer determinado percurso, de modo que, de posse das grandezas velocidade e tempo, com uma operação aritmética, obtinha-se a extensão do trecho do rio navegado.56

Havia ainda o trabalho de exploração do rio, no qual eram feitas medições mais complexas para indicar a largura e a profundidade em determinados trechos, a velocidade média do fluxo de água, a descarga (vazão) e os saltos existentes, e isso, para a avaliação do potencial hidráulico das quedas, bem como das suas condições de navegabilidade.

Além do exame do curso dos rios em pauta, de suas cachoeiras, corredeiras, seus formadores e afluentes, registravam-se a geologia de seu leito, a flora de suas margens, a presença de sociedades indígenas e indícios de

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atividades econômicas realizadas nas suas proximidades. Se considerarmos a caderneta aberta, as tabelas dos diver-sos tipos de trabalho estão impressas nas páginas da esquerda, compondo um conjunto de informações acerca das características naturais dos territórios percorridos. Do lado direito, vemos o esboço ou croqui do trecho que está sendo aferido e algumas informações da paisagem, de acidentes geográficos e de ocupação humana, encontrados ao longo do itinerário seguido.57

Notamos, assim, que os engenheiros militares da Comissão Rondon funcionaram, a um só tempo, de 1915 a 1920, como palmilhadores e medidores de espaços, cartógrafos e etnógrafos das regiões percorridas. E os rios eram o objeto primordial de atenção nas viagens desse período porque significavam o entrocamento dos diferentes objetivos da Comissão: eram vistos, concomitantemente, como caminhos de escoamento da produção agrícola e da circulação de pessoas, marcos naturais de fronteira, viveiros dos vetores transmissores da malária que assolava as regiões à época58 e condições determinantes para a instalação de lavouras. E dessa polissemia dos rios do norte do Brasil se foi construindo a imagem da floresta amazônica na documentação da Comissão Rondon: região de chuvas intermitentes e clima quente; grandes extensões de terra opulenta, fértil e abundante a serem cultivadas; regiões fabulosas e cheias de riquezas; solos perfeitos para a agricultura e alternativa ideal ao exclusivo extrativismo da borracha, cujo incremento da plantação dependia apenas da derrubada “racional” da mata, ocupação e povoamento por “lavradores operosos” e criação de meios de transporte para o escoamento da produção. Era, como vemos, o próprio “país das Amazonas”, ou seja, região de ocupação premente, cuja “natureza” era frente de expansão a ser entrecortada por linhas telegráficas, centros agrícolas e caminhos fluviais.59

O Jardim Botânico e a Amazônia como objeto

Os primeiros jardins botânicos do mundo surgiram na Europa, no século XVI, com o intuito de estudar as plantas medicinais, e formaram as primeiras coleções de plantas para fins científicos.60 Ao longo do tempo e nos mais diferentes contextos locais, novas funções foram sendo acrescentadas a essas instituições, como, por exemplo, os estudos de Botânica aplicados à agricultura e à exploração de recursos naturais. A importância dos jardins botânicos enquanto pontos turísticos e locais destinados ao lazer das populações, e o papel fundamental que exercem atualmente na conservação de espécies, também são atribuições que foram dadas a essas instituições no decorrer de sua história.

O Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ) – a exemplo de outros congêneres estabelecidos no país, como o Jardim Botânico do Grão-Pará, fundado em 1796, na cidade de Belém – foi criado em 1808, com o objetivo de desen-volver experiências de aclimatação com espécies vegetais de interesse agrícola e comercial.61 As primeiras instituições botânicas da colônia (Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Jardim de Belém e de Pernambuco) visavam aclimatar as chamadas plantas exóticas, incluindo aqui as especiarias das Índias orientais. Nessa época, o valor científico atribuído aos produtos da flora estava associado ao caráter “útil” que estes representavam.

Em 1824, frei Leandro do Sacramento, doutor em Ciências Naturais pela Universidade de Coimbra e professor de Botânica da Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro, foi nomeado como primeiro diretor da instituição, que, desde 1819, estivera anexada ao Museu Real, atual Museu Nacional. Frei Leandro, além da aclimatação de plantas, realizou pesquisas, experimentações, catalogação, classificação e introdução de novas espécies.62

Em 17 de agosto de 1861, foi assinado um contrato entre o Governo Imperial e o Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, determinando que a administração do Jardim Botânico passasse para o referido instituto, o qual visava viabilizar medidas úteis para o progresso da agricultura e buscava, por intermédio da aplicação dos conhecimentos científicos, racionalizar a exploração da terra e da natureza. A direção do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura tinha o interesse em fundar no Jardim Botânico um estabelecimento agrícola, denominado Asilo Agrícola da Fazenda Normal, que serviria de escola prática e modelo às fazendas de cultura de especiarias. Por volta de 1874, abrigava um laboratório para análises químicas agrícolas, viveiros de plantas, cultura de bicho-da-seda, oficinas de serralheria e

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carpintaria e fábrica de chapéus de palha. O laboratório de Química, abandonado por um período e retomado naquele ano, realizava análises de canas, terras e algumas plantas.63

A união entre o Jardim Botânico e o Imperial Instituto Fluminense de Agricultura foi desfeita em 1890, e a institui-ção passou a ser dirigida por João Barbosa Rodrigues. Durante este período, observou-se o fortalecimento da pesquisa botânica, com ênfase no estudo da flora brasileira. Barbosa Rodrigues esteve à frente do Jardim Botânico do Rio de Janeiro por cerca de vinte anos, sendo um nome de grande prestígio na história da instituição. Sob sua direção, ocorreu incentivo à pesquisa científica com o aumento das coleções, a criação do cargo de naturalista viajante e o incremento do intercâmbio com outras instituições científicas.64

No início da década de 1910, ao ser subordinado ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro passou por um processo de reformulação das suas atribuições, o qual repercutiu nas atividades científicas ali desenvolvidas. A reformulação foi resultado de uma adequação institucional ao projeto republicano, que considerava a diversificação da agricultura um dos caminhos mais importantes para a realização do objetivo de modernização do país. Essa adequação manteve a tradição institucional de depositária de diferentes espécimes da flora do Brasil, mas demandou a sua reorganização em novas seções e especialidades, como é pos-sível perceber através do decreto 7848, de 3 de fevereiro de 1910,65 que reestruturou o Jardim Botânico do Rio de Janeiro com a criação da seção botânica, da seção agronômica, do laboratório de química agrícola e do de fisiologia vegetal e ensaio de sementes.

A seção botânica ficou divida em herbários, museu botânico e florestal, jardins e estufas. A segunda seção, a agronômica, abrangeria os serviços de silvicultura, arboricultura e fruticultura, o estudo agrícola e industrial das plantas têxteis, e posto meteorológico. Ao laboratório de química agrícola, a terceira seção, competia análise e estudo das terras e rochas, dos diversos adubos e corretivos, das plantas e frutos cultivados nos campos de cultura da instituição, visando meios de aumentar-lhes o rendimento industrial, entre outros encargos. A quarta seção – o laboratório de fisiologia vegetal e ensaios de sementes, além de outras funções – ficou responsável pelas pesquisas e experimenta-ções atinentes às funções normais das plantas, pela aplicação dos princípios de fisiologia à agricultura e pelo estudo do valor econômico das diversas espécies de grãos. O Jardim Botânico compreenderia também uma Biblioteca dotada de um serviço especial de permutas de publicações com estabelecimentos congêneres do país e do estrangeiro, e de um museu com amostras de terras agrícolas do Brasil, amostras de adubos, corretivos, inseticidas e fungicidas, com indicação das respectivas composições, valor fertilizante e comercial, além de modelos e fotografias de máquinas, aparelhos e instrumentos agrícolas e florestais.66

A crescente especialização da instituição em estudos de fisiologia vegetal e química agrícola, nas primeiras décadas do século XX, atendia a necessidades práticas de aplicação dos novos conhecimentos na modernização e diversificação da agricultura, como, por exemplo, no combate a pragas agrícolas e no cultivo de plantas/sementes para diferentes tipos de solo. Mas, embora a instituição estivesse voltada para o atendimento das demandas do Maic, como é possível perceber através das mudanças ocorridas em sua estrutura e na análise dos relatórios do referido ministério, a natureza não era compreendida no JBRJ apenas como fonte de recursos para o incremento de lavouras; não era valorizado apenas o seu aspecto “útil”. A partir da leitura dos relatórios do Jardim, podemos perceber que a natureza aparece tanto como matéria-prima para a agricultura quanto como o objeto científico de profissionais que se dedicavam a estudos que não tinham uma perspectiva imediatamente aplicada, como os trabalhos de descrição taxonômica, por exemplo.

Durante esse período, a instituição expressou certa tradição nacional de reflexão sobre a natureza, própria de seu contexto histórico, devendo servir como fonte de recursos que gerasse riquezas para o país. Por outro lado, os trabalhos ali realizados traziam também as marcas de propostas científicas intrinsecamente presentes em jardins botânicos no mundo inteiro, como, por exemplo, a intenção de constituí-los como amostras da flora de diferentes localidades do planeta. Essas características acima listadas, que sinalizam uma coexistência dos estudos sobre a natureza por sua utilidade e como objeto científico, não eram singulares do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, mas tal coexistência foi

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especialmente frequente na produção científica da instituição entre os anos de 1915 e 1931, período em que esteve sob a direção de Pacheco Leão.

O médico e cientista Antônio Pacheco Leão assumiu a direção do Jardim Botânico do Rio de Janeiro em 1915. Sua trajetória profissional inclui cargos de direção em estabelecimentos governamentais como o Serviço de Profilaxia da Febre Amarela e a Escola de Medicina, da qual foi professor, além de ter sido membro da Comissão Científica do Instituto Oswaldo Cruz ao Amazonas, chefiada por Carlos Chagas. Assim como Barbosa Rodrigues, Pacheco Leão per-maneceu muitos anos à frente da instituição. Durante esse período, podem ser percebidas a participação da instituição em grandes expedições, a ampliação do herbário e do arboreto, e o treinamento de novos botânicos. Além disso, sob a direção de Pacheco Leão, botânicos como Alberto Löfgren, Adolpho Ducke, João Geraldo Kuhlmann67 e Alexandre Brade foram admitidos, o que impulsionou as pesquisas em taxonomia vegetal e elevou o Jardim Botânico à liderança nacional nos estudos sobre a flora brasileira.68

Conforme já mencionado acima, as expedições científicas foram atividades promovidas durante a gestão de Pacheco Leão. Na documentação analisada, existem muitas referências a essas expedições, cujos objetivos centrais eram enriquecer as coleções do Jardim, com a coleta de novos espécimes, e a realização de estudos e observações da flora de diferentes regiões do país, tanto de estados distantes da capital federal, como o Amazonas e o Pará, como dos arredores do próprio Rio de Janeiro ou de estados como Espírito Santo e Minas Gerais. O material coletado não era apenas para o estudo de sistemática, mas também para ensaios de aclimação, seleção e apuro de produtos de valia agrícola e industrial. Esse material atingia anualmente milhares de espécies, de acordo com as fontes, o que coadunava com a missão institucional de tornar-se o mostruário mais completo da flora nacional.

Os naturalistas viajantes saíam em expedições com a finalidade de coletar e classificar material botânico de diversas áreas geográficas. Por vezes, esses cientistas esbarravam em obstáculos (como insuficiência de recursos ma-teriais, dificuldades de transporte e enfermidades que acometiam a equipe), no entanto, retornavam dessas excursões trazendo, além de novos exemplares de plantas, extensos relatórios que descreviam a vegetação das localidades pelas quais passavam. Nesse período, dois botânicos do Jardim Botânico do Rio de Janeiro tiveram destacada participação nas expedições científicas realizadas pela instituição: João Geraldo Kuhlmann e Adolpho Ducke.

Em 27 de maio de 1919, João Geraldo Kuhlmann, que já havia percorrido as florestas do Amazonas e Mato Gros-so como botânico da Comissão Rondon, foi indicado por Antônio Pacheco Leão, diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, para exercer interinamente o cargo de ajudante da Seção de Botânica e Fisiologia Vegetal da instituição, em substituição a Achiles de Faria Lisboa. Em 1922, após sua nomeação ao cargo de naturalista auxiliar, integra a missão biológica belga ao Brasil, organizada por Jean Massart. As viagens da “Missão Belga” foram planejadas e dirigidas por naturalistas do Jardim Botânico, incluindo Kuhlmann, e, inicialmente, percorreram localidades do Rio de Janeiro, como Jacarepaguá, Barra da Tijuca, Xerém, Deodoro, Piratininga e Floresta da Tijuca. Após essas viagens, os naturalistas belgas e os do Jardim Botânico foram a pontos mais distantes do Estado, como Macacu e a Estação Biológica do Itatiaia. Posteriormente, percorreram Minas Gerais e Bahia, e, já sem Massart, os integrantes da “Missão” estiveram em Pernambuco, Pará e Manaus, entre outras localidades.69 Kuhlmann integrou, em 1923, na qualidade de botânico, a Comissão Brasileira que acompanhou a missão oficial norte-americana de estudo da borracha no Vale do Amazonas. Durante dez meses, coletou valioso acervo botânico, que foi incorporado ao herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Essa excursão estendeu-se do estado do Pará até Iquitos, no Peru, Mato Grosso e Bolívia. Realizou, ainda, inúmeras incursões às regiões Sudeste e Sul do Brasil, para seus estudos sobre a flora arbórea de floresta atlântica, podendo-se destacar aquelas realizadas em regiões serranas nos arredores da cidade do Rio de Janeiro, no vale do Rio Doce, estado do Espírito Santo e florestas dos estados do Paraná e Santa Catarina.

Adolpho Ducke, em 31 de outubro de 1918, foi contratado por três anos para servir como chefe da seção de Botânica e Fisiologia Vegetal do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Tal contrato foi prorrogado por mais três anos até sua nomeação efetiva, em 1924. Como funcionário do JB, de 1918 a 1945, integrou comissões na Amazônia que con-tribuíram, através de suas coletas, para o enriquecimento do herbário e coleções vivas da instituição.

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Incontornável destacar a atenção destinada pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro, através de estudos e expe-dições, ao conhecimento da região amazônica. Como já mencionamos, nos primeiros anos da República tal região foi objeto de amplo interesse para diversas instituições, as quais, através de empreendimentos que associavam atividade científica e projetos dirigidos à integração dos pontos mais distantes do território, realizaram importantes expedições ao interior. Desse modo, é possível pensar que a atenção destinada pelo Jardim Botânico a estudos sobre a região amazônica – percebida através da análise da documentação referente à produção científica da instituição entre 1915 e 1931 (relatórios, periódicos, etc.) – estava em sintonia com o interesse nacional pela região.

Entre os anos de 1919 e 1945, os estudos científicos do Jardim Botânico na região amazônica foram intensos, sobretudo, por meio do cientista Adolpho Ducke, que realizou diversas expedições à região para coleta de material botânico. O relatório institucional do ano de 192770 comenta uma excursão realizada por Adolpho Ducke pela região amazônica, a qual teria resultado na coleta de trezentas espécies de plantas vivas apenas em pontos do estado do Amazonas. Até aquele momento, os exemplares botânicos coletados pela excursão haviam atingido o número de 1.200, a serem oportunamente classificados. A introdução no Jardim Botânico das plantas coletadas por Ducke nessas viagens possibilitou a instalação de uma réplica do ecossistema amazônico na coleção viva. João Geraldo Kuhlmann também realizou duas grandes expedições à Amazônia. A primeira foi em 1923, quando participou da comissão brasileira integrada à missão oficial norte-americana, já citada acima, coletando um expressivo número de amostras botânicas, desde o estado do Pará até Iquitos, no Peru e Bolívia, como também no estado de Mato Grosso. Na segunda expedição, realizada em 1924, voltou a percorrer os estados do Amazonas e do Pará, chegando novamente ao Peru.71

A importância da Amazônia enquanto objeto de estudo para os pesquisadores do Jardim Botânico do Rio de Janeiro pode ser percebida através da análise do periódico Arquivos do Jardim Botânico, produzido pela instituição, no qual foram publicados artigos que privilegiavam o tema. Tal periódico foi criado em 1915, voltado exclusivamente para a Botânica, e, através dessa publicação, eram divulgadas as pesquisas realizadas na instituição. Os Arquivos do Jardim Botânico foram publicados entre os anos de 1915 e 1933, e compõem um total de seis volumes. Segundo o editorial do primeiro volume, o impresso teria a sistemática como assunto primordial, sobretudo no que se referia às plantas econômicas ou de alta importância biológica. Ali foram publicados artigos sobre a flora de localidades específicas como a região amazônica, o Pará e a serra de Itatiaia. Na publicação de 1930, por exemplo, há um artigo de Geraldo Kuhlmann, intitulado “Contribuição para o conhecimento de algumas novas espécies da região amazônica e uma do Rio de Janeiro bem como algumas notas sobre espécies já conhecidas”. É notório, nos seis volumes, o esforço recorrente de “identificação” das espécies desconhecidas da flora nacional. Esse “esforço” pode ser observado também a partir da análise de outras fontes, como, por exemplo, dos relatórios do Jardim Botânico que eram anexados aos relatórios do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, trazendo anualmente os números relativos às novas espécies que haviam sido identificadas. Essa missão de identificação das espécies desconhecidas da flora nacional era cumprida a partir das expedições científicas de coleta, tanto as que percorriam os arredores do próprio Jardim, como as que se estendiam até a região serrana do estado do Rio de Janeiro, ou, sobretudo, as viagens científicas que se tornavam grandes aventuras pela então tida como vasta e pouco conhecida região amazônica.

As expedições científicas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, realizadas entre os anos de 1915 e 1931, e voltadas, na expressão de época, para a coleta do desconhecido, objetivavam revelar as potencialidades e possibilidades de explora-ção de recursos naturais em uma conjuntura em que o Estado era pensado, pelas elites políticas e intelectuais, como um “espaço”, como um “território”.72 Na documentação do Jardim Botânico, “o país das Amazonas”, ou a natureza amazônica, tal como na leitura que vimos propondo neste artigo, constituiria, em suma, uma diversificadíssima e particular biogeografia, e, ainda, uma pouco conhecida flora nacional, principal riqueza da paisagem natural que buscavam inventariar.

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Considerações finais

Sob o nome “Amazônia”, conhece-se, hoje, a região definida pela bacia do rio Amazonas, coberta por uma floresta tropical que se estende por nove países sul-americanos: Brasil, Peru, Colômbia, Venezuela, Bolívia, Guiana, Suriname, Guiana Francesa e Equador. Quase 50% de toda a Amazônia (precisamente 49,29% da região) encontra-se em território brasileiro e é formada por 10 ecossistemas distribuídos por 23 ecorregiões, abrangendo os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, e partes dos estados do Tocantins, Mato Grosso e Maranhão.73

O superlativo relacionado ao mundo natural parece ser o recurso linguístico mais comum para descrevê-la e defini-la até os dias de hoje: maior bacia hidrográfica e maior floresta tropical do mundo; uma das maiores faunas aquáticas e o bioma terrestre biologicamente mais rico da Terra. Não bastasse ser constituída por megabiodiversidade, é tão somente a maior de todo o planeta. As pesquisas científicas em Ecologia, Biologia, desenvolvimento sustentável, Direito Ambiental, História Ambiental e Antropologia, dentre outros ramos do conhecimento, o reforçam.74

Cronistas, viajantes e naturalistas que percorreram a região desde o século XVI, contribuíram para a construção dessa interpretação da grandiosidade e dela avulta certa vertente que polariza, de um lado, um cenário natural, à mar-gem da história, único e grandioso, e, de outro, o homem intruso – imagens que, no Brasil, os escritos de Euclides da Cunha mais expressam e representam.75

No Brasil, esse imaginário conviveu com outra vertente, expressa em séries de projetos políticos (sobretudo no período republicano) marcados pelo empenho constante na conversão do cenário natural em recursos nacionais. Pesquisas recentes demonstram, inclusive, que a projeção dessa conversão remonta ao século XVIII e que, mesmo então, já se concebiam também a exploração e o aproveitamento racionais dos seus elementos naturais.76 Seu auge, no Brasil, foi a passagem do século XIX ao XX, e premissas básicas desse investimento sobre a natureza amazônica eram o otimismo e a convicção na ação transformadora do homem. Como procuramos demonstrar no recorte proposto neste artigo, esse investimento expressou-se como fiador científico do empreendimento e máxima metáfora publicista em O País das Amazonas de Nery, mas também em projetos políticos – em parte, representados pelas viagens de exploração científica, patrocinadas pelo Maic, dentre as quais se destacam aquelas realizadas pela Comissão Rondon e pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

Desse modo, filiadas, neste artigo, à historiografia das ciências, a qual se ocupa do exame da história das ativi-dades científicas que acompanharam obras de construção de infraestrutura de comunicações e transporte em estados nacionais, conferimos atenção às condições históricas por meio das quais os caminhos e as comunicações em contextos nacionais promoveram, e mesmo demandaram o trabalho de campo de cientistas e naturalistas de diferentes áreas do saber.77 Nesse sentido, propomos a análise das expedições realizadas por duas instituições científicas brasileiras das primeiras décadas do século XX, a Comissão Rondon e o JBRJ, como iniciativas indissociáveis do processo de moder-nização do Estado. Eram viagens de exploração do território nacional que visavam a esboçar um inventário científico das riquezas naturais do país, no caso, um esquadrinhamento da natureza amazônica.

Se o seu intuito de “integrar”, como domínio político, a porção noroeste do país não foi efetivamente alcançado à época, ou se, hoje, ele foi reconfigurado em função das novas atitudes, sensibilidades e pautas de relacionamento com o mundo natural, os levantamentos científicos promovidos pela Comissão Rondon e pelo Jardim Botânico foram decisivos para a valorização do trabalho dos naturalistas brasileiros e ampliaram o conhecimento sobre extensas áreas do interior do país. Como salientou o naturalista Miranda Ribeiro, em texto publicado na revista Kosmos, de 1908, a Comissão Rondon, por exemplo, eliminou inúmeras inscrições de “Desconhecido” dos mapas nacionais. Sua intenção era transformar a fronteira noroeste, ou o País das Amazonas, em Brasil. No entanto, ajuda notável também forneceram, para a criação e a consolidação da “Amazônia”: objeto de ciência, imaginação, turismo, disputas políticas internacionais, curiosidade e temário central dos debates sobre uso sustentável de recursos naturais e preservação ecossistêmica no mundo inteiro.

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Notas e referências bibliográficas

Dominichi Miranda de Sá é historiadora, doutora em História Social pela UFRJ. É professora do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) e pesquisadora do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. E-mail: [email protected]

Ingrid Fonseca Casazza é doutoranda no Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e bolsista da Capes. E-mail: [email protected]

1 COELHO, Anna Carolina de Abreu. O País das Amazonas: o imaginário da natureza amazônica na propaganda para imigração no século XIX, História e-historia, 2008, disponível em http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=artigos&id=55#_ftnref10; GODIM, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo, Marco Zero, 1994.

2 Sobre o tema, consultar, por exemplo, o capitulo VIII, “Inventing Tropicality”, de ARNOLD, David. The problem of nature: environment, culture and European expansion. Oxford: Blackwell, 1996; e STEPAN, Nancy L. Picturing Tropical Nature. London: Reaktion Books, 2001.

3 A propósito, em seu livro, Nery comentava: “La plupart des auteurs qui ont composé des livres sur l‘Amazonie se trouvent dans ce cas. Le savant n‘enregistre que certaines particularités de la flore ou de la faune; le géographe ne relève que des données topographiques; le trafiquant n‘est attentif qu‘aux phénomènes de la production; l‘homme de lettres se contente d‘exploiter le pittoresque en vue de ses descriptions. Aucun d‘eux n‘étudie le pays dans son entier, dans son harmonieuse unité”. NERY, Frederico Santa-Anna. O País das Amazonas. São Paulo: Edusp, 1981, p. XIV.

4 ARNOLD, David. The problem of nature: environment, culture and European expansion. Op. cit.; 1996.

5 NERY, Frederico Santa-Anna. O País das Amazonas. Op. cit.; 1981, p. 113,120,128.

6 PÁDUA, José Augusto. Natureza e Sociedade no Brasil Monárquico. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. (Org.) O Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Civili-zação Brasileira, 2009, v. III, p. 316.

7 Idem; KURY, Lorelai. Viajantes-naturalistas no Brasil oitocentista: experiência, relato e imagem. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. VIII, Suplemento, p. 863-880, 2001. Sobre a importância das distintas correntes intelectuais que conformaram esta nova interpretação da natureza, entre iluministas, românticos e fisiocratas, ver PÁDUA, José Augusto. Natureza e Sociedade no Brasil Monárquico. Op. cit.; 2009.

8 PÁDUA, José Augusto. Natureza e Sociedade no Brasil Monárquico. Op. cit.; 2009, p. 317. Sobre o tema, com destaque para a importância crucial de Humboldt neste debate, por sua formulação da “geografia das plantas”, sua perspectiva da distribuição variada da vida no planeta, da ideia da especial pujança do mundo natural nos climas quentes e a importância da excursão científica para o conhecimento dos espaços naturais, ver, dentre outros, DETTELBACH, Michael. Global physics and aesthetic empire: Humboldt’s physical portrait of the tropics. In: MILLER, D. P.; REILL, P. H. (Org.) Visions of empire: voyages, botany, and representations of nature. Cambridge, Cambridge University Press, 1996.

9 Sobre a história da ideia e da imagem da natureza amazônica, ver também: PADUA, José Augusto. Arrastados por uma cega avareza: as origens da crítica à destruição dos recursos naturais amazônicos. Ciência & Ambiente, Amazônia: recursos naturais e história, n. 31, p. 133-146, 2005; e COSTA, Kelerson Semerene. Homens e natureza na Amazônia brasileira: dimensões (1616-1920). Tese de Doutorado - Universidade de Brasília, Brasília, 2002.

10 KURY, Lorelai. Explorar o Brasil: o Império, as Ciências e a Nação. In:KURY, Lorelai. (Org.) Comissão Científica do Império. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio, 2009, p. 19-49.

11 RIBEIRO, Rafael Winter. A invenção da diversidade: construção do Estado e diversificação territorial no Brasil (1889-1930). Tese de Doutorado - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós- graduação em Geografia, Rio de Janeiro, 2005.

12 Idem.

13 Sobre a discussão da conversão dos “fundos territoriais” – frentes de expansão e áreas de potenciais riquezas de seus recursos naturais – em “territórios usados”, ver MORAES, Antonio Carlos Robert. Território, região e formação colonial. Apontamentos em torno da geografia histórica da independência brasileira. Ciência & Ambiente, Santa Maria, v. 33, p. 9-16; e PÁDUA, José Augusto. Natureza e Sociedade no Brasil Monárquico. Op. cit.; 2009, p. 329-330.

14 Sobre as disputas de fronteiras e os debates sobre limites internacionais na região amazônica da ocasião, ver SANJAD, Nelson. Ciência e política na fronteira amazônica: Emílio Goeldi e o Contestado Franco-Brasileiro (1895-1900). In: 11o. Seminário Nacional de História da Ciência e Tecnologia, 2008, Niterói. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de História da Ciência, 2010; VERGARA, Moema. Ciências, fronteiras e nação: comissões mistas de demarcação dos limites territoriais entre Brasil e Bolívia, 1895-1901. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 5, p. 345-361, 2010.

15 DANTES, Maria Amélia M. Introdução. In: Espaços da ciência no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2001.

16 LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro: Revan/Iuperj, 1999.

17 MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da Comissão Rondon. São Paulo: Educ; Fapesp, 1998.

18 FIGUEIRÔA, Silvia. As ciências geológicas no Brasil: uma história social e institucional, 1875-1934. São Paulo: Hucitec. 1997.

19 SCHWEICKARDT, Júlio César; LIMA, Nísia Trindade. Os cientistas brasileiros visitam a Amazônia: as viagens científicas de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas (1910-1913). História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 14, p. 15, 2007.

20 DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol. Ciência, um caso de política: as relações entre as ciências naturais e agricultura no Brasil Império. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.

21 MENDONÇA, Sonia. R. de. O ruralismo brasileiro. São Paulo: Hucitec. 1997; RIBEIRO, Rafael Winter. A invenção da diversidade. Op. cit., 2005; BHERING, Marcos Jungman. Positivismo e modernização: políticas e institutos científicos de agricultura no Brasil (1909-1935). Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro. 2008.

22 RIBEIRO, Rafael Winter. A invenção da diversidade. Op. cit., 2005; p. 73-74.

23 DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol. Ciência, um caso de política. Op. cit., 1995; RIBEIRO, Rafael Winter. A invenção da diversidade. Op. cit., 2005; SÁ, Dominichi Miranda de; LIMA, Nísia Trindade. No rastro do desconhecido. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 11, p. 18 - 23, 23 ago., 2006.

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24 DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol. Ciência, um caso de política. Op. cit., 1995; FIGUEIRÔA, Silvia. As ciências geológicas no Brasil. Op. cit., 1997; LOPES, Maria Margareth. O Brasil descobre a pesquisa cientifica: os museus e as ciências naturais no século XIX. 1. ed., Sao Paulo: Hiucitec, 1997.

25 SÁ, Dominichi Miranda de; SÁ, Magali Romero; LIMA, Nísia Trindade. Telégrafos e inventário do território no Brasil: as atividades científicas da Comissão Rondon (1907-1915). História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 15, p. 779-810, 2008.

26 KURY, Lorelai. Viajantes e naturalistas do século XIX. In: PEREIRA, Paulo Roberto. (Org.) Brasiliana da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/Nova Fronteira, 2001, p. 59-77; MAIO, Marcos Chor.; SANJAD, Nelson; DRUMMOND, José Augusto. Entre o global e o local: a pesquisa científica na Amazônia do século XX. Ciência & Ambiente, Santa Maria (RS), v. 31, p. 147-166, 2005.

27 MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio. Op. cit., 1998, p. 99

28 Idem; MACIEL, Laura Antunes. Cultura e tecnologia: a constituição do serviço telegráfico no Brasil. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.41, p.127-144. 2001.

29 BIGIO, Elias dos Santos. Cândido Rondon: a integração nacional. Rio de Janeiro: Contraponto; Petrobrás, 2000; MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio. Op. cit., 1998.

30 DIACON, Todd A. Rondon: o marechal da floresta. São Paulo: Companhia das Letras. 2006.

31 MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio. Op. cit., 1998; DIACON, Todd A. Rondon: o marechal da floresta. Op. cit.; 2006.

32 Idem; idem.

33 Sobre os altos índices de malária entre os membros da Comissão Rondon e o impacto dessa doença na reformulação dos objetivos e extensão das expedições, ver CASER, Arthur Torres. O medo do sertão: doenças e ocupação do território na Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (1907-1915). Dissertação de Mestrado - Programa de Pós-graduação em História das Ciências, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2009; CASER, Arthur Torres.; SÁ, Dominichi Miranda de. Médicos, doenças e ocupação do território na Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (1907-1915). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 5, p. 363-378, 2010.

34 SÁ, Dominichi Miranda de; SÁ, Magali Romero; LIMA, Nísia Trindade. Telégrafos e Inventário do Território no Brasil. Op. cit., 2008.

35 BIGIO, Elias dos Santos. Cândido Rondon. Op. cit., 2000; MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio. Op. cit., 1998; DIACON, Todd. Rondon: o marechal da floresta. Op. cit.; 2006.

36 LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. Op. cit., 1999.

37 SÁ, Dominichi Miranda de; SÁ, Magali Romero; LIMA, Nísia Trindade. Telégrafos e inventário do território no Brasil. Op. cit., 2008.

38 Instruções pelas quais se deverá guiar o chefe da Comissão Construtora da Linha Telegráfica Estratégica de Mato Grosso ao Amazonas, organizadas de acordo com a letra b, do n. XXI do art. 35, da lei n. 1.617, de 30 de dezembro de 1906. Decisões do Governo N.19 – EM 4 DE MARÇO DE 1907. Aprova as instruções para o serviço da Comissão Construtora da Linha Telegráfica de Mato Grosso ao Amazonas.

39 SÁ, Dominichi Miranda de; SÁ, Magali Romero; LIMA, Nísia Trindade. Telégrafos e Inventário do Território no Brasil. Op. cit., 2008.

40 Idem.

41 Decreto 9214, de 15/12/1911, aprova o regulamento do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais. Título III: Da Organização dos Serviços - Capítulo I: Distribuição dos Trabalhos; Capítulo II: Do Pessoal; Capítulo III: Dos deveres dos funcionários; Tabela de vencimentos a que se refere o art. 85 deste regulamento. http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=53816.

42 Sobre a política indigenista da Comissão Rondon, ver: LIMA, Antonio Carlos de Souza. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes. 1995.

43 Decreto 9214, de 15/12/1911, aprova o regulamento do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais. Título II - Capítulo I: Da Localização de Trabalhadores Nacionais, e Capítulo II: Da Instalação de Centros Agrícolas. http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=53816.

44 Relatório do Maic de 1911-1912, p. 116-117. http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u2002/000198.html; SÁ, Dominichi Miranda de; SÁ, Magali Romero; LIMA, Nísia Trindade. Telégrafos e inventário do território no Brasil. Op. cit., 2008.

45 SÁ, Dominichi Miranda de; SÁ, Magali Romero; LIMA, Nísia Trindade. Telégrafos e inventário do território no Brasil. Op. cit., 2008.

46 Para consultar o estudo dessas sociedades indígenas formulado por naturalista da Comissão Rondon, ver ROQUETTE-PINTO, Edgard. Rondonia: Anthropologia-Ethnografia. 7 ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/ABL, 2005 .

47 SÁ, Dominichi Miranda de; SÁ, Magali Romero; LIMA, Nísia Trindade. Telégrafos e inventário do território no Brasil. Op. cit., 2008.

48 Ribeiro, Alípio de Miranda. A Comissão Rondon e o Museu Nacional. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura, 1945; SÁ, Dominichi Miranda de; SÁ, Magali Romero; LIMA, Nísia Trindade. Telégrafos e inventário do território no Brasil. Op. cit., 2008.

49 Ribeiro, Alípio de Miranda. A Comissão Rondon e o Museu Nacional. Op. cit., 1945.

50 Idem.

51 CASER, Arthur Torres. O medo do sertão. Op. cit., 2009.

52 Sobre o debate no período, consultar: FRANCO, José Luiz de Andrade; DRUMMOND, José Augusto. Proteção à natureza e identidade nacional no Brasil, anos 1920 – 1940. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009.

53 Sobre estudos que tomam os rios como objeto da história, consultar, dentre outros: LEONARDI, Victor. Os historiadores e os rios – natureza e ruína na Amazônia Brasileira. Ed. Unb, Paralelo 15, 1999; FLORES, Katia Maia. Caminhos que andam: o rio Tocantins e a navegação fluvial nos sertões do Brasil. Tese de Doutorado em História: Universidade Federal de Minas Gerais, (UFMG), 2006; CORRÊA, Dora Shellard. Os rios na formação territorial do Brasil. In: ARRUDA, Gilmar. (Org.) A natureza dos rios. História, memória e territórios. Curitiba: UFPR, 2008.

54 Sobre o acervo e a diversidade desse tipo de fontes sob a guarda do Forte de Copacabana, pode-se consultar: CORDEIRO, Aurélio; REZENDE, Tatiana. Cadernetas de Rondon. Rio de Janeiro: Fundação Cultural do Exército Brasileiro, 2010.

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55 SA, Dominichi Miranda de. Os rios da dúvida: as viagens de exploração da natureza na Comissão Rondon (1915-1920). XV Congresso Colombiano de História GT Historia ambiental, regiones y territorios, 2010.

56 CORDEIRO, Aurélio; REZENDE, Tatiana. Cadernetas de Rondon. Op. cit., 2010; SÁ, Dominichi Miranda de. Os rios da dúvida. Op. cit.; 2010; ARANHA, Patrícia Marinho. Ciência, território e fronteira: os engenheiros geógrafos da Comissão Rondon (1907-1915). In: XXV Simpósio Nacional de História, 2009, Fortaleza. Anais do XXV Simpósio Nacional de História. Fortaleza: ANPUH, 2009. CD-ROM.

57 Idem; idem; idem.

58 CASER, Arthur Torres. O medo do sertão. Op. cit., 2009.

59 SÁ, Dominichi Miranda de. Os rios da dúvida. Op. cit.; 2010.

60 JARDINE, N.; SECORD, J.A.; SPARY, E.C.; Cultures of Natural History, Cambrigde University Press, 1996.

61 DOMINGUES, Heloísa Maria Bertol. O Jardim Botânico do Rio de Janeiro. In: Espaços da Ciência no Brasil. Op. cit., 2001.

62 Verbete “Jardim Botânico” do Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930), acessado em 20/08/2008, http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br; BEDIAGA, Begonha. Conciliar o útil ao agradável e fazer ciência: Jardim Botânico do Rio de Janeiro-1808 a 1860. História, Ciências, Saúde Manguinhos, v.14, n.4, outubro-dezembro 2007, p.1131-1157; ABRANCHES, Marta. A história das plantas úteis no arboreto do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Monografia (Aperfeiçoamento em Ciências Biológicas). Universidade Santa Úrsula, Rio de Janeiro, 2005; PACHECO, Christiane Assis. Semeando memórias no jardim: documentos e memórias do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado) – Centro de Ciências Humanas, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.

63 Idem; idem; idem; idem.

64 SÁ, Magali Romero. O botânico e o mecenas. História, Ciências e Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. VIII, (suplemento), p.899-924, 2001. HEIZER, Alda. O Jardim Botânico de Barbosa Rodrigues na Exposição Nacional de 1908. Fênix (Uberlândia), v.4, p.03-16, 2007; COSTA, Maria Lúcia M. Nova da; PEREIRA, Tânia Sampaio. Conservação da biodiversidade: atuação dos jardins botânicos. Jardim Botânico do Rio de Janeiro 1808-2008. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do R.J., 2008, p.25-31.

65 Decreto 7848 - de 3 de fevereiro de 1910- Acessado na página do Serviço de Informação do Congresso Nacional- http://www6.senado.gov.br/sicon/PreparaPesquisa.action .

66 Idem.

67 Sobre Kuhlmann no JBRJ, ver: HEIZER, Alda. João Geraldo Khulmann e a Comissão da Borracha de 1912. In: HEIZER, Alda.; VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. (Org.) Ciência Civilização e República nos Trópicos. Rio de Janeiro: Mauad, 2010, p. 209-226.

68 BEDIAGA, Begonha; LIMA, H.C.; MORIM, M.P.; BARROS, C.F. Da aclimatação à conservação: as atividades científicas durante dois séculos. Jardim Botânico do Rio de Janeiro 1808-2008. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do R.J., 2008, v., p.33-43.

69 A propósito, ver: HEIZER, Alda. Notícias sobre uma expedição: Jean Massart e a missão biológica belga ao Brasil, 1922-1923. Caminhos, Comunicações e Ciências. História, Ciências e Saúde, Manguinhos, v.15, n.3, p.849-864, 2008.

70 Relatório apresentado ao presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo ministro de Estado da Agricultura, Indústria e Comércio Dr. Geminiano Lyra Castro. Ano de 1927. http://www.crl.edu/content.asp?l1=4&l2=18&l3=33&l4=22

71 LIMA, Haroldo C.; KURTZ, Bruno C.; MARQUES, Maria do Carmo M. As expedições científicas: coletores à procura das riquezas da flora. In: O herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro: um expoente na história da flora brasileira. Rio de Janeiro: IPJBRJ, 2001, p.105-124.

72 MORAES, Antonio Carlos Robert. Território e história no Brasil. São Paulo, Annablume, 2002; MAIA, João Marcelo E. A terra como invenção: o espaço no pensamento social brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. .

73 FONSECA, Gustavo A. B. da; SILVA, José Maria Cardoso da. Megadiversidade amazônica. Desafios para a sua conservação. Ciência & Ambiente. Amazônia: recursos naturais e história, n. 31, p. 13-23, 2005.

74 Idem.

75 LIMA, Nísia Trindade. Euclides da Cunha e o pensamento social no Brasil. Revista da Academia Brasileira de Letras, v. 62, p. 108-134, 2010; SCHWEICKARDT, Júlio César; LIMA, Nísia Trindade. Do “inferno florido” à esperança do saneamento: ciência, natureza e saúde no estado do Amazonas durante a Primeira República (1890-1930). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 5, p. 399-416, 2010; HARDMAN, Francisco F. A Amazônia como voragem da História: impasses de uma representação literária. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 15, 2007, p. 207-221.

76 PÁDUA, José Augusto. Arrastados por uma cega avareza. Op. cit., 2005.

77 Boa expressão desta historiografia encontra-se em: PODGORNY, Irina; LIMA, Nísia Trindade; SCHAFFNER, W.; SÁ, Dominichi Miranda de. (Org.) Número especial: Caminhos, Comunicações e Ciências. História, Ciência, Saúde - Manguinhos. Rio de Janeiro, v. 15, 2008.

[ Artigo recebido em 09/2010 | Aceito em 11/2010 ]

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Congressos internacionais e a atuação de Barbosa Rodrigues no evento de 1905

InternationalmeetingsandtheBarbosaRodriguesroleonthe1905event

ANA MARIA RIBEIRO DE ANDRADE

Museu de Astronomia e Ciências Afins | MAST/MCTI

RESUMO Este trabalho tem por objetivo analisar a atuação e contribuição científica de João Barbosa Rodrigues para a 3ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano, realizada na cidade do Rio de Janeiro, em 1905. Além de destacar o papel dos congressos científicos, mostra que ciência e relações diplomáticas se mesclam na história desse evento. Conclui que Barbosa Rodrigues foi o principal organizador do Congresso de 1905 e que seus dois trabalhos publicados nos anais são relevantes para a Botânica, História da Ciência e do Meio Ambiente. As advertências feitas ao governo e especialistas no trabalho “A diminuição das águas no Brasil” permanecem muito atuais.

Palavras-chave João Barbosa Rodrigues; evento científico internacional; Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano, 3. (Rio de Janeiro, 1905); história do meio ambiente.

ABSTRACT This paper aims to analyze the performance and scientific contributions of João Barbosa Rodrigues for the 3th Meeting of the Latin American Scientific Congress, held in Rio de Janeiro in 1905. Beyond to detail the role of scientific conferences, it shows that science and foreign affairs combine in the history of this congress. It concludes that Barbosa Rodrigues was the main organizer of the conference of 1905 and that his two papers published in the proceedings are relevant to Botany, History of Science and the Environment. The warnings given to the government and specialists about the decline of water in Brazil remain very current.

Keywords João Barbosa Rodrigues; international scientific conference; Meeting of the Latin American Scientific Con-gress, 3. (Rio de Janeiro, 1905); history of the environment.

Introdução

Há mais de um século, cientistas brasileiros apresentam trabalhos em congressos científicos internacionais, a fim de discutir com colegas os resultados e a metodologia das pesquisas e, assim, contribuir para o desenvolvimento da ciência. Trata-se de uma atividade inerente à produção científica, marcadamente internacional e cooperativa, muito embora os congressos sejam, ao mesmo tempo, acontecimentos científicos, sociais e políticos. Autoridades de Estado, representantes do governo e de órgãos financiadores comparecem à sessão de abertura para colher os dividendos políticos, assim como os promotores de empresas privadas fabricantes de equipamentos para os laboratórios estão presentes para acompanhar as tendências das áreas experimentais. Dependendo da importância do congresso ou da

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relevância social do tema, a imprensa local noticia o acontecimento, entrevista os organizadores e diariamente apre-senta uma síntese das principais atividades realizadas no dia anterior. Assuntos polêmicos e trabalhos que suscitam discussões sobre os paradigmas da ciência têm destaque, merecendo até chamada na página principal.

Os grandes jornais brasileiros sempre acompanharam o desenrolar das reuniões científicas nacionais e interna-cionais realizadas nas capitais do país, reservando um espaço proporcional em suas páginas ao interesse dos leitores, às repercussões na comunidade científica e à participação de cientistas estrangeiros reconhecidos. No início do século XX, a cobertura da imprensa era mais extensa do que nos dias atuais, em decorrência das características dos jornais, da maior uniformidade do público leitor e da capacidade mobilizadora dos eventos, que eram menos frequentes. Re-gistravam-se desde os preparativos até as resoluções mais importantes e polêmicas, o desembarque de convidados ilustres no porto da cidade, o engajamento de autoridades, os discursos, as solenidades, e, evidentemente, as sessões científicas que despertavam mais interesse dos participantes. Verifica-se que há mais permanências do que mudanças na práxis científica.

Este trabalho tem por objetivo proceder à análise da atuação e contribuição científica de João Barbosa Rodrigues para a 3ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano realizada em 1905, na cidade do Rio de Janeiro. Para isso, apresenta um breve histórico e discorre sobre o papel dos eventos para o desenvolvimento da ciência, assim como os ganhos políticos e outras vantagens auferidas pelos organizadores, cidade e país promotor. Também faz um balanço da 3ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano a partir de notícias divulgadas na imprensa e das informações registradas em atas das reuniões preparatórias e nos anais do evento, acentuando sua principal particularidade: a mescla entre ciência e relações diplomáticas.1 A atuação de Barbosa Rodrigues na organização e realização do evento é examinada com base nos mesmos documentos, e a contribuição científica é avaliada a partir do conteúdo dos dois trabalhos de sua autoria publicados nos anais.

O trabalho acentua que, apesar de a atuação de Barbosa Rodrigues na fase preparatória e no decorrer do evento ter contribuído para assegurar o êxito do primeiro congresso latino-americano realizado no país, ele não apresentou ou submeteu à discussão os trabalhos de sua autoria nas sessões científicas. Alegou falta de tempo e inadequação do tamanho do texto intitulado “A diminuição das águas no Brasil”, mesmo tendo participado da elaboração das rígidas normas para apresentação de trabalhos. Já seu trabalho intitulado “Structure et formation de la tige des palmiers”, também publicado no volume III dos anais, não aparece na programação e sequer foi mencionado em outro documento. Consta da produção científica de Barbosa Rodrigues que o trabalho “A botânica e a nomenclatura indígena”,2 publicado como uma separata, destinava-se ao evento de 1905. No entanto, o mesmo não foi apresentado nem publicado nos anais.

Donde se conclui que práticas inusuais em áreas consolidadas do campo científico eram vigentes um século atrás, tais como: não comparecer ao congresso, deixando por isso de apresentar o trabalho inscrito e entregá-lo para publicação; não adequar a apresentação oral às normas estabelecidas pela comissão organizadora do evento; e atribuir uma informação errada a trabalho. Apesar de Barbosa Rodrigues ter descumprido o ritual acadêmico, a publicação de seus trabalhos nos anais do evento possibilitou o registro para que os mesmos pudessem ser discutidos posteriormen-te. É inegável sua contribuição: para a Botânica, com o estudo sobre as estirpes das palmeiras; para o debate, com questões contemporâneas relacionadas ao meio ambiente. A atualidade da reflexão sobre a diminuição dos mananciais é surpreendente, quando confrontada com a discussão do Código Florestal mais de um século depois.

1. Os primeiros congressos internacionais

As reuniões nacionais, como a Assembleia de Naturalistas e Físicos, realizada em Leipsig desde 1822, de-ram origem aos congressos científicos internacionais, que começaram a ser realizados na década de 1860. Nos primórdios, os organizadores imprimiam aos encontros o caráter de acontecimentos internacionais apenas devido à presença de um convidado estrangeiro. É o caso dos congressos de Astronomia que, em 1865, já se autodeno-

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minam internacionais, apesar de serem organizados pela Astronomische Gesellschaft. Naquela época, somente os congressos de disciplinas institucionalizadas – as Matemáticas e as Ciências Naturais – tinham caráter de evento científico verdadeiramente internacional.

Os eventos de natureza técnico-profissional e científica tiveram um crescimento acentuado entre 1840-1914, reflexo da maior profissionalização, das necessidades das sociedades e do apoio do Estado.3 A abrangência temática e o aumento do número de participantes marcaram essa etapa do processo de configuração do campo científico e de aplicações da ciência, que foi acompanhado pelo expressivo aumento do número de publicações especializadas e de divulgação da ciência e da técnica.

Se a participação em congressos é inerente à produção de ciência, os governos tiveram um papel fundamental nos primórdios da cooperação científica, dado que o desenvolvimento de novas técnicas exige a elaboração de uma regulamentação unificadora internacional, tal como foi feito com o sistema métrico. Mas a preeminência de algum Estado se torna fonte de novos conflitos: cada país tenta impor suas concepções e padrões para defender seus interesses.

No século XIX, o reconhecimento da importância da ciência foi favorecido pela ocorrência simultânea dos congres-sos científicos e exposições universais. Além de terem possibilitado a elaboração da imagem da produção capitalista associada a processos de aplicação da ciência e inventividade, as exposições universais foram capazes de arregimentar novas forças para o desenvolvimento do trabalho científico. De um lado, os novos aliados colaboraram no sentido de direcionar o trabalho de laboratórios para as necessidades sociais e econômicas, como aglutinar cientistas, engenheiros e técnicos. De outro lado, esses gigantescos eventos foram o primeiro meio midiático a aproximar, com eficiência, ciência, tecnologia e sociedade, correlacionando as potentes máquinas e os complexos artefatos exibidos ao avanço científico e industrial. Observando o modelo das exposições universais realizadas em Paris, outras “catedrais do progresso” foram erigidas, para que os benefícios e os “mistérios” da ciência ocupassem um lugar central no imaginário social. Isto é, privilegiavam-se os elementos cenográficos em detrimento da reflexão e do relato, para que a multidão permanecesse extasiada diante do que via. Os milhares de visitantes que afluíam diariamente às exposições universais, tornavam-se testemunhas do “progresso da civilização”, embora poucos tivessem capacidade para discernir que a ciência contribuía de maneira significativa para viabilizar o fetiche da técnica, da mercadoria e da ordem burguesa.4

Sem dúvida, as exposições universais contribuíram para estreitar as relações no interior das comunidades científicas e tecnológicas, e para estabelecer redes de cooperação que ultrapassaram as fronteiras geopolíticas. O impacto causado impulsionou a realização de eventos similares nacionais e regionais na América Latina, onde celebrar a força do capitalismo industrial efetivamente estava fora do contexto. No Brasil, os esforços do imperador Pedro II e dos primeiros presidentes da República, para que o país participasse de exposições universais e regionais, eram uma estratégia de ação política. Sinalizavam o reconhecimento da importância dos contatos no exterior para estimular o comércio de exportação de produtos agrícolas e postular um lugar de mais visibilidade entre os países desenvolvidos. O fato de organizar uma exposição de caráter universal, ou mesmo, de apenas participar, significava firmar presença no cenário internacional.5

As exposições promovidas no Brasil, quando comparadas às universais realizadas na Europa e nos Estados Unidos, guardavam poucas semelhanças quanto ao conteúdo, dimensão e participação da sociedade. Entretanto, o caráter enciclopédico das exposições-espetáculo, bem como os primeiros congressos internacionais realizados na Europa, inspiraram as reuniões científicas latino-americanas realizadas em Buenos Aires, Montevidéu e Rio de Janeiro, respectivamente em 1898, 1901 e 1905. As preocupações registradas nas atas das reuniões preparatórias da 3ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano,6 as motivações daqueles que estiveram à frente da organização ou emprestaram apoio político, o conteúdo dos trabalhos e os debates travados nas sessões científicas revelam que as expectativas brasileiras de cooperação estavam muito além do campo científico. Atingiam as esferas da diplo-macia e do comércio internacional com o propósito de fazer alianças com os países vizinhos, resolver problemas de fronteiras, alfandegários, sanitários, técnicos e humanitários, e tinham a clara intenção de dissipar os receios de uma ação expansionista do Brasil.7

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2. O papel dos congressos

A participação de congressos científicos nacionais e internacionais é considerada uma das etapas fundamentais para o progresso da ciência. Depois de concluído o trabalho, é de praxe apresentar e discutir os resultados com colegas em evento da área, bem como publicar a comunicação e o artigo completo em periódico de circulação internacional. Mas nem sempre a qualidade dos trabalhos corresponde às expectativas da maioria dos participantes ou, inversamente, muitas vezes as intervenções dos participantes não estão à altura da coerência e complexidade das questões em debate.

A cerimônia de abertura é a ocasião solene em que o conhecimento científico é utilizado no discurso de projeção do potencial do país escolhido para sediar o congresso. Por isso, autoridades do mundo da política e da ciência se colocam lado a lado. Outras festividades que ocorrem no transcorrer do evento, têm por fim demonstrar aos participan-tes estrangeiros a valorização da cultura erudita e o respeito às tradições culturais da nação. Os congressos sempre foram acontecimentos em que os participantes vivenciam bons momentos oferecidos pelos banquetes, discursos e mundanidades. Isso pode ser facilmente comprovado numa rápida leitura do programa de quaisquer congressos inter-nacionais, inclusive os das áreas tecnológicas consideradas mais herméticas. Independentemente da área, do local e de quando os congressos foram realizados, as ocasiões para o convívio social são importantes para as apresentações e reencontros, que podem resultar em colaborações e parcerias.

Como comprova a programação da 3ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano, o ritual de celebração da ciência se assemelha aos eventos atuais. Afora a maior especialização e rigor na seleção dos trabalhos, está cada vez mais claro que o território da ciência é um campo social como qualquer outro, com estratégias e mecanismos de disputas característicos de grupos e indivíduos.

A participação em congressos internacionais faz parte da política de Estado, uma vez que pode interferir no prestígio dos países dos participantes. O número de participantes por país é um indicador histórico do grau de desenvolvimento da ciência, enquanto que a distribuição geográfica dos congressos indica a reputação cultural da cidade escolhida e a importância da comunidade científica local. Disputas nas associações promotoras ou entre grupos da mesma área precedem a escolha do país para a sede de um evento internacional. Os membros do comitê científico e do comitê executivo se revestem de poder, podendo obter vantagens na carreira e dividendos, principalmente quando estão em cena interesses de indústrias. A vida científica nacional é também diretamente afetada, criando um novo lugar de representação ou acirrando a luta entre instituições tradicionais e emergentes, entre grupos de pesquisa concorrentes e entre pesquisadores.

Nas notícias publicadas na imprensa e nas informações contidas na coleção dos relatórios da 3ª Reunião do Con-gresso Scientifico Latino-Americano, independentemente do jornal e do organizador do volume dos anais, sobressaem o caráter de celebração das aplicações da ciência, o culto das letras e o esforço político de criar uma aliança latino-americana com a finalidade explícita de enfrentar problemas comuns e de integração regional. Diante disso, deve-se conferir ao evento uma duplicidade de caráter: científico e político.

Os participantes do Congresso de 1905 tiveram uma extensa agenda social, ocasiões para a “confraternização científica” e para a “confraternização entre as nações irmãs”, e sessões para apresentação de trabalhos, cujas questões deveriam preencher os seguintes requisitos: interessar “à comunhão das nações latinas” ou ser de interesse de mais de “uma ou mais dessas nações”. As questões foram determinadas pela Comissão Diretora, a partir das questões pro-postas pelas subcomissões, e submetidas à aprovação da sessão plenária depois de votadas nas respectivas sessões. Dessa maneira, o debate contemplaria pontos considerados essenciais pela Comissão Diretora, tais como: a procura do método mais eficaz para a confecção de um mapa geral dos países latino-americanos; o estudo das fontes de energia hidráulica na América meridional, com objetivo de produzir energia elétrica; estudo das causas do desaparecimento do volume das águas e dos mananciais no Brasil;8 a conservação das matas e seu controle; projetos de ligação possível das bacias de navegação dos rios da Prata, Amazonas e Orinoco; traçado de grandes vias férreas latino-americanas; progresso e desenvolvimento das ciências médicas e cirúrgicas; questões relativas à criminologia; principais famílias linguísticas da América Latina.9

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Como os critérios científicos não foram determinantes para a composição das delegações brasileiras e estrangeiras, e as questões a serem debatidas não estavam à altura de todos os participantes, a fronteira entre a agenda científica e a promoção das relações internacionais ficou muito tênue.

O programa proposto pelos organizadores teve poucas alterações. Três tipos de atividades ocorreram entre os dias 6 e 16 de agosto de 1905: sessões científicas para apresentação de trabalhos; visitas específicas de cada área; e excursões a pontos turísticos. As manhãs e os finais da tarde, do dia 7 ao dia 12 de agosto, foram reservados para as sessões científicas das áreas de Engenharia, Matemática Pura e Aplicada; Ciências Físicas e Naturais; Medicina, Cirurgia e Medicina Pública; Ciências Jurídicas e Sociais; e Agronomia e Zootecnia. As apresentações dos trabalhos transcorreram simultaneamente, mas o pequeno número de especialistas das áreas das ciências exatas, da terra e biológicas levou à realização de sessões conjuntas e, ao contrário, a área da Medicina foi subdividida. As visitas às instituições e aos prédios públicos foram realizadas no intervalo entre as sessões científicas. Após o dia 13, a duração das sessões foi menor para facilitar as visitas aos locais mais distantes. Como em todos os congressos internacionais, a ciência foi utilizada como propaganda para promover a imagem do país no exterior.

Os incontáveis discursos, os banquetes oferecidos pelos ministros de Estado, as efusivas saudações e brindes retratavam os usos e costumes do início do século XX, e revelam que havia grande presença de pessoas de fora do campo científico. As cerimônias oficiais, que contaram com a presença do presidente da República e do ministro das Relações Exteriores, foram exercícios de cordialidade para promover a política externa do Brasil, pautada pela necessi-dade de aproximação dos países vizinhos. Em resumo, o conjunto de atividades evidenciou a sobreposição de objetivos do Congresso de 1905 e a incipiente institucionalização da ciência no continente.

3. Balanço do Congresso de 1905

A fragilidade do campo científico se refletiu no trabalho da Comissão Diretora que organizou a 3ª Reunião do Con-gresso Scientifico Latino-Americano, assim como nas atividades das comissões que ficaram encarregadas de divulgar o evento. Associados do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro assumiram a tarefa de organizar o evento, com evidente predomínio de engenheiros e políticos.

A Comissão Diretora tentou atrair cientistas, professores, políticos, membros de governos, intelectuais, milita-res, engenheiros, profissionais liberais e “homens de negócios”. Arregimentaram 83 instituições da América Latina, sendo 44 brasileiras, que podem ser classificadas como: ensino de todos os níveis (21), profissionais (13), científicas (4), culturais (3), e associações de natureza diversa (3). Eram instituições do Rio de Janeiro (29), de São Paulo (7), de Minas Gerais (3), da Bahia, do Rio Grande do Sul, de Pernambuco, do Ceará e do Rio Grande do Norte, tais como: as escolas politécnicas do Rio de Janeiro e de São Paulo; as faculdades de Direito politécnicas do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Minas Gerais; a Escola de Minas de Ouro Preto; colégios e ginásios; o clube de Engenharia, o Naval e o Militar; a Academia Nacional de Medicina e a Academia do Comércio; a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional; a Sociedade Nacional de Agricultura, além do Instituto Agronômico de São Paulo, do Museu Nacional e do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.10

O reduzido número de institutos de pesquisa indica o grau de institucionalização da ciência na América Latina, principalmente quando cotejado com a enorme lista de participantes individuais e os respectivos vínculos, e com o conteúdo dos trabalhos publicados.11 Foram inscritos cerca de 630 participantes, denominados membros efetivos, dentre os quais 474 do Brasil. A imensa maioria não apresentou trabalho, nem teria estado presente.12 Oswaldo Cruz13

e Santos Dumont estavam inscritos, mas não compareceram.

Centros do intercâmbio durante o século XIX, os museus de ciências naturais estiveram ausentes. Afora Jose Are-chavaleta (naturalista e farmacêutico, diretor do Museu Nacional de Montevidéu) não ter apresentado trabalho – apenas

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presidiu as sessões de Ciências Naturais14 –, constatou-se que o paleontólogo argentino Florentino Ameghino (Museu Nacional de Buenos Aires) e Emilio Goeldi (Museu Paraense), o qual integrou a comissão cooperadora do Pará, não se inscreveram. Apesar de inscrito, Hermann von Ihering (Museu Paulista) não compareceu nem publicou trabalho.

Nas memórias do Congresso de 1905, não há informações sobre os critérios para envio de convites institucionais, nem acerca das normas para inscrição individual. Também não há registros de vetos, quando os nomes foram submetidos à aprovação da Comissão Diretora pelas subcomissões estabelecidas por área do conhecimento. Um dos objetivos dos organizadores teria sido superar o número de participantes dos dois eventos anteriores: entre os 630 inscritos, havia 43 representantes de 13 países da América Latina e Caribe.

A tarefa seria difícil se a ciência fosse considerada apenas como realizações teóricas e experimentais do conheci-mento especializado e original. Por esse critério, os que faziam ciência ou estavam envolvidos com a sua aplicação, eram poucos. A produção de ciência na América Latina ainda estava restrita a pequenos grupos e às iniciativas isoladas. No Brasil, os primeiros governos republicanos não demonstravam empenho para ampliar a atividade, e não havia vínculos entre ciência e a nascente atividade industrial.

A falta de informações sobre os trabalhos inscritos pouco antes das apresentações foram algumas das críticas à organização. Além disso, as inscrições deveriam obedecer à classificação proposta pela Comissão Diretora – Matemática Pura e Aplicada; Engenharia; Ciências Médicas e Cirúrgicas; Medicina Pública; Ciências Antropológicas; Ciências Jurídicas e Sociais; e Agronomia e Zootecnia – mas, na prática, houve alterações, e a distribuição não foi homogênea.

Refletindo o processo de sistematização do conhecimento ao longo da história, que é orientado pelas necessidades e possibilidades das sociedades, as sessões de Medicina foram as mais concorridas: maior número de participantes e de trabalhos publicados. O segundo lugar na afluência de congressistas ficou com as Ciências Jurídicas e Sociais, cujas questões postas para discussão poderiam suscitar críticas à política exterior do país, desde 1902 sob condução do barão do Rio Branco.

Quadro 1 – Trabalhos publicados nos anaisI

Área Número de trabalhos Percentual

Matemática Pura e Aplicada e Engenharia 10 8.9

Ciências Físicas e Naturais 17 15.2

Ciências Médicas e Cirúrgicas 27 24.1

Medicina Pública 16 14.3

Ciências Jurídicas e Sociais 23 20.5

Ciências Antropológicas 05 4.5

Ciências Pedagógicas II 08 7.1

Agricultura e Zootecnia 06 5.4

TOTAL 112 100

Fonte: ANDRADE, Ana M. Ribeiro de; SUPPO, Hugo Rogélio. O significado do Congresso. In: ANDRADE, Ana M. Ribeiro de. (Org.) A Terceira Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano: ciência e política. Brasília/ Rio de Janeiro: CGEE/ MAST, 2002, p. 59-126. [Inclui CD-ROM.]

Notas: I Foi constatado que dezessete trabalhos entregues para a publicação não foram publicados e que diversos trabalhos publicados não foram apresentados; II Única área com participação de mulheres, que publicaram quatro trabalhos.

As resoluções votadas na sessão plenária foram orientadas pelo questionário elaborado pelas subcomissões nas conclusões de trabalhos apresentados e nos debates travados nas sessões científicas. Uma leitura preliminar dos doze volumes do Relatorio Geral permite afirmar: em nenhum dos países da América Latina a ciência havia conseguido se

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constituir como uma atividade institucionalizada. Não havia o imprescindível apoio do Estado e uma tradição científica cumulativa, inclusive naquelas instituições consideradas bem-sucedidas no século XIX. As contribuições científicas do 3o Congresso, ao que tudo indica, eram resultantes de iniciativas isoladas e precisam ser analisadas com vagar pelos especialistas das áreas de História da Matemática, Geologia, Saúde Pública, Ciências Naturais, Educação, Engenharia, etc. Trabalhos que aparentam ser meras descrições, entretanto, podem indicar o estágio de desenvolvimento de disci-plinas, refletindo a preocupação de se introduzirem reformas no ensino superior e de se promover o intercâmbio entre professores de ciências e cientistas latino-americanos. A visão otimista sobre os resultados do evento, uma vez que no Relatorio Geral não estão transcritos os comentários críticos ou negativos, não é suficiente para responder sobre o papel que a ciência poderia desempenhar nas sociedades latino-americanas a longo prazo, a partir do que já havia sido feito, ou avaliar o grau de inserção e o avanço da ciência nessa região geopolítica em comparação com as fronteiras do conhecimento na transição para o século XX. Desse modo, se era reconhecida a importância da ciência para o desenvolvimento dos países, não há registros de reivindicações ao Estado para a obtenção de melhores condições para a produção de ciência.

Como país anfitrião, os brasileiros se sobressaíram quanto ao volume de trabalhos, permitindo uma avaliação mais precisa do estado da ciência e da tecnologia no país. Porém, os dados quantitativos são inconsistentes para uma análise comparativa entre os resultados das três reuniões no que se refere ao número de participantes, trabalhos apresentados e trabalhos publicados. Também o número de áreas de conhecimento representadas é pouco esclarecedor, posto que as subdivisões eram muito frágeis. A comparação do 3o Congresso com os dois eventos anteriores, em 1898 e 1901, e com o 4º Congresso, que se realizou junto com o 1º Congresso Pan-americano (1909), permite adiantar que a marca característica da reunião do Rio de Janeiro foi ter conseguido reunir um maior número de delegados.

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Comissão Diretora do 30 Congresso Scientifico Latino-Americano, 1905. Sentado à esquerda: Barbosa Rodrigues

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4. A atuação de Barbosa Rodrigues em 1905

A proposta de instituir uma reunião científica permanente na América Latina, tal como ocorria em países europeus, partiu da Sociedad Científica Argentina. Nenhum brasileiro participou da 1ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano (Buenos Aires, 10-20 de abril de 1898), mas João Barbosa Rodrigues (diretor do Jardim Botânico), Manoel Victorino Pereira (médico), Alfredo Lisboa (engenheiro), Manoel Álvaro de Souza Sá (jurista) e Domingos Sergio de Carvalho (engenheiro agrônomo, professor do Museu Nacional) compareceram à 2ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano (Montevidéu, 20-31 de março de 1901). O grupo foi organizado no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, pelo marquês de Paranaguá,15 e recebeu do governo federal recursos para a viagem. Quando o Rio de Janeiro foi escolhido para sediar a terceira reunião, todos passaram a integrar a Comissão Organizadora, depois denominada Comissão Diretora.

Os trabalhos dessa comissão tiveram início no IHGB, em julho de 1901, mas se tornaram regulares a partir de 5 de abril de 1902, quando a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro ganhou o status de sede da 3ª Reunião. Naquele ano, ocorreram quatorze reuniões, e as atas foram publicadas no 1o Boletim dos Trabalhos Preparatórios.16 Os esforços se concentraram na elaboração do regulamento e esboço da programação, na divulgação (circulares, boletins e fichas de inscrição) e nas articulações visando garantir o auxílio do governo federal. Barbosa Rodrigues participou intensamente, sempre fazendo ponderações que evidenciavam sua experiência em pesquisa e preocupação com o rigor científico.

Ficou estabelecido que haveria dez comissões científicas, denominadas subcomissões: Matemática Pura e Aplicada; Ciências Físicas; Ciências Naturais; Engenharia; Ciências Médicas e Cirúrgicas; Medicina Pública; Ciências Antropológicas; Ciências Jurídicas e Sociais; Ciências Pedagógicas; Agronomia e Zootecnia. Procurou-se manter a estrutura organizacional do congresso de Montevidéu, considerado um êxito. Coube às comissões científicas: propor questões para orientar os trabalhos a serem apresentados nas sessões; sugerir outros nomes para dividir as tarefas; receber e classificar as dissertações, relatórios e comunicações sobre os temas afins enviados às mesmas; organizar as atividades científicas e instalar as sessões até a eleição da Mesa definitiva de cada área; coordenar a publicação do relatório final com os trabalhos selecionados.

Em 26 de novembro de 1902, Barbosa Rodrigues passou a integrar a Comissão Diretora, que substituiu a Co-missão Organizadora. Até o congresso, outras 42 reuniões plenárias se realizaram na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro ou na Escola Politécnica. As atas registravam as presenças e as justificativas das faltas, assim como as propostas apresentadas e decisões, as quais o Jornal do Commercio transcrevia na íntegra para os leitores. Em 1904, a Comissão Diretora se dedicou fundamentalmente a examinar os resultados do trabalho das comissões científicas, a infraestrutura e apoio financeiro para realização do evento, o registro de participantes, os trabalhos inscritos e as indicações para presidentes e membros honorários. Três meses antes do início do Congresso, devido às dificuldades enfrentadas pela Comissão Diretora para executar as últimas tarefas,17 as atividades passaram a ser supervisionadas por uma Comissão Executiva sob a presidência do próprio marquês de Paranaguá. Era menor do que a Comissão Diretora, mas integrada por aqueles que estavam mais comprometidos com a realização do evento: Antonio de Paula Freitas, Deodato Cesino Villela dos Santos, Manoel Álvaro de Souza Sá Vianna, Carlos Seild, José Américo dos Santos, Alfredo Lisboa e o incansável João Barbosa Rodrigues. Seu empenho fora tal, que Constança Barbosa Rodrigues, sua mulher, foi aclamada presidente honorária da 3ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano. A homenagem era inusitada naquela época, diante do papel reservado na sociedade para as mulheres. A sugestão partiu do médico argentino Manoel Otero Acevedo.

Em contraste com o dinamismo demonstrado na posição de diretor do Jardim Botânico, participante e repre-sentante brasileiro no 2º Congresso, e membro das comissões organizadoras, diretora e executiva da 3ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano, Barbosa Rodrigues não teve uma atuação científica compatível durante o evento. Depois de vencida a proposta de agrupar as sessões de Engenharia, Matemática, Ciências Físicas e Ciências Naturais, ele deveria apresentar trabalho nas sessões de Ciências Físicas e Naturais que foram realizadas em conjunto.

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Dos dezessete trabalhos publicados sobre Botânica, Geologia, Geofísica, Meteorologia, Zoologia e instrumentos científi-cos, é interessante constatar que oito não foram apresentados. Barbosa Rodrigues, que teve dois trabalhos publicados, também não submeteu seus trabalhos às críticas dos colegas.

As normas eram claras: cada participante dispunha de 15 minutos para ler o trabalho em português ou espanhol, e outros 25 minutos para discussão. Esse tempo poderia ser prorrogado, como os trabalhos poderiam ser publicados em outro idioma. Barbosa Rodrigues protelou a apresentação nos primeiros dias, alegando pouco tempo; esteve ausente um dia; e, por fim, afirmou que o tamanho do trabalho intitulado a “A diminuição das águas no Brasil” era incompatível com o tempo da sessão! Como ele não fez comentários sobre os outros trabalhos apresentados, pode-se aventar que o desinteresse fora motivado pela falta de interlocutores na plateia ou simplesmente decorrente do cansaço físico.

A visita ao Jardim Botânico, do qual Barbosa Rodrigues era diretor, não teve caráter técnico, e não foi exclusiva dos participantes das sessões de Ciências Físicas e Naturais. Centenas de participantes do 3º Congresso estiveram presentes para as festividades de inauguração do monumento em homenagem ao botânico frei Leandro do Sacramento. Se um pequeno grupo retornou ao local para um almoço na residência do diretor, o ato deve ser interpretado como um gesto de confraternização entre colegas e amigos.

5. Os trabalhos de Barbosa Rodrigues

“Structure et formation de la tige des palmiers” foi publicado no tomo IIIA do Relatorio Geral, em francês, consi-derada a língua da civilização.r Trata-se de um trabalho clássico de Botânica, o qual o autor inicia com uma descrição “poética” do estipe da palmeira e um histórico das descrições do espécime. Em seguida, reporta-se à controvérsia sobre a estrutura do estipe, lembrando que botânicos europeus se equivocaram na descrição de exemplares nativos na África pelo fato de as palmeiras não resistirem a longas viagens. Discorre também sobre a reprodução e raízes das palmeiras para explicar, de maneira pormenorizada, como se dá o desenvolvimento do estipe. Por meio de desenhos, trata dos detalhes dos ramos e dos feixes de fibras. Um relato de experiência pessoal encerra o trabalho.

“A diminuição das águas no Brasil”, trabalho de mais de 160 páginas que Barbosa Rodrigues planejou apresentar no 3º Congresso de 1905, foi publicado no tomo IIIA do Relatorio Geral, impresso em 1909.s Bem fundamentado e de leitura agradável, é interessante observar que a estrutura da apresentação se assemelha às exigências dos trabalhos acadêmicos. O autor destaca no prólogo a motivação do estudo, as hipóteses do trabalho, a finalidade e as questões orientadoras. Isto é, chama atenção para a seca, diferenciando as alterações do índice pluviométrico do fenômeno das secas que periodicamente assola algumas regiões do país, atribuindo o problema à diminuição dos mananciais. A tese é de que uma revolução geológica no país, ligada uma revolução meteorológica, ou produzindo-a, resulta no ressecamento da crosta terrestre e, consequentemente, ocasiona a diminuição das chuvas e trovoadas, a falta de água e doenças. Baseia-se nas modificações que observou no volume dos rios da bacia Amazônica durante os anos em que lá viveu, nas viagens pelas fronteiras até o Mato Grosso e em numerosos dados extraídos de documentos oficiais, jornais, artigos, etc. Adverte o governo para a necessidade de entender a questão, a fim de ser evitada uma calamidade, inclusive para as futuras gerações.

O trabalho está dividido em seis partes. Na primeira, faz um “Histórico das derrubadas e dos mananciais”t do Rio de Janeiro, enfatizando os aspectos da relação aumento da população/consumo de água desde a época de Villegaignon até recentes administrações. Apresenta diversos dados em quadros demonstrativos sobre o volume de água dos ma-nanciais da cidade. A segunda parte, “Florestas e queimadas”,21 é particularmente interessante para a compreensão das ideias do autor. Questiona a relação entre desmatamento e seca; enfatiza que as florestas são grandes consumidoras de água e, mais uma vez, enfatiza que o problema se deve ao fato de a água não infiltrar no solo. Nesse item, é um crítico severo das queimadas, por gerarem calor, além de fumaça, fuligem e cinzas.

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Em “Chuvas e trovoadas”,22 o item 3, o autor trata das mudanças no regime das chuvas e da diminuição das trovoadas, o que vem observando ao longo dos anos. Em suas palavras, “os mananciais decrescem sendo já efeito da diminuição das chuvas, produzido por uma causa geológica, que é uma revolução que se dá lentamente na crosta ter-restre, e não por faltarem florestas”.23 Acentuando que faltam informações meteorológicas, Barbosa Rodrigues recorre às informações de Luiz Cruls (do então Observatório Astronômico do Rio de Janeiro), do Instituto Agronômico de São Paulo, da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, da Companhia de Mineração do Morro Velho, da Diretoria Geral dos Telégrafos, dentre outras, para reforçar sua tese. Também elenca dados do Uruguai, Argentina e México. Ao contrário, apenas observações pessoais e pitorescos relatos populares sustentam a afirmação de que houve redução na intensidade das trovoadas.

Ao tratar das “Causas da diminuição das águas e seus efeitos”,24 Barbosa Rodrigues novamente insiste na tese da revolução geológica, reforçando os argumentos apresentados no Prólogo: solo seco, modificação dos componentes terrosos devido à seca, questões relativas à cobertura vegetal, etc. Como um cientista típico do Novecentos, distan-cia-se mais de sua área ao tecer comentários sobre as doenças, as desinfecções e os preceitos higiênicos recém-adotados. Há certa ironia em algumas afirmativas, mas, cuidadosamente, afirma que a prática ainda não comprovou a teoria dos microorganismos. Divaga sobre doenças, mortes, limpeza pública, emanações telúricas (diminuiriam com o aumento de água no subsolo). Afirma, ressalvando que não é médico, que as epidemias estão relacionadas à desaparição das águas.

Por fim, trata em separado da “Diminuição dos mananciais da capital”,25 citando vários rios que hoje não existem mais ou estão reduzidos a filetes, e insiste em suas hipóteses para explicar a causa da redução do volume de água. Na “Adenda” ao trabalho escrito em 1904, mas só publicado em 1909, transcreve e comenta cartas e matérias publicadas em jornais sobre o mesmo tema.

Barbosa Rodrigues não estava na vanguarda da ciência de seu tempo, conforme algumas considerações deste trabalho. Relutava em reconhecer a ação patogênica de microorganismos e quais espécies animais atuavam como vetores na transmissão de doenças. Mas estava certo em defender a mata ciliar.

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Pic nic no Silvestre (RJ): participantes do evento de 1905 e convidados

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Conclusão

Ao serem comparadas as características do primeiro evento latino-americano realizado no Rio de Janeiro com as dos eventos recentes organizados pelas associações internacionais de pesquisadores, algumas generalizações a respeito dos congressos científicos podem ser feitas, inclusive da história da ciência. Enquanto a especialização e a profissionalização substituíram a multiplicidade de temas e a profusão de participantes com interesses muito distintos, muitas áreas mantêm a tradição de organizar um grande congresso internacional a cada quadriênio, na cidade eleita na reunião anterior, em que é também escolhida a futura comissão organizadora. Algumas instituições de pesquisa igualmente conseguiram firmar a tradição de organizar colóquios regulares, sempre na mesma cidade, para os quais atraem a participação de importantes pesquisadores estrangeiros. Em ambas, a ocasião é propícia para os organiza-dores e os convidados especiais acumularem capital científico, tal como Barbosa Rodrigues conseguiu amealhar na 2ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano (Montevidéu) e reproduzir na 3ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano (Rio de Janeiro).

O ritual científico e a forma de organização permanecem praticamente inalterados, muito embora esteja mais rarefeita a presença de representantes do Estado e sejam mais restritas as solenidades para projeção do potencial do país anfitrião. Se, na transição para o século XX, a produção de conhecimento nos países da América Latina e Caribe se encontrava em um patamar muito distante da Europa, onde o desenvolvimento do capitalismo havia promovido profundas mudanças econômicas e sociais, trazendo com elas a crença no valor da ciência e da tecnologia, a distância encurtou. O apoio do Estado, por intermédio de agências de fomento, contribuiu para aumentar de maneira surpreen-dente o número de congressos, de pesquisadores e o que mais importa: a produção científica. A ciência, vista como parte da cultura nacional, tornou-se um eficiente instrumento de política externa e de propaganda dos países, tal como o barão do Rio Branco experimentou diretamente em 1905.

A leitura do Relatorio Geral da Terceira Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano26 estimula a reflexão sobre o desenvolvimento da ciência e da tecnologia ao longo de um século de história, notadamente ao observar as permanências e as mudanças. O documento testemunha como a ciência era produzida, aplicada e considerada na so-ciedade brasileira do início do século XX. Inscritas na historicidade das condições de produção, transmissão e recepção do conhecimento científico no Brasil e na América Latina, as informações contidas nos doze volumes dos anais deixam evidentes a marca de celebração e o esforço político para enfrentar problemas comuns e de integração regional, o que permite conferir ao evento uma duplicidade de caráter: científico e político.

Um exemplo da atualidade de temas abordados em 1905 é a contribuição de Barbosa Rodrigues sobre a diminui-ção da água no Brasil. Mas, enquanto ele defendia a necessidade de preservação de uma faixa de mata ciliar de 200 metros, para proteger o solo e evitar a diminuição das chuvas e mananciais, o Ministério do Meio Ambiente, ainda hoje, enfrenta resistências para fixar a largura mínima de 30 metros, apesar de várias evidências científicas que comprovam a redução vertiginosa do volume de água potável na Terra. As advertências do botânico ao governo do presidente da República Francisco de Paula Rodrigues Alves continuam ignoradas pelas autoridades e maioria da população, inclusive do Rio de Janeiro e arredores.

Notas e referências bibliográficas

Ana Maria Ribeiro de Andrade é pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCTI. E-mail: [email protected]

1 Questões centrais sobre o evento de 1905 foram desenvolvidas anteriormente em: ANDRADE, Ana M. Ribeiro de. O Congresso sob muitos ângulos. In: ANDRADE, Ana M. Ribeiro de. (Org.) A Terceira Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano: ciência e política. Brasília/ Rio de Janeiro: CGEE/ MAST, 2002, p. 21-57. [Inclui CD-ROM.] ; ANDRADE, Ana M. Ribeiro de; SUPPO, Hugo Rogélio. O significado do Congresso. In: ANDRADE, Ana M. Ribeiro de. (Org.) A Terceira Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano: ciência e política. Brasília/ Rio de Janeiro: CGEE/ MAST, 2002, p. 59-126. [Inclui

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CD-ROM.]; SUPPO, Hugo Rogélio. Ciência e relações internacionais. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1 [nova série], p. 6-20, jan./jun. 2003.

2 Há um exemplar desse trabalho na biblioteca do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

3 SCHROEDDER-GUDEHUS, Brigitte. Avant-propos. Les relations internationales (Les congrès scientifiques internationaux), Paris, n. 62, verão 1990.

4 Entre os diversos trabalhos sobre o tema, ver: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições Universais. Espetáculos da modernidade do século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997.

5 Sobre a participação do Brasil na Exposição de Paris de 1889, ver: HEIZER, Alda. Observar o céu e medir a Terra. Instrumentos científicos e a participação do Império do Brasil na Exposição de Paris de 1889, 2005. Tese (Doutorado em Ciências) , IGE, Unicamp, Campinas.

6 Nos anais ou Relatorio Geral, e neste trabalho, a 3ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano é também designada 3º Congresso e Congresso de 1905.

7 Ver em especial: REUNIÃO DO CONGRESSO SCIENTIFICO LATINO-AMERICANO, 3, 1905, Rio de Janeiro. Relatorio Geral: trabalhos preliminares e inauguração do congresso. Organizado pelo Dr. Antonio de Paula Freitas. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1906, tomo I, 206 p. Idem. Actos solemnes, visitas e excursões. Organizado por Américo W. Brazil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1909, tomo VIII, 183 p. il.

8 Tema de trabalho de Barbosa Rodrigues.

9 Constatou-se que a maioria dos pontos correspondia a temas de estudo dos organizadores.

10 REUNIÃO DO CONGRESSO SCIENTIFICO LATINO-AMERICANO, 3, 1905, Rio de Janeiro. 2º Boletim. Trabalhos preparatórios até 31 de dezembro de 1904. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905, p. 41-42.

11 Idem. Relatorio Geral: actas e memorias referentes ás secções de Pedagogia, Anthropologia, Agronomia e Zootechnia. Organizado pelo Dr. Henrique Guedes de Mello. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1909, tomo VI, p. 121-136.

12 Há imprecisões nas fontes consultadas, tais como entre os Boletins dos trabalhos preparatórios e as informações publicadas, posteriormente, nos anais do evento. Todos os volumes do Relatorio Geral estão no CD-ROM que acompanha ANDRADE (Org.), 2002. Ver: ANDRADE, Ana M. Ribeiro de; FERRÃO, Luiz Felipe (Coord.). 3ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano. ed. fac-sim. Brasília/ Rio de Janeiro: CGEE/ MAST, 2002. CD-ROM.

13 Foi designado pela Comissão Diretora membro suplente da subcomissão de Medicina Pública, porém não participou das atividades. Mesmo hoje, cientistas renomados são incluídos nas comissões científicas para sobrevalorizar o evento.

14 Ver: ANDRADE; SUPPO. Op. cit., 2002, p. 73.

15 Durante o Império, o monarquista marquês de Paranaguá, João Lustosa da Cunha Paranaguá, ocupou vários cargos políticos: senador, ministro das Relações Exteriores e presidente de diversas províncias.

16 REUNIÃO DO CONGRESSO SCIENTIFICO LATINO-AMERICANO, 3, 1905, Rio de Janeiro. 1o Boletim. Trabalhos Preparatórios até 31 de dezembro de 1903. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1904.

17 idem. 2o Boletim. Trabalhos Preparatórios até 31 de dezembro de 1904. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905. p. 33-36.

18 idem. Relatorio Geral: trabalhos das secções do congresso de Sciencias Físicas e Naturais. Organizado pelo Dr. Henrique Guedes de Mello. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1909, tomo IIIA, 550 p. il.

19 Ibid., p. 153-316.

20 Ibid., p. 175-197.

21 Ibid., p. 197-211.

22 Ibid., p. 211-260.

23 Ibid., p. 212.

24 Ibid., p. 261-280.

25 Ibid., p. 280-295.

26 ANDRADE; FERRÃO. Op. cit.[2002, CD-ROM].

[ Artigo recebido em 05/2010 | Aceito em 07/2010 ]

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13 Os trabalhos serão submetidos a dois especialistas para parecer. No caso de divergência entre os dois pareceristas, o trabalho será enviado a um terceiro consultor.

14 O editor reserva-se o direito de introduzir alterações na redação e apre-sentação dos originais, visando a manter a uniformidade e a qualidade da revista, respeitando o estilo e as opiniões dos autores.

15 Cabe ao Conselho Editorial a decisão final referente à oportunidade da pu-blicação das contribuições recebidas.

16 As editoras devem encaminhar os livros para serem resenhados para o editor e a obra será encaminhada para especialista do tema.

17 Normatização das notas cf. NBR6023: SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico: subtítulo não itálico. Tradução. edição, Cidade: Editora, ano. p. x-y.SOBRENOME, Nome. Título do capítulo ou parte do livro. In: SOBRENOME, Nome do organizador (Org.). Título do livro em itálico: subtítulo não itálico. Tra-dução, edição, Cidade: Editora, ano, p. x-y.SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico. Cidade, v., n., p. x–y, mês ano.SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico: subtítulo não itálico. Tradução. edição, Cidade: Editora, ano. p. x-y.SOBRENOME, Nome. Título do capítulo ou parte do livro. In: SOBRENOME, Nome do organizador (Org.). Título do livro em itálico: subtítulo não itálico. Tradução, edição, Cidade: Editora, ano, p. x-y.SOBRENOME, Nome. Título do artigo.Título do periódico em itálico. Cidade: Editora, vol., fascículo, p. x-y, mês e ano.

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Impresso no Rio de Janeiro em setembro de 2012

Tiragem: 1.000 exemplares

DIRETORIA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA - 2010-2012

Presidente Olival Freire| UFBA

10 Vice-presidente Ivan Marques da Costa| NCE/HCTE-UFRJ

20 Vice-presidente Betania Figueiredo| UFMG

Secretária-geral Heloisa Bertol Domingues| MAST

10 Secretário Marcia Barros e Silva| USP

Tesoureiro Simone Petraglia Kropf | COC/FIOCRUZ

20 Tesoureiro Nelson Rodrigues Sanjad | MPEG

CONSELHO DELIBERATIVO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA

Conselheiros 2010-2012

Alda Heizer | Jardim Botanico/RJ

José Jerônimo de Alencar Alves | UFPA

Luiz Otavio Ferreira | COC/FIOCRUZ

Maria Amélia Mascarenhas Dantes | USP

Marta de Almeida | MAST

Sérgio Nobre | UNESP/Rio Claro

Silvia Figueirôa | IG/UNICAMP

Conselheiros 2011-2013

Amilcar Baiardi | UFRB

Ana Paula Bispo da Silva | UEPB

Gildo Magalhães dos Santos | USP

Gustavo Andrés Caponi | UFSC

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins | PUC-SP

Magali Romero Sá | COC/FIOCRUZ

Rita Cássia Marques | UFMG

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Formato: 21 cm x 28 cm

Mancha: 16,3cm x 23,4cm

Tipologia: Zurich Condensed 11/14

Papel: Couché fosco 115g/m2 (miolo) / Cartão Supremo 250g/m2 (capa)

Impressão: Sermograf

Volume 5, Suplemento: 2012

Leiatambém:

Disponíveis em http://www.sbhc.org.br/revistahistoria/public

2012, Vol. 5 n. 1 2011, Vol. 4 n. 1 2011, Vol. 4 n. 2

2010, Vol. 3 n. 1 2010, Vol. 3 n. 2 2009, Vol. 3 n. 1

2009, Vol. 3 n. 2 2008, Vol. 2 n. 1 2008, Vol. 2 n. 2

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