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Revista Brasileira de História da Educação Respeite o direito autoral Reprodução não autorizada é crime

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Revista Brasileira deHistória da Educação

Respeite o direito autoralReprodução não autorizada é crime

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Revista

Conselho DiretorDermeval Saviani (UNICAMP); Marta Maria Chagasde Carvalho (PUC-SP); Ana Waleska Pollo CamposMendonça (PUC-Rio); Libânia Nacif Xavier (UFRJ).

Comissão EditorialJosé Gonçalves Gondra (UERJ); Marcos Cezar deFreitas (PUC-SP); Maria Lúcia Spedo Hilsdorf (USP);Maurilane de Sousa Biccas (USP).Secretaria – Maria Cristina Moreira da Silva

Conselho Consultivo

Membros nacionais:Álvaro Albuquerque (UFAC); Ana Chrystina VenâncioMignot (UERJ); Ana Maria Casassanta Peixoto (SED-MG); Clarice Nunes (UFF e UNESA); Décio Gatti Jr.(UFU e Centro Universitário do Triângulo); DeniceB. Catani (USP); Ester Buffa (UFSCAR); Gilberto LuizAlves (UEMS); Jane Soares de Almeida (UNESP); JoséSilvério Baia Horta (UFRJ); Luciano Mendes de Fa-ria Filho (UFMG); Lúcio Kreutz (UNISINOS); MariaArisnete Câmara de Moraes (UFRN); Maria deLourdes de A. Fávero (UFRJ); Maria do AmparoBorges Ferro (UFPI); Maria Helena Camara Bastos(PUCRS); Maria Stephanou (UFRGS); Marta Mariade Araújo (UFRN); Paolo Nosella (UFSCAR).

Membros internacionais:Anne-Marie Chartier (França); António Nóvoa (Por-tugal); Antonio Viñao Frago (Espanha); DarioRagazzini (Itália); David Hamilton (Suécia); NicolásCruz (Chile); Roberto Rodriguez (México); RogérioFernandes (Portugal); Silvina Gvirtz (Argentina);Thérèse Hamel (Canadá).

Revista Brasileira de História da EducaçãoPublicação semestral da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE

COMERCIALIZAÇÃO

Editora Autores AssociadosAv. Albino J. B. de Oliveira, 901CEP 13084-008 – Barão Geraldo

Campinas (SP)Pabx/Fax: (19) 3289-5930

e-mail: [email protected]

Sociedade Brasileira de História daEducação – SBHE

A Sociedade Brasileira de História da Educação(SBHE), fundada em 28 de setembro de 1999, é umasociedade civil sem fins lucrativos, pessoa jurídicade direito privado. Tem como objetivos congregarprofissionais brasileiros que realizam atividades depesquisa e/ou docência em História da Educação eestimular estudos interdisciplinares, promovendo in-tercâmbios com entidades congêneres nacionais einternacionais e especialistas de áreas afins. É filiadaà ISCHE (International Standing Conference for theHistory of Education), a Associação Internacionalde História da Educação.

Diretoria NacionalPresidente: Diana Gonçalves Vidal (USP)Vice-presidente: Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG)Secretária: Libânia Xavier (UFRJ)Tesoureiro: Jorge Luiz da Cunha (UFSM)

Diretores RegionaisNorte:Titular: Maria das Graças Sá Peixoto Pinheiro (UFAM),Suplente: Andréa Lopes Dantas (UFAC)Nordeste:Titular: Ana Maria de Oliveira Galvão (UFPE)Suplente: Jorge Carvalho do Nascimento (UFSE)Centro-Oeste:Titular: Maria de Araújo Nepomuceno (UCG)Suplente: Regina Tereza Cestari de Oliveira (UFMS)Sudeste:Titular: José Carlos de Souza Araújo (UFU)Suplente: Rosa Fátima de Souza (UNESP)Sul:Titular: Maria Elisabeth Blanck Miguel (PUC-PR)Suplente: Flávia Werle (UNISINOS)

SecretariaRev. Bras. de História da EducaçãoFaculdade de EducaçãoUniversidade de São PauloAv. da Universidade, 308 – Bloco A – sala 219CEP 05508-900 – São Paulo-SPTel.: (11) 3091-3195 – ramal 282E-mail: [email protected]

Indexada em/Indexed in:BBE – Bibliografia Brasileira de Educação (Brasil, Inep)EDUBASE (Brasil, FE/UNICAMP)

Versão on-line/version online:http://www.sbhe.org.br/

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Revista Brasileira deHISTÓRIAEDUCAÇÃO

SBHESociedade Brasileira de História da Educação

da

julho/dezembro 2005 no 10

ISSN 1519-5902

A publicação deste no 10 da Revista Brasileira de História daEducação contou com o apoio financeiro do Conselho Nacionalde Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – EntidadeGovernamental Brasileira Promotora do Desenvolvimento Científicoe Tecnológico.

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EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA.Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira

Av. Albino J. B. de Oliveira, 901Barão Geraldo – CEP 13084-008Campinas-SP – Pabx/Fax: (19) 3289-5930e-mail: [email protected]álogo on-line: www.autoresassociados.com.br

Conselho Editorial “Prof. Casemiro dos Reis Filho”Bernardete A. GattiCarlos Roberto Jamil CuryDermeval SavianiGilberta S. de M. JannuzziMaria Aparecida MottaWalter E. Garcia

Diretor ExecutivoFlávio Baldy dos Reis

Coordenadora EditorialÉrica Bombardi

Assistente EditorialAline Marques

RevisãoEdson Estavarengo Jr.Rodrigo NascimentoLeo Agapyev de Andrade

Diagramação e ComposiçãoDPG Ltda.

Projeto Gráfico e CapaÉrica Bombardi

Arte-finalÉrica Bombardi

Impressão e AcabamentoGráfica Paym

Revista Brasileira de História da Educação

ISSN 1519-5902

1º NÚMERO – 2001Editora Autores Associados – Campinas-SP

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Sumário

CONTENTS 7

EDITORIAL 9

ARTIGOS

A Politicagem na instrução pública daAmazônica Imperial: combates à política d’aldeia 11Irma Rizzini

O carteiro e o educador: práticas polítcas na escrita epistolar 45Ana Chrystina Venâncio Mignot

DOSSIÊ

Arquivos escolares: desafios à prática e à pesquisa em história da educação

Apresentação 71Diana Gonçalves Vidal

Arquivos e educação: a construção da memória educativa 75Maria João Mogarro

Arquivos ou museus: qual o lugar dos acervos escolares? 101Jacy Machado Barletta

Reconstituindo arquivos escolares: a experiência do GEM/MT 123Elizabeth Madureira Siqueira

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O lugar do arquivo permanente dentro de um centro de memória escolar 153Iomar Barbosa Zaia

Arquivos escolares virtuais: considerações sobre uma prática de pesquisa 175Wagner Rodrigues Valente

Os arquivos escolares como fonte para a história da educação 193Nailda Marinho da Costa Bonato

RESENHA

História das Disciplinas Escolares no Brasil: contribuições para o debate 221Por Rita Cristina Lima Lages

ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES 229

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EDITORIAL 9

ARTICLES

The local Politics on the public introduction in the ImperialAmazon combats the aldeia´s politics 12Irma Rizzini

The mailman and the educator: political practices in epistolary writing 46Ana Chrystina Venancio Mignot

DOSSIER

SCHOOLS ARCHIVES: CHALENGES INRESEARCH IN HISTORY OF THE EDUCATION

Presentation 72Diana Gonçalves Vidal

Archives and education: the constitution of the educational memory 76Maria João Mogarro

Archives or museum: what place the school files? 102Jacy Machado Barletta

Reconstituing school archives: the experience of GEM/MT 124Elizabeth Madureira Siqueira

The place of permanent archives into the center of memory of the schooler 154Iomar Barbosa Zaia

Contents

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School archives virtues: considerations about a practice of research 176Wagner Rodrigues Valente

The school archives as a source for the history of the education 194Nailda Marinho da Costa Bonato

BOOK REVIEWS

History of School Subjects in Brazil: Contributions for the debate 221By Rita Cristina Lima Lages

GUIDES FOR AUTHORS 229

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Editorial

A Revista Brasileira de História da Educação chega ao seu décimonúmero e continuamos investindo em mudanças necessárias para o apri-moramento do seu projeto editorial e acadêmico qualificando nosso im-presso para os padrões nacionais e internacionais. Neste número foramincluídas as seguintes mudanças: a) na apresentação dos artigos passama figurar em seqüência, o título em português, resumo, o título em in-glês e o abstract; b) no final dos artigos, os leitores passam a ter infor-mações sobre os endereços para contato com os autores; c) ainda nofinal do texto ficam explícitas as datas de envio e aprovação e reformu-lação dos artigos, dossiê e resenhas.

Estamos ainda introduzindo novos procedimentos e instrumentosinternos para a gestão da revista junto aos autores e pareceristas, bus-cando assim melhorar a eficiência da comunicação, para isto foi criadoum novo e-mail: [email protected].

Investiremos no próximo trimestre na indexação da RBHE nas prin-cipais bases de dados da área da educação nacional e internacional. Pre-tendemos disponibilizar virtualmente na página da Sociedade Brasileirade História da Educação (SBHE) os dez números já editados e as edi-ções futuras, o que irá facilitar uma maior divulgação do nosso trabalhoe possibilitar o acesso da produção realizada a um público maior, tantono território nacional como também do exterior.

Reiteramos ainda o convite a todos os pesquisadores da historiogra-fia da educação brasileira para que continuem encaminhando de manei-ra contínua e sistemática artigos, propostas de traduções, participandoda organização de dossiês temáticos e etc.

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O editorial deste número comparece com dois artigos bastante insti-gantes e um dossiê composto por cinco artigos sobre o tema: arquivos eeducação: a constituição da memória educativa. Figura também nestenúmero uma resenha.

Comissão Editorial

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A politicagem na instruçãopública da Amazônia imperial

combates à política d’aldeia

Irma Rizzin*

* Doutora em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); profes-sora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)/(bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ).

Resumo:Neste artigo a autora analisa os conflitos gerados pelas práticas do patronato e da politica-gem na instrução pública primária da Amazônia brasileira (1870-1889), especialmente nointerior do Pará e do Amazonas. Percebe-se, pelos discursos oficiais e denúncias nos jor-nais, de pais e moradores das pequenas localidades, que a interferência da política eleitoralna educação atingia diretamente o cotidiano escolar. Embora diversas iniciativas regula-mentares tenham sido tomadas ao longo do Segundo Reinado, de forma a preservar aescola pública da sanha clientelista das autoridades, o uso politiqueiro da instrução persis-tiu até o final do Império, pejorativamente identificado à política d’aldeia, conforme des-tacam os relatórios de diretores da instrução e visitadores escolares.AMAZÔNIA; AMAZONAS; PARÁ; HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; EDUCAÇÃOPÚBLICA; CLIENTELISMO.

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Abstract:In this article the author analyses the conflicts that resulted from the practices of thelocal politics in the primary education system at Brazilian Amazon (1870-1889),particularly in the heart of Pará and Amazonas. It becomes clear from the officialdiscourses and from the complaints by parents and inhabitants from small localities,published in newspapers, that the local election politics interfered directly in the dailyschool life. Despite the fact that several regulatory initiatives took place during the 19th

century, in an attempt to protect the public school system from the clientalism of theBrazilian authorities, the negative influence of such local politics remained until theend of the Imperial period, as highlighted by the reports issued by the school principalsand inspectors.AMAZON; AMAZONAS; PARÁ; HISTORY OF EDUCATION; PUBLIC EDUCATION;LOCAL POLITICS.

The local Politics on the publicintroduction in the Imperial Amazon

combats the aldeia´s politics

Irma Rizzin*

* Doutora em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); profes-sora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)/(bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ).

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a politicagem na instrução pública da amazônia imperial 13

1. A Constituição, Belém, 8 de agosto de 1882 (Carta de um morador da Vila deMuaná, Pará, de 16 de julho de 1882).

Introdução

Seja um bom capanga eleitoral,será também um bom professor!1

A constituição, 8 ago. 1882

Ao longo do Segundo Reinado, o movimento de regulamentação dainstituição escolar, de uniformização e profissionalização da práticadocente, intensificou-se nas províncias do Pará e do Amazonas. O pro-cesso de afirmação da escola elementar, nas capitais e no interior, mar-cado pelos conflitos entre governo, população e professorado, sofreu aingerência direta dos interesses políticos, eleitorais e do clientelismo doEstado. Este artigo debruça-se sobre as tensões geradas por esse proces-so, tornadas públicas por meio dos intensos debates propiciados pelaimprensa local.

Os jornais locais mostraram o quanto a imprensa estava comprome-tida com a educação popular na região, analisando, combatendo, pro-pondo reformas ou enaltecendo as suas instituições educacionais. Umexemplo refere-se às colunas “a pedidos” ou “solicitados” dos jornaisparaenses, as quais retratavam os conflitos envolvendo delegados lite-rários, professores, professoras e seus cônjuges, alunos e pais. AldrinMoura de Figueiredo (s.d., p. 3), muito propriamente, observa que astranscrições das cartas vindas de paragens distantes nas colunas das ga-zetas paraenses diminuíam as excessivas distâncias da região amazôni-ca. Os contatos entre o interior e a capital eram amplos, quase sempreestabelecidos pelas relações políticas e partidárias, amparadas pelos la-ços familiares.

Vários jornais do Pará e do Amazonas do período foram consulta-dos, no entanto, privilegiamos para análise as cartas das gazetas paraensesA Província do Pará e A Constituição, pela atenção dada ao tema dainstrução pública e, especialmente, pela publicação das cartas e abaixo-assinados de pais e moradores a respeito das escolas públicas de seus

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filhos e protegidos. Sendo o primeiro simpatizante do partido liberal, eo segundo, órgão do partido conservador, não é difícil imaginar que aabordagem das ações educacionais na província estivesse condicionadaàs posições políticas de cada folha. As cartas refletem esse posiciona-mento, através do rodízio de denúncias contra a administração pública,de acordo com a situação dominante: liberais no poder, cartas e artigosacusatórios publicados n’A Constituição e vice-versa2.

É impossível e até desnecessário entrar no mérito do que era verda-deiro ou falso; a publicação das cartas indica que tais ocorrências, algu-mas relacionadas a questões íntimas das vidas desses atores, eram pos-síveis e pertenciam à construção da experiência escolar na província. Ofato de tornar público os conflitos do cotidiano escolar sugere que asvivências e as questões pertinentes à instrução pública eram de interes-se de um grupo mais extenso do que o dos representantes do Estado. OPará tinha um corpo significativo de escolas, alunos, docentes e inspe-tores; as relações entre estes níveis extrapolavam o interesse da Direto-ria de Instrução, pois repercutiam nas famílias e fomentavam os emba-tes partidários, quando a divulgação das denúncias tinha o claro propósitode demonstrar a decadência da instrução promovida pelo governoopositor. Os jornais amazonenses não recuaram ante o tema da instru-ção e da educação do povo, foco de discussões em todo o Império. En-tretanto, os paraenses cederam espaço à crônica escolar de uma formapouco freqüente na imprensa da província vizinha.

Em todo o Império brasileiro, as províncias lutavam por firmar omodelo escolar e fomentar, entre a população, a aceitação e até a de-manda da educação oferecida pelo Estado. Na Amazônia, a interioriza-ção da escola pública tornou-se uma meta dos governos, sobretudo, apartir da década de 1870. O crescimento do número de escolas masculi-nas e femininas nas duas últimas décadas do Império é notório na re-gião, nas capitais, cidades, vilas e povoados do interior. Em se tratandode uma extensa área geográfica, que ocupava cerca da metade do terri-

2. O jornal A Constituição foi fundado em 1874 e A Província do Pará em 1876, nacidade de Belém.

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tório brasileiro, com baixíssima densidade populacional, o esforço dedisseminar a instrução popular é digno de nota. Outras característicaspopulacionais impunham dificuldades ao projeto educacional, como adiversidade étnica e as atividades a que as famílias se dedicavam, obri-gando-as a uma mobilidade desfavorável à continuidade exigida pelaformação escolar.

A despeito dos obstáculos exaustivamente descritos pelas autorida-des da instrução pública, a população do interior não necessariamenterejeitou o esforço educacional dos governos. Pais de famílias e demaismoradores dos povoados, sobretudo no Pará, absorveram a escola comoum projeto para seus filhos, cobrando dos poderes públicos tudo o queentendiam ser necessário para a plena formatação da escola.

A escola pública da Amazônia imperial é uma instituição que des-bravou os desertos da região, instalando-se nos locais onde houvesse 10ou 15 crianças para estudar. Nascia enraizada na pequena localidade,pois geralmente a proposta de sua criação provinha do próprio local,por professores ou moradores. Embora fosse uma instituição do Estadono meio da selva, devendo atender às normas e exigências regulamenta-res, estava imiscuída na política local. Mas não ignorou as demandas enecessidades dos pais, correspondendo, por exemplo, à necessidade demobilidade acarretada pelas atividades laborais de muitos, nos casosem que escolas eram transferidas de local em determinado período doano.

Nas décadas de 1870 e de 1880, o debate relativo à educação dopovo expandiu-se do âmbito governamental, envolvendo a sociedadeletrada de Belém e Manaus, sob a influência das idéias liberais e sob odomínio das paixões partidárias. A educação tornava-se uma prioridadepara liberais e conservadores. Atentos às grandes questões do Séculodas Luzes, governantes e governados estavam com os pés fincados naterra local, utilizando intensamente os recursos oferecidos pelas insti-tuições educacionais em benefício dos mecanismos eleitorais. As de-missões e novas admissões de professores e funcionários das institui-ções educacionais públicas, nos períodos de mudança de gabinete,incendiavam as discussões nos jornais de Belém e Manaus. Os diretoresda instrução pública não se cansaram de repudiar o envolvimento de

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professores no processo eleitoral das cidades, vilas e povoados do inte-rior. Pais de alunos e moradores das pequenas localidades do interiordas províncias forçaram a abertura de nichos de participação nas ques-tões da instrução oficial, através das cartas aos jornais e às diretorias deinstrução pública. Para o “bem” ou para o “mal”, a educação do povoalcançou uma posição de destaque na região, no âmbito da população,do Estado e da Igreja.

A política d’aldeia foi o grande vilão da instrução popular do Pará– raro é o relatório provincial que não a menciona. Como veremos aseguir, através da imprensa é possível perceber como essa política agia,como interferia no cotidiano na escola e como os familiares, tutores eprotetores dos alunos reagiam a essa força com que os setores públicose privados, ao mesmo tempo em que se empenhavam numa luta de re-sistência, eram atraídos por ela. Atribuía-se o fazer politica d’aldeia oude botocudos ao adversário que, no âmbito da instrução pública, permi-tia a manutenção de práticas abusivas3. O termo remetia-se tanto às ca-racterísticas das pequenas localidades quanto à vida selvagem de partedos habitantes da província, que povoavam o imaginário das elites ilus-tradas de temores de serem confundidos com seres tidos por tão poucocivilizados. A expressão jocosa, usada no Senado pelo conselheiroMartinho Campos, quando chamou os paraenses de cidadãos de arco eflecha, fora rejeitada pela imprensa paraense, às vezes, de forma bem-humorada, como o fez o jornalista d’A Província do Pará ao comentar anotícia d’O Liberal do Pará, de que o frei Sebastiani quisera catequizaros paraenses no sermão dado na igreja de Nazareth, em Belém – “Oculpado [pela idéa de catechisar-nos] é quem nos chama de cidadãos dearco e flexa, sem comprehender o mal que póde causar-nos a pilherianos espiritos dos freis Sebastianis”4.

3. A Província do Pará, Belém, 23 de outubro de 1877. O termo foi empregado quan-do o jornal analisava o critério da freqüência mínima para o fechamento de escolas,o qual, não teria sido respeitado pelo governo paraense.

4. A Província do Pará, Belém, 11 de abril de 1885. O presidente do Amazonas JoséParanaguá, em carta ao Barão de Loreto, comenta o assunto (Manaus, carta de 18de janeiro de 1884. Arquivo Nacional, GF-Coleção Barão de Loreto).

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Entre pais, chefes de família e mandões d’aldeia:imagens e usos da escola

As três categorias citadas nesse título são referendadas na docu-mentação em relação às povoações e escolas do interior. Dificilmentesão encontradas referências às famílias das capitais, e as lideranças en-tre os moradores são sempre relativas às cidades, vilas e povoações afas-tadas do centro do poder público alocado em Belém e Manaus. Sãocategorias extraídas do senso comum, que circulavam nos diversos tex-tos relativos à educação, portanto, seus autores não se preocuparam emdescrevê-las com maior acuidade. Pais e chefes de família são tratadosaqui como duas categorias diferenciadas, porque pudemos perceber essaforma de uso nos textos. Os pais são geralmente lembrados quando setenta expor a indiferença, a repugnância e a ignorância manifestadasquando se trata da instrução dos filhos, portanto a categoria surge carre-gada de negatividade. Os chefes ou pais de família, em sentido positivo,são lembrados como vítimas da incúria de professores e inspetores es-colares, basicamente citados nas cartas de moradores publicadas nosjornais. O termo impõe uma respeitabilidade exigida pelos missivistasquando se sentem aviltados pela imoralidade ou incompetência dos exe-cutores da instrução. Os mandões são os chefes locais, sempre empre-gados pelos autores de forma pejorativa. Mandões podem ser os ho-mens mais ricos da localidade, porém geralmente estão relacionadosaos poderes do Estado, tais como, militares, representantes das câmarasmunicipais e juízes. Eles mandam na aldeia, outra referência negativaassociada aos pequenos núcleos populacionais, sem deixar de evocar ostraços indígenas dos modos de vida de grande parte da população.

A indiferença dos pais pela instrução dos filhos é uma das principaiscausas atribuídas ao “atraso da instrução” na região, em todo o SegundoReinado, especialmente no Amazonas. No período 1870-1889, os paisdo interior serão lembrados principalmente por esse descuido, explica-do pela “indiferença senão repugnancia pela instrucção da infância” noslugares distantes e pouco povoados. Já nos grandes povoados, habita-dos por uma “população mais desenvolvida pela educação”, haveriamaior recepção dos pais à instrução da infância, podendo-se ampliar o

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ensino público. Portanto, para o diretor da instrução amazonense, a edu-cação oferecida deveria ser diferenciada, conforme as “necessidades dapopulação”, posição defendida por outros administradores. No entanto,na hora do planejamento, as propostas iam de encontro às percepçõesdos gestores sobre as necessidades do povo. Assim, o diretor RamosFerreira propôs que o ensino nas escolas das pequenas localidades doAmazonas se restringisse ao estritamente necessário, priorizando-se oensino moral e religioso5. A ênfase nesse tipo de formação denota bemqual era a imagem das elites letradas sobre a população que vivia “dis-seminada” na região. No relatório do ano seguinte (1872), Ramos Ferreiravolta ao tema após analisar o estado da instrução no Amazonas, respal-dado pelas visitas feitas a escolas do interior. Dentre as causas que con-corriam para retardar o desenvolvimento da instrução pública na pro-víncia, a primeira arrolada foi a “indifferença ou repugnância dapopulação pela instrucção e educação da infância”6. Nesse ponto, o di-retor acusa a ignorância dos pais, mas não se furta de expor um proble-ma interno à educação oferecida pelas escolas, “a repugancia [provém]da demora prolongada dos meninos nas escolas, de onde sahem no fimde 8 ou mais annos com pouco ou nenhum resultado [Pará, 25 mar.1875, anexo 3, p. 2].

A permanência de oito anos na escola é surpreendente quando estáreferindo-se a pais que não dariam importância à educação oferecida

5. Relatório da Diretoria Geral da Instrução Pública da Província do Amazonas. EmAmazonas, 25 mar. 1871, anexo IV, pp. 2-4.

6. Relatório da Diretoria Geral da Instrução Pública da Província do Amazonas. EmAmazonas, 25 mar. 1872, anexo 3, p. 2. Nesse período, os conceitos de instrução eeducação diferenciam-se e tornam-se objetivos do ensino público, como mostrouAlessandra Martinez (1997) ao analisar a instrução na corte. O diretor amazonensepreocupou-se em distinguir os dois objetivos ao discorrer sobre o estado da instru-ção na província. Para Ferreira, “A instrucção tem por objetcto e fim principal odesenvolvimento da intelligencia e a acquisição de copia d’idéas que sirvão paraalcançar novos conhecimentos no decurso da vida”, e, “A educação tem por objectoe fim principal os costumes, a repressão dos máos instintos e o desenvolvimentodas qualidades nobres do coração, que, habituando o homem á incessante absten-ção do mal e á pratica constante do bem, o habilitão para ser util, no decurso davida, á si e á humanidade de que faz parte” (Amazonas, 25 mar. 1872. grifos meus).

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pelo Estado. Pela documentação disponível, não é possível resgatar otempo de permanência das crianças nas escolas, nem tampouco os re-sultados do ensino, a não ser pelos exames finais dos quais poucos obti-nham resultado favorável, dificuldade vivida por outras províncias.Quanto aos anos de estudos, os relatórios informam que a continuidadedos estudos primários de 2o grau não despertava o interesse da popula-ção, no caso do Pará. Tal aspecto não pôde ser checado para o Amazo-nas, já que os relatórios oficiais desta província não empregavam a cate-goria tipo ou nível da escola na estatística escolar.

Uma notícia publicada em 1873, no jornal da diocese do Pará, ABoa Nova, evidencia como a noção da importância formadora da escolapodia ser apropriada por um chefe local, levando-o a “aconselhar” ospais a mandarem filhos e filhas às escolas. Segundo o jornal, o tenente-coronel residente no Mosqueiro conseguiu vencer a repugnância demuitos pais, tornando a freqüência escolar digna de nota para uma po-pulação tão diminuta. O mandão d’aldeia é transformado pelo olharreligioso no anjo tutelar desse povo, sobretudo por ter estabelecido um“cordão sanitário” no local contra as “perniciosas e subversivas doutri-nas” divulgadas pelas idéias maçônicas da folha O Pelicano. O militarhospedava o bispo do Pará, dom Antonio de Macedo Costa, que buscoua tranqüilidade da bucólica ilha para cuidar da saúde e de seu fiel reba-nho, tendo rezado missa e explicado o evangelho de modo a ser com-preendido pelo povo da freguesia7.

Ao discorrer sobre as casas escolares na capital, o presidente doPará volta-se aos pais, indicando ter expectativas mais amplas com rela-ção ao pai de família, esperando dele não só o reconhecimento da utili-dade de instruir o filho, mas que tomasse “contas ao mestre, sendo oprincipal fiscal e cooperador da honrosa tarefa de desenvolver ainstrucção” – “não é conveniente esperar tudo do Estado” –, defendeVicente de Azevedo, preocupado tanto com a fiscalização das escolas e

7. A Boa Nova, Belém, 1 de outubro de 1873. Este foi um período de debates eferves-centes a respeito das querelas entre os maçons e os bispos do Pará e de Olinda,personagens da chamada questão religiosa.

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dos professores quanto com a precariedade do ensino particular,irrelevante numericamente no Pará e no Amazonas em meados da déca-da de 1870, e muito inferior ao ensino primário público até o final doImpério8.

A fiscalização das escolas pelos pais de família, tornando-os aliadosdos governos na causa da instrução do povo, é defendida em mais doisrelatórios oficiais da década de 1880. O diretor da instrução no Pará,insatisfeito com as lutas políticas que comprometiam a fiscalização dosinspetores permanentes, propõe o incremento da “inspeção amovíveldas escolas”, em que os “pais de família” teriam uma participação estra-tégica ao relatarem suas queixas e votos, a serem registrados no relató-rio do visitador e publicados no jornal oficial. As seções oficiais dosjornais, em que eram publicados os “despachos da presidência”, nosadvertem que essa participação ocorria por iniciativa dos próprios pais,através das representações contra professores, cabendo ao governo ca-pitalizar essa verve fiscalizadora das famílias. “As escolas, disse eu,são o direito das populações”, proclamou o diretor da instrução paraenseem 1885, apresentando uma série de propostas para ampliar o númerode escolas e garantir a freqüência dos alunos, chegando a propor que emcada localidade onde houvesse a aglomeração permanente de 120 habi-tantes fosse instalada uma escola elementar para cada sexo e que onderesidisse 300 indivíduos, uma efetiva, também para cada sexo9.

A extinção de escolas com menos de 20 alunos, do interior do Ama-zonas em 1877, sob a administração de Pereira da Silva, levou os mora-dores de Badajós a dirigirem um abaixo-assinado ao governo pedindo orestabelecimento das escolas masculina e feminina (Amazonas, 1878,p. 8, 25 ago. 1878, p. 17). Esse tipo de reação das famílias e protetores

8. Pará, 15 de fevereiro de 1874, p. 18. José Verissimo (1892), diretor da instruçãoparaense em 1890, considerou excessivo e desnecessário o número de estabeleci-mentos particulares no Estado (34, sendo 15 internatos). Entretanto, comparadocom o ensino primário público (417 escolas, freqüência de 9.240 alunos), o ensinoprimário particular estava bem aquém (freqüência de 1.680 alunos).

9. Relatório da Diretoria Geral da Instrução Pública da Província do Pará. Em Pará,18 de abril de 1885, anexo A, pp.105-107.

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raramente é mencionado na documentação oficial, mas é um registroimportante que assinala que os pais não permaneceram impassíveis anteas políticas de criação e extinção de escolas adotadas pelos corpos dedeputados da Assembléia Provincial e pelos administradores. As cartase abaixo-assinados publicados nos jornais indicam esse pressuposto,embora não saibamos que pais eram esses, suas condições de vida eatividades laborais, posição na comunidade, nível de escolaridade, den-tre outras características. No relatório de 1879, o leitor é informado queo professor designado para a povoação de Badajós assumiu a cadeiraem abril do mesmo ano, mostrando que os abaixo-assinados repercu-tiam nas decisões governamentais (Pará, 28 ago. 1879, p. 36).

Pedidos de mudanças do local da escola também chegavam à Dire-toria da Instrução, conforme é relatado em 1875 pelo presidente do Pará.Os habitantes de vila Franca, acordados com os professores, solicitarame obtiveram autorização para alternar entre dois distritos o funciona-mento das escolas: de janeiro a junho, no 1o distrito, e de julho a dezem-bro, no 2o, conforme a “conveniencia dos ditos moradores e em aprovei-tamento dos alunos”. Outra mudança foi concedida à professora dafreguesia de Nossa Senhora do Carmo do Tocantins, que a pedido dosmoradores, passou para o lugar denominado São Benedito. As mudan-ças podiam estar relacionadas às atividades laborais das famílias, as quais,visando manter os filhos nas escolas, entraram em acordo com os pro-fessores e com a administração pública (Pará, 17 jan. 1879, p. 23).

No decorrer dos anos, a instrução primária, que tanto preocuparaseus defensores quanto aos meios de torná-la obrigatória, dá indícios deestar sendo incorporada pela população como um direito. É o que oindicam os pedidos ou abaixo-assinados requerendo a estatização deescolas primárias particulares, a criação de novas escolas e apresentan-do queixas de professores10.

10. A lei n. 1547 de 1883 previa no artigo 43 a subvenção pelo governo paraense àescola particular freqüentada por mais de 15 alunos, onde não houvesse escolapública ou subvencionada pela província, tendo direito a uma subvenção anual de400$, não podendo recusar a matrícula aos alunos que a procurassem. Na discus-são da lei pelos deputados provinciais, a opinião defendida pela maioria era a de

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O conselho diretor da instrução do Pará – criado para auxiliar osdiretores na avaliação das reclamações, pedidos etc. de professores, paise demais envolvidos no ramo – recebeu em 1885 um abaixo-assinadode moradores da povoação Jauacá pedindo que a escola particular aber-ta pelo professor com a freqüência de 18 alunos fosse considerada ele-mentar (pública). Outro abaixo-assinado é citado no relatório, agora parareclamar a respeito das faltas do professor elementar do lugar Tupinambá,solicitando que o mesmo “não continue a abandonar sua escola em pre-juízo do serviço da instrucção publica” (Pará, 25 mar. 1886, p. 23). Aofinal dos anos de 1880, os pedidos de criação de escolas provisóriaschegaram a incomodar a Diretoria da Instrução paraense pelo tom im-perioso e exigente dos solicitantes das mais longínquas localidades. Odiretor Americo Santa Rosa considerou muitos deles “desarrazoados”,pois implicariam abrir escolas por todos os pontos da província, fomen-tando uma demanda que o governo não teria como atender11.

Os abaixo-assinados, vindos das mais diversas localidades, eviden-ciam a crescente escolarização do Pará, decorrente não apenas de umapolítica de governo, mas instigada pela percepção da legitimidade doprocesso por uma parcela da população que passa a reivindicar a cria-ção de escolas e o compromisso do professorado com o ensino. JoséGondra e Daniel Lemos analisaram uma série de abaixo-assinados redi-gidos por moradores das diversas freguesias da cidade do Rio de Janei-ro entre 1869 e 1888, quase todas afastadas da corte, localizadas emáreas onde o ensino público se apresentava mais precário. Para os auto-res, as reivindicações de moradores, pais de família, comerciantes, en-tre outros, evidenciam que a escolarização não pode ser reduzida a ummovimento resultante de um projeto do Estado, sem considerar-se asdemandas de parte da população no sentido da extensão da rede escolar.

que a “confiança dos pais de família” era muito mais valiosa do que a da presidên-cia na escolha das escolas a se tornarem elementares através do subsídio estatal (AConstituição, Belém, 27 jul. 1883. Assembléia Legislativa da Província do Pará,Sessão ordinária em 11 de abril de 1883, 2a discussão do projeto n. 1547).

11. Relatório da Diretoria Geral da Instrução Pública da Província do Pará. Em: Pará27 ago. 1889, p. 33.

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Os atos da Diretoria da Instrução, interferindo diretamente nas es-colas à revelia dos interesses locais, acabavam por constituir-se fator demobilização dos chefes de família em favor dos professores. Um exem-plo contundente refere-se à reação dos pais de alunos que freqüentavama escola masculina de Soure, no Pará. O professor normalista, tendosido transferido para Quatipurú contra a sua vontade, conseguiu mobili-zar as lideranças locais a seu favor. O reclamante anexou ao recursointerposto ao governo vários documentos comprobatórios de sua com-petência e seriedade, incluindo atestados do presidente da Câmara Mu-nicipal de Soure e de alguns proprietários e comerciantes, cujos filhosestudavam na dita escola da vila (A província do Paraná, 5 e 6 dez.1885). A escola era freqüentada por crescido número de alunos, entre-tanto, o professor acionou apenas o testemunho dos homens cujas posi-ções na escala social teriam condições de legitimar o seu pedido.

Vimos, pela análise empreendida até o momento, vários pontos que,segundo os atores envolvidos na trama da instrução, emperravam aoperacionalização das metas oficiais e das expectativas dos beneficiáriosdo sistema. Entretanto, é o uso politiqueiro do serviço da instrução pú-blica o maior problema identificado por aqueles envolvidos direta ouindiretamente nas questões relativas à difusão do ensino nas províncias,especialmente no Pará.

Os combates ao patronato e à politicagemna instrução pública

Richard Graham (1997, p. 86), no estudo sobre Clientelismo e polí-tica no Brasil do século XIX, ressalta que os presidentes de provínciaexerciam um papel articulador do sistema clientelista entre as provín-cias e o governo central, com o objetivo de gerar dividendos eleitorais afavor do gabinete. O apadrinhamento constituía o principal instrumentode cooptação de partidários leais ao gabinete, levando os presidentes aintervir em numerosos assuntos, pequenos e grandes. Essa observação écorroborada pelas cartas de pais de família e moradores do interior, es-pecialmente do Pará, que preferiam remeter suas queixas e reivindica-

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ções relativas às escolas públicas diretamente ao presidente da provín-cia, para daí serem encaminhadas à diretoria de instrução. O professorconstituía alvo privilegiado das investidas dos reclamantes.

O professor era um agente importante na dinâmica do clientelismona instrução pública. Ora apresentado como acionador do patronato, oracomo vítima do partidarismo, ele era uma peça sensível às condiçõespolíticas do momento, podendo mover-se ou ser movimentada de acordocom o jogo político em ação. Enfatizaremos nesta análise, a ação doclientelismo na profissão docente, nos aspectos que intervinham direta-mente no cotidiano escolar, como a remoção, a demissão de professorese a nomeação de substitutos, nem sempre preparados para a função. Éimportante lembrar que as relações clientelísticas ocorriam por outrasvias, que não apenas a ingerência direta da administração provincial edas autoridades locais, tão repetidamente chamadas de os mandõesd´aldeia. As assembléias provinciais, sobretudo quando opositoras dosgovernos, podiam aprovar disposições movidas pelo clientelismo nãofavorável ao indicado pelos representantes governamentais. O deputadoliberal e anticlerical, Joaquim Cabral, condenou a medida proposta pelaassembléia paraense de maioria conservadora, em 1883, e presidida pelopolêmico cônego Siqueira Mendes12, de suprimir as cadeiras elementa-res de Cametá-Tapera e Pacajá e mandar dar gratificações a dois profes-sores particulares das localidades. Cabral viu na medida um anacronis-mo com relação à época, assim expressando a sua indignação: “Quandono seculo XIX uma Assemblea prejudica o ensino publico para protegera dous amigos politicos de um modo tão escandaloso, basta apontar ofacto, dispensam-se os commentarios” (A Constituição, 11 jun. 1883)13.

12. Manoel José de Siqueira Mendes nasceu na cidade de Cametá, Pará, em 1825. Erapresbítero secular, nomeado cônego da sé paraense. Foi lente de latim do Liceu deBelém, lente de teologia do seminário episcopal e fundou um colégio na capital, eoutro em Cametá. “Foi deputado provincial por várias vezes, deputado geral esenador do Império e administrou sua província por três vezes, como vice-presi-dente” (Blake, 1895, vol. VI, p. 30).

13. Assembléia Legislativa da Província do Pará. Discursos pronunciados na sessãoordinária em 3 de abril de 1883.

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A imprensa, liberal ou conservadora, utilizou todas as armas de com-bate a essa prática, acusada de ser o maior entrave existente durante de-senvolvimento da instrução popular. O combate à politicagem suscitavalutas apaixonadas por constituir-se uma arma poderosa contra os adversá-rios políticos, os quais, sendo da situação, passavam a ocupar o lugar doabuso do poder em prol de seus interesses eleitorais. Portanto, tanto osgovernos de conservadores quanto os de liberais sofreram intensa campa-nha da imprensa adversária contra o uso da estrutura da instrução públicapara beneficiar protegidos e punir opositores políticos.

A retórica da necessidade de neutralidade na instrução provinha depolíticos e administradores de ambos os partidos, liberal e conservador.O discurso indignado do deputado liberal da assembléia paraense, Joa-quim Cabral, demonstra o sentimento de que,

Se a instrucção deve ser objecto da politica larga e generosa de principios,deve tambem ser collocada fóra da acção da politicagem dos mandões. Ainstrucção é uma cousa séria, devia estar livre d’essas vergonhas (A Consti-tuição, 21 ago. 1883, grifos meus)14.

O presidente do Amazonas, na linha da defesa da neutralidade nainstrução, discursou à Assembléia Provincial combatendo as“preoccupações partidarias”, que no país todo produziam graves males,devendo a instrução ser tratada tal qual um desses terrenos neutros, comoa navegação, o comércio e a indústria (Amazonas, 7 mar. 1882, p. 18).Afora a posição ingênua da isenção política de outras esferas da admi-nistração pública, percebe-se, pelas denúncias, que o clientelismo nainstrução pública, na região, extrapolava o aceitável para o período, le-vando aqueles que se sentiam prejudicados não só a denunciar, mas apedir ou propor formas de proteger o magistério das investidasclientelísticas relacionadas ao partidarismo. A adoção do concurso pú-blico para a seleção de professores efetivos foi uma medida logo adota-

14. Assembléia Legislativa da Província do Pará, sessão ordinária em 13 de abril de 1883.

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da pelos regulamentos, não obstante as escolas elementares ou provisó-rias continuaram a ser regidas por não concursados.

No ano de 1878, a Província do Amazonas abriu concurso para ca-deiras exercidas interinamente, sem contar com a inscrição de um sócandidato, apesar das várias tentativas, a situação ainda foi registrada atémeados do ano seguinte. Para um presidente, as cadeiras ficavam eterna-mente em concurso por falta de pessoas habilitadas para preenchê-las. Oreceio era causado pelas provas de capacidade exigidas pelo regulamen-to, diz o relatório (Amazonas, 1878, p. 7). No entanto, é forçoso lembrarque mesmo o professor efetivo (por concurso ou título de habilitação)tinha garantias bastante restritas no magistério, adquirindo a vitalicieda-de após cinco anos de trabalho, período no qual estava sujeito às mudan-ças de governo e da política. Embora tenha sido muitas vezes burlada, ainstituição do concurso denota o grau de preocupação e a vontade políti-ca de alterar o quadro de práticas tão denunciadas, como o patronato, aafilhadagem e os favores eleitorais da parte tanto de liberais quanto deconservadores15. Quando finalmente o governo amazonense conseguiurealizar o concurso para professores primários, o relatório de agosto de1879 relaciona apenas três indivíduos aprovados, de sobrenome “Salga-do”, gerando a suspeita de que, mais do que boa instrução, a famíliacontava com bons protetores (Amazonas, 26 ago. 1879, p. 39).

No primeiro relatório paraense do período tratado neste artigo, opresidente acusa “o patronato e a política” pelo embaraço no ensino daprovíncia, ao premiar-se a ignorância ao invés do mérito (Pará, 1870, p.11). Abel Graça toca numa ferida conhecida de todo o Império brasilei-ro: a afilhadagem e o favorecimento político permeavam a administra-ção pública do país, condicionando a distribuição de cargos à rede defavorecimentos dos protetores. O patronato, constituído pela proteçãode indivíduos desejosos de ter um emprego público por não possuírem

15. Richard Graham (1997, p. 326) esclarece que o concurso, instaurado para algumasfunções da estrutura de poder imperial, de forma a prevenir alguns dos piores abu-sos do sistema clientelista, não eliminava a importância de um protetor, pois umacarta de recomendação podia mudar os seus resultados.

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outros meios de vida, continuará a ser denunciado nos anos seguintes, emedidas para coibi-lo serão anunciadas. Segundo o presidente do Pará,Domingos José da Cunha Junior, homens que não possuíam escravospara a lavoura, ou indivíduos sem meios para seguirem a carreira co-mercial recorriam à cadeira de primeiras letras, não sem antes aciona-rem os seus protetores. O “manto afagador” da proteção afastava os maishabilitados das escolas e comprometia sua fiscalização e a disciplina,males anunciados no início da década de 1870 (Pará, 1 jul. 1873, p. 16).A criação da escola normal nesse período foi motivada pela intenção dehabilitar os professores para o magistério e formar um corpo de candi-datos aptos para a seleção de professores via concurso16. O Pará, comcerteza, passou a contar com um professorado mais preparado para omagistério, contudo, a documentação mostra que o sistema clientelistasoube adaptar-se às novas circunstâncias. Não era a falta de pessoal habi-litado que alimentava o sistema, como muitas vezes tentou-se fazer crer.

Na instrução, a prática clientelista era particularmente nefasta, poisa rede escolar, espalhada por territórios isolados pelas grandes distân-cias, favorecia o abuso no exercício da função, como demonstram ascartas levadas aos jornais. Contudo, faltam, nesta análise, estudos quenos permitissem comparar o entrelaçamento entre o clientelismo e ainstrução pública em outras províncias. Richard Graham afirma que oclientelismo sustentava todo ato político no país, visando, na sua articu-lação com o sistema político brasileiro, evitar que conflitos sociaiseclodissem instaurando a desordem e a destruição de um modo de vidaque favorecia os donos de terras. A prática clientelista envolvia tanto opreenchimento de cargos públicos quanto a proteção de pessoas humil-des, mesmo os trabalhadores agrícolas sem-terra. Graham ressalta a im-portância das eleições nas vilas e cidades do século XIX, argumentandoque as eleições testavam e ostentavam a liderança do chefe local, poisos votantes, em dois turnos, escolhiam as figuras mais proeminentes dolocal para formar os colégios eleitorais, os quais, por sua vez, escolhe-

16. O Pará e o Amazonas instalaram seus cursos normais no início das décadas de1870 e 1880, respectivamente.

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riam deputados para o congresso. A ressalva é pertinente ao nosso estu-do, pois contribui para desvendar o envolvimento do cargo de professorpúblico na política local, engendrada pelas lideranças dos povoados,vilas e cidades do interior do Pará e do Amazonas.

No início da década de 1880, Corrêa de Freitas, tendo já bons anosde experiência à frente da Diretoria de Instrução do Pará, sentiu-se àvontade para classificar a política em duas categorias: a nacional, repre-sentada pela grande ou geral política, e a provincial ou local, denomi-nada ironicamente de política pequena. Se a primeira é por ele glorificadae identificada como oriunda do “centro mais civilizado do país”, a se-gunda é política e geograficamente determinada pela maior ou menorproximidade das capitais das províncias. O diretor constrói uma espéciede geo-política da politicagem, calcada na maior ou menor distância davida política dos centros urbanos principais, ou seja, a corte e as capi-tais. Quanto mais longe das capitais, mais pronunciada e ativa se apre-senta a política pequena, fato negativo, pois é qualificada como, “Mes-quinha e vingativa, e é capaz para chegar a seus fins de deprimir, injuriare calumniar”17.

Há mais de cinco anos dirigindo o ensino público na província, odiretor testemunhou os dissabores dos professores que não se amolda-vam à vontade dos “potentados das localidades”, caracterizados por elecomo “ignorantes e desarrazoados”. Corrêa de Freitas orientava os pro-fessores a não se envolverem com política, que não fossem chefes departidos e mesmo políticos militantes, no que ele afirma ter sido segui-do pela maioria. Deles esperava-se que fossem reservados em suas idéiaspolíticas, garantindo a simpatia e a consideração dos “pais de família”.Tamanha reserva ou indiferença em relação à política partidária nãoimplicava o desinteresse aos assuntos públicos, pois como

Cidadãos brazileiros e interessados no desenvolvimento moral do paiz, osprofessores não devem ser indifferentes á marcha da administração publica,

17. Relatório da Diretoria Geral da Instrução Pública do Pará. Em Pará, 15 de fevereirode 1881, anexo A, p. V.

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pois, como elementos do progresso, cumpre-lhes conncorrer com seus votospara que se firme e se mantenha no paiz uma politica ordeira, livre, progres-sista e honesta18.

Nesse mesmo volume, no relatório apresentado pelo presidente JoséCoelho da Gama e Abreu, é descrito o envolvimento dos professoresdas pequenas localidades do interior com a política, referindo-se ao pas-sado. O professor, em locais com diminuto pessoal, tornava-se ou eraconstituído chefe de partido, prática que se refletia diretamente no modode reger as cadeiras e na relação com os alunos. Mais uma vez, as quei-xas dos interessados pressionaram o governo, as quais, segundo Gama eAbreu, levaram-no a sindicar as ocorrências e a corrigir os professores(Pará, 15 fev. 1881, p. ).

A ação do governo junto à instrução primária, sobretudo nas peque-nas localidades, encontrou analistas na imprensa amazonense que, pormotivações diversas, se empenhavam em destrinchar os meandros doapadrinhamento político na educação. A patronagem nas nomeaçõesdos professores das escolas primárias disseminadas pelo Amazonas foiflagrada pela Revista do Amazonas relacionou à dependência da im-prensa local à “ação governamentiva”. No artigo “A instrucção publica,o jornalismo e o governo do Amazonas”, o autor acusa o atraso da ins-trução pública pelo fato de o povo não ler jornais, agravando a depen-dência da imprensa aos cofres provinciais. Com exceção das escolas dacapital, e de algumas cidades e vilas, o esquema de nomeações funcio-nava através do empenho19. Na série “A educação e o Estado”, o jornalCommercio do Amazonas esquadrinha a relação entre o governo e oprofessor público pelo ponto de vista político, quando os governos ten-tavam transformar o cargo em instrumento eleitoral. O artigo desnuda a

18. Relatório da Diretoria Geral da Instrução Pública do Pará. Em Pará, 15 de fevereirode 1881, anexo A, p. V.

19. Revista do Amazonas, 5 de juno de 1876, n.4. A revista lutava para manter-se comas assinaturas, as quais, não provinham de forma majoritária da capital. Eram 78assinantes no total, sendo na capital 20, no Solimões 53, e no Rio Negro 5.

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engrenagem da pressão política sobre os professores exercida por go-vernantes do Amazonas, independente de suas posições partidárias,obrigando o professorado a recorrer a largo jogo de cintura caso nãoquisesse se sujeitar a queda de posição e encostamento em “lugares in-salubres” como punição à desobediência. Na análise do colaborador,

O povo segue maquinalmene o exemplo do chefe, o governo. Este é oprimeiro a macular o alto caracter do professor publico, subgeitando-o [sic]aos revezes da politica, obrigando-o a abraçar este ou aquelle partido, e seelle reccusa a declarar-se, ou mesmo se se abraça qualquer delles, não terá odireito natural ao homem de conservar ou deffender suas opiniões; será obri-gado a mudal-as tantas veses, quantas forem as defferentes opiniões dos ho-mens que se acharem no poder; e, si o não fiser, dimittem-no; ou o que épeor, removem-no para logares longinquos, subjeitando-o, e sua familia, ásconsequencias terriveis da permanencia em logares insalubres e baldos detodos aquelles recursos necessarios para a conservação da saude e da vida.Pelo menos foram estas as idéas dominativas até bem pouco tempo20.

As críticas ácidas à administração da instrução e ao envolvimento doprofessorado nas artimanhas eleitorais não eram privilégio de liberais oude conservadores. Sob a situação liberal, o governo paraense foi dura-mente atacado pela imprensa aclamada como neutra e pelos órgãos con-servadores ou simpatizantes. Em 1883, um colaborador da Revista Fami-liar, sob o pseudônimo de Senior, dirigindo-se ao governo paraense, acusoua administração do ensino de ser uma ficção, como ocorria em outrasprovíncias do Império. A figura do diretor da instrução pública, geralmen-te protegida dos achaques, foi tachada de chefe, a cujas inspirações parti-dárias submetia a sua “milícia” formada pelo professorado e pelo corpode delegados literários. Aos adversários do diretor, infligiam-se penas, e

20. Commercio do Amazonas, Manaus, 26 de outubro de 1880. Segundo Santos et al.(1990, p. 63), o Commercio do Amazonas “caracterizou-se por ser um jornal abertoàs diferentes correntes de opinião”. Os artigos de cunho educacional consultadosrevelam a postura crítica do jornal com relação aos atos do governo.

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aos seus representantes nas localidades, concediam-se favores, avultandoo expediente da diretoria com justificativas de faltas e pedidos de licençascom vencimentos. Protegido pelo anonimato, Senior conclui seu artigode maneira contundente, refletindo o sentimento geral da imprensa daépoca a respeito da necessidade de distanciar a instrução da política, pois,

A magna questão da instrução publica deve ser alheia á politica; [...] quenão venha a luta dos partidos que se debatem pôr difficuldades á boa ordemna administração do ensino. V.Exc. sabe que é somente o elemento partidarioentre nós que a perturba, estraga e desmoralisa [Revista familiar, 18 fev.1883, n. 3].

O jornal conservador A Constituição, na oposição ferrenha aos libe-rais no poder, fez suas as palavras de um morador de Muaná, Pará, re-voltado com a manutenção na escola masculina de um “professor dechapa” sem conhecimento mínimo das matérias da instrução primária.O “Muanense” declarou que o ensino público no Brasil e, sobretudo, noPará decaiu com a situação liberal, porque os “ouros na politicagem”sobrepujavam o “mérito do professor”, quando valeria mais a recomen-dação de que, “Seja um bom capanga eleitoral, será tambem um bomprofessor!” (A Constituição, 8 ago. 1882, carta de 16 jul. 1882).

Temos um forte indício de que a denúncia contra o professor deMuaná, feita ao jornal, teve resposta imediata da Diretoria de Instrução,resultando na transferência do professor para a escola de Barcarena. Asuspeita decorre de um abaixo-assinado de vinte pais de Barcarena con-tra o professor público que viera de Muaná, dirigido à Presidência daProvíncia em outubro de 1882, ou seja, três meses após a denúncia doMuanense. Na carta enviada ao jornal A Constituição, os reclamantesinformam que o dito professor já estivera em Muaná, onde teve o mes-mo procedimento de desrespeito ao magistério (A Constituição, 25 fev.1883, carta de 15 out. 1882). Já os “pais de Barbacarena”, não foramatendidos em seu pedido. Por uma carta remetida pelos pais ao redator,em março de 1883, o público é informado de que o diretor da instruçãonada fez para atender ao abaixo-assinado enviado no ano anterior (AConstituição, 17 mar. 1883).

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Mesmo considerando a hipótese de que o autor da carta de Muanáestivesse defendendo um “amigo”, ou seja, o professor que fora preteri-do pelo diretor da instrução para ocupar a dita cadeira, é fato que o usoda instrução pública como “instrumento de política”, mais do que cau-sar incômodo, afetou diretamente as escolas primárias, ao determinar aseleção, a remoção e a demissão de professores, afora a intimidação e aopressão por que muitos devem ter passado. Outros aproveitaram-se dasituação, valendo-se do privilégio do cargo público/político para obterganhos pessoais, como é corroborado pelas mais diversas denúnciascontra professores. O Muanense, seguindo os discursos que defendiamo caráter apolítico da instrução, asseverou que na instrução “só devereinar a neutralidade pelo amor á educação dos meninos, que são osnossos futuros cidadãos” (A Constituição, 8 ago. 1882).

De julho a novembro de 1882, o jornal do Partido Conservador doPará publicou em torno de cinco matérias com denúncias do uso parti-dário do diretor interino da instrução pública na província, Americo Mar-ques de Santa Rosa, que pela informação do jornal, era chefe do partidoliberal21. Além das denúncias do favorecimento de professores pelaafilhadagem e pelo compadrio, como teria ocorrido em uma escola dacapital e em todas da cidade de Vigia, há outras gravíssimas, como ainterferência em concursos e exames públicos. Começando a denúncia,noticiando que, “Da Vigia nos escrevem”, o público é informado dos“efeitos desastrados” da administração de Santa Rosa. Além dos “títu-los de afilhadagem” dos mestres, os alunos não foram interrogados so-bre os rudimentos da moral e da religião nos exames escolares, levandoos denunciantes a proclamar que “O povo vive descontente vendo, quesendo elle christão, estão ensinando aos meninos o despreso pela reli-gião de todo este povo” (A Constituição, 28 nov. 1882).

As denúncias do ano são fechadas com o tom irônico do título Aindabílis, com críticas ácidas à “exclusão de amigos nossos do magistério”, à

21. Santa Rosa foi diretor interino da instrução até maio de 1884, quando solicitouexoneração do cargo. Em 1883, representou o Pará no Congresso Pedagógico daCorte (Pará, 7 jan. 1884; 24 jun. 1884). Ele voltou ao cargo em 1889.

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demissão acintosa de delegados literários e à reprovação nos exames depreparatórios de filhos dos adversários do diretor, com a subseqüente pro-teção de filhos dos seus amigos. De acordo com a lista publicada, entre 18examinandos, somente dois eram conservadores (A Constuição, 30 mar.1882). Nos dois anos seguintes, as denúncias do jornal conservador con-tra o diretor liberal continuam basicamente tratando das nomeações deprofessores “ignorantes” ou dedicados a outras atividades além do magis-tério22.

O Liberal do Pará insiste na mesma problemática apontada por todaa imprensa, engajada ou neutra: era preciso proteger os professores dos“caprichos dos mandões d’aldêa e das violencias das paixões partidarias”(O liberal do Pará, 30 mar. 1883). O desacordo começava na identifica-ção dos acionadores do sistema clientelista e das medidas para controlaros efeitos danosos ao ensino. A lei que reformou a instrução pública em1880 criou alguns instrumentos, como a garantia de “inamovibilidadeao professor sem prejuizo de direito ao accesso por meio do concursoestabelecendo-se o processo administrativo para os casos de remoção edemissão definidos pela lei”23. A lei reformou o conselho diretor da ins-trução pública e buscou interessar as localidades na inspeção das esco-las com a criação dos conselhos paroquiais. As denúncias posteriores àlei mostram que imensos foram os obstáculos encontrados no esforçode demover da instrução o ranço clientelístico, presente em toda a estru-tura do Estado imperial. Tamanho desmonte jamais foi alcançado mas,sem dúvida, o embate fez parte do processo de construção da escolapública no Brasil.

Nos anos de 1883 e meados de 1884, o jornal conservador, A Cons-tituição, manterá o canal aberto para as denúncias de abusos e arranjosdo professorado, porém, preservando a figura do diretor da instrução.Com a volta dos conservadores ao poder em 1984, esse papel de denun-

22. Esses aspectos, referentes à situação e à atuação dos professores, relatados nascartas e abaixo-assinados de moradores ou pais de família, são analisados em Rizzini(2004).

23. Relatório da Diretoria da Instrução Pública do Pará. Em: Pará 18 de setembro de1889, anexo, p. 32. Diretor: Americo Santa Rosa.

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ciante é restabelecido na imprensa liberal. Contudo, a imprensa conser-vadora não somente serviu de canal para as denúncias, pois abriu espa-ço nos editoriais e artigos para avaliações críticas da instrução no Bra-sil. Na série “Os conservadores e a instrução pública”, publicada em1883 no jornal A Constituição, o colaborador buscou comprovar o pro-gresso da instrução na gestão conservadora e analisou práticas que difi-cultavam o desenvolvimento da instrução pública no Pará, sobretudo opatronato e a afilhadagem sob o governo liberal, e defendeu a instruçãoinserida em “campo neutro”, acima de qualquer interesse partidário ouindividual.

O autor (anônimo) reconhece que liberais e conservadores possuíamprincípios semelhantes, concernentes à importância da instrução para oprogresso do país, mas desconfiava das reais intenções dos liberais, osquais sustentariam um discurso “só para inglês ver”. Assim, ele defen-deu seu ponto de vista, afirmando que,

Os liberaes, em these, sustentam estas mesmas verdades, constituindo-seamantes da instrucção, obreiros do progresso e regeneradores da sociedade;mas isto é só para inglez vêr: na pratica procedem de modo diverso, antepon-do o progresso material ao moral, preferindo as despezas de méro luxo ásessenciaes e indispensaveis, a afilhadagem ás necessidades sociaes (AConsituição, 17 maio 1883).

Um dos aspectos tidos por problemáticos, não só pelo autor dosartigos, mas por muitos diretores de instrução do Pará e do Amazonas,referia-se ao provimento das escolas elementares ou provisórias. A leide 1880, aprovada por assembléia de maioria liberal no Pará, determi-nou que

para o provimento das escolas elementares serão preferidos os professoresnormalistas, e na falta destes serão as cadeiras providas por cidadãos de re-conhecida moralidade, que provem perante a presidencia da provincia idademaior de 21 anos, não terem sofrido condenação por crime infamante e nãopadecerem molestias que os incompatibilize com o magisterio.

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O articulista conservador observa que essa disposição vinha sendofraudada (no período do governo liberal), pois “Por toda a parte são asescolas elementares dirigidas por individuos completamente ignoran-tes, com bem poucas excepções, contanto que sejam governistas” (AConstituição, 1 maio 1883)24.

Após a queda do gabinete liberal em 1884, e a volta ao poder dosconservadores, o jornal liberal, A Província do Pará, reinicia a campa-nha crítica aos atos dos governos conservadores. Atacando a guilhotinacolocada em praça pública pela situação conservadora, o jornal A Pro-víncia do Pará denunciou, em 1885, as demissões na Secretaria de Ins-trução Pública, todos liberais, a exceção de um inspetor de alunos, pre-servado dos cortes por ser conservador (A província do Paraná, 11 out.1889). A derrubada e remonta nas instituições educacionais da provín-cia, sobretudo as da capital, como o Instituto de Educandos Artífices, aEscola Normal e o Liceu, arrebataram as atenções dos jornalistas. Ojornal informa que em 19 dias, a vice-presidência demitiu 100 emprega-dos públicos, além das mais de 500 autoridades policiais, que ocupa-vam cargos de confiança. Professores e professoras da instrução primá-ria também foram atingidos (A província do Paraná, 6 out. 1885).

Segundo A Província do Pará, as duas províncias que compunham a“Amazonia brazileira” vinham tendo os diversos ramos da administra-ção pública desorganizados pelas presidências, entulhando as reparti-ções com “gente inepta”. Instituições, como os institutos de educandosartífices do Pará e do Amazonas, sofriam diretamente com a invasão dosafilhados, a começar pela direção, substituída por indivíduosdespreparados (A província do Paraná, 27 nov. 1885). A instrução públi-ca primária também foi atingida pelas nomeações apressadas, segundonotícia de 1885 publicada no jornal amazonense A Província, de tendên-cia liberal. Novas escolas estavam sendo criadas em diversos distritos depaz do Amazonas, os quais já as possuíam, iniciativa que cabia à Assem-bléia Provincial tomar. Indivíduos analfabetos vinham sendo nomeados

24. O autor citou o artigo 4º da lei 1.030 de 7/5/1880.

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interinamente, denúncia que, volta e meia, era lançada por opositorespolíticos, fossem eles liberais ou conservadores. O jornalista vê um trá-gico destino para o ensino primário na Província, ao proclamar que “Agoraos discipulos passarão a ensinar o mestre” (A província, 27 set. 1885)25.

O saldo final da politicagem na instrução do povo:a avaliação de diretores e visitadores

Até o fim do Império, os agentes da instrução pública se debaterãocom a trama política engendrada pelo revezamento entre liberais e con-servadores no poder. Relatórios de visitadores escolares e diretores dainstrução do Amazonas e do Pará, dos últimos anos do Império, denun-ciam os estragos causados pelos confrontos político-partidários dos agen-tes educacionais. Assim, ao apagar as luzes do regime, a diretoria deinstrução do Amazonas emitirá um relatório pleno de denúncias gravescontra os desmandos do ex-diretor sob a situação conservadora, o Vigá-rio Geral da Província, cônego Raymundo Amancio de Miranda. O cô-nego fora convidado, em janeiro de 1887, para a direção da instruçãopública, quando exercia o cargo de diretor do Instituto Amazonense deEducandos Artífices (Amazonas, 10 jan. 1887, p. 14)26.

O ex-diretor fora destituído do cargo a bem da moralidade públicada administração por ter colocado a instrução à “margem de tudo”, no-

25. O jornal denuncia também a politicagem no Instituto de Educandos do Amazonas.26. O relatório citado é de junho de 1889 (Amazonas, 2jun. 1889).

Amazonense, Raymundo Amancio de Miranda nasceu em 1848, e cursou teologiano seminário de S. Sulpicio na França. No Brasil, recebeu as últimas ordens sacrase foi nomeado lente de moral do seminário de Belém, passando depois a capelãodo colégio do Amparo para meninas desvalidas e professor de religião da EscolaNormal. Posteriormente, no Amazonas, exerceu diversos cargos religiosos e públi-cos, tendo sido vigário-geral do Alto-Amazonas, diretor geral dos índios, vice-presidente da província por duas vezes em 1888 e diretor geral de instrução pública(Blake, Sacramento, vol. VII). A atuação dos sacerdotes na instrução pública dasprovíncias amazônicas, durante o bispado de dom Antonio Macedo Costa, é anali-sada em Rizzini (2004).

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meando pessoas sem habilitação, removendo professores sem critérioalgum, demitindo outros com diploma efetivo e fraudando concursos.Nunca um diretor de instrução da província fora tão atacado em relató-rio oficial. A sua condição de sacerdote e homem público, conservadorna política e na religião, aliada aos seus atos polêmicos, suscitara pro-testos entre seus opositores. Amâncio de Miranda fora também vice-presidente em exercício no Amazonas, cargo pelo qual acumulara al-guns desafetos, pelas remoções e nomeações feitas a toque de caixa, emjulho de 188827. Somos informados pelo relatório do novo diretor dainstrução, o advogado Agesiláo Pereira da Silva, ex-presidente da pro-víncia, que o padre acumulava o ordenado de diretor com os vencimen-tos de presidente da província28. O relatório do (suposto) desmonte dainstrução pública, causado pelos atos do cônego, revela-nos que ao finaldo Império, o sistema de ensino no Amazonas se mostrava frágil e sus-cetível à sanha clientelista de um diretor que tinha mais poder do que, seexigia ou do que era conveniente para o exercício do cargo.

No segundo semestre de 1889, um relatório mais contundente foi pro-duzido no âmbito da instrução pública do Amazonas. Bento de FigueiredoTenreiro Aranha, visitador extraordinário das escolas públicas do RioSolimões, apresentou à presidência um diagnóstico da instrução oficialem toda a província, em que o tom predominante é o da decadência29.Escolas abandonadas pelo poder público e pelos alunos, com móveisimprestáveis, professores e inspetores despreparados e sem respeito àsleis compõem o quadro descrito pelo visitador, em que nem mesmo as 22escolas da capital se salvavam dos abusos e da inércia dominantes noramo. Embora conhecesse bem a política local, Bento Aranha evita no-

27. O jornal A Província do Pará (20 jul. 1888), que comungava as idéias do partidoliberal, denunciou uma série de atos da administração interina do cônego.

28. Relatório da Diretoria da Instrução Pública do Amazonas. Em Amazonas 2 jun.1889,p.24. Pereira da Silva assumiu a administração do Amazonas em maio de 1877,exercendo-a até meados de 1878.

29. Citado por Uchôa, (1966, pp. 191-196). Segundo Agnello Bittencourt (1973, p. 135), ojornalista amazonense Bento Aranha foi aprovado no exame de professor de primeirasletras em Belém (1865) e nomeado professor em Manaus (1874).

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mear a facção e os governantes responsáveis pelo desmonte da educação.No entanto, data com precisão o período em que se deu o processo: navigência dos regulamentos de 1873, 1881, 1886 e 1888, pelos quais, aocontrário de 1883, o presidente da província podia mandar instalar cadei-ras do ensino primário nos distritos de paz onde não estivessem criadaspor lei especial. Vê-se que Bento Aranha localiza o surgimento do proble-ma na administração conservadora, atribuindo à iniciativa da presidêncialiberal a eliminação dos abusos através do regulamento de 1883, quandoas cadeiras vagas ou criadas deveriam ser providas somente por concurso,até o término de sua vigência, em 1886. Nesse ano, o novo regulamentoinstituiu o provimento interino pelo presidente da província quando va-gasse qualquer cadeira de instrução pública primária ou secundária, até oseu preenchimento efetivo por concurso.

Se o quadro apresentado pelo visitador, ao fechar as cortinas da mo-narquia, era desolador, em períodos anteriores, a instrução também nãofora poupada das críticas e propostas de mudanças. Em 1883, o presiden-te liberal José Paranaguá nomeou o conselheiro Joaquim Maria Nascen-tes de Azambuja inspetor extraordinário das escolas públicas de Parintinse Itacoatiara. Muito impressionou ao visitador que em povoações impor-tantes, tão próximas da capital e com tantas crianças em idade escolar, oensino público estivesse em condições tão desfavoráveis.

Azambuja (1884) poupa pais e professores de críticas mais severase centra sua atenção na precariedade das escolas, onde faltavam os ma-teriais, compêndios e utensílios considerados indispensáveis ao ensi-no30. Pais, tutores e protetores retiravam as crianças dos estabelecimen-tos públicos, confiando a sua instrução e educação a “pessoas que nãosão da profissão, mas prestão seus serviços por caridade, ou affeiçaoparticular” (p. 120). O inspetor atesta que, mesmo em povoados próxi-

30. No regimento interno das escolas proposto à presidência, o inspetor arrolou comomobília necessária às escolas, a imagem do Senhor Crucificado, o retrato de V.M.o imperador, um relógio, um armário, uma mesa com estrado e uma cadeira debraços para o professor, cadeiras para os visitantes, uma esfera celeste e outra ter-restre, um atlas, mapa do Brasil e outro da província do Amazonas, dentre outrosmateriais, como os relativos às prendas domésticas.

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mos à capital, as famílias recorriam aos seus contatos ou laços parainstruir seus filhos quando, por ineficiência daqueles que os regulamen-tos tentavam profissionalizar, os alunos nenhum aproveitamento obti-nham. E lamenta que, em todo o interior da província, o pouco ou ne-nhum aproveitamento era a causa primeira da deserção nas escolas. Nesseponto de seu relatório, o inspetor recusa o estereotipo da indolência dapopulação, chegando a afirmar que a ela não se fazia a devida justiça.Os moradores que se decepcionavam com a escola oficial buscavamseus próprios meios para fazer educar os meninos. A ausência do alunonas aulas, através da não matrícula, da baixa freqüência ou da deserção,constituiu um grave empecilho à propalada difusão da instrução pelointerior do Amazonas.

O último relatório da diretoria de instrução do Pará disponível é dametade do ano de 1889, escrito por Americo Santa Rosa, diretor experien-te pelos anos que já atuara na função. O tom do relatório não é otimista:Santa Rosa anuncia o atraso da instrução na província, em razão princi-palmente da “política transviada de seus generosos intuitos”, situação quesegundo o diretor, todos deploram, mas poucos têm coragem de comba-ter. O Pará, a despeito das inúmeras reformas e das leis promulgadas emprol da difusão da instrução pública, vê-se perto do final do século, àmercê das “paixões partidárias”, entregue aos “cálculos mesquinhos dospartidos”, na avaliação de Santa Rosa. Mais uma vez, a situação passadaé acusada de golpear duramente a instrução, entregando-a a mãos inábeis,removendo professores de forma acintosa e cerceando suas garantias31.Os “inimigos da instrução” não deram trégua aos intuitos dos governosde promover a educação do povo, diriam conservadores e liberais, aoolhar para as agruras da instrução no Pará e no Amazonas.

Instaurado o regime republicano, o diretor geral da instrução públi-ca do Pará, José Verissimo (1892, p. V), anuncia o “triste estado danossa instrucção publica”, inventariando como principal causa da situa-ção do ensino em 1890, a “invasão do partidarismo, viciando a propria

31. Relatório da Diretoria da Instrução Pública do Pará. Em Pará, 18 set. 1889, anexo,p. 29.

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fonte da instrucção publica, procurando sempre fazer do professoradoum corpo, e das diferentes funções da alta administração da instrucçãopublica um fato eleitoral”.

Considerações finais

Nos últimos decênios do século XIX, os governos das provínciasamazônicas começaram a investir na formação e profissionalização doprofessor primário, criando as escolas normais e estabelecendo regraspara a seleção de professores em que a condição de normalista fossepré-requisito para o provimento efetivo das cadeiras. Até o final do sé-culo, professores interinos continuaram sendo nomeados no interior doAmazonas e do Pará, tendo ocorrido, no entanto, um aumento gradativono número de professores efetivos e vitalícios, reduzindo o caráter pro-visório e leigo do cargo. Possivelmente, até a mudança do sistema elei-toral na República, as cadeiras do interior mantiveram o seu humildepapel na hierarquia eleitoral, quando os regentes, de acordo com a suarenda anual, podiam ser eleitores de cargos provinciais e também nasassembléias paroquiais que, por sua vez, indicavam os eleitores da pro-víncia, direitos políticos garantidos pela Constituição do Império. ParaCynthia Veiga (2002), a influência local do professor poderia explicar o“investimento na produção do lugar do professor como empregado pú-blico, favorecedor ou não das redes clientelísticas de poder, em detri-mento de sua formação profissional” (p. 8).

Muitas questões permanecem sem respostas com relação à escolapública do século XIX. O crescimento do número de escolas no interiorestaria condicionado às práticas clientelistas? Apesar da tônicacivilizadora e salvacionista dos discursos, teriam sido os arranjos políti-cos a principal motivação dos administradores e legisladores para a cria-ção das escolas nas pequenas localidades do interior amazônico? Quemeram os moradores que solicitavam o estabelecimento das cadeiras, quaiseram os seus motivos? Estariam prestando favores aos potentados lo-cais ou aos pobres professores que dependiam do emprego para sobre-viver, ou percebiam na instrução oficial possibilidades de ascensão so-

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cial de seus filhos e protegidos através da ocupação futura de cargos(eleitorais ou por indicação) na estrutura do Estado? Essas são questõesem que, através da documentação tratada neste estudo, buscamos vis-lumbrar saídas, indicar hipóteses. As experiências provinciais de instru-ção elementar vêm sendo alvo de um número crescente de estudos nosúltimos anos, mas a sua complexidade provocada pelas inúmeras impli-cações da instituição escolar junto das mais diversas instâncias da so-ciedade torna a temática extremamente rica de possibilidades de pes-quisas a desenvolver. As implicações do clientelismo e a produção dolugar de professor como empregado público são, por exemplo, temasque permitem ampla exploração, por exporem a tensão entre as constru-ções legais e as práticas sociais, políticas e culturais (Schueler, 2002).

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REVISTA DO AMAZONAS. Publicação mensal sobre explorações de rios, catechequesee civilizaçao de índios, colonisaçao, agricultura, industria &. Provincia do Ama-zonas: Typ. do Commercio do Amazonas, 1876.

REVISTA FAMILIAR. Periodico dedicado ás familias. Belém: Typ. do Commerciodo Pará, 1883.

Endereço para correspondênciaIrmã Rizzini

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),Faculdade de Educação.

Av. Maracanã, 524 - MaracanãRio de Janeiro, RJ - Brasil

CEP: [email protected]

Recebido em: 24 ago. 2005Aprovado em: 24 out. 2005

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O carteiro e o educador

práticas políticas na escrita epistolar*

Ana Chrystina Venancio Mignot**

* Texto apresentado na mesa-redonda “Leitura, escrita e práticas educacionais”, porocasião do 1º Colóquio Internacional de História do Livro e da Leitura do Ceará,promovido pela Universidade Estadual do Ceará e pela Universidade Federal doCeará, em Fortaleza, em maio de 2004.

** Doutora em Ciências Humanas – Educação, pofessora do Programa de Pós-Gra-duação em Educação da Uerj e pesquisadora do CNPq.

Resumo:No arquivo pessoal de Anísio Teixeira, sob a guarda do Centro de Pesquisa e Documen-tação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, quecontém vasto conjunto documental, uma mensagem chama a atenção: nela, o remetentesolicita emprego para um cunhado. Não era um dos políticos, intelectuais, familiares,amigos e professores que escreveram a Anísio Teixeira para pedir, agradecer, cumpri-mentar, sugerir, cobrar, reivindicar, quando ele esteve à frente da Diretoria da InstruçãoPública do Distrito Federal, entre 1931 e 1935. O remetente é o carteiro que entregavadiariamente cartas de outros tantos remetentes que escreviam em defesa dos própriosinteresses mas, na maior parte das vezes, o faziam para interceder por familiares eamigos. Entendendo que estas cartas fornecem pistas de uma dada cultura política queatravessa a vida pública brasileira e, em especial, o sistema educacional, durante asprimeiras décadas do século XX, pretende-se examinar tanto nos suportes da escrita, noconteúdo das mensagens, bem como nas anotações feitas nas margens, como AnísioTeixeira procurou instituir novas práticas políticas na educação brasileira.ANÍSIO TEIXEIRA, CULTURA POLÍTICA.

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The mailman and the educator

political practices in epistolary writing*

Ana Chrystina Venancio Mignot**

Abstract:Among the vast amount of documents assembled in the personal archive of Anisio Texeira(under guard of the Center of Research and Documentation of Brazilian ContemporaryHistory - CPDOC, from Getulio Vargas Foundation), figures a letter that stares in face:in the text, the sender asks a job for a brother-in-law. He was not one of the politicians,scholars, relatives, friends or teachers that have written to Anisio Teixeira for asking,thanking, complimenting, suggesting, charging or claiming, while he was in charge ofthe Directory of Public Instruction from Brazilian Federal District, between 1931 and1935. The sender was the mailman that daily had been delivering the letters signed by somany other senders, usually writing on behalf of their own interests or, as in most of thetimes, for interceding on behalf of relatives or friends. Such letters contain a set oftracks concerned to certain political culture remarkably present in Brazilian public life,in special, its educational system, during the first decades of XX Century. This paperanalyzes the way Anisio Teixeira tried to institute new political practices in Brazilianeducation, focusing those letters writing supports and personal notes found in the margins.ANISIO TEIXEIRA, POLITICAL CULTURE, LETTERS.

* Texto apresentado na mesa-redonda “Leitura, escrita e práticas educacionais”, porocasião do 1º Colóquio Internacional de História do Livro e da Leitura do Ceará,promovido pela Universidade Estadual do Ceará e pela Universidade Federal doCeará, em Fortaleza, em maio de 2004.

** Doutora em Ciências Humanas-Educação, pofessora do Programa de Pós-Graduaçãoem Educação da Uerj e pesquisadora do CNPq.

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Quando o carteiro chegouE o meu nome gritou

Com uma carta na mãoAnte surpresa tão rudeEu nem sei como pude

Chegar ao portão.(Aldo Cabral e Cícero Nunes)

Portador de papéis escritos para encurtar distâncias, amenizar au-sências e comunicar saudades, entre 1931 e 1935, João MourãoCarvalhinho fez chegar a Anísio Teixeira um considerável volume decartas. Por força do ofício, possivelmente era não só um profundo co-nhecedor da cidade, sabendo encontrar ruas, casas, vilas e becos comfacilidade, mas um especialista capaz de reconhecer expectativas, ale-grias e dores daqueles que o esperavam com ansiedade1. Como tantosoutros carteiros retratados por Jacob Penteado, em Memórias de umpostalista, devia acordar de madrugada, bater o ponto cedo e correr embusca do sustento “debaixo de chuva ou de sol ardente, sob pesadosfardos, que nem burros de carga, sem horário de terminar, sujeitos aexcesso de serviço, distritos enormes, dobrando, ou seja, fazendo tam-bém o serviço de colegas que faltavam, sem tempo para as refeições,vindos dos pontos mais distantes da cidade” (1963, p. 28).

Graças a ele, sobre a mesa do gabinete do diretor da Instrução Públi-ca do Distrito Federal descansaram cerca de mil mensagens, incluindo-se a correspondência oficial, telegramas, cartões de felicitações e pos-tais, que os missivistas escreviam para pedir, agradecer, cumprimentar,sugerir, cobrar, e, que não só nos temas tratados, mas em sua materiali-dade, fornecem pistas que ajudam a compreender tanto quem escreveu,quem as recebeu, bem como o contexto no qual foram produzidas.

1. Observação feita por Zuenir Ventura no prefácio do livro Novos causos dos Cor-reios, destacando que “os carteiros não são portadores das grandes notícias, nãoanunciam os acontecimentos extraordinários, nem as transformações históricas,mas são imprescindíveis [...] porque fazem a ligação sentimental entre as distân-cias, são uma espécie de porta-voz afetivo do País” (2000, p. 9).

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A nomeação constituiu-se em motivo de júbilo para os conterrâneosde Anísio Teixeira, levando-os a manifestar, por escrito, o orgulho emtê-lo em tão alto cargo2. A chegada à capital da República, em outubrode 1931, no entanto, foi precedida de intranqüilidade, pois com GetúlioVargas no poder os educadores reunidos na Associação Brasileira deEducação (ABE) estavam decepcionados com os primeiros atos de Fran-cisco Campos, que visavam reorganizar as universidades e o ensino se-cundário e também autorizar o ensino religioso nas escolas. Estavam,sobretudo, descontentes com a ameaça de descontinuidade da reformade Fernando de Azevedo (O’Neil, 1975).

Desde o início da gestão, havia um clima de disputas e conflitospolíticos, soma-se a isto a insatisfação do magistério carioca que, se-gundo Paschoal Lemme (1988), se considerava o mais culto e capacita-do de todo o país. A nomeação de um educador baiano para a InstruçãoPública no Distrito Federal era inadmissível. A temporada de AnísioTeixeira nos Estados Unidos para aperfeiçoamento dos estudos tambémalimentava críticas e boatos sobre a americanização do ensino, tanto naorganização escolar, como nos métodos de ensino.

Para quebrar as resistências, ele retomou a política de pessoal e ins-tituiu normas que visavam identificar o magistério como ocupação por-tadora de conhecimento especializado, ética e importância social, a exem-plo de seu antecessor, que havia procurado imprimir um novo sentidona administração pública dedicando-se com afinco, entre outras ques-tões, ao concurso para provimento do cargo de professores catedráticosda Escola Normal como estratégia de contraposição a interesses político-partidários e uma tentativa de disciplinamento de um setor que era alvoconstante de favores circunstanciais3.

2. Ver a carta de Regina de Albuquerque Soares Bandeira: “Cidade de Bonfim, Bahia,20 de outubro de 1931: Cordiaes saudações. Nesta data, tenho, a subida honra dedirigir-me a V.Ex.ª cujo fim é enviar-lhe o meu sincero parabens pela acertadissimaescolha para Director Geral da Instrucção Publica do Rio. Como bahiana, sinto-mebem em dirigir estas linhas a V. Ex.ª, porque conheço a cultura, a intelligencia e acapacidade de V.Exª, [...]”.

3. Sobre a política de pessoal de Fernando de Azevedo, ver o estudo de Liéte Accacio(2002), no qual analisa os concursos para o magistério.

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Anísio ia buscando tempo para ler e responder cartas, enquanto des-pachava processos, criava uma legislação de ensino, ampliava o núme-ro de matrículas, planejava novos prédios escolares, discutia a forma-ção de bibliotecas escolares, elaborava diretrizes para a formação deprofessores, escrevia livros que viria a publicar durante e logo após suagestão, participava ativamente da ABE, articulava o lançamento do“Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” de 1932, que teve elabo-ração, lançamento e repercussão registrados, em inúmeras cartas trocadasentre aqueles que o subscreveram, como pode ser visto na correspon-dência de Cecília Meireles, Hermes Lima, Venancio Filho e PaschoalLemme também. Anísio integrou essa rede de escrita epistolar receben-do de Fernando de Azevedo a incumbência de ler, criticar, sugerir, mo-dificar, aprovar, divulgar, debater e defender as idéias do documentoconsiderado o divisor de águas da educação brasileira por sua intransi-gente defesa de uma escola pública, gratuita e laica para todos4.

Em meio a esses desafios, Anísio justificava-se com os amigos pelafalta de tempo para escrever cartas, como se pode ver nesta resposta:

Imagino que V. esteja intrigado com o meu silêncio que já vai prolongandopor mais tempo do que eu esperava. É que vim viver, no Rio, logo depois deminha chegada, um feriado de tão estranha intensidade dessa campanha demaldade e delapidação gratuita com que os nossos adversários nos procuramfazer aborrecer a educação, que não tinha ânimo para os abandonos de umacarta [...].

E adeus, meu caro Fernando. Mesmo quando estamos em silêncio, estamosunidos pelo mesmo drama de uma idêntica vocação pública, nesse país deferozes interesses privados [Carta de Anísio Teixeira para Fernando de Aze-vedo, 11 nov. 1933].

Enquanto selecionava a correspondência que seria entregue ao en-tão diretor da Instrução Pública, provavelmente, o carteiro admirava os

4. A respeito da correspondência dos signatários do “Manifesto dos Pioneiros” comAnísio Teixeira, consultar Simonini (2004).

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envelopes com selos que indicavam a procedência das mais diferentesregiões do país, da própria cidade do Rio de Janeiro e até mesmo depaíses distantes. É possível também que decifrasse letras escritas à mão,muitas vezes ilegíveis. A leitura de manuscritos era uma habilidade testadaem concurso para o cargo de carteiro e, para a referida prova, adotava-se, segundo Jacob Penteado, o livro “Manuscritos – coletânea organiza-da pelo Bacharel Benedito da Lapa Trancoso, aprovado e adotado nasEscolas Públicas do Estado, por ato de 10 de junho de 1908, edição deEspíndola & Comp. – Rua Direita, 10º andar, onde havia trechos doPadre Vieira, Casimiro de Abreu, Bernardes, Castilho, Álvaro Guerra,Alberto Souza e do Autor” (1963, p. 42). Grande parte das cartas, noentanto, tinha uma letra que indicava boa educação e respeito pelo ou-tro, civilidade, pois como lembrava o autor do livro Leitura manuscripta:“A caligraphia é um bom dote do homem, não é por certo o mais precio-so, entretanto, merece bem qui não seja desprezado” (B.P.R., s.d., p. 10).

No verso de muitos envelopes estavam nomes que permitiam suporque os remetentes ocupavam lugares de destaque na vida política e cul-tural. Monteiro Lobato, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, AfrânioPeixoto, Hermes Lima, Antonio Carlos, Belizário Penna, Pedro Ernesto,Assis Chateaubriand, Homero Pires e Amaral Peixoto corresponderam-se com Anísio com maior ou menor freqüência. Outras cartas eram en-viadas por amigos, familiares, pessoas comuns: mensagens de pais dealunos e de profissionais que atuavam nos bastidores das salas de aula,as professoras, que protestavam contra injustiças, denunciavam perse-guições, sugeriam procedimentos administrativos, comentavam a refor-ma, ofereciam seus préstimos, encaminhavam livros e cartilhas, convi-davam para atividades escolares e solicitavam reintegração, transferênciae emprego. Protegidas no anonimato, algumas, sequer, traziam o reme-tente e assinavam suas reivindicações como “Uma professora” e “Umainteressada”5.

5. Cartas escritas provavelmente pela mesma professora, que fazem sugestões sobreo caso das substitutas, sugerindo como a classe das adjuntas deveria ser dividida, eapontando os inspetores e diretoras como os profissionais capazes de avaliar acapacidade e o valor do trabalho que vinha sendo desenvolvido por elas.

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Cartas de amor também vinham de São Paulo, enviadas por EmilinhaFerreira, com quem Anísio viria a se casar em 1932, e que preenchiam asolidão e faziam suportar melhor as incompreensões e mal-entendidos,como ele escreveu: “Aqui está, neste domingo suave e luminoso, a suaultima carta, também suave e luminosa... Descansei toda a manhã e agoraestou a te escrever e a ouvir música”, ou “A sua cartinha tão mimada tãoaffectuosa deu-me nova alma. Havia ficado um pouquinho afflicto, comtodas aquelas queixas da sua ultima carta” (Cartas de Anísio Teixeirapara Emilinha Ferreira, 29 nov. 1931 e 14 fev. 1932, respectivamente),em uma alusão às reclamações da noiva por causa das ausências prolon-gadas e da falta de notícias. Tratando do casamento que se aproximavaela demonstrava também apreensão com o trabalho dele: “Que estará sepassando com Você? Nem mesmo os jornais me dizem nada a seu res-peito. Soube pelo irmão de Lobo e por outro amigo q esteve aqui outrodia q Você tem soffrido uma guerrinha terrivel de certas professoras, éverdade?” (Carta de 27 fev. 1932)6.

Umas cartas eram volumosas, exigindo talvez maior esforço do car-teiro para transportá-las. Traziam “presentes de papel”7, como os livrosenviados por intelectuais com quem Anísio tecia, por meio da trocaepistolar, uma rede de idéias e afetos. Lidos e comentados, expressamuma prática de amizade materializada na escrita marcada pelas impres-sões de leituras, entre aqueles que se consideravam mutuamente leito-res qualificados. Educação progressiva: uma introdução à filosofia da

6. Sobre essas cartas de amor, consultar Cardoso (2004).7. Expressão usada por Venancio (2001) para a troca de livros entre intelectuais. Na

correspondência de Monteiro Lobato para Anísio Teixeira, é possível observar essatroca: “Meu próximo livro, ‘O poço do Visconde’, será dedicado a você. Em outu-bro próximo estará aí. A leitura do livro espírita A grande síntese, que o deixavatonto, deslumbrado, maravilhado e inclinadíssimo a rescrevê-lo, tal a minha certe-za de torná-lo três vêzes mais claro” ensejou a vontade de compartilhar a descober-ta: “Quis mandar-te o livro, em vez de indicá-lo, mas não achei nenhum nas livra-rias; estão tirando nova edição”, dizia em carta de 3 de junho de 1944. Anísio, porsua vez, agradecia tecendo comentários sobre os livros escritos por Lobato, pois,durante o período em que esteve em Caitités, confessava que só lhe restava dedicar-se à leitura: “Vivo entre Dewey, Russel, Wells e Lobato [...] Vivo com eles mergu-lhado no futuro”, conforme carta de 7 de junho de 1937.

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educação, de 1932, e Em marcha para a democracia, de 1934, foramobjeto de comentários de alguns correspondentes, amalgamando um sen-timento de grupo que ia à frente, na vanguarda: os pioneiros8.

Parte dessa correspondência, a que manteve com intelectuais, temdespertado a atenção de historiadores e historiadores da educação, játendo sido inclusive publicadas. Conversa entre amigos: correspondên-cia escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato (Viana & Fraiz,1985) traz uma seleção de cartas que se constituem em exercício daamizade alimentada através da palavra escrita, conforme assinalaram osorganizadores. As descobertas, alegrias, decepções, dores e perdas dosdois epistológrafos estão retidas em folhas de papel e traduzidas emconfidências da vida pessoal, comentários sobre os projetos profissio-nais, impressões sobre a cena política, como este:

A sua carta chegou-me aqui já em plena revolução. Não se admire, pois, quevenha com atraso lhe responder. Faltava liberdade de espírito e “liberdade de escri-ta” para escrever cartas. Hoje, segundo dizem, continua a faltar liberdade de escrita– há censura no correio para o estrangeiro –, mas já tenho liberdade de espíritobastante para lhe escrever toda uma página sobre um bath-tub americano enquantofiquem a amadurecer os frutos da revolução brasileira, e os senhores ditadores,julguem que podemos dizer se os achamos ou não gostosos [Carta de AnísioTeixeira para Monteiro Lobato, 26 nov. 1930].

Na batalha da educação: correspondência entre Anísio Teixeira eFernando de Azevedo (1929-1971) (Vidal, 2000) reúne cartas trocadas

8. Hermes Lima, por exemplo, confessou em carta de 23 set. 1933: “Um dos meusprazeres atuaes é acompanhar o desenvolvimento intelectual do Gonçalo. Achoque a criança possue uma curiosidade natural para aprender: mas a escola asfixia,comprime, limita, como que parcializa essa curiosidade e certamente isso se fazporque ela ainda é um ambiente demasiado limitado, profundamente artificial, semligação nem contacto com a vida, com a rua, com a sociedade. Cada vez maiscomprehendo o que significa renovar a escola e para isso de uma [segunda] e muitoatenta leitura de sua ‘Educação Progressiva’ tirei os mais preciosos elementos. Naverdade, seu livro é luminoso e denso de observações que esclarecem e precisam,de modo singular, o assumpto”.

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desde quando Anísio retornou dos Estados Unidos até a sua morte. Elasexpressam uma amizade que foi sendo tecida, ao longo dos anos, naatuação em favor da educação nacional. Essas publicações derivam, cer-tamente, da compreensão de que as cartas de homens públicos podemrevelar aspectos obscurecidos pela documentação oficial9.

Habituado também a entregar cartas de pedidos endereçadas a Aní-sio Teixeira, o carteiro possivelmente não imaginava que esses seriamdocumentos preciosos e que um dia viriam a ser lidos por estudiososinteressados em compreender as práticas políticas que atravessaram avida pública e o campo da educação na década de 193010. Assim comoas que foram enviadas a outros homens públicos e que já foram objetode estudo, elas permitem examinar a cultura política da época.

Essas cartas também têm as marcas de quem as escreveu e daqueleque as leu. Quem fazia os pedidos? Com que intenção? Quais eram osargumentos utilizados que justificavam as demandas? Quais foram oscargos mais cobiçados? O beneficiado pelo atendimento do pedido foi opróprio missivista? O pedido foi formulado por outra pessoa que extrai-ria do atendimento benefícios políticos também para si11? Respostas aessas questões envolvem observar que

Esse objeto exige de seus estudiosos uma atenção muito especial ao supor-te material da mensagem (cartões, telegramas, tipo de papel de carta); aos

9. Gómez chama a atenção para o fato de que as cartas são importantes fontes pois “sacana a la luz la versatilidad de las informaciones y conocimientos que se puedem extraerde su interpretación y estudio. Se trata de fuentes que el historiador no puede expulsarde su taller salvo que quiera ser cúmplice de determinados silencios y olvidos; lo mismoque tampoco deberían hacerlo cuantos estudiosos se interesan por algún aspecto deldevenir humano, ya sea el lenguaje, la escritura, la educación, la mentalidades o lascostumbres” (2002, p. 16).

10. No descritor do arquivo pessoal de Anísio Teixeira é observada a expressiva pre-sença desse tipo de documento, no período em que esteve no Rio de Janeiro: “Adocumentação diz respeito principalmente à discussão do ‘manifesto da escola nova’,às atividades da ‘Associação Brasileira de Educação’, a pedidos de emprego e aquestões administrativas”.

11. Em torno dessas questões, Pinto (1998), Gomes (2000) e Heyman (1997) examina-ram as cartas de pedidos para Nilo Peçanha, Gustavo Capanema e Filinto Müller.

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códigos sociais utilizados (tratamento, forma de argumentação etc); e à cor-reção lingüística (fluidez do texto, tipo de letra, ordenamento da página etc);dentre outros. Aspectos que em grande parte precisam ser considerados deforma correlacionada para que o conjunto documental examinado ou mesmouma única carta ganhe significado. Esses cuidados remetem à atenção comque o estudioso tem de trabalhar, sobretudo se for considerado que a corres-pondência muitas vezes constitui um conjunto extremamente fragmentadode documentos de complexo tratamento analítico [Gomes, 2000, p. 20].

Seguir as anotações feitas nas margens, examinar rascunhos ou res-postas que existam eventualmente na correspondência ativa de AnísioTeixeira podem ser pistas reveladoras de como este se movia no jogo detrocas de favores no exercício do cargo, no momento em que liderava areforma que foi considerada por muitos de seus contemporâneos a maiscorajosa de todas (ver Lima, 1974, por exemplo).

Papéis arquivados

Escritas em papéis brancos, azuis, cor-de-rosa, desbotados pelo tem-po, as cartas recebidas por Anísio Teixeira, entre 1931 e 1935, estãoguardadas em seu arquivo pessoal sob a guarda do Centro de Pesquisa eDocumentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fun-dação Getúlio Vargas12, que foi doado por sua família, que como muitasoutras procurou, assim, imortalizar a trajetória de quase cinqüenta anosde vida pública do educador.

A doação do arquivo ao CPDOC obedeceu a uma certa lógica quetem norteado as famílias de intelectuais e homens públicos: preservar aimagem, reparar injustiças, impedir o esquecimento, dar visibilidade a

12. O arquivo pessoal de Anísio Teixeira contém vasto conjunto documental compostode 34.000 documentos manuscritos, seiscentos documentos impressos, 502 foto-grafias, 199 cartões postais e quatro discos nos documentos audiovisuais,microfilmados, e está dividido nas séries documentos pessoais, correspondência,produção intelectual, legislação, temática, diversos e recortes de jornais.

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uma obra13. Relatando a doação do arquivo, Babi Teixeira, em entrevis-ta concedida por ocasião do centenário de nascimento do pai, declarouque haviam doado praticamente todo o acervo ao CPDOC porque nãotinham estrutura financeira para tratar um arquivo daquele nível. Res-saltou ainda que a criação da Fundação Anísio Teixeira, na Bahia, nãofaria com que esse arquivo fosse dali retirado: “Este arquivo permane-cerá lá não só porque eu respeito muitíssimo o trabalho do CPDOCcomo não teríamos condições de fazer o mesmo tipo de tratamento. Alémdisto, o Centro aqui no Rio, tem uma visibilidade certamente maior doque a Fundação Anísio Teixeira” (Gondra, 2000, p. 77).

O arquivo compreende, além do período no qual esteve no Distri-to Federal, a presença de Anísio Teixeira a partir de 1924 na Diretoria daInstrução Pública da Bahia, no debate constituinte, suas atividades noInstituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), no Centro Brasileirode Pesquisas Educacionais (CBPE) e em muitas outras iniciativas quevisaram reformar o país pela via da educação, como o debate sobre aLei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), e sua participa-ção na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e aCultura (UNESCO) e na Universidade de Brasília (UnB).

Dimensões de sua vida pessoal estão presentes em cartas de suamãe, pai, irmãos e filhos, em diários que registram suas viagens à Euro-pa e aos Estados Unidos na década de 1920, além de fotografias, cartei-ras, agendas, receitas médicas, recibos diversos, escrituras de imóveis,comprovantes de viagens, notas fiscais, entre outros14. Esse mesmo cui-dado de guardar seus papéis tiveram alguns educadores e educadoras

13. Em matéria assinada por Adriana Pavlova (“Guardiões às avessas”), a jornalistaanalisa o papel dos herdeiros ante os legados de artistas plásticos, escritores e per-sonalidades públicas, destacando que para preservar a memória essas famílias têmdificultado acesso a documentos, divergido das propostas de pagamentos de direi-tos autorais ou simplesmente impedido a publicação de trabalhos que poderiammacular a imagem de Glauber Rocha, Di Cavalcanti, Garrincha, Silveira Sampaio,Tom Jobim, Pixinguinha, Vinícius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, PedroNava, Câmara Cascudo, Guimarães Rosa e Cecília Meireles, entre ourtros (O Glo-bo, Segundo Caderno, 12 de fevereiro de 2002, pp. 1 e 3).

14. Ver descritor e análise do arquivo de Anísio Teixeira no CPDOC Heyman (2003).

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que foram signatários do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”:Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Armanda Alvaro Alberto,Paschoal Lemme, Cecília Meireles, Delgado de Carvalho, EdgarSüssekind de Mendonça e Francisco Venancio Filho, que pretendiam,assim, provar que haviam participado da vida pública de seu tempo,legar um testemunho inconteste às gerações futuras, sobreviver em meioaos papéis, multiplicar a experiência e evitar o esquecimento.

Arquiva-se a própria vida, afinal, segundo Artières, para ter a iden-tidade reconhecida, controlar a vida, recordar e retirar lições do passa-do, preparar o futuro e inscrever a existência: “Arquivar a própria vida édesafiar a ordem das coisas: a justiça dos homens assim como o traba-lho do tempo” (1998, p. 31). Guardar documentos de si mesmo, comoassinalou Ribeiro, revela o desejo de perpetuar-se, mas, sobretudo, res-ponde ao desejo de forjar uma glória. Assim, os arquivos pessoais en-cerram a intenção do titular de ser reconhecido pela posteridade poruma “identidade digna de nota” (Ribeiro, 1998, p. 35).

A quantidade de documentos nesse arquivo não significa que elenão tenha sido resultado de uma seleção. Entendido como uma formade escrita autobiográfica, arquivos pessoais envolvem censura, supres-são, interdição, triagem. Arquivar é guardar. Guardar é também escon-der. Neles existem silêncios, não ditos, interditos e são organizados ob-jetivando a posteridade, deixando registros que permitam a elaboraçãofutura de uma biografia edificante15.

A farta documentação do educador, no CPDOC, não abrange toda asua trajetória, mesmo porque seu acervo está distribuído por várias ins-tituições de seleção, organização, preservação e produção de sua me-mória, como ressaltou Gondra:

O acervo do Professor Anísio encontra-se disperso, distribuído entre ima-gens, lembranças de familiares, de companheiros de trabalho, dos adversá-rios, artigos, livros, cartas, textos da imprensa, imagens, objetos pessoais,legislação, pareceres, projetos, textos de reforma e de criação de instituições,

15. Para análise de arquivos pessoais ver Mignot (1997, 2000 e 2002a)

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prédios, salas de aula. Dispersão igualmente repartida entre arquivos fami-liares e públicos, materiais e virtuais. Todos constituindo lugares nos quais alembrança do professor Anísio pode surpreender, provocar, iluminar ou sim-plesmente passar despercebida [2000, p. 75].

A quantidade e diversidade de documentos no arquivo de AnísioTeixeira resulta também de um processo de inevitável seleção da famí-lia: “Nós, da família, guardamos algumas coisas pessoais dele, tipo as-sim: um chapéu, um sobretudo que ele usou, algumas medalhas, home-nagens que ele recebeu, a pasta de trabalho encontrada junto ao seucorpo, mas muito pouca coisa”, como destacou ainda sua filha (idem,p. 78). Selecionados, depositados em outras instituições, no arquivo doCPDOC, existem lacunas: “O afastamento do titular da Secretaria Geralde Educação e Cultura do Distrito Federal é parcamente documentado,ainda que a correspondência de três de seus irmãos e de Nestor Duarteinforme sobre o panorama político”16.

O arquivo de Anísio Teixeira tem uma íntima relação com outrosarquivos de educadores de sua geração, sob a guarda do CPDOC, o quepermite delinear parte do diálogo da intelectualidade brasileira sobre aeducação17. A correspondência de Anísio Teixeira com Lourenço Filhoé particularmente importante. Se, na década de 1920, em estados dife-rentes, no Ceará e na Bahia, empreenderam as primeiras reformas, en-frentando problemas semelhantes para assegurar uma educação de qua-lidade para todos, no Distrito Federal estiveram juntos, procurando darvisibilidade à causa a qual dedicaram suas vidas, tendo como palco acidade que era a vitrine do Brasil18. Durante o período no qual AnísioTeixeira foi o diretor da Instrução Pública, Lourenço Filho esteve à frente

16. Ver o descritor do arquivo Anísio Teixeira no CPDOC.17. Essa perspectiva de análise dos arquivos desses educadores no CPDOC é mais

detalhada por Heyman (1999).18. Essa expressão, usada por Nunes (1999) em sua análise da reforma de Anísio Teixeira

no Distrito Federal, sintetiza não só a importância cultural, política e econômica daentão capital da República, mas também a visibilidade que a reforma da educaçãoteria nessa cidade para aqueles que a promoveram.

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do Instituto de Educação e as cartas trocadas permitem entrever como aformação de professores foi uma questão crucial para esses renovado-res, levando-os a discutir e elaborar diretrizes que favorecessem umaescola que partisse dos interesses das crianças, em substituição às ve-lhas práticas pedagógicas19.

Assim como rascunhos, textos manuscritos, notas, bilhetes, cartõesde visita e convites, as cartas no arquivo de Anísio Teixeira no CPDOCtambém resultam da dispersão, da acumulação possível e da seleção dotitular ou de seus familiares, evidenciando que existem diferenças entreescrever, viver e guardar e que, como qualquer outra fonte, a correspon-dência

é um objeto construído, inscrito no tempo e no espaço social, desde a origem,uma a uma, cartas esparsas, até sua descoberta, quando reunidas em um todoindissociável. Esse processo de construção de uma correspondência se man-tém nos gestos de destruição (cartas queimadas ou jogadas), na erosão dotempo (cartas perdidas ou esquecidas) quanto às intervenções sucessivas paraconservar os “papéis de família” [Dauphin & Poublan, 2002, p. 80].

Marcas da escrita, rastros de leitura

Na correspondência recebida por Anísio Teixeira, em seu gabinete,é possível observar a letra bem desenhada e a atenção com os suportesda escrita pessoal20, que denotam que escrever cartas era para muitosum ritual que exigia disciplina e respeito às normas epistolares21.

19. Na análise da correspondência de Anísio Teixeira com os signatários do “Manifes-to dos Pioneiros da Educação Nova”, Simonini (2004) assinalou que o então dire-tor da Instrução Pública recebeu cartas administrativas de Lourenço Filho, versan-do sobre as mudanças que deveriam ser operadas na formação de professores, alémde cartas escritas dos Estados Unidos, para onde viajou a fim de observar o sistemaeducacional.

20. Sobre os suportes da escrita pessoal, consultar Hébrard (2000).21. Entre estudos de manuais epistolares, ver Sierra Blás (2003) e Castillo Gómez

(2002).

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O tom íntimo e afetuoso dos amigos mais próximos (“Meu caroAnísio”, “Querido Anísio”, “Meu querido Anísio”, “Caro Anísio”, “Gran-de Anísio”, “Meu grande amigo”, “Adeus, meu caro Anísio, um grandeabraço do velho amigo”, “Abraço-o com amizade fraternal, profunda-mente, reconhecido”) contrasta com a formalidade das cartas que foramenviadas por remetentes mais distantes, que observavam a hierarquia ea importância do cargo: “Prezado Professor”, “Dr. Anísio”, “Exmo Sr.Anísio Teixeira”, “Atenciosamente”, “Cordialmente”, “Ao seu dispor”.

Os papéis timbrados das cartas que hoje estão guardadas em seuarquivo pessoal indicam o lugar social dos remetentes, a rede de rela-ções do titular e os interesses em jogo na pasta da educação. Nas cartasenviadas, por exemplo, por Fernando de Azevedo, durante toda a vida, épossível acompanhar nos suportes da escrita sua trajetória no cenáriocultural e educacional do país. Elas trazem impresso o próprio nome doremetente ou os órgãos em que atuou, em São Paulo, cidade na qualpermaneceu depois do cargo no Rio de Janeiro: Secretaria de Educaçãoe Saúde, Secretaria Municipal de Educação e Cultura, Departamento deEducação, Instituto de Educação, Faculdade de Filosofia, Ciências eLetras, Centro Regional de Pesquisas Educacionais e, também, Compa-nhia Editora Nacional, Biblioteca Pedagógica Brasileira e Academia Bra-sileira de Letras22.

Em papéis timbrados os pedidos constituem um volume significa-tivo. Na maior parte das vezes, escritas por políticos ou ocupantes decargos públicos que cumpriam a função de intermediar a apresentaçãode postulantes aos mais diferentes cargos: Gabinete do Presidente daRepública, do presidente da Câmara dos Deputados, Gabinete doInterventor no Distrito Federal, Ministério da Educação e Saúde Pú-blica, Gabinete do Ministro da Marinha, Diretoria da Limpeza Públicae Particular, secretário de Viação de Obras Públicas de Minas Gerais,

22. Os timbres em papéis de cartas enviadas de Gilberto Freire para José Lins do Regoforam examinados por Lima e Figueiredo Júnior, e no estudo de Simonini e Marques(2003), sobre os papéis timbrados das cartas de Fernando de Azevedo para AnísioTeixeira.

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entre outros. Na linguagem, geralmente revestida de certa formalida-de, o motivo da audiência seria apresentado pelo portador da própriamissiva que “deseja expôr-lhes assumpto que se prende aos serviçosdessa Directoria”, “tem assumpto a tratar junto a essa Directoria, con-forme lhe exporá verbalmente”, ou “que deseja conversar com o ami-go a respeito de assumpto que se prende aos serviços dessa Directoria”(Cartas de Francisco Vicente Bulcão Vianna para Anísio Teixeira, 29jan. 1932, 11 nov. 1932, 11 nov. 1931 e 12 jan. 1932, respectivamen-te). Em outras, o tom era mais afetuoso, o texto mais longo, o motivodeclarado, como esta que reiterou um pedido para o “aproveitamentocomo guardiã ou inspetora de alumnos” de uma mulher em dificulda-des financeiras:

Volto agora a insistir nesse pedido. Trata-se de uma moça grandementeprendada, educada na Inglaterra e que, com o fallecimento do marido, en-contra-se na mais penosa das situações. Não fossem essas condições especiaes,acrescidas pela insistência de um amigo a quem nada posso negar e creio queo não importunaria ainda, certo de que se tivesse sido possível, a minharecommendada teria já obtido, de sua boa vontade, o amparo que deseja.

Antecipando desde já os meus agradecimentos, aguardo com satisfação,as suas ordens” [Carta de Francisco Vicente Bulcão Vianna para AnísioTeixeira, 21 nov. 1931].

As palavras protegida e recomendada são comuns nas cartas de pe-didos escritas por políticos, em favor das professoras, revelando, assim,uma lógica do apadrinhamento23, na qual pessoas com certa importân-cia e proximidade de Anísio Teixeira teriam suas solicitações atendidascom maior sucesso. Atuando como mediadores, os políticos evidencia-vam não só o próprio prestígio, mas também o do provedor, como se vênesta carta do deputado baiano Homero Pires: “Não se pode ser impor-tante... Se tivesse de lhe despejar à porta da rua os pedidos que me fa-

23. Sobre a lógica do apadrinhamento, ver Gomes (2000) e Heyman (1999) no casodas cartas de políticos para Anísio Teixeira, o estudo de Marques (2004).

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zem para os encaminhar a você, forçadamente a sua porta ficaria atra-vancada e você não sairia à rua”24.

Os pedidos em favor de professores tiveram outros mediadores alémdos políticos. Amigos e conterrâneos escreveram, também, em defesa deseus próprios interesses, mas, na maior parte das vezes, o fizeram parainterceder por outros postulantes invocando a amizade que os unia, o tra-balho desenvolvido juntos, a crença em ideais comuns. A situação finan-ceira precária, a injustiça sofrida, a vontade de concluir estudos etc. justi-ficavam o pedido de vagas para alunos na rede pública e as solicitações deemprego para os cargos de zelador, ajudante de rouparia, guardião, inspe-tor, servente, escriturário, enfermeiro escolar e professor. Para os que jáexerciam o magistério, efetivação para substitutos e transferências de es-colas, abonos de faltas, férias, licenças sem vencimento, entre outros.

Fernando de Azevedo, que havia combatido intransigentemente aingerência política na educação porque impedia que a sua reforma obti-vesse sucesso, condenando de forma veemente os “parasitas dos cofrespúblicos”25, assim como Noemy da Silveira, Carneiro Leão, MárioCasassanta e Afrânio Peixoto, entre outros, também mediou pedido deum professor: “Já lhe havia escripto hoje. Volto para lhe dizer que oJosé Brandão, filho de um grande amigo de minha família, dr. ThoméBrandão, medico, me pede meu interesse junto a v. pela sua reintegra-ção. Elle era professor, interino ou effectivo, de musica em Escola Pro-fissional. Não seria possível reintegral-o? Ficar-lhe-ei muito grato peloque for possivel fazer por elle” (Carta de Fernando de Azevedo paraAnísio Teixeira, 14 out. 1933).

24. Entre as cartas mandadas pelo deputado, encontram-se as seguintes: “Abra, porém,uma exceção para o Dr. Jorge Machado, Livre Docente da Escola Normal, donde foiafastado recentemente, e que plenamente prestificou o seu direito em memorial dirigi-do ao Prefeito. Eu o recomendo com interesse a você” datada de 26 out. 1931, e “Aprofessora D. Nair Viegas de Oliveira foi-me apresentada pelo Dr. Antonio [ilegível]Mendes meu amigo, filho do Dr. Pacheco Mendes os quaes ambos se interessam pelamesma professora e eu com elles, – todos esperando que você a acolha com a suahabitual boa vontade, o que será um favor”, de 8 jan. 1932, entre muitas outras.

25. Expressão utilizada em carta enviada em 26 jan. 1932.

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As professoras que apelaram diretamente ao diretor da InstruçãoPública lançaram mão de recursos argumentativos semelhantes aos dospolíticos que invocavam a “boa vontade”, “a boa atenção”, “o vivoempenho” do educador. Certas de que ele tinha “sciência e consciên-cia”, “espírito justiceiro”, “summa gentileza” para nomear, substituir,contratar, transferir demitir e escreveram para reivindicar cargos, mu-danças de escolas e dispensa de estágio, por exemplo.

A ampliação da rede escolar que visava não apenas aumentar o nú-mero de matrículas mas proporcionar um ensino de qualidade, uma preo-cupação marcante da reforma de Anísio Teixeira que pretendia sinalizarpara o direito das crianças estudarem em prédios arquitetonicamenteadequados ao desenvolvimento infantil (Nunes, 1999), parece ter signi-ficado apenas como o surgimento de maior número de postos de traba-lho, o que justificava, para alguns, recorrer ao Estado protetor. EvaSchendel, que estava em dificuldades financeiras, pois com o casamen-to do irmão estava impedida de arcar sozinha com as despesas domésti-cas, pedia que lembrasse do seu nome “na primeira oportunidade emque puder ser aproveitada em colocação de 500$000, no mínimo” (Car-ta de Eva Schendel para Anísio Teixeira, 25 maio 1935). Confessando-se profundamente interessada nos avanços da moderna pedagogia e noensino da leitura, uma professora mineira, diplomada, com experiênciano magistério, fluente em alemão e francês, ofereceu-se para trabalharna futura Biblioteca Infantil, pois “Ultimamente, venho de preferir asnomeações do governo, que oferecem mais vantagens” (Carta deArmanda Cohanier para Anísio Teixeira, 26 abr. 1934).

Duas professoras, no entanto, preferiram dirigir-se às mulheres deAnísio Teixeira e de Pedro Ernesto, para que intercedessem por elas. Aprimeira expressava confiança que a destinatária teria “vivo interessepor esta sua patricia, que actualmente está só no mundo, sem um paren-te forçado, sem um arrimo ou protecção”, para encaminhar a sua solici-tação: “Preciso de um lugar cujo ordenado me seja sufficiente para eume manter aqui. Rogo que se apresente uma opportunidade, estou certade que a generosa D. Emilinha, não deixará de me proteger pedindo aoDr. Anisio, a minha nomeação” (Carta de Maria Madalena Vieira paraEmilinha Ferreira, 4 jun. 1935). A segunda apresentava-se como “uma

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professora que, a despeito das innumeras injustiças soffridas de supe-riores, permanece, de corpo e alma, na sua missão de professora, comfunções multiplas, certa de não conseguir o que sempre desejou – a direcçãode uma escola sua”, mas escrevia para obter recursos para a montagem deum gabinete dentário na escola em que atuava. Para ter sua pretensãoatendida, argumentava que pertencia a uma numerosa e influente famíliaque havia votado no candidato do prefeito na última eleição:

Exma. Senhora Dr. Pedro Ernesto,[...] Dispusesse eu de tempo, e, certamente, não importunaria a V.Excia.,

mas ao par das lidas da escola e da casa, dediquei-me com muito amor, aoserviço de alistamento eleitoral, certa da necessidade imperiosa de votar efazer votar todos os amigos ao meu alcance, dentre as minhas relações ad-quiridas por meu pae, durante os innumeros annos que teve como IntendenteMunicipal e Deputado Federal, dentre as relações de amizade decorrentes devarias profissões da família (onze irmãos professoras, médicos, advogados,dentistas, oficiaes do nosso Exercito) e dentre os Catholicos do populososubúrbio de Meyer, tendo sido Secretaria da Liga Eleitoral Catholica, dessesubúrbio, e da qual é Presidente meu irmão Honório, estendendo minha acçãoà Liga Eleitoral Catholica do Engenho de Dentro, da qual me fizeram mem-bro à ultima hora com um mês antes do encerramento. [...]

Perdoe, Exma Senhora Dr. Pedro Ernesto: Falo com V. Excia. com natura-lidade de quem conhece V. Excia. intimamente: É fructo da sympathia quenos inspira, como o nosso digníssimo Interventor, a quem espontaneamente,dei, com meus manos, apoio, na eleição ultima, votando no Sr. Dr. JonesRocha, por termos sido informados de que esse era o candidato de S. Excia[Carta de Olga dos Santos Pimentel para esposa de Pedro Ernesto, 27 ago.1934].

Nem sempre a iniciativa das professoras de registrar suas pretensõescom o próprio punho, na folha de papel em branco, significou abrir mãode mediadores. Alzira Ladeira Rodrigues Carvalho, por exemplo, ao pe-dir sua indicação para superintendente do ensino elementar ou particular,citou o nome de vários pessoas que já intercederam em seu favor, sinali-zando assim para a sua rede de relações: o general Góes Monteiro, o ge-

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neral João Francisco, Helvécio Gomes de Oliveira, arcepispo de Mariana,“cuja carta de recommendação entregou ao Dr. Amaral Peixoto que, gen-tilmente, se prestou a faze-la chegar às vossas mãos” (Carta de AlziraLadeira Rodrigues Carvalho para Anísio Teixeira, 3 dez. 1933).

As anotações feitas por Anísio Teixeira nas margens, os agradeci-mentos, as cópias ou rascunhos das respostas dadas, evidenciam quecartas não deixam apenas as marcas de quem as escreveu. O destinatá-rio deixou também sobre as folhas de papel os rastros de suas leituras26.

Muitas vezes ilegíveis, as anotações feitas por Anísio deixam entre-ver as maneiras como os pedidos foram lidos e encaminhados. Esclare-cem o conteúdo da carta, a importância do remetente, as redes de rela-ções e até mesmo direcionam a resposta a ser dada – “Pedido”,“Respondido”, “Confidencial”, “Providenciado”, “Informar os termosda lei”, “Examinar o caso”, “Agradeça-se”, “Sciente”, “Arquive-se”, ouainda “Directora da Escola José de Alencar para substituir o Dr. SolanoCarneiro”, “Ficou resolvido continuar D. Cecília Álvares Pessoa” e“Transferencia de uma contramestra da Escola Paulo de Frontin. Falarcom D. Andréa”.

Algumas respostas escritas por Anísio indicam que as pretensõeseram lidas, avaliadas e até mesmo recusadas como na carta a AmaralPeixoto, por exemplo, na qual justificou com argumentos técnicos aimpossibilidade de alugar ou comprar prédio situado na rua das Palmei-ras, para instalar uma escola, visto que examinado pelo Inspetor Escolardo Distrito, “não foi julgado em condições de servir para séde de umaescola, pois trata-se de uma casa antiga, baixa e sem condições de adap-tabilidade” (Carta de Anísio Teixeira para Amaral Peixoto, 24 dez. 1931).

Entre os agradecimentos, muitos deles em cartões e papéis commonogramas, é possível perceber que os pedidos de nomeação ou inter-mediação para cargos eram atendidos. Cópias de cartas e rascunhos in-dicam também que ele lia os pedidos e, por vezes, os intermediava espe-

26. Para Camargo (2000, p. 204), “sujeitos que escrevem e lêem cartas deixam suasmarcas, que podem indicar pistas para uma leitura da constituição do sujeito daescrita, na escrita”.

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cialmente para seus conterrâneos, que escreviam para que ele interce-desse junto a órgãos da administração sediados no Distrito Federal ejunto à administração baiana, como se observa na carta datilografadaenviada a uma professora: “Comunico-lhe que transmiti, com todo inte-resse, seu pedido ao Dr. Edgard Pitangueira, Diretor Geral de Instruçãodo Estado da Bahia” (Carta de Anísio Teixeira para Lourdes Lobão, 29nov. 1931).

Em meio a tantas cartas de pedidos que não trazem as marcas da leitu-ra, uma destaca-se não só por sua bela caligrafia. Seria “uma carta respon-dida [...] [uma] cousa que se encerrou”, ou mais uma a responder “umacousa viva, a falar ainda e a esperar”, como escreveu Anísio Teixeira umdia ao se desculpar com Monteiro Lobato27 pela falta de tempo para darnotícias? Nas duas páginas pautadas, amareladas, o remetente não se li-mitou a pedir emprego no âmbito da educação. Como muitos outros queconsideravam o diretor da Instrução Pública com uma posição de desta-que que o credenciava para conseguir favores até no gabinete presiden-cial para evitar demissões de cargo de fiscalização ferroviária, promoçãono funcionalismo dos Telégrafos ou pensão para viúva, entre outros, oportador dos papéis que resistiram à triagem, à censura e ao descaso comos escritos das pessoas comuns tornou-se também mediador:

Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 1932.

Exmo. Snr. Pr. Anísio Teixeira

Respeitosas saudações.Sendo V. Exª o meu digno destinatário de maior destaque na situação pre-

sente, venho com o maior respeito vos fazer um pedido em favor de um dosmeus cunhados. É ele portador da profissão de pintor e como se acha desem-pregado desejava prestar os seus serviços nos Próprios Municipais, onde jáserviu há anos.

27. Carta de Anísio Teixeira para Monteiro Lobato, sem data. Reproduzida em Con-versa entre amigos, no qual os organizadores esclarecem que foi enviada da Bahia,possivelmente, em 1936 (1986, p. 78).

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O rapaz, que se chama Antonio de Medeiros, é reservista do Exercito,conta 25 anos de idade, é de conduta exemplar, muito trabalhador e residecomigo a rua Amorin, n. 32 na Estação da Piedade.

Tenho certeza de que uma carta de V.Exª, para o vosso colega da Diretoriade Obras da Prefeitura, será plenamente satisfeita.

Assim, rogo encarecidamente a V.Exª a concessão deste grande obsequio,pelo qual, desde já, me confesso sumamente agradecido.

De V.Exª Amgo certo e Crd às vossas ordens,João Mourão CarvalhinhoVosso carteiro”

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o carteiro e o educador 69

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Endereço para correspondênciaAna Chrystina Venancio Mignot

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Centro deEducação e Humanidades/Faculdade de Educação.

Rua São Francisco Xavier, 52412º andar - Sala 12037-F - Maracanã

CEP: 20550-900 Rio de Janeiro-RJE-mail: [email protected]

Recebido em: 10 de mar. de 2005Aprovado em: 28 de ago. de 2005

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DOSSIÊ

Arquivos Escolares: desafios à práticae à pesquisa em história da educação

Apresentação

Os arquivos escolares têm emergido nos últimos dez anos comotemática recorrente no campo da história da educação. Relatos de expe-riências de organização de acervos institucionais, narrativas sobre aspotencialidades da documentação escolar para a percepção da culturaescolar pretérita (e presente), publicação de inventários e guias de ar-quivo, elaboração de manuais e reprodução de documentos (digitadosou digitalizados) vêm mobilizando investigadores da área, renovandoas práticas da pesquisa e suscitando o uso de um novo arsenal teórico-metodológico.

O interesse pela singularidade no tratamento das diversas fontes paraa produção historiográfica, manifesto em décadas precedentes, já tinhaforjado um deslizamento em direção à história, à teoria da linguagem e àantropologia, dentre outras disciplinas, impelindo à busca de documenta-ção sobre o passado educacional em arquivos públicos, institucionais eparticulares, e mesmo à elaboração de documentos pelo recurso à históriaoral. O esforço de sistematização das informações e sua disponibilização,então iniciado, pela própria magnitude do projeto, demandaram a consti-tuição de grupos de pesquisa, cujo funcionamento regular propiciou aextensão do mapeamento das fontes documentais.

A esse movimento tem-se entretecido, mais recentemente, a preocu-pação com a preservação de acervos e a atenção aos primados daarquivística e da museologia, enredando os historiadores da educaçãona discussão sobre a cultura material, o exercício do arquivamento e do

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descarte e as técnicas específicas de conservação de cada suporte ouobjeto. Tais interlocuções têm ampliado ainda mais o horizonte do tra-balho em história da educação, ao mesmo tempo provocando fissurasno que se considera a seara do historiador e questionando fronteirasdisciplinares.

Ao lidar com os arquivos mortos de escolas, os investigadores têmsido instados a mobilizar a comunidade escolar e atentar para seusanseios. A literatura vem demonstrando a importância em associar alu-nos, professores e funcionários à organização e manutenção dos acer-vos escolares, na certeza de que a perenidade dessas iniciativas repousano seu acolhimento pelo efetivo da escola. Despontam, assim, argu-mentos em defesa da necessidade de integrar o funcionamento da secre-taria à prática do arquivo permanente, gerando instrumentos de trabalhopróprios ao universo documental da escola; e sobre a relevância emtornar o arquivo vivo, seja pela participação de alunos e professores naatividade de organização e guarda do acervo, seja pelo uso de algunsdocumentos escolares em sala de aula.

Em contrapartida, a percepção de que os objetos e móveis localiza-dos nas instalações escolares estão intrinsecamente ligados à constitui-ção das práticas escolares atuais e antigas, tecendo com os documentostextuais e fotográficos múltiplas histórias da escola e da educação, temlevado pesquisadores a problematizar as balizas que tradicionalmentedistinguem documentos arquivísticos e museológicos e a advogar o nãodesmembramento dos acervos escolares.

Os artigos aqui reunidos exploram a interdisciplinaridade dessasiniciativas, trazendo matizes das discussões recentes, nas quais o entre-laçamento das atividades de campo à reflexão teórico-metodológicaconfere densidade à análise. São várias as abordagens. Ora, a ênfaserecai sobre a tarefa metódica e minuciosa da organização do acervo,detalhando as ações realizadas e os obstáculos superados. Ora, o inte-resse volta-se para problematizar as relações entre arquivos, história ehistória da educação. Os autores são, todos, pesquisadores em históriada educação, embora tenham distintas formações (história, pedagogia ematemática) e diversas inserções institucionais (professores e arquivis-tas). E participaram do I Encontro de Arquivos Escolares e Museus Es-

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dossiê 73

colares, realizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisasem História da Educação (NIEPHE), na Faculdade de Educação da Uni-versidade de São Paulo (FEUSP), entre 26 e 28 de julho de 2005.

Com o objetivo de contribuir para a consolidação dos trabalhos so-bre a temática, sistematizando e socializando o debate, o encontro con-gregou pesquisadores portugueses e brasileiros das várias regiões, naexpectativa de propiciar intercâmbios e estimular ações conjuntas. Aproposição do presente dossiê reitera esse convite, reconhecendo que osdesafios à prática e à pesquisa em história da educação que o convíviocom os arquivos escolares suscita vêm sendo enfrentados de maneirasvariadas pelos investigadores da área.

Diana Gonçalves Vidal

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Arquivos e educação

a construção da memória educativa

Maria João Mogarro*

Resumo:Os arquivos escolares motivam profundas preocupações relativamente à salvaguarda epreservação dos seus documentos, que constituem instrumentos fundamentais para ahistória da escola e a construção da memória educativa. A sua importância tem vindo aser reconhecida, conduzindo a uma reflexão sobre a sua preservação, as condições deinstalação, a organização correcta dos documentos e o acesso às informações que neleestão contidas. Os arquivos escolares constituem o repositório das fontes de informaçãodirectamente relacionadas com o funcionamento das instituições educativas, o que lhesconfere uma importância acrescida nos novos caminhos da investigação em educação,que colocam estas instituições numa posição de grande centralidade para a compreen-são dos fenómenos educativos e dos processos de socialização das gerações mais jo-vens. Neste texto pretende-se reflectir sobre: o lugar dos arquivos escolares nas institui-ções educativas; os documentos, a sua natureza e as potencialidades para a investigaçãoem educação; os arquivos escolares numa perspectiva interdisciplinar; os arquivos, acultura escolar e a construção da memória educativa.CULTURA ESCOLAR; ARQUIVO; FONTES HISTÓRICAS; MEMÓRIA.

* Professora coordenadora da Escola Superior de Educação de Portalegre e investi-gadora da Unidade de I&D em Ciências da Educação da Faculdade de Psicologia eCiências da Educação da Universidade de Lisboa.

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Abstract:School archives are the object of deep concern regarding the safety and preservation oftheir documents, which are fundamental to the history of the school and construction ofthe educational memory. Their importance is increasingly acknowledged, inspiringreflection about their preservation, installation conditions, the correct organisation ofdocuments and access to the information they contain. School archives are the repositoryof the information sources directly related to the functioning of educational institutions,and this makes them all the more important in the new paths of research in education,that place these institutions at the centre of the stage in order to understand educationalphenomena and the socialisation processes of the younger generations. In this paper weintend to reflect about: the role of school archives in educational institutions; documents,their nature and potential for research in education; school archives from an interdisci-plinary point of view; archives, the school culture and the construction of the educationalmemory.SCHOOL CULTURE; ARCHIVE;HISTORICAL SOURCES; MEMORY.

Archives and education

the constitution of the educational memory

Maria João Mogarro*

* Professora coordenadora da Escola Superior de Educação de Portalegre e investi-gadora da Unidade de I&D em Ciências da Educação da Faculdade de Psicologia eCiências da Educação da Universidade de Lisboa.

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arquivos e educação 77

Os arquivos escolares motivam profundas preocupações relativas àsalvaguarda e preservação dos seus documentos, que constituem instru-mentos fundamentais para a história da escola e a construção da memó-ria educativa. A sua importância tem vindo a ser reconhecida, conduzindoa uma reflexão sobre a sua preservação, as condições de instalação, aorganização correcta dos documentos e o acesso às informações quenele estão contidas. Os arquivos escolares constituem o repositório dasfontes de informação directamente relacionadas com o funcionamentodas instituições educativas, o que lhes confere uma importância acresci-da nos novos caminhos da investigação em educação, que colocam es-sas instituições numa posição de grande centralidade para a compreensãodos fenómenos educativos e dos processos de socialização das geraçõesmais jovens. Neste texto pretende-se reflectir sobre: o lugar dos arqui-vos escolares nas instituições educativas; os documentos, a sua nature-za e as potencialidades para a investigação em educação; os arquivosescolares numa perspectiva interdisciplinar; os arquivos, a cultura esco-lar e a construção da memória educativa.

O lugar dos arquivos escolares nas instituiçõeseducativas

Os arquivos e os seus documentos têm adquirido uma importânciacrescente no campo da história da educação1. Eles possuem informa-ções que permitem introduzir a uniformidade na análise realizada sobreos vários discursos que são produzidos pelos actores educativos – pro-fessores, alunos, funcionários, autoridades locais e nacionais têm repre-sentações diversas relativamente à escola e expressam-nas de formasdiversificadas. O arquivo, constituindo o núcleo duro da informaçãosobre a escola, corresponde a um conjunto homogéneo e ocupa um lu-gar central e de referência no universo das fontes de informação que

1. Este artigo retoma e aprofunda ideias apresentadas no texto “Os arquivos escolaresnas instituições educativas portuguesas. Preservar a informação, construir a me-mória” (Mogarro, 2005).

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podem ser utilizadas para reconstruir o itinerário da instituição escolar.O cruzamento que se estabelece entre os dados obtidos, através da aná-lise dos documentos de um arquivo escolar, permitem realizar correla-ções estreitas entre as diversas informações (também obtidas em fundosdocumentais externos à escola), revelando um elevado índice de coe-rência e lógica internas do fundo arquivístico e o papel central dos seusdocumentos para a compreensão da organização e funcionamento dainstituição que os produziu (Mogarro, 2001, pp. XLIII-XLIV).

Mas essas inteligibilidades só são estabelecidas pelos processos deinvestigação. No caso dos arquivos escolares, trabalhamos com docu-mentos que estão depositados, na maior parte das situações, no silênciodesses mesmos arquivos e aí permanecem (resta saber se, de facto, ain-da permanecerão) até que o investigador proceda a uma avaliação dasua pertinência para o processo de investigação, em função dos proble-mas previamente formulados (Mogarro, 2001, p. XXXVIII). Se é ver-dade que o historiador inventa as suas fontes, “construindo-as” em arti-culação com o objecto de estudo e inserindo-as nas realidades históricas(e educativas, no caso que aqui nos interessa) em que foram produzidase utilizadas, no caso dos arquivos escolares estamos perante fontes deinformação tradicionalmente consagradas (os documentos de arquivo),embora também tradicionalmente consideradas menores no campo dahistória e, por isso, secundarizadas (pela sua condição de serem escola-res e, em consequência, revelarem os processos educativos). Essa con-dição tem vindo a ser gradualmente modificada, com a atenção crescen-te que têm assumido os aspectos da vida quotidiana e os “fazeresordinários” da escola, dois dos novos objectos de um número assinalávelde investigações historiográficas.

As novas vertentes de análise e produção histórico-educativa obri-gam a uma renovação dos olhares sobre os documentos de arquivosescolares e uma abertura teórico-metodológica que incorpore as esti-mulantes informações que eles disponibilizam. Os fundos desses arqui-vos são constituídos por documentos, geralmente em suporte de papel,organizados em livros, dossiês e avulsos, produzidos pelos actores edu-cativos e pela própria instituição, no âmbito das suas actividades e a umritmo que podemos considerar quase quotidiano.

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A importância do lugar do arquivo na instituição escolar tem acom-panhado a afirmação desta instituição como um microcosmos com for-mas e modos específicos de organização e funcionamento. As escolassão estruturas complexas, universos específicos, onde se condensammuitas das características e contradições do sistema educativo. Simulta-neamente, apresentam uma identidade própria, carregada de historici-dade, sendo possível construir, sistematizar e reescrever o itinerário devida de uma instituição (e das pessoas a ela ligadas), na sua multidimen-sionalidade, assumindo o seu arquivo um papel fundamental na cons-trução da memória escolar e da identidade histórica de uma escola.

No caso específico da situação portuguesa, a generalidade das esco-las têm os fundos dos seus arquivos dispersos por vários espaços, comoos sótãos, as caves, os vãos de escada e outros locais escondidos edesactivados, sem condições mínimas para albergarem os documentosde arquivo. Geralmente à guarda das respectivas secretarias e serviçosadministrativos, misturam-se documentos de origens diversas e utilida-de também diversificada: a) documentos activos – ainda utilizados comregularidade, organizados (geralmente) e de acesso mais fácil; b) docu-mentos semi-activos – cadastros de professores e de alunos, de que ain-da são pedidos certificados a partir do original, estando identificadospela instituição e sendo localizados com relativa facilidade; c) docu-mentos inactivos – nessa fase do seu ciclo de vida, os documentos en-contram-se normalmente depositados em locais que não garantem ascondições necessárias para a sua salvaguarda e preservação material,amontoando-se sem organização e misturando-se documentos de ori-gem e natureza muito diversa.

A importância dos arquivos escolares tem adquirido visibilidade emprojectos desenvolvidos nos últimos anos e que estiveram na origem depublicações de referência, em Portugal (Nóvoa & Santa-Clara, 2003;Magalhães, 2001). Esse processo tem similitudes com o movimento quese tem consolidado no panorama da investigação brasileira, nessa área,constituindo exemplos significativos os trabalhos sobre instituições edu-cativas e os seus arquivos, publicados por Moraes e Alves (2002), Vidale Zaia (2002) e Vidal e Moraes (2004), assim como a publicação deimportantes documentos relativos à presença feminina na educação es-

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colar paulista da segunda metade do século XIX, por Maria LúciaHilsdorf (1999), que efectuou o levantamento de fontes nos arquivos doestado e da Universidade de São Paulo (USP). O conteúdo desta obraremete para a necessidade de perspectivar os arquivos escolares na suaarticulação com outros arquivos de âmbito mais geral (nacionais, cen-trais, de ministérios etc.), mas que também integram documentos comconteúdos educativos e cuja importância tem de se articular com os pe-ríodos históricos em que foram produzidos e com as especificidadesque então apresentavam os sistemas educativos.

No caso português, a preocupação com a preservação e valorizaçãodo património histórico educativo é consensual, embora não encontrenos poderes instituídos a correspondência necessária para acções e de-cisões que se tornam urgentes. O levantamento efectuado em 1996, soba coordenação de António Nóvoa, demonstrou que o estado de conser-vação da documentação de arquivo nas escolas secundárias portuguesaspode-se considerar maioritariamente razoável, situando-se nesse nívelde apreciação 72,3% das instituições consideradas, seguindo-se 11,5%com nível bom, 10,3% apresentando um estado mau e 5,7% situando-sena categoria de “sem informação” (Nóvoa, 1997, p. 71). Contudo,

O razoável estado de conservação da documentação poderá ... ser posto emcausa a curto prazo, já que a capacidade de acondicionamento por parte damaioria das escolas é cada vez menor ... Esta situação tenderá a agravar-semuito rapidamente, uma vez que a capacidade de armazenamento de novadocumentação é nula em cerca de metade das escolas e muito reduzida nasrestantes ... O facto configura, portanto, uma situação de saturação e de rup-tura total no que toca à capacidade de conservação de arquivos por parte damaioria das escolas. A muito curto prazo poderão intensificar-se os doisfenómenos negativos usuais nestas circunstâncias: a eliminação desregradaou a manutenção desorganizada ou pulverizada dos mesmos [p. 74]

Uma situação que não se alterou nos últimos anos, exceptuando-se osliceus em que houve uma intervenção sistemática de organização dos seusarquivos, no âmbito de projectos de investigação (Nóvoa & Santa-Clara,2003). Ao pensarmos nas medidas a adoptar para o futuro, temos que ter

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em conta que os arquivos escolares ocuparam, em muitos casos, locaisfísicos diversos, porque passaram sucessivamente ao longo da história dainstituição escolar a que pertencem; também nessas transferências poderáter-se perdido a lógica organizativa que lhe teria sido conferida no início.Hoje apresentam-se geralmente com a documentação disposta ao sabordo acaso e evidenciando a desorganização arquivística que terá sido pro-vocada pelas mudanças de localização ao longo do tempo (mas que tam-bém poderá ser original, conforme os casos).

Assim, torna-se necessário realizar o levantamento de toda a docu-mentação existente, elaborar seu inventário e organizar os arquivos se-gundo critérios técnicos e científicos. Nesse sentido, têm sido desenvol-vidos esforços no âmbito de projectos relacionados com instituiçõeseducativas e em que a vertente arquivística e as preocupações técnicascom ela relacionadas assumem uma dimensão significativa (Vieira, 2003;Zaia, 2004), pois constituem o trabalho prévio e indispensável para arealização de pesquisas científicas e actividades pedagógicas. Há umlongo caminho a percorrer, para a preservação e salvaguarda de docu-mentos que contém informações valiosas para a história da escola epara o estudo da cultura escolar, constituindo um património fundamen-tal na actualidade.

Os documentos e as suas potencialidades para ainvestigação em educação

Os documentos de arquivo (manuscritos e dactilografados, no casodos mais recentes) reflectem a vida da instituição que os produziu. Noentanto, as informações fornecidas por esses documentos têm, necessa-riamente, de ser cruzadas com os dados que se encontram em fontes deoutra natureza, apresentando-se em suportes variados e sob formas di-versificadas. Muitas dessas fontes de informação encontram-se no exte-rior da escola a que respeitam (e, consequentemente, do seu arquivo),sendo parte integrante de um universo que hoje é múltiplo e complexo.Esse universo engloba as fontes de informação mais tradicionais e con-sagradas, assim como aquelas que conquistaram recentemente o seu lu-

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gar nesse contexto; integra fontes produzidas no interior das institui-ções, mas outras que lhes são exteriores; muitos dos seus documentosestão marcados pela materialidade dos seus suportes, outros pelaoralidade com que os actores educativos expressaram os seus discursos.Ao localizar esses materiais, podemos estabelecer uma geografia docu-mental sobre a escola:

• textos legais e documentos emanados do poder central;• estatísticas oficiais;• relatórios técnicos, elaborados por inspectores, reitores e directores

de escolas;• regulamentos, circulares, normas e outros textos gerados pela ins-

tituição escolar e de circulação interna, mas que também podemser documentos que asseguram o fluxo de comunicação entre oorganismo político de tutela e a própria escola;

• documentos administrativos e pedagógicos, que constituem gran-de parte do acervo arquivístico de cada instituição educativa;

• publicações exteriores à escola – livros, artigos de jornais e revis-tas, etc. São trabalhos científicos, pedagógicos e culturais, poesias,que muitas vezes surgem na imprensa regional e na imprensa pe-dagógica, da autoria de professores da instituição, os quais tam-bém publicaram livros, expressando através dessas diversas mo-dalidades a sua cultura profissional;

• equipamento, mobiliário escolar e objectos de diversa natureza;• materiais didácticos, que se encontram na escola mas também, em

muitos casos, integram acervos exteriores à instituição;• trabalhos escolares de alunos que, geralmente, pertencem a espólios

particulares e revelam o significado atribuído pelas pessoas à escolae aos processos educativos, ao longo dos seus percursos de vida;

• fotografias e outros documentos de natureza iconográfica;• testemunhos orais de professores, alunos, funcionários e outros ele-

mentos que exerceram funções no sistema educativo, na escola ena comunidade.

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No seu conjunto, essas fontes de informação implicam ao investiga-dor uma atitude necessariamente atenta aos contextos educativos e cul-turais em que foram produzidas e à selecção a que sucessivamente fo-ram submetidas pelas gerações de actores sociais que as tutelaram,ocupando diferentes níveis de poder decisório sobre elas e sobre a suapreservação ou eliminação. Em consequência, esses documentos cons-tituem produções múltiplas, que reflectem a própria multidimensio-nalidade e complexidade das realidades escolares e formativas, assimcomo a diversidade e pluralidade dos meios de intervenção dos agenteseducativos.

Estabelecendo um recorte específico neste universo das fontes deinformação para a história da educação e para a história da escola,perspectivamos de forma particular os documentos que integram os ar-quivos escolares. O lugar que eles ocupam decorre da riqueza dos seusdocumentos e do leque de temas e problemas que é possível investigar,numa aproximação significativa aos quotidianos escolares e às práticaspedagógicas. A análise dos fundos documentais de arquivos escolaresde instituições que asseguraram a formação em vários níveis de ensino(Mogarro, 2001a, 2003; Mogarro & Crespo, 2001), permitiu estabele-cer a relação entre documentos de natureza diversificada e as investiga-ções que eles permitiam (Mogarro, 2005), relação essa que se desenvol-ve no quadro seguinte.

A relação entre os documentos e as investigações que, a partir de-les, podem desenvolver-se não é unívoca e exclusiva. O quadro da se-qüência pretende sublinhar a importância e a riqueza dos documentos dearquivo para os estudos sobre a instituição educativa, a cultura escolar, ocurrículo, registando as potencialidades de cada tipo de documento. Noentanto, não se pode esquecer o necessário cruzamento das informações,que um documento pode conter, com as de outros documentos. Os seuscontributos são fundamentais para um universo vasto de temas e proble-mas – a flexibilidade e agilidade que o investigador imprime ao processode investigação se baseia na complementaridade da documentação emanálise e na capacidade de usar a sua complexidade para trilhar novoscaminhos nas suas pesquisas e na problematização das realidades educa-tivas. O cruzamento de conteúdos é, nesse sentido, uma operação funda-

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Desenvolvimento de investigações a partir dos documentos de arquivoDocumentos

1. Actas do Conselho EscolarActas diversas

2. Livros de cadastro deprofessores;Processos de professores.

3. Livros de Cadastro e deMatrícula dos alunos;Processos de alunos.

4. Livros de Termos eColecção de Pautas doAproveitamento Escolar;Actas de Júris de Exame.

5. Regulamentos internos;Ordens de serviço;Avisos e Convocatórias;Actas do Conselho Escolar.

6. Listas de professores,alunos, turmas;Divisão de turmas e deturnos;Horários;Documentos sobreestágios, avaliação e outroselementos curriculares.

7. Folhetos;Brochuras;Convites;Anúncios.

8. Colecções decorrespondência expedidae recebida;Circulares emanadas dosserviços centrais.

9. Relatórios (geralmenteanuais).

Possíveis investigações• Tensões entre professores: debates, conflitos, estratégias de

coordenação, reflexão interna sobre a instituição, tomadas deposição individuais;

• Opções pedagógicas e curriculares;• Formas de abordagem dos problemas disciplinares dos alunos;• Orientações internas da vida da escola;• Actividades extra-curriculares etc.• Caracterização e evolução do corpo docente da instituição escolar:

origem geográfica, formação académica e profissional, percurso evalorização profissional, anos de ligação à instituição

• Definição do perfil dos alunos que, ao longo dos anos, frequentarama escola: origem geográfica, articulação com a comunidade e aregião, idade de entrada e saída da instituição, relação quantitativade géneros, estudo da formação das elites locais, sociais eeconómicas etc.

• Avaliação dos resultados alcançados pelos alunos eestabelecimento das taxas do seu sucesso/insucesso

• Apreensão da vida quotidiana escolar, dos valores, normas e regras,das questões disciplinares, das actividades extracurriculares;

• Conhecimento do trabalho docente (através dos registosinstitucionais e pessoais que o permitem) e das relações (decumplicidade e/ou de conflito) entre professores.Caracterização do trabalho de gestão e de organização pedagógicada instituição escolar;

• Identificação de modalidades de governo interno dos agentes esujeitos educativos, assim como da organização do tempo e doespaço escolares;

• Análise da interpretação institucional relativamente aos planos deestudo, aos saberes disciplinares e às práticas escolares, naperspectiva de apreensão dos sentidos que a escola atribuía à suaactividade formativa.

• Identificação de festas, espectáculos, exposições, manifestações eoutras realizações muito diversificadas que marcaram o calendárioescolar.

• Caracterização das relações institucionais com os organismos datutela e avaliação do grau de autonomia das instituições escolaresface ao poder central.

• Compreensão da imagem que a escola construiu sobre a suaactividade e funcionamento, na perspectiva da direcção dainstituição;

• Conhecimento e análise das categorias utilizadas nessesdocumentos.

(continua)

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arquivos e educação 85

Documentos10. Livros de Sumários

Materiais escolares(manuais, inventários etc.);Inventário e ficheiros dabiblioteca escolar.

11. Trabalhos de Alunos.

12. Documentos relativos àgestão financeira econtabilidade da escola;Documentos relativos aopessoal auxiliar.

13. Jornais e revistas dainstituição escolar;Livros de curso e livros definalistas;Outras publicações deprofessores e alunos.

14. Fotografias e imagens.

Possíveis investigações• Sistematização dos traços da história do currículo, das disciplinas

escolares e das relações pedagógicas, permitindo a apreensão eidentificação;

• Apreensão dos elementos do quotidiano na sala de aula e danatureza dos processos educativos que nela se desenvolve(ra)m;

• Identificação do sentido que marcou a evolução dos saberes e dosmodelos culturais e pedagógicos presentes na escola.

• Análise dos mecanismos em que assentam os processos de ensino-aprendizagem e do significado dos rendimentos exigidos pelasdiversas disciplinas aos escolares;

• Compreensão, do ponto de vista dos alunos (uma perspectiva sómuito recentemente valorizada), das evoluções e as mudançasprofundas que ocorreram no campo da educação;

• Valorização desse tipo de fontes de informação, que raramente têmsido conservadas pelo arquivo da própria instituição escolar e quetêm despertado um interesse renovado nos novos caminhos dainvestigação em educação.

• Avaliação da gestão e dos critérios de aplicação do orçamento dasescolas, remetendo para questões de economia da educação.

• Identificação das vozes (individuais e de grupo) de professores ealunos, a partir da análise dessas publicações, em que os autoresexpressam a sua visão do mundo, da profissão e da escola;

• Levantamento destas obras, que também raramente são guardadasno arquivo da instituição.

• Observação e análise de um variado leque de documentosiconográficos da/sobre a escola, que permite apreender a riquezados espaços, dos ambientes, dos objectos e das pessoas. Tambémessta documentação raramente se mantém no arquivo da instituiçãoescolar a que diz respeito.

mental. Por isso, o quadro apresentado fornece indicações importantes,mas não tem uma natureza prescritiva ou rígida e não reduz um conjuntode temas e problemas a um único tipo de documentos. Esses documentospermitem apreender a realidade educativa em que foram produzidos, maspodem ser lidos em perspectivas diversas e expressam, na sua materiali-dade e no seu conteúdo, a riqueza dos contextos de produção – isolados,são fragmentos do passado, cabendo ao historiador a tarefa de conferir-lhes validade, coerência, lógica e unidade, no estabelecimento necessáriode relações com outros documentos e acervos.

(continuação)

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Os arquivos escolares numa perspectivainterdisciplinar

No contexto da diversidade de fontes de informação, os arquivosescolares corporizam a referência fundamental, pois que os seus docu-mentos constituem, exactamente pela sua específica natureza, o “nú-cleo duro” do processo investigativo e garantem uma solidez acrescidae a validade das conclusões no fim de um percurso de investigação.

Os documentos de arquivo são os mais tradicionais como base daescrita da história, mas os novos caminhos da investigação em educa-ção não deixam de conferir-lhes esse lugar de centralidade, de matriz dereferência, pela consistência das suas informações e pela segurança quetransmitem aos investigadores. As novas fontes de informação expres-sam a preocupação com as vozes dos actores sociais e educativos (privi-legiando os testemunhos orais e as lógicas narrativas de natureza pes-soal) ou com a materialidade associada às práticas (como os objectosmóveis que fazem parte dos espólios museológicos das escolas), mas aconfiguração da identidade histórica e institucional passa necessaria-mente pelo arquivo, enquanto repositório do processo de “escrituração”da escola. O arquivo escolar garante, em cada instituição, a unidade, acoerência e a consistência que as memórias individuais sobre a escola,ou os objectos isolados por ela produzidos e utilizados, não podem con-ferir, por si sós, à memória e identidade que hoje se torna fundamentalconstruir.

Mais uma vez, somos conduzidos a sublinhar a necessidade de arti-cular e cruzar as informações de cada tipo de documento com as deoutros documentos que se revelem pertinentes para o estudo a realizar.Estabelece-se assim o diálogo entre as diversas fontes de informação,entre os vários documentos, numa perspectiva de complementaridade earticulação entre eles. Essa perspectiva, exercida sobre os documentosde um arquivo entre si e também entre documentos de natureza diversa(comparar os dados recolhidos no arquivo escolar com as estatísticasoficiais, relativamente ao número de professores ou de alunos de umainstituição, por exemplo), é extensível aos próprios arquivos, pois, comojá referimos anteriormente, outros fundos podem possuir documenta-

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ção relativa aos temas educativos a investigar e que complementem osdados recolhidos no arquivo escolar. Certamente que os arquivos doMinistério da Educação possuem uma vastíssima documentação sobre asdiferentes escolas e esses documentos não se encontram, muito provavel-mente, nos fundos guardados nas próprias instituições. O Arquivo Nacio-nal da Torre do Tombo tem também, nos seus fundos tão diversificados,documentos fundamentais para a compreensão da educação em Portugal.

Numa dimensão mais local, também podem-se encontrar documen-tos de conteúdo educativo nos arquivos dos organismos e associaçõesque se situam na localidade onde funciona(ou) a escola. Nos arquivosmunicipais estão depositados fundos sobre as instituições escolares e aevolução do sistema educativo, sendo possível, a partir da sua análise,reconstruir as dinâmicas de relacionamento entre as escolas e a comuni-dade envolvente e o papel que os professores desempenharam na socie-dade local, por exemplo. Outra vertente significativa e que permite ocruzamento de dados é constituído pelos periódicos (jornais e revistas)de dimensão local e regional que, de forma regular e ao longo dos sécu-los XIX e XX, publicaram notícias de natureza educativa, expressandoassim a importância que o modelo escolar assumia na sociedade con-temporânea. Essa imprensa constitui uma importante fonte de informa-ção, cujos dados podem correlacionar-se com a documentação dos ar-quivos escolares.

No registo mais íntimo da vida privada, os arquivos particulares deantigos alunos e professores guardam espólios constituídos por mate-riais muito variados, geralmente produzidos pelos próprios proprietá-rios do arquivo. A conservação desses documentos ao longo de umavida e a emoção com que são revisitados pelos seus detentores/produto-res evidencia a importância que as pessoas atribuem aos processos es-colares e formativos nas suas histórias de vida, assim como aos percur-sos profissionais, no caso dos professores. Esses espólios integrammateriais e trabalhos escolares, fotografias, publicações, produtos de-correntes da actividade docente, que são documentos que normalmentenão se encontram nos arquivos das instituições escolares. Por isso, com-plementam de uma forma particularmente feliz os arquivos das escolasonde esses alunos e professores viveram ciclos da sua formação e do

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exercício da profissão, tornando-se hoje insubstituíveis para construiruma imagem mais rica, completa e objectiva da educação, particular-mente no caso português.

A atenção que os historiadores da educação crescentemente vêmatribuindo aos arquivos escolares radica numa atitude de diálogo plural,em que a questão das fontes de informação emerge como uma priorida-de no quadro teórico-metodológico da história da educação e da históriacultural. Torna-se urgente localizar, sistematizar, organizar e divulgaressas fontes, problematizando-as e validando-as, de forma que elas pos-sam alimentar os novos temas e objectos de estudo incluídos no campocientífico da história da educação: os alunos, nas suas especificidades(como a atenção renovada que tem sido dada à infância), os professorese a profissão docente, a formação de professores, as instituições escola-res, a educação não formal, as questões de género, os públicos escolaresminoritários, os quotidianos escolares, os saberes pedagógicos, a circu-lação e a apropriação de modelos culturais e as formas que os veiculam.Essas temáticas pressupõem a utilização de abordagens adequadas e oreforço das relações interdisciplinares que os historiadores da educaçãotêm vindo a desenvolver. Hoje, eles têm à sua disposição um vasto le-que de instrumentos metodológicos para colocar a serviço das suas pes-quisas e estudos.

A crise dos paradigmas da ciência moderna e a relativização dosmodelos teóricos anteriormente dominantes libertou os processosinvestigativos dos constrangimentos que limitavam a sua flexibilidadeante o objecto estudado. Contudo, é necessário ressalvar que as teoriasnão perderam a sua importância, apenas o império que detinham sobreos processos de pesquisa e de investigação. A pluralidade e a diversida-de das abordagens científicas, com os seus quadros conceptuais, meto-dológicos e instrumentais, conduzem a aproximações e cruzamentos in-terdisciplinares, motivados por essa posição prévia de flexibilidaderelativamente ao objecto de estudo e pela necessidade de compreender,pelas formas e estratégias mais adequadas, os sentidos e as racionalida-des internas dos fenómenos educativos.

Duas correntes metodologicas têm-se afirmado como portadoras designificativas potencialidades para os novos caminhos da história da

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educação: os modelos etnometodológicas e os instrumentos da novahistória cultural. Os primeiros realçam o papel dos indivíduos na cons-trução das relações sociais, deslocando o primado das estruturas para aimportância do conceito de rede, das comunidades de pertença e dasestratégias singulares. Em aliança com as perspectivas antropológica esociológica, possibilitam a apreensão dos actores educativos e das ex-periências de vida, valorizando o nível micro da análise histórica. Pode-se, assim, reconstruir os modos como os indivíduos produzem o mundosocial, desenvolvendo estratégias de aliança e de confronto, redes desolidariedade ou atitudes de conflito. Nesse sentido, a análise históricaprocura a subjectividade inerente às relações sociais e os sentidos e es-tratégias que são desenvolvidos pelas comunidades, grupos e indivídu-os (Chartier, 1994), adequando-se de forma particularmente assertivaaos contextos educativos. Supera-se, desse modo, um olhar exclusiva-mente macro, que privilegiou os mecanismos de poder e de controlo.

Entre esses dois níveis de análise (micro e macro), um outro temassumido relevância: as abordagens meso, que incidem sobre as insti-tuições educativas, o universo de produção dos documentos arquivísticos,como já referimos. A mesoaboradagem privilegia as relações com o ní-vel macro das decisões políticas (de que os textos legais constituem osdispositivos de suporte) e integra a dimensão micro, englobando as pers-pectivas que os actores educativos, nomeadamente os professores, apre-sentam sobre a sua instituição, a sua profissão e as práticas sociais. Oshistoriadores da educação só recentemente têm vindo-se a ocupar daarqueologia material da escola, dando atenção aos silêncios da históriado ensino e superando o esquecimento da intra-história da escola e daespecificidade própria das instituições educativas.

Por seu lado, a nova história cultural e intelectual tem assumidouma importância crescente no campo científico da história e também dahistória da educação. Os seus instrumentos teóricos e metodológicospermitem abordagens adequadas às novas problemáticas, contribuindopara a compreensão dos discursos produzidos pelos actores educativosno interior do espaço social que ocupam. A geração do linguistic turnestá na origem de uma viragem, que propõe um movimento de translaçãodos olhares dos historiadores, no sentido da externalidade dos proces-

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sos educativos para a internalidade do trabalho escolar e da abordagemcontextual para a análise textual das práticas discursivas. A linguagem eos textos ocupam um lugar central nessa nova perspectiva historiográfi-ca e os trabalhos de Roger Chartier e de Michel Foucault, entre outros,deram contributos decisivos para a sua afirmação.

Os textos e os discursos não são objectos que revelam uma realida-de que se encontra oculta sob eles, mas constituem eles próprios, en-quanto modos de expressão da linguagem e das estruturas mentais, sis-temas de construção dessa realidade, que prescrevem tanto como adescrevem, sendo produtos materiais da mediação entre as realidadespessoais e sociais. Nesse sentido, a pesquisa histórica não se centra ape-nas na materialidade dos factos, mas também nas comunidades discur-sivas que os interpretam e os inscrevem num tempo e num espaço deter-minados. A atenção dos cientistas incide na experiência e nas formascomo esta se constitui em práticas discursivas dos actores educativos(directores, professores, alunos), que interpretam e reinterpretam o seumundo, conferindo sentido às suas experiências escolares e profissio-nais e registando as suas ideias nos documentos que chegam até nós,guardados nos arquivos.

Os textos, os documentos, são acontecimentos e produtos históri-cos, relacionando-se de forma complexa com os seus vários contextosde produção e de recepção, ao mesmo tempo em que constituem ele-mentos essenciais para a reconstrução dos contextos em que foram ela-borados, difundidos, (re)apropriados e utilizados. A problemática dasfontes de informação primárias e dos arquivos escolares coloca-se, deforma premente, no centro deste quadro teórico-metodológico.

Situamo-nos numa zona de fronteira, de cruzamento, das novas pers-pectivas da história da educação, da história cultural, da história social etambém das ciências da educação. Assiste-se a uma renovação das pro-blemáticas teóricas e de uma reinvenção dos terrenos de pesquisa, dasfontes de informação, das práticas de investigação e do apetrechamentometodológico, em que a perspectiva historiográfica se afirma ante asantigas abordagens de matriz essencialmente sociológica. A afirmaçãode uma história que se reclama de um pensamento cultural crítico esta-belece uma agenda de diálogo entre as preocupações do presente e as

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realidades do passado, num esforço de compreensão em que se interro-gam estas últimas para alcançar a inteligibilidade dos tempos presentes.

Os arquivos, a cultura escolar e a construção damemória educativa

No interior de estruturas complexas, como são as escolas, as pes-soas estabelecem relações de poder e de comunicação, transmitem eapreendem uma cultura e são, por sua vez, produtoras de culturas. Cons-titui-se, assim, um universo específico, do qual nos foram deixados, aolongo do tempo, documentos e testemunhos que possibilitam o conhe-cimento, a apreensão da vida das instituições. Em consequência, dá-seuma atenção renovada ao trabalho interno de produção de uma culturaescolar, que tem especificidades próprias e não pode ser olhada como omero prolongamento das culturas em conflito na sociedade, apesar derelacionar-se com elas.

Nessa perspectiva, o exercício do arquivo integra-se no processo deconhecimento e compreensão da cultura escolar. Os fundos arquivísticossão constituídos por documentos específicos, produzidos quotidiana-mente no contexto das práticas administrativas e pedagógicas; são pro-dutos da sistemática “escrituração” da escola e revelam as relações so-ciais que, no seu interior, foram sendo desenvolvidas pelos actoreseducativos.

A instituição escolar constitui o universo de uma cultura própria esedimentada historicamente, sendo também a produtora dos traços/documentos dessa cultura. Esses documentos configuram, na sua diver-sidade e variedade, o património educativo de cada instituição – o espa-ço físico (edifício e zona envolvente) corporiza esse universo, os espó-lios arquivístico, museológico e bibliográfico integram os documentos,portadores de informações valiosas e que nos trazem, do passado até aopresente, aspectos da vida da escola e que tornam possível escrever oitinerário da instituição. No âmbito de processos de investigação, a aná-lise desses documentos e a comparação que se estabelece entre as infor-mações que, no seu conjunto, fornecem, permite-nos conferir sentidos

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ao passado e compreender também a constituição/consolidação da cul-tura escolar, na teia das relações que esta estabelece com as outras cul-turas presentes na sociedade (Chartier, 1988, 1994).

Conceito amplo e abrangente, a cultura escolar apresenta uma natu-reza profunda e fundamentalmente histórica. A perspectiva da escolacomo entidade produtora de uma cultura específica, original, tem vindoa ocupar, nos últimos anos, a atenção de historiadores da educação quetêm sublinhado as virtualidades desse conceito, considerando-o um po-deroso instrumento de análise das realidades educativas, em várias dassuas vertentes (Julia, 1995, 2000; Chervel, 1996, 1998; Viñao, 1998,2001; Berrio, 2000). Não cabe neste artigo estabelecer as diferençasque as suas perspectivas apresentam, mas tão só realçar a importânciadesse conceito e os aspectos convergentes das várias abordagens

Constituída por um conjunto de teorias, saberes, ideias e princípios,normas, regras, rituais, rotinas, hábitos e práticas, a cultura escolar, nasua acepção mais lata, remete-nos também para as formas de fazer e depensar, para os comportamentos, sedimentados ao longo do tempo eque se apresentam como tradições, regularidades e regras, mais suben-tendidas que expressas, as quais são partilhadas pelos actores educati-vos no seio das instituições. Os traços característicos da cultura escolar(continuidade, persistência, institucionalização e relativa autonomia)permitem-lhe gerar produtos, que lhe dão a configuração de uma cultu-ra independente. Essa cultura constitui um substrato formado, ao longodo tempo, por camadas mais entrelaçadas que sobrepostas, que importaseparar e analisar. O exercício do arquivo tem um espaço importantenesse processo historiográfico de investigação sobre a cultura escolar.

Constituído fundamentalmente por documentos escritos, o arquivoocupa um lugar central que decorre da directa relação da escola com ouniverso da cultura escrita. A escrita tem, ela própria, uma posição degrande centralidade no quotidiano escolar (na gestão administrativa, nasrelações pedagógicas, na construção de saberes, nas relações sociais),estando presente em toda a vida da instituição. É essa íntima relaçãoque o arquivo reflecte, na materialidade dos seus documentos e de for-ma mais consistente e lógica que os outros espólios, compreendendo-seassim o lugar central que ocupa na vida e na história da escola.

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Nos últimos anos do século XX assistiu-se, em Portugal, como noBrasil, à emergência de um significativo interesse pela escola e pelo seupassado. Os novos olhares que foram dirigidos, pelos investigadores dahistória da educação, sobre o património e a história da escola privile-giaram também as memórias dos actores educativos e desenvolveramprojectos de investigação e intervenção sobre essas temáticas. Por seulado, um conjunto significativo de iniciativas, de natureza e objectivosmuito diversos, evidenciaram a dimensão mais vasta desse interesse,enraizando-o numa procura social de identidade e de recuperação damemória em torno da escola. A identificação desse movimento profun-do contribuiu para a necessidade de valorizar e recuperar os documen-tos que a escola foi produzindo sobre ela própria, quotidianamente, naactividade regular com que foi tecendo a sua própria história.

As iniciativas indicadas têm sido protagonizadas por pessoas e ins-tituições preocupadas com essa problemática e podemos traçar a evolu-ção desse movimento centrando a atenção num exemplo específico. EmPortalegre (Portugal), a comunidade educativa deu visibilidade a esseseu interesse com a realização, entre 1998 e 2001, de encontros, exposi-ções e publicações sobre o património educativo e a cultura escolar(Mogarro, 2001b, 2001c), tendo-se também efectuado a sua divulgaçãoem congressos e encontros internacionais, nacionais e locais (Mogarro,2003b, 2002; Mogarro & Crespo, 2001). Uma segunda fase inicia-seem 2002, com um processo de reflexão sobre o trabalho realizado e queconduziu à elaboração e implementação de um projecto de investigaçãoe de intervenção designado por Rede de Museus Escolares de Portalegre(REMEP) (Mogarro, 2003c). Esse projecto não se limita, contudo, aosobjectos materiais que integram o património educativo de uma institui-ção escolar; no seu âmbito, assume-se uma perspectiva mais alargada,concebendo-se os vários espólios (arquivístico, museológico e biblio-gráfico) de forma articulada, embora salvaguardando sempre a especifi-cidade técnica que decorre da natureza dos documentos de cada umdesses espólios e dos respectivos suportes.

A designação desse projecto compreende-se também pelo reconhe-cimento da importância que os objectos materiais têm e que se liga aopoder da visibilidade que eles conferem aos acontecimentos do passado

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e aos fenómenos sociais. Com eles, o cidadão comum e as populaçõesem geral evocam as recordações da sua infância e juventude, as histó-rias da sua vida, as recordações, o seu passado que é trazido até ao pre-sente. O sucesso que essas iniciativas têm tido junto das comunidadesconstitui um factor determinante para a atenção e apoio que as entida-des locais (como alguns municípios) têm vindo a dar a mostras, exposi-ções e criação de museus escolares. Esse sucesso é também um indica-dor importante a ter em conta na organização do trabalho científico sobreessas temáticas, no que se refere ao estabelecimento de parcerias, àadopção de atitudes e procedimentos e à divulgação de realizações eobjectivos.

Com a formação de uma rede de museus escolares em Portalegre2

pretende-se contribuir para a construção e consolidação de uma memó-

2. A REMEP instituiu-se com a assinatura de um protocolo entre as instituições funda-doras, estatuto que decorre da posição de cada uma no sistema educativo, a nívellocal: as escolas são as detentoras dos respectivos fundos históricos, outros orga-nismos tutelam essas mesmas escolas ou desenvolvem projectos de investigação eintervenção, nesse âmbito. O protocolo foi assinado pela Câmara Municipal dePortalegre, a Direcção Regional de Educação do Alentejo (DREA), a Escola Secun-dária Mouzinho da Silveira, a Escola Secundária de S. Lourenço, os Agrupamen-tos de Escolas n.º 1 e n.º 2 de Portalegre, o Instituto Politécnico de Portalegre e aEscola Superior de Educação. A constituição dessa rede permite enraizar institu-cional e socialmente o projecto, envolvendo o governo autárquico, as escolas e osdecisores educativos, a nível local e regional.A REMEP é constituída por núcleos escolares, que funcionam de forma articuladaentre si, segundo as actuais concepções que defendem que o passado e os seus teste-munhos materiais pertencem às comunidades herdeiras dos produtores desses mes-mos materiais. Foram assim constituídos núcleos na Escola Secundária Mouzinho daSilveira (antigo Liceu), na Escola Secundária de S. Lourenço (antiga escola técnica)e estuda-se a constituição do núcleo da escola primária, a partir das equipas quedesenvolvem trabalho nos dois Agrupamentos de Escolas da cidade de Portalegre; aviabilidade de outros núcleos também está a ser analisada, como o da antiga Escolado Magistério Primário, já extinta e cujo arquivo se encontra à guarda do InstitutoPolitécnico local. Esses núcleos são constituídos por equipas de professores das pró-prias escolas, que se propõem fazer o levantamento e a organização dos respectivosespólios e desenvolver actividades com base nos seus documentos, nomeadamenteenvolvendo os alunos de cada instituição.Com funções de coordenação da rede, funciona uma comissão constituída por umaresponsável científica (a autora), um representante do município (Câmara Mu-

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ria educativa e, por esse meio, de uma identidade. Nesse sentido, impor-ta aprofundar a ligação das escolas aos seus itinerários históricos, numaperspectiva de valorização dos percursos institucionais e da uma culturaescolar, promovendo a relação da população com o seu passado escolare criando um sentimento de pertença a uma entidade colectiva.

O mesmo projecto pretende reforçar a relação entre a escola e acomunidade, tomando como referência esse elemento comum a (quase)todas as pessoas – a escola, a memória da escola e da infância, assimcomo os objectos materiais que convocam essa memória.

Os públicos escolares (e aos jovens em geral) constituem tambémuma preocupação dos projectos dessa natureza, visando-se promoveruma formação enraizada na evolução do sistema educativo, das suasinstituições e dos processos de ensino-aprendizagem, numa perspectivade continuidade que forneça referências às inovações da actualidade.Os alunos já têm sido envolvidos em actividades dessa natureza e astemáticas do património educativo e da cultura escolar devem ser incor-poradas nas práticas educativas, em conteúdos curriculares e em traba-lhos desenvolvidos pelos alunos, nomeadamente ao nível da sala de aulaou de clubes sobre a história da escola (Vidal & Zaia, 2002). Nessasactividades é fundamental utilizar os documentos da própria instituição,numa relação directa entre o tempo presente e o passado que lhe estásubjacente. Mais uma vez, o lugar central do arquivo adquire visibilida-de e pertinência

nicipal), um representante do Instituto Politécnico, um representante da DirecçãoRegional de Educação e um representante de cada um dos núcleos escolares. Essacomissão é ainda integrada por três técnicos especializados, respectivamente, emarquivo, museologia e biblioteca/documentação. A natureza dos documentos exis-tentes nos espólios das escolas conduziu exactamente à necessidade de reunir es-pecialistas em vários domínios do conhecimento, para uma adequada e eficaz orien-tação no processo de levantamento e organização dos fundos históricos das escolas.Essa comissão coordenadora deverá também organizar e dirigir um Centro de Me-mória Educativa e Cultural, que terá como uma das tarefas prioritárias a constitui-ção de uma base de dados do património educativo das escolas da cidade, disponi-bilizando informação e apoiando projectos de investigação e intervenção,relacionados com essas temáticas.

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O desenvolvimento sustentável desses projectos implica uma pro-gramação de actividades culturais, eventos diversos e publicações pararecuperar a memória educativa, dinamizando a realidade cultural e pe-dagógica actual. Nesse contexto, ganha novo sentido a realização deexposições e mostras educativas e culturais, permanentes ou temporais,com fundos museológicos e arquivísticos das instituições e outros fun-dos, obtidos por empréstimo.

Mesmo sendo realizações locais, esses projectos devem assumir acomunicação permanente com outros espaços. As suas finalidades vi-sam também criar condições para a investigação no âmbito da cultura eda educação, da história e das memórias (constituição de centro de da-dos e recursos documentais, elaboração de projectos relacionados, rea-lização de conferências e encontros, anteriormente referidos), de formaa fomentar o estudo e difusão de novos conhecimentos, tanto localmen-te como à dimensão nacional. Contudo, deve incentivar-se a integraçãodessa temática em projectos nacionais de investigação e em projectosde cooperação internacional, nomeadamente entre Portugal e o Brasil.

Retomando a questão dos arquivos escolares, não podemos deixar desublinhar novamente o lugar de referência que eles ocupam no conjuntodos espólios escolares. A tarefa de recuperar, preservar, estudar e divulgaro património educativo, nomeadamente os arquivos escolares, adquireum novo sentido e urgência, que passa pela necessidade de definir orien-tações e dar consistência ao movimento que hoje se faz sentir, tanto anível social como científico, sobre a escola, a sua história e memória.

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Endereço para correspondênciaMaria João Mogarro

Praça da República – Apartado 125Código Postal: 7301 - 957

Portalegre CodexPortugal

[email protected]

Recebido em: 1 set. 2005Aprovado em: 10 dez. 2005

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Arquivos ou museus

Qual o lugar dos acervos escolares?

Jacy Machado Barletta*

* Historiógrafa do Centro de Documentação e Memória (CEDEM) da UniversidadeEstadual Paulista (UNESP). Mestre em educação pela Faculdade de Educação daUniversidade de São Paulo (FEUSP), no Programa História da Educação e Historio-grafia. Especialista em Métodos e Organização de Arquivos pela Escola de Comu-nicação e Artes da USP.

Resumo:O artigo traz uma discussão sobre a manutenção de objetos tridimensionais nos arqui-vos de instituições escolares, demonstrando que esses documentos originários dos faze-res cotidianos da escola devem ser considerados documentos de arquivo. Isso é justifi-cado pela ligação direta deles com as atividades-fim da instituição escolar.HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; ARQUIVÍSTICA; ESCOLA CAETANO DE CAMPOS;ARQUIVOS ESCOLARES; RECURSOS PEDAGÓGICOS; MATERIAIS ESCOLARES;MATERIAIS PEDAGÓGICOS.

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Archives or museum

What place the school files?

Jacy Machado Barletta*

Abstract:The article brings a discussion about the maintenance of three dimensional objects inthe files of school institutions, demonstrating that those original documents you do dailyof the school, file documents should be considered. That is justified for their directconnection with the activities end of the school institution.HISTORY OF THE EDUCATION; ARQUIVÍSTICA; SCHOOL CAETANO DE CAMPOS;SCHOOL FILES; PEDAGOGIC RESOURCES; SCHOOL MATERIALS; PEDAGOGICMATERIALS.

* Historiógrafa do Centro de Documentação e Memória (CEDEM) da UniversidadeEstadual Paulista (UNESP). Mestre em educação pela Faculdade de Educação daUniversidade de São Paulo (FEUSP), no Programa História da Educação e Historio-grafia. Especialista em Métodos e Organização de Arquivos pela Escola de Comu-nicação e Artes da USP.

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O conhecimento especializado é um dos sintomas da modernizaçãoda sociedade ocidental contemporânea, havendo diversas leituras sobreesse fenômeno. Neste artigo defendemos a contramão desse movimen-to. Em vez de uma visão compartimentada, demonstraremos a necessi-dade e as vantagens de um trabalho holístico, no que diz respeito aosarquivos escolares. Esta abordagem é parte de minha dissertação de mes-trado, na qual discuto alguns pressupostos da arquivologia e damuseologia, para determinar os recursos pedagógicos e o lugar dessesmateriais no arquivo escolar.

Entre arquivos e museus

A arquivologia tem como razão de ser a existência da informaçãosocial materializada em suportes físicos.

Em 1984, o Conselho Internacional de Arquivos (CIA) definia aarquivologia como a disciplina que tem por objetivo os arquivos e osprocedimentos técnicos aplicados aos documentos em suas fases cor-rente, intermediária e permanente. Seu objeto, os arquivos, é definidocomo o conjunto de documentos, quaisquer que sejam suas datas, suasformas e seus suportes materiais, produzidos ou recebidos por pessoasfísicas e jurídicas, de direito público ou privado no desempenho de suasatividades. Portanto, desde que uma instituição jurídica ou uma pessoafísica acumule documentos voluntariamente, eles passam, naturalmentea constituir um arquivo.

Os princípios arquivísticos que formam a base de sua teoria arqui-vística tradicional e que a diferenciam de outras ciências documentáriase da informação são descritos por Bellotto (2002, p. 20) como:

1 – princípio da proveniência – que fixa a identidade do documentoante seu produtor; ele determina que o arquivo deve ser organiza-do segundo as atividades e competências de seu produtor. Arqui-vos originários de instituições distintas não podem ser mescladosentre si;

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2 – princípio da organicidade – os arquivos devem refletir a estrutu-ra, as funções e as atividades da entidade produtora/acumuladoraem suas relações internas e externas;

3 – princípio da unicidade – apesar de sua diversidade quanto a for-ma, gênero, tipo ou suporte, os documentos de arquivo conservamseu caráter único. Cada um deles estabeleceu uma relação de fun-ção com o contexto no qual foi produzido;

4 – princípio da indivisibilidade ou integridade arquivística – umfundo arquivístico deve ser preservado integralmente, sem disper-são, mutilação, divisão. Não é concebível a alienação ou a destrui-ção de documentos sem autorização de quem os produziu. Nem aadição indevida de documentos;

5 – princípio da cumulatividade – o arquivo é uma formação pro-gressiva, natural e orgânica.

O CIA entende como documento o conjunto constituído por um su-porte e pela informação que ele contém. A informação arquivística, se-gundo Lopes (1998, p. 49), tem as seguintes propriedades:

a) sua natureza é orgânica, isto é, possui relação umbilical com o pro-dutor;

b) é original, logo, possui unicidade;c) tem sua capacidade de ser avaliada em termos de idade e de utili-

zação;d) sua primeira particularidade é a natureza limitada de seus suportes

– convencionais ou eletrônicos;e) sua segunda particularidade refere-se à noção de acumulação das

informações produzidas ou recebidas por um indivíduo ou um or-ganismo, desde que sejam informações capazes de ter significa-ção;

f) sua terceira particularidade refere-se às atividades geradoras, quepodem ser administrativas, técnicas ou científicas;

g) sua quarta particularidade refere-se ao fato de ser a primeira formatomada por uma informação registrada, quando de sua formação.

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As atividades de uma instituição indicam, de maneira confiável, ouniverso informacional dos documentos produzidos por ela. As ativida-des denominadas meio sustentam as estruturas, definindo a política daorganização, e gerenciam os recursos financeiros, humanos, patrimoniaisetc.; são todas as atividades que geram documentos e informações ad-ministrativas e burocráticas. As atividades-fim são as que definem operfil da instituição; os documentos e informações produzidos nessasatividades vinculam as funções formais às funções práticas, sendo por-tanto a razão da existência da organização.

É nos documentos relativos às atividades-fim de uma organizaçãoescolar que encontraremos as fontes para estudo e pesquisa da culturaescolar, ou seja, das atividades que norteiam a transmissão do conheci-mento, que, como sabemos, é variável segundo o tempo, o lugar, a co-munidade, as idéias políticaas em jogo etc. Fazendo parte de um univer-so não contemplado por normatização legal, esses documentossobrevivem ao acaso, diferente dos administrativos, que, sob legisla-ção, são preservados como comprovantes dessas ações.

Enquanto o arquivo trata documentos acumulados naturalmente,segundo as atividades e funções de uma instituição, o museu abrigarácoleções criadas artificialmente, sendo elas produtos da cultura materialhumana ou da natureza.

O museu em sua trajetória histórica caracterizou-se por ser um es-paço físico no qual objetos são expostos como suportes para estudos,para demonstrações e para disseminar o conhecimento. Apesar de ocor-rer ao longo do tempo variações do conceito quanto à natureza de obje-to museológico, o mesmo não acontece com a razão de sua existência,ou seja, as coleções. Segundo Ceravolo (1998) os objetos de museu sãoitens com forma e conteúdo investigados e “decifrados”, pois as infor-mações não estão no próprio objeto. Por exemplo, um livro ou um ma-nuscrito só têm sentido dentro de um contexto:

No museu, o objeto é decodificado a partir de referências que são extraí-das tanto de sua materialidade presente (materiais empregados, técnicas deprodução, dimensões, formato, cor etc.), como referências não presentes nessesuporte, como sua história e proveniência e seu contexto cultural/natural. Ou

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seja, o objeto é entendido a partir de suas relações com outros objetos em umdado meio. No que tange à documentação de museus, tais referências tor-nam-se dados do objeto, sobre o objeto e ao redor do objeto a serem registra-dos [Ceravolo, 1998, p.48].

Portanto, o objeto museológico sofre alterações de valor e significadoquando transferido de seu contexto primário para o museu, pois não ésempre que ele carrega consigo informações sobre seu uso e função. Suamaterialidade não serve de referência exata. Ao objeto juntam-se cargassimbólicas que vão além de sua materialidade. Ele faz a ponte entre ovisível ilimitado e o visível da experiência pessoal (Meneses, 1980, p. 48).No museu o objeto passará por uma determinada forma de “leitura” quetentará recuperar evidências de sua verdadeira funcionalidade ou simbo-lismo; essas “leituras” são questionamentos de terceiros, que irão deter-minar, de certa forma, se esse objeto é um documento ou não:

Ou seja, a atribuição de valor de documento ao objeto de museu é dadapelo contexto institucionalizado (o museu), que por si atribui valor de teste-munho e prova àquele suporte, como também por sua análise e interpretação,essas a serem investigadas [idem, p.49].

Com um olhar mais didático e técnico Santos (2000), pesquisador daBiblioteca Nacional e do Instituto Mackenzie, diz que ao desconhecer seudestino e o do mundo, e preocupado em registrar sua trajetória, o homempassou a colecionar algumas coisas até para garantir sua sobrevivência.Essas ações irão ser legitimadas na criação dos museus, onde serão busca-das a reconstrução, preservação e difusão da memória. Assim o homemtransmite às próximas gerações sua vivência, criando um sentido social,transformado em patrimônio cultural.

Portanto, o museu é uma instituição que trabalha com coleções,que nada mais são que agrupamentos ou reunião de objetos, feitas demaneira artificial, por aquisição (compra, doação, permuta etc.). Obje-tos retirados de seu contexto e uso primário, transformados em produ-tos de valor financeiro, alimentando determinado mercado. Diferentedas instituições arquivísticas, uma das funções do museu é a exposição

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de suas coleções ao público. E o ato ou intenção de colecionar depen-derá de políticas de preservação, ou seja, a integridade física originaldo objeto deverá permanecer tão intacta e utilizável quanto possível.Uma política de preservação deverá propor alguns pontos, conformeSantos (2000, p. 25):

• Facilitar a preservação por meio de técnicas apropriadas;• Permitir o acesso a todo tipo de acervo, levando em conta as técni-

cas de preservação;• Disseminar informações, as mais completas possíveis, sobre a exis-

tência dos acervos;• Promover a divulgação dos acervos por meio de produtos, assegu-

rando uma ampla divulgação.

Assim, como podemos observar, enquanto o documento arquivísticoé produzido ou acumulado naturalmente, como prova de atividades efunções de pessoa física ou jurídica, os documentos museológicos con-siderados uma espécie de recipiente de informações a serem desvenda-das são colecionados artificialmente e a compreensão sobre esses obje-tos dependerá de pesquisa.

Os arquivos escolares

Desde a década de 1980 vem aumentando, no Brasil, o interesse dehistoriadores da educação em estudos sobre as práticas escolares, fa-zendo uso das categorias de apropriação e representação de RogerChartier e das estratégias e táticas de Michel de Certeau. Em ambos oscasos, é necessário fazer não só a ampliação do conceito de fontes, comotambém a disponibilização delas. A importância desses documentos,principalmente os encontrados nos arquivos de instituições escolares,vem sinalizada nas palavras de Vidal (2004, p. 11):

Tomados em sua materialidade, esses objetos permitem não apenas a per-cepção dos conteúdos ensinados, a partir de uma análise dos enunciados e

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das respostas; mas o entendimento do conjunto de fazeres ativados no inte-rior da escola. Assume destaque, por exemplo, a maneira como o espaçográfico da página de exercício, do caderno ou da prova é organizado; utili-zando-se de formulas indicativas de início ou encerramento de atividades oudia letivo; definindo uma hierarquia de saberes...

[...] Esses objetos culturais e muitos outros, individuais e coletivos, neces-sários ao funcionamento da aula trazem as marcas da modelação das práticasescolares, quando observados na sua regularidade. Mas portam índices dassubversões cotidianas a esse arsenal modelar, quando percebidos em sua di-ferença, possibilitando localizar vestígios de como os usuários lidaminventivamente com a profusão material da escola e das mudanças, às vezesimperceptíveis, que impetram nessas mesmas práticas escolares. O concursode outras fontes como fotografia, autobiografias, história oral e de vida, paracitar algumas, pode, ainda aumentar a compreensão desses “fazeres com” eda constituição de corporiedades nos sujeitos da escola.

No início da década de 1990 houve uma reconfiguração da historio-grafia educacional, acompanhada de intensa reflexão conceitual e me-todológica sobre pontos que sempre foram os mais frágeis dessa disci-plina: a não problematização dos seus procedimentos e objetos. Os novosinteresses do campo de pesquisa escolar estavam agora na organizaçãoe no funcionamento das escolas, na construção do conhecimento esco-lar, no currículo e nas disciplinas, agentes educacionais (professores,alunos), categorias de análise como gênero e temas sobre a profissãodocente, formação de professores e práticas de leitura e escrita. Houveum deslocamento da pesquisa: da história das idéias para as práticaseducacionais.

Essa nova maneira de ver e questionar as fontes enfatizando a mate-rialidade do saber-fazer e do como fazer deu suporte sólido para umahistória da cultura e dos saberes escolares, transformando a instituiçãoescolar no produto histórico dos dispositivos legais (estratégias) e daspráticas dos agentes que deles se apropriam (táticas), de acordo com asnovas definições criadas por De Certeau (1982).

Segundo Anne-Marie Chartier (2000), há necessidade de se investirna pesquisa dos fazeres do cotidiano escolar para que o conhecimento

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dessas experiências possa auxiliar no desempenho positivo dos futurosprofissionais da educação:

Assim, os trabalhos científicos, os textos e as ferramentas profissionais, osdebates de idéias em torno das apostas presentes ou das missões futuras daescola são dos gêneros discursivos que somente tomam sentido se relaciona-dos a uma realidade escolar supostamente conhecida, designada sem cessarmas descrita, a não ser de maneira incidental ou indireta. O que é invocado,mas ausente, é o que se faz na escola, o que se faz hoje ou o que é semprefeito, enfim, a prática escolar (2000, p. 157).

Então quais são essas práticas e quais as fontes que informam sobreessas práticas no cotidiano escolar? De que se compõe um arquivo es-colar? Ele reflete a cultura escolar?

Sobre essas questões Mogarro (2005, p. 105) tem respostas:

Os fundos arquivísticos [de uma escola] são constituídos por documentosespecíficos, produzidos quotidianamente no contexto das práticas adminis-trativas e pedagógicas; são produtos da sistemática “escrituração” da escolae revelam relações sociais que foram sendo desenvolvidas pelos actores edu-cativos.

A instituição escolar constitui o universo de uma cultura própria esedimentada historicamente, sendo também a produtora dos traços/documen-tos dessa cultura. Esses documentos configuram, na sua diversidade e varie-dade, o patrimônio educativo de cada instituição – o espaço físico (edifício ezona envolvente) corporiza esse universo; os espólios arquivístico,museológico e bibliográfico integram os documentos, portadores de infor-mações valiosas e que trazem, do passado até o presente, aspectos da vida daescola e que tornam possível escrever o itinerário da instituição.

E mais adiante finaliza:

Constituída de um conjunto de teorias, idéias e princípios, normas, regras,rituais, rotinas, hábitos e práticas, a cultura escolar remete-nos também para

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as formas de fazer e de pensar, [...]. Os traços característicos da cultura esco-lar (continuidade, persistência, institucionalização e relativa autonomia) per-mite-lhe gerar produtos que lhe dão configuração de uma cultura indepen-dente. Essa cultura constitui um substrato formado, ao longo do tempo, porcamadas mais entrelaçadas que sobrepostas, que importa separar e analisar[idem].

No caso dos arquivos escolares, o estudo das práticas escolares sóserá possível se incluirmos os documentos arquivísticos nos mais varia-dos suportes, não mais somente o papel, mas os brinquedos, os compo-nentes de um laboratório, filmes, fotografias, equipamentos para finsdiversos etc., enfim os materiais didáticos ou pedagógicos. Se levarmosem conta que as novas teorias arquivísticas consideram documentoarquivístico aquele que se relaciona organicamente com a instituição,podemos inferir que esses materiais representantes das práticas escola-res podem sim ser tratados dentro dos preceitos arquivísticos. Hoje, ge-ralmente, esses documentos são encontrados em espaços físicos se-melhantes a um “limbo”, e de lá muitas vezes o destino deles é o lixo.

Os materiais didáticos ou pedagógicos, encontrados nos arquivosescolares, são a prova do princípio que defende a colocação nos arqui-vos, determinados objetos. Embora colecionados ou adquiridos, elesrefletem as práticas dos métodos pedagógicos, ou seja, as atividades-fim da instituição escolar, que vinculam as funções formais às suas prá-ticas. Apesar de não serem considerados documentos arquivísticos, noseu significado mais purista, trazem em si informações inegáveis dofuncionamento dessa instituição.

Há diversos exemplos de organizações que, por força de suas ativi-dades-fim, têm em seu arquivo objetos tridimensionais. Visitando di-versos arquivos judiciais, para fins de pesquisa, encontrei uma imensamassa documental “arquivística” de provas circunstanciais de crimes.Há uma gama de objetos, apresentados como prova criminal (desde ar-mas até bicicletas, aparelhos eletrônicos, aparelhos domésticos etc.).Completando essa idéia, o Museu do Crime, na Academia de Polícia deSão Paulo, nada mais é do que um arquivo de provas circunstanciais.

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Outro exemplo encontra-se no próprio Arquivo Nacional. São osregistros de patentes, que estão acompanhados do objeto em questão.Há exemplos mais próximos ao nosso meio como os documentos cien-tíficos produzidos nas universidades. Em abril de 2003, realizou-se umaexposição no Centro Universitário Maria Antonia, em que a artista plás-tica Leda Catunda expunha peças que faziam parte de sua tese de douto-rado. Portanto, documentos tipologicamente diferenciados dos textuaisou iconográficos, encontrados comumente nos arquivos. Ainda, a pro-dução científica na universidade conceberá uma gama variada de mate-riais científicos com os quais só agora os arquivistas começam a se preo-cupar, Odile Welfelé comenta:

Os materiais documentais da ciência não se encontram nos ministériosnem nos lugares sociais dos grandes organismos de pesquisa, eles estão noslaboratórios, lá onde a ciência se elabora, se transforma, trabalha. Freqüente-mente a palavra arquivo é mal aplicada para qualificar o que a atividadecientífica engendra. Esta palavra que nos é familiar é totalmente estrangeiraneste universo. O que resulta da observação, da reflexão e da experimenta-ção passa por diferentes formas e suportes antes de resultar em quaisquerlinhas sobre o papel (o artigo). A atividade de pesquisa produz certamente, eeste é o objetivo prioritário, os papéis, mas ela produz também outras coisas:culturas de células sobre plaquetas, coleções (de rochas, de insetos, degenótipos), máquinas, protótipos, bases dados, cartas, gráficos, animais, fil-mes e [...] papéis: relatórios de atividades, demandas financeiras, teses, cor-respondência sobre temas de pesquisa. [apud Brito, 1999, p. 104].

Anne Cooke, especialista australiana em arquivos escolares, em seuartigo “What do I do with the rowing out?” (1991) reflete sobre a inter-conexão de arquivos e museus escolares, defendendo a idéia de que osarquivos escolares recebam outros documentos além dos textuais. Opróprio título já nos sugere o questionamento: “O que é que eu faço comos remos?” Sugestiva interrogação quando a arquivista se deparou comessas peças usadas pelos atletas da escola e, consultando a bibliografia,principalmente os manuais arquivísticos, percebeu que ninguém tratavadesse assunto. Portanto, fica a critério do profissional dar o destino quebem quiser às peças.

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Tanto na Austrália como no Brasil, a inexistência de uma política depreservação para os documentos escolares faz com que a avaliação docu-mental fique sob a responsabilidade da própria escola, que, descartandoseus documentos sem critérios técnicos ou científicos, está sujeita a equí-vocos por vezes irreversíveis. Cooke alerta para outras formas de destrui-ção dos registros escolares: as mudanças na direção ou na propriedade dainstituição, as reformas e construções dos prédios escolares e a grandedemanda por espaços. Na tentativa de recuperar informações que foramperdidas, a escola acaba recebendo doações de documentos de tipos, gê-neros e suportes diversificados como: programas de esportes, fotografias,jaquetas de times de futebol, medalhas e troféus. Segundo a autora essesitens não podem ser descartados só porque não são considerados pelaortodoxia documentos arquivísticos. Além do valor sentimental do doa-dor, tais documentos podem trazer informações valiosas sobre a escolaque foram perdidas justamente pelas razões apontadas.

Anne Cooke (1991) consegue visualizar uma boa convivência en-tre o arquivista e as peças consideradas de museu. Para ela, a políticade arquivos e a política de museus só diferem pela terminologia especí-fica. Elas têm muito em comum. Há uma série de razões para que oarquivista se disponha a montar o que chama de arquivo-museu. Elaconsidera principal a questão de diferenciar uma peça de museu deuma peça de arquivo, já que, por vezes, ocorre sobreposição de áreas.Se o documento é textual, é considerado de arquivo. Se não são textu-ais e têm uma relação intrínseca com a instituição, eles podem estartanto em um museu quanto em um arquivo, sem causar problemas,como é o caso da placas comemorativas, troféus e flâmulas. Obvia-mente, a autora defende que o tratamento técnico seja diferenciado tan-to no quesito acondicionamento quanto nos quesitos classificação edescrição. Segundo ela esse tipo de trabalho já é um fato comum navida de um arquivista de escola, pois poucos administradores sabemdistinguir um arquivo de um museu. Há muitas experiências, desse tipo,bem-sucedidas na Austrália.

Em minha experiência, de mais de quatro anos organizando e ten-tando preservar, em sua integridade, o acervo da Escola Caetano deCampos, antiga Escola Normal de São Paulo, encontrei, além dos docu-

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mentos administrativos, vasto material pedagógico que sobreviveu aodescaso público: equipamentos pertencentes aos laboratórios de física,química e biologia; peças e quadros didáticos dos Museus de HistóriaNatural e Escolar; equipamentos para projeção de fotos, slides e filmes;brinquedoteca e o que se denomina como espólio institucional (mobi-liário administrativo, objetos de decoração etc.). Em sua maioria, im-portados da Europa e América do Norte, no século XIX, para a aplica-ção do método intuitivo, além de outros para uso das novas diretrizespedagógicas da década de 1930.

Tendo em vista essa experiência, considero que a utilização de ma-teriais de apoio didático como fonte se faz necessária, assim como sãonecessários novos critérios de tratamento de arquivos e de conceitos dedocumento arquivístico. Um dos diferenciais significativos dos acervosescolares é a grande massa documental existente e a variedade de su-portes da informação (filmes, brinquedos, discos, equipamentos, mobi-liários, fotografias etc.). Dessa forma, novos tipos e gêneros documen-tais vêm se juntar aos arquivos, ampliando o conceito de documentopara a pesquisa histórica e para a arquivística. Atualmente os teóricosdefinem documento como qualquer informação orgânica fixada em umsuporte. Segundo Lopes (1996, p.71):

É orgânica a informação que pertence à pessoa ou organização que a acu-mulou. Enfatiza-se a originalidade, lembrando que os arquivos devem serformados por informações que sejam específicas dos seus acumuladores. Su-bentende-se que as informações arquivísticas não são, somente, as textuais.Abrem-se novas possibilidades de considerar como documentos de arquivosregistros em suportes os mais diversos, como, por exemplo: lâminas prepa-radas para microscopia, portadoras de informações orgânicas, no caso defazerem parte de dossiês de pesquisa.

A (re)definição de arquivo, no sentido de informação registrada, queLopes elabora nesse mesmo texto – acervos compostos por informaçõesorgânicas originais, contidas em documentos produzidos ou recebidospor pessoa física ou jurídica, decorrentes do desenvolvimento de suasatividades, sejam elas de caráter administrativo, técnico ou científico –

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vem reforçar o uso dos mais diversos documentos arquivísticos comofonte de informação histórica, pois para ele a unidade de informaçãoserá o dado, em vez do fato, facilitando as opções de fontes documen-tais que poderão ser mais bem trabalhadas.

O acervo da Escola Caetano de Campos como prática

A Escola Caetano de Campos, antiga Escola Normal de São Paulo,nasceu de um projeto de lei apresentado na sessão da Assembléia Pro-vincial em 29 de janeiro de 1843, e somente aprovado pela lei n. 310,que correspondia a lei n. 34, de 16 de março de 1846.

Instalada em edifício contíguo à Catedral da Sé, após oito meses (9de novembro de 1846) apenas um professor ministrava todas as aulas eacumulava a função de diretor. Extinta em 1867 por emenda ao projetoorçamentário, em seus vinte anos de existência formou apenas 18 pro-fessores, sendo criticada pela sua inoperância. Reaberta em 1874, pelalei que tornara obrigatório o ensino escolar na Província de São Paulo(lei n. 9, de 22 de março de 1874), ganha uma seção destinada às mulhe-res, além de um enriquecimento de disciplinas. No ano de 1878 é nova-mente fechada.

Finalmente, a lei n. 130, de 25 de abril de 1880, dará existênciadefinitiva à Escola Normal, por intermédio de um ex-aluno, LaurindoAbelardo de Brito, que se tornou o 43º presidente da Província. Nascemtambém as primeiras idéias de construção de uma sede própria, masnaquele momento ela se instalará em parte do edifício da sede do Tesou-ro Provincial e depois em um sobrado na Rua da Boa Morte. A freqüên-cia feminina foi garantida e a grande inovação era a criação de duasescolas primárias anexas, uma para cada sexo, que serviam de cursoprático aos futuros professores. Apesar de algumas alterações, introdu-zidas pela lei n. 81, de 6 de abril de 1887, pouco mudou a situação docurso normal até o fim do Império.

Logo após a proclamação da República, em janeiro de 1890, o dou-tor Antônio Caetano de Campos, médico consagrado, foi nomeado dire-tor da Escola Normal de São Paulo. Apesar de ter permanecido apenas

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vinte meses no cargo, o dr. Caetano de Campos participou das reformaspara qualificação e expansão do ensino público que, segundo Tanuri(1979, p. 84), teve Rangel Pestana como mentor intelectual do projeto.Tais mudanças foram iniciadas ainda na sede da Rua da Boa Morte,antes mesmo da construção do edifício da Praça da República.

A restruturação da Escola Normal de São Paulo fez parte da crençados republicanos paulistas de ver a Instrução como alicerce das institui-ções democráticas e instrumento de transformação social e reforma po-lítica (Tanuri, 1994, p. 42), colocando para o Estado a responsabilidadede desenvolver a instrução popular. Inicia-se, assim, a restruturação daEscola Normal para transformá-la em escola modelo, como determina-va o projeto de Rangel Pestana.

A nova escola que surgia trazia, além de inovações curriculares, aprática de ensino dentro de padrões aplicados na Europa e principal-mente nos Estados Unidos. A escola modelo propunha um ensino pri-mário de longa duração, integral e graduado, dividido em três graus deensino. Implícita em sua denominação estava a idéia de que nela seriaprudentemente testada a reforma que depois se estenderia a todo o ensi-no público primário. Nela foram introduzidas as propostas de processosintuitivos de ensino, inspiradas nas teorias de Pestalozzi.

Como diretor da Escola Normal, no Relatório de 1890, Caetano deCampos justificava a necessidade da reforma do ensino:

A educação do homem moderno exige uma notavel somma de conheci-mentos, que resultam syntheticamente das noções encyclopedicas hauridasem diversos ramos do estudo.

Se torna-se impossivel aprender, e peior do que isso, ensinar ás creançastudo quanto póde ser necessario á vida, mesmo pondo de parte as especiali-dades profissionaes, é entretanto praticavel o dar á inteligencia um gráu dematuridade que prepare suficientemente o homem novo para entrar na vidasocial com seguros cabedaes para o êxito.

Para isso é necessario antes de tudo acostumar a creança a raciocinar porsi, na medida de suas forças physiologicas, sobre todas as coisas que caemdebaixo de seus olhos.

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Mas para que tudo isso pudesse ser concretizado, era necessário,além de um espaço físico adequado um edifício amplo, iluminado quedesse visibilidade e projeção aos novos rumos que a República dava àinstrução, a introdução, em seu interior, de uma quantidade imensa denovos materiais escolares que concentravam em si os modernos usospedagógicos, e de mestres já formados dentro desses princípios. Isso foiresolvido pela construção do prédio da Praça da República, inauguradoem 2 de agosto de 1894, pela contratação de professores formados nosEstados Unidos e pela importação de material didático, exigido pelonovo método.

Em 1976, a Escola Caetano de Campos teve sua vida transformada,com o perigo de destruição de seu prédio para dar lugar a uma estaçãodo metrô. A atitude radical dos órgãos públicos propiciou uma largacampanha e um processo judicial para impedir sua destruição. Vencidaessa etapa, o prédio foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimô-nio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo(CONDEPHAAT) e a escola transferida e desmembrada para outros doislugares, no bairro da Aclimação e na Praça Roosevelt. O que sobreviveude seu acervo, com essa mudança, pode ser em um primeiro momentodividido em:

1 - espólio: coleção de objetos pertencentes ao dr. Caetano de Cam-pos, ao professor Gomes Cardin, peças que faziam parte do fun-cionamento da escola na Praça da República, como: objetos dedecoração (pinturas, crucifixo, mobiliário etc.), mobiliário admi-nistrativo (secretaria, diretoria, relógio de ponto), porta-bandeira,retratos de personalidades etc.;

2 - biblioteca: constituída de livros didáticos e paradidáticos de todasas áreas, literatura infantil e obras de referência, trabalhos de alu-nos, livros em braile, e manuais de uso didático, adquiridos desdeo século XIX;

3 - hemeroteca: jornais editados pela própria escola, jornais editadospor outras escolas nacionais, jornais de escolas estrangeiras, jor-nais da grande imprensa, coleção de recortes de jornais, destacando-se a coleção de pastas suspensas, tematizadas, com material que

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vai desde recortes de jornais até material de uso didático,colecionados a partir de 1936 até a década de 1970;

4 - arquivo: conjunto de documentos produzidos e recebidos pelainstituição no exercício de suas funções; dele fazem parte docu-mentos da área contábil, livros de atas de diversas instâncias, li-vros de termos de compromisso e posse de funcionários e profes-sores, livros de pontos, livros de matrículas, prontuários de alunos,documentos pessoais de alunos, registros de diplomas, planos deaula etc.;

5 - acervo iconográfico: fotografias avulsas e álbuns que mostram ouniverso institucional durante seus mais de cem anos;

6 - mobiliário de caráter pedagógico: mobiliário da sala de leitura,suportes de mapas, mesas cadeiras, vitrinas do Museu Pedagógico,armários expositores;

7 - materiais didáticos ou recursos pedagógicos:• quadros didáticos, mapas;• brinquedoteca;• discoteca;• iconográficos e/ou áudio visuais (fotografias, filmes, slides);• equipamentos (cinema, projetores, vitrolas, gramofones,

estereoscópios, globos terrestres, microscópios etc.);• laboratórios: física, biologia, química.

A importância desse material – arquivístico, bibliográfico emuseológico – revela-se de diferentes maneiras. Uma delas é que rara-mente encontramos reunida essa diversidade de materiais, de épocasdistintas. Outra é seu significado para o estudo de uma história culturalda educação e, portanto, uma história cultural da sociedade – que partede objetos, formas e códigos para encontrar os grupos sociais, que seutilizam deles.

Concordo com Cooke (1991) quando critica os manuais tradicio-nais e os arquivistas de modo geral que, além de não se disporem asolucionar esse problema, desprezam qualquer discussão sobre o assun-to, preferindo manter no esquecimento seus armários de objetos, ou sim-plesmente enviá-los para museus.

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Diante de todos esses argumentos, pode-se dizer que o recolhimen-to de objetos nos arquivos só vem trazer benefícios para a pesquisa. Éna disponibilização de um acervo, em sua totalidade, que residirão in-formações mais completas e com menor risco de equívocos.

Encerrando este artigo trago a palavra de três pesquisadores, de épo-cas e linhas distintas, que respondem às inquietações por ele apontadas.

Mesmo que discorde do proposto por Felgueiras (2005), museu nolugar de arquivo, comungo com a idéia de união e não-desmembramentode documentos escolares, quando a autora finaliza um artigo, dizendo:

Tendo em conta que sobre as práticas escolares muito se desconhece e sãomesmo escassas as fontes de informação sobre aspectos da vida na escola e,ainda, a necessidade de obter informações capazes de elucidar sobre objectose material didáctico – que hoje nos parecem como estranhos –, consideramoso modelo de compreensão dos objectos arqueológicos adequado ao estudoda realidade escolar. E a razão parece simples: só o conjunto permite inter-pretar o todo e as partes que o compõem.

[...] A escola aparece como uma realidade bem definida, onde se entrelaçaum conjunto de funções e relações de que os respectivos materiais, sejamobjectos ou documentação (impressa, manuscrita, oral) são condição paraperceber e explicar. Há neles interdependência e complementaridades várias.Nesta perspectiva, não é mais defensável o desmembramento de coleções, sóporque são documentação. Esta é já uma visão que encontramos em algunsdirectores/as de arquivo. Mas defender esta perspectiva implica o enquadra-mento, no museu escolar, de um centro de documentação que contemple ar-quivo e biblioteca histórica [Felgueiras, 2005, p. 100]

As outras palavras vêm citadas no artigo de Nunes e Carvalho (1993,p. 33) e são de Lucien Febvre:

A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes exis-tem. Mas pode fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. Comtudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar o seumel, na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens etelhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da

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lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelosgeólogos e com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa palavra,com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve ao ho-mem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e asmaneiras de ser do homem.

E de Marc Boch:

Seria uma grande ilusão imaginar que a cada problema histórico correspon-de um tipo único de documentos, especializado para esse uso... Que historia-dor das religiões se contentaria em consultar os tratados de teologia ou as reco-lhas de hinos? Ele sabe bem que, sobre as crenças e as sensibilidades mortas,as imagens pintadas ou esculpidas nas paredes dos santuários, a disposição e omobiliário das tumbas têm pelo menos tanto para dizer quanto muitos escritos.

Os historiadores há muito reconheceram a importância de outrasfontes, não textuais, para assegurar maior fundamento e profundidade asuas pesquisas, incluindo qualquer tipo de vestígio ou registro deixadospelo homem.

A arquivística, como disciplina auxiliar das ciências humanas, espe-cialmente da história, tem acompanhado seus passos, embora em ritmomais lento. Tal postura envolve riscos que podem comprometer futurasinvestigações, nos diversos campos do conhecimento, já que a avalia-ção e a organização de documentos inclui uma responsabilidade maiordo arquivista.

Reconhecer que nem todos os objetos, mas determinados conjuntosde objetos, que por estarem ligados diretamente às funções primordiaisde uma instituição, devem integrar os seus arquivos, trará para a arqui-vística propósitos de renovação calcados na sintonia com as principaisreflexões e demandas do tempo presente.

Nesse sentido, a intenção desse artigo foi exatamente contribuir parauma discussão mais atenta sobre o lugar dos objetos nos arquivos, tãonecessária aos profissionais que, isolados, não dispõem de base técnicae metodológica para encaminhar procedimentos apropriados e solucio-nar essa questão. Trancadas em armários, muitos deles trazem informa-

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ções fundamentais para o conhecimento. Preservar documentos signifi-ca, antes de tudo, dar acesso ao seu conteúdo pleno.

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Endereço para correspondênciaJacy Machado Barletta

Rua Padre Antonio Tomas, 262, ap. 92São Paulo - SP

CEP: [email protected]

Recebido em: 1 set. 2005Aprovado em: 10 dez. 2005

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Reconstituindo arquivos escolares

A experiência do GEM/MT*

Elizabeth Madureira Siqueira**

* O Grupo Educação e Memória (GEM) é coordenado pelo professor doutor NicanorPalhares Sá, responsável pela linha da história da educação do programa de pós-graduação em educação do Instituto de Educação da Universidade Federal do MatoGrosso (UFMT).

** Doutora em história da educação, membro do GEM da UFMT, curadora da CasaBarão de Melgaço e coordenadora da Editora da Universidade Federal do MatoGrosso (UFMT). E-mail: [email protected])

Resumo:Balanço dos trabalhos desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa “Educação e Memória”,vinculado ao Instituto de Educação (IE), Programa de Pós-Graduação em Educação, aolongo dos últimos dez anos. Incorpora uma breve análise da contribuição bibliográficaregional e nacional, seguida dos levantamentos documentais junto aos principais acer-vos de Mato Grosso: Arquivo Público de Mato Grosso, Arquivo da Casa Barão deMelgaço e também no interior dos arquivos escolares – Escola Normal “Pedro Celestino”e Liceu Cuiabano “Maria de Arruda Müller”. Ao lado da organização das fontes escri-tas, o GEM investiu também na constituição de um Banco de Vozes de professores efuncionários ligados às principais instituições escolares do Estado. Ao final, o artigoelenca a produção de Instrumentos de Pesquisa, assim como apresenta um panorama daprodução científica gerada no interior do GEM, tanto as publicadas quanto as que seencontram no prelo.EDUCAÇÃO; HISTÓRIA; ACERVOS ESCOLARES.

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Abstract:Rocking of the essays developed for the Group of Research “Education and Memory”,tied with the Instituto de Educação (IE), Program of Post-Graduation in Education, tothe long of the last ten years. It incorporates one brief analysis of the regional andnational bibliographical contribution, followed with the documentary surveys togetherto the main quantities of Mato Grosso: Public Archive of Mato Grosso, Archive of theHouse Barão de Melgaço and also in the interior of the pertaining to school archives -Escola Normal “Pedro Celestino” e Liceu Cuiabano “Maria de Arruda Müller”. To theside of the organization of the written sources, the GEM also invested in the constitutionof a bank of voices of professors and on employees to the main pertaining to schoolinstitutions of the state. To the end, the article presents the production of researchinstruments, as well as presents a panorama of the generated scientific production in theinterior of the GEM, as much published how much the ones found in “prelo”.EDUCATION ; HISTORY; SCHOLAR QUANTITIES.

Reconstituing school archives

the experience of GEM/MT*

Elizabeth Madureira Siqueira**

* O Grupo Educação e Memória (GEM) é coordenado pelo professor doutor NicanorPalhares Sá, responsável pela linha da história da educação do programa de pós-graduação em educação do Instituto de Educação da Universidade Federal do MatoGrosso (UFMT).

** Doutora em história da educação, membro do GEM da UFMT, curadora da CasaBarão de Melgaço e coordenadora da Editora da Universidade Federal do MatoGrosso (UFMT). E-mail: [email protected])

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O “GEM” e o norte investigativo

Durante o século XIX e a primeira metade do XX, Mato Grosso foiconsiderado distante, se comparado à realidade litorânea de onde emana-vam as diretrizes civilizatórias. Região situada nos “confins do mundo”, aprovíncia mato-grossense estava inserida no território da “barbárie”, ain-da inexplorado, pois sua população, “indolente e voltada para os prazeresmundanos”, não conseguia arrancar suas visíveis potencialidades (Galetti,2000). Esse tom discursivo preconceituoso, veiculado inicialmente pelosviajantes estrangeiros e reforçado pelos governantes, era inicialmenteintrojetado e, mais tarde compartilhado também pelas autoridades ligadasà Instrução Pública – inspetores e dretores regionais. Esses enunciadosprocuravam reproduzir naqueles “confins do mundo” um modelo de es-cola e de ensino modernos, cuja matriz provinha dos referenciais prussianose franceses, transladados e reinventados, no Oitocentos, na corte (RJ). Avulgarização dessa proposta educacional única e sua realização nas diver-sas partes do território brasileiro foram concretizadas em andamento eforma diferenciados.

Investigar como ela se materializou em Mato Grosso, constituiu-seuma das principais preocupações do GEM que procurou, através de es-tudos, leitura e do levantamento de fontes documentais, fazer fulgurar aconstituição da escola moderna no sertão oeste, fronteira já qualificadacomo a “chave e o propugnáculo do sertão do Brasil”, no dizer colonial.Esse exercício buscou recuperar a trajetória silenciada dos territóriosafastados dos centros hegemônicos, onde os eflúvios civilizatórios nãoconseguiram ali realizar-se de forma plena e no ritmo e andamento de-sejados pelas elites dirigentes.

Foi nessa perspectiva que o GEM se empenhou em reescrever a histó-ria da educação de Mato Grosso, tendo por base não somente novas fon-tes e teorias, mas, principalmente, o respaldo na necessidade de timbrar aidentidade educacional de uma parte do território brasileiro e, nessa me-dida, colaborar na ampliação de uma história nacional, heterogênea e plu-ral. Essa assertiva assenta-se no pensamento de Habermas: “[...] o quenos faz diferentes é a nossa própria história, e o que nos iguala é o nossoesquecimento (Habermas apud Souza, 2000, p. 15).

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As fontes documentais perseguidas pelo GEM deveriam respondera algumas indagações formuladas a partir do percurso de Mato Grosso esua ressignificação por diferentes óticas. Concordamos com Vidal quandoconsidera que: “As categorias históricas, assim, conferem um sentidoao passado, incorporado pela escrita historiográfica, no duplo registrode uma condição da pesquisa de campo e de uma recriação da análisepelo manuseio das fontes” (Vidal, 2004, p. 28). Dialogar com a empiria,a partir de uma análise histórica processual sustentada por indagações eformulações teóricas contemporâneas, foi suficiente para que o GEMimplementasse o desafio de dar suporte à inscrição de uma nova históriada educação de Mato Grosso.

Momentos distintos da historiografiaeducacional do Mato Grosso

A produção historiográfica mato-grossense no que concerne à his-tória da educação pode ser dividida em dois momentos pontuais: o pri-meiro datado da primeira metade do século XX, esteve a cargo de inte-lectuais de formação variada, que se predispuseram a traçar, pela vezprimeira, a trajetória educacional mato-grossense; o segundo surgiu pós-1995, quando se constituiu, no interior da pós-graduação em educaçãoda UFMT, um grupo de pesquisa que, apoiado na produção historiográ-fica anterior, procedeu a avanços substantivos não só no que concerne àampliação das fontes e teorias, mas, também, na formulação de inova-dores questionamentos à empiria.

A produção historiográfica dos primeiros tem como produto finaltextos de cunho eminentemente político-administrativos, visto que a basede apoio documental teve como centralidade uma única tipologia, a le-gislação – colonial, imperial e republicana – e sua escrita isenta de qual-quer proposta metodológica. Em contrapartida, as indagações formula-das por esse grupo acompanhavam interesses próprios da época. Osescritos gerados por esse grupo têm como representantes: Virgílio CorrêaFilho, com Questões de Ensino (Corrêa Filho, 2001); Gervásio Leite,em Um século de Instrução Pública: história do ensino primário em

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Mato Grosso (Leite, 1971); Rubens de Mendonça, com Evolução doEnsino em Mato Grosso (Mendonça, 1977), e Humberto Marcílio, emsua interessante História do Ensino em Mato Grosso (Marcilio, 1963).A preocupação desses historiadores, profissionais formados em direito,medicina ou engenharia, visou pontuar momentos marcantes do percur-so educacional de Mato Grosso, tomando por parâmetro balizas crono-lógicas e político-administrativas. O cerne das análises enfoca a legisla-ção emanada dos governantes e administradores e suas reformas deensino, visto que as questões por eles formuladas assentavam-se nainexistência de qualquer informação anterior sobre o contexto educa-cional e, por isso, procuraram, ao arremedo da historiografia brasileirada primeira metade do século XX, privilegiar os atos normativos e apolítica educacional.

O segundo grupo, cuja produção historiográfica data da última dé-cada do século XX e composto de intelectuais formados e pós-graduadosem pedagogia, filosofia e história, vem produzindo um tipo de historio-grafia bastante diferenciada daquela oriunda do primeiro grupo, porquea base empírica e seus questionamentos apontam para outros paradig-mas. Acatamos as competentes reflexões formuladas por Maria CecíliaCortez Christiano de Souza sobre essa questão, quando considera que:“o passado é constituído e continuamente reconstruído a partir de umaproblemática do presente” (Souza, 2000, p. 16). No desenvolvimentode seus trabalhos, novas indagações foram postas para o GEM, as quaisdeveriam ser respondidas tendo por base referenciais metodológicoscapazes de tornar mais compreensível os diversos momentos doprocesso educativo, não mais entendido enquanto derivação das açõespolítico-administrativas, mas, sim, como prática docente cotidiana. Vidalreforça que essas novas problemáticas desfocaram não só o olhar doshistoriadores da educação, de um campo meramente político-adminis-trativo, para o fazer escolar, como tornaram obrigatório a busca de no-vas fontes:

Julia convidava os historiadores da educação a se interrogarem sobre as prá-ticas cotidianas, sobre o funcionamento interno da escola. [...] propunha umahistória das disciplinas escolares, constituída a partir de uma ampliação das

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fontes tradicionais. [...] Pretendia, [...] a aproximação entre estas e os estudosvoltados ao interior das instituições de ensino [Vidal, 2004, p. 30].

Por essa perspectiva, o GEM investiu na ampliação do universo do-cumental, procedendo, concomitantemente, à necessária releitura da his-toriografia “clássica” regional e nacional, através da formulação de con-temporâneos questionamentos sobre a empiria. Assim, as pesquisas noâmbito da pós-graduação ganharam uma nova direção, pois os objetos deinvestigação passaram a ter, como centralidade, novas problemáticas: ins-tituições escolares, questão de gênero, cultura escolar, metodologias deensino, sistema de vigilância, arquitetura escolar, análise do discurso edu-cacional, eugenia no interior do processo educativo, civismo e patriotis-mo nas escolas, laicização do ensino, profissão docente, dentre outras1.

Da corte ao sertão: um diálogo possível

Fazendo uma interlocução com Vidal, acordamos:

[...] interessava-me pela “mil maneiras de fazer com” (Certau) os materiais emétodos que eram postos em circulação na escola, questionando como os

1. Nessa direção, foram defendidas, junto ao programa de pós-graduação da UFMT,as seguintes dissertações de mestrado: Laci Maria Araújo Alves. “Nas trilhas doensino (Educação em Mato Grosso 1910-1946)”, defesa em 1997; Elizabeth B.Lannes Bernardes. “Mulheres cuiabanas na Primeira República”, 1998; André PauloCastanha. “Pedagogia da Moralidade: O Estado e a Organização da Instrução Pú-blica na Província de Mato Grosso (1834 – 1873)”, 1999; Edmar Joaquim dosSantos. “A educação física higienista em Mato Grosso (fase de implantação) 1910-1920, 1999”; Carlos Américo Bertolini. “Encenações patrióticas: a educação e ocivismo a serviço do Estado Novo (1937-1945)”, 2000; Elizabeth Pippi Rosa.“Cartilha do Dever: a instrução pública primária em Mato Grosso nas primeirasdécadas republicanas (1891-1910)”, 2002; Euclides Poubel e Silva. “Origens doConselho Estadual de Educação”, 2003; Regina Aparecida Versoza Simião. “Pro-cesso de profissionalização docente em Mato Grosso (1930-1960)”, 2004; EmileneFontes de Oliveira Xavier. “Cultura e civismo no Grupo Escolar “Leônidas deMattos” (Santo Antônio de Leverger/MT)”, 2004; Dimas Santana Souza Neves.“Controle e vigilância na construção da cultura escolar em Mato Grosso”, 2004.

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alunos e professores deles se utilizaram, como subverteram os dispositivosque lhes estavam inscritos, na concepção da escola como um lugar de produ-ção de uma cultura específica, em que constantemente atualizavam-se “es-tratégias modeladoras e táticas de subversão” [Vidal, 2004, p. 14].

Se subversões ocorriam na corte, o ludíbrio era ainda maior quandose tratava de Mato Grosso, onde, muitas vezes, a maioria de sua popula-ção não respondia ou, até mesmo, repudiava peremptoriamente as dire-trizes educacionais que lhe eram impostas. Exemplar é o episódio, ocor-rido entre os anos de 1873-74, quando o presidente da província aprovoua instalação de duas escolas noturnas, idealizadas pelo inspetor-geral daInstrução Pública, protonotário apostólico Ernesto Camilo Barreto, clé-rigo baiano que abominava as “orgias” noturnas e diurnas presentes nocotidiano da maioria das famílias, especialmente daquelas pobres, ondeo hábito das rodas de cururu, siriri e umbigada, além da beberagem ejogatina imperavam. Retirar essa população do ócio, impondo-lhe umnovo ritmo “civilizado”, tornava-se o grande objetivo, e o espaço esco-lar, sem dúvida, passou a ser visto como “laboratório” ideal. Depois deinaugurar, com muita pompa, dois cursos noturnos, nomeando comoregentes homens probos e cultos, ambas as escolas foram fechadas “porfalta absoluta de alunos”. Ao cerrar as portas destes “templos da civili-zação”, o clérigo assim se expressou:

Instituição tão útil, porém, e proveitosa aos que pelos labores da vida nãopodem durante o dia curar da alimentação do espírito, foi abandonada pelospróprios a quem interessava. Nenhum aluno matriculou-se nessas escolas deinstrução primária. Não se diga que estávamos neste ramo, como em Gene-bra, onde um vogal da sociedade helvética, querendo experimentar o seumétodo de ensino para adultos, procurando, por toda a cidade, adultos anal-fabetos, não encontrou senão um, e esse mesmo não era suíço, mas italiano[Siqueira, 2000, p.].

A avaliação do inspetor-geral dos estudos comungava com osideais da escola moderna porquanto, “Colocada como um espaço detransmissão de saberes universais, a idéia era transformar a escola em

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suporte de relacionamentos impessoais, graças aos quais, se pensava, osalunos se libertavam de pertinências sociais particulares e locais” (Sou-za, 2000, p. 29). Para que essa transformação se processasse, não basta-va matricular crianças e adultos nas escolas; o importante seria instruí-los e educá-los dentro dos princípios modernos, e os livros didáticoseram considerados um dos seus mais importantes instrumentos. Vidal(Vidal, 2004) informa terem sido o primeiro e segundo livros de leitura,do Barão de Macaúbas, adotados nas escolas do Rio de Janeiro; indaga-va-se, teriam esses mesmos compêndios circulado em Mato Grosso?Mesmo distante geograficamente, as lições de Abílio César Borges alichegaram doadas pelo autor que, em correspondência, ponderou queseus ensinamentos serviriam para retirar da “barbárie” a população mato-grossense:

Em 1874, tendo-me sido comunicado que as escolas dessa Província pade-ciam falta absoluta de livros, porque o Tesouro provincial em penúria nãopermitia fornecê-los desses principalíssimos instrumentos do ensino, sem osquais bem pouco valem escolas, ofereci para as mesmas 1.200 exemplaresdos meus compêndios escolares. Lendo agora nos jornais a notícia do crimenefando praticado aí por mãe bruta e feroz, que à sua própria filha, na flordos anos, arrancara fria e calculadamente a vida, cravando-lhe no seio a facafilicida, e tendo para si que praticava um ato de sublime virtude com punirassim uma falta da infeliz filha, que mais do que punição mereceria compai-xão; crime esse que não é senão a continuação de muitos outros igualmenteatribuídos à completa ignorância em que jaz imersa a maior parte da popula-ção dessa Província; no desejo de concorrer para que vão penetrando algunsraios de luz nessas trevas espessas que ainda aí envolvem os espíritos, resol-vi fazer novo oferecimento de três mil exemplares dos ditos meus livros paraserem distribuídos pelos alunos pobres mato-grossenses, que freqüentam asescolas. Esses livros acham-se à disposição de V. Exa., e serão entregues aquem V. Exa. determinar [Siqueira, 2000, p. 232].

No que tange aos métodos de ensino, a província de Mato Grossoacompanhou, mesmo levando-se em conta relativa defasagem cronológi-ca, as orientações metodológicas emanadas da corte. Nos primeiros anos

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da década de 1870, as escolas públicas primárias ainda não possuíam ummétodo de ensino claramente definido, na ótica de Camilo Barreto:

Ainda não pude compreender qual o método de ensino aplicado nas esco-las. [...] pelo que vi e presenciei o sistema não é nenhum dos métodos menci-onados, é não ter sistema. A variedade e não a uniformidade rege as escolas.Cada qual ensinando pelo modo por que aprendeu, e cada um aprendeu peloque mais lhe convém. Nenhuma ordem na distribuição do tempo, nem nasmatérias do ensino. As sessões de leitura, de escrita, de aritmética e de dou-trina, em vez de se sucederem, tornam-se simultânea, estes escrevem, en-quanto aqueles rezam, lêem uns enquanto outros se ocupam em fazer contas[Siqueira, 2000, p. 215].

Assim, o ensino simultâneo-mútuo, ministrado pelo método lancas-teriano, fora indicado aos professores mato-grossenses pela diretriz ema-nada do Regulamento da Instrução Pública do ano de 1873. Sua realiza-ção, no entanto, não se efetivou, apesar de todos os esforços despendidospelo protonotário Camilo Barreto que, pessoalmente, se predispôs a mi-nistrar aulas de metodologia aos professores mato-grossenses:

Não tenho necessidade de encarecer o método simultâneo, aplicado aoensino primário, ele já está julgado pelas nações mais adiantadas e pelosnossos mais distintos professores e pedagogistas. [...] já está ele admitido eem execução entre nós na 1ª cadeira de instrução primária da paróquia da Sé,regida pelo cidadão Manuel Teixeira Coelho, e se não em todas as escolasdesta capital, isto é somente devido à falta de casas e das mobílias e utensíli-os indispensáveis ao sistema. Todos os professores desta capital e de VilaMaria [Cáceres] assistiram aos exercícios pedagógicos, e se os não puderamdesenvolver ainda em suas respectivas escolas, é isso devido ao que deixeireferido [Siqueira, 2002, p. 311].

Entusiasmado com os efeitos multiplicadores do moderno método,o mesmo clérigo e seu sucessor, à frente da instrução pública, se empe-nharam em montar, em Cuiabá, uma escola modelar, contando com es-paço físico suficiente para que o ensino mútuo pudesse se realizar. Ela,

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no entanto, não progrediu, vigorando, na maioria dos estabelecimentosde ensino primário, o método misto. Nos “confins do mundo”, com umapopulação majoritariamente analfabeta e miscigenada, a alfabetizaçãoem massa, propugnada pelo método lancasteriano, seria, na visão dosadministradores do século XIX, sem dúvida, uma excelente solução.Faria Filho elucida-nos sobre as principais condições exigidas para im-plementação do método mútuo:

[...] ao incidirem sobre a organização da classe, sobre a necessidade deespaços e de materiais específicos para a realização da instrução na escola,sobre a necessidade de formação dos professores e, finalmente, ao estabele-cerem o tempo e a questão econômica como elementos basilares do processoda escola [Faria Filho, 2000, p. 142].

Em que espaços escolares os pressupostos da escola moderna fo-ram implantados em Mato Grosso? Crianças de que faixa etária e escalasocial freqüentavam a escola? Quais aquelas que prosseguiam os estu-dos? Os métodos de ensino aplicados em Mato Grosso eram similaresàqueles adotados na corte, ou eles sofreram uma adaptação à realidadesertaneja? Que livros didáticos eram adotados? Havia uma produção di-dática regional? Quando o segmento feminino ingressou na carreira domagistério? Qual a sua formação e quem eram essas professoras? Qual onível cultural dos docentes? Que trajetória foi realizada pelas instituiçõesescolares? Foi em busca dessas e de muitas outras respostas que o GEMinvestiu no levantamento sistemático de fontes, iniciando o percurso coma organização da documentação oficial, para mais tarde, tendo por base osseus “silêncios”, procurar desvendá-los através das informações contidasnos acervos privados – institucionais, pessoais e familiares – para, depois,investir na produção de novas fontes, tendo por base a história oral.

O trabalho com a documentação pública

Os documentos somente se transformam em monumentos, à me-dida que são utilizados e referendados pelo historiador (Le Goff, 1990).

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Entendemos que os arquivos escolares, localizados, sistematizados epreservados em diferentes acervos documentais – tanto os de caráterpúblico, como privados – deram novo estatuto à história da educação,visto que capazes de fazer fulgurar, no interior de um processo maisamplo, o cotidiano das escolas.

Foi em busca da recomposição das fontes oficiais, agora ampliadascom o rastreamento das institucionais e privadas, que o GEM investiuna sistematização de documentos relativos à história da educação deMato Grosso e que, certamente, serviram de apoio não somente às pes-quisas educacionais pertinentes ao contexto regional, mas, também,àqueles trabalhos que buscaram relacionar e cotejar nacionalmente rea-lidades escolares diferenciadas.

O universo empírico, trabalhado ao longo de quase 10 anos (1996-2005), permitiu ao Grupo de Pesquisa em História da Educação consti-tuir um banco de dados que abarca os períodos imperial e republicano(1822-1950). Inicialmente, privilegiou-se a documentação manuscrita eimpressa, catalogada em verbetes ou resenhas indicativos das informa-ções contidas em cada documento, esclarecendo sobre sua localizaçãono interior dos respectivos acervos. Ao lado desse trabalho, esforçossubseqüentes foram envidados na transcrição e digitação das fontes,privilegiando-se, especialmente, a legislação, os relatórios dos gover-nantes e autoridades responsáveis pela condução da instrução pública,assim como os documentos especialmente relevantes que colaborampara dar maior visibilidade e domínio às práticas escolares – processos,discursos, artigos veiculados em periódicos, correspondências, li-vros de registro de material escolar, orçamentos etc. Essas informaçõesencontram-se hoje disponibilizadas virtualmente, podendo os interessa-dos ter abreviadas suas investigações documentais. Em especial, esseinstrumental está servindo, ao longo dos últimos oito anos, para ampa-rar as pesquisas desenvolvidas no âmbito da pós-graduação em educa-ção, apresentando-se como elemento facilitador do desenvolvimento demonografias, dissertações e teses. Concordando com as reflexões deAmorim, quanto à importância do trabalho de sistematização de fontes,pois “ele permite que o documento cumpra sua finalidade, ajudando acompletar a cadeia necessária à criação científica” (Amorim, 2000, p. 90).

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As fontes do poder executivo

Os documentos gerados e produzidos pelos poderes públicos, pormuito tempo, constituíram-se nas únicas fontes aceitas e consideradaslegítimas para embasar o métier do historiador. Entretanto, não era suanatureza que determinava, em última instância, a produção de um co-nhecimento “oficialesco”, comprometido com uma história factual, cro-nológica e notoriamente política, mas, sim, a forma como ela era apro-priada e inquirida pelo pesquisador. Do século XIX ao XXI, ocorreuuma importante alteração na concepção de leitura e apropriação dosdocumentos, visto que o investigador, que num primeiro momento selimitava apenas a copiar o documento sem exercer sobre ele qualquerintervenção, passou a formular interrogações e questionamentos àempiria, nela buscando respostas para suas indagações, estas, sim, ino-vadoras. Nessa medida, os documentos gerados pelos poderes públicosmantiveram, com essa transformação, o mesmo status, sendo que o pes-quisador é quem alterou as perguntas a eles proferidas.

O GEM, nos idos de 1995/2003, arrolou, no interior dos arquivosoficiais, um expressivo conjunto documental, tendo sido seu primeiroinvestimento realizado junto às fontes oficiais depositadas no ArquivoPúblico de Mato Grosso. Ali foram levantados, resenhados, transcritose digitalizados códices e documentos avulsos relativos ao Império e àPrimeira República. O resultado desse trabalho frutificou em dois im-portantes instrumentos de pesquisa: Memória: catálogo de documentosrelativos à história da educação mato-grossense (período Imperial),publicado em 1996 (Sá & Siqueira, 1996), e um CD-ROM contendo adocumentação republicana, 1890 a 1950 (Sá & Siqueira, 2004). No pri-meiro caso, o catálogo recebeu uma organização cronológica e no se-gundo, o CD-ROM, a ordenação obedeceu à entrada por instituição ten-do, em seu interior, a sistematização cronológica. Após esse trabalhoinicial, o GEM investiu na transcrição e digitalização dos documentosconsiderados relevantes, que, hoje, encontram-se à disposição dos pes-quisadores junto ao banco de fontes do GEM.

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O acervo legislativo

Considerando que a documentação emanada do poder executivomantém estreita relação com a do legislativo, um segundo trabalho delevantamento centrou esforços na organização dos dados escolares eeducacionais gerados no interior das fontes parlamentares provincial/estadual. Para tanto, foram catalogados: livros de atas das sessõeslegislativas (1835-1950), projetos de lei e emendas, assim como a cole-ção da legislação. Esse esforço frutificou em catálogos temáticos, assimcomo toda a legislação imperial e republicana foi resenhada e ordenadacronologicamente, integrando os CDS-ROM de Império e de República.

As decisões parlamentares apresentaram-se como muito impor-tantes para se vislumbrar as prioridades políticas no que tangia aos as-suntos educacionais, assim como tornou clara a, até então invisível, lutapartidária travada no parlamento que incidia decisivamente na criação emanutenção de escolas, atingindo, da mesma forma pendular, a nomea-ção e demissão de diretores e mestres, que ficavam à mercê do jogopolítico. O mesmo ocorria com as reformas educacionais, que acompa-nhavam o ritmo dessa ciranda.

Uma preciosa documentação, a processual, foi localizada no in-terior do acervo parlamentar, e algumas de suas peças – as relativas aosinspetores/diretores de ensino – contaram com depoimentos de profes-sores. O testemunho de muitos mestres colaborou para tornar mais pró-ximo o fazer escolar no tocante aos métodos de ensino e até mesmo aoscastigos físicos e ao processo de fiscalização e vigilância no fazer esco-lar. Esse material, apesar da cautela com que deve ser “lido”, visto quepropositadamente instruído, visando ao afastamento de autoridades edu-cacionais desafetas politicamente, transformou-se em esclarecedoraspistas indicativas daquilo que se passava no interior dos estabelecimen-tos escolares. Do mesmo modo, foi uma importante referência para areconstituição de dados biográficos dos mestres e administradores, vis-to iniciar cada depoimento com uma apresentação do depoente (Siqueira,2000).

Não bastava consultar os documentos gerados e produzidos pelospoderes públicos – legislação, relatórios de governantes e inspetores/

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diretores da instrução pública, regulamentos, atos normativos, proces-sos etc. Eles, sem dúvida, elucidavam pegadas importantes do processoeducacional, porém eram insuficientes para desvendar o cotidiano esco-lar, as práticas pedagógicas, as relações estabelecidas no interior dassalas de aula e, tampouco, ofereciam suporte para se conhecer mais pro-fundamente o universo social e cultural dos professores, alunos e de-mais agentes envolvidos no processo educativo.

Vestígios da documentação oficial apontaram algunsacervos públicos escolares “perdidos”

Foi a partir da organização das fontes documentais oriundas dospoderes executivo e legislativo que o GEM certificou-se da inexistênciade dados sobre alguns importantes estabelecimentos públicos escolares,criados no século XIX: o Liceu Cuiabano (instituído no final de 1879 einstalado nos primórdios de 1880) e a Escola Normal de Cuiabá, intituladamais tarde Escola Normal e Modelo Barão de Melgaço, instalada noprimeiro distrito da capital mato-grossense, na primeira metade do sé-culo XIX. Essas escolas conviveram, durante muitos anos, num mesmoespaço físico, o Palácio da Instrução, porém ali não se conseguiu locali-zar qualquer documento. Investigando junto aos antigos professores ediretores, ficou-se sabendo que os citados arquivos escolares estavamdepositados, o da Escola Normal, na Escola do 1º e 2º graus “PresidenteMédici”, criada pós-1907, e o do Liceu Cuiabano, no edifício que hojeabriga o centenário estabelecimento, instalado num portentoso edifícioconstruído durante o Estado Novo. O GEM deu início a um trabalho dearranjo e catalogação desses acervos, que serviram de base para a elabo-ração de dissertações de mestrado2.

2. Elizabeth de Sá Poubel Silva. “A Escola Normal de Cuiabá (1910-1916): contri-buição para a História da formação de professores em Mato Grosso”, 2000, MariaInês Zanelli. “A criação do Liceu Cuiabano na província de Mato Grosso: o cursode línguas e ciências preparatórias e a formação dos intelectuais”, 2001 e RosineteMaria dos Reis. “Palácios da Instrução: institucionalização dos Grupos Escolaresem Mato Grosso (1910-1927)”, 2003.

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No ano 2000, ingressaram na pós-graduação em história da educa-ção dois membros ligados profissionalmente ao Centro Federal de Edu-cação Tecnológica (CEFET) (de Mato Grosso e de Cuiabá) que escolhe-ram como temática de dissertação a Escola de Aprendizes Artífices, faseembrionária desste centro, em Mato Grosso (1909-1910), e o Aprendiza-do Agrícola Gustavo Dutra, atual CEFET-Cuiabá), estabelecimento rural(construído na BR-364, Serra de São Vicente), instituído durante o EstadoNovo e que recebia alunos sob o regime de internato. Nesse esforço, fo-ram localizados e sistematizados importantes papéis relativos ao ensinopúblico federal em Mato Grosso3.

De posse da documentação gerada pelos poderes executivo elegislativo estaduais, acrescida dos dois importantes acervos escolaresfederais, o GEM prosseguiu na busca de novas fontes, as de caráterprivado, uma vez que as investigações do grupo tinham ainda que pon-tuar as questões relativas à cultura e cotidiano escolares.

Da documentação oficial à documentação privada:

Os acervos privados institucionais

O terceiro esforço do GEM teve como meta o levantamento e siste-matização da documentação educacional existente nos acervos priva-dos institucionais, depositados no Arquivo da Casa Barão de Melgaço,entidade quase centenária que abriga as duas agremiações culturais maisantigas de Mato Grosso: o Instituto Histórico e Geográfico de Mato

3. Nádia Cuiabano Kunze. “A Escola de Aprendizes Artífices em Mato Grosso (1910-1937)”, 2005 e Abimael Antunes Marques. “O Aprendizado Agrícola Gustavo Dutra:seu papel e importância no contexto agrícola de Mato Grosso”, 2005. Já havia sidodefendido, no ano de 1997, uma dissertação de mestrado intitulada “O AprendizadoAgrícola Gustavo Dutra: a maior dádiva de Mato Grosso (1942 – 1964)”, de LucianeNeuvauld, no entretanto, trabalho pioneiro foi desenvolvido, enquanto tese de Dou-torado, defendida junto ao programa de pós-graduação em Educação/UFMT, no anode 1999, pela historiadora Matilde Araki Crudo, intitulado “Aprendizes do Arsenalde Guerra de Mato Grosso: Trabalho infantil e educação (1842 – 1899)”, primeirainstituição federal no cenário educacional de Mato Grosso.

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Grosso (IHGMT, instalado em 1919) e a Academia Mato-Grossense deLetras (instituída em 1921). No interior do arquivo, composto por umabiblioteca de mais de 10.000 volumes e um riquíssimo acervo de perió-dicos4, além de fotografias, móveis e objetos, foram localizados livrosde registro dos sócios, acompanhados de dados biográficos, nos quaisse verificou a presença de muitos docentes. Importantes dados avaliativosreferem-se aos pareceres que o IHGMT emitia nos livros didáticos dehistória e de geografia, apresentados por autores regionais. Tratava-sedas primeiras propostas de levar para as escolas primárias e secundáriasconhecimentos concernentes à realidade de Mato Grosso. Dois delesforam aprovados e passaram a ser adotados nas escolas públicas e pri-vadas de Mato Grosso: o Quadro Chorographico de Matto Grosso, deautoria de Estevão de Mendonça (Mendonça, E. 1906), e também OMunicípio de Cuiabá (Terceiro Livro de Leitura), de autoria da profes-sora Amélia de Arruda Alves (Alves, 1949). A organização, sistematiza-ção e informatização do arquivo da Casa Barão de Melgaço receberamo apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi-co e Tecnológico (CNPq)/Projeto Norte, através da UFMT, e foram exe-cutadas por um membro do GEM, curadora da Casa Barão de Melgaço.O resultado final desse trabalho foi a produção de um CD-ROM conten-do um minucioso catálogo comentado. A potencialidade dos acervosinstitucionais e sua contribuição para a reconstituição de fontes pertinen-tes à educação, também mereceu apreço por parte de Casasanta Peixotoque sobrelevou a importância da biblioteca da Academia Mineira de Le-tras que, “embora não organizada, possui volumes contendo vida, obra,discursos de personalidades no campo da cultura, algumas delas de des-taque na história da educação” (Peixoto, 2000. p. 79).

Um outro importante filão educacional da Casa Barão de Melgaçofoi encontrado junto ao arquivo do extinto Instituto de Pesquisas D.

4. Duas dissertações de mestrado tomaram este acervo de periódicos como objeto:“O ensino laico: entre a cruz e a espada: polêmica sobre o ensino laico veiculadopelo periódico “A Cruz” (1910-1924)”, de Marize Bueno de Souza Soares, 2002, e“Educação na revista feminina A Violeta”, de Gisleine Crepaldi Silva, defendidano ano de 2003.

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Aquino Corrêa, incluindo cerca de 6.000 papéis que, depois de sistema-tizados, foram dispostos em grandes pastas e caixas, sendo seu catálogoorganizado em três grandes chamadas cronológicas: Colônia, Império erepública. No bojo deste expressivo conjunto de fontes, foram encon-trados papéis que diziam respeito ao ensino informal, ministrado na ca-pitania de Mato Grosso pelos engenheiros portugueses que ali se fixa-ram e foram responsáveis pelo comando das fortificações, a exemplo deRicardo Franco de Almeida Serra, que se dedicou a ensinar geometria ematemática aos oficiais e soldados dos batalhões de fronteira. Foi tam-bém localizada, no período imperial e republicano, uma expressiva do-cumentação concernente às instituições escolares, a exemplo de códicese papéis avulsos pertinentes ao mais antigo curso secundário e confes-sional de Mato Grosso, o Seminário Episcopal da Conceição, instituídono ano de 1853, graças às ações do primeiro bispo diocesano de Cuiabá,o paulistano dom José Antônio dos Reis. Através de sua sistematização,puderam ser recuperados dados biográficos dos seus docentes, ao longode quase oitenta anos, assim como conhecidos os métodos de ensino,plano de estudos, livros didáticos e grade horária. Documentos relativosa outras instituições de ensino a cargo da Igreja católica também foramsistematizados, a exemplo dos relativos ao Asilo Santa Rita (internato eexternato do sexo feminino) e ao Liceu Salesiano São Gonçalo em seustrabalhos missionários junto aos grupos indígenas regionais. Cada umdestes filões documentais redundaram em dissertações de mestrado5.

Os acervos privados

Além dos acervos institucionais, o Arquivo da Casa Barão deMelgaço congrega uma volumosa e diversificada documentação priva-

5. Recorreram a essa documentação: Adilson José Francisco. “Apóstolos do Progres-so: a prática educativa Salesiana no processo de modernização em Mato Grosso(1894 1919)”, 1998; Arilson Aparecido Martins. “O Seminário Episcopal da Con-ceição: da materialidade física à proposta pedagógica”, 2000; Ivone Goulart Lopes.“O Asilo Santa Rita de Cuiabá: releitura da práxis educativa feminina católica(1890 –1930)”, 2002.

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da pertencente a professores, intelectuais, políticos e personalidades li-gados à história, literatura e cultura mato-grossense, doada pelos fami-liares após o falecimento dos titulares. Esse é o caso das coleções docu-mentais que pertenceram à Família Mendonça: Estevão (historiador eprimeiro diretor da Biblioteca Pública Estadual), Rubens (historiador eliterato); dos papéis acumulados por Ramiro Noronha, um dos integran-tes do Serviço Nacional de Proteção aos Índios (SPI) e responsável pelaabertura dos postos e escolas indígenas de Mato Grosso, na primeirametade do século XX; os de Luis-Philippe Pereira Leite (historiador ecartorário); e os acervos privados da Família Rodrigues, compostos poruma diversificada e volumosa documentação acumulada por doiseméritos professores cuiabanos, Firmo Rodrigues (1871-1944) e sua fi-lha Maria Benedita Deschamps Rodrigues (1908-2001), apelidada“Dunga Rodrigues”.

O acervo da Família Rodrigues

A coleção da Família Rodrigues – Firmo José Rodrigues e DungaRodrigues – constitui-se um dos mais importantes e completos conjun-tos documentais abrigados no arquivo da Casa Barão de Melgaço. Issose deve ao fato de que a família, após o falecimento da última titular, em2001, doou, de forma pródiga e à escolha da Curadoria da Casa Barãode Melgaço, um patrimônio volumoso e bastante diversificado no quetange à natureza documental. Assim, foram recolhidos: a biblioteca fa-miliar, os papéis avulsos, os periódicos, as fotografias, o mobiliário eaté os objetos. Esse rico patrimônio, único no Estado pela sua diversida-de, é capaz de recuperar não somente a trajetória desses dois mestres –através dos seus livros didáticos e paradidáticos, dos escritos avulsos ediários de viagem –, mas, também, o cotidiano de ambos, trazendo alume um intrincado universo intelectual e social em que atuaram porquase dois séculos. Ao lado disso, a coleção incorpora, além de docu-mentos dos titulares, papéis avulsos, objetos, fotografias e mobiliárioque pertenceram aos seus pais e avós.

O arranjo e sistematização da coleção documental da FamíliaRodrigues mereceram estudos sistemáticos e uma metódica específica

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na classificação dos mais de 10.000 papéis escritos, cerca de 850 foto-grafias, mais de 470 peças de jornais, além do diversificado mobiliárioe grande número de objetos. Para tanto, a curadora da Casa Barão deMelgaço buscou capacitação junto ao Instituto de Estudos Brasileiros(IEB)/Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP),em curso específico sobre acervos privados, ministrado junto ao Arqui-vo Público de São Paulo, no ano de 2003, sob a regência da professoradoutora Ana Maria de Almeida Camargo e de outras renomadas histori-adoras e documentalistas.

Todo o acervo mereceu uma única metódica de arranjo, tendo porbase 10 grupos: atuação profissional; documentos de família; documen-tos pessoais; formação intelectual; produção intelectual; relações fami-liares; relações sociais; transações comerciais e financeiras; universo deinteresse e sem vínculo aparente. No interior desses grupos foram esta-belecidos subgrupos e séries. Assim, o conjunto documental manteveuma sistemática única, elemento facilitador de seu arranjo e consulta.

No que tange especificamente ao setor educacional, a documenta-ção apresenta-se como reveladora, visto que uma série completa de do-cumentos iluminou o entendimento da cultura escolar, tanto no que dizrespeito às modalidades de ensino, aos livros didáticos utilizados, quan-to também aos métodos de ensino adotados nos séculos XIX e primeirametade do XX. Digna de nota é a documentação referente à Escola Mi-litar da Praia Vermelha, onde Firmo José Rodrigues estudou no final doséculo XIX, no interior da qual foram encontrados cadernos manuscri-tos das aulas de positivismo ministradas por Benjamin Constant e mi-nuciosamente anotadas em quatro brochuras; das lições, da Escola Nor-mal Pedro Celestino e Asilo Santa Rita, onde Dunga Rodrigues cursou oprimário; da Escola Normal Pedro Celestino, onde ela complementouseus estudos. Enquanto mestre, pudemos encontrar brochuras contendoanotações e programa de aulas, relação e nota de alunos, planos de cur-so, sabatinas e convites e discursos de formatura, das quais os titularesforam, por vezes, paraninfos. Uma série ilustrativa de fotografias emol-dura a correspondência de Firmo e de Dunga com outros professores,seus contemporâneos. Nessas missivas, pudemos vislumbrar os livrosque encomendavam, aqueles que pediam por empréstimo, as dificulda-

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des salariais, informações sobre administradores escolares, carreira do-cente, assim como a influência da política nacional e regional na vida dacategoria.

Esses dados educacionais foram enriquecidos com os exemplaresda biblioteca familiar, acumulada ao longo de quase dois séculos, cujasobras são capazes de recuperar não somente o universo de leitura dosdois professores, mas servem também para distinguir os livros que fo-ram por eles compulsados durante o período de formação escolar e emseu cotidiano didático, visto que anotados. Além desses entrecruzamen-tos, a produção literária das duas personalidades, por sua natureza farta,apresenta-se como relevante para fazer fulgurar o universo intelectual eformas de escrita e produção literária da época, por se tratar de artigos,muitos deles inéditos, versando sobre o cotidiano escolar, social e dacidade, incluindo também muitos dados biográficos e práticas docentesde antigos professores. Esses textos, muitos deles publicados no forma-to de livros6 ou artigos integrantes de periódicos regionais, uma vezentrecruzados com a produção intelectual inédita dos titulares, – abun-dante no interior dos papéis avulsos –, emolduram um universo socialampliado e representativo não só deles e de seus familiares, masdescortinam facetas do social e cultural representativas de todo um con-junto de professores que atuou no cenário mato-grossense durante a se-gunda metade do século XIX e primeira do XX. Tanto pai quanto filha,quando já idosos, deixaram escritos preciosos cuja temática versa sobre

6. Firmo Rodrigues publicou, em dois volumes, “Figuras e Coisas de nossa Terra” e“Diário de uma viagem”, ambos editorados após sua morte. Dunga deixou um ex-pressivo número de publicações: “Reminiscência de Cuiabá”, “Os vizinhos”, “Ro-teiro Musical da Cuiabania: o movimento musical em Cuiabá”, “Roteiro Musical daCuiabania: Antônio Simaringo: vida e composições”, “Roteiro Musical da Cuiabania:Antonio Pedro de Figueiredo: vida e composições”, “Roteiro Musical da Cuiabania:José Mamed da Silva Rondon: vida e composições”, “Marphysa (ou o cotidiano deCuiabá nos tempos do Candimba, das touradas do Campo do Ourique e das esmolasdo Senhor Divino)”, “Cuiabá: roteiro de lendas”, “Uma aventura em Mato Grosso”,“Cuiabá ao longo de 100 anos”, “Lendas de Mato Grosso”, “Movimento musical emCuiabá”, “Colcha de retalhos”, “A situação lingüística do francês”. (Tese para o con-curso à cadeira de francês do Colégio Estadual de Mato Grosso).

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seu próprio percurso escolar, enriquecida de comentários hilariantes sobreos mestres, seus trajes, maneiras de falar e andar, rigor na aplicação desabatinas e até mesmo comentários sobre sua vida particular. Descri-ções idênticas foram temáticas de diversas crônicas jornalísticas tendocomo assunto os colegas de turma, sua inserção na sociedade e prosse-guimento na carreira após a finalização dos estudos secundários.

Da mesma forma, essa importante coleção documental serviu paracompreender a evolução das noções de tempo, solidariedade, estética eespacialidade introjetadas não somente por esses mestres, mas de extre-ma significação para toda a sociedade mato-grossense de, pelo menos,duas gerações. O mobiliário da Família Rodrigues é o retrato de umaCuiabá singela, rústica e onde a vida estava muito mais voltada parafora do que para dentro das residências. A convivência mais recorrentetinha como palco o fundo das casas, as largas e aconchegantes varan-das. Essas conversas familiares eram entoadas ao som de melodiosasmúsicas tocadas ao piano, instrumento farto na cidade e que ali chega-va, no século XIX, trazido pelos vapores que do Estuário do Rio daPrata atingiam o centro da América do Sul, e, mais tarde, pela FerroviaNoroeste do Brasil, até Campo Grande, sendo baldeadas para Cuiabápor via fluvial. Dunga Rodrigues, que estudou música e lecionou duran-te boa parte da sua vida, registrou de forma vibrante, em diversos escri-tos esparsos, muitos deles inéditos, a vida e obra de suas professoras,assim como elencou diversas produções e composições musicais, mui-tas inéditas, até então. Ensaios também versam sobre festas típicascuiabanas, especialmente as juninas, conversas travadas nas varandasou até mesmo nas rodas de cadeiras colocadas nas calçadas, regadaspelo tradicional guaraná ralado, refresco ou um licor, quando a ocasiãoera comemorativa. Destaque deve ser feito às crônicas relativas às rela-ções de poder fortemente presentes no contexto mato-grossense, espe-cialmente na primeira metade do século XX, onde a violência e o coro-nelismo saltavam aos olhos. As discussões e avaliações políticas eramuma constante no viver do cuiabano, pois, a cada eleição, os empregos ea segurança das famílias eram colocados em xeque.

Não somente o contexto regional é recuperado pela documentação,mas também o nacional e até mesmo o internacional, visto que esses dois

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mestres implementaram estudos superiores fora de Mato Grosso, maisespecificamente no Rio de Janeiro, empreendendo viagens internacio-nais, a trabalho ou lazer. As anotações manuscritas nos envelhecidos di-ários são reveladoras das dificuldades encontradas por esses dois profes-sores cuiabanos em sua adaptação fora de Mato Grosso, no tocante àsrelações sociais, aos passeios e até mesmo na culinária. Mais instigantessão os diários de viagens internacionais, cuja escrita revela o estranha-mento dos “sertanejos” diante do mundo europeu, norte-americano, ouasiático. Ao lado dessas pontuais anotações, extensas missivas descre-vem, aos amigos e parentes mais próximos, o roteiro da viagem, os atro-pelos nos aeroportos, portos e também nas estações rodoferroviárias.

Os muitos escritos de si e para si são acompanhados, no entrecruza-mento da extensa documentação, de fotografias, cartões, bilhetes, car-tas e telegramas, filão documental capaz de vislumbrar as representa-ções desses professores perante as novas paisagens e ambientes.Certamente, na torna-viagem, os conhecimentos adquiridos eram, semdúvida, repassados no cotidiano de sala de aula e também nas elegantesvestimentas usadas nos salões de baile, e até mesmo nos novos móveise adornos de suas residências.

Objeto de projeto amparado pela Lei de Incentivo à Cultura Estadual(Secretaria de Estado de Cultura – SEC), o resultado final seconsubstanciou no arranjo e sistematização deste acervo familiar, segui-do da referência (verbete) de cada peça documental. Esse instrumento depesquisa encontra-se hoje disponível no CD-ROM: Patrimônio Vivo deFirmo e Dunga Rodrigues, disponibilizado no início do ano de 2005.

O acervo eclesiástico

Um investimento paralelo foi executado por um dos membros doGEM no assessoramento às atividades de arranjo e catalogação do acer-vo documental da Cúria Metropolitana de Cuiabá, projeto coordenadopela historiadora doutora Maria Adenir Peraro. No trabalho com esseacervo puderam ser recuperadas importantes informações relativas à atua-ção educacional da Igreja católica. Diversos códices e papéis avulsos

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complementaram a documentação depositada no arquivo da Casa Ba-rão de Melgaço, referente ao Seminário Episcopal da Conceição. Ou-tras instituições educativas também tinham seus papéis depositados noarquivo da Arquediocese de Cuiabá, a exemplo do Asilo Santa Rita,instituição educacional que mantinha regular ensino primário femininosob as modalidades de internato e externato, e também do Liceu de Ar-tes e Ofício, instituído pelos salesianos. Farta documentação relativaaos trabalhos educacionais e catequéticos efetivados no interior dasmissões indígenas também foi encontrada no mesmo arquivo. Além dadocumentação específica das instituições escolares, outra massa docu-mental foi de extrema importância para o reconhecimento dos atoreseducacionais de todo o século XIX e primeira metade do XX, visto queno arquivo da Cúria Metropolitana estão depositados e em bom estadode conservação livros de batismo, casamento, crisma e óbito. Além dosdocumentos escritos, uma significativa quantidade de fotografias tornaainda mais concreta a atuação da Igreja católica em Mato Grosso. Aofinal desse trabalho, foi gerado um catálogo, publicado em papel, tendosido todo o acervo microfilmado. Atualmente esses microfilmes estãosendo digitalizados, o que colaborará não somente para a preservaçãodos documentos originais, mas estará garantido o pleno acesso a essadocumentação pelas gerações futuras.

A produção de novos documentos através dahistória oral

A investida atual do GEM está centrada na constituição de um ban-co de vozes de antigos professores, ex-alunos e servidores dos estabeleci-mentos escolares de Mato Grosso utilizando o aporte da história oral.Num primeiro momento, foram escolhidos para serem entrevistados pro-fessores com idade cronológica acima de 75 anos que pudessem relatarsobre suas práticas e experiências como alunos e, também, enquanto do-centes. Em contrapartida, o projeto não deixou de registrar as falas dediretores e inspetores escolares, personalidades que participaram do pro-cesso educacional assumindo funções administrativas e cujo olhar difere,em muito, daquele ilustrativo das memórias docentes e discentes.

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Essa experiência, extremamente rica, proporcionou ao grupo de pes-quisa a possibilidade de ter aclarados alguns aspectos da prática escolaraté então obscuros ou mesmo omissos pela documentação oficial, insti-tucional e também privada. Nessa medida, foi a partir das memórias orais,que novas fontes foram constituídas. Esse exercício, inédito para o GEM,exigiu estudos preliminares e seminários que auxiliaram o grupo para aadoção de uma metodologia apropriada e correta nesse campo. O profes-sor doutor Antônio Montenegro, ligado à Universidade Federal dePernambuco (UFPE), foi o orientador do grupo de pesquisa. Leituras,discussões, troca de experiências e, principalmente, confabulações teóri-cas embasaram o GEM em seu novo investimento. A história oral foiutilizada como uma técnica capaz de fazer fulgurar lembranças de anti-gos profissionais da educação que, num esforço de articulação entre opassado e o presente, ressignificavam sua vivência escolar e profissio-nal, fazendo emergir lembranças preciosas de um passado remoto, a exem-plo dos mestres, dos livros didáticos, dos métodos, dos recreios e festasescolares. Além disso, esses profissionais, em sua releitura, implementa-vam o mais fantástico dos movimentos, tecendo numa única teia entre opassado e o presente, fazendo fulgurar aquilo que Benjamin advertiu portantas vezes: “essa articulação do passado não significa reconhecê-lo comorealmente foi. Significa apoderar-se de uma recordação para transformaro presente” (Benjamin apud Souza, 2000, pp. 39-40). Nessa medida, osdepoimentos dos antigos mestres da educação ecoaram, para os docentese pesquisadores do GEM, como incentivo para as transformações no pre-sente. Foram exercícios muito enriquecedores, pois, para os depoentes,apresentaram-se como uma forma de valorização de sua sabedoria e ex-periência e, para os entrevistadores, um repensar sobre o presente tendopor base os contributos do passado.

O primeiro passo foi realizar um levantamento dos professores, aci-ma de 75, ainda vivos, em condições de oferecerem suas memórias.Para isso, foram escolhidos docentes oriundos de diversas camadas so-ciais e etnias, que residissem na capital e fora do estado. O passo se-guinte teve por base estudos biográficos dos entrevistados através daelaboração de dossiês individuais. Em seguida, elaborou-se um roteirode entrevista, seguido de sua realização. O resultado foi excelente, uma

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vez que os professores e administradores foram filmados com câmaradigital, além de terem seus depoimentos gravados em fitas cassete. Quaseuma meia centena de entrevistas foi realizada, digitada e digitalizada.Paralelamente às memórias recolhidas pelas entrevistas, outros mate-riais foram fornecidos espontaneamente pelos depoentes e serviram parailustrar e materializar ainda mais suas falas: cadernos de anotação deaula, palmatórias, livros didáticos, sabatinas, fotografias avulsas, álbunsescolares etc. Ao final da série de entrevistas, cada depoente recebeuuma cópia do CD-ROM contendo sua fala, a partir do qual ele autorizouou não a veiculação das informações. Atualmente, o GEM possui umbanco significativo de vozes, o qual está sendo utilizado como fontepara embasar dissertações de mestrado e teses de doutorado que têmcomo limite cronológico a primeira metade do século XX.

Considerações finais

Iniciado com o objetivo de localizar e sistematizar documentos con-cernentes à educação de Mato Grosso, ao longo dos séculos XIX e XX, oGEM, com seus esforços, conseguiu não só ampliar as fontes – tanto noque diz respeito à quantidade quanto à sua natureza e tipologia. Nessemovimento, montou um banco de dados cujas referências são capazes deamparar trabalhos de pós-graduação, nas mais variadas vertentes.

Esses esforços despendidos pelo GEM ao longo de quase uma déca-da, fizeram fulgurar inúmeros acervos escolares, constituídos a partir depeças soltas e desconectadas, aos moldes de um grande quebra-cabeça,cujas estampas podem ser pinçadas no interior dos mais diversos acer-vos: públicos (estadual/federal), privados institucionais e também nospessoais e familiares.

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Endereço para correspondênciaElizabeth Madureira Siqueira

Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).Av. Fernando Corrêa, s\nº - Cidade Universitária - Coxipó

Cuiaba, MT – BrasilCEP: 78068-385

Rua 4, 630 – Bairro Esperança78068-385 Cuiabá - MT

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Recebido em: 1 set. 2005Aprovado em: 10 dez. 2005

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O lugar do arquivo permanente dentrode um centro de memória escolar*

Iomar Barbosa Zaia**

* Este texto tem por base as duas oficinas realizadas entre 26 e 28 de julho no 1ºEncontro de Arquivos Escolares e Museus Escolares, na Faculdade de Educaçãoda Universidade de São Paulo (FEUSP), organizado pelo Núcleo Interdisciplinar deEstudos e Pesquisas em História da Educação (NIEPHE).

** Arquivista do Centro de Memória da Educação (FEUSP) e doutoranda em históriada educação pela FEUSP, área de história e historiografia da educação, subárea dearquivos escolares.

Resumo:O texto tem como proposta principal apresentar algumas questões relacionadas ao trata-mento de arquivos educacionais históricos dentro das instituições de ensino no que dizrespeito ao acesso à informação para o desenvolvimento de pesquisas. Entende-se que,para além das práticas de pesquisa, há também as práticas do arquivo que relacionampreocupações quanto à preservação do suporte documental, sua organização e seu aces-so. O tratamento, neste texto, dessas questões toma como base as experiências acumula-das na participação em três projetos organizados por docentes da Faculdade de Educa-ção da Universidade de São Paulo (FEUSP) como pesquisadores do Centro de Memóriada Educação (CME-FEUSP), ao longo de quase uma década.EDUCAÇÃO; MEMÓRIA; ARQUIVOS ESCOLARES.

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The place of permanent archives intothe center of memory of the schooler*

Iomar Barbosa Zaia**

Abstract:The text has as main proposal to present some questions related with the treatment ofhistorical educational archives inside of the education institutions in that it says respectto the access to the information by the development of researches. One understands that,for beyond the practical ones of research also has the practical ones of the archive thatrelates concerns about the preservation of the documentary support, its organization andits access. The treatment, in the present text of these questions takes as base theexperiences accumulated in the participation in three projects organized for professorsof the College of Education of the Universidty of São Paulo (FEUSP) as researchers of theCenter of Memory of the Educacion (CME-FEUSP), throughout almost one decade.EDUCATION; MEMORY SCHOOL;ARCHIVES.

* Este texto tem por base as duas oficinas realizadas entre 26 e 28 de julho no 1ºEncontro de Arquivos Escolares e Museus Escolares, na Faculdade de Educaçãoda Universidade de São Paulo (FEUSP), organizado pelo Núcleo Interdisciplinar deEstudos e Pesquisas em História da Educação (NIEPHE).

** Arquivista do Centro de Memória da Educação (FEUSP) e doutoranda em históriada educação pela FEUSP, área de história e historiografia da educação, subárea dearquivos escolares.

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A pesquisa atual em história da educação tem levado muitos pesqui-sadores para dentro de instituições de ensino com a finalidade de levan-tar nos arquivos escolares informações sobre, entre outros propósitos,seu funcionamento interno, as relações que estabelece com a comunida-de local (quer seja com o bairro ou com a cidade) e suas relações com oestado.

Objetivando encontrar informações que auxiliem no desenvolvimen-to de seus projetos individuais ou ainda na ausência de recursos, muitasvezes passam despercebidas para os pesquisadores questões básicas re-lacionadas à conservação do arquivo, sua organização e o acesso à in-formação.

Com base na experiência acumulada no trabalho de organização dearquivos do Centro de Memória da Educação Faculdade de Educaçãoda Universidade de São Paulo (CME-FEUSP) e na participação em trêsprojetos que privilegiaram a organização de arquivos escolares, dividieste texto em três partes: a primeira discorre sobre os projetos que viabi-lizaram a organização dos arquivos escolares; a segunda, aprovada aorganização do arquivo escolar, relaciona-se à escolha do espaço queabrigará os documentos encontrados, ou seja, a organização de Centrosde Memória dentro de escolas e o acesso a eles; e a terceira, a necessida-de e os cuidados em organizar arquivos históricos/permanentes dentrodo Centro de Memória Escolar, atentando para as diferenças existentesentre a organização desse centro e um arquivo histórico no que diz res-peito ao permanente diálogo com as áreas da informação.

Os projetos

Foram três os projetos desenvolvidos por docentes da FEUSP que dãosubsídio à reflexão que segue: a) “Pesquisa sobre o ensino público pro-fissionalizante no estado de São Paulo: memória institucional e as trans-formações histórico espaciais-regionais”; b) “Preservando a memóriado ensino público paulista: a organização do Centro de Memória daEscola de Aplicação (1959-1999)”; e c) “Lugares de memória: parceriaentre o CEFAM de Santo André e o CME-FEUSP”.

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O primeiro projeto1, “Pesquisa sobre o ensino público profissionali-zante no estado de São Paulo: memória institucional e as transforma-ções histórico espaciais-regionais”, teve como objetivo principal reali-zar a guarda da documentação que se encontrava nas escolas técnicasmais antigas do estado de São Paulo.

A idéia surgiu da preocupação com a documentação que havia ser-vido de base para as pesquisas de doutoramento da professora doutoraCarmen Sylvia Vidigal Moraes, que, com apoio do CME-FEUSP e doCEETPS, elaborou um projeto que foi enviado à FAPESP em 1997 e apro-vado em 1998.

A princípio, nove escolas foram escolhidas para participar do proje-to2. Parte dos professores e alunos de cada uma das escolas foram con-vidados a envolver-se com as atividades propostas, que foram: fazer olevantamento da documentação, localizando-a dentro e fora da escola;participação em oficinas de conservação preventiva dos documentos(higienização e acondicionamento); e conceituação arquivística (apre-sentação da terminologia básica, bem como dos princípios e correntesde pensamento); avaliação; e discussão do melhor espaço dentro da es-cola que poderia abrigar os arquivos.

A quantidade de documentação encontrada, a participação efetivados professores, a credibilidade do projeto junto à direção da escola e adivulgação do trabalho entre os membros da comunidade escolar e localforam fatores importantes para o desenvolvimento do projeto e o de-sempenho das atividades em cada escola. O projeto foi encerrado emdezembro de 2001 e teve, como produto final, a publicação de dois ins-trumentos de pesquisa3.

1. A pesquisa foi realizada com parceria do Centro Estadual de Educação Tecnológi-ca aula Souza (CEETEPS), apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa doEstado de São Paulo (FAPESP) e desenvolveu-se entre 1998 e 2002.

2. Escolas técnicas oficiais escolhidas entre as mais antigas do estado de São Paulo,duas na capital e sete no interior (Amparo, Campinas, Franca, Jacareí, duas emSantos, Sorocaba).

3. Trata-se de um álbum de fotografias recolhidas em cada uma das escolas e uminventário sintético de fontes. Ver: Moraes e Alves (2002a, 2002b).

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O segundo projeto, “Preservando a memória do ensino público pau-lista: a organização do Centro de Memória da Escola de Aplicação (1959-1999)”, sob orientação da professora doutora Diana Gonçalves Vidal,desenvolveu-se ao longo de quatro anos (2000-2003)4 com o mesmoobjetivo do anterior: promover o encontro entre pesquisa e atividadepedagógica, por meio da integração dos diferentes agentes das práticasescolares na produção do conhecimento histórico, bem como a organi-zação de um Centro de Memória Escolar. Além disso, conseguiu am-pliar as discussões sobre as atividades pedagógicas para a educação fun-damental e proporcionar o trabalho com alunos menores, estimulando-osà pesquisa.

Em um segundo momento, o Centro de Memória da Escola de Apli-cação foi aberto para estágio com alunos da pedagogia, licenciatura daFEUSP e do ensino médio, bem como estreitou laços com a equipe defuncionários da secretaria da escola em uma co-responsabilidade na or-ganização e no acesso rápido às informações do arquivo. O projetouencerrou suas atividades em 2003 com três publicações5, contudo suasatividades seguem seu curso com apoio da equipe de funcionários, como trabalho de bolsistas do Centro de Memória da Educação e, sobretu-do, com o desenvolvimento de estágios dos alunos de cursos da licen-ciatura, cooperando para a continuidade da organização do arquivo.

O terceiro projeto, “Lugares de memória: parceria entre o CEFAM deSanto André e o CME-FEUSP, desenvolveu-se entre agosto de 2003 ejulho de 2004 e teve um começo bastante inusitado, pois se originou apartir do momento em que três professoras doCentro Específico de For-mação e Aperfeiçoamento do Magistério (CEFAM) participaram, na qua-lidade de alunas especiais, do curso de introdução aos estudos da educa-

4. O projeto também recebeu apoio financeiro da FAPESP, além de recursos de proje-tos da Pró-Reitoria de Cultura e do Fundo de Cultura e Extensão.

5. A primeira é referente a uma agenda escolar com fotografias encontradas no arqui-vo e passagens da história da escola; o segundo, um manual sobre conservaçãopreventiva (higienização e acondicionamento); e o terceiro, um CD-ROM combanco de imagens, instrumentos de trabalho e instrumentos de pesquisa. Ver: Zaia(2004) e Zaia e Moreira (2004).

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ção na licenciatura da FEUSP. O empenho e a satisfação do grupo por terconseguido transpor os muros da universidade acabou despertando ointeresse do CME-FEUSP no sentido de pensar uma parceria entre eles.

Havia muito interesse sobre a USP, por parte dos alunos do CEFAM,Repetidas vezes essas professoras contavam, em meio às discussões nocurso de licenciatura, os comentários feitos por seus alunos no CEFAM

de Santo André: “Professora, como é a USP?”, “É grande lá dentro?”.Vista apenas como um local cercado próximo à margem do rio Pinhei-ros, a USP é tida como de pouco acesso àqueles que não tiveram condi-ções de passar no vestibular ou que nunca haviam pensado na possibili-dade de se candidatar.

Tal envolvimento levou a equipe do CME-FEUSP a buscar meios delevar os alunos do terceiro e do quarto anos de magistério para conhecera Faculdade de Educação. A alternativa encontrada foi proporcionar-lhes a oportunidade de cumprir parte do seu estágio curricular obrigató-rio dentro de espaços de “memória” vinculados à Faculdade de Educa-ção: o Centro de Memória e Documentação da Escola de Aplicação, oMuseu da Educação e do Brinquedo, o Laboratório de Brinquedos eMateriais Pedagógicos, além da biblioteca e no próprio CME-FEUSP.

Foram selecionados 72 alunos, entre mais de 370 interessados, quepassaram por oficinas de formação e assistiram a palestras antes de de-senvolverem projetos de pesquisa em cada um dos locais.

Eles documentaram as atividades educacionais realizadas, promo-veram discussões de textos, entrevistas e pesquisas pela internet e apre-sentaram todas as informações acumuladas em uma palestra na Semanade Educação da FEUSP. Esse foi um fato inédito, visto que esse evento sócontava com a participação de alunos bolsistas da graduação ou pós-graduandos. Outro resultado desse estágio foi a organização, realizadapelos próprios alunos e as três professoras, de uma exposição com do-cumentos do arquivo do CEFAM. Essa exposição teve a finalidade deinvestigar as origens e a história da própria escola que seria fechada nofinal de 2003.

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O centro de memória dentro da escola

[...] não apenas as tradicionais fontes legais eestatísticas vêm sendo revisitadas, como uma parcela

consistente dos investigadores da área, individual ecoletivamente, tem se lançado ao desafio de ampliar a

massa documental à disposição do campo, o que emalguns casos vem conduzindo à constituição de Centros

de Memória e Documentação [...].VIDAL, 2004

Na organização de um centro de memória escolar foi necessário com-preender que para sua execução é preciso atentar para três questões es-senciais: a) qual documentação pretende-se recolher? – procurando comisso definir o “lugar” de guarda; b) como envolver a comunidade esco-lar nesse trabalho? – questão definida como a “conquista”; c) quais sãoas atividades desse espaço? – pensando nesse momento em dois con-juntos de operações que relacionam atividades de trabalho e atividadesde pesquisa e que serão mais bem explicitados na terceira parte destetexto.

Pensou-se em reunir documentos de diferentes suportes, formatos etipos documentais recolhidos no “arquivo morto”6 da escola, bem comorecebidos por meio de doação (ou permuta), que foram ou são acumula-dos durante o desenvolvimento de projetos de pesquisa e recebidos porex-professores, ex-funcionários e ex-alunos. Dessa maneira, pretendeu-se acumular em um único espaço toda a sorte de informação relaciona-

6. Entende-se por “arquivo morto” de uma escola todos os documentos acumuladosde forma aleatória em diferentes espaços da instituição. Esses documentos fre-qüentemente podem ser encontrados na biblioteca (quando a instituição possui uma),em quartos de depósito de materiais de limpeza, em “vãos” de escadas, dentro decaixas em “cantos” da sala de materiais utilizados em aulas de educação física,fanfarra e até mesmo em banheiros desativados.

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da à instituição de ensino independentemente de sua origem7, de seutipo8 e de seu suporte9.

Se tal operação por um lado facilita o trabalho dos pesquisadores,que poderão encontrar reunidas, em um só lugar, informações valiosaspara a realização de seus trabalhos, por outro, a reunião desses materiaissobrepõe atividades que são de diferentes áreas, pois a problemáticanão está apenas na reunião dos materiais, mas sobretudo na falta decritérios para tal atividade.

Ao reunir documentos do arquivo, livros, peças do mobiliário e, emum momento posterior, organizar base de dados referenciais da docu-mentação acumulada é fundamental ter clareza das diferenças de trata-mento de cada um dos materiais recolhidos dentro da escola, atentandopara as práticas específicas de cada uma das áreas envolvidas quer sejade biblioteca, museu, arquivo ou centro de documentação.

Considerando o discurso dentro das preocupações em história daeducação, Hilsdorf (1999), ao expor como trabalhou com a série Ofí-cios diversos da capital do Arquivo do Estado, relata seu empenho, des-de a década de 1970, na continuidade de uma linha de investigação quetem como objetivo a localização e a utilização de novas fontes docu-mentais para a pesquisa em história da educação.

Ao citar Frostick (1993) e ao descrever as atividades de organizaçãodo projeto do Museu Vivo da Escola Primária em Portugal no artigo “Ahistória e seus registros: o museu como registro”, Felgueiras (2000) tam-bém fala da importância de possuirmos não somente o caderno escolar,mas também a carteira onde as crianças sentavam de maneira que sejapossível recuperar não só uma forma de interpretação, mas várias.Felgueiras (2000, p. 83) aponta que:

7. A origem da informação pode ser, como já vimos, por meio de compra, doação,permuta ou passagem natural. Esta última é entendida como resultado natural dasatividades e funções da própria instituição, pois representa, de maneira geral, o quepodemos encontrar no “arquivo morto” da escola.

8. O tipo documental deverá ser entendido exatamente como é definido pelo Dicioná-rio de Terminologia Arquivística (1996): “[...] configuração que assume uma espé-cie documental, de acordo com a atividade que a gerou [...]”.

9. O suporte documental é, ainda segundo o Dicionário de Terminologia Arquivística(1996), “material sobre o qual as informações são geradas”.

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[...] em exposições sobre história social da educação, Elizabeth Frostick conside-ra-se que se pode criar um efeito de mais proximidade se se usar relatórios esco-lares, livros de exercícios, ao lado de outros objetos. Ler nomes, em especial,escritos em documentos familiares, aumenta a imediaticidade. Torna-os reais.

Julia (2001, p. 17) e Certeau (1982, p. 43), ao discorrerem sobre aspráticas do historiador, afirmam que todo e qualquer objeto serve à pes-quisa histórica. De acordo com o primeiro, o “historiador faz flechacom qualquer madeira” e, para o segundo, “em história, tudo começacom o gesto de separar, de reunir, de transformar em documentos certosobjetos distribuídos de outra forma”.

As idéias dos autores possuem um duplo significado para o trabalhoque foi desenvolvido nos arquivos escolares de nossos projetos: por umlado, servem como base para ampliação dos objetos da investigação e,portanto, corroboram com a ampliação dos usos do objeto dentro doacervo escolar, transformando tudo em documento significativo para apesquisa em história da educação, independentemente do seu formato,tipo e suporte; por outro, de não menor importância, essas idéias insti-garam-nos a pensar sobre o desenvolvimento de procedimentosavaliativos da massa documental encontrada nas escolas, pois se não sepode guardar tudo, é possível, desde que estabelecidos critérios de con-servação e eliminação, manter de forma mais adequada e acessível àpesquisa aqueles documentos esquecidos nos “cantos” da instituição.

Em relação à biblioteca, Belotto (1986, p. 3) diz “tratar-se de institui-ção responsável pela reunião por compra, doação ou permuta, de docu-mentos múltiplos, produzidos por fontes múltiplas e resultantes de ativi-dades, pesquisa ou criação artística, técnica ou científica, com finsculturais”. Na maioria das escolas, não encontramos bibliotecas organiza-das, mas apenas “amontoados de livros” que correspondem ao que restouda biblioteca escolar. Em todos os projetos, procuramos desenvolver, comauxílio de bibliotecárias, atividades de mutirão para higienização e tom-bamento dos livros, organizando-os tanto fisicamente como em base dedados, possibilitando, embora de forma precária, o acesso à informação.

A diferença da biblioteca para o arquivo, segundo essa mesma autora(idem, ibidem), é que nele se reúnem “documentos, por passagem natu-

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ral, oriundos de uma só fonte geradora, e, em geral, constituídos em exem-plar único, congregados em séries ou em grupos”. Esse conjunto docu-mental, em contexto escolar, corresponde ao arquivo morto da escola.Nesse caso, a nossa experiência dentro da escola foi mais intensa, portratar-se da área com a qual mais dialogamos ao longo de todas atividadese que, no neste texto, ganhou espaço de discussão em sua terceira parte.

Quanto ao museu, no entendimento de Felgueiras (2000, p. 83):

[...] ao caráter de “registro” que o objeto e o documento escrito possuem, omuseu confere-lhes uma outra significação ao expô-lo. Acrescenta-lhe umaleitura segundo determinadas concepções históricas e estéticas, organizada se-gundo técnicas disponíveis. Propõe uma leitura desses registros no sentido demostrar a sua evolução e as transformações sociais, que lhe estão na origem.

No contexto da escola, muitas vezes, o centro de memória não pos-suirá um museu na sua concepção tradicional, mas pode comportar ape-nas uma sala de sensibilização onde são expostas peças que foram deixa-das na escola ao longo de toda a sua existência e, portanto, são portadorasde informações que, somadas aos documentos, contribuem para a consti-tuição da memória institucional. O importante é frisar a função social eeducativa do museu/sala de sensibilização em contexto escolar.

Assim, a escolha da organização de um centro de memória nas es-colas possibilitou a organização de coleções provenientes de pesquisaou recolhidas por meio de doações, jamais possíveis apenas com a orga-nização do arquivo permanente/histórico. Procurou, também, recolherpeças do mobiliário da escola ou doadas por ex-alunos e ex-funcionárioscom a intenção, para além da problemática que envolve o alargamentodo conceito de documento arquivístico, que toma como base à diversi-dade de suporte no qual foi gerado10.

Portanto, no centro de memória escolar, atentou-se para a guardados documentos independentemente de suas características particula-res, porém relacionados com a história institucional e respeitando os pra-

10. Sobre esse assunto, ver: Barleta (2005).

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zos previstos na legislação de guarda documental. Além disso, buscou-sea reunião de todos esses materiais, “aconselhando-se” sempre, para suaorganização, com as outras áreas envolvidas oferecendo para a comuni-dade escolar um novo espaço que favorece o desenvolvimento de ativida-des pedagógicas como foi o caso do projeto da Escola de Aplicação.

Depois de definido o “lugar” gerenciador do conjunto documental,parte-se para a conquista, ou seja, a sensibilização da comunidade esco-lar para o desenvolvimento desse novo “empreendimento”. É precisochamar a atenção da direção da escola, dos professores, dos funcioná-rios, dos pais e alunos sobre a importância de organizar o centro dememória dentro da escola. Optamos, no CME-FEUSP, por chamar desensibilização essa primeira etapa do processo de organização do cen-tro de memória escolar. Nela, o grupo proponente da organização elabo-ra a forma como pretende envolver a comunidade: ele poderá organizarexposições temporárias no pátio da escola, utilizando documentos en-contrados na escola que, no cotidiano, não despertaram nenhuma curio-sidade nos alunos, funcionários e professores, mas que na exposiçãoganharam um significado dentro da escola.

Essa etapa ainda possibilita a organização de concursos entre os alunospara elaboração de logomarcas para o centro de memória, palestras para adivulgação dos objetivos e finalidades do trabalho com os documentos.

Após a sensibilização, quando possível no espaço disponibilizado,espera-se que ele seja subdividido em diversos setores que simbolizema organização das atividades, assim entendidos: sala de consulta, salapara higienização e acondicionamento, reserva técnica, arquivo inter-mediário, depósito temporário, arquivo permanente.

A sala de consulta corresponde ao espaço destinado à pesquisa, bemcomo onde podem ser feitos os trabalhos de sensibilização da comuni-dade escolar por meio de exposições de trabalhos, workshops e ativida-des pedagógicas com alunos e estagiários. Presta-se, também, a exposi-ção de peças e fotografias que, no trabalho de levantamento do acervo,forem sendo encontradas, bem como para a realização de entrevistascom ex-funcionários e ex-alunos.

As atividades de higienização e acondicionamento acontecem emuma sala escolhida para elas. A necessidade de separar sala de consultae sala de atividades técnicas para a guarda e conservação de arquivos

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justifica-se por localizar no espaço os papéis que o aluno da instituiçãoescolar pode desenvolver dentro do centro de memória da escola.

Assim, de acordo com o papel desenvolvido, ele saberá a priori ondedeve permanecer. Se estiver acompanhado dos colegas de sala e de umprofessor responsável, ele poderá ultrapassar o espaço definido para asala de consulta, pois está ali para auxiliar no tratamento do arquivo, por-tanto, como auxiliar do trabalho técnico de guarda e preservação do acer-vo. Porém, se sozinho ou com poucos amigos, saberá que, na qualidadede pesquisador, não poderá ultrapassar o espaço da sala de consulta edeverá solicitar à pessoa responsável o documento que deseja consultar.

Quanto à reserva técnica, trata-se de espaço destinado à guarda dosmateriais de consumo e apoio às atividades (trinchas, borrachas, papéisde pH neutro, entre outros). Já o arquivo intermediário tem como finali-dade a guarda da documentação que não prescreveu os prazos previstospela tabela, podendo ser consultada a qualquer momento e ficando res-trito à secretaria da escola, bem como ao espaço destinado ao depósitotemporário e ao arquivo permanente. O primeiro, depósito temporário,sinaliza a presença de documentos que foram selecionados e destinadosà eliminação, mas em decorrência do cumprimento dos prazos aguar-dam sua prescrição; o segundo, arquivo permanente, trata-se do espaçodestinado à guarda definitiva e, portanto, só pode ser acessado por res-ponsável pela organização ou secretaria da escola.

Quanto às atividades que podem ser desenvolvidas dentro do centrode memória escolar, destacam-se o conjunto de operações que atendemà secretaria da escola – definida como atividades de trabalho; o conjun-to de operações – denominadas de atividades de pesquisa; e outro con-junto de atividades que privilegiam o trabalho com os alunos e profes-sores – denominadas de atividades pedagógicas.

Quanto ao primeiro e ao segundo, veremos como foram desenvolvi-dos na terceira parte desse texto. Quanto às atividades pedagógicas,trata-se das atividades que foram desenvolvidas no Centro de Memóriada Escola de Aplicação11.

11. Ver: Uehara (2004).

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As atividades foram desenvolvidas com os mais variados grupos dealunos, de diferentes áreas e níveis (ensinos fundamental, médio e supe-rior). Foram desenvolvidas com alunos investigações sobre os espaçosescolares, desenvolvimento de acondicionamentos dos documentos,pesquisas na internet, passeios pelos espaços escolares para a análise defotografias antigas desses espaços encontradas no arquivo.

Além dessas, foram desenvolvidas atividades com estagiários doscursos de pedagogia da FEUSP e com alunos da licenciatura de outrasunidades da USP (todos os anos), com alunos do ensinos fundamental emédio da Escola de Aplicação (durante o desenvolvimento das ativida-des do projeto de organização do centro de memória da escola – 2000/2004); e com alunos do magistério do CEFAM de Santo André (projetoLugares da Memória – 2003/2004).

O arquivo histórico/permanente dentro do centro dememória escolar

Sendo um universo arqueológico, o fundo de arquivo é,com raras exceções, um desafio que acena com o caótico que

lhe imprimiram o tempo e o desuso em que caíram seuselementos. Assim, no sentido do desafio e da descoberta, o

trabalho de arquivo, especialmente quando se trata deacervos históricos, é invariavelmente fascinante.

(PAES, 2003)

O fascínio do trabalho dentro do arquivo, sua atração (Farge,1991)alcança a escola. A principal escolha dentro de sua “caixa-preta” (Julia,2001) é a massa acumulada que persistiu em não desaparecer dos corre-dores da escola, dos banheiros desativados, do vão embaixo das esca-das, dos quartos de limpeza, enfim, de toda sorte de lugares que atrapa-lhassem, o menos possível, as atividades diárias de seus funcionários.

São dois aspectos e dois olhares. Os aspectos sempre presentes sóforam acordados por causa dos olhares que sobre eles recaíram. O pri-meiro aspecto diz respeito à responsabilidade atribuída à secretaria da

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escola em ser a guardiã (e, portanto, responsável) por todos os papéisque estejam na secretaria ou acumulados em “cantos” da escola. É asecretária que, depois de todas as investidas dos visitantes ou dirigen-tes, terá que ser consultada ou comunicada de todo tipo de atividadescom os documentos escolares.

O segundo aspecto recai sobre o “arquivo morto”, termo comumenteutilizado que, dentro da escola, se refere aos muitos espaços em queencontramos documentos acumulados: banheiros desativados, vãos em-baixo de escadas, quartos de guarda de materiais de limpeza, dispensasdos refeitórios, salas desativadas próximas à lanchonete, porões, sala demateriais da fanfarra, “cantos” da biblioteca em atividade (ou desativada),entre outros.

Assim, os documentos em fase corrente e fase intermediária12 maiscomumente são encontrados na secretaria da escola, já a documentaçãoem fase permanente/histórica13 será localizada no arquivo morto.

Já os dois olhares14, que podemos identificar atualmente sobre a do-cumentação dentro da escola, são frutos dos aspectos apontados ante-riormente. O primeiro sempre existiu: relaciona-se ao tradicional “amon-toado” de documentos em diferentes cantos do espaço escolar, queclassifica o acervo como o seu “arquivo morto”, como vimos. Esse olharignora as questões para sua conservação e disponibilização, pois man-tém na escola os amontoados de documentos apenas para fins legais.

O segundo, mais atual, considera o documento, existente nesses es-paços escolares, portador de informações valiosas para a pesquisa his-

12. Os termos fase corrente e fase intermediária , relacionam-se ao ciclo vital dosdocumentos que, segundo o Dicionário de Terminologia Arquivística (1996), sereferem à sucessão de fases por que passam os documentos: desde o momento emque são criados até a sua destinação final.

13. Também se relaciona ao ciclo vital dos documentos e trata-se da terceira fase emque o documento, após avaliado, será mantido permanentemente para fins de teste-munho (pesquisa).

14. Quanto aos olhares sobre o acervo escolar, refiro-me à forma como os pesquisado-res, comunidade escolar e órgãos dirigentes têm entendido a massa documentalacumulada no interior da instituição de ensino de acordo com as experiências vivi-das nos projetos apresentados na primeira parte.

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tórica, entendimento que se aproxima e tenta transformar o “arquivomorto” em arquivo permanente ou histórico. Porém, na prática da pes-quisa, peca ou ignora os fundamentos da ciência da informação no mo-mento em que realiza a ordenação dos documentos para melhor satisfa-zer as necessidades imediatas e que são relacionadas ao assunto de suapesquisa.

Quanto ao primeiro olhar, cabe ressaltar que há uma tendência indi-cando para a sua superação, posto o número significativo de pesquisasque estão em desenvolvimento na área. No entanto, não se extinguirárapidamente, visto que há ainda muito para se fazer na organização dosarquivos escolares. No entanto, a existência de muitas pesquisas emhistória da educação relacionadas às analises que transpõem os murosescolares, como evidencia o 1º Encontro de Arquivos Escolares e Mu-seus Escolares, realizado na FEUSP, entre os dias 26 e 28 de julho de2005, sob responsabilidade do Núcleo Insterdisciplinar de Estudos ePesquisas em História da Educação (NIEPHE), pelo número de inscritos ede participantes, indica as preocupações dos pesquisadores com algu-mas questões relacionadas à guarda e ao acesso à informação.

A primeira diz respeito à conservação preventiva dos documentos quesoma atividades de higienização e acondicionamento do conjunto docu-mental. No trabalho com as escolas, percebemos que se trata de uma ati-vidade demorada, especialmente na Escola de Aplicação, por envolvercrianças menores. Porém, para além de uma atividade técnica, surgiramatividades pedagógicas desenvolvidas com alunos e professores a partirde indagações de como fazer conservação preventiva com crianças15.

15. Uehara (2004) discorre sobre o trabalho de conservação preventiva com crianças:“A higienização e o acondicionamento de documentos, embora fundamentais paraa preservação da memória através da conservação de documentos, não são proces-sos que podem ser considerados simples, ao contrário, são trabalhosos e morosos.Então, como agir? Como trabalhar com alunos que, devido a sua idade, ainda nãotêm uma construção pronta da causalidade, do tempo ou mesmo do espaço? Comoincutir em suas mentes a necessidade de um trabalho cuja importância consistia empreservar o passado visando o futuro? Mais do que isso, como sensibilizá-los paraa relevância de uma atividade de caráter social, posto que os desejos infantis oscolocavam sempre no caminho do prazer e da satisfação de seus egocentrismos?”

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Outra questão se relaciona à organização do arquivo. Superada aidéia de ordenação lógica, aquela de organizar a documentação utilizan-do critérios próprios relacionados aos objetivos da pesquisa individual16,o entendimento ocorrerá por meio da compreensão de que a documen-tação não nasceu com o objetivo de pesquisa, mas sim para atendernecessidades de funções e atividades da instituição com fins adminis-trativos e jurídicos, só se tornando histórica depois de um longo prazo.

Assim, inicialmente, essa documentação atende a questões admi-nistrativas e jurídicas que, no que respeita a organização do arquivo,gera um conjunto de operações para que ela atenda sua finalidade ime-diata. Esse conjunto de operações recebeu o nome, nos projetos realiza-dos nas escolas, de atividades de trabalho. Além disso, após serviremàs atividades e prescritos os prazos, essa documentação tem um valorhistórico, o conjunto de operações para que ela atenda da melhor formapossível o pesquisador recebeu o nome de atividades de pesquisa.

As atividades de trabalho relacionam-se à confecção de planos declassificação, termos e editais de eliminação, tabelas de temporalidade,listagens de espécies e tipologias documentais, cartas de doação, entreoutros. No projeto realizado na Escola de Aplicação, alguns instrumen-tos foram elaborados ou complementados com base no trabalho realiza-do pelo Sistema de Arquivos da Universidade de São Paulo (SAUSP).

O primeiro deles foi o plano de classificação que, segundo Couturee Rousseau (1998, p. 146 ), é um

instrumento que permite aplicar o primeiro grau do princípio da proveniên-cia [...] e respeitar o princípio da universalidade que preconiza que o arqui-vista apreenda, compreenda, estruture, classifique, arrume e descreva a in-formação orgânica e registrada de forma global [...] antes de passar a outrafase mais detalhada que é a da aplicação do segundo grau do princípio deproveniência [...].

16. Essa “organização” segue sempre um mesmo padrão: começa com o levantamentodos documentos do arquivo, depois avança para uma catalogação segundo sua na-tureza e, por fim, são ordenados cronologicamente de acordo com os temas que“supostamente” os documentos sugerem.

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O princípio de proveniência de que falam os autores subdivide-seem dois aspectos. O primeiro está baseado na atividade intelectual dereconstruir uma representação histórica do funcionamento da institui-ção ao longo de sua existência, ou seja, da construção dos fundos17 unsem relação aos outros por meio do resgate das informações contidas emtipos documentais como atas de reuniões da diretoria e regimentos in-ternos. Muitas vezes, as escolas, após terem organizado seus arquivos,possuem mais de um fundo. O segundo, também atividade intelectual,tem como objetivo ordenar dentro dos fundos já estabelecidos os docu-mentos em suas unidades de instalação e séries. Trata-se de uma etapaque exige um detalhamento maior dos responsáveis pela organização.

Outros dois instrumentos de trabalho, que se somam às preocupa-ções de avaliação e organização, são: a tabela de temporalidade e o ter-mo de eliminação.

A tabela recupera as atividades-fim e meio da instituição que sãoorganizadas intelectualmente no plano de classificação, como foi apre-sentado. Trata-se de “instrumento que agrupa as regras e prazos de con-servação adotados por uma organização ou por um estado e que permitedifundi-las, aplicá-las, administrá-las e controlá-las” (Couture &Rousseau, 1998, p. 45). Na Escola de Aplicação/FEUSP, a tabela de tem-poralidade foi organizada inicialmente pela comissão setorial do SAUSP

designada para levantar as tipologias na escola e definir, segundo legis-lação estadual vigente, o prazo para cada uma. Nosso trabalho nesse ar-quivo incidiu, principalmente, em auxiliar nessas duas atividades.

O termo de eliminação é constituído por um “conjunto de informa-ções obrigatórias que acompanham os documentos a serem eliminados,legitimando sua destruição” (Belloto & Camargo, 1996, p. 73).

Segundo Bernardes (1998), é elaborado no momento da avaliaçãodos documentos gerados e encontrados no arquivo cujas técnicas de

17. Segundo o Dicionário de Terminologia Arquivística (1996), “Fundo: unidade cons-tituída pelo conjunto de documentos acumulados por uma entidade que, no arquivopermanente, passa a conviver com arquivos de outras”.

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seleção devem considerar não somente o conteúdo da informação, mastambém sua natureza e forma.

Para além do valor de prova sobre a avaliação realizada no arqui-vo, esse documento também serve à pesquisa, pois nele são recupera-das informações sobre o que uma sociedade, segundo suas leis numdado período, preferiu conservar e o que ela entendeu que poderia sereliminado.

Quanto aos instrumentos de pesquisa que podem ser elaborados,destaca-se, para o trabalho junto ao acervo escolar, a elaboração dosmais simples (guias e inventários) para os mais complexos (catálogos enormas de consulta). Na Escola de Aplicação, foram produzidos inven-tários e catálogos a partir do arquivo. As informações que compõem oinventário se relacionam a sua espécie e ao seu suporte, até informaçõesmais específicas como: nome dos professores, diretores, finalidade, quan-do a tipologia deixa de existir, o motivo que levou ao seu desapareci-mento, entre outros. Foi organizado, também, um catálogo de corres-pondências do primeiro período da Escola de Aplicação (1958-1972)18.

O terceiro questionamento relaciona-se à disponibilização das in-formações existentes na documentação consultada. Na ausência de cri-térios internos das escolas e de leis específicas para o acesso aos docu-mentos, buscamos nas escolas onde desenvolvemos atividades a adoçãode informações contidas no decreto n. 2.910, de 29 de dezembro de1998. Esse documento estabelece normas para a salvaguarda de docu-mentos de natureza sigilosa que assegura os direitos de privacidade deinstituições e pessoas envolvidas.

No caso das escolas, tal medida se aplica apenas aos processos (pron-tuários) de alunos e professores e fichas de acompanhamento de alunosproduzidas por coordenação pedagógica ou psicólogos. O decreto de-clara que todo documento de caráter sigiloso só poderá ser consultadopelo público com identificação, para fins de concessão de credencial,das pessoas interessadas, com ciência do responsável imediato. Na au-

18. Para maiores informações sobre o trabalho desenvolvido com as correspondênciasda Escola de Aplicação, ver: Silveira (2004).

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sência do titular, o poder é transferido para algum membro da família,representado por procuração lavrada em cartório.

Considerações finais

Finalmente, a discussão anterior procurou expor experiências queresultaram do tratamento dos documentos de arquivos de escolas públi-cas de São Paulo no que se relaciona ao recolhimento sistemático detodo tipo de material dentro da escola que possa servir para as investiga-ções; a organização do arquivo histórico escolar; e, por fim, o cuidadono acesso dessa informação.

No primeiro caso, ressaltar a importância da organização de centrode memória dentro da escola. Ele pode possuir o arquivo permanente/histórico da instituição de ensino por se tratar de significativo conjuntodocumental para a pesquisa institucional. A partir das preocupações comesse arquivo, a maioria das pesquisas realizadas ou em realização den-tro das escolas públicas demonstra que surgiu a necessidade de recolhê-lo e nasceu, assim, a idéia de organizar um centro de memória escolarcapaz de contemplar não somente os documentos administrativos e le-gais, mas também peças, quadros, mapas, cadernos de alunos e outrostipos documentais.

Pretendeu-se, com base na prática do historiador da educação atualpreocupado com a localização e utilização de novas fontes documentaispara a pesquisa historiográfica em educação, reafirmar a necessidade dodiálogo constante com a museologia, arquivologia, biblioteconomia,buscando procedimentos básicos relacionados à conservação, organiza-ção e divulgação do arquivo escolar.

E finalmente, quanto à organização do arquivo permanente/históri-co, reiterar que é preciso buscar, constantemente, informações sobre oscuidados com a divulgação de informações encontradas nos documen-tos, prestando atenção aos prazos de prescrição dos documentos previs-tos em lei, na divulgação de nomes que evidencie situações que relacio-nam pessoas e possam gerar constrangimento, a exposição de fatosescolares recentes sem a permissão da direção da escola, entre outros.

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Endereço para correspondênciaFaculdade de Educação da USP

Centro de Memória da EducaçãoAv. da Universidade, 308 Bloco B – sala 40

CEP 05508-900São Paulo - [email protected]

Recebido em: 01 set. 2005Aprovado em: 10 dez. 2005

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Arquivos escolares virtuais

considerações sobre uma prática de pesquisa

Wagner Rodrigues Valente*

Resumo:Este texto tem como objetivo problematizar o uso de arquivos escolares e pessoais, apartir das práticas de investigação que vêm sendo realizadas pelo Grupo de Pesquisa deHistória da Educação Matemática no Brasil (GHEMAT). A confecção de bases de dados,incluindo documentos escolares e arquivos pessoais de professores, em CD-ROM, deveser considerada como tema de discussão, sobretudo em tempos em que novas práticasdo fazer do historiador são estabelecidas, especialmente, com o uso de fontes digitalizadas.ARQUIVOS ESCOLARES; ARQUIVOS PESSOAIS; HISTÓRIA DA EDUCAÇÃOMATEMÁTICA; MATEMÁTICA ESCOLAR

* Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo e professor da UniversidadeCatólica de Santos (UNISantos)

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School archives virtues

considerations about a practice of research

Wagner Rodrigues Valente*

Abstract:This text aims to analyze the usage of private and school archives, departing from theinvestigation practices that have been applied by History of the Brazilian MathematicalEducation Research Group (GHEMAT). The creation of database of school documents,teachers’ private archives, in CD-ROM, might be considered as a subject to be discussedright now, since new procedures have been established the change of historians’procedures, especially with the usage of digital sources.SCHOOL ARCHIVES; PRIVATE ARCHIVES; HISTORY OF MATHEMATICSEDUCATION; SCHOOL MATHEMATICS.

* Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo e professor da UniversidadeCatólica de Santos (UNISantos)

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arquivos escolares virtuais 177

Preliminares

A organização e disponibilização de fontes de pesquisa contidas emarquivos escolares e arquivos pessoais de professores tem grande possi-bilidade de ser realizada como parte constituinte de projetos de pesqui-sa. Reunir pesquisadores de vários níveis acadêmicos, no âmbito de umprojeto maior, constitui um desafio e, ao mesmo tempo, condição im-portante para a investigação histórica na elaboração de bancos de dadosa serem utilizados por inúmeros projetos integrados.

Essa forma de trabalho busca romper com práticas de pesquisa indi-viduais que, após utilizarem materiais e documentos, selecionados cui-dadosamente, para dar sustentação empírica às teses, dissertações emonografias, abandonam essas fontes à sua própria sorte, dificultandosobremaneira o seu uso por outros pesquisadores. Desse modo, a todotempo, torna-se necessário refazer o trajeto que pode levar a tais mate-riais. Porém, nem sempre é possível encontrá-los uma vez mais nasmesmas condições de utilização, tampouco nos mesmo lugares. Expli-ca-se: processos de deterioração, mudanças físicas de locais de guarda,por exemplo, apagam, às vezes por completo, o caminho de acesso aosdocumentos.

Este texto – quase um relato de pesquisa – intenta problematizar ouso de arquivos escolares e pessoais, a partir das práticas de investiga-ção que vêm sendo realizadas pelo Grupo de Pesquisa de História daEducação Matemática no Brasil (GHEMAT), vinculado ao Programa deEstudos Pós-Graduados em Educação Matemática da Pontifícia Uni-versidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Sobre arquivos escolares

No texto “Cultura e práticas escolares: uma reflexão sobre documen-tos e arquivos escolares” (VIDAL, 2004), a historiadora da educação DianaVidal percorre sinteticamente a trajetória teórico-metodológica que levaos estudos históricos sobre educação a considerar, contemporaneamen-te, o papel dos arquivos escolares. Vidal ressalta, de início, que:

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[...] a investigação histórica em educação no Brasil, especialmente a partirdos anos 1990, vem se interrogando acerca da propriedade em conceber es-cola como produtora de uma cultura própria e original, constituída e consti-tuinte, também, da cultura social [2004, p. 1].

Isso posto, a autora destaca que a partir daí emergem temas parainvestigação tais como “a constituição do currículo, a formação das dis-ciplinas escolares, o cotidiano institucional, o exercício diário de pro-fessores e professoras, alunos e alunas, a materialidade da escola e osrecursos metodológicos” (idem, p. 2).

Considerando essas temáticas de pesquisa, tornam-se necessários,para o trabalho historiográfico, dois tipos de investimentos: um deles, ode balizamento teórico; o outro,

se endereça a localizar, sistematizar, organizar, socializar e problematizar asfontes para a pesquisa em história da educação. Assim, não apenas as tradici-onais fontes legais e estatísticas vêm sendo revisitadas, como uma parcelaconsistente dos investigadores da área, individual e coletivamente, tem selançado ao desafio de ampliar a massa documental à disposição do campo, oque em alguns casos vem conduzindo à constituição de Centros de Memóriae Documentação; e de se inserir no debate epistemológico que tal ampliaçãoenvolve. Nesse percurso, os arquivos escolares têm chamado cada vez maisa atenção dos historiadores da educação brasileira e se constituído em temade discussão [idem, p. 2].

O GHEMAT constitui um grupo que vem trabalhando na perspectivaapontada por Vidal. Fundado no ano de 2000, o grupo tem dado ênfase,em grande medida, em seus projetos, ao trabalho de construir fontes depesquisa considerando os arquivos escolares, os arquivos pessoais deprofessores de matemática e a produção didático-pedagógica ligada aoensino dessa disciplina.

A construção de bases de dados para a pesquisa histórica do ensinode matemática, saliente-se, vem sendo realizada pelo GHEMAT a partir deprojetos de pesquisa. Esses projetos incluem subprojetos de pós-doutoramento, doutoramento, mestrados e iniciação científica. Todos

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eles se orientam pela necessidade do estudo de práticas do ensino dematemática ocorridas em cotidianos escolares passados. São sempre osobjetivos dos projetos, é bom frisar uma vez mais, que orientam a mon-tagem, organização e disponibilização dos documentos escolares para apesquisa. Em termos de arquivos escolares, foram já construídas algu-mas bases para a pesquisa. Elas incluem provas e exames, livros didáti-cos e documentação escolar.

A base de dados Os exames de admissão ao ginásio,1931-1969

Em meio aos documentos que compõem os arquivos das escolas,em geral, somente aqueles mais recentes apresentam-se organizados.Papéis antigos, documentação de várias décadas já passadas, nem mes-mo lugar para guarda, muitas vezes, têm. Como diz Ribeiro (1992, p. 54),apenas os prontuários dos alunos, por constituírem documentaçãoprobatória, representam exceção. As escolas têm necessidade e obriga-ção de manter o conjunto das pastas de documentos de cada aluno atuale de outros tempos organizado, em ordem alfabética e pronto para serconsultado. No interior dos dossiês de cada aluno é possível encontrarexames e provas, sempre que esses papéis pedagógicos tenham ganhostatus de documentos probatórios. Os exames de admissão constituemexemplo disso. Há também provas parciais e exames em dossiês de alu-nos que, por exemplo, foram transferidos de estabelecimento de ensino;em muito menor quantidade há, ainda, documentos que envolvem algu-ma querela sobre notas e avaliações, o que obrigou a guarda de examese provas com o fim de constituição de processo administrativo. Assim,aqui e ali, contando com acasos e circunstâncias que resultaram na pre-servação de exames e provas, é possível compor conjuntos desses docu-mentos para fins de estudo da cultura escolar.

O que podem informar os exames e provas? Como tomá-las comofontes de estudo para história da cultura escolar?

Os exames e provas escolares são documentos valiosos para, por exem-plo, estudo da apropriação realizada pelo cotidiano escolar das reformas

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educacionais. Essa documentação cria a possibilidade, dentre tantas ou-tras coisas, de análise dos conteúdos selecionados pelos professores comomais significativos de seu trabalho pedagógico com os alunos; os examese provas podem revelar também a concepção de avaliação dominante numdeterminado contexto histórico; podem ainda, através da análise dos enun-ciados dos exercícios e questões, possibilitar a leitura que o cotidianoescolar realiza de uma determinada época histórica; de parte dos alunos,as provas são instrumentos importantes para análise de processos de reso-lução de exercícios e questões de um determinado conteúdo escolar, alémde possibilitar, através de inventário das notas obtidas pelos alunos, oestudo do desempenho dos alunos de diferentes épocas escolares, numadada disciplina. Em realidade, os exames e provas concentram sobre aforma de exercícios e questões todos os objetivos explícitos do processode ensino-aprendizagem de uma determinada disciplina. Ou dizendo comoChervel (1990), as provas poderão permitir uma leitura das finalidadesreais do processo pedagógico, a partir das finalidades de objetivo.

Em particular, o exame de admissão constituiu por décadas a linhadivisória entre o ensino primário e a escola secundária; funcionou comoum verdadeiro rito de passagem no processo de seleção à continuidadedos estudos, representada pelo ingresso no ginásio acadêmico, que teveprocura intensificada a partir dos anos 1930.

Os Exames de admissão ao ginásio, 1931-1969 constituem um con-junto de três CD-ROMs que abriga cerca de três mil provas digitalizadasde matemática e português, dos exames de admissão realizados no maisantigo ginásio público da capital de São Paulo1. O material foi concebi-do no interior do projeto de pesquisa “Uma história da educação mate-mática no Brasil, 1920-1960”2 que teve apoio da Fundação de AmparoÀ Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

1. O primeiro ginásio público em São Paulo, o Ginásio do Estado da Capital, iniciasuas aulas no dia 19 de dezembro de 1894. Ao longo de sua história, vários nomesteve o estabelecimento: Gymnasio de São Paulo, Colégio de São Paulo, ColégioEstadual Franklin Delano Roosevelt, Colégio Estadual Presidente Roosevelt, Co-légio Estadual de São Paulo, Escola Estadual de 2º Grau de São Paulo. Atualmentedenomina-se Escola Estadual de São Paulo (Nadai, 1989).

2. A utilização dessa base de dados foi feita por Rita de Cássia Gomes Machado, emsua dissertação de mestrado intitulada Uma análise dos exames de admissão ao

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A matemática do ginásio – livros didáticos para asreformas Campos e Capanema

Com a criação da Comissão Internacional para o Ensino de Mate-mática, em Roma, no ano de 1908, iniciaram-se as discussões interna-cionais de modernização do ensino de matemática. Elas começaram ater impacto no Brasil, mais incisivamente, a partir do final dos anos1920. O palco principal das discussões a respeito da modificação doensino de aritmética, de álgebra e de geometria é o Colégio Pedro II, noRio de Janeiro. Pela iniciativa do então diretor do estabelecimento, pro-fessor Euclides Roxo, é analisada e aprovada pela congregação da esco-la, a proposta de fusão dos ramos matemáticos, que constituíam até en-tão, vale lembrar, disciplinas autônomas, numa única disciplinadenominada “matemática”. Assim, a partir de 1929, lecionada no Colé-gio Pedro II, ficou caracterizada uma nova disciplina escolar, colocadana grade curricular da instituição-modelo para o ensino secundário dopaís: a matemática. Nesse mesmo ano, Euclides Roxo lançou o primeirolivro didático de seu Curso de mathematica elementar”. O livro conti-nha a proposta didático-pedagógica de fusão da aritmética com a álge-bra e a geometria que, de acordo com a interpretação do autor, expres-sou o ideário internacional de modernização do ensino de matemática.Esse momento histórico é estudado no texto organizado por Valente(2004). Dentre outras coisas, procurou-se mostrar, ao analisar o livrodidático de Roxo, como o autor elaborou uma proposta completamenteinovadora para o ensino da aritmética, da álgebra e da geometria. Roxoapresentou esses ramos matemáticos fundidos no Curso de mathematicaelementar. O livro deveria, assim, constituir referência para a disciplinarecém criada a ser ensinada nos primeiros anos do ensino secundário.Com a revolução conduzida por Getúlio Vargas, criou-se o primeiro

secundário (1930-1970): subsídios para a história da educação matemática. Dabase também fez uso, para trabalho de iniciação científica, a aluna Danila FariasBrito Ribeiro, no texto Uma análise do desempenho dos alunos na prova de mate-mática do exame de admissão ao secundário, 1930-1970. Esses trabalhos estãodisponíveis no endereço: <www.pucsp.br/edmat/ghemat>.

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Ministério da Educação e Saúde Pública que, através do ministro Fran-cisco Campos, convocou Euclides Roxo para estruturar o ensino damatemática em nível nacional no secundário. Roxo aproveitou a expe-riência desenvolvida no Colégio Pedro II e fez constar da primeira re-forma nacional do ensino, que ficou conhecida como “Reforma Fran-cisco Campos”, o ensino de matemática para todas as cinco primeirasséries do curso fundamental. Dividido em fundamental e complemen-tar, o ensino secundário extinguirá, a partir da reforma, as antigas disci-plinas autônomas aritmética, algebra e geometria. A Reforma FranciscoCampos ensejou a publicação de inúmeros livros didáticos para atenderà criação da nova disciplina matemática. O primeiro deles, referênciapara a própria elaboração da reforma, foi o de Euclides Roxo, publicadoem 1929. Professores-autores de livros didáticos de matemática publi-caram suas obras para todas as séries do curso fundamental de cincoanos. Surgiram, desse modo, as coleções em cinco volumes. Autores doRio de Janeiro, de São Paulo, do Paraná, dentre outros estados, lança-ram coleções, cursos de matemática, compostos para atenderem série asérie, de acordo com a Reforma, o ensino de matemática. O Curso demathematica elementar, de Euclides Roxo, referenciou o nascimento dadisciplina matemática. Com a reforma nacional do ensino, em 1931, apublicação de vários cursos de matemática irá atestar como se desen-volveu a disciplina a partir da proposta inicial, como ela se transformoue se estabilizou, até a chegada de uma nova revolução no ensino dessesaber com o Movimento da Matemática Moderna (MMM).

O período entre 1930-1960 compreendeu duas grandes reformas na-cionais do ensino brasileiro: as conhecidas como Reforma FranciscoCampos e Reforma Gustavo Capanema. Esta, a exemplo da primeira,leva o nome do ministro que sucedeu Campos, a partir de 1934, noMinistério da Educação e Saúde Pública. A partir de cada uma dessasreformas são publicadas levas de livros didáticos, com o fim de atenderàs suas determinações didático-pedagógicas. Depois de Roxo, JacomoStávale, Cecil Thiré, Mello e Souza, Agricola Bethlem, Algacyr Maedere tantos outros publicaram livros didáticos de matemática, todos expli-citamente mencionando estarem em consonância com a Reforma Fran-cisco Campos. Esses mesmos autores e outros mais rescreverão suas

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obras didáticas a partir de 1942, com a vigência da Reforma GustavoCapanema. Em 30 de junho de 1931, nos termos do decreto 19.890 de18 de abril do mesmo ano, ficaram estabelecidos os conteúdos e a meto-dologia que deveriam parametrizar o ensino da nova disciplina criadacom a fusão da aritmética, da algebra e da geometria. Dentre os livrosdidáticos de matemática, considerados verdadeiros best-sellers, pelaquantidade de exemplares que venderam, estão as obras de Cecil Thirée Mello e Souza, Jacomo Stávale, Algacyr Maeder, Agricola Bethlem,para citar alguns dos mais importantes. Todos eles publicaram livroscom a entrada em vigor da Reforma Francisco Campos.

A base de dados, em CD-ROM, A matemática do ginásio – livrosdidáticos para as reformas Campos e Capanema apresenta umadigitalização parcial das obras didáticas de matemática, que tiveram inú-meras edições após a Reforma Campos e Capanema. Além disso, apre-senta uma análise desses livros com o intuito de permitir verificar comoficou configurada, no período, a nova disciplina que teve origem naproposta de Euclides Roxo.

Como analisar essas obras, tendo em vista que foram elaboradas apartir da interpretação de seus próprios autores, das recomendações dareforma? Uma primeira análise diz respeito aos conteúdos. Em que me-dida os livros atenderam à reforma em termos do conjunto de saberesque seriam ensinados na nova disciplina? Tal questão não apresentamaiores dificuldades, já que uma comparação simples entre o texto le-gislativo e o índice dos livros didáticos pode responder à pergunta. Pro-blema bem mais complexo diz respeito à análise metodológica. A Re-forma Francisco Campos, de modo pioneiro, introduziu a nova disciplinamatemática em âmbito nacional, com seus conteúdos e indicou, alémdisso, o modo segundo o qual esses conteúdos deveriam ser tratadosdidaticamente. Através de suas “Instruções Metodológicas” a reformadeixou claro que a proposta não se resumia apenas a um reordenamentode conteúdos de ensino. Tratava-se, também, de indicar uma mudançaradical em termos didático-metodológicos. Assim, ficou posta a ques-tão de como abordar a metodologia dos livros didáticos de matemáticacriados para atender à Reforma Francisco Campos. Uma análise das“Instruções metodológicas” revelou que as recomendações didático-pedagógicas estavam alicerçadas em quatro grandes categorias:

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• a introdução do conceito de função, desde a primeira série do cur-so fundamental, e o seu desenvolvimento como conceito unificadordos ramos matemáticos (aritmética, álgebra e geometria);

• um curso de geometria intuitiva que progressiva e articuladamente àaritmética e à álgebra caminharia para a geometria lógico-dedutiva;

• o uso do método heurístico para a introdução e desenvolvimentodos conteúdos de ensino;

• a utilização de questões práticas, definidas nas “Instruções” como“[...] as aplicações no domínio das ciências físicas e naturais, bemcomo no campo da técnica, preferindo-se exemplos e problemasque interessem às cogitações dos alunos”.

Assim, a análise dos livros didáticos de matemática, escritos paraatender às recomendações da Reforma Francisco Campos apresentada,buscou, prioritariamente, verificar em que medida os autores desenvol-veram as suas obras levando em conta essas quatro categorias relativasao método de exposição dos conteúdos de ensino matemático. Se a Re-forma Francisco Campos expressou quais deveriam ser os conteúdos ea metodologia a ser empregada para a condução da nova disciplina ma-temática, a Reforma Gustavo Capanema apenas elencou os conteúdosda disciplina que deveriam ser ensinados nas diferentes séries do ensinosecundário. Com ela, disciplina ganhou novas feições. A análise dascoleções evidencia que a apropriação que os autores fizeram da novareforma traduziu-se pela manutenção em separado dos ensinos de arit-mética, álgebra e geometria, mesmo sob o manto de uma única discipli-na chamada matemática.

Os autores de livros didáticos de matemática, que com a ReformaFrancisco Campos foram desafiados a escreverem propostas integradasdo ensino dos três ramos matemáticos, com a Reforma GustavoCapanema tiveram que reorganizar suas coleções. Entre as coleçõesanalisadas para a Reforma Francisco Campos, perduram para a Refor-ma Gustavo Capanema as obras de Cecil Thiré, Mello e Souza e EuclidesRoxo, Jacomo Stávale e Algacyr Maeder. Como a Reforma GustavoCapanema não trazia orientações metodológicas para o ensino de mate-mática, a análise dos livros didáticos produzidos em acordo com essa

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reforma optou por verificar os conteúdos abordados em cada coleção epor tecer comparações entre essas obras e aquelas escritas para a Refor-ma Francisco Campos. Como se teria modificado a matemática escolarnos anos 1940 pela ótica dos livros didáticos?

O uso dos livros didáticos como fontes de pesquisa para escrita dahistória da disciplina matemática no Brasil deve levar em conta queuma disciplina nasce, se desenvolve, se estabiliza, se transforma e podeaté vir a morrer. A matemática no Brasil, enquanto disciplina escolar,nasceu no Colégio Pedro II e referenciou-se ao nascer, na obra do pro-fessor Euclides Roxo. No entanto, a transformação e estabilização dadisciplina ocorreram nas décadas seguintes. Os anos de 1930 a 1950marcaram o desenvolvimento da matemática escolar e sua estabilizaçãoaté a chegada, em nível internacional, da matemática moderna. A disci-plina matemática nessa época esteve, em enorme medida, marcada pe-las determinações das reformas nacionais. O estudo dos livros didáti-cos, campeões de vendagem no período, representa a possibilidade deverificar como os autores e o meio escolar se apropriaram das orienta-ções normativas da legislação para a condução da disciplina. Muito di-ferentes, em suas determinações, no que tange ao ensino de matemática,as duas reformas parametrizaram a publicação de inúmeras coleçõesdidáticas que se espalharam pelo Brasil, num período de enorme cresci-mento desse segmento editorial. Como essas obras interpretaram nosanos 1930 a Reforma de Francisco Campos? Como os autores modifi-caram seus textos para darem conta das determinações da ReformaGustavo Capanema nos anos de 1940? Como se desenvolveu e ficouestabilizada a disciplina matemática no período? O material dessa basede dados tem a intenção de fornecer subsídios para responder a tais

3. A base de dados A matemática do ginásio – livros para as reformas Campos eCapanema, produzida no âmbito do Projeto “Uma história da educação matemáti-ca no Brasil, 1920-1960” foi utilizada para elaboração das dissertações de CiroBraga, O processo inicial de disciplinarização de função na matemática do ensinosecundário; de Inara Martins Passos Pires, Livros didáticos e a matemática doginásio: um estudo da vulgata para a Reforma Francisco Campos e de WalterFernandes Sório, Um estudo do “Curso de mathematica elemenar” de EuclidesRoxo: contribuição para a história da educação matemática no Brasil. Todos es-ses trabalhos estão disponíveis no endereço: <www.pucsp.br/edmat/ghemat>.

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questões3.

Sobre a elaboração da Coletânea de DocumentosVirtuais do Arquivo Escolar do Colégio Pedro II

O projeto de pesquisa “Estudos históricos sobre a educação matemá-tica no Brasil”, 1950-2000, financiado pelo Conselho Nacional de Desen-volvimento Científico e Tecnológico (CNPq) privilegia, em seu desen-volvimento, o trato com arquivos escolares e pessoais. Do mesmo modoque em projetos de pesquisa anteriores, desenvolvidos pelo GHEMAT, par-te substancial do trabalho nesse projeto organiza-se a partir de um inven-tário e construção de bases de dados documentais digitalizados.

Um inventário preliminar feito no arquivo escolar do Colégio PedroII, do Rio de Janeiro, mostrou a existência de grande quantidade dedocumentos importantes para estudo da trajetória histórica de profissio-nalização do professor de matemática, no Brasil. Provas, exames deconcursos à cátedra de matemática e de desenho, atas e documentosregistrando os debates sobre a educação matemática constituíram, deinício, o ponto central de atenção. No entanto, à medida em que o proje-to foi sendo desenvolvido, constatou-se a necessidade de alargar a basede dados a ser digitalizada. A consulta ao arquivo mostrou que, paraalém da documentação relativa à educação matemática no colégio pa-drão do ensino secundário, um outro enorme conjunto de papéis pode-ria ser adicionado à base, contendo elementos importantíssimos para ahistória de educação brasileira.

Assim se explica que, o que originalmente seria uma coletânea dedocumentos sobre educação matemática, acabou por transformar-se numacoletânea de documentos para a história da educação.

A coletânea reúne elementos ímpares para a história da educaçãobrasileira e, também, especificamente, para a história da educação ma-temática. Há, por exemplo, toda uma documentação a respeito de con-

4. Esse material referenciou a pesquisa de mestrado de Rosemeiry de Castro Pradointitulada Do engenheiro ao licenciado: os concursos à cátedra do Colégio Pedro

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cursos para a cátedra de matemática do Colégio Pedro II, em dois mo-mentos históricos importantes: o primeiro, antes da existência das fa-culdades de filosofia; o segundo, após anos de seu funcionamento naformação de professores de matemática4.

Vale destacar, ainda, a digitalização de um conjunto grande de atasda congregação do Colégio Pedro II, que reúne material para estudos dediferentes temas presentes no cotidiano da escola-modelo para o ensinosecundário brasileiro5.

Sobre o uso de documentos virtuaisna prática da história

A disponibilização de bases de dados em CD-ROM, ou pela inter-net, coloca em tela questões para a prática da pesquisa histórica, quelança mão de documentação digitalizada.

São os problemas relativos à preservação do patrimônio documen-tal, e sua progressiva deterioração que vêm motivando iniciativas emtodo o mundo de elaboração de bibliotecas e acervos virtuais. Dessemodo, historiadores vão defrontando-se, mais e mais, com o uso de re-ferências documentais digitalizadas em sua prática intelectual.

Além disso é, de fato, muito cômodo e prático poder rapidamente,ter à mão, documentos originalmente de difícil acesso e, muitas vezes,raros que demandariam tempo enorme para serem consultados. Inclua-se, ainda, a economia com gastos financeiros a serem empenhados nabusca de um material, de um documento, ou de uma série deles.

II e as modificações do saber do professor de matemática do ensino secundário. Otrabalho constitui um dos produtos parciais do projeto “Estudos históricos sobre educa-ção matemática no Brasil, 1950-2000”, financiado pelo CNPq. Como os demais traba-lhos, a dissertação pode ser consultada na página: <www.pucsp.br/edmat/ghemat>.

5. Esses documentos foram utilizados por Jane Cardote Tavares, em sua dissertaçãode mestrado, defendida na PUC-SP, com título A congregação do Colégio Pedro IIe os debates sobre o ensino de matemática.

6. Utilizamos o livro através de sua tradução do italiano para o francês, em 2002, feitapor Nadia Mansouri, publicado pela Presses Universitaires de France (PUF-Paris).

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Não obstante toda a facilidade de trabalho com documentos virtuais,surgem problemas para a prática historiográfica. Rolando Minuti, no li-vro Internet et le métier d’historien6 chama-nos a atenção para dois deles:

O primeiro problema metodológico fundamental que se coloca face a umdocumento digitalizado que se quer utilizar como fonte é sua ausência mate-rial, sua natureza de objeto virtual [2002, p. 69].

A partir dessa afirmação, o autor pondera que o trabalho do historia-dor ao manejar suas fontes exige que elas sejam identificáveis, estáveise inalteradas e, assim, sejam suscetíveis de serem analisadas, criticadase interpretadas (idem, p. 71).

Desse modo, as fontes do trabalho histórico não devem sofrer alte-rações e, quando isso acontece, deve haver certificações precisamenteregistradas.

Minuti objeta que a natureza do documento digitalizado é diferentedaquela cujo suporte é o papel, por exemplo. Segundo esse autor, odocumento digitalizado é, em sua essência, plástico. Ele está sujeito amudanças e alterações que podem não deixar traços identificáveis (idem,p. 72).

Relativamente a esse tema, a pesquisadora Rosely Curi Rondinelliaponta vários estudos recentes que vêm abordando as questões que di-zem respeito aos “conceitos de fidedignidade e de autenticidade do do-cumento eletrônico arquivístico” (2005, p. 64).

Um outro problema que se apresenta ao historiador, quando traba-lha com materiais digitalizados – que estamos chamando simplesmentede virtuais – , está relacionado à mediação mecânica e eletrônica para ouso do documento (Minuti, 2002, p. 73). Explica-se: com o passar dotempo, crescem as dificuldades de acesso a documentos digitalizadosatravés de sistemas operacionais que vão sendo substituídos por novasversões e novos aparatos tecnológicos. Pode-se concluir, dessa forma,que o documento digitalizado é muito mais frágil relativamente àquelesem papel, que até hoje é possível encontrar, com cerca de quinhentosanos (idem, p. 74).

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Ao que tudo indica, vive-se uma transição, um momento em queestá por ser normatizada e estabilizada uma nova etapa de trabalho parao historiador, em meio ao mundo das fontes digitalizadas. Essa novaetapa precisa ser capaz de dar respostas a questões sintetizadas por Minuti,tais como:

• como tornar estável um material que, por sua natureza virtual, ten-de à variabilidade e mobilidade?

• qual o melhor meio para conversão do patrimônio documental embases digitalizadas?

A construção de arquivos e bibliotecas virtuais tem sido realizada,segundo Rolando Minuti, por intermédio de iniciativas individuais “àsvezes excelentes, às vezes discutíveis”; e de iniciativas institucionais,que têm crescido enormemente.

Considerações finais

As investigações realizadas pelo GHEMAT incluem, como uma desuas etapas fundamentais, a construção de bases de dados com docu-mentação virtual. Todos os papéis digitalizados estão sempre integra-dos em CD-ROM por mecanismos de busca que viabilizam o seu usopor outros pesquisadores com temáticas e problemas de pesquisa quepodem ser completamente diversos daqueles que originalmente condu-ziram a digitalização.

É comum, como já se enfatizou, que as pesquisas de mestrado, dou-torado, e mesmo de iniciação científica, depois de se acercarem de fon-tes documentais, que consumiram boa parte do tempo da investigaçãopara serem encontradas, não deixem disponíveis esses materirais paraoutros investigadores. Eles acabam servindo para a produção do traba-lho acadêmico individual, obrigando outros pesquisadores a refazeremo percurso utilizado para o encontro e organização desses materiais.Somem-se os muitos casos em que o ato de refazer o périplo para en-contro dos documentos fracassa quando o que estava disponível numarquivo morto, por exemplo, deixou de existir por ter sido, com o tem-

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po, descartado ou mesmo deteriorado. Infelizmente, a organização edisponibilização de bases digitalizadas de documentos não tem statusde produção acadêmica, isto é, não confere grau de mestrado, por exem-plo. Esse é um elemento que, também, não estimula procedimentos comoo de organização dos dados para uso de outrem. Assim, as fontes des-cartadas depois do uso, com o dispêndio de grande quantidade de horasde trabalho para terem sido encontradas e organizadas, são perdidas oudeixadas à própria sorte, no lugar onde foram encontradas originalmen-te. E, muitas vezes, esses lugares não reúnem qualquer condição para apreservação documental.

Alargar a noção de documento arquivístico em educação, como querVidal (2004, p. 11) é condição fundamental para a preservação dos ob-jetos culturais produzidos pela escola e que poderão transformar-se emfontes de pesquisa da história da educação. Isso inclui, parece-nos, rea-lizar ações pelos grupos interessados na produção histórica da educaçãoque visem a constituição de bases de dados virtuais no seio mesmo daprópria pesquisa,.

A prática de pesquisa do GHEMAT reúne vários pesquisadores emtorno de projetos mais amplos, colocando como fase fundamental parao trabalho do grupo a atividade de coleta, organização, sistematização edigitalização de fontes documentais que servem a todos os trabalhosligados aos projetos. Esse trabalho, inclui, ainda, a disponibilização dasbases de dados a todos aqueles investigadores interessados nas pesqui-sas sobre história da educação.

Referências bibliográficas

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MINUTI, R. Internet et le métier d’historien. Paris: PUF, 2002.

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VALENTE, W. R. (org.). O nascimento da matemática do ginásio. São Paulo:Annablume/FAPESP, 2004.

VIDAL, D. G. Cultura e prática escolares: uma reflexão sobre documentos e ar-quivos escolares. Escola de Aplicação: o arquivo da escola e a memória escolar.CD-ROM, FEUSP/FAPESP, 2004.

Endereço para correspondênciaWagner Rodrigues Valente

Rua Oswaldo Cruz, 429 Apto. 95Santos-SP

CEP: [email protected]

Recebido em: 1 set. 2005Aprovado em: 10 dez. 2005

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Os arquivos escolares comofonte para a história da educação

Nailda Marinho da Costa Bonato*

Resumo:O texto trata do uso e do potencial dos arquivos escolares como fonte para a pesquisa naárea de história da educação. Reflete sobre a necessidade de preservação desses acer-vos, o que deve ser preservado, o conceito de arquivos escolares e a legislação pertinen-te a sua guarda. Aponta algumas ações que vêm sendo desenvolvidas pelos pesquisado-res dessa área do conhecimento visando esse tipo de arquivo, tendo em vista o diálogonecessário com a história, a arquivologia e a informática.ARQUIVOS ESCOLARES; HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; LEGISLAÇÃO;PRESERVAÇÃO.

* Professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Dou-tora em Educação na área de História, Filosofia e Educação pela UNICAMP.

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The school archives as a sourcefor the history of the education

Nailda Marinho da Costa Bonato*

* Professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutoraem Educação na área de História, Filosofia e Educação pela UNICAMP.

Abstract:The text relates the use and the potential of the school archives as source for the researchin the area of the history of the education. It reflects on the necessity of the preservationof these collections, which must be preserved, the concept of the school archives and thelegislation pertinent to their guard. It points some actions that have been developed bythe researchers of this area of the knowledge who are aimed at this type of archive,keeping the necessary dialogue with the history, the archivistic and the computer sciencein mind.SCHOOL ARCHIVES; HISTORY OF THE EDUCATION; LEGISLATION;PRESERVATION.

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os arquivos escolares como fonte para a história da educação 195

O I Congresso Brasileiro de História da Educação contou com umeixo temático intitulado “Fontes, categorias e métodos de pesquisa emhistória da educação”; nele, foram apresentados trinta trabalhos. Ficouevidente a ampla utilização por parte dos pesquisadores de fontes ofi-ciais como séries legislativas, relatórios, pareceres, discursos de autori-dades políticas, entre outras, para compreender-se o fenômeno educati-vo. Porém, observa-se, na investigação educacional, a emergência denovas fontes, tais como a fotografia, o material escolar, relatos de via-jantes, diários íntimos, arquivos escolares, fontes orais, ao lado de pro-dutos culturais como a literatura e a imprensa pedagógica. Essas e ou-tras como cartuns, jornais, semanários e revistas, livros didáticos, imagensde filmes também se destacaram no segundo congresso1 como novasfontes trazidas ao trabalho do historiador da educação.2

Sólis (1992) classifica os documentos como: textuais (manuscritos,datilografados, impressos, microfilmados etc.), iconográficos (fotos,slides, desenhos, croquis, gravuras, pinturas etc.), cartográficos (mapase plantas), gravações sonoras e audiovisuais, entre outros. A espéciedocumental, para ele, pode ser definida a partir das funções que desem-penham e para as quais são produzidos os documentos: “documentaçãotécnica, contábil, pessoal, previdenciária” ou apenas “resumos, relató-rios, fichamentos, correspondência, memorandos, comunicados inter-nos, registros médicos e escolares etc.” (p. 55, grifo meu).

Neste artigo, vou tratar do uso dos arquivos escolares como fontespara a história da educação no Rio de Janeiro. Antes, faz-se necessáriotrazermos o conceito de arquivo. Em 1898, o Manual de arranjo e des-crição de arquivos, elaborado pela Associação dos Arquivistas Holan-deses define arquivo como:

Conjunto de documentos escritos, desenhos e material impresso, recebi-dos ou produzidos oficialmente por determinado órgão administrativo ou por

1. Os congressos foram realizados por iniciativa da Sociedade Brasileira de Históriada Educação (SBHE). O primeiro na cidade do Rio de Janeiro e o segundo emNatal. Fundada em setembro de 1999, a SBHE congrega pesquisadores e docentesda área de história da educação.

2. Ver Xavier (2000) e Araújo (2002).

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um de seus funcionários, na medida em que tais documentos se destinam apermanecer na custódia desse órgão ou funcionário [p. 13].

A lei brasileira n. 8.159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe sobre apolítica nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providênciasapregoa, em seu art. 2º, que para fins dessa lei, consideram-se arquivos:

os conjuntos de documentos produzidos e recebidos por órgãos públicos,instituições de caráter público e entidades privadas, em decorrência do exercí-cio de atividades específicas, bem como por pessoa física, qualquer que seja osuporte da informação e natureza dos documentos [apud Mattar, 2003, p. 99].

Analisando a referida lei em uma palestra proferida no III Colóquiodo Museu Pedagógico, em 2003, na Universidade Estadual do Sudoesteda Bahia (UESB), o especialista em direito Ruy Hermann Araújo Medeiros,entende que a Lei não se contentou com a origem e o produtor do docu-mento, nem tampouco tratou apenas do documento público, mas em seuconceito de documento envolveu os documentos produzidos e recebi-dos por órgãos públicos; os documentos produzidos e recebidos porinstituições de caráter público e entidades privadas; os documentos pro-duzidos e recebidos por pessoa física; e também o suporte da informa-ção ou natureza do documento (papel, filme, documento, documentopúblico, documento privado). Sendo assim, a lei alargou o conceito dedocumento, sendo mais abrangente do que aquele trazido pelo manual,indo além do domínio da burocracia para o domínio geral da cultura,pois reconhece a necessidade de proteção de documentos não burocráti-cos, oficiais. Considerando essa conceituação legal de arquivo, pode-mos dizer que o arquivo escolar é um conjunto de “documentos produ-zidos ou recebidos por escolas públicas ou privadas, em decorrência doexercício de suas atividades específicas, qualquer que seja o suporte ouinformação ou a natureza dos documentos” (Medeiros, 2003).

Medeiros explica, ainda, que as escolas particulares exercitam a li-berdade de ensino, mas exercem múnus (ofício) público, pois para issosão autorizadas ou reconhecidas. Esse fato tem grande importância paraa real compreensão dos arquivos das escolas particulares, sobretudo sobre

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seus arquivos permanentes. Com isso, podemos entender que esses ar-quivos, no que dizem respeito aos atos decorrentes de múnus públicos,são de interesse público. Mesmo que não esteja na conceituação legalde arquivo público, quando uma escola particular (privada) é extinta,seus arquivos devem ser transferidos à guarda pública; assim, os arqui-vos escolares da rede privada serão públicos por destinação, porém essatransferência é quanto aos documentos que decorram de atribuiçõespúblicas exercidas pela escola particular, tipo os relativos a transferên-cias, históricos escolares, atos de colação de grau, entre outros.

Por exercerem múnus público, as escolas estão obrigadas a preser-varem seus arquivos. Os arquivos das escolas públicas ficam nestas ou,após algum tempo, os seus conjuntos documentais permanentes são con-fiados a arquivo público3. A opção por deixar os documentos nas esco-las ou de, decorrido algum tempo, transferi-los para um arquivo centralou regional será objeto de opção normativa da administração pública.Observe-se que há níveis de autonomia de União, Estado, Distrito Fede-ral e municípios. Os arquivos escolares têm por finalidade serem meiode prova de direito de pessoas ou da administração. Mas também têmfunção informativa para administração pública, pois a ela podem ofere-cer informações, por exemplo, “da evolução do oferecimento do núme-ro de vagas, de repetência, evasão escolar, etc.” Mas, os documentosescolares têm também valor histórico-cultural. Para os historiadores,tais documentos são fontes para a história da educação, manifestaçãoou representação da memória, nos diz Medeiros.

Concretamente, os arquivos escolares apresentam múltiplas possi-bilidades de pesquisa científica. Através desses acervos é possível co-nhecer as atividades administrativa e pedagógica de transformação daeducação ao longo do tempo. Na pesquisa para a produção da minha

3. No município do Rio de Janeiro, as escolas são responsáveis pela sua documenta-ção até sua extinção. Quanto às escolas estaduais, um projeto de organização erecuperação da documentação referente às escolas extintas do estado do Rio deJaneiro foi desenvolvido pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro(UNIRIO) em convênio com a Secretaria Estadual de Educação. O projeto teve aparticipação de estagiários das escolas de arquivologia e educação, porém não foiconcluído.

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tese doutorado4, um ofício recebido da Diretoria Geral de Instrução Pú-blica, datado de 1925 e assinado por Antonio Carneiro Leão5, para adiretora da Escola Paulo de Frontin foi de grande valia. Nele, o diretorcomunica a nomeação de uma comissão para rever os programas doscursos profissionais tendo em vista as “exigências da pedagogia moder-na”, o qual transcrevo abaixo.

Directoria Geral de Instrucção PúblicaDistricto Federal, 23 de janeiro de 1925.Sra. Directora da Escola Paulo de FrontinEsta Directoria desejando estabelecer uma relação mais intima entre o ensi-no das differentes matérias e os trabalhos das officinas resolveu promover arevisão dos programmas do curso de adaptação, de modo que a cultura ahiministrada obedeça á verdadeira finalidade de uma escola profissional.Para isso faz-se também necessario uma revisão no programma de trabalhosdas proprias officinas. Nomeada uma comissão para proceder taes estudos,que esta Directoria receber dos Srs. Directores de Escolas Profissionais assuggestões que o conhecimento, a longa experiência e o interesse pelainstrucção profissional lhes merece de modo a ser possível a elaboração deum trabalho que, dentro das exigências da pedagogia moderna e das possibi-lidades technicas do nosso meio, corresponde mais realmente as nossas ne-cessidades actuaes.Assim, Sra Directora, deveis remetter até 15 de Fevereiro proximo futurotodas as suggestões e modificações que julgueis proveitosos ao bom anda-mento do ensino profissional na Capital do Brasil.

SaudaçõesO Director GeralA. Carneiro Leão

4. A tese estuda a escola profissional para o sexo feminino tendo como fonte privile-giada a imagem fotográfica de Augusto Malta, contratado pela prefeitura na gestãode Pereira Passos (1902-1906) permanecendo na função até 1936. Esse tipo deescola foi instituída na esfera pública de ensino do Distrito Federal na PrimeiraRepública como Instituto Profissional Feminino (1898), Primeira Escola Profis-sional Feminina [Bento Ribeiro] e Segunda Escola Profissional Feminina [RivadaviaCorrea] (ambas em 1913) e Escola Profissional Paulo de Frontin (1919).

5. Diretor da Diretoria Geral de Instrução Pública Municipal no período de 1922-1926.

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No artigo “Arquivo escolar: fonte de pesquisa histórica” João Val-dir Alves de Souza informa que o “arquivo morto” (sic) da Escola Esta-dual Lauro Machado, localizada no município de Turmalina, AltoJequitinhonha, uma região nacionalmente conhecida pelos seus indica-dores de pobreza, possui documentos totalmente inéditos e de inestimá-vel valor para se estudar e conhecer a história da educação local. E, paracorroborar sua afirmação, analisa o livro de Termos de visitas das auto-ridades escolares em forma e conteúdo. No termo de abertura feito porum inspetor regional a 12 de junho de 1913, consta que o livro se desti-nava à “Inspecção technica” da “escola do sexo masculino” do então“districto de Piedade de Minas Novas.” Sousa diz nos que “às vezes umdocumento é mais relevante pela forma como foi elaborado do que pelosconteúdos que porta” (1998, p. 16). Cobrindo os períodos de 1913 a 1939,1939 a 1972, 1973 a 1986 nele é possível identificar também as modifica-ções sofridas no que se refere aos registros por parte dos inspetores.

Um documento escolar pode caracterizar-se como fonte e objeto depesquisa. De acordo com Medeiros:

Ali, nos documentos, estão memórias individual e coletiva da educação.Não toda, é claro. Mas também não só memória, mas memórias: Memória dopapel. Memória da tinta. Memória da letra. Memória da pena. Que tinta éaquela? Por certo uma daquelas obtidas com receita, que passou de professora professor, ou de pai a pai, de aluno a aluno, antes da disseminação da tintaindustrial [2003, p. 6].

Mas o que vem a ser documento? Nos arquivos escolares, o quemerece ser preservado? Vidal diz nos que é importante “guardar peçasque permitam perceber facetas do cotidiano (e não simplesmente repo-nham a lógica organizacional e legal das instituições) e referenciar asinformações contidas nos documentos (desenvolvendo índices, guiasde fontes, dicionários e thesaurus)” (2000, p. 41).

Uma amostra significativa do que os historiadores da educação en-tendem por documento está no artigo “Arquivo Fernando de Azevedo:instrumentos e pesquisa em fonte primária” Paulilo, Silva, Vidal et al.,1999, em que os autores, ao tratarem das mudanças trazidas pela refor-

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ma, nos apresentam as multiplicidades de elementos que naquele mo-mento passaram a fazer parte da cultura e das práticas escolares. Assimse expressam:

Caracterizada por uma intensa renovação da materialidade escolar e dosmétodos pedagógicos, a reforma Azevedo introduziu nas escolas novos ob-jetos como, por exemplo, projetores de imagem fixa e em movimento, ca-neca, sabão, e escovas de dentes e ressignificou antigos, como tabuleirosde areia, vasilhas, tubos de ensaio, pretendendo transformar o ensino “deverbalista em ativo” e concorrendo para preservar condutas higiênicas, de for-ma a disciplinar gestos, olhares e corpos de alunos e alunas [idem, p. 203].

O arquivo Fernando de Azevedo faz parte do acervo do Instituto deEstudos Brasileiros (IEB) da Univesidade de São Paulo (USP). O obje-tivo de seus pesquisadores a partir de um projeto iniciado em 1996 é:“Fazer um inventário desta materialidade e conhecer a diversidade me-todológica, investigando as estratégias de modelação postas em uso noespaço e perscrutando suas diferentes apropriações por professoras, pro-fessores, alunos e alunas, dentre outros [...]” As perguntas são: quantasescolas guardaram esse tipo de material? Será que seus arquivos espelhamessa transformação? Será que esse material foi guardado? Ainda encon-tramos os arquivos como memória educacional de uma época?

Concordo com Medeiros quando diz que ao historiador da educaçãonão bastam os documentos escritos oficiais. Fontes orais, cadernos es-colares, desenhos, antigos livros didáticos e atlas escolares, filmes, fitascassete e fotos, também nos interessam. O acervo arquivístico de umaescola é formado, essencialmente, em decorrência de atividades admi-nistrativas e de suas práticas pedagógicas formais e informais. As pri-meiras produzem documentos de secretaria, porém é no cotidiano dasala de aula, locus principal das atividades pedagógicas, onde são “pro-duzidos” materiais diretamente relacionados ao processo ensino-apren-dizagem. Isto posto, podemos perguntar se a lei 8.159 protege qualquertipo de documento, fruto dessa relação, da eliminação arquivística? Porexemplo, documentos importantes para estudar-se o cotidiano das esco-las, mas que não são de interesse público nem administrativo?

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Belloto, em 1991, preocupada com a descrição documental, chamaatenção dos arquivistas para levarem em consideração que a documen-tação produzida é assustadoramente crescente e de grande diversidade,em razão do surgimento de novas espécies documentais, novos teste-munhos, novas fontes, afetando à pesquisa histórica. Esse fato consti-tui-se um desafio para a produção dos instrumentos de pesquisa, poisessa nova realidade vem ameaçando a sua tipologia e a sua estruturaclássica. Pergunta ela: “Será que guias, inventários, catálogos e índicestradicionais refletem as novas fontes, as inquietações dos novos pes-quisadores e as novas temáticas da história? (Belloto, 1991, p. 106).Sabemos que a elaboração de um instrumento de pesquisa não é tarefafácil e nem rápida, exigindo várias etapas anteriores no trato com adocumentação, por isso, é preciso que os arquivistas entrem nessa dis-cussão o mais rápido possível, para que no caso de uma organizaçãotécnica dos arquivos escolares não se percam documentos de valor ines-timável para o estudo da história.

Para tentar resolver esses e outros problemas colocados, Vidal preo-cupada com o descarte documental6 tendo como foco os arquivos esco-lares, aponta a necessidade de um diálogo entre arquivistas e historiado-res. Esse diálogo faz-se urgente, principalmente, se considerarmos asmudanças paradigmáticas que vêm ocorrendo nos últimos anos no cam-po da pesquisa historiográfica.

Creio que, inicialmente, quatro aspectos devem ser analisados na cons-trução dessa “política” [de preservação e descarte documental] atinentes àsmudanças que vêm se operando nos últimos anos no campo historiográfico:o interesse pelo cotidiano e pela materialidade dos objetos culturais e anecessidade do descarte e da referenciação documental. [...] vou me res-tringir à discussão acerca principalmente dos arquivos escolares... [Vidal,2000, p. 38].

6. Toda documentação eliminada, seja por um motivo de avaliação ou por motivo dedeterioração, deve ser registrada na “lista de eliminação”, sendo autorizada pelaautoridade competente e assinada pelos envolvidos no processo.

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No caso dos arquivos escolares, o processo de avaliação de docu-mentos7 e a produção da tabela de temporalidade8, dois procedimentosdefinidores do ciclo de vida dos documentos, podem gerar perdas docu-mentais inestimáveis considerando que o saber/fazer da arquivologiaainda se funda no paradigma de conhecimento tradicional. Nesse senti-do, a fala de Vidal é significativa ao trazer a origem da arquivologia.

Criada no fim do século XIX e dirigida principalmente para garantir ofluxo corrente de informações em empresas e órgãos públicos, a Arquivologiapercebe o documento na sua importância institucional e legal. As tabelas detemporalidade que constitui pretendem assegurar sua vida pelo prazo neces-sário à função que o ocupa na hierarquia da instituição. Nesse sentido, odescarte se faz sempre que o documento perde a “validade”. Preserva-se, emgeral, um exemplo, quando os documentos são do mesmo tipo, toda a docu-mentação que repõe a organização (organograma) e remete à constituiçãohistórica da empresa ou instituição, ou que informa sobre algumas de suaspersonagens principais (diretores, presidentes, dentre outros). A lógica é a dahistória política e econômica. Todo o cotidiano das relações pessoais estabe-lecidas tende a se perder [idem, ibidem].

Assim, tendo em vista a tradição arquivística, no que se refere aosarquivos escolares, num processo de descarte, os primeiros documentosque podem ser eliminados do arquivo, entendido como morto, são os“cadernos de alunos, planos de aula, diários de classe”. No entanto, oDiário Oficial, por se tratar de um documento oficial produzido pelo

7. No Manual de levantamento da produção documental, produzido pelo ArquivoNacional, 1986, encontramos a seguinte definição de avaliação: “Estabelecimentode preceitos capazes de orientar a ação dos responsáveis pela análise e seleção dedocumentos, com vistas à fixação de prazos para sua guarda ou eliminação, contri-buindo para a racionalização dos arquivos” (apud Vidal, 2000, p. 33).

8. Tabela de temporalidade é um instrumento de destinação de documentos que deveser aprovado por autoridade competente, que determina os prazos que os docu-mentos devem ser mantidos nos arquivos correntes e intermediários até a suadestinação final, ou seja, indica a época em que os documentos devem ser reprodu-zidos, eliminados ou recolhidos ao arquivo permanente (idem, p.34)

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poder público, não é descartado, dessa forma “pilhas e pilhas de DiárioOficial atolam os arquivos, multiplicadas nas unidades escolares”. Istoeu pude constatar em alguns arquivos nos quais pesquisei. Ao jogar-sefora a documentação de professores e alunos, personagens de uma novahistória, junto jogam-se possibilidades de estudar-se o cotidiano, porexemplo, dessas escolas.

Sólis (1992), pelos mesmos motivos, é outro pesquisador que vemjuntar-se a Vidal, quando critica a organização arquivística clássica dadaaos documentos. Para ele, a forma de avaliação e arranjo adotados paraa documentação arquivística, de um modo geral, fez com que se perdes-sem, de uma forma ou de outra, muitas fontes sobre nossa história sociale econômica, desprezando-se registros documentais probatórios do co-tidiano, do trabalho, da cultura do povo, do cidadão não ilustre. E, en-tão, louva a revisão historiográfica feita pelos “modernos historiadoresque possibilitou o repensar das teorias arquivísticas”. Assim, por exem-plo, a história econômica, a história social, a história do cotidiano, ahistória das mentalidades, e acrescento, a história da educação, utilizamséries documentais como fontes “que permitem avaliar os processos his-tóricos em seu conjunto – e não em momentos ou fatos pinçados aoacaso, segundo a ‘versão oficial’”. Essa possibilidade, diz ele, elimi-nou, diria eu minimizou, a disputa entre os arquivistas e historiadores e“permitiu o desenvolvimento da arquivologia moderna” (1992, p. 59).

Considerando a discussão posta anteriormente, no caso dos arqui-vos escolares, reivindico junto com Vidal, que seja feito um trabalho emparceria entre arquivistas, historiadores e “informatas”, visando apre-sentar propostas de implantação e implementação de critérios de avalia-ção, recuperação, preservação, conservação, classificação, arranjo edescrição9, organização e acesso a esse tipo de acervo. Isto contribuirápara que documentos importantes para o estudo da história da educação

9. Onde se elaboram os instrumentos de pesquisa. Entendidos como um meio de dis-seminação e recuperação da informação são produzidos em arquivos no processode arranjo e descrição de documentos. São instrumentos de pesquisa: guias, catálo-gos, índices, inventários, repertórios, tabelas de equivalência, entre outros.

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não sejam eliminados; e, também, para minimizar o trabalho do pesqui-sador na busca dessas fontes.

Vasculhando arquivos escolares e educacionais:uma trajetória

Resgato em minha trajetória profissional, o meu contato mais siste-mático10 com arquivos escolares e educacionais. O primeiro encontroaconteceu em 198711, quando participei da equipe que realizou um “Diag-nóstico das bibliotecas e arquivos escolares”,12 que tinha como um deseus objetivos: “fazer um levantamento de dados da realidade arquivís-tica das escolas estaduais no município de Niterói.” Entre 1990 e 1991,tive a oportunidade de trabalhar, como técnica de pesquisa, com a SérieEducação, no Arquivo Nacional.

Continuando a trajetória, elaborei individualmente ou em equipe,projetos de avaliação, organização e de pesquisa13 com esse tipo de acer-vo. Destaco os projetos: “Arquivo, educação e cidadania“, desenvolvi-do no município de Queimados, Rio de Janeiro, como parte do progra-ma de extensão “Escola Cidadã: uma experiência em construção”, daUNIRIO; e, “Arquivos escolares: limites e possibilidades para a pesqui-sa”, que visou mapear e elaborar um diagnóstico da situação em que seencontravam os arquivos escolares no Rio de Janeiro, no que se refereao tipo de fonte, grau de conservação, arranjo e descrição, quantificação,

10. Digo sistemático, porque vinha trabalhando em escolas desde 1980 como profes-sora do ensino fundamental e orientadora educacional, duas funções propiciadorasde produção de documentos e de consultas aos arquivos das escolas.

11. Formada em pedagogia em 1983 estava, naquele momento, no último período docurso de arquivologia, na Universidade Federal Fluminense (UFF).

12. Subprojeto do “Projeto de integração para a melhoria dos cursos de graduação naárea do Centro de Estudos Gerais (CEG) da UFF”.

13. Muitos não foram concretizados por motivos independentes de nossa vontade. Emparceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o projeto “A revi-talização do arquivo do Instituto de Educação do Rio de Janeiro (IERJ)”, atualInstituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (ISERJ); e “Memória da educação:implantação do Arquivo Histórico do Colégio Salesiano”.

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local de instalação, recursos humanos e materiais, informando a pesqui-sadores e ao público em geral das condições de acesso e uso desses acer-vos. Como recorte, trabalhou-se com escolas fundadas no século XIX.

A busca de fontes para o desenvolvimento da tese de doutorado tam-bém me levou aos arquivos escolares. Atualmente oriento uma disserta-ção de mestrado em que a pesquisa terá como fonte esses arquivos14. Noperíodo passado, orientei uma monografia de graduação que trata do usodos arquivos públicos como fonte de pesquisa por parte dos estudantes deensino médio da rede pública de ensino do estado do Rio de Janeiro15.

Os arquivos escolares como fonte e objeto de pesquisa

Ora, é sabido que a preocupação por parte de profissionais, legisla-dores e administradores de arquivos ainda não surtiu o efeito desejadopor pesquisadores e o público em geral, quando se vêem diante da neces-sidade de pesquisá-los. Ainda hoje, o pesquisador para construir seu co-nhecimento esbarra, entre outras coisas, na desorganização dos arqui-vos. Assim, expressões como “foi impossível encontrar tal documento”,a “pesquisa foi prejudicada devido a deterioração de fontes necessárias”,são comuns aos nossos ouvidos. Para Lopes (1992), em “Fontes docu-mentais e categorias de análise para uma historia da educação da mu-lher”, vasculhar arquivos [escolares] para o desenvolvimento de pesqui-sa é uma tarefa árdua. Encontrar “livros de atas, livros de punições, livrosde matrículas [...] é o que todas sonhamos, quase com volúpia”, diz-nos.Porém, levanta algumas questões sobre o acesso a essas fontes: “Mas épossível? Esse tipo de material estará disponível? Pelo menos em quan-tidade que dê para se ter um certo corpus? Às vezes sim, às vezes não”.Ela responde-nos afirmando: “E é isso que tem colocado um desafio bas-tante interessante para a história (dessa) educação” (Lopes, 1992, p. 6).

14. Projeto da mestranda Luciene de A. Simonini, intitulado “Semana de educação(1928-1935): do projeto da Associação Brasileira de Educação ao trabalho realiza-do nas escolas”. No momento, a pesquisa está fazendo o levantamento das escolase seus arquivos.

15. Monografia desenvolvida por Denize Marinho, aluna do curso de arquivologia daUNIRIO.

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A fala do Sr. José, funcionário da Conservatória Geral do RegistroCivil, personagem criado por José Saramago em seu livro Todos os nomes,ao vasculhar o arquivo de uma escola na busca da “mulher desconhecida”,é ilustrativa das condições de preservação, conservação e acesso de grandeparte dos arquivos escolares nos quais pesquisei; e representativa do traba-lho que tive de empreender na busca dos documentos.

Abrir uma caixa, desatar um maço, cada movimento que fazia levantavauma nuvem de pó, a tal ponto que, para não acabar asfixiado, teve de atar olenço sobre o nariz e a boca, um processo preventivo que os auxiliares deescrita eram aconselhados a seguir de cada vez que tinham de ir ao arqui-vo... [1997, p. 111].

No meu caso, usei máscara, luva cirúrgica e jaleco para proteção, masvaleu a pena, pois a busca não foi infrutífera. A sensação do encontro comas fontes é gratificante. Ainda é Saramago com o sr. José que nos ajuda ailustrar o sentimento do pesquisador quando encontra o que busca.

[...] havia umas quantas secretárias, um número igual de cadeiras, armários,arquivos, ficheiros, o coração do Sr. José sobressaltou-se ao vê-los, era distoque tinha vindo à procura, fichas, verbetes, registros, averbamentos, anota-ções, a história da mulher desconhecida na época em que tinha sido menina eadolescente, supondo que depois deste não houve outros colégios em sua vida.[...] O primeiro verbete apareceu ao cabo de meia hora. A menina deixara deusar franja, mas os olhos, nesta fotografia tirada aos quinze anos, conserva-vam o mesmo ar de gravidade dorida [idem, pp. 98 e 111, grifos meus].

Em algumas escolas, o espaço destinado à documentação acumula-da é identificado como arquivo morto. Até hoje, essa é uma velha eincorreta denominação para a documentação de caráter permanente, su-gerindo a existência de uma documentação sem utilidade e descartável.Quanto a essa questão, no artigo intitulado “Memória da educação: pre-servação de arquivos escolares” (Bonato, 2000), publicado na revistaPresença pedagógica, digo ser importante buscar parcerias com arqui-vos públicos, entendendo essa ação como uma possibilidade de preser-

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vação dos arquivos escolares: “dessa maneira, não teremos mais o ‘ar-quivo morto’, expressão utilizada erroneamente para caracterizar a do-cumentação acumulada, que se encontra geralmente desorganizada esujeita a agentes destruidores como fungos, insetos, anóbios, poeira, eaté mesmo o próprio homem” (Bonato, 2000, p. 47).

Ribeiro (1992), em “arquivos das escolas”, trata desses arquivos apartir dos resultados de um “Diagnóstico dos arquivos privados na cida-de do Rio de Janeiro”, realizado em 1985, pelo extinto Programa Nacio-nal de Preservação da Documentação Histórica (Pró-Documento). Dasescolas objetos daquele diagnóstico, duas incluídas na amostra de trin-ta, haviam acabado de criar pequenos museus, em que já realizavamexposições sobre sua própria história. Essa mesma atenção não é dedicadaaos arquivos, estes “últimos apenas emprestam documentos para a ex-posição, permanecendo, no entanto, literalmente, como ‘arquivo mor-to’” (p. 48). As escolas possuíam “arquivos ‘ativos e inativos’ (ou ‘mor-tos’), denominações que [revelavam] o predomínio de uma noçãolimitada da sua importância para a administração e, principalmente, parao conhecimento científico” (p. 53). De acordo com Ribeiro, não existianas instituições educativas, com raras exceções, um sistema de arquivosbaseado na teoria das três idades: corrente, intermediário e permanente.Essa teoria16, presente na legislação brasileira, também se aplica aosarquivos escolares.

Um regimento interno de uma escola, enquanto estiver em vigor será do-cumento corrente, pois será consultado frequentemente. Documentos esco-

16. “Conforme a Teoria das Três Idades, os arquivos passam por três estágios de evolu-ção: arquivo corrente ou da primeira idade – constituído de documentos em curso econsultados freqüentemente. De natureza administrativa, atendem às necessidadesimediatas para as quais foram produzidos e por isso se conservam junto aos órgãosprodutores; arquivo intermediário ou de segunda idade – nos quais os documentosnão são mais consultados tão freqüentemente, porém ainda podem ser solicitadospara retomada de alguma questão pelo órgão que os produziu. Já foram avaliados eaguardam destinação final de acordo com a Tabela de Temporalidade dos Documen-tos; arquivo permanente ou de terceira idade – constituído de documentos que perde-ram todo o valor de natureza administrativa, mas que se conservam definitivamenteem razão de seu valor histórico ou probatório, de acordo com a avaliação documen-tal; documentos para fins de pesquisa [...] (Bonato, 2000, p. 47).

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lares de alunos que concluíram [o ensino fundamental ou médio], durantealgum tempo serão documentos intermediários, pois poderão ser consulta-dos para informações. Históricos escolares de alunos, após algum tempo comodocumentos intermediários serão preservados de forma permanente em ra-zão do valor histórico, probatório e informativo [Medeiros, 2003].

Em conseqüência do quadro apresentado por Ribeiro (2002), o queos historiadores costumam denominar de arquivo histórico não se cons-titui concretamente um arquivo permanente. Devendo ser definido porum criterioso processo de avaliação documental, o arquivo permanente,conforme aquela teoria, é constituído por conjuntos de documentos deterceira idade, acumulados organicamente de modo que retrate as ativi-dades da escola.

Para a realização da tese busquei, coletei e resgatei documentos iné-ditos “esquecidos” não apenas em instituições oficiais de acervosarquivísticos, mas também em arquivos escolares17, entendendo que es-ses acervos ainda não foram devidamente explorados pelos pesquisado-res. Na pesquisa utilizo a análise documental como procedimento me-todológico, nesse sentido, alguns autores, ao teorizarem sobre esseprocedimento na área de ciências humanas, entendem documento como“quaisquer materiais escritos que possam ser usados como fonte de in-formação sobre o comportamento humano” (Philipps apud Lüdke &André, 1986, p. 38). Leis, regulamentos, normas, pareceres, cartas me-morandos, diários pessoais, autobiografias, jornais, revistas, discursos,roteiros de programas de rádio e arquivos escolares, são relacionados(grifo meu). Esses últimos constituem acervos arquivísticos, contendodiversas espécies documentais, tais como as que encontrei no processode pesquisa: dossiês de alunos, esses de volume mais expressivo; livrosde atas de exames, de ocorrência, de fichas de matrícula, de estatísticade alunas, de notas, de ponto de professores, “Índice das alumnas exter-

17. Os acervos escolares foram os seguintes: os arquivos das escolas municipaisRivadávia Correa, Bento Ribeiro, Orsina da Fonseca e do Colégio Estadual Paulode Frontin.

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nas”; portarias; diários de classe; guias de remessa de documentos; fo-tografias; justificativas de faltas de professores; ofícios, cartas e memo-randos recebidos; atestados de freqüência de professores; relação alfa-bética de alunas; programas de aula de ginástica e canto orfeônico; fichasde pedidos de transferência de professores para outras escolas e de li-cença especial; declaração para exame de madureza; relação de pré-matrícula; Diário Oficial do Estado, esse em grande quantidade, comobem apontou Vidal.

Porém, essa documentação, não sem exceções, estava desorganiza-da e sujeita a toda sorte de destruição, principlamente a referente aoperíodo pesquisado em razão de o local de guarda ser inadequado. Essasituação dificultou muito a consulta, tornando-se muitas vezes um tra-balho penoso. Freqüentemente, temos de limpar e organizar a docu-mentação antes de começar a pesquisa sobre a temática, o que demandaum longo tempo.

Conforme o diagnóstico mencionado por Ribeiro (1992), os arqui-vos escolares geralmente são precários, cerca de dois terços dos espaçosonde estão guardados os documentos são inadequados, pois têm proble-mas de ventilação e iluminação, excesso de umidade, poeira etc. Conse-qüentemente, estão presentes na documentação poluentes atmosféricos,insetos, fungos, anóbios, traças, entre outros problemas detectados ecausadores do processo de destruição. Diz jocosamente Ribeiro: “Osinsetos, roedores e microorganismos, também se ‘interessam’ por estesarquivos, freqüentando-os muito” (p. 55). Em grande parte dos arqui-vos, o acondicionamento dos documentos é feito em pastas, envelopes,encadernados, caixas de papelão; mas, são também encontrados empi-lhados e sem nenhuma proteção. Em razão do quadro descrito dificil-mente encontrou-se um instrumento de pesquisa para recuperação dainformação/documento. O acesso aos documentos muitas vezes era fei-to pela memória dos funcionários responsáveis.

Pelo que pude constatar, o quadro não se alterou muito nesses anos.Encadernações com capas soltas, folhas acidificadas, rasgadas e cola-das são exemplos a serem trazidos, quanto à situação dos documentos.Em mais da metade dos arquivos, havia documentos sendo danificados,e por isso merecendo cuidados especiais; documentos em estado tão

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crítico que se tornaram irrecuperáveis até pelo processo de restaura-ção18, o que é lamentável. A falta de recursos financeiros e materiais, demão-de-obra especializada para o trato da documentação, provocando omanuseio inadequado, vem aliar-se aos fatores relacionados. Fica evi-dente que a forma de preservação19 e conservação20 da documentaçãopor parte das escolas podem constituir-se uma barreira no processo depesquisar em seus arquivos.

Quero registrar que em algumas escolas a documentação mais anti-ga estava, mesmo que de forma frágil, cuidada e identificada; pacotes,envelopes e caixas, trazendo datas-limite e tipo de documento, surgi-ram; em certos casos, a documentação mais recente estava bem organi-zada. Por ter valor probatório e, em conseqüência, ser consultada comcerta freqüência, a série documental dossiês de alunos, é um exemplo.

Realmente, foi um desafio vasculhar esses arquivos. Porém, pudeencontrar documentos pouco ou nada explorados, que ajudaram a pen-sar o meu objeto de estudo: a educação profissional feminina. Chamoatenção para o uso dos arquivos escolares como fontes para a história daeducação, da seguinte forma:

18. As ações de conservação preventiva são aconselhadas por serem mais econômicas,dando uma longevidade ao documento, evitando com isso uma intervenção maisradical como a restauração. Esse processo é muito mais caro e agressivo, fragilizandoo suporte de papel. Embora conceitualmente seja entendida como: “um conjuntode procedimentos que visa recuperar, o mais próximo possível, o estado original deuma obra ou documento” (Silva, 1998, p. 9).

19. Aqui destacamos o conceito de preservação trazido por Silva (1998): “[...] todaação que se destina a salvaguardar ou a recuperar as condições físicas e proporcio-nar permanência aos materiais dos suportes que contêm a informação. É o ‘guarda-chuva’, sob o qual se ‘abrigam’ a conservação, a restauração e a conservação pre-ventiva” (p. 9).

20. Tecnicamente conservação é entendida como “um conjunto de procedimentos quetem por objetivo melhorar o estado físico do suporte, aumentar sua permanência eprolongar-lhe a vida útil, possibilitando, desta forma, o seu acesso por parte dasgerações futuras”. Já conservação preventiva “abrange não só a melhoria das con-dições do meio ambiente nas áreas de guarda do acervo e nos meios de armazena-gem, como também cuidados com o acondicionamento e o uso adequado dos acer-vos, visando retardar a degradação dos materiais. É, pois, um tratamento de massa,feito em conjunto” (idem, ibidem).

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O arquivo de uma escola tem por finalidade armazenar a documentação deinteresse da escola que venha auxiliar a administração e o ensino, assim comopermitir o levantamento de dados para pesquisa educacional e histórica dainstituição e da comunidade na qual ela está inserida. [...] Esse tipo de acervoarquivístico representa um patrimônio documental, que integra a memóriada instituição escolar que o gera e é parte da memória educacional brasileira[Bonato, 2000, p. 45].

A falta de interesse pela preservação de acervos escolares e o en-tendimento de seu uso como fonte para a pesquisa é uma preocupaçãode vários educadores. Geralmente, como vimos, as escolas não têm comouma prioridade salvaguardar seus registros documentais, sendo esse umdado do contexto escolar que deve ser considerado e analisado pelospesquisadores da área de história da educação. As condições de acessoàs fontes, quando disponíveis, constituem-se uma barreira para a pes-quisa em história da educação; essa concepção pode ser verificada emLüdke e André (1986), Lopes (1992).

Em geral as escolas não mantêm registro de suas atividades, das expe-riências feitas e dos resultados obtidos. Quando existe algum material es-crito, ele é esparso e consequentemente pouco representativo do que sepassa no seu cotidiano. É evidente que esse fato também é um dado docontexto escolar e deve ser levado em conta quando se procura estudá-lo[Lüdke & André, p. 40]

Se por um lado, muitos querem livrar-se dos documentos, por outrolado, temos de louvar aqueles que a despeito das dificuldades como afalta de apoio oficial, recursos humanos, materiais e financeiros tentamproteger seus acervos da destruição e dão apoio à pesquisa científica. Seuma escola não me ofereceu nenhuma atenção, em outras – embora semuma estrutura própria para a pesquisa acadêmica como, por exemplo,condições de fotocopiar documentos no local por falta de equipamen-to – no arquivo havia um local destinado à pesquisa com mesa e cadeiraà disposição. Noutras, a reprodução dos documentos foi realizada commuita presteza pelos próprios funcionários, mediante a minha solicita-

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ção. Esses são dados significativos que merecem ser relatados.O diagnóstico do Pró-Documento detectou exemplos positivos como

o caso de um diretor de uma escola que, embora soubesse que os diáriosde classe devessem ser preservados durante cinco anos, orientou os fun-cionários da secretaria no sentido de mantê-los guardados por tempoindeterminado, pois os diários “contêm informações que comprovam otrabalho dos professores”. Outro caso exemplar, o de uma funcionáriaresponsável pelo arquivo que era identificada, inclusive por membrosdo corpo docente, como alguém que tem “mania de papel velho”. Se-gundo ela, sempre houve pressões, “felizmente não atendidas pela dire-ção, para a retirada dos documentos do arquivo e eliminação de partedeles” (Ribeiro, 1992, p. 55). É interessante destacar que em uma dasminhas instituições educativas a denominação “arquivo morto” foi su-primida por sua diretoria adotando-se “Arquivo Permanente do ColégioEstadual Paulo de Frontin”.

Apesar do exposto, fica evidente que o descarte documental aconte-ce de forma aleatória, assistemática, para desocupar espaço, sendo umaação dos próprios profissionais das escolas e, geralmente, sem uma orien-tação técnica, seja ela qual for. Problemas graves detectados pelo citadodiagnóstico, em relação aos arquivos escolares, foram: a eliminação in-discriminada de documentos por aqueles que deviam preservá-los e aperda por acidente ou negligência. Percebe-se que nem todas as escolassão receptivas à guarda e preservação da sua documentação, dependemuito da direção daquele momento. Acredito que se deva fazer um tra-balho de sensibilização com os profissionais de ensino sobre a impor-tância da preservação e uso dos documentos dos arquivos de suas esco-las, já que não temos ainda uma política eficaz de guarda e recolhimentodessa documentação, uma política arquivística oficial mais incisiva, queatenda ao clamor em torno da preservação desse tipo de acervo, comoacontece com os arquivos médicos21.

21. Entre os dias 31 de agosto e 2 de setembro de 2005, aconteceu no Arquivo Nacio-nal o “I Encontro de Arquivos Médicos: políticas, práticas e inovação”, com oobjetivo de “discutir aspectos relacionados às políticas e ações voltadas à gestão da

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Preservar significa conservar preventivamente a documentação, in-dependentemente do seu suporte. E, aqui, recuperamos novamente anecessidade do diálogo trazida por Vidal entre arquivistas, historiadoresda educação e informatas. Para esse diálogo, devem ser convidados tam-bém os profissionais da educação e os responsáveis pelas políticas pú-blicas de proteção ao patrimônio documental, tendo em vista os arqui-vos escolares.

Preservar não significa guardar tudo, mas “avaliar” a documentação, des-cartando o desnecessário e criando condições mínimas de sobrevivência dosuporte físico (materialidade) e da informação do documento. [...] A polêmi-ca me parece maior em torno dos princípios da conservação e do descarte e énesse sentido que o diálogo deve ser estabelecido prioritariamente [Vidal,2000, p. 39].

O que falta para os arquivos das escolas, quando existem, é umapolítica arquivística orientadora de sua preservação e organização. Vas-culhando o arquivo da Escola Rivadavia Correa, deparei-me com umdocumento que informava sobre a organização do arquivo daquela es-cola, na década de 70, sob a orientação de técnicos do Arquivo Nacio-nal. O que estou dizendo é que a arquivologia não se encontra presentenas escolas enquanto saber específico no trato da documentação esco-lar. Sem dúvida nenhuma que esse fato só reforça a necessidade do diá-logo proposto por Vidal, pois isso implica também no olhar sobre aformação do profissional arquivista, do pedagogo e dos professores.Como professora dos cursos de graduação em pedagogia22 e emarquivologia23, dificilmente encontrei um aluno querendo fazer suamonografia de final de curso tendo como tema os arquivos escolares.

informação e da documentação no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).” Oevento foi promovido pelo Conselho Nacional de Arquivos (CONARq), o Ministérioda Saúde, a Fundação Osvaldo Cruz e o Instituto de Cardiologia de Laranjeiras.

22. Desde 1995.23. Desde 1997.

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Uma parceria necessária

O fato é que essa quantidade de documentos que pode de formasistematizada ser posta à disposição da comunidade acadêmica para oaprofundamento de estudos e pesquisas está em processo deterioração,em condições de guarda que dificulta seu manuseio e acesso tanto parao pesquisador externo quanto para a própria administração das escolas.Já que não há ainda uma política efetiva e oficial de gestão24 e recolhi-mento25 dessa documentação nas esferas de poder, tampouco um centroda educação para abrigá-la, algumas ações têm que ser tomadas. É fatoinquestionável, a necessidade de sensibilizar autoridades e dirigentesdas instituições educativas em torno da preservação dos arquivos esco-lares, assim como, envolver arquivistas, informatas e historiadores daeducação na discussão. Mas, fazer um trabalho educativo envolvendoalunos e professores e toda a comunidade escolar na questão, é tambémuma outra iniciativa que deve ser tomada para tentar-se resolver as ques-tões postas neste texto.

Na área acadêmica, iniciativa como a do Núcleo Interdisciplinarde Estudos e Pesquisas em História da Educação da Faculdade de Edu-cação da Universidade de São Paulo (NIEPHE/FEUSP), que realizou noperíodo de 26 a 28 de julho o I Encontro de Arquivos Escolares e Mu-seus Escolares, merece aplausos. O encontro teve como objetivo “reu-nir as investigações e os trabalhos realizados e em andamento de formaa propiciar um espaço para trocas de experiência e reflexão teórico-metodológica”, referente ao trato da documentação desse tipo de acer-vo, como explicitado em sua chamada para participação no evento.

24. Gestão de documentos: “Aplicação de princípios de economia e eficácia na cria-ção, manutenção e uso de documentos, além de sua eliminação. Tem como objeti-vo obter uma documentação que reflita, da maneira mais completa possível, tantoas políticas quanto as rotinas dos órgãos; visa, ainda, ao aperfeiçoamento e à sim-plificação de todo o ciclo documental, desde sua criação até a destinação final.”(Brasil, 1986)

25. No Dicionário de terminologia arquivística, encontramos a seguinte definição téc-nica de recolhimento: “Passagem de documentos do arquivo intermediário para oarquivo permanente” (1996, p. 64) .

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Um outro caminho possível é que se estabeleça efetivamente umtrabalho de parceria entre arquivo-escola/escola-arquivo. É sabido queo potencial didático-pedagógico do patrimônio documental contido nasinstituições arquivísticas vem sendo pouco explorado pelas instituiçõesescolares. Para Bellotto:

No que concerne aos serviços de assistência educativa, o papel dos arquivostem sido pouco explorado entre nós, embora a pedagogia brasileira venha sen-do renovadora e progressista. Porém, nos modernos métodos didáticos nãoforam incluídos os usos possíveis da documentação de arquivo [1991, p. 150].

Se por um lado, as escolas não estão indo aos arquivos, por outronão há, por parte dos arquivistas, um número significativo de projetosoficiais de assistência educativa a escolares. Ainda é a própria Bellottoquem nos impulsiona a pensar sobre a questão de que “a abertura dosarquivos públicos a um novo público – o escolar, o dos alunos – podetrazer benefícios didáticos surpreendentes” (idem, ibidem); destacamosalguns exemplos dessa parceria. Buscando dar visibilidade à sua funçãosocioeducativa, o Arquivo Nacional do Canadá, desenvolveu algunsprojetos com estudantes de escolas públicas daquele país, visando a va-lorização dos arquivos por parte de estudantes e professores, através doensino de história. A importância e, na verdade, a existência do docu-mento arquivístico era demonstrada, por exemplo, trabalhando-se te-mas referentes à história local; os documentos surgiam como pedrasfundamentais para a aula (Blais & Enns, 1989/1990, p. 62). Nessa linhade ação, no nosso Arquivo Nacional, temos a Revista do estudante: ahistória através dos documentos: publicação para colaborar com o ensi-no da história do Brasil. Em sua apresentação, dizem os organizadores:“Queremos também colaborar com o ensino da história do Brasil nasala de aula. Por isso, escolhemos uma série de documentos para contaralguns momentos da história de nosso país” (2002, p. 3).

Outras instituições de memória, em um momento ou outro, tambémjá desenvolveram projetos trazendo o estudante do ensino fundamentalpara o arquivo, como a Fundação Casa de Rui Barbosa, o Arquivo Geralda Cidade do Rio de Janeiro. O projeto “O Arquivo vai à escola”, por

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exemplo, do Arquivo Público do Distrito Federal, teve como objetivo:“capacitar os professores da rede pública de ensino na utilização de do-cumentos de arquivo no processo ensino-aprendizagem”; e, ainda, “di-vulgar, entre professores e estudantes, a importância dos arquivos nãosó como fonte para a história, mas também como instrumento para aconstrução da cidadania”. Tendo como eixo central “A ocupação do es-paço no Distrito Federal”, a dinâmica de trabalho constituía-se da se-guinte forma: a cada encontro utilizava-se um suporte documental dife-rente que abordasse o tema. Fotografias, documentos textuais,depoimentos orais e filmes do acervo do Arquivo Público do DistritoFederal foram trazidos e discutidos à luz de textos teóricos. No final decada encontro, era dado aos participantes um exercício elaborado a par-tir dos documentos explorados no dia. O curso teve ação multiplicadora;assim, ao seu término, os professores participantes apresentaram traba-lhos para os colegas de suas regionais mostrando as diferentes formasde utilizar-se documentos de arquivo em sala de aula26.

Acredito que isso possa também ser feito com documentos do pró-prio arquivo da escola, visando que se perceba a importância da docu-mentação produzida e acumulada por ela, não apenas no concernente à ne-cessidade administrativa, mas também, no seu caráter histórico-cultural.Se o estudante e o professor, referências da comunidade escolar, perce-berem a importância dessa documentação como memória da escola, pro-vavelmente ajudarão na sua preservação e compreenderão a importân-cia da gestão documental e da implantação do “arquivo permanente”,dentro das condições existentes.

Os arquivos escolares devem ser otimizados dentro da própria esco-la através de projetos com a participação de todos. Pode ser um exem-plo, a exposição realizada pelo Colégio Paulo de Frontin. Intitulada “80anos de memória”, foi organizada a partir do próprio acervo do colégio,do grêmio estudantil, do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.Contou com a participação da direção, professores e alunos e a colabo-ração de ex-alunos e alunas, conforme o cartaz de sua divulgação. A

26. Conforme o Boletim Informativo do Arquivo Público do Distrito Federal.

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exposição, realizada em 1999, foi uma demonstração de que o colégio,pelo menos com aquela diretoria, se preocupava em preservar sua histó-ria, apesar das dificuldades.

Ainda com Ribeiro, os arquivos escolares também podem ser usa-dos no processo ensino-aprendizagem, nas aulas de várias disciplinas,para conhecer-se a realidade local onde a escola se situa, as ruas, o bair-ro, as famílias. Através dos dossiês de alunos, pode-se estudar a origemfamiliar, traçar o perfil dos alunos e suas modificações ao longo do tem-po; dos álbuns fotográficos pode-se extrair as diferenças das indumen-tárias, os uniformes, visualizar práticas e elementos próprios da culturaescolar em determinado momento; apenas para citar algumas possibili-dades de uso dessa documentação pela própria escola, pelo aluno, peloprofessor. Provas, programas e relatórios podem nos proporcionar umareflexão sobre as atividades pedagógicas desenvolvidas ao longo do tem-po, suas modificações e seus motivos. Para o autor:

O colégio que cria o seu museu, que envolve os seus alunos na organiza-ção de exposição, na coleta de depoimentos das pessoas mais velhos ou que,utopia possível, organiza o seu arquivo, pondo-o à disposição da comunida-de em geral e da comunidade escolar em particular, este colégio está de fatocontribuindo para a consolidação de valores essenciais para a formação dacidadania [1992, p. 63].

E segue, com seu pensamento, fazendo-nos a significante indaga-ção, transcrita a seguir, que nos leva à reflexão:

De outra parte, os alunos que aprendem a cuidar e a preservar tudo o que,material ou imaterial diz respeito a sua vida escolar ou não, como alguns dosseus livros e cadernos mais importantes, suas agendas, algumas redações eprovas, não estará incorporando hábitos decisivos para a formação da sua per-sonalidade e, desta forma, cultivando valores significativos da sua história devida que a maioria de nós não aprendeu, na escola, a valorizar? [idem, ibidem].

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Considerações finais

Esse texto é apenas uma contribuição que se abre à discussão. Peloexposto, fica evidente que devemos lutar pela preservação e organiza-ção dos arquivos escolares, tendo em vista a sua função social e cientí-fica. Mas, quero registrar que, pela minha experiência com arquivos aolongo de vários anos27, a situação apresentada não é exclusiva desse tipode acervo.

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Endereço para correspondênciaNailda Marinho da Costa Bonato

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,Centro de Ciências Humanas e Sociais,

Departamento de Estudos e Processos Arquivísticos.Av. Pasteur, nº 458, sala 408 – Urca

Rio de Janeiro-RJCEP: 22290-240

[email protected]

Recebido em: 1 set. 2005Aprovado em: 10 dez. 2005

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Resenha

História das disciplinas escolares no Brasil:contribuições para o debate

autor Marcus A. Taborda deOliveira. Serlei M.Fischer Ranzi (orgs.)

cidade Bragança Paulistaeditora EDUSF

ano 1999

Com quantos e quais elementos se faz uma história das discipli-nas escolares? Configurações de um campo de pesquisa, orientaçõesteórico-metodológicas, leis, regulamentos, currículos, programas, li-vros didáticos, métodos, impressos, memória, sujeitos evidenciandoo vivido, o produzido. São alguns dos elementos que se unem, seacomodam nesse amálgama ainda em formação, nessa nova orienta-ção de pesquisa dentro da história da educação. Tais elementos emer-gem à superfície pelos nove artigos que compõem o livro Históriadas disciplinas escolares no Brasil: contribuições para o debate, or-ganizado por Marcus Aurelio Taborda de Oliveira e Serlei MariaFischer Ranzi. Constituindo-se um suporte para os artigos subseqüen-tes, o texto de Circe Maria F. Bittencourt propõe-se, em uma primeiraabordagem, a dar conta do processo de configuração do campo depesquisa sobre disciplinas escolares. Conforme a autora, o crescimentodos estudos que tomam as disciplinas como objeto de investigaçãoevidencia-se nos anos de 1970 e 1980, em um momento em que sepassa a repensar o papel da escola em suas especificidades e comoespaço de produção de saber e não como mero lugar de reprodução deconhecimentos expostos externamente. Que fator então teria levado adirecionar o foco das análises para a escola, isto é, considerá-la pontode partida para reflexões? Considera-se aí que massificação do ensi-no teria levado a escola a viver um momento de crise no que tange àdefinição do seu papel.

A escola, a partir de então, recebendo um público heterogêneo,uma vez pensada e criada pela e para a elite, precisava, conseqüente-

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mente, tomar uma nova direção. É sintomático, portanto, segundoCirce Bittencourt, querer apreender e compreender os novos temposda escola em uma dimensão histórica. Questões de permanências ede rupturas, principalmente em relação aos currículos, são, nessecontexto, erigidas. Logo, as disciplinas escolares tornam-se objetode interesse dos pesquisadores, na tentativa de compreender ou jus-tificar o papel de cada uma delas nesse processo de reorganizaçãopelo qual passava a escola. Diante desse quadro a autora vislumbrao surgimento de pesquisas em vários países concomitantemente. Emum segundo momento do artigo, ela aborda a diversidade de enfoquesno tratamento das disciplinas escolares, tendo em vista as diferentesconcepções dos autores a esse respeito. Nesse sentido, destacam-se,principalmente, as propostas por Yves Chevallard. Esse autor con-cebe a disciplina escolar unilateralmente, como mera transposiçãodidática do saber científico, o que confere à didática o objetivo fun-damental de criar formas de transpor o conhecimento de modo queevite a distância entre o saber erudito e o que será ensinado. Contra-pondo fortemente essa visão, encontram-se as concepções defendi-das por André Chervel e Dominique Julia, os quais concebem a escolacomo lugar de produção de cultura, a saber, uma cultura escolar.

Trazer à tona a experiência, as apropriações feitas pelo sujeitoescolar, para construir, assim, uma história das disciplinas de deter-minada instituição escolar tem sido um dos objetivos comuns, alme-jados pelos pesquisadores. Tal objetivo seria comum se esse sujeitonão fosse Descartes, dando-nos o seu parecer, ou melhor, apresen-tando suas críticas sobre os saberes ensinados no Colégio De LaFlèche, uma das mais importantes escolas da Europa da qual ele eraaluno. Eis, pois, uma das propostas do artigo de Kazumi Munakata,cuja fonte para a investigação é um relato autobiográfico do sujeito-aluno, no caso Descartes. Assim, Munakata inicia a análise das dis-ciplinas escolares do Colégio De La Flèche, dentre as quais merecemdestaque: as línguas, a eloqüência e a poesia, as matemáticas, a teo-logia, a filosofia, a jurisprudência, a medicina e as outras ciências. Otexto desdobra-se em seguida em uma análise do percurso dos saberesna França, da forma como se configuram e se (re)configuram histori-camente. Ao concluir o texto, o autor sugere que, nas tentativas derupturas ou permanências do currículo vigente, é necessário que seleve em conta o modo histórico pelo qual ele se estabelecera.

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Fornecendo uma análise mais descritiva, Alcione Luís P. Carva-lho objetiva verificar a influência de um sistema teórico – a teoria dociclo gegráfico – elaborada por Willian Morris Davis, na Geografiaescolar brasileira, pelo viés dos manuais de metodologia de ensinode geográfico. A propósito, chama a atenção do leitor, no desdobra-mento do título “O irresistível apelo pedagógico da teoria do ciclogeográfico o uso do adjetivo irresistível”. Nessa frase, ele remete àidéia de apropriação, de uma aceitação por parte de quem foi dada aocasião de uma relação com tal teoria. Nesse caso, seriam os sujei-tos escolares, professores e alunos, sobretudo, a quem os manuaisdidáticos se destinam. Entretanto, aprofundando a interpretação,verifica-se que a expectativa criada pelo uso dessa palavra não érespondida ao longo do trabalho. Na verdade, trata-se de uma inves-tigação unilateral, ou seja, o autor estuda apenas dos conteúdos doslivros, o que, aliás, ele apresenta claramente como o objetivo do seuestudo. Afinal, quem não resistiria, então, ao apelo da teoria? Nãoteria o autor, talvez, deixado escapar a sua apropriação da teoria emquestão? Ao concluir que o sistema teórico de Davis teve influênciadecisiva e predominante na disciplina acadêmica geomorfologia pormeio dos manuais de ensino, o autor fornece pistas claras da suaconcepção unilateral de disciplina escolar, ou seja, apenas como umatransposição didática de conteúdos.

Em contrapartida, a análise das reformas curriculares e criaçãode novas disciplinas escolares aproxima o estudioso da fala de ViñaoFrago1 quando ele diz que as disciplinas escolares são espaços depoder, de um poder a ser disputado. Mas a quem é delegado o poderde incluir ou retirar disciplinas de um currículo escolar? Ainda so-bre esse tema, trazendo para o debate o ensino das disciplinas dehumanidades, Maria do Carmo Martins analisa as mudanças opera-das no currículo escolar pela ditadura militar brasileira (1964-1985)que substituiu as tradicionais disciplinas história e geografia pres-crevendo aquelas de estudos sociais (ES), educação moral cívica(EMC) e organização social e política brasileira. O fato é que, dadoo caráter epistemológico e científico de tais disciplinas, elas não en-

1. VIÑAO FRAGO, A. Historia de la educación e historia cultural: possibilida-des, problemas, cuestiones. Revista Brasileira de Educação, São Paulo: ANPED,1995.

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contram respaldo na comunidade acadêmica do país, e, conseqüen-temente, não chegam a se configurar como disciplinas acadêmicas etornaram-se, na realidade, áreas de formação de professores, estabe-lecendo-se em forma de licenciaturas curtas. Analisar historicamen-te currículos escolares permite, conforme a autora, vislumbrar: aconfiguração dos saberes escolares no momento de sua proposição,os diferentes sujeitos envolvidos no processo, os jogos de interessee as relações de poder que são estabelecidas. Nesse sentido, a cria-ção de novas disciplinas pela ditadura militar brasileira deverá serentendida, além de vinculada aos objetivos de ensino, também vol-tada para a formação profissional em caráter acelerado, o que viria ademonstrar o esforço de modernização que as elites políticas e cul-turais do país desejavam implantar no período.

Até que ponto uma norma legal, que estabelece novos parâmetrosde ensino, poderá alterar as práticas dos professores e prenunciarum novo estatuto para uma disciplina escolar? Valendo-se do depoi-mento de professores, Marcos Aurelio Taborda de Oliveira realizaum estudo sobre a redefinição de parâmetros para a prática escolarde educação física, após a criação de uma norma que orienta novospadrões de referência de alcance nacional, realizando, porém, umrecorte de espaço e tempo bem específicos, a saber, a rede municipalde ensino de Curitiba, entre o início dos anos de 1970 e o início dosanos de 1980. Ao analisar o conteúdo do novo programa e as práti-cas dos professores, o autor direciona o foco para a questão das rup-turas e continuidades no funcionamento da educação física comodisciplina escolar. Analisando, pois, o programa oficial, Taborda deOliveira verifica que o discurso idealizador de assepsia social, desaúde, de uma sociedade moralmente higienizada significava reto-mada do que já estava estabelecido. Porém, uma nova forma dehigienismo evidenciava-se, manifestada, agora, pelo viés das práti-cas esportivas como higienadoras. O autor adverte, contudo, que,analisando o programa oficial, não seria prudente delimitar o velhoe o novo higienismo, pois existiria mais uma linha de continuidade.Em contrapartida, percebe-se claramente que a criação dos novosparâmetros significou uma linha divisória, não só para uma(re)configuração da disciplina escolar de educação física, como tam-bém para uma afirmação profissional dos professores. Uma disci-plina que antes funcionava em caráter de improvisação conquista

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então um novo lugar dentro da instituição escolar, ascendendo tam-bém, e por isso, a corporação de professores a um novo estatutoprofissional. O que o autor procura enfatizar em suas análises é ofato de os professores terem-se constituído como sujeitos ativos edeterminantes de todas essas transformações. O processo de mu-danças não aconteceu à revelia, para eles; mas, a partir deles, comeles e de acordo com as expectativas deles. Diante de todas essasconsiderações, cabe reconhecer aqui – mesmo que parcialmente, poisa proposta oficial é externa à escola – a aplicação do conceito deAndré Chervel2, quando ele afirma que as disciplinas escolares seformam no interior da escola, pelas ações dos agentes que dela fa-zem parte, confirmando, portanto, uma cultura escolar.

Trazendo para o debate as etapas históricas da matemática comoum saber escolar no Brasil, desde os tempos dos colégios da Com-panhia de Jesus até a década de 1960, Wagner Rodrigues Valentemarca sua presença na história das disciplinas escolares. Primeira-mente, faz-se necessário problematizar se era intenção do autor, aousar o termo etapas históricas, direcionar o leitor para os momentosdeterminantes da matemática como saber escolar, ou para uma aná-lise histórica dos momentos determinantes. Na realidade, o leitor éconduzido por esses dois norteamentos.

Com efeito, iniciando pelo Brasil colônia, o autor, em meio aentrelaçamento de vozes, localiza a matemática dentro da obra pe-dagógica jesuítica, a qual se orientava para uma educação humanistaclássica. Naquele quadro, no qual imperava a formação de culturageral, a matemática, quando ensinada, prestava-se a uma funçãoespeculativa, sendo reorientada posteriormente para um saber técni-co de formação de militares para a defesa da colônia. Segundo oautor, ocorreu naquele período a elaboração dos dois primeiros li-vros de matemática do Brasil, o que vinculou, a partir daí, o ensinode matemática aos livros didáticos. Uma mudança de status da dis-ciplina ocorreu no pós-independência, quando planejavam criar uni-versidades no país, e a matemática veio a se integrar em uma culturaescolar clássico-literária, ocorrendo, portanto, uma valorização dasciências no currículo escolar.

2. CHERVEL, A. A história das disciplinas escolares: reflexões sobre um campode pesquisa. Teoria e Educação, Porto Alegre, 1990.

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A propósito, um dado importante que concorre para reforçar oconceito de cultura escolar é a ação de um agente escolar. Nessecaso, Valente destaca a influência do professor de matemática RajaGabaglia, do Colégio Pedro II, no processo de consolidação da ma-temática como disciplina escolar. Em seguida, situando a matemáti-ca a partir das reformas educacionais Francisco Campos e Capanema,o autor deixa aberto um convite à investigação sobre o impacto doMovimento da Matemática Moderna no quotidiano escolar brasileiro.

As dificuldades, de acordo com Dominique Julia3, no fazer deuma história das disciplinas escolares, “reside em que se deve man-ter juntos todos os fios dessa história sem abandonar nenhum de-les”. Essas dificuldades parecem, no entanto, ser bem superadas pelapesquisadora Deise C. L. Picanço, quando se propõe a realizar umestudo sobre o espanhol como disciplina escolar no Paraná. Paracompor a sua pesquisa, apela para fontes tais como: legislações,editais, currículos, programas, livros didáticos, jornais, revistas, de-poimento de sujeitos envolvidos “pessoal ou profissionalmente como ensino de espanhol”. No trato dessas fontes, entrelaçam-se vozescomo as de Viñao Frago, Bakhtin, Roger Chartier, entre outras. Pos-to isso, ao analisar, historicamente, a configuração do espanhol comodisciplina escolar, a autora apresenta, inicialmente, um breve pano-rama sobre o ensino de línguas no Brasil, situando nesse contextocomo os fatores políticos e econômicos contribuíram para as conti-nuidades e as rupturas do espanhol como saber escolar. À guisa deexemplo, a criação, nos anos de 1990, do bloco econômico MercadoComum do Sul (MERCOSUL), que determinou o ingresso do espanholem várias escolas públicas e particulares, consolidando-o, então,como uma disciplina escolar. Questões de rupturas, também aponta-das nos métodos de ensino de línguas (verifica-se um diálogo esta-belecido com a lingüística), são construídas a partir das apropriaçõesfeitas pelos sujeitos escolares. Ao realizar esse procedimento na cons-trução de seus estudos a autora fornece pistas sobre a sua orientaçãoinvestigativa.

3. JULIA, D. Disciplinas escolares: objetivos, ensino e apropriação. In: LOPES,A. C. (org.). Disciplinas e integração curricular: histórias e políticas. Rio deJaneiro: DP&A, 2002.

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Com a proposta de delinear o percurso da física na perspectivados livros didáticos utilizados no Brasil, Wagner Wuo empenhou-se em traçar, primeiro e brevemente, a história das ciências, oumelhor, daquilo que identificamos hoje, segundo o autor, como ciên-cia natural, remontando às origens, ou seja, às especulações dosfilósofos gregos. O autor aponta os séculos XVI e XVII como osperíodos nos quais se estabeleceu a noção de ciência tal qual a iden-tificamos hoje. Nessa época, foram assentados os fundamentos con-ceituais, metodológicos e institucionais da ciência moderna,considerando, principalmente, as elaborações de Galileu, Descar-tes, Newton e Leibniz. Estes dois últimos foram os responsáveispelo extraordinário impulso da física como ciência. Centrando-seno seu objetivo de analisar os livros didáticos, o autor preocupou-se com a forma segundo a qual os diferentes conteúdos da física –como trabalho, força, inércia etc. – são aí tratados. Refere-se oautor a proximidades e/ou distâncias do tratamento da física, com osaber científico, não omitindo, contudo, a aplicação dos manuaisde ensino no plano escolar. Para essa aplicação é colocada em evi-dência, de um lado, a importância da apresentação do conteúdo comoum facilitador da atividade pedagógica, e, do outro, a dinâmica doprofessor, a sua apropriação do conteúdo como o fator determinan-te no processo ensino-aprendizagem.

Por fim, ao desenvolver um estudo sobre a constituição, organi-zação e finalidade da disciplina escolar história no Paraná nas trêsúltimas décadas do século XX, balizada pelas questões o que ensi-nar, como ensinar, e para quem ensinar, na perspectiva do profes-sor, as pesquisadoras Serlei M. F. Ranzi e Cleusa M. Fuckner remetemo estudioso imediatamente à idéia de um saber escolar sempre emconstrução. As autoras inferem que os professores são portadoresdiferentes representações dos professores sobre a disciplina histó-ria: existem aqueles que trabalham a história com múltiplas visõessobre o passado e outros que, na direção da concepção tradicional,pensam que a disciplina deve estudar a evolução da humanidade.Direcionando o estudo para a plasticidade da prática dos professo-res, ou seja, como eles se apropriam diferentemente de uma propos-ta pedagógica oficial, e para a hipótese da existência de tensão econflito entre o que é formalmente proposto e os agentes chamadosa cumprir a norma, no caso, os professores, as autoras direcionam os

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pesquisadores, subliminarmente, é claro, para os conceitos de estra-tégia e tática, definidos por Michel de Certeau4. Segundo esse autoras estratégias – nesse caso, as formalidades – seriam elaboradas poraqueles que detêm o poder, para fazer perpetuar esse poder; e astáticas, as ações de sobrevivência dos agentes chamados a obede-cer, “os diferentes modos de fazer” com essas formalidades.

Concluindo, se a intenção dos organizadores desses estudos so-bre a história das disciplinas escolares era fornecer subsídios para odebate, deve-se assinalar que a publicação desses artigos – uns maishorizontais e descritivos, outros verticalizando em suas análises edialogando com conceitos da pesquisa histórica – ultrapassam oobjetivo pretendido contribuindo para estabelecer e fortalecer a pers-pectiva de investigação que se quer fazer presente.

Rita Cristina Lima LagesMestranda em educação

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

4. CERTEAU, M. de. A invenção do quotidiano. São Paulo: Vozes, 1994.

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