40

Revista Cidadania

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Revista Cidadania

Citation preview

Page 1: Revista Cidadania
Page 2: Revista Cidadania
Page 3: Revista Cidadania

Aprovada aLei da reforma

psiquiátrica

O deputado Paulo Delgado atribuiu aoMovimento Nacional da Luta Antimanicomial a ra-zão da vitória da Lei Nº 10.216 no CongressoNacional. Organização não governamental queatua a favor da reforma psiquiátrica brasileira hámais de 20 anos, não deu sossego aos deputadosfederais e aos senadores brasileiros nos últimos 12anos. Pressionando o Ministério da Saúde, o Con-gresso Nacional e os hospitais psiquiátricos, a lutaantimanicomial “desconstruiu a lógica da internaçãono senso comum brasileiro e preparou a sociedadepara receber as pessoas com transtornos mentaiscomo cidadão com direitos”. Na aprovação da Leino Congresso Nacio-nal, o deputado PauloDelgado homenageouo Movimento da LutaAntimanicomial comoos verdadeiros auto-res da lei sancionadae concluiu: “Consegui-mos menos do quepretendia o projetooriginal, porém, maisdo que supunha a in-dústria da loucura queexplora pacientes emmanicômios.”

Campanha

Mundial da OMS

“Movimento Nacional daLuta Antimanicomial

é o grande vitorioso”Paulo Delgado

1

Índice

Abaixo a barbárie 2

Em defesa da saúde 4

O desafio da reforma 5

1934 / 2001 13

Asilo à razão 14

Cronicário de mandarins 15

Mundo dos loucos 16

Pacientes Psiquiátricos 17

Lei determina dignidadea paciente mental 18

De Pinel a Paulo Delgado 21

Pró-cidadania 23

Cooperativas sociais 24

Derrubamos a lei de ferroda doença mental 25

No litoral do vasto mundo 27

Lei nº 10.216 33

As leis e os costumesvos concedem o direitode medir o espírito 35

Verdades e mentirasem saúde mental 36

Page 4: Revista Cidadania

2

Corpos estendidos nochão frio de cimento. Amontoa-dos. Rostos descarnados, en-velhecidos, embotados. Olha-res vazios. Memórias e consci-ências ausentes, perdidas emalgum recanto obscuro da men-te. Restos humanos. Apenasvestígios. As imagens chocan-tes de pacientes psiquiátricosflagrados em pleno abandononos pavilhões, corredores equartos de manicômios brasi-leiros estarreceram o país nasdécadas de 70 e 80, quando aimprensa começou a revelar abarbaridade por trás dos mu-ros daquelas solenes institui-ções.

Corpos e almas mutila-dos por um “tratamento” base-ado na corrupção violenta daafetividade, da personalidade,da identidade e da saúde físicados internos. Choques elétri-cos, sedação, camisas-de-for-ça, overdose de antipsico-trópicos de efeitosirreversíveis,

encarceramento, abusos. Ohorror, comparável, mantidasas proporções, a um cenáriode holocausto, denunciou averdade sobre os “campos deconcentração” brasileiros. Ehavia mais: as internações si-lenciosas, noturnas, verdadei-ros seqüestros que confinavamos indesejados, os inconveni-entes, os diferentes, os miserá-veis, sem qualquer direito dedefesa. Uma vez no interior dasmuralhas, vidas esquecidas,desprezadas. Nenhuma espe-rança.

Mas agora pode-se di-zer: nunca mais as fortalezas.Abaixo os muros, as celas, oclaustro. Com a aprovação e asanção da lei da reforma psi-quiátrica, de autoria do depu-tado federal Paulo Delgado(PT-MG), o atendimento àspessoas vítimas de sofrimentopsíquico passa a ser emregime

aberto, privilegiando areinserção social do doente.Foram 12 anos de muita polê-mica e debates. Finalmente, ummodelo de tratamento digno dosnovos tempos, com a mentali-dade solidária e sem precon-ceitos que deve prevalecer noséculo XXI. Cai uma instituiçãodo século XVIII!

O véu sobre a violênciainstitucionalizada começou a serdescortinado com o movimentode luta antimanicomial, que, nofinal da década de 80, levan-tou a discussão sobre a impos-sibilidade de recuperação numambiente de exclusão e violên-cia. A organização do movi-mento ecoava a mobilizaçãoque, no auge dos terremotossociais que marcaram os anos60 e 70, na Europa e nos Esta-dos Unidos, levou a mudançasno sistema de atendimento psi-

quiátrico nos paísesdo primeiro mundo,como Itália e Ingla-terra.

Em MinasGerais, a realiza-ção do III Con-gresso Mineirode Psiquiatria,em 1979, trou-xe à tona de-núncias de vi-olência nasinstituiçõesmanicomi-

Abaixo a barbárie!

Page 5: Revista Cidadania

“Uma coisa écerta: finalmente

tem-se a esperançae os meios de secolocar um pontofinal às fábricas de

loucura.”

ais do Estado, reforçadas pelaspresenças de Franco Basaglia,o autor da reforma psiquiátricada Itália, e de Focault e Castel.Em 1987, foi realizada a I Confe-rência Nacional de Saúde Men-tal, que discutiu novas políticasassistenciais e a necessidade deuma nova legislação psiquiátricano Brasil. Nesse mesmo ano, noEncontro de Bauru, trabalhado-res de saúde mental propuse-ram princípios teóricos e éticosde assistência e lançaram o lema“Por uma sociedade sem mani-cômios”. Nesse encontro tambémfoi estabelecido o 18 de maiocomo o Dia Nacional da LutaAntimanicomial.

Pouco depois, em setem-bro de 1989, o deputado federalPaulo Delgado transformava-seno catalisador das discussões domovimento, ao apresentar o pro-jeto 3657, de reforma psiquiátri-ca, que previa a extinção dosmanicômios e a desospitalizaçãoprogressiva dos portadores detranstornos mentais. Não foi umaluta fácil. Desconstruir todo um sis-tema vetusto, antiquado,alicerçado sobre uma psiquiatriaultrapassada e sobre uma socie-dade preconceituosa, foi o mes-mo que travar uma batalha he-róica de um Davi contra Golias,de um Quixote contra os moinhosda indústria da loucura.

O projeto ficou sob o fogocruzado entre os que o apoia-vam e os que o criticavam. Médi-cos se pronunciaram contra a“idéia absurda” de abrir as por-

tas dos hospícios. Paulo Delga-do e os líderes da luta antimani-comial foram acusados de tesesantipsiquiátricas e esquerdistasque “desprezam os componen-tes biológicos da doença men-tal”. O lobby dos hospitais tentouimpedir a aprovação do projeto.Porta-vozes do catastrofismo cor-reram a proclamar o perigo dese abrir os portões dos hospíciose lançar os loucos às ruas - umaameaça para a sociedade!

Mas a polêmica teve omérito de provocar uma discus-são ampla da proposta entre osdiferentes segmentos interessa-dos, além de despertar a socie-dade para um caminho sem vol-ta, irreversível. O projeto foi dis-cutido em todos os detalhes, e asdúvidas, esclarecidas. Muitas

senso. Antes mesmo que a pro-posta de lei federal fosse aprova-da, vários estados brasileiros ins-piraram-se nos princípios do pro-jeto e realizaram suas própriasreformas.

A sanção da lei, no entan-to, é apenas o primeiro - grandee decisivo - passo rumo àhumanização da assistência aoportador de sofrimento mental, e,marca o ingresso da sociedadeem um processo que também temseus próprios desafios. Pois épreciso construir toda uma estru-tura e uma mentalidade queviabilize o novo modelo, atravésde organismos de atendimentopsiquiátrico nos hospitais geraise nos postos comunitários de saú-de, e da criação de núcleos ecentros, além de planos de aten-ção às famílias dos pacientes.

Uma coisa é certa: final-mente tem-se a esperança e osmeios de se colocar um ponto fi-nal às fábricas de loucura. Oshospitais psiquiátricos e os mani-cômios começam a ser um tristecapítulo do passado na históriada psiquiatria. Uma página quedeve ser virada, mas nunca es-quecida, para que não se repi-tam os erros. Que as vítimas daviolência, do abandono, do silên-cio e dos abusos cometidos emnome da “sanidade” extra-mu-ros não tenham sucumbido emvão. Que as celas-fortes e as ca-misas-de-força sejam, para sem-pre, peças de um lamentável, me-lancólico mas educativo museu,o museu da barbárie.

vozes se levantaram para apoi-ar a proposta: entidades dos pro-fissionais da área, usuários, fami-liares, vítimas. Venceu o bom

3

Page 6: Revista Cidadania

4

Professor e sociólogopela UFJF, com mestrado emCiência Política pela UFMG,Paulo Delgado é deputado fe-deral pelo PT de Minas Geraishá quatro legislaturas. Membroda Comissão de Relações Ex-teriores e Defesa Nacional, évice-líder do Partido na Câma-ra.Autor da Lei 10.216, a lei dareforma psiquiátrica, e defensorde políticas de inclusão social, étambém autor da Lei das Coo-perativas Sociais, que visa aintegração ao mercado de tra-balho de pessoas em desvan-tagem. Membro fundador doInstituto Franco Basaglia, doRio de Janeiro. Paulo Delgadorecebeu, em 1999, o prêmio “PI”do Ministério da Saúde e do Ins-tituto de Psiquiatria da UFRJ. Em2000, recebeu dos Conselhosde Psicologia do Brasil o TroféuPaulo Freire de CompromissoSocial pela sua luta em prol dadiminuição do sofrimento huma-no. “Paulo Delgado” é o nomede uma Associação de Usuári-os, Familiares e Profissionais daÁrea de Saúde Mental deTaubaté, SP. Como paraninfo epatrono, é nome de diversas tur-mas de formandos da área desaúde da universidade brasilei-ra. Paulo Delgado representoua Câmara dos Deputados emConferências Internacionais deSaúde e Direitos Humanos eparticipou de congressos e se-minários sobre reforma psiquiá-trica e política nacional de saúdemental.

Projeto 3657, de 12 de setembro de 1989, que dispõesobre a extinção progressiva dos manicômios...“Reestruturação da Atenção Psiquiátrica na AméricaLatina” - Caracas, Venezuela, 1990“I Conferência Internacional das Associações de Fa-miliares e Usuários dos Serviços de Saúde Mental” -Roma, Itália, 1991“A democratização em Rio Negro - Saúde Mental” -Argentina, outubro de 1992“Encontro Nacional de Psicologia Social” - Itajaí, San-ta Catarina, 1993Paraninfo de todas as turmas de formandos da Universi-dade Federal de Viçosa, 1994“XIV Congresso Brasileiro de Psiquiatria e VIII Con-gresso Mineiro de Psiquiatria” - Belo Horizonte, 1996Seminário “A loucura, exclusão no direito” - UFJF -Juizde Fora, agosto de 1997“1st Trieste International Meeting for Mental Wealth”- Trieste, Itália, outubro de 1998

“IV Encontro Nacional do Movimento da LutaAntimanicomial - Novas formas de produção de sen-tido” - Alagoas, setembro de 1999“3º Seminário Internacional sobre as Toxicomanias -Desafios da Pós-Modernidade: diversidades e pers-pectivas” - Rio de Janeiro, julho de 2000“1ª Caravana Nacional de Direitos Humanos - UmaMostra da Reforma Manicomial Brasileira” - junho de2000

“Hospitais psiquiátricos: saídas para o fim” - BeloHorizonte, junho de 2001

“1ª Mostra Nacional de Práticas em Psicologia e Com-promisso Social” - São Paulo, outubro de 2001“Tribunal dos crimes da paz - O hospital psiquiátricono banco dos réus” - III Conferência Nacional deSaúde Mental - Brasília, dezembro de 2001

“Seminário sobre o Direito à Saúde Mental - Regula-mentação e aplicação da Lei nº 10.216” - Brasília, no-vembro de 2001

Em defesa da saúde

Page 7: Revista Cidadania

5

O desafio da reformaO desafio da reformaOs princípios que norteiam a transição para o novo modelo de

assistência aos portadores de sofrimento psíquico

Boa tarde a todos, se-nhoras e senhores*

Primeiro agradeço aomeu colega deputado Eduar-do Jorge, secretário municipalde saúde da prefeitura de SãoPaulo, pelo convite e pela opor-tunidade de vir aqui falar paraos senhores e as senhoras arespeito da reorientação domodelo assistencial brasileiroem saúde mental. Gostaria dedizer a todos que me situo nes-se debate sobre a reforma psi-quiátrica brasileira do ponto devista de um representante deuma parte da população doEstado de Minas Gerais, pelomeu partido, o Partido dos Tra-balhadores. Vejo esta questãopelo lado mais amplo que é odos direitos humanos das pes-soas portadoras de sofrimentomental. Não sou técnico, psi-quiatra, psicólogo, psicanalis-ta, terapeuta ocupacional, en-fermeiro, assistente social, au-xiliar de enfermagem, gestor.Sou candidato a paciente e, en-louquecido, quero ser tratadono serviço aberto.

É essa a posição que

me fez aceitar apresentar oprojeto de lei, há 12 anos, quan-do procurado, em Juiz de Fora,pelo Movimento Nacional daLuta Antimanicomial, uma or-ganização civil da área de saú-de e direitos humanos - que jánaquela época e há mais de20 anos, luta pela reorientaçãoe a redefinição do modelo psi-quiátrico no Brasil. Ali fui infor-mado que a impiedade do tra-tamento de pacientes comtranstorno mental estava base-ada numa legislação dos anos30 - 1934 - e que refletia, quan-do foi criada, o nível e o grau decompreensão que a medicinamundial e a maioria dos profis-sionais da área de saúde en-tendiam ser o modelo de aten-ção possível a ser oferecido -e como se revelou - impostoaos doentes mentais no mun-do todo.

Não havia ainda nasNações Unidas e sua Organi-zação Mundial de Saúde umacompreensão e um consensosobre o novo tratamento, nemmesmo sobre direitos de do-entes mentais, pontos essen-

ciais que iniciaram o debatemundial pela reforma psiquiá-trica. Muito embora, aqui noBrasil, justiça seja feita, desdeos anos 50, já havia uma expe-riência no Rio de Janeiro, nobairro de Botafogo, a Casa dasPalmeiras, liderada por umapsicanalista brasileira, doutoraNise da Silveira, a quem prestouma homenagem nessa con-ferência. Doutora Nise foi uma

Page 8: Revista Cidadania

6

pioneira na América Latina. Pri-meira profissional a entenderque o sofrimento humano, adoença mental podia ser ob-servada por um olhar que ul-trapassava o diagnóstico mé-dico e a mera intervenção da-quela clínica. Não a considera-va única, suficiente e capaz decompreender toda a comple-xidade da loucura e da doençamental.

A extinção progressivados manicômios e a sua subs-tituição por outros recursosassistenciais, regulamentandoa internação compulsória edando outras providências naárea dos recursos públicos éa primeira lei dedesospitalização edesmanicomialização em dis-cussão no parlamento latino-americano. Essa lei tramitou 12anos no Congresso Nacional -dois anos na Câmara inicial-mente, oito anos no Senado edois anos posteriormente naCâmara dos Deputados. Asanção desta lei, no dia 6 deabril, véspera do dia mundialde saúde mental, é uma ho-menagem, especialmente aosdoentes e a seus familiares, euma conquista do movimentonacional da luta antimanicomial.

Essa organização, du-rante 12 anos no CongressoNacional, conseguiu aumentar

progressivamente o apoio à lei,dentro e fora do parlamento,vencer resistência de inúme-ros ministros da saúde erelatores nas duas casas doCongresso. Digo isso parahistoriar um pouco e mostrarque derrubar a lei de ferro dadoença mental, a lei de 34, nãofoi e não é tarefa muito fácil ouexclusivamente de legislado-res.

Ela é uma lei social, tal-vez de todas as leis médicasbrasileiras, a mais ampla e queenvolve o maior número depessoas na sociedade - usuá-rios, técnicos, críticos, adeptos,entusiastas e pessimistas - alei da saúde mental, segundodados da OMS, poderia abran-ger, no Brasil esse ano, 13 mi-lhões de usuários de serviçospsiquiátricos ou de remédios

da área da psiquiatria. Essa leipoderia beneficiar diretamenteem torno de 600 mil brasileirosque, de uma forma ou de ou-tra, nos últimos cinco anos,passaram por asilos brasilei-ros e que vivem ou viverampraticamente contrários ao quedetermina a Constituição doBrasil, prisão perpétua, semprocesso, sem sentença.

Se compareço a qual-quer serviço de medicina e nãotenho perspectiva de cura, que-bro uma perna, vou ao prontosocorro e dali não saio mais,não sou eu que estou doente,quem adoece é o hospital, éele o doente e a doença. A idéiade que existem pessoas semperspectiva de cura é uma im-potência da medicina, do siste-ma sanitário, que propôs umfracasso na humanidade dosistema, incapaz de ter pelomenos compaixão. Um sabermédico impiedoso aceita, nomínimo, ser regido pela lei deproteção aos animais, maiscomplacente com a vida.

Temos condições cla-ras de substituir o modeloassistencial de saúde mental,mas não podemos perder aperspectiva histórica dessa lei.Quando no século XIX, na In-glaterra vitoriana, foram criadasas leis dos pobres, os doentesmentais foram os primeiros a

A lei da saúdemental é uma lei que,

segundo dados daOMS, poderia abran-ger, no Brasil esseano, 13 milhões de

usuários de serviçospsiquiátricos ou deremédios da área da

psiquiatria

Page 9: Revista Cidadania

7

serem estigmatizados e nasnaus dos insensatos jogadosao mar. Ali do lado, um poucoantes, na França da Revolu-ção, a lei dos pobres, tambéma pretexto de protegê-los, dis-criminava os doentes mentais,mas buscou distingui-los. Foium francês, Philippe Pinel, queimaginou a possibilidade deconstruir o acolhimento e umlugar de atenção ao doentemental. Nasceu o primeirohospital especializado, prote-gendo os pacientes da impie-dade e da legislaçãodiscriminatória da época, quenão os via como nobres, bur-gueses, como cidadãos pro-dutivos e nem mesmo sans-cullotes, encarcerando a folia.Nascido sob o regime do ter-ror, o alienismo aboliu as cor-rentes dos loucos, libertando-os nos hospícios. Alienado, es-tranho de si mesmo, mas ca-paz de ser tratado.

A primeira grande insti-tuição psiquiátrica foi o mani-cômio, instituída com o objetivode proteger pessoas do pre-conceito e da estigmatização.Essa idéia de um hospital fe-chado, murado, que encerra,estigmatiza, isola, 200 anosdepois não tem razão de ser.Não tinha na época, na com-preensão da época, mas erapossível tanto quanto a escra-

vidão. A reforma psiquiátrica éde certa forma a abolição daescravidão do doente mental,seu fim como mercadoria delucro dos hospitais fechados,

mílias que internavam, mastambém muitos, por má fé, uti-lizavam o dispositivo psiquiá-trico por razões não psiquiátri-cas. Quantas pessoas foraminternadas para resolver con-flitos familiares, problemas deherança, gravidez não queri-da, droga, álcool e outras for-mas de opressão que não po-dem ser resolvidas pela psi-quiatria?

Hoje, no início do sé-culo XXI, numa cidade impor-tante como SP, tem-se que le-var em conta a história da re-forma psiquiátrica no mundo,mas tem-se que principalmen-te levar em conta que nem to-dos os problemas humanossão psiquiatrizáveis oupsicologizáveis. Problemashumanos são problemas a se-rem resolvidos, e não contor-nados pela psiquiatria, emsubstituição a políticas públicasde inclusão social. Temos que,ao lutar pela humanização dotratamento do doente mental,evitar a psiquiatrização dosconflitos sociais, que podemnos levar todos a tratamentopsiquiátrico sem necessidade.A idéia de que pela psiquiatria,psicologia ou pela intervençãomédica e técnica pode-se re-solver problemas sociais éuma idéia equivocada de umaparte da reforma psiquiátrica.

da exploração do sofrimentohumano com objetivosmercadológicos. Mas é preci-so, ao ter em conta a históriadessa lei, considerar que pro-curar os asilos, no início doséculo, no nosso país, era umaforma também de procurar odireito de pensão. Ir ao mani-cômio abandonar seu pacien-te numa internação prolonga-da era lhe dar direito de pen-são e de proteção. Assimcompreendiam muitas das fa-

“A primeira grandeinstituição psiquiátrica

foi o manicômio,instituída com o

objetivo de protegerpessoas do

preconceito e daestigmatização. Essaidéia de um hospital

fechado, murado, queencerra, estigmatiza,

isola, 200 anos depoisnão tem razão de ser.”

Page 10: Revista Cidadania

8

A reforma psiquiátricanão produz lei médico-socialpara competir com a prerro-gativa das organizações e ins-tituições de caráter social. Elacontém um forte sentido cultu-ral, mas é essencialmente umareforma que tem que ter sus-tentação técnica, sustentaçãomédica, sustentação na histó-ria e na evolução da medicinacompreendida socialmente.

transformar toda forma dedesequilíbrio em doença men-tal, toda forma de ruptura doequilíbrio psicológico em doen-ça é uma estratégia com fortecomponente farmacológico,quimioterápico, hospitalocên-trico. Nós não podemos com otratamento apaziguar a socie-dade, recalcando a verdadeirapersonalidade de homens emulheres diferentes. A psiqui-atria não foi feita para recalcar apersonalidade e suas manifes-tações múltiplas, transforman-do-as em sintomas de loucu-ra. Não podemos enlouquecertodos com a psiquiatrização deseus conflitos e das dificulda-des. Da mesma maneira, fa-zer o discurso da excelênciado avanço médico e do avan-ço técnico não é integrar-se aosaber médico, desintegrando-se a si mesmo diante do sabermédico.

A doença mental pre-cisa de dois valores fundamen-tais que são a base da reformapsiquiátrica: o primeiro deles éa escuta do sofrimento. Quemnão gostar de doente mentalnão tem condições de traba-lhar na área. A doença mentalé, talvez, das áreas médicas aque mais exige solidariedadehumana, desprendimento,destemor, capacidade de ab-sorção, de produção e de sen-timentos de cooperação e de

Do contrário, a reformapsiquiátrica provocará maisloucura ainda, porque, os se-nhores e as senhoras sabem,a loucura se tornou doençamental há menos de 200 anos.Até 200 anos atrás a loucuranão era doença mental, era in-sensatez cultural, religiosa, so-cial, pessoal. A estratégia de

integração social. Os doentesmentais querem aquilo que aoftalmologia me deu, que sãoesses óculos para compensarum pouco a miopia e vê-losmelhor, aquilo que a cadeira derodas possibilitou ao deficientefísico. Este quer programas deintegração social. Abaixem ascalçadas que eu subo com a

minha cadeira. Me dê uma mu-leta que ela é a extensão daminha perna. Me tratem bem,não importa que eu seja louco.

Essa é a idéia essen-cial da reforma psiquiátrica:construir um centro de gravi-dade baseado no paciente, eaí a reforma se faz pela trans-ferência de recursos da área,hoje predominantemente priva-da ainda em quase 90% dos

A doença mental é,talvez, das áreas

médicas a que maisexige solidariedadehumana, destemor,

capacidade deabsorção, de

produção e desentimentos decooperação e deintegração social

A psiquiatria não foifeita para recalcar a

personalidade e suasmanifestações

múltiplas,transformando-as emsintomas de loucura.

Não podemosenlouquecer todos

com apsiquiatrização de

seus conflitos e dasdificuldades

Page 11: Revista Cidadania

9

recursos nos mega-asilos e nosistema manicomial, e transfe-ri-los para o sistema aberto.Não há necessidade mais deamaldiçoar o sistema mani-comial. Ele faz parte da histó-ria. Temos é que fazer a leientrar em vigor e exigir que osgovernos federal, estadual emunicipal transfiram os recur-sos do sistema fechado para osistema aberto.

É preciso construir umnovo modelo de AIH. A Autori-zação de Internação Hospita-lar tem que se transformar pro-gressivamente em Autoriza-ção de Internação Domiciliar.Os recursos têm que sair dohospital e partir para o pacien-te. Essa transferência é que éa reforma do ponto de vista or-çamentário. Neste período detransição, afirmada por confe-rências como essa - a nacio-nal, que vai se realizar em de-zembro, e a conferência de re-gulamentação da lei, em no-vembro, no Congresso Nacio-nal. É bom que se diga aquique o Ministério da Saúde en-tendeu que a regulamentaçãode uma lei é metade de uma leino nosso país. Muitas vezesse regulamenta uma lei contrao espírito original de uma lei. OMinistério entendeu, pela suacoordenação de saúde men-tal, que a regulamentação des-

sa lei será feita junto com aque-les que ajudaram a elaborar alei - com a sociedade, as orga-nizações sociais e o Parla-mento.

A reforma psiquiátricaé uma transição. O velho nãopredomina; o novo ainda nãodomina. Nessa luta entre o do-mínio e predomínio, que é oconceito clássico de transiçãopara afirmar o que deve pre-dominar, temos que levar emconta algumas coisas. A pri-meira delas é que a reforma

o sofrimento de uma famíliacom seu paciente é tão dignoquanto o de um técnico honra-do com a demora da reforma.

O medo da reformapor parte de muitos familiaresé um sentimento legítimo, e nóstemos que conquistar a famíliapara a mudança. Da mesmamaneira, essa lei tem que terum outro sentido: tem que fa-zer com que as pessoas le-vem em conta que o processode integração do cidadão, dasvárias partes do corpomultifacetado e mutilado de umcidadão doente, especialmen-te na área da doença mental, éuma produção histórica quenão nasceu na hora da rupturado equilíbrio psicológico dapessoa. Essa produção histó-rica - me arrisco a dizer aquino meio de técnicos da áreade saúde da competência dossenhores e senhoras - temopensar que tenha origem emLouis Pasteur. Ele não imagi-nava que, quando isolou a bac-téria, produzindo a vacina, quea sua descoberta - um avançopara a medicina - ia produziruma ruptura entre o corpo e aalma das pessoas, que a me-dicina biológica elevou a pen-samento único, consagrandomitos da filosofia dualista.

A idéia de que umagente externo invade o teu

A reforma tem queconquistar pessoas.Uma lei imperativa,

vertical, imperialcomo uma

ordenação ibérica éuma lei que está

fadada ao fracassona área da saúde

mental

tem que ter um sentido maisdiretivo do que imperativo. Areforma tem que conquistarpessoas. Uma lei imperativa,vertical, imperial como umaordenação ibérica é uma leique está fadada ao fracasso naárea da saúde mental, porque

Page 12: Revista Cidadania

10

corpo e te adoece foi um gran-de avanço na história da medi-cina, mas na história da psiqui-atria essa conquista de Pasteurproduziu um desequilíbrio quemuitos psiquiatras e escolas de

conta, a partir das universida-des brasileiras, da existênciada psiquiatria democrática.Tem que se estudar Basaglia,Foucault, Lang e outros gran-des teóricos da medicina psi-quiátrica no mundo. Não sepode imaginar que seja possí-vel formar um profissional hojenas escolas de medicina bra-sileiras sem se estudar o mo-vimento nacional da lutaantimanicomial.

Esta é uma luta que nósprecisamos de aliados, e SãoPaulo que tem excesso de for-ça em tudo podia colocar umpouco dessa força excessiva- e peço aos senhores que re-levem o que digo porque soude Minas Gerais - na luta parailuminar os aparelhos das es-colas de psiquiatria brasileira,especialmente da psiquiatria daUSP, uma psiquiatria conser-vadora, que não quer se abrirao novo, que é antimanicomialna Inglaterra - e manicomial noBrasil. Ouçam a conferência enos ajudem a mudar a psiqui-atria brasileira. A reforma é ine-vitável.

O outro aspecto dessalei é que ela não se fará exclu-sivamente pela escuta do so-frimento, criando condiçõestécnicas, orçamentárias, paraque um profissional possa ou-vir melhor seu paciente,conhecê-lo pelo nome, saber

a história de sua doença, deonde ele veio. É preciso tam-bém criar espaços protegidos,proteger o paciente psiquiátri-co em serviços onde ele pos-sa desenvolver toda a suapotencialidade. Mas não pode-mos manicomializar os Capse os Naps, que são estruturasantimanicomiais. Não podemser apropriadas pelo sabermanicomial. É preciso educaros deseducados, desconstruirpara reconstruir. Um aspectoessencial da reforma é umcorolário seu, que já é lei naci-onal - a lei das cooperativassociais. É preciso ampliar osespaços de cooperação e deação dos agentes comunitári-os e também dos pacientes edos seus familiares. Vamosmedicina não se dão conta.

Não é por outro motivo que amedicina brasileira, sem exce-ção, começa seus cursospara jovens entusiastas do sa-ber médico com as aulas deanatomia, quando deveria co-meçar com obstetrícia, gineco-logia e puericultura. É pelo nas-cimento que a vida começa enão pela morte. Não é dividin-do o corpo que você ensinauma pessoa a reunificá-lo. Nãoé pela anatomia que se faz ocorpo encontrar seu sentido fi-losoficamente indivisível.

O remédio é importan-te mas não é tudo. A medicinapsiquiátrica tem que se dar

desmanicomializar a vida e asrelações sociais.

Não se podeimaginar que seja

possível formar umpsiquiatra hoje nas

escolas de medicinabrasileiras sem se

estudar o movimentonacional da lutaantimanicomial

É preciso tambémcriar espaços

protegidos, acolher opaciente psiquiátricoem serviços onde ele

possa desenvolvertoda a sua

potencialidade

Page 13: Revista Cidadania

11

Por fim, mas não emúltimo, cinco são na verdadeos princípios que norteiam a re-forma psiquiátrica. Esses cin-co princípios são conhecidosdesde os anos 80, quando pro-duziu-se a 8ª Conferência Na-cional de Saúde, que deu ori-gem ao Sistema Único deSaúde de nosso país. Defen-der os princípios do SUS édefender a reforma psiquiátri-ca na sua melhor tradução.Primeiro deles, a universalida-de do atendimento. Todos têmdireito ao atendimento pleno.Nós temos que avançar paraque o SUS seja realmente uni-versal. Se aumentarmos a pre-sença do Estado na oferta deserviços de saúde na verdadeintroduzimos na cabeça e nosentimento das pessoas o prin-cípio de que o Estado presenterealiza a sua tarefa ouvindo aforça da sociedade. Serviço desaúde eficiente é também sa-lário indireto. Quem presta bomserviço de saúde, na verdadeestá remunerando melhor umpouco o seu povo.

O segundo princípio éa equanimidade, a idéia da jus-tiça. Não podemos estigmati-zar, deixar de fora ninguém quepor algum motivo não esteja anosso alcance. Em terceiro, adescentralização - um princí-pio caro às reformas italiana efrancesa e até a uma parte da

reforma dos Estados Unidos.Evitar a desterritorialização dopaciente. Temos que acabarcom as ambulâncias psiquiá-tricas de um município a outro,um bairro a outro, carregandoo paciente para longe de suavida. A reforma psiquiátrica temque ter serviços descentraliza-dos cada vez mais perto daspessoas. Temos que ter, sim,alas psiquiátricas em hospitalgeral, portas de entrada univer-sal, integração no programa desaúde da família.

os pacientes de outra área’.Pois eu digo a esses médicos‘Quem assusta mais, um lou-co em surto ou uma pessoatendo um ataque cardíaco nasua frente?’. O cardíaco podematar o louco de susto maisdo que o surto mata o cardíacodo coração. Não devemosproduzir estigmas. Essa idéiade doente mental de um lado ecardíaco do outro é uma estra-tégia da divisão do corpo hu-mano que nós não devemosaceitar. Quem dividiu o corpohumano dividiu para lhe daruma tradução monetária. Euproponho que os senhores esenhoras comecem a discutirum outro conceito para ainternação. A internação setransformou num conceito mé-dico como forma de sertraduzida em horas-leito. Leitoem psiquiatria é um conceitoineficaz. Precisa-se de espa-ço, de escuta, de outras formasde atenção. Trata-se de umtempo que não pode ser medi-do no relógio. A internação éum conceito pessoal. Quandonum fim de semana você des-liga o telefone de sua casa, vocêestá internado em sua casa.Quando vai para uma praia,mesmo diante do mar, vocêestá internado numa praia. Ainternação é um conceito deacolhimento, não é um concei-to de remuneração. É um con-

Muitos psiquiatras medizem ‘Paulo, se você colocarum doente mental num hospi-tal geral você pode provocarum mal-estar. Ele vai assustar

A reforma psiquiátricatem que ter serviços

descentralizados cadavez mais perto das

pessoas. Temos queter, sim, alas

psiquiátricas emhospital geral, portasde entrada universal,

integração noprograma de saúde da

família

Page 14: Revista Cidadania

12

* Palestra realizada naXI Conferência Municipalde Saúde de São Paulo

05/11/2001

ceito de proteção. Quem seacolhe, se acolhe para ser pro-tegido e não para ser explora-do.

O quarto princípio é aintegralidade dos serviços edos dispositivos para o paci-ente e suas necessidades. Davacina ao transplante, do velhoHaldol aos neurolepticos de úl-tima geração, têm que estar àdisposição do paciente, paraque ele crescentemente avan-ce para o tratamento voluntá-rio. Esse é o desafio da refor-ma: sair do tratamento com-pulsório, caminhar para o vo-luntário.

O quinto princípio é ocontrole social, não só da de-mocracia participativa que ossenhores praticam cotidiana-mente, mas o da democraciarepresentativa. É preciso nãoamaldiçoar as formas de re-presentação social que a de-mocracia construiu. É precisoeleger representantes dos se-tores participativos mas nãoimpedir a voz daqueles que seelegem representantes de ou-tros setores que às vezes sãohostis a nós e é importante dia-logar com eles. A democraciaé uma conquista na sua formadireta e na representativa.

Senhores e senhoras,termino dizendo o que eu apren-di na história dessa lei: em to-das as decadências, seja so-

cial, econômica, política, afetiva,matrimonial, paternal, o primei-ro sintoma que aparece é adegradação do sentimento deamizade. Não há decadênciana história da humanidade oudas relações pessoais que nãotenha começado pela degrada-ção e pelo desaparecimento dosentimento de amizade, do res-peito ao outro. O fim da solida-riedade é o início da decadên-cia das relações sociais. Porisso, não tenham dúvida, an-

A grandeconseqüência da

reformapsiquiátrica é que,se nesses 200 anos

de manicômio opsiquiatra ficou

solto e o pacienteficou preso, com a

reformapsiquiátrica

implantada o queteremos é o

paciente solto e opsiquiatra, preso -

preso ao seupaciente, gostandodele, ajudando-o aconviver com sua

loucura

tes de acabar o amor entre aspessoas, acaba primeiro aamizade. Muitas vezes o so-frimento de quem ama é o fatode amar uma pessoa que nãogosta mais dela como amigo.A reforma psiquiátrica neces-sária e verdadeira só será feitapor profissionais que sejam re-líquias - médicos, técnicos, en-fermeiros, assistentes sociaisque, relíquias da humanidade,tenham dedicação integral aosofrimento dos outros e quevejam a dor do outro como sefosse a própria dor. A grandeconseqüência da reforma psi-quiátrica é que, se nesses 200anos de manicômio o psiquia-tra ficou solto e o paciente ficoupreso, com a reforma implan-tada o paciente ficará solto e opsiquiatra, preso - preso ao seupaciente, gostando dele, aju-dando-o a conviver com sualoucura.

E a tarefa dos senho-res e senhoras é conquistar osinconquistáveis para a reformapsiquiátrica. Será bom para to-dos. Um grande abraço e mui-to obrigado.

Page 15: Revista Cidadania

O projeto dereforma psiquiátricacontou com o apoio depersonalidades como oescritor Paulo Coelho,que reconheceu anecessidade de umanova legislação para otratamento dostranstornos mentais

Rio de Janeiro, 18/01/99PARA DEPUTADO PAULO DELGADOVia fax/correio

Estimado deputado Paulo DelgadoEm primeiro lugar, quero agradecer a gen-

tileza de enviar-me o projeto de lei que dispõe

sobre a proteção e os direitos das pessoas porta-

doras de transtornos psíquicos e redireciona o

modelo assistencial em saúde mental.Li cuidadosamente o texto consolidado, que

está prestes a ser votado pelo Senado Federal, e

que tem como relator o senador Sebastião Rocha.Tendo já sido vítima, no passado, da vio-

lência cometida por internações sem qualquer fun-

damento (estive internado na casa da saúde Dr.

Eiras em 1965, 1966, 1967, conforme laudo em

anexo), vejo não apenas oportuna, mas absoluta-

mente necessária esta nova lei descrita no proje-

to.

Quero aproveitar para colocar-me ao seu

inteiro dispor para ajudar, na medida das minhas

possibilidades, a divulgar a importância deste

projeto de lei.

Atenciosamente,

Em vários países, a

reforma psiquiátrica aconteceuno âmbito de processos naci-onais de redemocratização.Foi assim na Itália pós-fascis-mo e na Espanha depois deFranco. No Brasil não foi dife-rente. O movimento de lutaantimanicomial se organiza nofinal da década de 70, o quecoincide com a abertura políti-ca no país. Não é difícil enten-der a conexão, afinal, trata-sede uma questão de direito, decidadania, de humanismo.

A Lei 10.216 – uma vi-tória desse movimento – vemsubstituir uma lei arcaica, ul-trapassada e característica detempos paternalistas e autori-tários, a lei de 3 de julho de1934, assinada por GetúlioVargas, em pleno EstadoNovo. Embora na época te-nha sido resultado da primei-ra grande modernização psi-quiátrica, a lei de 34, que vi-gorou por mais de 60 anos,dava direito à família e ao po-der público de internar sem

autorização dos pacientes.Esta concessão arbitrária estána origem de vários abusos eirregularidades cometidas con-tra pessoas, internadas com-pulsoriamente sem qualquerdireito de manifestação devontade.

Além disso, a velha leimostrava seu anacronismo porconsiderar o louco como umapessoa perigosa e incapaz –conceito superado, em termosde diagnóstico, desde a déca-da de 50.

1934 / 2001

13

Page 16: Revista Cidadania

14

Com 12 anos de atra-so, foi finalmente aprovado peloCongresso o projeto de lei dodeputado Paulo Delgado (PT-MG) que regula internaçõespsiquiátricas. Há avanços im-portantes em relação à legisla-ção anterior, que, em sua es-sência, data de 1934.

O novo diploma estabe-lece os direitos das pessoasacometidas por transtornosmentais e também limita e regu-lamenta as internações psiqui-átricas. Vale destacar que o pro-jeto proíbe a internação em “ins-tituições com características asi-lares”, ou seja, os famosos “de-pósitos de loucos”, nos quais aassistência integral ao doentemental é um pouco menos queuma ficção.

Também se estabelecemoutras salvaguardas importan-

tes, como a necessidade de au-torização médica para qualquertipo de internação e a notifica-ção compulsória do MinistérioPúblico, em prazo de 72 horas,nos casos em que o interna-mento se dê contra a vontadedo paciente. Vale lembrar que,no Brasil, o instituto da internaçãoinvoluntária foi deturpado, ten-do servido, por exemplo, pararesolver litígios em torno de he-ranças e outras questões não-médicas.

Infelizmente, o Congres-so não teve a coragem de se-pultar de vez a figura dainternação involuntária. Em ter-mos ideais, só se deve privarum cidadão de sua liberdade naocorrência de flagrante delito oumediante ordem judicial. Curio-samente, esse princípio básicoda Constituição não vale para

aqueles sobre os quais pesa asuspeita de insanidade.

É também digno de notao fato de que pesquisas científi-cas para fins de diagnóstico eterapia com doentes mentais de-penderão de autorização do pa-ciente ou do responsável legal,além de comunicação a conse-lho profissional competente e aoConselho Nacional de Saúde.

Os importantes avançosconsagrados na nova legislaçãonão devem impedir que se pro-cure melhorá-la ainda mais. Aforma como uma sociedade tra-ta de seus doentes mentais éuma boa medida do grau de ci-vilidade de um país.

Randus H

enrique B

arb

osa F

err

eira - A

ssocia

ção C

asaV

iva

ASILO À RAZÃO

OPINIÃOFolha de São Paulo

31/03/2001

Page 17: Revista Cidadania

Santa Genoveva, pa-droeira de Paris, enfrentouÁtila, o flagelo de Deus. Mor-reu com quase 90 anos, ve-nerada e querida. Nascida emNanterre, tem sua história en-terrada no bairro de SantaTeresa, ao ter seu nome as-sociado ao consórcio Mansur-Spinola, o flagelo dos pobres.Mas esta história também éantiga e grave.

Sabiam os funcionári-os do antigo Inamps que, quan-do um processo estampava umcarimbo de urgente, isto que-ria dizer que o pagamento dealguma clínica estava atrasa-do. A burocracia se agitava di-ante desse tipo de urgência,enquanto os donos de hospi-tais eram recebidos com sole-nidade pela presidência doórgão, que ficava na rua Mé-xico, no Rio. Uma epidemia demeningite, digamos, tinha me-nos urgência. Afinal, o impor-tante é o leito e o seu dono: acama mortuária montada emmorredouros oficiais concedi-dos e concebidos pelo modelode política de saúde que aindapredomina na atenção psiqui-átrica e geriátrica em nossopaís.

Agora, o Jornal doBrasil nos informa que o dr.Spinola, dono da SantaGenoveva e de manicômioscariocas, indicou os dois últi-mos coordenadores de saúdemental do Rio de Janeiro. O

prédio do Inamps da rua Mé-xico é, hoje, da Secretaria Es-tadual de Saúde, mas a cultu-ra do que é urgente pareceter permanecido em seus cor-redores. Relações mercantisde compra e venda de leitos eserviços ainda regulam, regeme orientam as políticas públi-cas de saúde.

Não se consegue per-ceber independência e auto-nomia nas atitudes de grandeparte dos dirigentes sanitários,do ministério ao município. To-dos parecem cheios de dedosno trato com os mandarins dosetor privado lucrativo, comono velho Inamps. Assim, oconsórcio Mansur-Spinolamontou uma verdadeira redede cronificação da doença que,ramificada dentro das secreta-rias de saúde e do próprio mi-nistério, impõe e mantém omodelo de tratamento - trata-mento? - atual.

Não pode ser outra aexplicação para que o PoderPúblico não tenha desapropri-ado por interesse público eassumido o controle dainsultante concessionária dasautorizações de internaçãohospitalar. Ou também, comoentender que há quase um anoo consultor jurídico do Ministé-rio da Saúde esteja assentadoem cima do plano de apoio adesospitalização, aprovadopelo Conselho Nacional deSaúde e que trata da implan-

tação do novo modelo e danova política de atenção aosdoentes crônicos? Ou aindapor que a reforma psiquiátricanunca é aprovada no Con-gresso Nacional?

A tutela que osmandarins da rede privadaexercem sobre os interessesda saúde pública, através daFederação e da AssociaçãoBrasileira de Hospitais,dirigidas pelo consórcioMansur-Spinola, é tão escan-dalosa quanto os leitos-morteda Santa Genoveva.

A baixa taxa de respei-to aos mais elementares direi-tos individuais, a incúria comoregra na relação com os maisfracos, a subserviência do Es-tado às chantagens dos ho-mens violentos, a frivolidadedos homens públicos, o baixocusto da vida entre nós fazemda morte programada de ido-sos, doentes mentais e pobresa normalidade da tragédia. Atéo dia que, indiferente, o povotenha a impressão de que jun-to adoeceram e morreram ospoderes da União.

Cronicário de mandarins

Paulo Delgado

Artigo publicado noJornal do Brasil, no dia

7 de junho de 1996,após a morte de 97pacientes na Clínica

Santa Genoveva,no Rio de Janeiro

15

Page 18: Revista Cidadania

A Comissão de DireitosHumanos da Câmara, presidi-da pelo gaúcho Marcos Rolim,realiza caravanas de inspeçãopelo Brasil, aproveitando osperíodos de recesso parlamen-tar e os feriados prolongados.Já visitaram cadeias e peniten-ciárias, instituições que cuidamde policiais vítimas de violên-cia, instituições para menorescomo as Febems e, ultimamen-te, hospitais psiquiátricos e ma-nicômios judiciais.

O deputado mais inte-ressado no tratamento das do-enças mentais é o mineiro PauloDelgado, do PT. Militante domovimento de luta antimani-comial, que já existe em quasetodos os estados, é autor doprojeto de lei da reforma psi-quiátrica, que rola há oito anospelo Congresso, já tendo sidoaprovado na Câmara, emen-dado pelo Senado e hoje dor-me de volta na Comissão deSaúde da Câmara.

Paulo Delgado come-çou a se interessar pelo trata-mento de doentes mentaisquando era ainda estudanteuniversitário, na década dos 70.Franco Basaglia, pioneiro doprocesso de desospitalizacãodos doentes mentais na Itália,veio ao Brasil. Paulo acompa-nhou-o, juntamente com o ci-neasta Helvécio Raton, nassuas visitas às instituições psi-

quiátricas. A documentaçãodessas visitas, feita porHelvécio, ficou registrada no fil-me “Em nome da razão”, queganhou vários prêmios, nacio-nais e internacionais.

A partir dessa experiên-cia, Paulo tornou-se um espe-cialista na evolução do trata-mento de doentes mentais, vi-sitando instituições no mundointeiro, lendo mais sobre o as-sunto que muito psiquiatra eadquirindo até noções de me-dicação.

Se um dia eu entrar emsurto, prefiro ser tratado peloPaulo Delgado que por algunsdos carrascos que a caravanade deputados encontrou em clí-nicas de Goiás e da Bahia. Digoisso porque me contou odiamantinense Edgar da MataMachado que, perto deDiamantina, há um distrito quepassou muitos anos isolado, oque provocou um inu-sitado número de ca-samentos entre paren-tes. Lá, não se diz queFulano enlouque-ceu. Dizem: “Fulanodeclarou-se”. Éque consideramser a loucura algoque todos trazemincubado, comoum vírus que umdia se declara.

A luta

de Paulo Delgado não é sócontra as condições subuma-nas com que os doentes men-tais são tratados. É, ainda, pelacriação de condições de aten-dimento ambulatorial, comoacontece na Casa das Palmei-ras, fundada por Nise da Sil-veira, pela criação de casas epensões protegidas, onde pos-sam ficar os doentes que per-deram seus vínculos familiares,pela proibição de internamentoscompulsórios, ordenados porum só médico, pela revisão pe-riódica das ordens de interna-mento, pelo auxílio financeirodireto às famílias que recebamde volta os seus parentes, pelocontrole da medicação dadaaos doentes, especialmente ossedativos, pela proibição dasoperações de neurocirurgiaque reduzem definitivamente ospacientes à vida vegetativa epela proibição de eletro-choques.

Mundo dos loucos

16

Page 19: Revista Cidadania

17

gresso, é humanizar o tra-

tamento dado ao pacien-

te. “A família e os médicos

serão peça fundamental

para o cumprimento dos

novos dispositivos”, adver-

tiu. Hoje, no Brasil há 80

mil doentes crônicos, dos

quais 20 mil não saem dos

hospícios, o que os faz se-

melhantes aos condena-

dos à prisão perpétua.

Pacientes psiquiátricosO deputado federal Pau-

lo Delgado (PT/MG), au-

tor da lei que reorganiza

a política de assistência

aos pacientes psiquiátri-

cos, sugeriu que as famí-

lias desses doentes pro-

curem informações junto

às autoridades sanitári-

as sobre os critérios que

devem ser cumpridos para

a desospitalização, isto é,

os que podem ser trata-

dos sem isolamento. A lei

nº 10.216, que o presiden-

te sancionou no dia 06/

04/2001, ainda não foi re-

gulamentada, mas seu

autor acha que, a curto

prazo, ela pode oferecer

grandes benefícios e ga-

rante que as famílias te-

rão influência decisiva nas

decisões, inclusive para

ajudar o médico psiquia-

tra a decidir sobre as

internações. Delgado diz

que a intenção da lei ori-

ginada de seu projeto, que

tramitou 12 anos no Con-

Wilson CidO TEMPO

17/04/2001

Segundo Paulo Delgado,existem no Brasil 260 hospitaispsiquiátricos, com 70 mil leitos,mais dois mil leitos em hospitaisgerais. Os doentes mentaisconstituem o quarto maior gas-to do Ministério da Saúde, de-pois dos cardíacos, dos partose dos doentes pulmonares. São470 milhões de reais por ano,sendo que apenas 30 milhõessão destinados aos centrosambulatoriais, ficando o restopara pagar internações. Diz ele:

- Até entendo a atitudeconservadora dos ministros.Temos 150 anos de experiên-cia com internações hospitala-res e poucas décadas de ex-periência com o tratamentoambulatorial. No entanto, é eleque a Organização Mundial deSaúde recomenda. Em Santos,quando Davi Capistrano era

secretário de Saúde no gover-no Telma de Souza, a Prefeitu-ra desapropriou o hospital depsiquiatria José de Anchieta,que tinha uma desumana práti-ca prisional, e abriu as suasportas. Deu incentivos para asfamílias receberem seus doen-tes de volta, criou um progra-ma em que os meninos de ruacuidavam de passear os inter-nos, assim trocando afetos, eincentivou a criação da RádioTantã, numa emissora AM lo-cal, um programa todo feito pe-los loucos que tinha um imensosucesso. Os loucos até ganha-vam um dinheiro como anima-dores das festas locais. Hoje,com o progresso da química, émuito fácil evitar que os doen-tes entrem em surto. Basta umantidepressivo como o Aldol,que a Fiocruz poderia produ-

zir a baixo custo. O que maiscausa sofrimento aos doentesmentais é o preconceito, tantomédico como cultural. O Códi-go Penal prevê a periculosi-dade dos doentes, quando oshomicídios cometidos por lou-cos são menos de 1% do totaldo país. O Código Civil os con-sidera permanentemente inca-pazes, eliminado, portanto, apossibilidade de cura. Arrema-ta:

- A maior prova do pre-conceito é que as famílias po-bres e os vizinhos chamam oCorpo de Bombeiros para re-mover os doentes em surto.São laçados como se fossembichos.

Marcio Moreira Alves

O Globo19/12/2000

Page 20: Revista Cidadania

“O Ministério daSaúde tem que ter umsistema de vigilânciasobre o tratamentoque seja capaz decoibir os abusos

contra os pacientes”

LEI DETERMINADIGNIDADE A

DOENTE MENTALA Notícia - Como é

que a lei vai ser implemen-tada efetivamente?

Paulo Delgado: Essalei depende de uma regula-mentação com sensibilidade edeterminação, como deve sertoda a regulamentação de leina área da Saúde. A primeiracoisa que o ministério deve fa-zer é uma auditoria nas 80 milinternações brasileiras do mo-mento e nos mais de 600 milbrasileiros que procuram regu-larmente serviço psiquiátrico.Feita a auditoria é preciso di-zer o que é uma internaçãodesnecessária e o que é umaalta desassistida. Não é só sepreocupar com a internaçãoarbitrária, abusiva ou desne-cessária, mas principalmente,porque é uma lei dedesconstrução, é uma lei dedesospitalização, é com a altanão assistida, para que nãohaja abandono. Feito esse le-vantamento, é preciso que a re-gulamentação da lei determineque só haverá bloqueio devaga no serviço fechado sehouver uma vaga correspon-dente no serviço aberto. É pre-ciso que haja para substituir ohospital fechado, o Centro deAtenção Psico-Social (CAPS),os núcleos, as pensões prote-gidas, os lares abrigados, ohospital-dia, o hospital noite, a

ala-psiquiátrica no hospi-tal geral, a emergênciapsiquiátrica, o serviço psi-quiátrico no posto de saú-de da periferia. Outro ponto é apublicidade e a propaganda so-bre as mudanças do modelo.Nós vamos desconstruir o ma-nicômio e construir o modeloaberto. Você vai sair do mode-lo hospitalocêntrico, onde ohospital é o centro do sistema,e vamos transferir o modelo

para o paciente, em que ele é ocentro do sistema. Essa trans-ferência precisará desmontardois preconceitos: de que odoente mental é perigoso e in-capaz. Só através de um es-clarecimento contínuo à popu-lação, nós poderemos tranqüi-lizar o País de que o tratamen-to aberto do doente mental nãooferece risco para ele, nempara a família, nem para a soci-

edade. É preci-so também incorporar pro-gressivamente no sistema no-vo formas de aumentar a van-tagem dos que estão em des-vantagem, que são os pacien-tes.

Hoje existe Autorizaçãopara Internação Hospitalar(AIH), mas nós temos que cri-ar a autorização de internaçãodomiciliar. Evoluir da AIH parauma AD, o que se paga aohospital pode ser pago à famí-lia, hoje em torno de R$ 24,00por dia. Você criar para as fa-mílias que queiram ficar com opaciente um plano de atençãoà desospitalização. Uma outraestratégia de aplicação dessalei é prever a revisão da suaaplicação diferenciadamentepor região.

AN - O senhor tem idéi-as de como seria em cadaEstado?

Paulo Delgado - Olha,hoje são 450 milhões por anoaplicados no sistema fechado.Menos de cinco milhões apli-cados no sistema aberto. O Es-tado que mais consome é SãoPaulo, por ter a maior rede

18

Page 21: Revista Cidadania

ma cultural de tradição. Outroproblema que pode ser obstá-culo à implantação da lei nostermos em que ela está organi-zada, são as sabotagens pelaalta desassistida. São os hos-pitais abrindo as portas e aban-donando-os e atribuindo isso àlei.

AN- Como evitar oabuso dentro dos hospitaissobre as internações querestarem?

Paulo Delgado - Essaauditoria vai identificar os vári-os casos de internações arbi-trárias ou abusivas e a lei é mui-to clara no seu artigo primeiro,quando diz que o paciente setorna cidadão. Ele não pode

dade da equipe técnica contrao paciente abandonado,desassistido, inseguro e infelizno manicômio e também contraa recusa ao uso de recursosmais modernos de psiquiatriaque hoje já existem no mundo.

AN- Como é que deve-rão ser estes centros querestarem para fazer este aten-dimento às pessoas que de-vam ficar internadas?

Paulo Delgado - Primei-ro não poderá haver centrosonde a perspectiva de alta sejanula. Da mesma maneira comouma pessoa quebra uma pernae coloca o gesso quer saberquando tira o gesso, o modelomanicomial brasileiro tem quedestruir na cabeça dos médicosa idéia do doente como merca-doria à sua disposição. Sãoprecisos diagnósticos concor-renciais permanentes, ou seja,o direito do paciente e do seufamiliar e até do sistema de jus-tiça do País, que vai ser aciona-do nesses casos de internaçõesprolongadas sob suspeita. Atéo momento em que o ministériodetermine a interdição de umdeterminado estabelecimento ea troca do paciente de médico ede tratamento. Nesse caso, seo governo identificar arbitrarie-dade de tratamento ou prolon-gamento de internação com ob-jetivos mercantis, ele tem dedescredenciar o estabelecimen-to e punir os proprietários.

AN- E onde é que en-tram as secretarias estadu-ais e municipais de Saúde

“O doente mentalnão é um

condenado à prisãoperpétua”

mais ser desrespeitado nosseus direitos individuais, direitoà privacidade, direito à indivi-dualidade. A medicina não podese reivindicar ciência se não hápossibilidades terapêuticas. Seela é um fracasso como tera-pia, ela não é medicina. O do-ente mental não é um conde-nado à prisão perpétua. Então,o Ministério da Saúde tem queter um sistema de vigilância so-bre o tratamento que seja ca-paz de coibir os abusos contrao paciente, quer dizer a impie-

manicomial brasileira, seguidopelo Rio de Janeiro. Depois éMinas Gerais, Pernambuco,Paraná, Bahia, Rio Grande doSul e aí vai variando de manei-ra regressiva.

AN - O senhor temidéia de como é que seria aaplicação em SantaCatarina?

Paulo Delgado - EmSanta Catarina existem os ser-viços abertos já sendo implan-tados. Porque essa lei teve ocuidado de se tornar regionalno Brasil, antes de se tornarnacional, em Santa Catarinanós temos vários serviçosabertos. Não é uma das situa-ções mais graves do Brasil. Eunão conheço em detalhes asituação de Santa Catarina, masnão está entre os cinco Esta-dos onde a reforma vai enfren-tar, segundo eu penso, maiorresistência.

AN- Que tipos de re-sistências a lei pode enfren-tar?

Paulo Delgado - Hádois tipos de resistência à re-forma. Uma cultural que é essaque eu disse que as pessoasterão que aprender a convivercom doentes mentais, ter umolhar sobre o doente mental di-ferente do que tem hoje. Damesma maneira como se acha-va há alguns anos que otuberculoso só se tratava comisolamento. Então é preciso mu-dar essa visão sobre o defici-ente mental. Esse é um proble-

19

Page 22: Revista Cidadania

20

nesse trabalho?

Paulo Delgado - Achoque o centro dessa lei é que aúnica possibilidade de ela tersucesso é se tiver uma aplica-ção descentralizada. O minis-tério tem que transferir os re-cursos para as secretarias mu-nicipais, que é onde está o pa-ciente, e tem que estimular acriação de serviços abertos.Essa lei visa também impedirconsórcios psiquiátricosintermunicipais. Cada cidadevai ter que ter o seu serviçodescentralizado e aberto.

AN- Por um lado nãopode ser bom que haja umaconsórcio envolvendo mu-nicípios pequenos, uma vezque nem todos podem terum centro e até para evitarduplicidade de serviços?

Paulo Delgado - Euacho que no caso da psiquia-tria não. Eu sou a favor dosconsórcios intermunicipais desaúde nas áreas de medicinamais complexa, para hospitaisaltamente especializados, masna área de saúde mental estáprovado no mundo todo. A OMSnão libera mais recursos parapaíses na área de psiquiatriaque tenha grandes hospitaisespecializados. Só para servi-ços abertos. Os casos maisgraves você pode ter um oudois leitos no NAPS (Núcleo deAtenção Psico-Social), ou numhospital-dia, hospital-noite,para paciente em surto queprecise de uma permanênciamais prolongada no serviço.

AN - Santa Catarinatem um núcleo de psiquia-tria que um grande centroque absorve praticamentetodo o Estado. Esse entãonão é modelo certo?

Paulo Delgado - Essenão é o modelo. Esse é o mo-delo hospitalocêntrico, que ébaseado na desterritorialização.Você tira o paciente do seu ter-ritório e aí você o adoece maisainda.

AN- Então os doentesque precisarem de internaçãovão ter que ficar no municí-pio? O município vai ter umcentro?

Paulo Delgado - Todomunicípio terá. Hoje o Ministé-rio da Saúde libera mais ou me-nos R$ 15 mil por centro, quepode ser colocado dentro deum hospital geral ou de umpronto-socorro. Não precisaser um micro-hospital psiquiá-trico.

AN-Como conscien-tizar as famílias desse novopapel no tratamento?

Paulo Delgado - Issovai depender muito da eficáciada lei. Evidente que as famíliasvão acreditar se a lei se tornareficaz e se os pacientes melho-rarem. O Estado também teráque tranqüilizar as famílias comcampanhas publicitárias mos-trando o lado positivo, criativode um doente mentalressocializado. Nós temos vá-rias oficinas terapêuticas no

Brasil onde os pacientes pas-saram a ser produtivos. E a so-ciedade progressivamente acei-tando a convivência com pes-soas diferentes é uma questãode cultura.

AN- O senhor tem fa-lado muito em hospital-dia.Santa Catarina estápriorizando a implantaçãodo hospital-dia. Essa vai seruma forma adequada deatendimento dentro da lei?

Paulo Delgado - Euacredito que esse é o principalinstrumento da nova lei, o hos-pital-dia e o hospital-noite, paraque o paciente possa passar odia e voltar para o convívio fa-miliar, ou passar a noite quan-do a família precisar sair ou fa-zer alguma coisa. A partir daí,com os recursos do ministériose concentrando no paciente,eu tenho certeza de que nósvamos conseguir dar a ele umaperspectiva maior, senão decura, mas de integração socialcom a doença. O remédio, hos-pital-dia e o serviço aberto vãoser exatamente o salvo condu-to para a integração desse pa-ciente na sociedade. Ali ele vaipoder trabalhar, desenvolveras suas características pesso-ais e vai se tornando uma pes-soa mais estável e mais conhe-cedora da sua própria doen-ça.

A Notícia

Santa Catarina16/04/2001

Page 23: Revista Cidadania

De Pinel aPaulo Delgado

Holderlin, Althusser,Artaud, Van Gogh, Joyce, Bis-po do Rosario e muito, muitomais gente - grifo, gente - gêni-os ou loucos? Interrogação quede tanta insistência e repetiçãoquase se banaliza. Os deuseseram astronautas, e loucos cer-tamente. Mas, as “gentes” lou-cas, sobretudo as gentes quenão sulcram a história da hu-manidade com seus nomes,seja na filosofia, dramaturgia,artes plásticas, literatura, etc,essas “gentes” foram, certa-mente muito mais do que são,

alvo de segregação e conse-qüente abandono. Seria dema-siado dizer de uma espécie dedívida de toda a sociedade paraessa “gente”?

Com o novo milênio, com arealidade nada virtual da globa-lização, alguns vetores da soci-edade apontam suas flechas emdireção a necessidade, cada vezmais premente, de resgatar oude inventar um “social”, um “cul-tural”, cuja realidade se estruturemais em valores ditos humanos;ora, salvo alguns comportamen-tos de exceção, deixamos de ser

humanos? Aliás, isso é própriodo humano. Talvez o momentoindique mais, - digo talvez com aconvicção de não haver garan-tias - o momento aponte parauma reflexão sobre os valores“humanistas”, do quais somosherdeiros.

O que pode e o que devea Lei nº 10.216/01, conhecidacomo “Lei Paulo Delgado”, fa-zer em prol dessa “gente”, víti-ma da segregação de seusiguais? Primeiro: trata-se deuma Lei (federal). Admitamos,apesar das muitas exceções,

De Pinel aPaulo Delgado

Bispo do Rosario - Cama de Romeu e Julieta - Museu Bispo do Rosario/RJ

21

Page 24: Revista Cidadania

que uma Lei deva ser cumpri-da; assim sendo, seus artigose parágrafos já garantem a essa“gente”, gente dita louca, ouconforme nomenclatura desti-nada a não produzir estigmas,“pessoas acometidas de trans-tornos mentais”, passaporte aoterreno humano. Essa é a pri-meira possibilidade, o primeirodever da Lei. Sem a menorsombra de dúvidas, consideroisso um avanço, um salto dis-tinto, relativo tanto a um resga-te, quanto a uma invenção,acerca dos valores humanos,em particular ao “mental”, aopsíquico.

Aponto para um além dis-so, isto é, é fato que a referidaLei coloca nosso País em posi-ção de vanguarda quanto à“reforma psiquiátrica” vivida noplaneta; qualquer posição con-trária, por mais racional queseja, tenderia a um gozo de re-tórica ou pura passionalidade.Esse além se refere a uma se-gunda, terceira, enfim a infini-tas possibilidades e deveres.Isso pela simples realidade quenão há cultura sem lei. É umaLei que tem futuro, ou de outromodo, ela pode - e deve - plan-tar, pela sua estrutura de resga-te e invenção, valores contra asegregação.

A segregação não é um fe-nômeno longínquo a cada umde nós. Antes de mais nada aonosso narcisismo. Não há se-gregação nas grandes diferen-ças, como muito bem apontouFreud, tal fenômeno, que ga-nha proporções muitas vezes

gigantescas, se refere às pe-quenas diferenças, às nossaspequenas diferenças de cadadia. O termo loucura é freqüen-temente utilizado tanto paracomportamentos extremamen-te desejáveis quanto para ossurpreendentes, de todo modopara uma diferença que nos

acreditar, com ares de certeza,que estamos fazendo o bempara essas pessoas que “bus-cam” estes serviços, sejam suas“reinserções” na sociedade atra-vés, por exemplo, de suas pro-duções artesanais, muitas vezesinvoluntária e compulsória. Paraalém da potência da força de tra-balho laborativa ou braçal pa-tentes, está em jogo um sujeito,não apenas de sua própria his-tória, na medida em que sua his-tória pode tocar a história dahumanidade, de quando emquando de maneira contunden-te, como “nosso” Bispo do Ro-sário.

Essa “gente” tem muito maisa dizer a respeito de suasvivências e experiências e queos caminhos não se reduzem auma “reinserção psico-social”pré-estabelecida. Freud já noshavia antecipado que os “lou-cos”, como os artistas, estavamum passo à frente da humani-dade.

A “Lei Paulo Delgado”pode e deve representar o res-gate e a invenção desse “novo”cidadão, que possui, apesar demodo diferente, as rédeas desua história. Antes mesmo detratá-lo, devemos aprender aouvi-lo.

aproxima ou nos mantém sem-pre em relação e quase nun-ca, indiferentes.

Trata-se de uma Lei de im-pacto direto aos Serviços deSaúde Mental, públicos ou pri-vados e, mais uma vez, paraalém do caráter de normati-zação, deverá tocar no âmbitoda ética. Certamente corremoso risco de produzir, com rou-pagens, “humanistas” o mes-mo equívoco de outrora; o de

Tribuna de Minas

Juiz de Fora/MG

08/04/2001

José Eduardo M. AmorimPsicanalista - Presidente da

Associação CasaViva.

A segregação não éum fenômeno

longínquo a cada umde nós. Antes de mais

nada ao nossonarcisismo. Não há

segregação nasgrandes diferenças,

como muito bemapontou Freud, tal

fenômeno, que ganhaproporções muitas

vezes gigantescas, serefere às pequenas

diferenças

22

Page 25: Revista Cidadania

No início da década de 90 jáera consenso: a assistênciaprestada no Brasil era de máqualidade. Infelizmente o con-senso permanece até hoje.Constatava-se isto pela segui-das denúncias de violaçãodos direitos humanos e da ci-dadania veiculadas pela im-prensa e pelas visitas de su-pervisão aos hospitais psiqui-átricos.

Isto ocorria por várias ra-zões, mas principalmente pelalógica do modelo assistencialoferecido, baseado no interna-mento hospitalar. Este mode-lo começou a ser questiona-do no final da década de 70,quando se constituiu o Movi-mento dos Trabalhadores emSaúde Mental, mais tardetransformado em MovimentoNacional de Luta Antima-nicomial, que desde essa épo-ca tem incansavelmente luta-do pelo fim dos manicômios.Em função desta luta, avan-çamos muito neste setor.

O Ministério da Saúde járedefiniu inúmeras vezes oconceito de atendimento àsaúde mental, e vários esta-dos da Federação já aprova-ram leis propondo um novomodelo de atendimento; po-rém, somente agora, após 11

anos de tramitação, o projetode lei de Paulo Delgado foiaprovado.

Estima-se que a deman-da para o atendimento à saú-de mental no nosso país gireem torno de 20 a 30% da po-pulação, e poucas são as al-ternativas de atendimento ofe-recidas, que não o velho mo-delo de manicômio.

Para compreender e apli-car a lei, deve-se rever o con-ceito de saúde/doença emsaúde mental e ter clara a di-ferença entre desinstituciona-lização e desospitalização.

Desinstitucionalização nãoé desospitalização, comovem sendo entendido e pre-gado por senhores que domi-nam o atendimento médicopsiquiátrico em nosso país. Adesinstitucionalização é umcomplexo processo social queenvolve muitos atores e alte-ra as relações de poder entreos pacientes, os profissionaise as instituições, com origemno questionamento do mode-lo de atendimento autoritário esegregador, tendo o hospitalcomo núcleo (modelohospitalocêntrico).

A Lei Paulo Delgado pro-põe um modelo de atendi-mento centrado na cidadania,

e para isto temos que desins-titucionalizar o cidadão e suafamília, oferecendo serviçoshospitalares somente na faseaguda e, posteriormente, aten-dimento em centros de aten-ção psicossocial, ambula-torial, casas-abrigo, hospital-dia etc. Isto implica o Ministé-rio da Saúde elaborar umapolítica específica de atençãoe auxílio aos familiares de do-entes mentais, comprova-damente carentes, repassan-do às famílias parte dopercentual que o ministériogasta com o pagamento dasdiárias hospitalares. Uma so-lução que, ao nosso ver, cum-pre relevante papel social.

A lei recentemente apro-vada na Câmara dos Depu-tados impede que pessoascompulsoriamente internadas- como no depoimento aci-ma - sejam abandonadas,bem como contribuirá parauma nova cultura de relacio-namento e tratamento às víti-mas de sofrimento mental.

PRÓ-CIDADANIAPRÓ-CIDADANIA

O GLOBO

25/04/2001

Dr. Rosinha,

pediatria e sanitarista,é

deputado federal pelo PT-PR.

23

Page 26: Revista Cidadania

Cooperativas Sociais

LEI Nº 9.867, DE 10 NOVEM-BRO DE 1999Dispõe sobre a criação e o fun-cionamento de Cooperativas So-ciais, visando à integração soci-al dos cidadãos, conforme es-pecifica.O PRESIDENTE DA REPÚBLI-CA faça saber que o CongressoNacional decreta e eu sancionoa seguinte Lei:Art. 1º - As Cooperativas Soci-ais, constituídas com a finalidadede inserir as pessoas em des-vantagem no mercado de tra-balho econômico, por meio dotrabalho, fundamentam-se nointeresse geral da comunidadeem promover a pessoa humanae a integração social dos cida-dãos, e incluem entre suas ativi-dades:I - a organização e gestão deserviços sócios-sanitários eeducativos; eII - o desenvolvimento de ativi-dades agrícolas, industriais, co-merciais e de serviços.Art. 2º - Na denominação e ra-zão social das entidades a quese refere o artigo 1º é obrigató-rio o uso da expressão “Coo-perativa Social”, aplicando-lhestodas as normas relativas aosetor em que operam, desde quecompatíveis com os objetivosdesta Lei.

Art. 3º - Consideram-se pesso-as em desvantagem, para osefeitos desta lei:I - os deficientes físicos e sen-soriais;II - os deficientes psíquicos ementais, as pessoas dependen-tes de acompanhamento psiqui-átrico permanente, os egressosdos hospitais psiquiátricos;III - os dependentes químicos;IV - os egressos de prisões;V- (VETADO) idosos sem famí-lia e sem meios de subsistên-cia;VI - os condenados a penasalternativas à detenção;VII - os adolescentes em idadeadequada ao trabalho e situa-ção familiar difícil do ponto devista econômico, social ouafetivo.§ 1º - (VETADO) Além dos gru-pos mencionados no caput,poderão ser consideradas pes-soas em desvantagem outraspessoas ou grupos assim defi-nidos por decisão do ConselhoNacional de Assistência Social.§ 2º - As Cooperativas Sociaisorganizarão seu trabalho, es-pecialmente no que diz respei-to a instalações, horários e jor-nadas, de maneira a levar emconta e minimizar as dificulda-des gerais e individuais daspessoas em desvantagem que

nelas trabalharem, e desenvol-verão e executarão programasespeciais de treinamento com oobjetivo de aumentar-lhes aprodutividade e a independên-cia econômica e social.§ 3º - A condição de pessoa emdesvantagem deve ser atesta-da por documentação proveni-ente de órgão da administra-ção pública, ressalvando-se odireito à privacidade.Art. 4º - O estatuto da Coope-rativa Social poderá preveruma ou mais categorias de só-cios voluntários, que lhe pres-tam serviços gratuitamente, enão estejam incluídos na defini-ção de pessoas em desvanta-gem.Art. 5º - (VETADO)Parágrafo Único - (VETADO)As cooperativas Sociais, naquiloque couber, os dispositivosconstitucionais referentes àscooperativas, bem como os daLei nº 5.764, de 16 de dezem-bro de 1971, e os da Lei Orgâ-nica da Assistência Social (Leinº 8.742, de 07 de dezembrode 1993).Art. 6º - Esta lei entra em vigorna data de sua publicação.Brasília, 10 novembro de 1999;178º da Independência e 111ºda República.Fernando Henrique Cardoso.

A Lei das Cooperativas Sociais, de autoria do deputado Paulo Delgado, se insere no proces-so de humanização da situação das pessoas com transtornos mentais por assegurar sua integraçãoà sociedade. A lei possibilita que pessoas egressas de hospitais psiquiátricos ou em tratamento - oque as coloca em situação de desvantagem econômica - possam se organizar e se associar paratrabalhar, garantindo-lhes o direito à dignidade e o reconhecimento de que podem ser produtivase contribuir para a sociedade.

Cooperativas Sociais

24

Page 27: Revista Cidadania

25

Tribuna de Minas:Qual a mudança prática anova legislação vai impor àsaúde mental?

Paulo Delgado: A lei vaitransferir recursos do sistemafechado para o aberto. Hojeem dia, os transtornos mentaissão responsáveis pelo tercei-ro maior gasto anual cominternação no Sistema Únicode Saúde (SUS), correspondea R$ 450 milhões e ficandoatrás, apenas, das doenças doaparelho circulatório e de gra-videz e parto. Até agora, cer-ca de 95% do orçamento dasaúde mental iam para o mo-delo maniconial, caracterizadopor internação, sedação, iso-lamento e perda do contato so-cial por parte do paciente. Oregime aberto terá, como ba-ses, os direitos humanos, oavanço da medicina e a maioreficiência na recuperação so-cial do doente. Ou seja: o cen-tro da assistência passará dohospital para a pessoa.

Como vai funcionareste regime aberto?

O Ministério da Saúdeainda vai regulamentar a lei,baseada na universalizaçãodo direito do cidadão comtranstorno mental, na imple-

“DERRUBAMOS A LEI DEFERRO DA DOENÇA MENTAL”

mentação da segunda opiniãomédica e no atendimento pre-ferencial em serviços comuni-tários de saúde mental. O tra-tamento aberto será a regra,enquanto a internação será aexceção. Assim, haverá areinserção social do paciente emseu meio. Está vedada a cria-ção de novos hospitais psiquiá-tricos. Os atuais serão progres-sivamente fechados e cadadesconstrução será acompa-nhada pela criação de um ser-viço aberto. A lei, no entanto, éprogressiva. A aplicação nãoserá imediata em função do ris-co de colapso no sistema, en-quanto as altas serão planeja-das e responsáveis. O proces-so transitório deve demorar cer-ca de cinco anos.

Uma das críticas aoprojeto é o risco de os do-entes mentais graves vive-rem abandonados nasruas. É possível isso acon-tecer?

O alerta é necessário,entretanto a legislação não sig-nifica a abertura das portas e oabandono dos pacientes. Ha-verá controle efetivo. O artigo4 prevê a indicação de inter-nação quando os recursos ex-tra-hospitalares se mostrareminsuficientes. No entanto, elanão vai ocorrer em instituiçãoasilar, mas em pronto socorro,por exemplo. Ainda assim, ainternação necessária deveráser comunicada à autoridadejudiciária, e a alta passa a fazerparte do tratamento.

Paulo Delgado, autor da Lei 10.216

Page 28: Revista Cidadania

26

“A lei prevê orespeito absoluto àdiferença entre as

pessoas”

Márcio Aires

AssociaçãoCasaViva

O Ministério da Saúde iniciouuma auditoria em todas as insti-tuições psiquiátricas brasileiras,para avaliar os casos prolon-gados e, também, as ausênciasde internamentos. E, nos próxi-mos dias, será criado o Planode Atenção à Desospitalização(PAD), prevendo o deslocamen-to da verba das Autorizaçõespara Internação Hospitalar(AIHs) para os domicílios. As fa-mílias receberão verba para tra-tar os seus doentes.

Outra crítica é quantoao uso do conceito de mani-cômio para os hospitais e clí-nicas aprovados nas refor-mas de psiquiatria.

As instituições aprovadaspela Psiquiatria 4, com certeza,são melhores que as demais.Mas, ainda assim, são mani-comiais, porque cuidar bem de

uma pessoa não é simplesmen-te deixá-la num ambiente limpo,

mas tratá-la como ser humano.A higiene não é o único critériopara a questão. Reconheço osavanços, mas o caminho é lon-go e falta muito a ser percorrido.O ambiente ainda é muito fecha-do, com grades, impiedade e in-diferença por parte de técnicostreinados para calar o paciente.A lei prevê o respeito absoluto àdiferença entre as pessoas.

E sobre a acusação dea lei não tratar a questãocomo médica?

Este é o raciocínio dasescolas tradicionais de psiquia-tria, o domínio médico ultra-es-pecializado sem outras possibi-lidades. O texto tem, sim, funda-mentação médica e parte, justa-mente, do avanço da medicina.Mas o cuidado médico não podeexcluir e estigmatizar. Não adi-anta apenas medicarmos um pa-ciente enjaulado. A zona desombra entre entre a sanida-de e a loucura é grande. Issodá ao saber psiquiátrico res-ponsabilidade ainda maior emcomparação com outras áre-as da medicina. Na psiquia-tria, encontrei os profissionaismédicos mais íntegros, mas,também, muitos charlatões.

Tribuna de Minas

Juiz de Fora

17/04/2001

Page 29: Revista Cidadania

27

Dia 6 de abril de 2001,doze anos depois de ter dadoentrada no Congresso, a lei dareforma psiquiátrica foi sancio-nada pelo Presidente da Re-pública, com emoção e soleni-dade, marcando as comemo-rações no Brasil do Dia Mundi-al da Saúde Mental. Um mêsdepois, na Assembléia Mundialda Saúde, em Genebra, ondetodos os ministros de 190 paí-ses do mundo afirmaram acei-tar a recomendação da OMS,

de atribuir prioridade máximaà saúde mental, o Ministro daSaúde do Brasil declarou aosestados membros que o paísinaugurava uma nova era, deintrodução definitiva da saúdemental na agenda da saúdepública, através da assinaturapresidencial na lei da reformapsiquiátrica. A repercussão danova lei foi enorme, em todosos meios de comunicação demassa, e seu impacto comodivisor de águas na história da

mudança da psiquiatria públicano Brasil não deve ser subes-timado.

Porém, a reforma psi-quiátrica é um mundo desme-surado de grande. Ninguémsabe aonde vão dar seus con-fins, qual a fundura de seu mar,ou o perder de vista dos seushimalaias.

A aprovação de uma leifederal, com o destaque queteve, por tornar-se parte decomemorações que se realiza-

Pedro Gabriel Godinho Delgado2

.. then on the shoreof the wide world I stand alone, and think till love and fame to nothingness do sink.

Keats, soneto, “When I have fears”, 1818

No litoral do vasto mundo:Lei 10.216 e a amplitude da reforma psiquiátrica1

Mur

y -

Ass

ocia

ção

Cas

aViv

a

Page 30: Revista Cidadania

28

ram em quase todas as gran-des cidades do país, traz o pro-cesso de reforma para um novoestágio de institucionalidade,colocando-o definitivamente naluz do debate sobre a cidada-nia e as políticas públicas.

Neste pequeno artigo,examinaremos rapidamente al-gumas implicações e desdobra-mentos da aprovação da lei10.216.

1. A lei 10.216 e apolítica de saúde

O texto aprovado cons-titui o resultado final de umlongo ciclo de debates noCongresso, especialmente noSenado, onde várias reda-ções substitutivas foram apre-sentadas. Ficou mantida a di-retriz geral de reorientação domodelo de saúde públicaneste subsetor, com substitui-ção progressiva do aparatohospitalocêntrico. Em um do-cumento oficial de divulgação,o Ministério da Saúde expri-miu seu apoio ao projeto delei:“Por que o Ministério da Saú-de aprovou o projeto ? Por-que a Lei da Reforma Psiqui-átrica preenche uma gravelacuna legal. A lei federal so-bre saúde mental é de 1934,um período sombrio para asinstituições democráticas, quedesembocou na ditadura do

Estado Novo. Essa velha le-gislação apresenta um visãoautoritária sobre o tratamen-to. Por isso, é incompatívelcom o pressuposto ético deque o doente mental é um ci-dadão – e como tal deve sertratado. Com base nesse prin-cípio, o novo texto destaca osdireitos do paciente.

Porque a nova legis-lação contém uma clara dire-triz de saúde pública, ao de-terminar que os governos de-vem investir nos recursos co-munitários e no sistemaambulatorial. As instituiçõesda velha psiquiatria asilardevem ser progressivamen-te extintas, com a criação denovos serviços e o acolhi-mento adequado a esses pa-cientes que vivem intramuros,muitos deles pessoas idosasque ficaram confinadas des-de a adolescência sem teremcometido crime algum.

Além disso, [apoiou-aporque] a lei regulamenta asinternações involuntárias, im-pedindo que se faça violên-cia em nome da medicina eda psiquiatria; define comodevem ser realizadas as pes-quisas biomédicas com paci-entes mentais e estabelece asresponsabilidades dos váriosníveis de gestão. Ou seja, criauma configuração clara dequal o caminho que deve sertrilhado, embora com o nível

de generalidade que uma leidesse tipo comporta “(MINIS-TÉRIO DA SAÚDE, Informe

Saúde, ano V, n. 107, abrilde 2001).

2.Internaçãoinvoluntária

Tem-se falado muito naregulamentação da lei. Entre-tanto, é preciso sublinhar queela já está em vigor, já temeficácia legal. Portanto, apartir de sua publicação noDiário Oficial, em 09 de abrilde 2001, a internaçãoinvoluntária já precisa sercomunicada ao Ministério Pú-blico Estadual. Alguns estadosjá o vinham fazendo, e o me-lhor exemplo é o estado dePernambuco, onde, por con-ta da lei estadual aprovadaem 19923, o Ministério Públi-co Estadual vem realizando ocontrole e acompanhamentodas internações involuntáriasdesde o ano de 1997. Osdados desse Estado mostramque o número de notificaçõestende a ser crescente no pri-meiro ano, estabilizando-seem seguida (MPE-PE, 2001).É de esperar-se que, no pri-meiro momento, os serviçosestejam regularizando a roti-na de notificação, o que pro-duz uma curva crescente donúmero de eventos, estabe-lecendo-se uma tendênciamais real alguns meses de-

Page 31: Revista Cidadania

29

pois do início dos registros. Arelação entre internaçõesinvoluntárias e voluntárias éum importante indicador daqualidade da rede de servi-ços e do grau de adesão dosusuários (cf., p.ex., RAMON,1996), e somente a partir deagora passaremos a dispordesta informação. Cabe aoMinistério da Saúde articularinternamente, com a Vigilân-cia Sanitária dos Estados, oregistro sistemático desteevento, o que propiciará umaimportante base de dadospara o acompanhamento daatenção psiquiátrica pública.

Os hospitais que reali-zam a internação contra avontade do paciente deverãoencaminhar tal comunicaçãoaos setores competentes doMinistério Público Estadual,em geral as áreas de Defesada Cidadania ou, dentro des-ta, a área específica da saú-de. Uma normativa mínima,com o modelo de formuláriopara a notificação, está sen-do encaminhado pelo Minis-tério da Saúde às Secretari-as Estaduais, para distribui-ção aos pólos de emergênciaou serviços de internaçãopsiquiátrica.

Deve ser ressaltadoque uma internação voluntá-ria pode tornar-se involun-tária e, se ficar assim caracte-rizada, também deve ser ob-

jeto de notificação ao Ministé-rio Público Estadual.

O Colégio de Procura-dores do Ministério PúblicoFederal e o Ministério daSaúde realizarão um primei-ro seminário sobre o tema, emagosto de 2001, buscandoestabelecer os consensos mí-nimos para os protocolos a se-rem observados no cumpri-mento deste dispositivo da lei10.216. O objetivo é estabe-lecer o modelo geral a ser se-guido, preservando-se a au-tonomia de cada estado da fe-deração na rotina concreta aser seguida.

3. Cidadania eincapacidade

laborativa: interdiçãocivil e atençãopsicossocial

Ao centrar o foco daatenção nos direitos do paci-ente, convocando expressa-mente as instituições sociaisde defesa da cidadania, comoo Ministério Público, a lei emvigor dá novo sentido aosimpasses que o atendimentopsicossocial enfrenta no cam-po da incapacidade civil dosusuários dos serviços. Os ar-tigos 1º. e 2º. tratam ex-pressamente da defesa dosdireitos, embora sem mençãoespecífica à capacidade civil.

Parece legítima a inter-pretação de que, sendo a in-

terdição um processo judiciá-rio que afeta diretamente acapacidade civil do pacientee, portanto, seus direitos, eladeva igualmente ser objeto deacompanhamento e fiscaliza-ção. Também neste caso o Mi-nistério Público deverá exer-cer sua função de fiscal da jus-tiça e defensor da cidadania.A curatela dos pacientes men-tais não está submetida, emnosso país, a nenhum instru-mento de revisão, e o recur-so ao procedimento da inter-dição é cada vez mais bana-lizado (cf. DELGADO, 1992,117-178), especialmente emfunção das exigências do sis-tema de previdência social. Éurgente o estabelecimento deuma norma administrativa quedistinga com clareza e eficá-cia administrativa a incapaci-dade laborativa da incapaci-dade civil. Hoje, o pacientemental que pleitea o benefí-cio por incapacidade para otrabalho é quase invariavel-mente obrigado a submeter-se à interdição de seus direi-tos civis. Este é um fato que,apesar de ter conseqüênciasgraves para a subjetividadedo paciente, faz parte de umarotina quase incontornáveldos serviços de atençãopsicossocial. A maioria abso-luta das demandas dirigidasa um escritório de defesa dosdireitos do paciente de uma

Page 32: Revista Cidadania

30

entidade civil do Rio de Ja-neiro, por exemplo, é consti-tuída por situações de interdi-ção civil vinculadas à presta-ção de benefícios previden-ciários (IFB, 2001).

4.Louco infrator:reforma da Lei de

Execuções Penais emudanças possíveis

do Código Penal

A lei 10.216 faz umarápida menção, nos artigos6º. e 9º., à internação com-pulsória, isto é, determinadapela Justiça, nos casos dedelito cometido pelo pacientepsiquiátrico. Desde a redaçãooriginal de 1989, quando ini-ciou sua tramitação na Câma-ra dos Deputados, o projetoPaulo Delgado optoudeliberadamente por não tra-tar das mudanças nos Códi-gos Civil e de Processo Civil– no que se refere à interdi-ção dos loucos de todo o gê-

nero –, e na área Penal – noque respeita à inimputa-bilidade e periculosidade dopaciente psiquiátrico que co-mete delitos. Foi uma opçãodeliberada, em benefício daclareza e da eficácia da mu-dança normativa proposta.Era prioritário, inicialmente:inaugurar a reorientação dapolítica sanitária hospitalocên-trica; afirmar a compatibilida-

de entre cidadania do paci-ente e tratamento, como norteético da reforma, e garantirque a internação psiquiátricadeixasse de fazer-se no va-zio normativo e ao largo dosdispositivos de defesa da li-berdade individual. Os 3 arti-gos inaugurais, que resulta-ram no texto legal aprovadoem 06/04/01, abriam o cami-nho para as demais iniciativasde mudança no conjunto de leisaplicáveis à condição do loucona sociedade. Estas outras ini-ciativas são tarefas em curso,exteriores à lei recentementeaprovada, mas intrínsecas aovasto programa da reforma psi-quiátrica, e que enfrentam difi-culdades previsíveis.

Na revisão do CódigoPenal em tramitação no Con-gresso, por exemplo, não es-tão sendo cogitadas mudançasde fundo nos quesitos dainimputabilidade, periculosidadee medida de segurança. Estásendo proposta uma vincula-ção do tempo de duração damedida de segurança ao equi-valente penal para o mesmodelito (todos sabem que umamedida de segurança pode serperpétua, pois depende ape-nas do laudo psiquiátrico decessação da periculosidade), oque não deixa de ser um movi-mento, mesmo tímido, para acorreção de uma aberraçãojurídica. Também está em cur-

so um esforço de “humani-zação” da Lei de ExecuçõesPenais, de modo a permitir quealguns benefícios da pena(progressão de regime, visitasíntimas, etc.) possam ser esten-didos ao paciente que vive sobo cruel e paradoxal regime dotratamento compulsório. Os Mi-nistérios da Justiça e da Saúdeconstituíram ComissãoInterministerial para tratar dosHospitais de Custódia e Trata-mento Psiquiátrico, seu funcio-namento e a legislação aplicá-vel. Os relatórios dessa Comis-são podem ser consultadosmediante solicitação por via ele-trônica ao Ministério da Justiça(MJ, 2000).

5.Desinstitucionalização

e suporte social

O artigo 5º. da lei10.216 diz o seguinte:

O paciente há longo

tempo hospitalizado ou para o

qual se caracterize situação de

grave dependência institu-

cional, decorrente de seu qua-

dro clínico ou de ausência de

suporte social, será objeto de

política específica de alta pla-

nejada e reabilitação psicos-

social assistida, sob responsa-

bilidade da autoridade sanitá-

ria competente, e supervisão

de instância a ser definida pelo

Poder Executivo, assegurada

Page 33: Revista Cidadania

31

a continuidade do tratamento,

quando necessário. O texto diz respeito aos

pacientes de longa permanên-cia institucional (PLP), que nãodevem ser designados de “crô-nicos”, pela imprecisão clínicado termo e pela carga negativaque a palavra assumiu na cul-tura institucional da psiquiatria,e que são cerca de 1/3 dos atu-ais 70.000 internos dos hospi-tais brasileiros. Há estudos re-centes, que caracterizam umpouco melhor o perfildemográfico e clínico dessespacientes (SES/MS, 2001;UFRJ/NUPPSAM, 2000).Penso que o texto legal é cla-ro: o Estado tem responsabili-dade de prover “política espe-cífica de alta planejada e reabi-litação psicossocial assistida”, oque inclui a garantia do atendi-mento em ambiente comunitá-rio e os insumos adequados desuporte social. A experiência daSecretaria de Saúde do esta-do do Rio de Janeiro e dos mu-nicípios da região metropolita-na do Rio, em relação aomacro-hospital Casa de Saú-de Dr. Eiras, de Paracambi, eo trabalho, em curso há 5 anos,do Hospital Cândido Ferreira,em Campinas, são bons exem-plos de um esforço institucionalna direção do que a lei reco-menda (SES-RJ, 2001-b.VALENTINI, W., 2000). Há al-gumas experiências européias

(Inglaterra, Espanha) e ameri-canas (Canadá) que são bonsexemplos do enfrentamentoadequado deste problemacrucial da reforma (v., p. ex.,DESVIAT, 2001). No Brasil,tivemos o impedimento jurídi-co interposto à implantação doPAD – Programa de Apoio àDesospitalização, de 1993,mas hoje está incluído no or-çamento do Ministério da Saú-de (Plano Plurianual 2000-2002) recursos para a con-cessão do “incentivo-bônus”,sob critérios definidos, aospacientes de longa perma-nência. “Todos os pacientescom tal perfil [PLP] inseridosem programas de reabilitaçãopsicossocial na Espanha,qualquer que seja a formainstitucional ou orientação te-órico-técnica do programa,recebem apoio financeiro re-gular, na forma de bolsa”,relata Manuel Desviat(2001b). A implantação do in-centivo-bônus, com a defini-ção das normas aplicáveis aotal benefício, incluída em umadefinição mais abrangente dapolí t ica de reabi l i taçãopsicossocial, constitui umadas medidas mais urgentesda regulamentação da lei10.216.

6. O Jardim dosCaminhos que se

Bifurcam

São vários os desdo-bramentos e percursos a se-rem seguidos, sob a égide dasubstituição progressiva dapsiquiatria hospitalocêntrica eo norte ético da autonomiapossível dos pacientes e fa-miliares. A atenção psicos-social de base comunitária,determinada pela lei, aindanão é dominante: ao contrá-rio, em termos de investimen-tos públicos, ela constitui fra-ção muito pequena (cerca deum décimo) do que é destina-do à assistência hospitalar.Há muito a ser feito na regu-lamentação dos direitos “es-peciais” dos pacientes: pro-teção ao trabalho e trabalhoassistido, geração de renda,moradia protegida, benefíciosprevidenciários. A realidadedos antigos manicômios judi-ciários (Hospitais de Custódiae Tratamento Psiquiátrico)permanece pouco alterada,bem como a legislação nestaárea. O mesmo se pode dizerpara a legislação civil – a in-terdição e curatela.

Trata-se de um longoprocesso, um vasto mundo,marcado pela busca do trata-mento adequado e accessívele da autonomia possível dosusuários e trabalhadores dosserviços públicos. A autono-mia como tarefa maior, comodesafio posto pela construção

Page 34: Revista Cidadania

32

da sociedade democrática(CASTORIADIS, 1999, 69-71): o feito e o por fazer.

Referênciasbibliográficas:

BERISTAIN, A. Nova

criminologia à luz do direito

penal e da vitimologia. Edi-tora UnB, Brasília, 2000.

CASTORIADIS, C.Feito e a ser feito. As encru-

zilhadas do labirinto V. DP&AEditora, Rio de Janeiro,1999.

DELGADO, P. As ra-

zões da tutela. Psiquiatria,

justiça e cidadania do louco

no Brasil. Te Corá Editora,Rio de Janeiro, 1992.

DELGADO, P. Cidada-nia e saúde mental. Cader-

nos Cepia 4. CEPIA, Rio deJaneiro, 1998, 91-104.

DESVIAT, M. (2001b).Seminário de Pesquisa doNUPPSAM. IPUB/UFRJ,06.06.2001, datilografado.

DESVIAT, M. (ORG.).Atención comunitária a la

cronic idad psiquiát r ica .Monografias de Psiquiatría.Ano XIII, n. 2, abril-junio2001.

IFB. INSTITUTOFRANCO BASAGLIA. SOS

Direitos do Paciente – Se-

minário Interdisciplinar. Riode Janeiro, junho de 2001(relatório datilografado).

KEATS, John. Poemas.Tradução e notas de PériclesEugênio da Silva Ramos. Art Edi-tora, São Paulo, 1987.

MINISTÉRIO DA SAÚDE.InformeSaúde. Ano V, n. 107, 3ª

semana de abril de 2001.

MINISTÉRIO DA SAÚDE.Legislação em saúde mental:

1990-2000. Coordenação Geralde Documentação e Informação,MS, Brasília, 2000, 2ª edição2001.

MINISTÉRIO PÚBLICOESTADUAL. Estado dePernambuco. Procuradoria Ge-ral da Cidadania. Área de SaúdeMental: Relatório. Recife, 2001.

RAMON, S. Mental health

in Europe. Ends, beginnings and

rediscoveries. Mind, Londres,1996.

SECRETARIA DE ESTA-DO DA SAÚDE / MINISTÉRIODA SAÚDE. Censo Clínico e

Psicossocial dos Pacientes da

Casa de Saúde Dr. Eiras,

Paracambi. SES/MS/PRO-UNIRIO/NUPPSAM. RelatórioFinal. Rio de Janeiro, junho de2001.

SECRETARIA DE ESTA-DO DA SAÚDE. “Reestruturação do atendimen-to na CSDE-Paracambi”. Rela-tório parcial. Rio de Janeiro,2001b.

UFRJ/NUPPSAM. Perfil

dos Pacientes de Longa Per-

manência do Estado do Rio de

Janeiro. Relatório de Pesquisa.Rio de Janeiro, 2000.

VALENTINI, W. Projeto

de lares abrigados do Hospital

Cândido Ferreira. Relatóriodescritivo. Secretaria Municipalde Saúde, Campinas, 2000.(datilografado).

1 Este artigo é dedicadoà memória de Luiz EugênioGodinho Delgado, médico e mi-litante da reforma sanitária bra-sileira. Publicado emVENANCIO, Ana Teresa A. &CAVALCANTI, Maria Tavares(orgs.) Saúde Mental: campo

saberes e discursos. Rio deJaneiro, Edições IPUB/CUCA,2001.

2 Professor do IPUB e daFM/HUCFF/UFRJ; Coordena-dor de saúde mental do Ministé-rio da Saúde.

3 Lei 9.716, de 07/08/92,de autoria do deputadoHumberto Costa.

Page 35: Revista Cidadania

33

Dispõe sobre a proteção e osdireitos das pessoas portadorasde transtornos mentais eredireciona o modelo assisten-

cial em saúde mental

O presidente da República

Faço saber que o CongressoNacional decreta e eu sancionoa seguinte Lei:

Art. 1º Os direitos e a proteçãodas pessoas acometidas detranstorno mental, de que trataesta Lei, são assegurados semqualquer forma de discrimina-ção quanto à raça, cor, sexo,orientação sexual, religião, op-ção política, nacionalidade, ida-de, família, recursos econômicose ao grau de gravidade ou tem-po de evolução de seu transtor-no, ou qualquer outra.

Art. 2º Nos atendimentos emsaúde mental, de qualquer na-tureza, a pessoa e seus familia-res ou responsáveis serão for-malmente cientificados dos direi-tos enumerados no parágrafoúnico deste artigo

Parágrafo único. São direitos dapessoa portadora de transtornomental:

I - ter acesso ao melhor trata-mento do sistema de saúdeconsentâneo às suas necessi-dades;

II - ser tratada com humanida-de e respeito e no interesseexclusivo de beneficiar suasaúde, visando alcançar suarecuperação pela inserção nafamília, no trabalho e na comu-nidade;

III - ser protegida contra qual-quer forma de abuso e explo-ração;

IV - ter garantia de sigilo nasinformações prestadas;

V - ter direito à presença médi-ca, em qualquer tempo, paraesclarecer a necessidade ounão de sua hospitalizaçãoinvoluntária;

VI - ter livre acesso aos meiosde comunicação disponíveis;

VII - receber o maior númerode informações a respeito desua doença e de seu tratamen-to;

VIII - ser tratada em ambienteterapêutico pelos meios menosinvasivos possíveis;

IX - ser tratada, preferencial-mente, em serviços comunitári-os de saúde mental.

Art. 3º É responsabilidade doEstado o desenvolvimento dapolítica de saúde mental, a as-sistência e a promoção deações de saúde aos portado-

res de transtornos mentais, coma devida participação da socie-dade e da família, a qual seráprestada em estabelecimento desaúde mental, assim entendidasas instituições ou unidades queofereçam assistência em saúdeaos portadores de transtornosmentais.

Art. 4º A internação, em qual-quer de suas modalidades, sóserá indicada quando os recur-sos extra-hospitalares se mos-trarem insuficientes.

§ 1º O tratamento visará, comofinalidade permanente, areinserção social do paciente emseu meio.

§ 2º O tratamento em regime deinternação será estruturado deforma a oferecer assistência in-tegral à pessoa portadora detranstornos mentais, incluindoserviços médicos, de assistên-cia social, psicológicos,ocupacionais, de lazer, e outros.

§ 3º É vedada a internação depacientes portadores de trans-tornos mentais em instituiçõescom características asilares, ouseja, aquelas desprovidas dosrecursos mencionados no § 2ºe que não assegurem aos paci-entes os direitos enumerados noparágrafo único do art. 2º.

Lei nº 10.216 de 6 de abril de 2001

Page 36: Revista Cidadania

Art. 5º O paciente há longo tem-po hospitalizado ou para o qualse caracterize situação de gra-ve dependência institucional,decorrente de seu quadro clí-nico ou de ausência de supor-te social, será objeto de políticaespecífica de alta planejada ereabilitação psicossocial assis-tida, sob responsabilidade daautoridade sanitária competentee supervisão de instância a serdefinida pelo Poder Executivo,assegurada a continuidade dotratamento, quando necessário.

Art. 6º A internação psiquiátricasomente será realizada medi-ante laudo médico circunstan-ciado que caracteriza os seusmotivos.

Parágrafo único. São conside-rados os seguintes tipos deinternação psiquiátrica:

I - internação voluntária: aque-la que se dá com o consenti-mento do usuário;

II - internação involuntária:aquela que se dá sem o con-sentimento do usuário e a pe-dido de terceiro; e

III - internação compulsória:aquela determinada pela Justi-ça.

Art. 7º A pessoa que solicitavoluntariamente sua interna-ção, ou que a consente, deveassinar, no momento da admis-são, uma declaração de que

opta por esse regime de trata-mento.

Parágrafo único. O término dainternação voluntária dar-se-ápor solicitação escrita do paci-ente ou por determinação domédico assistente.

Art. 8º A internação voluntáriaou involuntária somente seráautorizada por médico devida-mente registrado no ConselhoRegional de Medicina - CRMdo Estado onde se localize oestabelecimento.

§ 1º A internação psiquiátricainvoluntária deverá, no prazode setenta e duas horas, sercomunicada ao Ministério Pú-blico Estadual pelo responsá-vel técnico do estabelecimentono qual tenha ocorrido, deven-do esse mesmo procedimentoser adotado quando da res-pectiva alta.

§ 2º O término da internaçãoinvoluntária dar-se-á por soli-citação estrita do familiar, ou doresponsável legal, ou quandoestabelecido pelo especialistaresponsável pelo tratamento.

Art. 9º A internação compulsó-ria é determinada, de acordocom a legislação vigente, pelojuiz competente, que levará emconta as condições de segu-rança do estabelecimento,quanto à salvaguarda do paci-ente, dos demais internados efuncionários.

Art. 10 Evasão, transferência,acidente, intercorrência clínicagrave e falecimento serão co-municados pela direção do es-tabelecimento de saúde mentalaos familiares, ou ao represen-tante legal do paciente, como àautoridade sanitária responsá-vel, no prazo máximo de vintee quatro horas da data da ocor-rência.

Art. 11 Pesquisas científicaspara fins diagnósticos outerapêuticos não poderão serrealizadas sem o consentimen-to expresso do paciente, ou deseu representante legal, e sema devida comunicação aos con-selhos profissionais competen-tes e ao Conselho Nacional deSaúde.

Art. 12 O Conselho Nacionalde Saúde, no âmbito de suaatuação, criará comissão naci-onal para acompanhar aimplementação dessa Lei.

Art. 13 Esta Lei entra em vigorna data de sua publicação.

Brasília, 6 de abril de 2001:180º da Independência e

113º da República

Fernando Henrique Cardoso

José Gregori

José Serra

Roberto Brant

34

Page 37: Revista Cidadania

35

Deixa-nos rir. A cre-dulidade dos povos civilizados,dos sábios, dos governos,adorna a psiquiatria de não seique luzes sobrenaturais..Nãopretendemos discutir aqui ovalor da vossa ciência nem aduvidosa existência das doen-ças mentais. Mas para cadacem supostas patogenias nasquais se desencadeia a con-fusão da matéria e do espírito,para cada cem classificaçõesdas quais as mais vagas sãoas mais aproveitáveis, quantassão as tentativas nobres dechegar ao mundo cerebralonde vivem tantos dos nossosprisioneiros? Quantos, porexemplo, acham que o sonhodo demente precoce, as ima-gens pelas quais ele é possu-ído, são algo mais que uma sa-lada de palavras?

Não nos surpreende-mos com vosso despreparo di-ante de uma tarefa para a qualsó existem uns poucos predes-tinados. No entanto nos rebe-lamos contra o direito conce-dido a homens - limitados ounão - de sacramentar com oencerramento perpétuo suas

investigações no domínio doespírito.

E que encerramento!Sabe-se - não se sabe o sufi-ciente - que os hospícios, lon-ge de serem asilos, são pavo-rosos cárceres onde osdetentos fornecem uma mão deobra gratuita e cômoda, ondeos suplícios são a regra, e issoé tolerado pelos senhores. Ohospício de alienados, sob omanto da ciência da justiça, écomparável à caserna, à pri-são, à masmorra.

Não levantaremos aquia questão das internações ar-bitrárias, para vos poupar otrabalho dos desmentidos fá-ceis. Afirmamos que uma gran-de parte dos vossos pensio-nistas, perfeitamente loucossegundo a definição oficial,estão, eles também, arbitrari-amente internados. Não admi-timos que se freie o livre de-senvolvimento de um delíriotão legítimo e lógico quantoqualquer outra seqüência deidéias e atos humanos. A re-pressão dos atos anti-sociaisé tão ilusória quanto inaceitá-vel seu fundamento. Todos os

atos individuais são anti-soci-ais. Os loucos são as vítimasindividuais por excelência daditadura social; em nome des-sa individualidade intrínsecaao homem, exigimos que se-jam soltos esses encarceradosda sensibilidade, pois não estáao alcance das leis prendertodos os homens que pensame agem.

Sem insistir no caráterperfeitamente genial das ma-nifestações de certos loucos,na medida da nossa capaci-dade de avaliá-las, afirmamosa legitimidade absoluta da suaconcepção de realidade..

Que tudo isso seja lem-brado amanhã pela manhã, nahora da visita, quando tenta-rem conversar sem dicionáriocom esses homens sobre osquais, reconheçam, os senho-res só têm a superioridade daforça”.

“As leis e os costumesvos concedem o direito

de medir o espírito..

Antonin Artaud

1925Carta aos médicos

chefes dos manicômios inColeção Rebeldes Malditos

(Tradução de Cláudio Willer -L&PM Editores)

Page 38: Revista Cidadania

36

ExpedienteRealização: Escritório de Juiz de Fora/MG

e Gabinete do Deputado Paulo Delgado em Brasília/DFProjeto gráfico e Diagramação: Mário Tarcitano

Ilustração da capa: Isaias Nazaré Leopoldino - usuário de saúde mentalUma pessoa com cara de gato - Acrílica s/ tela - Associação CasaViva

Endereço: Câmara dos Deputados Gabinete 268 - Anexo III - Brasília/DF - Cep: 70160-900Telefones: (0xx61) 3215-3268 / (0xx61) 3215-5268 / (0xx32) 3216-3610

Fax: (0xx61) 3215-2268 - (0xx32) 3215-0506

http://www.paulodelgado.com.bre-mail: [email protected]@camara.gov.br

As doenças mentais são somente frutos daimaginação.

Mentira. São doenças verdadeiras quecausam muito sofrimento, podendo inclusivelevar o doente à morte.

As doenças mentais são “manias”, fraquezade caráter, “doença de rico”.Mentira. As doenças mentais são causadaspor fatores biológicos, psicológos e sociais, eatingem todas as classes com a mesmaintensidade.

Pessoas com doenças mentais são perigosase devem ser excluídas da família, dacomunidade e da sociedade.

7 de abril - Dia Mundial da SaúdeOMS - Organização Mundial da Saúde

Mentira. Pessoas com problemas de SaúdeMental não representam perigo para família,comunidade ou sociedade. Por esse motivo,devem ser tratadas adequadamente einseridas na comunidade, sem medo ouexclusão. Assim, poderão levar uma vidanormal, feliz e produtiva, como todo mundo.

Já existe tratamento para as doençasmentais.

Verdade. Já existem tratamentos efetivos, esem sofrimentos ao alcance de todos.

Verdades e mentirasem saúde mental

Page 39: Revista Cidadania
Page 40: Revista Cidadania