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8 Revista Científica da Faculdade Salesiana Maria Auxiliadora Espaços expressivos: Diversidade e Heterogênese UrbanaHeterogênese Urbana Artigo DAVID REGGIO Graduado em Filosofia, Mestre em Fenomenologia pela Universidade de Londres e Doutor em Psicopatologia e Psiquiatria pela Universidade de Londres. Pesquisador Visitante pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). PAULO DE TARSO DE CASTRO PEIXOTO Graduado em Musicoterapia. Pós graduado em Psicopedagogia e em Educação, Currículo e Práticas Educativas (PUC). Mestre em Psicologia (UFF). Doutorando em Psicologia (UFF). Supervisor da Equipe dos Espaços de Convivência, Cultura, Eventos e Renda do Programa de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Macaé – RJ. Professor de Filosofia: Escola Alfa. Professor do Curso de Especialização em Saúde Mental (Laboratório de Saúde Mental – Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP – FIOCRUZ - RJ). Professor do Curso de Pós-graduação em Transdisciplinaridade, Educação, Violência e Saúde – Funemac – Macaé (RJ). Palavras-chave: Diversidade, Espaço, Tempo, Comunidade, Heterogênese Urbana. Resumo O artigo examina as possibilidades de pensar o discurso da diversidade fora das categorias preestabelecidas que orientam a pesquisa contemporânea. Apoiando-se em diversos pontos de vista, o artigo encoraja a uma visão menos restrita do espaço, do tempo e da experiência da palavra. Por este prisma, o artigo se apóia sobre certas noções gregas que servem para clarificar e orientar as noções mais dinâmicas do espaço-tempo e a possibilidade de compreender a comunidade de uma maneira mais poética e expressiva. A intenção do artigo não é de categorizar, mas de descrever uma filosofia particular da diversidade que, ao mesmo tempo, coloca em relevo a problemática da palavra franca nos contextos institucionais. Por melhor ilustrar a realidade de uma tal leitura, o artigo se apóia sobre o projeto Heterogênese Urbana da cidade de Macáe (RJ).

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Revista Científica da Faculdade Salesiana Maria Auxiliadora

Espaços expressivos: Diversidade e Heterogênese

UrbanaHeterogênese Urbana

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DAVID REGGIOGraduado em Filosofia, Mestre em Fenomenologia pela Universidade de Londres e

Doutor em Psicopatologia e Psiquiatria pela Universidade de Londres. Pesquisador Visitante pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ).

PAULO DE TARSO DE CASTRO PEIXOTOGraduado em Musicoterapia. Pós graduado em Psicopedagogia e em Educação, Currículo e Práticas Educativas (PUC). Mestre em Psicologia (UFF). Doutorando em Psicologia (UFF).

Supervisor da Equipe dos Espaços de Convivência, Cultura, Eventos e Renda do Programa de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Macaé – RJ. Professor de Filosofia: Escola Alfa. Professor do Curso de Especialização em Saúde Mental (Laboratório de Saúde Mental –

Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP – FIOCRUZ - RJ). Professor do Curso de Pós-graduação em Transdisciplinaridade, Educação, Violência e Saúde – Funemac – Macaé (RJ).

Palavras-chave:Diversidade, Espaço, Tempo, Comunidade, Heterogênese Urbana.

Resumo

O artigo examina as possibilidades de pensar o discurso da diversidade fora das categorias preestabelecidas que orientam a pesquisa contemporânea. Apoiando-se em diversos pontos de vista, o artigo encoraja a uma visão menos restrita do espaço, do tempo e da experiência da palavra. Por este prisma, o artigo se apóia sobre certas noções gregas que servem para clarificar e orientar as noções mais dinâmicas do espaço-tempo e a possibilidade de compreender a comunidade de uma maneira mais poética e expressiva. A intenção do artigo não é de categorizar, mas de descrever uma filosofia particular da diversidade que, ao mesmo tempo, coloca em relevo a problemática da palavra franca nos contextos institucionais. Por melhor ilustrar a realidade de uma tal leitura, o artigo se apóia sobre o projeto Heterogênese Urbana da cidade de Macáe (RJ).

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Abstract

This article examines the possibilities of thinking the discourse of diversity outside of pre-established categories which steer contemporary research. It seeks to do this by drawing upon various perspectives which encourage a less restricted view of space, time and speech. For this, we draw upon certain Greek notions which serve to elucidate and give direction to more dynamic notions of space and time, and the possibility of understanding the community in a more poetic and expressive way. Our intention is not to categorize but to describe a particular philosophy of diversity which at the same time highlights the problematic of honest speech in institutional contexts. To better illustrate the reality such a reading, we draw upon the Urban Heterogenesis project of Macae.

Keywords:Community, philosophy of diversity, honest speech, Urban Heterogenesis.

DAVID REGGIOGraduado em Filosofia, Mestre em Fenomenologia pela Universidade de Londres e

Doutor em Psicopatologia e Psiquiatria pela Universidade de Londres. Pesquisador Visitante pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ).

PAULO DE TARSO DE CASTRO PEIXOTOGraduado em Musicoterapia. Pós graduado em Psicopedagogia e em Educação, Currículo e Práticas Educativas (PUC). Mestre em Psicologia (UFF). Doutorando em Psicologia (UFF).

Supervisor da Equipe dos Espaços de Convivência, Cultura, Eventos e Renda do Programa de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Macaé – RJ. Professor de Filosofia: Escola Alfa. Professor do Curso de Especialização em Saúde Mental (Laboratório de Saúde Mental –

Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP – FIOCRUZ - RJ). Professor do Curso de Pós-graduação em Transdisciplinaridade, Educação, Violência e Saúde – Funemac – Macaé (RJ).

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Introdução

Como pensar a questão da diversidade social, freqüentemente descrita como multiculturalismo dentro dos estudos

políticos e sociológicos e as suas possibilidades de expressão? Isto é, nesta experiência da diversidade, os indivíduos podem se expressar? Mais precisamente, como a diversidade pode se exprimir?

Frequentemente a sociedade se organiza através de categorias operatórias. Tomemos como exemplo a Inglaterra onde existem as classificações analíticas e as categorias operacionais para a população. Poderemos verificar que entre as diversas categorias, tais como na “classe analítica 1.1, subcategoria 1”, esta sendo considerada como a categoria de grandes profissionais, encontraremos, por sua vez, a “classe analítica 8, subcategoria L17, compreendida como indivíduos não classificáveis por outras razões1 .

No Brasil, existem as categorias sócio econômicas que podem ser encontradas na Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira, dando a visão sociodemográfica das estatísticas sociais.

De maneira similar, teremos as classificações para as doenças mentais tais como o CID 10, o DSM IV. Com certeza, existem os estudos estatísticos sobre as doenças da população, sobretudo após o século XVIII, através dos estudos de Thomas Robert Malthus2 , que foi estudado por Darwin e, frequentemente, considerado como o iniciador do

pensamento natural, pensando a seleção e as tendências das coletividades através da sociometria onde podemos mesurar, agrupar e calcular os fatores constitutivos disso que foi nomeado ‘a população’. Também encontraremos o imperativo de agrupar e classificar pela ciência e a filosofia de Aristóteles, e, sobretudo, através do sistema botânico de Carolus Linnaeus (1707-1778) e de Thomas Sydenham (1624-1689), definindo o homem como uma espécie botânica.

Através de tais aproximações pretende-se que o homem torne-se num fenômeno previsível e seus esforços calculáveis e medidos. O homem torna-se ‘objetivável’ através das categorias provenientes das ‘especializações’ que recebem o sufixo ‘logia’: a psico-logia, a neuro-logia, a psicopato-logia, a teo-logia, a noso-logia, a antropo-logia etc.

O fenomenólogo Henri Maldiney (1973, p. 85) descreve o seguinte: “Sem dúvida, toda ciência – e a psicologia – visa a um objetivo. Mas, a objetividade das ciências do homem não é aquela das ciências da natureza”3 . Então, o que podemos dizer sobre o tema da diversidade? Qual perspectiva devemos tomar? Qual terminologia devemos adotar para melhor descrever o espaço de sua composição e, por sua vez, perguntaremos: teremos uma terminologia específica para descrevê-la?

Não é o objeto deste trabalho fazer uma crítica ao sistema estatístico e categorial, mas somente, sublinhar qual é a possibilidade das experiências de cada pessoa se exprimir em meio às tantas categorizações estatísticas, geodemográficas e enquadramentos classificatórios. Mas, poderemos dizer, com tudo isso, que há uma tendência de universalidade, globalidade e, mesmo,

1. Estas informações podem ser encon-tradas no ‘Analytic classes and opera-tional categories and sub-categories of NS-SEC pelo site: http://www.ons.gov.uk/about-statistics/classifications/cur-rent/ns-sec/cats-and-c l a s s e s / a n a l y t i c -classes/index.html.

2. Ver, em particular, Thomas Robert Mal-thus, ‘An essay on the Principle of Popu-lation’, Vol.1, John Murray, London 1826.

3. “Sans doute, toute science – et la psychologie – vis à l’objectif. Mais l’objectivité des sci-ences de l’homme n’est pas celle des sciences de la nature” (MALDINEY, 1973).

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de generalização para o agrupamento dos diversos fenômenos, produzindo uma homogeneização dos grupos, uma homogeneização dos sintomas. Isto é, existem inúmeros grupos, inúmeras classificações, muitas subclassificações, que definem a construção das populações e culturas. Então, se é fácil falar do multiculturalismo através de uma tal lógica categorial de grupos: o feminismo, o homossexualismo, as artes dos pacientes de saúde mental, as artes dos adolescentes menores infratores institucionalizados etc.

Em meio às tantas categorizações e classificações vemos que na sociometria o homem torna-se estatística e, na medicina, o homem torna-se sintoma. Como na economia, o homem é uma espécie energética, termodinâmica, que gasta, perde, ganha e consome, através da sua própria vida, facilitada pelo trabalho.

Maldiney (1973, p. 4) nos precisa as consequências de tais objetivações: “a objetivação abole a comunicação... o que mais falta ao homem moderno é a sensação... nós somos teleguiados por uma verdadeira administração dos prazeres pelos quais nós criamos esse estúpido e tremulante adjetivo “sensacional”4 . Para Maldiney (1973), retomando os filósofos gregos, sobretudo Heráclito, o mundo comum se faz através uma situação comunicativa. Onde nós percebemos o outro, não segundo o ‘eu’, mas, segundo o ‘nós’. O lugar natural comum é dito da situação comunicativa que se dá através da sensação e não através do ‘sensacionalismo’.

Através das claras palavras de Maldiney podemos ver que a expressão da diversidade, enquanto uma experiência

dos diversos modos existenciais e culturais, poderá encontrar as dificuldades para a emergência de comunicações mais próximas, mais compartilhadas. Em meio aos tantos registros e classificações, como a diversidade da cidade pode se exprimir, se entrelaçar, construindo novos olhares e possibilidades de vida?

Este artigo, metodologicamente, se propõe pensar a diversidade social e as suas possibilidades de expressão. O artigo se divide em cinco seções, a saber: 1 – A seção definida como Diversidade, tendo como objeto o conceito de poikilos (ποικίλος) como variação e heterogeneidade. 2 – Tempo: seção que desenvolve o conceito de Cronos (χρόνος) e Kairos (καιρός) como dimensões tempo que compõem as existências.3 – Espaço: seção que introduz determinadas filosofias que podem desenvolver as questões mais existenciais e menos despersonalizadas em relação à questão dos espaços.4 – Palavra: seção que coloca em questão a liberdade da palavra através do conceito de parresia (παῤῤησία), do falar francamente.5 – Da prática: Heterogênese Urbana. Seção que nos encaminha à experiência de uma prática dirigida à construção do que poderemos conceituar como ‘anthropographia’. Dimensão onde emergem a autentiticade, a tomada da palavra, cada um considerado como artista no plano da experiência da diversidade social.

2. Diversidade

Etimologicamente, o termo diversidade traz consigo conotações negativas.

4.“l’object ivat ion abolit la communica-tion...ce qui manque le plus a l’homme modern c’est la sen-sation…nous sommes teleguides par une veritable adminis-tration des plaisirs et pour lesquelles on a créé ce stupide et trémulant adjec-tive “sensationnel”.

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Teremos a palavra diversidade em latim, compreendida como ‘diversitatem’, que quer dizer ‘desvio’. Mas, também, há o termo ‘diversus’, que quer dizer: fazer qualquer coisa de maneira diferente.

Na língua francesa do século XIV, diversidade quer dizer ‘diferença’, mas, também, qualquer coisa que não pertence às expectativas de uma ordem geral: o status quo. Em grego clássico, a palavra diversidade será compreendida pelo termo hetero, mas, também, como poikilia. A palavra poikilia é apresentada por Homero, no seu livro Ilíada, para descrever qualquer coisa produzida de maneira elaborada. Na Ilíada (livro 145 ), Afrodite (deidade do amor) dá a Era (deidade dos laços de casamento) um vestimento (poikilos kestos) para seduzir Zeus. Homero descreve esta vestimenta pelo adjetivo poikilon, como aquela que possui inúmeros potencialidades mágicas ligadas ao poder de atração desejante. Homero sublinha que esta vestimenta tem qualidades maravilhosas. Quando Homero fala desta vestimenta, ele utiliza a palavra poikilon. Então, nós poderemos compreender de duas maneiras a expressão poikilon: como alguma coisa que seduz por sua beleza ou qualquer coisa que é produzida de uma forma muito complexa que surpreende.

Homero na Odisséia, quando fala de Helena de Esparta, nos dirá que ela fabricara um vestido intrincado, super complexo. Helena fabricou este vestido para dar a Telemachus. Quando Homero descreve este vestido, ele fala que ele é ‘intrincado’. Podemos nos lembrar também que esse termo era empregado por Aristóteles que, observando a vivacidade das cores do

carduelis elegans e suas plumas, definiu este pássaro como poikilos!

Por sua vez, em Atenas, o pintor de vasos utilizava uma técnica para ampliar o poder de visibilidade dos vasos. Ele produzia variações nos matizes das cores e na riqueza ornamental dos detalhes para demonstrar o movimento. Esta técnica é a poikilia que, introduzindo, as cores vivas sobre o vaso, para demonstrar o movimento, superando os limites cromáticos e as formas determinadas. Era empregada por um grande pioneiro, nesta arte clássica, que se chamava Euthymides.

Poikilon, também era um termo para descrever a música grega nas situações que havia novas formas que privilegiavam as mudanças de modalidade, as mudanças harmônicas, rítmicas e o virtuosismo na execução dos instrumentos. Era um termo aplicado às situações onde as improvisações musicais emergiam. Veremos, também, o termo poikilon no Novo Testamento, que utilizou o grego pós-clássico (koine) para descrever a variação das doenças curadas por Jesus, as diversas provações da vida diante Deus, as variações dos milagres. Mas, sobretudo, em Pedro IV.X que nós veremos a grande potência do termo. Em Pedro o termo ganha a sua grande riqueza, no qual o sentido de poikilon será compreendido como a ‘graça ilimitada e múltipla de Deus’. Veja como um tal termo pode descrever a coloração do mundo e dos fenômenos, mas também as profundezas do poder espiritual. Entre a superfície das cores e a profundeza de uma graça ilimitada, o poikilon pode perder essas conotações negativas frequentemente empregadas, não somente, pelos tradutores modernos, mas por Homero

5. Homero, Il-íada, Livro 14.

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e Platão, para descrever um espírito manipulativo e uma utilização sedutora da arte.

Então, se tomarmos a simples construção da palavra poikilos teremos ‘poi’ como ‘construção’, ‘kilos’, compreendido como ‘variação’. Tudo isso para se pensar a questão dos espaços, onde a diversidade possa se articular. Os espaços da pintura sobre os vasos e telas, as tonalidades decorativas que se articulam sobre os vasos e que definem a prática de Euthymides. Os espaços das improvisações musicais e as mudanças rápidas de harmonias e ritmos. Os espaços múltiplos que se desdobram para a graça de Deus. Os espaços onde brilham o encantamento intrincado das bordaduras do vestimento de Afrodite e Helena. Vejamos bem, com esta noção de diversidade, que há uma questão de textura, de tonalidades, de cores, que definem a experiência de poikilos.

Em todos estes casos a diversidade, compreendida como poikilos, ganha sua própria significação através dos fenômenos das cores, através da intrincada produção das texturas, das harmonias musicais etc. Isto é, que a diversidade é qualquer coisa que toma um valor ao nível da criação. Onde há a possibilidade de se surpreender, do encantamento, onde há a experiência da improvisação, das texturas, das tessituras, das tonalidades, das paixões. Poikilos é antes o sinônimo da diversidade da expressão, de diversas formas. Mas não esqueçamos que Sócrates, nos Diálogos de Platão, caracterizou a democracia como poikilos! Isto é, a complexidade do tecido social com todas as suas multiplicidades e variações. Mas, Platão desconfiava da poikilos, isto é,

enquanto uma forma de mimésis na arte, na poesia, na música, na comédia.

Para precisar melhor : ao início do capítulo 14 do livro Zaratustra de Nietzsche, intitulado « a cultura », encontraremos a palavra alemã Buntgesprenkeltes. Esse termo conota um sentido polivante e variável. Como Zaratustra declara : « meus olhos jamais viram uma tal coloração vivificante » (NIETZSCHE, 1968, p. 150). Esse termo alemão utilizado por Nietzsche para descrever as tonalidades que compoem a cultura, corresponde com Sócrates que, no oitavo livro da República de Platão, descreve a democracia como poikilos, multicolorido e multitexturalizado. Zaratrusta ainda declara com uma voz que vem das profundezas do seu ser : « deve ser lá onde há todas as cores que compõem o mundo». Então, o mundo ganha seu valor através da cultura. Que é qualquer coisa de dinâmica, com suas tonalidades. Isso que vemos com Zaratustra é a surpresa, é a composição da cultura dita como Buntgesprenkelten, de poikilos (heterogeneidade e polivalência) que o toca profundamente e que traz a realização de sua própria liberdade sensível. Isso que vemos através do encontro entre Zaratustra e a cultura é a experiência da sensação e não o ‘sensacional’.

Aqui poderemos retomar uma bela frase de Maldiney que, no seu ensaio sobre Tal Coat nos diz que « esta liberdade, que não é um signo do homem mas, o ato mesmo do homem, está de acordo com o mundo... como « voz vivificante »... Esta voz vivificante do mundo e seu canto profundo6 . Vejamos bem que o pintor grego que comunicava a realidade de sua própria

6. Esta liberdade, que não é um signo do homem mas o ato mesmo do homem, está de acordo com o mundo... como voz viva... Esta voz viva do mundo e seu canto profundo. “cette lib-erté, qui n’est pas un signe de l’homme mais l’acte meme de l’homme, est en ac-cord avec le monde… come “voix vives”…Cette voix vive de monde et son chant profound”. (MAL-DINEY, 1978, p.25).

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cultura, através das cores e tonalidades, era um homem que não estava « diante das coisas », mas que comunicava « nelas uma realidade » - de estar e entrar em comunicação com uma realidade democrática dita da cultura, composta como poikilos: heterogeneidade.

Podemos dizer que a poikilos é a prática da diversidade, não como um imperativo categorial, mas como uma realidade vivida, um estado que se constitue através a diversidade. Vemos que uma tal leitura da diversidade nos encaminha a pensar a produção de espaços para a expressão. Onde acontecem as misturas entre existências, onde os fenômenos não são reduzidos em identidades de grupos: pacientes de saúde mental, adolescentes infratores, negros, índios, etc. Isso nos encaminha a uma questão muito importante e pragmática: as pessoas têm a sua voz, a sua expressão, fora destas categorias e dos espaços nos quais estão institucionalizados? Tudo isso nos leva a uma simples questão: espaços expressivos, tempo e criação. 3. Tempo

Na cosmogonia Teogônica de Hesíodo, o tempo (chronos) não figura entre as divindades. Chronos, para proteger seu poder, comeu seus filhos. Mas, o sexto, chamado Zeus, foi salvo pela astúcia de sua mãe Rhea. Essa é a história mais comum de Chronos. Mas, devemos, também, retomar um texto de Phérecyde do século VI a. C. Este texto descreve que Zeus e Chronos existiam desde o começo do começo, assim como a Terra. E Chronos criou tudo a partir de sua própria semente : o fogo, o sopro

e a água. Vemos bem então que o Chronos de Phérecyde se afina com a Bíblia, particularmente, o Antigo Testamento onde encontramos que Chronos é o princípio regulador de todos os assuntos mortais dito da temporalidade. Mas, também, teremos um Chronos que se ‘alimenta’ dos filhos e, ainda, um Chronos que se realiza em nossa sociedade como o mestre do tempo técnico dos relógios e das revoluções sócio-industriais!

Na teologia grega (liturgia grega) há uma frase: “kairos tou poiesai to kyrio” (Psalm 118: καιρός τοῤ ποιῤσαι), ou seja, compreendido como o momento que Deus decide agir. Mais precisamente, Jesus vive sob o tempo de Kairos (καιρός), sob o momento dado por Deus, não num tempo cronometrado. É por isso que, no primeiro livro dos Atos (Atos 1.7), está escrito que não podemos contar nem calcular o tempo de Deus. Vejamos bem, então, que para a idéia do tempo existem usos bíblicos e não bíblicos, mas no Septuagint que o termo ganha valor como um fenômeno divino do tempo e do espaço: como um ponto decisivo na ordem temporal do mundo (Jó 39.18). Mas, retomando a frase: kairos tou poiesai to kyrio, nela temos duas palavras importantes que são ‘kairos’ e ‘poiesai’ (ποιῤσαι). Poiesai quer dizer ‘agir’, ação. Teremos as palavras poiesis (ποίησις) (ação), poietikos (ποιητικῤς) (criação/criativo), poietes (ποιητῤς) (poeta), poiema (ποῤημα) (produto), como da mesma família etimológica que significa um processo de criação. Kairos, então, é o momento, ou mesmo, o instante onde se passa

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qualquer coisa na ordem temporal, dita de nosso reino mortal (Deus não submeteu a vida de Jesus, nem a vida cristã ao cronômetro (Jó 39.18). Desta forma, Jó diz aos cristãos que não se deve contar o tempo. Vemos também, que os milagres se desdobram através do imprevisível. Há uma equação, então: tempo divino – criação, ou, Kairos-criação, ou mesmo, Chronos-Kairos. Então, há uma relação entre o tempo menos determinado e a criação de qualquer coisa. Esta é uma experiência do tempo que não é programada. Isto é, a criação ou o ato de agir deve se passar num espaço menos restrito, num tempo menos cronometrizado, num tempo menos cronificado.

Então, o tempo não deve ser compreendido num sentido cronológico. Jean Oury (2002), diretor de La Borde, nos diz que seu:

... Pai era um operário metalúrgico numa usina e falava, frequentemente, da regulamentação dos supervisores na oficina de polimento – que hoje em dia há muito mais supervisores. Certas pessoas que nós vemos na clínica são os trabalhadores das usines onde a lei de 35 horas foi aplicada, nas pequenas usinas no Vallée du Cher, por exemplo: 39 horas de trabalho foram condensadas em 35 horas. O mesmo trabalho é esperado, mas ele deve ser feito rapidamente. O aumento do número de regulamentações e as pessoas que começam a trabalhar mais que outras são denunciadas. Nós temos, então, o agente do cronômetro e a

linha de montagem que pode facilmente se achar como o ‘tempos modernos’ de Chaplin. O supervisor que cronometra o tempo ainda não entrou nos hospitais, isto é verdade, mas isto vai acontecer. O que nos interessa é, então, definir um tempo existencial e, não somente, cronológico (OURY, 2002).

Esta experiência temporal, vivida num tempo mais existencial, pode ser encontrada nas instituições, nas escolas, nos espaços clínicos, nas relações familiares? Isto é, existe a possibilidade dentro da ordem cronológica do dia a dia ter os instantes criativos, menos previsíveis? As instituições, as escolas, os espaços clínicos, as relações familiares vivem os instantes em espaços mais ligados à criação? Esta é uma questão para os educadores, clínicos e pais. Questão que nos reenvia à possibilidade de viver o tempo de kairos, onde qualquer coisa pode ser construída, isto é, como o momento no qual um escritor começa a escrever sobre uma página branca, como o momento quando alguém toma a palavra, como o momento das crianças que começam a construir seus mundos com seus materiais. Estes são os momentos onde emergem as passagens, os caminhos, num espaço e num tempo menos determinado. O instante de falar, o instante de criar. A este respeito, Paul Eluard, o grande poeta surrealista, escreve: “Todos os homens encontram a prática de uma linguagem espontânea, fácil, o dom da criação”. Mas, deve-se ter a possibilidade desta linguagem livre

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e espontânea encontrar a passagem para ser articulada!

Tudo isso nos leva a uma questão pragmática e estratégica: como podemos colocar em prática esses espaços que possibilitem cada um ter sua maneira de viver seus instantes mais expressivos (kairos), onde qualquer coisa se realiza criativamente (poieticos – criação) onde a diversidade possa se articular (poikilos)? Esta é uma questão que nos leva a pensar sobre a qualidade dos espaços.

4. Espaços

Erwin Straus escreve, na sua obra de 1939, intitulada Von Sinn der Sinne (O sentido dos sentidos) que o espaço geográfico é sistematizado e fechado. Exatamente, cada lugar no espaço geográfico, é determinado por sua relação ao ponto zero recortado

retomar Maldiney que, de uma maneira filosoficamente fiel a Straus (2000, p. 4), descreve que, « as crianças são, entre nós os adultos, os embaixadores da paisagem no espaço geográfico », isto é, eles são dotados de sensações e não tomados pelo sensacionalismo do mundo. Há, então, uma ligação entre percepção, sentir e movimento. Como Harvey Allen (1960) mostrou no seu romance sensível Anthony Adverse : vemos uma criança que jamais saiu do monastério onde ele foi abandonado. Ele sobre numa árvore por perseguir um pássaro. E lá, bruscamente, num momento imprevisível, há a irrupção d’uma luz nova onde o mundo se abre. Mas vejamos como um tal espaço traz um dinamismo de comunicação entre si e o mundo. Straus (2000, p. 382) escreve que na paisagem “nós cessamos de ser os seres objetiváveis.”

Podemos discorrer a discussão um pouco mais com outros exemplos:

(1) A noção de espaço recebeu sentidos singulares, em e voltar-se para desenvolver habilidades e competências, transformando informação em conhecimento, uma vez que todas as atividades humanas apoiam-se em uma base de informações que devem ser confiáveis, completas, acessíveis e sem controle ou manipulação por um grupo ou outro. Não basta saber aplicar conhecimentos, dominar procedimentos práticos, empregar habilidades específicas e instrumentais, mas, sim, produzir novos

segundo um sistema de coordenadas. O espaço geográfico é determinado e mesurável. Da mesma maneira, poderemos dizer com Straus que há ‘o contexto ordenado sistematicamene do espaço social’ – graças a sociometria. Vejamos bem que há o espaço-tempo social : as determinações da geografia e as determinações da cronometria definem os parâmetros sociais do homem, isto é, seu movimento possível. É por isso que Straus exprime que o homem no crepúsculo, na obscuridade, na neblina, se perde : o homem deixou o contexto ordenado e entrou a paisagem do ‘sentir’. Vejamos bem aqui que a paisagem do sentir não é um lugar separado do espaço geográfico, mas se desdobra de uma outra maneira. Aqui, podemos

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em vários filósofos. Para Binswanger (2000), dentro de um contexto fenomenológico e existencial, há alguma coisa que se chama ‘espaço tímico’ que vem do grego clássico thumon, que quer dizer, sede das paixões, ou ainda, coração, afetividade, tonalidade. Para Binswanger, o espaço tímico não era local-izável geograficamente. Mas, que é, antes, vivido ao nível do sentir. Não pertencendo a nenhuma região localizáv-el ou fixa como a geografia.

(2) De uma maneira similar, Walter Benjamin (2000) falou da experiência do encontro com uma obra de arte. Ele dizia que havia neste espaço do encontro uma ‘aura’ que se manifestava entre o sujeito e a obra de arte. Ele afirmava que esta aura não poderia ser reproduzida mecani-camente, mas, sim, era a quali-dade irredutível e não localizáv-el de um verdadeiro encontro.

(3) Também, ao nível da arte e da estética, François Cheng (1991), nos seus estudos sobre a pintura taoísta, dirá que: entre o homem e o céu, a montanha e a água, entre o yin e yang, entre o pincel e a tinta, há um espaço de transformação. Ele dizia que na pintura chinesa, por exem-plo, onde se vê uma montanha e a água, existe um vazio. Mas, ele dizia que este vazio não é um vazio estático, mas, sim, dinâmi-co, um vazio estético, preenchi-do de sentido. É lá, neste vazio dinâmico, neste vazio estético, que a montanha se transforma em água e, com efeito, a água se transforma em montanha. E mais, ele dirá que este espaço, este vazio dinâmico, gerador de transformações, não pode

ser calculado mecanicamente.

(4) Para Viktor Weizsacker (1946), o espaço clínico pode ser concebido em termos da relação entre o clínico e o paciente. Ele utilizou o termo “umgang”, que vem do alemão, que quer dizer, reciprocidades, trocas, comércio afetivo. Neste comércio, através a reciprocidade, um conheci-mento do outro pode se manife-star. Esta é a relação onde trocas existem. Existem pausas, gestos, silêncios, a presença do outro, um saber que se manifesta. O conhecimento que se desenvolve através deste encontro não é lin-ear. Não é um encontro estático. É um encontro dinâmico. Para Weizsacker será o encontro com o outro a grande importância. Pois, há uma comunicação que passa ao nível do sentir. Porque no espaço do encontro o fenô-meno pode se manifestar, con-tribuindo a uma produção do saber que se desenvolve fora da ‘medicina científica natural’.

(5) Para Foucault (1984) - que estudou Binswanger e que traduziu Weizsacker em francês -, existem os espaços heterotópicos. Estes são os es-paços compreendidos como os ‘outros lugares’. Há relações com os espaços de uma maneira mais dinâmica, compostos de fenômenos afetivos, menos pre-figurados, que podem produzir histórias novas, novas existên-cias. Por exemplo, quando uma criança se esconde embaixo da cama dos seus pais ela cria para si um mundo. Este mundo engendra novos valores, novas possibilidades existenciais para além daquelas vividas nos espa-ços com funções definidas pela vida ordinária, como os espaços

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da educação, os espaços médi-cos, dentre outros. Na realidade, poderemos falar do vazio, po-deremos falar da experiência da ‘aura’, poderemos falar dos es-paços tímicos, poderemos falar de ‘umgang’ de Weiszacker, mas, todos estes termos nos demon-stram a importância do encon-tro como o princípio de trans-formação que ele traz consigo.

(6) Para Bin Kimura (2000), que retomou os trabalhos de Weizsacker, através da filosofia japonesa do século XX, nos deu um bom exemplo: um pianista e um violinista tocando juntos, cada um toca sua própria parte, e cada músico compreende a música, como se ela mesma, es-tivesse sendo tocada por um só. Quando o dedo do pianista toca a tecla do piano lhe parece que a música tocada pelo violinista é a sua. Isto é, entre o violinista e o pianista existe um princípio de transformação. Para Kimura este princípio se chamará ‘es-paço de transformação aida’. Aida é a experiência que penetra cada um através do encontro. Por exemplo, entre uma pessoa diante de uma obra de arte, um médico diante de um paciente, o yin em relação ao yang, há uma transformação dos espaços, para fora dos lugares definidos.

Podemos ver através destes ex-emplos, provenientes da filosofia, que há uma relação entre o espa-ço, tempo e transformação. Então, quais reflexões estes conceitos fi-losóficos podem ter para se pensar as construções de ‘outros lugares’ produtores de outras experiências? Isto é, quais espaços podem ser construídos para novas experiên-

cias de trocas, relações, transfor-mações, possibilidades de se to-mar a palavra de outras maneiras? Espaços onde possamos ficar em silêncio, para escutar o outro, para pensar sobre os outros, para avaliar sua vida na relação com o mundo. Espaços para ter a possibilidade de uma relação comum com os outros.

Tomemos, por exemplo, as re-flexões de Jean Oury que, pas-sando pela fenomenologia alemã e suas enormes experiências no campo da clínica, fizeram a rela-ção entre a atmosfera e o espaço. Na fenomenologia alemã há um termo Stimmung que significa a atmosfera, a ambiência. Pode ser compreendido como a ‘aura’ de Walter Benjamin, por que a atmos-fera, uma verdadeira ambiência não pode ser, mecanicamente, produ-zida. É por isto que Oury nos diz:

[...] que nos hospitais e, nos es-tabelecimentos educacionais, a atmosfera é, sempre, a mesma. Estes espaços não permitem uma atmosfera diferente. Ele diz que nestes espaços há uma mesma atmosfera e uma mesma condição. Estes espaços são ho-mogêneos e ineficazes. Mas, se desejarmos um espaço eficaz deveremos ter a experiência da diferença, da heterogeneidade. Se nós fossemos todos clona-dos, então, dois clones seriam o suficiente para conhecer todos os outros. Não seria necessário sair de casa. Então, a ordem da surpresa, dos imprevistos, das situações inesperadas são ne-cessárias e indispensáveis para a produção desta atmosfera.

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Como pensar a possibilidade de termos esta ambiência, esta ‘aura’, esta ‘aida’ para vivermos efeitos menos regularizados pelos espa-ços institucionais. E, ainda, como produzir espaços pela cidade para que possamos viver experiências autênticas, singulares, produtoras de diferentes efeitos de subjetivi-dade? O sorrir, o rir, os fenômenos lingüísticos, as canções, os fenô-menos pré-linguísticos, como o silêncio, a tomada de decisão para falar algo em direção a alguém: to-dos estes elementos diversos que podem se manifestar, que podem ter lugar e que, entrando em rela-ção uns com os outros, e que po-dem produzir qualquer coisa na vida de alguém. Um sentimento, um pensamento, uma idéia etc.

Nós poderemos dizer, através de-stas explorações filosóficas, numa exploração filosófica de certas ex-periências do espaço, que os fenô-menos de contato e de encontro são sublinhados. Para Weiszacker e Walter Benjamin o verdadeiro fenô-meno do encontro, seja com uma obra de arte, seja com um médico e um paciente, é aquele que demon-stra que o espaço e o tempo não é sempre programável strictu-sensu. Poderemos dizer que é através o encontro e o contato que o Kairos pode se manifestar: a experiência ‘auratique’ de uma obra de arte é al-guma coisa que se passa num tem-po menos determinado. Isto é, não dentro de um tempo cronometri-zado. O que é importante é que no

contato e no encontro há uma trans-formação. Ou seja, o contato entre o pincel e a tinta. O encontro e o contato entre o médico e o paciente.

4. Palavra

Neste momento traremos como investigação os usos da palavra para pensar as relações entre a diversidade, os espaços e o tempo, ainda, tomando como referência a experiência grega. Nesta experiência teremos quatro modalidades dos usos da palavra como ‘constructos’ para o ‘dizer a verdade das coisas e da vida’.

Na experiência grega antiga o conceito de parrêsia surge, etimologicamente, significando a ‘atividade de tudo dizer’. A posição ‘parresiástica’ será aquela pela qual poderá se dizer tudo. O ato de falar a verdade será a atitude do ‘parresisástico’, falar o que se pensa e o que se sente, será o movimento desta atitude de estar no mundo. Mas, esta experiência parresiástica será vista por Platão como negativa. Platão no seu livro ‘A República’ no livro VIII dirá que existirá um perigo de se dizer tudo. Para Platão a palavra se torna vazia e ‘sensacionalista’ e não uma questão que diz respeito à ‘sensação’ e à ‘comunicação’.

Platão crítica o modo de realização parresiástico, combatendo o uso da palavra na democracia: a palavra como mera opinião, esvaziada de sustentação conceitual. No entanto, Foucault (2009, p. 13) nos dirá

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uma verdade’. A sua verdade é dita, não em nome próprio. O profeta é o mediador entre os deuses e a verdade que enuncia. A sua voz profere as palavras divinas. O profeta, por sua vez, se expressa através de uma outra voz, “sa bouche sert d’intermédiaire à une voix qui parle d’ailleurs. Le prophète transmet une parole qui est, em general, la parole de Dieu” (FOUCAULT, 2009, p. 167) . Desta forma, vemos que a verdade proferida pelo profeta, não vem de si, mas, sim de um além. A sua palavra, que fala de um futuro obscuro, virá a colorir a subjetividade de que quem possa recebê-la. A subjetividade de quem recebe a verdade profética se colorirá de idéias e imagens na tentativa de revelar os inúmeros enigmas da vida.

Encontraremos um outro uso da pa-lavra, como modo de ‘veridicção’, isto é, como maneira de expressar a verdade na Grécia clássica. Este outro modo de ‘veridicção’ será aquele do sábio. Esta é a maneira de dizer a verdade encontrada nos filósofos. Mesmo que estes se in-spirem nos deuses, na tradição, num ensinamento, o filósofo falará, também em nome próprio naquilo que endereça aos outros. O saber que ele formula, vem da sua própria sabedoria de vida. O sábio virá man-ifestar seu modo de ser. Ao contrário do profeta, ele não é porta voz da palavra que expressa uma verdade.

Teremos um outro modo de

que, para além do sentido negativo dado a experiência parresiástica, poderemos compreendê-la como importante ferramenta conceitual para o curso do nosso trabalho. Primeiramente, para que compreendamos a palavra ‘parresia’ será preciso que a manifestação entre a verdade dita e o pensamento daquele que a diz seja coerente. Por este prisma, quem enuncia uma ‘verdade’ a expressará conforme aquilo que realmente pensa e sente. Segundo, será preciso uma certa forma de ‘coragem’ naquele que exerce a parresia. Este precisará, de certa maneira, da coragem de poder expressar sua ‘verdade’, endereçada a quem escuta: poderá colocar em tensão e em risco a própria relação com a pessoa a quem endereça verdade. Desta maneira, quando uma dada relação se abre ao movimento parresiástico, teremos, por sua vez, a coragem de se dizer a verdade. No entanto, compreendemos que os usos da palavra para se enunciar a verdade poderá colocar numa posição de tensão uma dada relação, ou, ainda, a própria vida, uma vez que poderá contrariar as forças hegemônicas de um dado momento histórico.

Vale ressaltar que existem outros usos da palavra não-parresiásticos, mas que, de certa maneira, se entrelaçam e se confundem com aquele. Teremos o uso da palavra, com o objetivo de se dizer a verdade, pela figura do profeta. Este será reconhecido como alguém que ‘diz

7. (...) “sua boca serve de inter-mediária a uma voz que fala do além. O profeta transmite uma palavra que é, em ger-al, a palavra de Deus.

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‘veridicção’, este encontrado na escola e na Universidade. Modo de ‘veridicção’ daqueles que são portadores um saber como tekhnê. Encontraremos este modo de saber naqueles que ensinam um savoir-faire (saber-fazer). Platão dirá em seus diálogos que os médicos, os músicos, os chefes de armas, os ginastas como aqueles que detêm uma tekhnê (FOUCAULT, 2009, p. 23). Este modo de veridicção poderá ser compreendida como verdades proferidas por aqueles que possuem a técnica e um saber sobre esta técnica. Desta forma, quem possui uma determinada técnica deverá possuir um certo dever de transmiti-la. Nesta esfera, vemos que a palavra ganha mais um uso, produzindo saberes estruturados, ‘cientificizados’, ordenados de uma maneira ‘técnica’. Vemos que o modo de operar, utilizando-se da palavra como técnica de transmissão de saberes e da cultura está ligado a manutenção da tradição. Os saberes, que fazem parte da tradição, para não desaparecer, precisará ser re-endereçada às futuras gerações. Neste ponto encontraremos a função do professor como aquele que, também, tem o mandato de transmitir os ensinamentos antigos como ferramentas para se pensar o presente da nossa história.

De uma maneira sintética e, para o interesse do nosso trabalho, pensaremos as relações entre os usos da palavra como modo de ‘veridicção’ profética, do sábio, do

professor e suas íntimas relações com a forma ‘parresiástica’, dentro da perspectiva que Foucault nos apresenta.

Foucault nos dirá que o ‘parresiasta’ não é o profeta. Este nos diz a verdade, utilizando o nome de um outro (um deus) e de maneira enigmática. O profeta é aquele que fala de maneira enigmática sobre o destino e sobre a vida. Por sua vez, o ‘parresiasta’ não é um sábio que diz, utilizando-se do silêncio, o ser e a natureza da vida e das coisas. O ‘parresiasta’ não é, por conseguinte, um professor. Ele não reedita uma técnica, um saber, ao nome de uma tradição. Desta forma, o ‘parresiasta’ não utiliza a palavra em nome de um deus, nem sobre a verdade do ‘ser’ e a natureza das coisas, nem o discurso da técnica e dos saberes de uma tradição. Compreendemos que o ‘parresiasta’ expressa um modo de ser. Ele vem expressar um modo de ser impulsionado pelo jogo da parrêsia. Um modo de estar no mundo, nas relações no qual o dizer a verdade será utilizar as palavras e os comportamentos e ações de acordo com aquilo que se realmente pensa e sente.

Pelo que precede, poderemos qualificar no interior de uma mesma experiência as quatro modalidades de ‘veridicção’ (a profética, a da sabedoria, a da técnica e a do parresiasta) na experiência de Sócrates (FOUCAULT, 2009, p. 26). Sócrates vem cumprir

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sua posição no mundo como um parresiasta! Mas, como ele construiu a sua função de ‘parresiasta’? Sua missão de abordar as pessoas pela cidade foi endereçada pelo deus de Delphos: “ocupe-se de si mesmo”! E Sócrates terá a sua intuição filosófico-mítica, pensando o problema, advindo da ‘profecia’ délfica, construindo, a partir dela, a sua proposição: “conheça-te a ti mesmo”! Da sua relação com a mensagem délfica Sócrates começará a sua missão, intuindo, através desta profecia, a indicação de conhecer-se a si mesmo como condição de encontrar a própria verdade! Vemos, desta maneira, que sua postura ‘parresiástica’ terá relações com a sua experiência ‘profética’. Do mesmo modo, Sócrates apresentará um vínculo com a postura do sábio. Sócrates o sábio que preconiza o governo das paixões, o governo das idéias, sua abstenção em relação aos prazeres, sua ‘suportabilidade’ em relação às dores e aos sofrimentos da vida, sua capacidade de se abstrair do mundo. Veremos na história de Sócrates a sua posição de imobilidade, durante uma batalha na qual participava, suportando o frio, concentrando-se em si mesmo, mergulhado num profundo estado meditativo. Também encontraremos um traço do sábio em Sócrates. Traço do silêncio como a experiência de não dar as respostas a quem possa o demandar. Sócrates não fala a verdade que o outro procura nele! Sócrates é aquele que afirma que

não sabe! Uma vez, não sabendo as respostas e afirmando-se como aquele que ‘sabe que não sabe’, Sócrates se posiciona como aquele que produz perguntas, como aquele que sabe colocar problemas, sabe indagar, sabe duvidar! Aqui encontraremos a postura do sábio que propicia a cada um encontrar sua própria medida, seu próprio caminho, seu próprio destino! O sábio é aquele que, mesmo sabendo a resposta, não se no direito de falar a sua verdade como aquela a ser endereçada aos outros. Cada um deverá encontrar a sua verdade, o seu próprio sentido. Nesta experiência, vemos que as indagações de Sócrates são traços do modo de ser ‘parresiástico’: como aquele que sabe colocar bons problemas, sabe duvidar, sabe questionar, como aquele que afirma que sabe que não sabe!

Encontraremos em Sócrates aquele que virá ensinar a virtude aos jovens, proporcionando-lhes conhecimentos necessários, seja para que possam viver bem, seja para governar a si e governar a cidade, através do seu modo de ser, do seu modo de interrogar as questões da cidade, através do seu êthos: do seu modo de estar no mundo, da sua ética de vida. Vemos que, através da experiência de Sócrates, numa só experiência existencial, encontraremos as figuras do profeta, do sábio, do professor e do ‘parresiasta’. Experiência complexa que nos movimenta a pensar as

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relações da palavra, dos espaços da cidade, da experiência com o tempo para a produção dos sentidos.

Ampliando o que foi dito sobre a parresia podemos afirmar que todos corremos o risco como Sócrates diante a Assembléia. Isto é, nas Instituições ditas democráticas não podemos dizer a verdade das coisas, uma vez que as próprias Instituições desejam que cada um fale aquilo que já instituído nelas mesmas. Ou seja, as crianças nas escolas precisarão falar os discursos, palavras e saberes que estão lá instituídos. Os pacientes de saúde mental, através da força do hábito das consultas periódicas, falarão a língua dos especialistas. Desta forma, as instituições criam dispositivos para a produção de falas artificiais e normalizadas. Estão a serviço da normalização da sociedade. É isso que Foucault desejou demonstrar no seu último curso no Collége de France em 1984. Demonstrar a hipocrisia das instituições democráticas onde a sinceridade, onde a própria autenticidade de cada um é bloqueada, cortada, mutilada. Foucault, de maneira simples, clara e brilhante, retomando a filosofia cínica grega, nos demonstrou que há uma dissimetria entre a instituição dita democrática e o falar francamente, a parresia.

6. Da prática: Heterogênese Urbana

Poikilos (ποικίλος), kairos (καιρός), poiesis (ποίησις) e parresia (παῤῤησία), são quatro termos que nos servem como referência pragmática para descrever a possibilidade de cada um se expressar, não através das identidades e espaços preestabelecidos, como de gênero, classe, raça, nacionalidade, cultura, como os espaços escolares, de saúde mental, para a terceira idade etc. É a possibilidade de fazer parte da diversidade, ela mesma, se fazendo, assim como a vestimenta de Helena e de Afrodite. Não para produzir a sedução de Zeus, mas, para a composição de relações ‘intrincadas’.

Imagine o seguinte: um teatro cheio com 200 pessoas. Nele estão alunos de escolas privadas, de classe média, que possuem seus celulares da moda, em relação com os chamados ‘pacientes de saúde mental’, também, com os alunos de escolas públicas que moram na periferia ou no centro da cidade, contando com a presença de professores, artistas e outras pessoas.

A ambiência vai se produzindo pouco a pouco. A ‘aura’ que Benjamin nos indicou, vai emergindo a medida em que cada um toma a palavra. No entanto, alguém toma o microfone para combinar alguns ‘princípios’

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para que o encontro se realize: não julgar o que o outro diz, aprender a ouvir o que uma outra pessoa fala, respeitar o ponto de vista do outro, sem desvalorizá-lo. E neste encontro um tema foi escolhido: a solidariedade. Duzentas pessoas com suas experiências, seus conhecimentos, seus valores para pensá-lo. Estas são condições mínimas para que o encontro se teça.

E o vestido de Helena e de Afrodite começa a se tecer. Um aluno pede a palavra e pega o microfone. Sua voz invade o teatro. Todos o escutam. Sua palavra produz ressonâncias existenciais. Sua palavra toca outras existências. Sua palavra ganha valor existencial, uma vez que ele é reconhecido enquanto existência. Sua palavra não serve para responder a algo, mas, para criar sentido sobre a vida. Após a sua palavra, alguém decide cantar. Aquele que é visto como um ‘paciente de saúde mental’ toma a palavra para, através de uma canção, tomar lugar no mundo. Sua voz preenche o teatro pleno de diferentes formas de vida. A ambiência vai se construindo de pouco a pouco, através das falas, através daqueles que permanecem em silêncio e pensam. Através daqueles que tomam a palavra para se fazer em voz. Existe algo de harmônico entre os diversos elementos, definindo o espaço como um espaço de composições. A intolerância não existe neste espaço. Não há violências. Não há desrespeito. Em

meio às tantas diferenças, às tantas dissonâncias existenciais, emergem a ‘aida’. Assim como o pincel se encontra com a tinta, como um fenômeno de transformação, as vozes se encontram, os olhares se encontram, as idéias se encontram, produzindo efeitos.

Poikilos, nos serve para demonstrar a natureza das composições entre os elementos diversos. Poiesis, nos serve para demonstrar a natureza dos processos criativos. E Kairos, nos serve para demonstrar que estes processos e as composições entre os elementos diversos emergem num tempo mais existencial e relacional. Nós podemos retomar a frase de Paul Eluard (apud BONNAFÉ, 1981, p. 90): “Todos os homens encontram a prática de uma linguagem espontânea, fácil, o dom da criação”. Esta frase nos indica a direção da produção de relações num estado composicional, menos predeterminadas, mais propensas aos processos de criação. Compreendemos que a parresia, enquanto a experiência política de falar francamente se liga à ordem de Kairos. Uma vez que falar francamente é uma experiência criativa que se desenvolve num tempo mais existencial e relacional, através as sensações, afetos, olhares, ressonâncias.Eis aí a diversidade podendo se expressar francamente. É desta forma que a Heterogênese Urbana se realiza. Como um processo que inclui a diversidade da cidade

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para se tocar. “O toque tem o poder de desenhar universos” (BRENNAND, 2001). Assim como os filósofos atomistas como Leucipo, Demócrito, Epicuro, Lucrécio, Filodemo de Gádara, dentre outros, quando nos dizem que a realidade é composta pelos toques e percussões entre as inúmeras partículas que se compõem para a construção complexa do real, a dinâmica da Heterogênese Urbana se realiza através das percussões entre as idéias, entre os olhares, entre signos afetivos que se conjugam, se compõem, produzindo novas realidades existenciais.

As artes, neste processo, são os meios que dão o contorno, a materialidade, a existência em ato, daquilo que é tão imaterial dentro de cada um, enquanto sentimento, enquanto sensação, enquanto idéia e pensamento. Cada um tem a possibilidade de devir artista. Cada um tem a possibilidade de tomar a palavra parresiasticamente. A possibilidade de ser artista, tomando a palavra como prática política, faz com que cada um experimente a condição, de direito e de fato, de ser antropholis. Isto é, de poder ter a voz na cidade. Ser o homem que participa da cidade, tomando a palavra para construir, coletivamente, outras maneiras de ver o mundo, de se ver no mundo, tomando parte na sua realização, tomando parte na sua construção. A poesia, enquanto experiência poiética, de criação, que une Kairós

à parresia, é o caminho, a via para uma expressão livre e viva, como nos diz Maldiney. A poesia como forma de ultrapassagem da vida cronificada onde, cada um poderá encontrar sua própria voz. A poesia como uma política da vida cotidiana, podendo ser entendida como uma experiência da passagem, do caminho.

Ou seja, quando alguém toma a palavra, quando existe esta possibilidade, poderemos dizer que a passagem emerge. Isto é, teremos a emergência da ‘voz livre’, a voz que tem a possibilidade de se manifestar. Não é uma ‘voz’ que é dirigida por estradas determinadas. Mas, sim, é uma experiência da voz num espaço aberto. Como os caminhos que se desenvolvem naturalmente na natureza: as imperfeições, as imprecisões. Estas se desenvolvendo através das relações e composições entre os seus componentes. Existem diferentes tonalidades, diferentes tessituras e formas, compondo o tecido complexo que é a própria natureza.

Tomando outro exemplo, poderemos pensar como um adolescente pode ter a sua voz, isto é, tomar a palavra para viver a passagem. O que quer dizer para uma pessoa que freqüenta a saúde mental ter uma voz, isto é, de poder tomar a palavra para traçar outras direções de expressão na relação com outras pessoas da cidade? O que quer dizer para um professor

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ter uma voz, falando outras coisas, outros temas que, em geral, não conversa com seus alunos? O que quer dizer para um profissional da saúde ter uma voz? Será que existem possibilidades dos caminhos emergirem em espaços menos delimitados, em direções menos fixas. Existe esta possibilidade nas instituições, nos espaços clínicos, educacionais, familiares e na vida cotidiana de cada um?

A Heterogênese Urbana deseja que cada um possa ser artista para expressar a sua voz. Voz que nasce num tempo indeterminado (Kairos), de poder nascer as sensações, as palavras num espaço onde há a circulação de todas estas coisas. A verdadeira democracia. A democracia desinstitucionalizada. A palavra desinstitucionalizada. As idéias desinstitucionalizadas.

A experiência do artista como nos dirá Maldiney (2000, p. 04):

E. Straus claramente estabeleceu a diferença entre o espaço da paisagem e o espaço geográfico. O ‘Aqui e Agora’ da paisagem não se refere a nada além do que a si mesma. Na paisagem nós somos ‘envolvidos’ por um horizonte que muda com cada ‘Aqui e Agora’. Nós caminhamos de um espaço parcial a um outro sem nenhuma ligação global. Entre o espaço da paisagem e o espaço geográfico que comporta um ponto de origem e coordenadas, há a diferença do caminho e da estrada, da caminhada e do deslocamento. Na paisagem nós

estamos perdidos. O que é um homem perdido ? É um homem que se encontra precipitado fora das coordenadas sociais e históricas. O artista é, num certo sentido, é um homem perdido. Mesmo socialmente. Ele não pertence, enquanto artista, a nenhuma classe8 .

A Heterogênese Urbana, enquanto experiência da diversidade, onde há a possibilidade de Kairos, a possibilidade da parresia, do poikilos, onde há a comunicação, através da sensibilidade, do jogo de sensações, eis aqui como podemos retomar a Heráclito quando ele diz que o mundo comum se faz através de uma situação comunicativa. Onde nós percebemos o outro, não segundo o ‘eu’, mas, segundo o ‘nós’.

Conclusão

Abordar o tema da diversidade através das perspectivas que utilizamos, nos conduziu, inevitavelmente à questão de saber como a liberdade da palavra e a possibilidade de expressão se articulam nos contextos institucionais. Foucault nos apresentou, através de seu estudos finais sobre os Cínicos que o dizer a verdade, isto é, o falar francamente veio a ser uma experiência fundamental para se edificar a instituição democrática. Isso que Foucault nos faz alusão a respeito do dizer a verdade, do falar francamente, fazendo relação com a nossa exploração sobre as

8. E. Straus a net-tement établi la dif-férence entre l’espace du paysage et l’espace géographique. Le « Ici » du paysage ne se réfère à rien d’autre qu’à lui-même. Dans le paysage nous sommes environnés par un horizon que change avec chaque Ici. Nous cheminons d’un espace partiel à un autre sans au-cune liaison globale. Entre l’espace du paysage et l’espace géographique qui comporte un point origine et des co-ordonnées, il ya la différence du chemin et de la route, de la promenade et du dé-placement. Dans le paysage nous som-mes perdus. Qu’est-ce qu’un homme perdu ? C’est um homme qui se trouve precipite em dehors des coordon-nées sociales et his-toriques. L’artiste est en un sens un homme perdu. Même social-ment. Il n’appartient en tant qu’artiste à aucune classe. Po-deremos dizer que os artistas serão clas-sificados, conforme, a “classe analítica 8, subcategoria L17, compreendida como indivíduos não clas-sificáveis por out-ras razões” pelo ‘Analytic classes and operational cat-egories and sub-cat-egories of NS-SEC’!

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noções de diversidade, de espaço e de tempo, vem nos encaminhar a pensar como as instituições ditas democráticas não proporcionam espaços expressivos para que todos possam tomar parte das suas decisões, das suas avaliações para, com efeito, se pensar criticamente o que permanece instituído, nelas mesmas. As instituições ditas democráticas vêm cumprindo o papel de produzir espaços para ocupar os corpos citadinos em práticas já institucionalizadas em saberes e discursos que não se permitem receber o toque de outras palavras, de outros pontos de vista.

Compreendemos que pensar as relações entre a diversidade social, os espaços, a temporalidade e a palavra como tecnologia para a experiência, de direito e de fato, democrática nos inúmeros espaços pela cidade, será problematizar quais são as condições, no contemporâneo, para a produção de espaços expressivos nas escolas, nos espaços da saúde mental e em outros espaços institucionalizados. Pensar quais as condições que possam emergir a experiência da circulação da palavra, produzindo uma economia da palavra, será poder vislumbrar uma educação democrática, uma saúde democrática, uma cidade realmente democrática. Vemos que novos ventos precisam mover os desejos da coletividade, da diversidade social. Diversidade que, em maior ou menor grau, se engaiola nas

instituições, pouco se articulando e trocando experiências para pensar a vida social e individual. A esta experiência de uma íntima articulação entre a diversidade social denominamos Heterogênese Urbana. Experiência que vem garantir o direito à diferença, garantindo-se o direito equitativo a todos. Direito à diferença, garantindo-se direitos igualitários. Experiência que acompanha o tempo de Kairós. Tempo não determinado, tempo que se vive através do respeito à diferença. Tempo da diferença que se aliança pelos pontos comuns. Tempo do respeito ao tempo do outro. Tempo que sabe se posicionar para compor sempre novas possibilidades. Tempo não linear, tempo que escapa às correntes neoliberais que produzem as armadilhas para aprisionar cada um à sua lógica de mercado. Tempo que nos indica outras relações com a sensibilidade, com as percepções, com as verdades, com a produção de uma sociedade que produza espaços para a expressão composicional da diversidade. Vida, expressão, espaços, temporalidade, instituições: cidade em puro estado de Heterogênese!

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