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Maior projeto de integração do continente, a IIRSA disponibiliza os recursos naturais da região mais rica do mundo. Saiba para quem. CONTRA CORRENTE para quem desafia o pensamento único Novembro de 2009 • Ana Esther Ceceña rechaça a hegemonia e enaltece a utopia • Povos do Xingu resistem à construção do Belo Monstro • Orgulho nacional, BNDES exporta desigualdade

Revista Contracorrente # 2

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Contra Corrente I Novembro 2009

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Maior projeto de integração do continente, a IIRSA disponibiliza os recursos naturais da região mais rica do mundo. Saiba para quem.

CONTRA CORRENTEpara quem desafia o pensamento único

Novembro de 2009

• Ana Esther Ceceña rechaça a hegemonia e enaltece a utopia

• Povos do Xingu resistem à construção do Belo Monstro

• Orgulho nacional, BNDES exporta desigualdade

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Puxando o País pra cima

Imperialismo de aluguel ou sub-imperialismo:tupi or not tupi

Amazônia: fronteira de commodities

PAC, um Plano para Acabar com as Comunidades

Diferente de tudo que há

Hegemonia x Utopia - Entrevista com Ana Esther Ceceña

BNDES: exportando desigualdade

A dívida sustenta o modelo

Contra as alternativas infernais

Belo Monstro

Não passará!

A Amazônia como ela é

O novo status dos chamados países emergentes, particularmente o Brasil, no cenário político internacional é, sem dúvida, uma das

mudanças mais visíveis na atual conjuntura. Nestes tempos diferentes, Contra Corrente questiona: diferentes para quem?

Os artigos desta edição abordam, sob diversos aspectos, temas relacionados ao debate sobre a integração regional, a retomada recente dos investimentos, sobretudo públicos, em grandes empreendimentos e os impactos dos projetos de infra-estrutura no Brasil. A esperança da recuperação imediata de um ciclo de crescimento na economia global repousa justamente sobre a capacidade de investimento e endividamento de China, Rússia, Índia e do Brasil e, ao que parece, estamos mesmo dispostos a pagar a conta da crise global aceitando nosso papel de fornecedores de matérias primas e energia para, em troca, recebermos maiores projeção e peso político no cenário internacional.

As conseqüências deste processo são, no entanto, perversas e se fazem sentir principalmente no âmbito das lutas sociais. Mais uma vez, sempre em nome do crescimento da economia e do progresso - agora considerados ainda mais necessários devido à crise - é o povo brasileiro quem paga a conta sem poder reclamar. Com a colaboração de alguns de nossos valiosos interlocutores, oferecemos, nesta segunda edição de Contra Corrente, importantes reflexões sobre esta realidade. São artigos que tratam desde a transformação e aumento da dívida pública ao desrespeito aos direitos das comunidades diretamente atingidas pelos grandes projetos, o que nos proporciona uma melhor compreensão sobre os impactos do atual modelo de desenvolvimento, que não apenas é financiado, como também é defendido por organismos como o Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Corporação Andina de Fomento (CAF) e o próprio Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Assim, o Brasil privilegia, com volumosos recursos oriundos de investimentos públicos, um esquema que favorece a inserção mundial de nossas empresas transnacionais com a garantia do acesso aos recursos naturais e da livre circulação de bens e serviços pela América do Sul. Da conta, já sabemos quem se encarrega. Se os ventos de mudança que sopram na atual conjuntura nos levam em direção ao que o sociólogo Luis Novoa define em seu artigo como um “projeto nada parecido com o que conhecíamos como nacional, e abertamente avesso ao que almejávamos como popular”, Contra Corrente insiste: são tempos diferentes para quem?

Editorial Índice

Além do que se vê

Contra Corrente é uma publicação da Rede Brasilsobre Instituições Financeiras Multilaterais.Novembro de 2009

Revisão: Gabriel Strautman, Magnólia Said,Patrícia Bonilha, Ricardo Verdum

Foto na contracapa: João Correia Filho Projeto Gráfico e Capa: Guilherme ResendeEdição: Patrícia Bonilha

Os artigos assinados refletem a opinião de seus autores/as.E não, necessariamente, são questões consensuadasna Rede Brasil.

SCS, Qd 08, Edifício Venâncio 2000, Bloco B-50, sala 41570333-970, Brasília – DF Brasil • t + 55 61 3321-6108www.rbrasil.org.br

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Sandra Quintela*

Puxando o País pra cimaAlém do monitoramento e da crítica, articular e potencializar capacidades e talentos são alguns dos desafios da Rede Brasil para a construção de um campo contra hegemônico e de alternativas para a soberania financeira

Como repensar as redes diante dos graves desafios que temos diante de nós? Como aproveitar ao máximo

os recursos que temos nas diversas redes existentes no Brasil no sentido de criar sinergias contra-hegemônicas ao sistema do capital? Como, depois de pelo menos 15 anos de trabalho em redes, avançar na construção de uma tessitura dinâmica e autônoma com relação ao que é definido coletivamente? Bom, são apenas questões que levantamos para as quais não traremos as respostas formuladas e sim elementos para que possamos pensar juntos e juntas: como colar os caquinhos de uma frente de pessoas e organizações que não sucumbiram diante da falsa ilusão do desenvolvimento a partir de políticas públicas que aprofundam as desigualdades regionais, raciais, culturais, de gênero e, em particular, de diferenças de classe. Recentemente, o ministro de Minas e Energia, Edson Lobão, disse ter a sensação de que há “forças demoníacas que puxam o País para baixo, impedindo que haja avanços”. O que seria puxar o País para baixo? Avançar em que sentido? Quando, de Belo Monte à baia de Sepetiba (RJ), de Barcarena (PA) à fronteira do Uruguai, sabemos e acompanhamos comunidades inteiras que estão sendo literalmente varridas de seus territórios, estamos falando de quê? Essas comunidades não conseguem manter seu modo de vida ao lado de grandes siderúrgicas, portos, hidrelétricas, etc,

que estão sendo implementados sem o menor respeito ou consulta que, de fato, escute os atingidos. No entanto, certamente na visão do ministro Lobão, estas obras levarão o País para cima; permitindo o avanço do grande capital nacional e internacional a serviço das grandes empresas - completaríamos nós. Não é à toa que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) busca acelerar o crescimento da economia por meio de pesados investimentos em infra-estrutura (R$ 503,9 bilhões no período de 2007/10), preparando o terreno para a atuação de grandes grupos empresariais que, além de energia barata e facilidade no escoamento de sua produção, contam com imenso apoio político e econômico do governo. São recursos públicos tirados do Tesouro Nacional para financiar o

chamado desenvolvimento do País, sem que as pessoas diretamente atingidas pelos custos sociais, ambientais e econômicos desses empreendimentos sejam sequer levadas em consideração.

Questões de fundoNesse contexto, qual o papel de uma rede que se propõe a construir um pensamento crítico sobre o financiamento ao desenvolvimento? Como a Rede Brasil, que historicamente se debruçou sobre as clássicas instituições financeiras multilaterais (IFMs), como Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), se renova ao assumir a agenda do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)? Como enfrentar a discussão sobre o protagonismo do Estado na definição de táticas e estratégias de financiamento a um modelo de desenvolvimento perverso e injusto? Como se não bastassem estes desafios, encontramos uma conjuntura de crises que vai da crise financeira à crise de projeto da sociedade: para onde estamos indo? Com que ferramentas podemos contar em um momento tão grave como o que atravessamos? As perguntas se avolumam e as contradições se acirram. O momento exige coragem. Exige coragem para aprofundarmos nossas críticas. Exige coragem para não nos acomodarmos em discursos fáceis, conformados com um momento tão nebuloso, em que está em risco a própria capacidade de

“Como se não bastassem estes

desafios, encontramos uma conjuntura de

crises que vai da crise financeira à crise

de projeto da sociedade: para onde

estamos indo?”

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continuarmos vivendo no planeta. A busca por articular e potencializar as capacidades e talentos que cada organização membro possui, talvez seja o objetivo interno principal de uma rede. Para isso se constitui uma coordenação e uma secretaria executiva que têm como função dialogar com os membros, facilitar sua articulação e se constituir como um sujeito representativo das organizações que a compõem. Ao mesmo tempo, trabalhar a tessitura da rede para produzir massa crítica, fazer trabalhos de formação, fortalecer as articulações e produzir, de fato, em rede; além de contribuir para a construção de um campo contra-hegemônico que funcione de forma horizontal e descentralizado, com definições claras de tarefas e atribuições. No contexto atual, um desafio posto à Rede Brasil é o de tornar claro: de onde vêm os recursos para financiar as grandes obras de infra-estrutura que cobrem o País, de norte a sul? Quem, de fato, define este modelo de desenvolvimento? Que novo ciclo é esse de grandes obras, talvez só comparado à época do milagre econômico? Na era Médici, início dos anos de 1970, em pleno período de chumbo da ditadura, com o Brasil campeão mundial de futebol pela terceira vez, cria-se o mote: “Brasil: Ame-o ou deixe-o”. Uma época cheia de ameaças para quem não se enquadrasse.

Um outro tempo, o mesmo modeloA ditadura se instalou no País para implantar um modelo econômico dependente, à mercê dos interesses do

capital internacional aliado à burguesia local (escravagista e violenta). Foi preciso usar as armas para impor esse modelo em um País que florescia na busca de seus caminhos próprios. Democratizamos as políticas sociais, mas a política econômica continua a mesma há 40 anos. Não há democracia na definição da política econômica no Brasil, que continua a ser regida pelos mesmos interesses que usaram as botas para se impor. Hoje, usam a “grande” imprensa para vender a falsa idéia que o País vai bem. No entanto, a realidade é que estamos mergulhados em dívidas. Não nos referimos apenas às dívidas financeiras (interna e externa) que, juntas, somam mais de R$ 1,5 trilhão; mas também à dívida social, com os sem terra, os sem teto, os que necessitam de assistência médica ou hospitalar, os alunos e alunas de escolas públicas, que estão caindo aos pedaços com profissionais mal remunerados; e também à dívida ecológica, com os povos e a natureza. Ao mesmo tempo, não falta dinheiro ao BNDES para financiar as grandes empresas nacionais e internacionais. De onde veio o aporte de R$ 100 bilhões do Tesouro Nacional para este Banco anunciado em janeiro deste ano pelo ministro Mantega? Veio da emissão de título da dívida pública. Ou seja, o Tesouro emite títulos da dívida - e com isso cresce o endividamento brasileiro - para

“A ‘grande’ imprensa vende a falsa idéia de que o País vai

bem. No entanto, estamos mergulhados em dívidas:

financeira, social e ecológica.”

socorrer a Sadia, a Gerdau, a Aracruz, para fortalecer os mega-frigoríficos JBS-Friboi, Bertin e Marfrig, para emprestar R$ 25 bilhões à Petrobras. Para o Sr. Eike Batista, só em seus projetos no Rio de Janeiro, o BNDES pode chegar a emprestar cerca de R$ 3 bilhões. Assim, fica evidente que o “S” do BNDES míngua, sendo a regência do economista Luciano Coutinho oportuna para o cemitério de empresas em que se transformou o maior banco de fomento do mundo. O patrimônio do povo brasileiro – um banco meu e seu – está sendo dilapidado em nome do “desenvolvimento” que o PAC acelera. Portanto, para uma Rede que trabalha o tema do financiamento ao desenvolvimento, procurando revelar como quem o financia determina este modelo, é importante ir além do acompanhamento e da crítica. É fundamental também aprofundar o debate sobre as alternativas na construção de nossa soberania financeira, ao lado de tantas outras que precisamos conquistar.

Formação, massa crítica, articulações e a construção de alternativas com foco no financiamento ao desenvolvimento: desafios da Rede Brasil

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* Sandra Quintela é socioeconomista do Políticas

Alternativas para o Cone Sul (Pacs), membro da Rede Brasil

sobre IFMs e da Rede Jubileu Sul - [email protected]

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Luis Fernando Novoa Garzon*

Imperialismo de aluguel ou sub-imperialismo: tupi or not tupi?Apesar do discurso social e progressista do governo, a “saída” da crise para o capital global é o modelo que o “Brasil” impulsiona e impõe para o conjunto da América do Sul via PAC e IIRSA

O s impactos “diferenciados” da crise mundial na economia brasileira não foram fruto de

virtude inata, ou ainda de seus “bons fundamentos”. Câmbio flexível, elevados índices de superávit primário e de juros, metas de inflação conservadoras e grandes reservas cambiais formadas durante o boom de exportação de commodities apenas demarcam o lugar ímpar ocupado pelo País na divisão internacional do trabalho, o que resulta na manifestação diferenciada dos efeitos da grande contração. Mais do que isso, o Brasil tem oferecido saídas de curto prazo para compensar os efeitos da sobreacumulação, franqueando novas fronteiras de mercadorização e margens adicionais de exploração. Novos e mais intensivos “cercamentos” para o capital, capazes de liberar excedentes de capital (e de mão-de-obra) a baixíssimo custo. Nessa “periferia especial” que é o Brasil, expressa-se uma forma particular de articulação política e espacial do imperialismo. Mais que desfeito nos anos de liberalização selvagem, o Brasil foi refeito. Um país continental que docilmente aceita a condição suplementar dos países

centrais como vocação última requer tratamento especial. Suplementaridade que se realiza não apenas no clássico fornecimento de matérias-primas em larga escala, mas também na composição de estruturas intermediárias das empresas transnacionais em segmentos industriais e de serviços tendencialmente monopolistas e como praça financeira suficientemente auto-regulada. Os setores de infra-estrutura, por exemplo, continuam sendo uma ótima opção de investimento, mesmo com a diminuição da demanda agregada. Isso porque seus riscos estão sendo cobertos previamente por fundos públicos enquanto se antecipam os benefícios com a venda antecipada dos recebíveis privados. Neste sentido, ocorre um acirramento da disputa pela atração de investimentos à base de mais sacrifícios infligidos aos trabalhadores e ao meio ambiente. Nesse cenário, são requeridas novas “adequações” nos marcos regulatórios dos setores de energia, saneamento, transportes e comunicações.

A mando do capitalismoA crise jogou luz sobre as opções e construções políticas feitas nos últimos

anos e que trataram de dar fôlego ao capitalismo neoliberal. Um modelo econômico e societal falido, nacional e mundialmente, que tem encontrado no Estado brasileiro, e especificamente no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), providenciais tábuas de salvação. O eficaz acoplamento da economia da América do Sul aos fluxos globais de mercadorias e capitais não se viabiliza sem a intermediação do Brasil, isto é, de seus setores econômicos internacionalizados e concentrados, e de seu Estado, tributário que é do dinamismo desses mesmos setores. Diferentemente de seus vizinhos, historicamente restringidos à produção agrícola e mineral, e/ou que se submeteram a extensos processos de desindustrialização, o Brasil reciclou seu parque industrial através de operações intra-firma que mantiveram-no, ainda que sob a égide da desnacionalização, em condições de produzir e exportar manufaturados com médio valor agregado, a custos competitivos. Na economia “brasileira” somam-se economias primário-exportadoras de larga escala e grandes empresas de

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serviços de infra-estrutura, incluindo conglomerados industriais especializados em recursos naturais (celulose, etanol, siderurgia, metalurgia, petroquímica, cimento, indústria hidroelétrica, etc.). Esta enviesada somatória capacita o bloco de poder dominante “brasileiro” a querer protagonizar o encaixe das economias do sub-continente, em função dos interesses das cadeias transnacionais e suas engrenagens no Brasil. Com o encolhimento dos mercados dos países desenvolvidos e adoção de novas barreiras protecionistas, a absorção de mercados residuais dos países latino-americanos tornou-se crucial aos capitais que aqui triangulam. O aprofundamento da abertura de mercados e a flexibilização das regulamentações domésticas acelera o reposicionamento das cadeias produtivas “brasileiras” no sub-continente e no mundo. Essa relocalização dos negócios leva em conta os nichos de consumo, a disponibilidade de matérias-primas estratégicas, a densidade e eficiência da infra-estrutura, o grau de precarização dos direitos sociais e ambientais e a discrição ou a boa vontade dos governos vizinhos. O resultado é um projeto de Brasil avesso a qualquer conteúdo anti-capitalista. No caudal desse novo desenvolvimentismo transnacional-regional não há margem para viragens ou reversões, nada parecido com o que conhecíamos como “nacional”, abertamente avesso ao que almejávamos como “popular”. Apesar das naturais reverberações retóricas em contrário, “nacionalismo subalterno”, a nação refeita pelos “de baixo”, aquele Brasil possível, emprenhado na cultura popular, sucumbiu tanto no plano de experiências focais como no plano do imaginário. Não podemos esquecer que as companhias globalizadas que nos vitimaram historicamente foram projeções pujantes das economias centrais de origem. As transnacionais foram e são o resultado de suportes estatais concatenados e de uma

somatória de “preferências” oligopolistas e de opções políticas e geopolíticas. Foram as mesmas políticas “públicas” “conglomeradoras”, que envolvem apoio tecnológico, comercial, e de crédito, que permitiram a descentralização geográfica dos investimentos das economias centrais em busca do nivelamento mínimo de custos operacionais e de posições dominantes em mercados estratégicos. Vemos agora o BNDES repetindo a mesma história de internacionalização de capitais, sob a farsa de uma integração regional como substrato ideológico e como moldura institucional adequada à gestão integrada de corredores de exportação e clusters em escala continental. Doravante o Brasil se posicionará de forma ofensiva acerca de um acordo multilateral de inversões, e daquilo que já se coloca no TRIMS [Acordo Sobre Medidas de Investimento Relacionadas ao Comércio], nos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC)? Um estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI), de 2007, procurou dar uma resposta positiva e ofensiva a respeito. A CNI sugere “avançar na compreensão do funcionamento dos acordos de proteção de investimento”, o que demonstra que “nosso” setor empresarial adota a mesma pauta da irrestringibilidade adotada pelas demais transnacionais. Temem, portanto, o que deveria ser antes política nacional de controle e regulação de investimentos. Frente à possibilidade de “intervenções regulatórias arbitrárias”, solicitam que se revisem as experiências argentina e boliviana e as “condicionantes da ruptura e a evolução da negociação posterior”. Na direção oposta, seria preciso estabelecer uma pauta conjunta para o continente acerca dos requisitos, obrigações e reciprocidades mínimas dos Investimentos Externos Diretos (IEDs), mais ainda dos investimentos intra-regionais, na busca de geração de complementaridade, sinergia e redução de assimetrias.

“ Vemos agora o BNDES repetindo a mesma história de

internacionalização de capitais, sob a farsa

de uma integração regional como

substrato ideológico”

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IIRSA: a mais falsa integraçãoO empenho do governo brasileiro no G20 (grupo das vinte maiores economias do planeta) para reciclar a governabilidade da globalização e sua meta de tornar factível a Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana (IIRSA), replicando sua lógica no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), não deixa nenhuma margem de dúvida sobre a opção que o País adotou acerca de sua projeção externa. O BNDES, ao mesmo tempo em que se vai se tornando o principal esteio das obras do PAC, vai cumprindo o mesmo papel com relação aos corredores da IIRSA, deslocando o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) de sua posição matricial originária. A IIRSA não deve ser vista como um pacote de projetos físicos. Mais do que isso, ela é uma ferramenta política do imperialismo que, por dentro dos Estados nacionais sul-americanos, de forma coordenada, impulsiona acordos econômico-políticos, para aumentar a escala dos atuais corredores de exportação e criar novos, especialmente na Amazônia, onde o jogo político é mais visível com o desmonte da regulamentação ambiental, com a imposição de restrições às territorializações impeditivas (dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos) da territorialização única dos grandes negócios, e com a regularização da grilagem e do latifúndio e de todas suas práticas e modos criminosos. Isso quer dizer que a IIRSA oferece, além dos eixos físicos dos corredores de

escoamento, novos marcos regulatórios para os setores de infra-estrutura (desde sempre estratégicos), novas formas de regulamentação social e ambiental, e, até mesmo, um nível admissível de “direitos”. A IIRSA é uma arma imperialista/sub-imperialista inteligente com embalagem de desenvolvimento e integração. Trata-se de uma metodologia de repasse de recursos naturais, mercados potenciais e soberania a investidores privados, em escala continental, com respaldo político e segurança jurídica. Os grandes projetos viários, energéticos e de comunicações, associados a medidas de “convergência regulatória”, viabilizam a consolidação dos oligopólios privados na região e o estabelecimento de conectividades que irão nos subalternizar (país e região) de forma irreversível. Os eixos e projetos da IIRSA são voltados para a competitividade externa dos conglomerados econômicos situados na região, não para gerar dinamismo econômico equalizador entre os povos sul-americanos. Essa internacionalização, que o Brasil toma para si, é bastarda, porque submetida de antemão a um papel fixo e limitado na divisão internacional do trabalho, o que significa que será ainda mais concentradora que a internacionalização dos países centrais. O sub-imperialismo1 certamente é mais perverso que o imperialismo. Os benefícios auferidos vão ser muito mais circunscritos e sua imposição vai ser muito mais brutal, como já se verifica

no próprio País, nas bordas das suas ilhas de modernidade rural e urbana, bem como nas áreas incorporadas dos países vizinhos. Precisamos promover o devassamento de uma modernização conservadora que segue em polaridade crescente: quanto mais moderno, mais destrutivo, mais injusto. A burguesia, que se anuncia nacional, opta pela associação global subordinada, tendo por lastro “próprio”, largas fronteiras econômicas a serem abertas. A acumulação primitiva permanente, à custa do processamento dos territórios tradicionais, do campesinato, dos biomas, do sucateamento dos serviços e direitos essenciais, no Brasil e países vizinhos, compensa sobejamente a posição “minoritária” do capital “autóctone” em sua sociedade com o capital global. Nossa burguesia submergiu no mercado transnacional e não há mais nenhum tipo de referência ou instância nacional que ainda possa ser gabaritada como espaço de agregação de interesses e de diálogo. Os trâmites institucionais internos estão em vias de esgotamento; pior, têm servido para criminalizar a resistência à implementação desse modelo de desenvolvimento pretensamente único. O desafio inescapável dos movimentos sociais e da intelectualidade crítica é impedir que sociedade brasileira seja feita refém desse impulso vertiginoso de crescimento, que associe eventuais ganhos e benefícios a esse processo de incorporação territorial e expansãosub-imperialista.

* Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo, professor da

Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e membro da Rede

Brasil sobre IFMs - [email protected]

1- Na acepção de Ruy M. Marini, o sub-imperialismo seria um novo padrão de relação centro-periferia em que surgem sub-centros econômicos (e políticos), dotados de relativa autonomia, ainda que permaneçam subordinados à dinâmica global imposta pelos grandes centros

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Edna Castro*

Amazônia:fronteira de commoditiesIgnorando a pluralidade sociocultural dos povos da floresta, o Estado brasileiro insiste na antiga opção de processo civilizatório e de inserção à modernidade e transforma essa estratégica região em balcão de negócios

A Amazônia expressa uma diversidade socioétnica pouco identificada e muito pouco reconhecida pela sociedade. Nela se encontram modos de vida e

grupos culturais que compartilham os sentidos das lutas do presente e do passado por territórios. Estes sentidos se encontram em narrativas reveladas particularmente nos processos conflitivos e nas disputas políticas que atravessam a região na atualidade para garantir a integridade da cultura e do território. Tratam-se de confrontações com a ordem de poder hegemônica, de eficácia econômica e política e, portanto, com forte interveniência do Estado. O avanço da modernidade e da pós-colonialidade impõe à Amazônia atual um padrão social coerente com a lógica do mercado, que a transforma, de modo restrito, em lugares de negócios e se sobrepõe, de forma radical, a outras experiências sociais. Os discursos “competentes” produzidos sobre a Amazônia expõem certa representação dessa ordem social, tal como os encontrados na planificação governamental, nos projetos de ordenamento territorial ou em programas direcionados para determinadas áreas estratégicas para a intervenção desenvolvimentista e de mercado, como o “Territórios da Cidadania”. Em diferentes épocas, a perspectiva foi a de intervir para transformar e, fundamentalmente, negar as existências plurais. Em outra perspectiva, é necessário empreender novas leituras sobre a Amazônia capazes de iluminar as direções deixadas na obscuridade da ciência, na trajetória do conhecimento produzido e nos discursos dominantes que realimentam, ainda, as idéias coloniais presentes nas elites e fomentadas por consultores do poder, nacionais e internacionais, que desde os anos de 1970 projetam a Amazônia homogênea, grande produtora de energia e de commodities minerais, madeireiras e do agronegócio, por meio de grandes projetos de investimento. A idéia

Com a conivência do governo, a pecuária invadiu a Amazônia: falta de compromisso com os povos, a floresta e o clima do planeta

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requentada difundida é de processo civilizatório e de inserção à modernidade. Temos procurado mostrar a complexidade dos novos processos de dominação social, nos planos do real e do imagético, representados por empresas, nacionais e internacionais, ou instituições que procuram obscurecer a história e desregular estruturas locais. A questão central permanece a disputa pela apropriação da terra mas, atualmente, se formulam também processos que têm levado à deslegitimação de posses e propriedades de grupos tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores, camponeses) - processos que se dão nas áreas rurais, em territórios de antiga ocupação, e também nas cidades. De outro lado, ressaltamos as contradições sociais e políticas que emergem da relação entre Estado e sociedade ampliadas com os planos governamentais mais recentes que retomam a implantação de grandes projetos de investimento na Amazônia (mineração, hidrelétricas, rodovias e agronegócio), porém no contexto de uma economia globalizada mais competitiva. O Estado reforça assim o modelo de produção de bens para o mercado de commodities, inclusive em contradição com as novas perspectivas de mercado que se formam em torno dos bens e serviços ambientais que podem ser gerados pela floresta. O Estado brasileiro tem demonstrado manter, em relação à Amazônia, uma postura tecnocrática e autoritária, com sérios problemas na relação federativa.

Exportando a AmazôniaA recente crise econômica mundial, que provocou a retração do mercado mundial e a redução na dinâmica das trocas, tornou mais clara a necessidade de novos arranjos do sistema capitalista, de longo prazo, de maior pressão competitiva dentro do sistema mundial e a reformulação das estratégias de dominação econômica de grandes potências. Mostrou também que os

produtos primários continuam a ter papel importante na economia e na balança comercial brasileira. Trata-se de produtos agrícolas e de bens primários baseados nos recursos naturais. Apesar do Brasil ter diversificado, ao longo das últimas décadas, seu parque industrial e sua inserção no mercado mundial, ele não deixa de ser, por excelência, um produtor e exportador de commodities. E foi nisso que a Amazônia se transformou: uma fronteira de commodities. Dos seis grandes grupos de bens exportados pelo País - soja, carne, minérios, suco de laranja, petróleo e celulose –, os três primeiros são, majoritariamente, produzidos ou retirados da Amazônia. Eles são responsáveis, em grande parte, pela concentração fundiária, grilagem, pistolagem e conflitos em torno da terra, além do desmatamento acumulado.A Amazônia contribui também com a produção de dois outros produtos do ranking nacional - celulose e petróleo (com gás natural) -, reafirmando sua importância no cenário nacional de exportação. A globalização e o aumento de competitividade têm provocado, no âmbito local, o acirramento das estratégias de apropriação de terras e de recursos por empresas nacionais e internacionais com vistas a investimentos imediatos ou reservas de nichos de mercado. É o caso do interesse de empresas francesas pelos recursos hídricos (Suez-Vivendi) desde o final do século passado, conseguindo agora se inserir nos programas do Ministério de Minas e Energia (MME), da Eletrobrás e da Eletronorte, inicialmente fazendo os estudos de viabilidade para projetos de hidrelétricas na Amazônia (por exemplo, a usina hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu) e anunciando agora participação nos consórcios para a exploração das usinas planejadas. Elas tornam explícito seus interesses no grande manancial aquático da região. Igualmente, o Estado tem avalizado a ocupação exacerbada e inescrupulosa

“Apesar do Brasil ter

diversificado, ao longo

das últimas décadas,

seu parque industrial

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A Amazônia está sendo destruída para produzir soja e outras mercadorias como se fosse uma fonte inesgotável de recursos naturais: opção destruidora

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de terras públicas por empresas de mineração, como a Vale, a Albras-Alunorte, a Alumar e a Alcoa, dentre outras.1 Por outro lado, a pressão desses produtores intensivos de energia, do setor mínero-metalúrgico, tem contribuído com a visão autoritária de considerar os rios da Amazônia como sendo de prioridade energética. Recentemente, conseguiram aprovar a polêmica implantação das hidrelétricas Santo Antônio e Jirau no Rio Madeira, em Rondônia.

As mesmas velhas obrasAs rodovias Cuiabá-Santarém (Br-163) e Manaus-Porto-Velho (Br-319) - quase intransitáveis desde a década de 1970, quando foram construídas - ressurgem como projetos estratégicos governamentais, de “integração nacional”, certamente estratégicos para o agronegócio e a ocupação, levando mais à frente o desmatamento e a desapropriação de terras de grupos tradicionais. Afinal, nesse contexto fazem sentido os termos criados pelo Estado e seus assessores, de “região consolidada” e “arco do desmatamento”, hoje bem difundidos e festejados. O primeiro constitui o objetivo, a linha de orientação, apesar de ser constituído por regiões como o nortão do Mato Grosso, com a monocultura de soja, ou as áreas devastadas pelas fazendas de gado no sudeste do Pará e parte do estado do Tocantins. O outro, “arco do desmatamento”, é um recurso imagético, da inversão do sentido da comunicação, que lida com o equívoco - valorizada-desvalorizada -, ao mesmo tempo, segundo óticas e interesses diversos em jogo. A ideologia do desenvolvimento sustentável é o suporte da idealização e por isso lhe confere certa legitimidade no senso comum. Na lógica das políticas atuais e do modelo de desenvolvimento, essas “áreas consolidadas” são consolidadas para a economia do agronegócio e devem atingir as novas fronteiras ainda preservadas em direção agora ao oeste do Pará e ao estado do

Amazonas. Estamos diante da “bola da vez” e o Estado nacional já cogita redefinir as áreas decretadas como Unidades de Conservação (UCs) ao longo da Br-163, começando pelo Parquedo Jamanxin. O Estado tem optado pela solução mais tradicional de desenvolvimento - o que tem se revelado ineficaz social e ambientalmente - que é a construção de grandes obras de infra-estrutura usando argumentos que supervalorizam os benefícios do desenvolvimento. Obras localizadas no território nacional, mas também articulando e financiando outras nos países amazônicos vizinhos, através da IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana). Produtos como minério, madeira, gado bovino e pescado, na Amazônia, continuam a sair para o mercado por cadeias curtas e com reduzido padrão tecnológico. Bens primários e recursos naturais exportados com nível tecnológico aquém da possibilidade de gerar mais valor à produção regional e agregar qualificação e especialização na oferta de empregos. Conseqüentemente, não aparecem mudanças relevantes na massa salarial que circula no mercado regional. Por outro lado, o da dominação simbólica, essa intervenção tem sido validada pelos planos de governos, nacionais e estaduais, que trazem como eixo imagético a sustentabilidade, ou o desenvolvimento sustentável, discurso direcionado para um lugar comum, e vazio, do ideário da sociedade global. Bem ao contrário, a lógica que fortalece o enclave, as economias de fora e a produção de riqueza simplesmente para exportar aumenta ainda mais os passivos sociais e ambientais internamente. Essa imagem da Amazônia fonte inesgotável de recursos atualiza o mito do eldorado, mobiliza os interesses de acumulação e de cobiça, e se ancora numa percepção neocolonial.

Outra AmazôniaCabe ressaltar que nessa região também são geradas riquezas que

não são commodities, através de um número expressivo de processos de produção e de formas de trabalho, mas não é por meio destes que a Amazônia é vista por muitos brasileiros, empresas e gestores públicos. Na perspectiva adotada, afirmamos a necessidade de comprensão dos fenômenos localizados nas cidades, no mundo rural ou nas aldeias, tendo como eixo a diversidade da cultura, da economia e dos modos de vida que considere as territorialidades efetivamente em jogo no cotidiano da Amazônia real.

* Edna Castro é sociológa e professora do Núcleo de Altos

Estudos Amazônicos (NAEA), da Universidade Federal do

Pará (PA)

1- A Vale detém direito de pesquisa e concessão de lavra de um imenso território que atravessa praticamente todos os estados da Amazônia.

“Dos seis grandes

grupos de bens

exportados pelo

País - soja, carne,

minérios, suco de

laranja, petróleo

e celulose –, os

três primeiros são,

majoritariamente,

produzidos ou

retirados da

Amazônia”

Page 12: Revista Contracorrente # 2

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Emanuel Meirelles*

PAC, um Plano para Acabar com as ComunidadesAs pequenas e médias cidades da Amazônia estão se transformando em uma realidade de miséria e sofrimento, em que os modos de vida das populações são destruídos, as riquezas naturais retiradas e os conflitos aumentam

V ivemos tempos sombrios. A velha e tão propagada lorota discursiva do ‘progresso’ e do

‘desenvolvimento’ desencadeada pelos donos do poder não se sustenta. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) - lançado em 2007 pelo governo federal, prometendo uma ambiciosa transformação no Brasil, ancorado em obras de infra-estrutura, transporte e na

construção de hidrelétricas - se revela com toda intensidade a expressão da força política e econômica dos setores dominantes que vêm desmontando os modos de vida e de cultura de populações em todas as regiões, em especial a Amazônia - alvo principal da exploração sem precedentes dos recursos naturais e da mão de obra local e regional. Além dos grandes projetos de

infra-estrutura, os crescentes impactos chegam também na forma de conjuntos habitacionais, ‘urbanização’ de cidades e centros históricos e reabertura de rodovias, dentre outras obras. A partir desse cenário constituído com o PAC, o que se observa é a repetição de velhas práticas das elites políticas e econômicas: o deslocamento de pessoas e comunidades inteiras, violação de direitos

As obras da polêmica usina de Santo Antônio, no Rio Madeira, transformaram radicalmente a região: destruição do modo de viver e desterritorialização

Gab

riel S

trau

tman

“Realmente, vivemos tempos sombrios! A inocência é loucura.

Uma fronte de rugas denota insensibilidade. Aquele que ri

ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar”.

(Bertolt Brecht, Aos que virem depois de nós)

Page 13: Revista Contracorrente # 2

Contra Corrente I Novembro 2009

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étnicos e territoriais, a precarização do trabalho e dos trabalhadores, desmatamento de grandes áreas de florestas, extração ilegal de madeira, especulação imobiliária. Somada a toda essa destruição, observa-se uma estratégia sistemática e permanente de criminalização de movimentos sociais e de defensores de direitos humanos, além do desmonte da legislação ambiental. Essa realidade ocorre nas pequenas e médias cidades da Amazônia, foco - há décadas - de constantes conflitos fundiários e agrários e de disputa das riquezas da Amazônia para o mercado nacional e internacional. Essa estratégia (ou agroestratégia, termo utilizado pelo antropólogo Alfredo Wagner, da Universidade Federal do Amazonas - UFAM) baseia-se em alguns pilares centrais: o apoio de bancos públicos e de bancos multilaterais para o financiamento dos megaprojetos, como é o caso do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID); a operação de grandes empreiteiras, como a Camargo Corrêa e a Odebrecht; o apoio político e articulador do Estado brasileiro, com todos os seus tentáculos e aliados se colocando na defesa, incondicional, desses projetos, como é o caso da Eletronorte, Petrobras, Furnas, e dos Ministérios envolvidos nas obras, como o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e o de Minas e Energia (MME), articulados com outros órgãos públicos; e a participação de mega-empresas privadas, como a Gerdau, Votorantim e Vale do Rio Doce. No contexto nacional e internacional, essas agroestratégias têm a finalidade de colocar o Brasil em uma posição de destaque no contexto da economia mundial e consolidar a hegemonia brasileira na região latino-americana. Claro, à custa do sacrifício de seres humanos e de direitos historicamente conquistados a duras penas pelos movimentos populares.

A realidade é essaJairo Estrada Álvares, professor de ciência política na Universidade Nacional da Colômbia e Margarita Flórez, advogada colombiana especializada em direitos indígenas e legislação da biodiversidade, dissertam sobre o papel do PAC em um contexto mais amplo no excelente texto Tendências recentes do investimento do capital brasileiro na Colômbia:

Ao olharmos para o plano local, perceberemos que o desmonte e a destruição de vidas, modos de vida, tradição, biodiversidade e patrimônio humano e cultural já estão acontecendo, neste instante. Em Porto Velho, capital de Rondônia, estado da porção ocidental da Amazônia, há dois anos a população sofre os efeitos destes tempos sombrios: o deslocamento de comunidades ribeirinhas causado pela construção das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau é o fato mais conhecido da opinião pública sobre a região. Em setembro deste ano, por exemplo, chegou a ser divulgada uma notícia sobre um grupo de 38 pessoas que havia sido libertado de trabalho análogo à escravidão em uma obra ligada à usina Jirau. Mas, não nos enganemos, poucos conhecem, de fato, o transtorno e a violação de direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais que as comunidades tradicionais, povos indígenas e moradores dessa cidade vêm experimentando. Como se sabe, a partir da construção das hidrelétricas, o município de Porto Velho recebeu do governo federal, por

“O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) do segundo governo Lula tem por finalidade justamente incentivar o investimento do grande capital brasileiro, através de diversas medidas e projetos, e projetar sua influência em outros países da América Latina, para além do âmbito do Mercosul. Dentre essas projeções estão as pretensões de buscar uma saída para o Pacífico e encurtar as saídas para o Atlântico de algumas atividades produtivas brasileiras. Portanto, não é casual a vinculação do Brasil a grandes megaprojetos de investimento, especialmente dentro da IIRSA”.

meio do PAC, cerca de R$ 600 milhões, a título de uma ‘compensação’ social e ambiental. O governo local, com esse recurso em caixa, vem executando obras de infra-estrutura, moradia e saneamento. Nada mal para uma cidade que tem menos de 1% de saneamento e cujo déficit habitacional é gritante. Mas não nos animemos muito, o que vem ocorrendo em Porto Velho é um aumento assustador da violência no trânsito, com mortes de pedestres, ciclistas e principalmente motociclistas,

resultado da intensa migração para esse lugar; a retirada de moradores de dois bairros históricos: Triângulo e Vila Candelária; a ausência de controle social e de fiscalização sistemática desses recursos do PAC, ficando tudo a cargo dos próprios poderes que empregam esses recursos; e, o pior, a destruição dos modos de produção e sobrevivência das populações deslocadas, que há décadas viviam do pescado e do plantio na várzea do Rio Madeira, caracterizando uma brutal desterritorialização, ou

“No contexto nacional e internacional, essas agroestratégias têm a

finalidade de colocar o Brasil em uma

posição de destaque no contexto da economia

mundial e consolidar a hegemonia brasileira

na região latino-americana.”

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ainda o ‘desenraizamento’ desses povos que vieram para a região, no auge da Segunda Guerra Mundial, em busca de melhores condições de vida, terra para plantar e um lugar para morar, num processo de enganação da ditadura civil-militar da época.

Resistir, hoje e amanhãOs movimentos sociais reagem e novas mobilizações são feitas para denunciar esse contexto de transformação para a miséria e sofrimento que as populações locais vêm vivendo. Em setembro deste ano, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) realizou o seminário Grandes Projetos e Barragens: Conseqüências e estratégias de ação, em Porto Velho. Do seu documento final, destaca-se:

“Poucos conhecem,

de fato, o transtorno e

a violação de direitos

sociais, econômicos,

culturais e ambientais

que as comunidades

tradicionais, povos

indígenas e moradores

dessa cidade vêm

experimentando.”

A atuação do grande capital, piorando radicalmente o cenário local e incorporando novos atores na relação de poder, marca profundamente o significado e o sentido de uma reação também radical dos movimentos populares e das lutas na região. Não há como lutar de forma desarticulada e isolada. Não há como lutar sem compreender as estratégias das forças de reprodução do capital que lançam suas raízes e apostam todas as suas fichas na continuação da pilhagem e exploração da Amazônia e dos amazônidas. A luta popular também ganha força quando estamos articulados com as companheiras e os companheiros de outros países, como a Bolívia e o Peru, e quando se busca a construção de estratégias contra-hegemônicas comuns, desde o nível local até as redes nacionais. De modo que possamos dizer bem alto e para todos que: água, vida e soberania não são mercadorias!

* Emanuel Meirelles é historiador, educador popular do

Centro de Educação e Assessoria Popular (Ceap) e membro

da coordenação nacional da Rede Brasil sobre IFMs -

[email protected]

“Que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes. Pois implica silenciar horrores! Esse que cruza tranquilamente a rua não poderá jamais ser encontrado pelos amigos que precisam de ajuda?” (Bertolt Brecht, Aos que virem depois de nós)

1. Temos que fortalecer nossa visão estratégica e as múltiplas formas de luta derivadas dessa visão, para combater o atual modelo energético como um todo. Em especial, combater a implantação dos projetos de interesse dos grandes grupos econômicos especializados em processar biomas e territorialidades coletivas em objetos de exploração, a exemplo das hidrelétricasno Rio Madeira e os outros planos de UHEs na Amazônia. 2. Temos que nos contrapor a todas as formas de opressão do Estado e de suas leis feitas sob encomenda dos grandes grupos econômicos. É preciso denunciar e combater a crescente flexibilização das regulamentações sociais e ambientais que favorecem a incorporação da Amazônia pelo grande capital. Devemos continuar sustentando a ilegitimidade desses marcos privatizantes e tensionar essa pseudo-legalidade através de ações políticas e diretas. 3. Trabalhar e melhorar nossa mensagem, nossa comunicação. Está vindo à tona uma sucessão de abusos e de graves violações de direitos, resultado do padrão predatório e irresponsável do planejamento e do licenciamento desses grandes projetos. A violência do despejo, a realocação dos atingidos em condições incompatíveis com seu modo de vida original, a alteração do tipo de pesca, erosão e comprometimento das margens do rio à jusante, trabalho escravo, sub-emprego e pisos salariais vergonhosos para baratear o custo das construtoras, a explosão urbana e

demográfica em Porto Velho, são um conjunto de provas que precisam ser colocadas na mesa, para que o projeto Complexo Madeira seja colocado em questão. 4. Realizar um mapeamento/diagnóstico da região com seguintes pontos: a- Quais são os grandes projetos do capital para a região para o próximo período (PPA/PAC/IIRSA + projetos estaduais e municipais); b- Quais são as diferentes categorias de atingidos na região; c- Quem são as principais empresas envolvidas e os bancos que as financiam; d- Qual é o custo (declarado e oculto) e o modelo desses financiamento; e- Quais são os exemplos de resistência que o povo tem desenvolvido, sua abrangência e possibilidades de articulação e fortalecimento de um projeto popular;

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Guilherme Carvalho*

Diferente de tudo o que háA integração regional que queremos deve ser baseada na distribuição de renda em grande escala, cooperação real entre os países, compreensãode que somos parte da natureza e na democratização radical do Estado

Segundo Celso Furtado1, “progresso” foi a idéia-força que moldou o pensamento ocidental nos

primórdios do capitalismo. Não era uma palavra qualquer na medida em que expressava um conjunto de noções que serviu para justificar o expansionismo europeu, bem como todas as truculências cometidas contra os povos originários do que viria a ser o continente americano, por exemplo: a) o papel civilizador da Europa; b) a noção otimista de futuro para a humanidade; e, c) uma perspectiva linear da história. Ou seja, todos poderiam usufruir das conquistas obtidas com o “progresso”, desde que se espelhassem no caminho percorrido pela Europa e o tomassem como o seu próprio modelo de produção, de se relacionar com a natureza e de pensar o mundo. Ao que parece, no atual momento histórico do capitalismo, “desenvolvimento” adquiriu o mesmo significado profundo que o “progresso” representava no passado. Aliás, é preciso ressaltar que não estamos falando numa noção substituindo a outra, mas de idéias-força que se retroalimentam, que embasam e orientam as perspectivas de grande parte da humanidade. Chegamos ao ponto de as manifestações contrárias ao modelo atualmente hegemônico sofrerem todo tipo de acusações, de retrógradas a “antipatriotas”, pelos segmentos que controlam o aparelho

Vere

na G

lass

Mudar radicalmente a nossa relação com a natureza: um dos fundamentos para uma verdadeira integração regional

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do Estado e a mídia, grandes empresas, parcela majoritária do legislativo e do judiciário, além de movimentos sociais burocratizados e/ou defensores de soluções a partir do fortalecimento das regras e das instituições do mercado, incluindo diferentes ONGs nacionais e internacionais. Isto sem falar na adoção de medidas de intimidação, de desmoralização e de criminalização executadas de modo articulado contra os que confrontam a “ordem” instituída. Lembremos que Edson Lobão, Ministro de Minas e Energia, chamou de demônios os opositores da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, na região do Xingu, no estado do Pará.

Confinamento cabalO “desenvolvimento” passou a ser o elemento central do discurso, da prática e da utopia de parcela expressiva da esquerda, estando ou não controlando o aparelho do Estado. Uma esquerda que possui visão produtivista, de domínio do homem sobre a natureza e cujas propostas estão assentadas no consumo intensivo e insustentável dos recursos naturais. Por conseguinte, o “desenvolvimento” se constituiu numa espécie de divisor de águas mesmo dentro da esquerda. A verdade é que o debate sobre as nossas utopias empobreceu demasiadamente por conta disso, já que nos tornamos reféns de uma armadilha político-ideológica, cujos parâmetros são dados pelos que controlam o capital, o Estado, os mecanismos de poder. Tais parâmetros confinam o debate acerca do futuro do nosso e de muitos outros países à

definição de medidas consideradas mais eficazes para patrocinar e impulsionar o “desenvolvimento”. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e a Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) são exemplos cabais disto. Eis aqui o primeiro elemento da integração que não queremos: as experiências representadas pela IIRSA, Plano Puebla-Panamá, PAC e o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) buscam fundamentalmente garantir a livre circulação de mercadorias e de capital no continente. Portanto, é um tipo de integração que aumenta o fosso entre os países, e no interior de cada um, de domínio das nações ricas sobre as mais pobres, que amplia as formas de desigualdades – sejam elas sociais, econômicas, políticas e/ou regionais – e que impulsiona a destruição ambiental. Contrapor-se a essa estratégia significa, portanto, apontar caminhos para uma integração que possibilite a distribuição de renda em grande escala, fundado numa lógica de cooperação entre os países em diferentes campos (econômico, cultural, político, científico-tecnológico, financeiro e outros), e que promova mudanças profundas nos padrões de produção e de consumo da sociedade. O segundo elemento da integração que não queremos: as estratégias executadas no nosso continente têm como objetivo garantir o acesso, uso e controle dos recursos naturais dos nossos países aos grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros. Além do fator essencialmente econômico, essa perspectiva carrega em seu interior a

idéia de natureza como uma “coisa” que deve ser dominada e explorada. Ou seja, uma natureza que atende aos interesses do capital. O pensamento ocidental promoveu essa idéia de apartação entre os seres humanos e a natureza, e o processo de constituição e de consolidação do capitalismo a levou até as últimas consequências. Tanto que, pela primeira vez na história da humanidade, estamos diante da possibilidade concreta de nos exterminarmos enquanto espécie. Então, qualquer projeto integracionista que se contraponha ao modelo hegemônico deve estar assentado num outro referencial acerca da nossa relação com a natureza, que nos ajude a compreender que fazemos parte dela.

Outro modo para viverHoje, já há iniciativas nesse sentido como a dos(as) nossos(as) companheiros(as) andinos(as) com a proposta do Bem Viver, que nos convida a uma completa reformulação do pensamento e da prática do conjunto da sociedade sobre o que queremos, o que podemos fazer e almejar e o que precisamos abandonar. Elementos que se chocam frontalmente com as visões de mundo e as práticas sociais consolidadas com o capitalismo. Esse é o motivo pelo qual os povos originários se tornaram perigosos inimigos da globalização capitalista. E por isso pagam muito caro: assassinatos, invasões de suas terras, aprovação de legislações que permitem a entrada de grandes empresas nas suas áreas – em particular aquelas vinculadas aos setores madeireiro e mineral –, construção de grandes obras de infra-estrutura, e outras mais. O terceiro elemento da integração que não queremos: nas iniciativas voltadas ao fortalecimento do mercado e de suas instituições, o Estado aparece como aquele cujas ações buscam garantir os interesses dos grandes monopólios. A integração na perspectiva da globalização capitalista se apresenta como uma oportunidade para que as grandes empresas se lancem sobre os mercados dos países mais

karmo

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frágeis economicamente, assim como recebem todo tipo de benefício para se consolidarem no mercado internacional. O Brasil, através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), é um caso exemplar. As empresas brasileiras, associadas ou não ao grande capital internacional, têm sido apoiadas de diferentes formas para entrarem nos mercados dos nossos vizinhos. Por outro lado, segmentos desses países também têm executado diversas ações para atrair o “capital brasileiro”, como mudanças nas legislações nacionais, flexibilizações de toda ordem e estímulo ao estabelecimento de parcerias entre os Estados nacionais e a iniciativa privada, principalmente no que tange à expansão da infra-estrutura necessária às atividades econômicas voltadas ao atendimento das demandas do comércio internacional. Nesse caso, uma proposta alternativa de integração deve ter como parâmetro a retomada do Estado pela sociedade, democratizando-o radicalmente, a fim de torná-lo a expressão dos interesses e das expectativas da maioria da população. Um Estado que promova a justiça socioambiental, que execute políticas que enfrentem as diversas formas de desigualdades e que respeite e valorize a diversidade cultural.

Democracia ampliadaO quarto elemento da integração que não queremos: a integração de mercados não promove a democracia. Alguns dirão que isso não é verdade já que na experiência do Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul), por exemplo, existem “cláusulas democráticas” que devem ser seguidas pelos países-membros a fim de manterem-se na organização ou dela participar; inclusive, este foi o principal argumento utilizado pela direita brasileira para tentar impedir a inclusão da Venezuela, quando do debate realizado recentemente acerca desse assunto no Congresso Nacional. Certamente que a existência dessas

cláusulas é por si mesma um fator positivo. Contudo, a ocorrência de eleições regulares não é suficiente para responder às demandas da sociedade por democracia, nem o único instrumento para garantí-la. Ainda mais se levarmos em conta a capacidade de influência do poder econômico e da mídia na conformação de resultados eleitorais. Em contraposição ao que nos é apresentado, outro modelo de integração deverá ser gestado, fundado num compromisso irrevogável com a reconstrução dos Estados nacionais, com uma nova institucionalidade, com a experimentação de variadas formas de participação social, com uma perspectiva ampliada de democracia – que abarque direitos humanos, econômicos, sociais, ambientais e culturais e não somente o direito ao voto –, com mudanças profundas no interior de instituições multilaterais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e com a construção de novas relações entre os países. Sem dúvida alguma os elementos expostos aqui abarcam uma quantidade pequena de aspectos sobre a integração, apesar da relevância dos mesmos. Várias propostas estão sendo apresentadas ao debate vindas do Equador e da Bolívia, entre outros, além daquelas que já estão sendo experimentadas e que apresentam alguns aspectos inovadores que precisam ser analisados a partir de um olhar crítico e, quem sabe, assumidos como parte de um projeto mais amplo de integração, como a Alternativa Bolivariana. O fato é que podemos não possuir uma proposta completamente estruturada acerca da integração, mas termos consciência do que não queremos já é um passo importante.

* Guilherme Carvalho é historiador, técnico da ONG Fase-

Amazônia, membro da coordenação nacional da Rede Brasil

sobre IFMs, onde representa o Fórum da Amazônia Oriental

(Faor) - [email protected]

1- FURTADO, Celso. Introdução ao Desenvolvimento: enfoque histórico-estrutural. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 2000.

“Já há iniciativas

nesse sentido como

a proposta do Bem

Viver, que nos convida

a uma completa

reformulação do

pensamento e da

prática do conjunto

da sociedade sobre

o que queremos,

o que podemos

fazer e almejar e

o que precisamos

abandonar.”

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Por Patrícia Bonilha*

Hegemonia X UtopiaA economista mexicana Ana Esther Ceceña é uma intelectual e militante comprometida com a luta por um mundo justo. Coordenadora do GT Hegemonias e Emancipações do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (Clacso), professora do Instituto de Investigações Econômicas da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e Coordenadora do Observatório Latino-americano de Geopolítica, entre as aulas que ministra e a participação em uma mobilização em defesa da eletricidade pública e dos direitos dos trabalhadores, dentre tantas outras atividades, ela concedeu esta entrevista à Contra Corrente:

Como os processos de expansão capitalista se atualizam na Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA)? A hegemonia estadunidense, que em vários sentidos equivale à hegemonia capitalista, se projeta, fundamentalmente, em quatro dimensões: econômica, militar, territorial e epistemológica. À medida em que os avanços científicos e tecnológicos foram proporcionando e exigindo uma apropriação cada vez mais profunda da natureza e das capacidades humanas, das estruturas orgânicas e inorgânicas, a competição capitalista se concentrou no esforço de monopolização dos territórios. A IIRSA constitui um dos projetos mais ambiciosos de articulação e reordenamento territorial jamais vistos, localizada na região do mundo que possui as maiores riquezas em termos de biodiversidades, água e oxigênio, e com enormes reservas de recursos energéticos e de quase todos os minerais estratégicos.

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oduç

ão

Para os Estados Unidos, a IIRSA significa a garantia da invulnerabilidade. É um território que oferece condições para a sua auto-suficiência, tanto no presente, quanto no futuro. Ou seja, o continente pode ser pensado como uma fortaleza auto-sustentável e, por esta razão, pode se mover na competição internacional com bastante folga. Este continente tem acesso aos dois maiores e mais importantes oceanos do planeta; geo-estrategicamente, tem condições inigualáveis. Esta característica foi potencializada no passado com a construção do Canal do Panamá. Na atualidade, o grande projeto que surge junto com o século XXI é o de multiplicar o Canal do Panamá, o de abrir materialmente as veias do continente para alimentar o capitalismo mundial. A IIRSA e o Plano Puebla-Panamá são duas partes de um mesmo projeto de reorganização territorial do continente a partir de critérios de controle e de mercantilização profunda. Natureza, geografia e

sociedade colocadas à disposição das necessidades da acumulação capitalista e da competição. Não há nenhuma outra região do mundo que ofereça semelhantes possibilidades e a vantagem é que os Estados Unidos formam parte desta estratégia, enquanto os seus competidores ficam de fora.

Há algum risco de a integração regional sul-americana reproduziros mesmos problemas do Nafta?Todos os tratados de livre-comércio que envolvem os Estados Unidos seguem o modelo do Nafta. São redigidos quase que com as mesmas cláusulas e todos eles admitem a prerrogativa do interesse das empresas sobre os dos Estados particulares. As outras iniciativas de integração sem os Estados Unidos são variadas. No caso das propostas de integração com a União Européia, apesar de introduzir considerações sobre os direitos humanos e democracia (que são marginais), as condições de acordo econômico não são muito distintas das que constam

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Nilo

D’Á

vila

“Construir uma via de trânsito pesado na região amazônica é um dos projetos mais perversos que o mundo já conheceu: crime contra a humanidade” (Br 163, Sinop-MT)

nos Tratados de Livre Comércio (TLCs) com os Estados Unidos. Em todos os casos faltam proteções que contemplem a enorme diferença das economias em processo de integração. Há ainda um terceiro tipo de processo de integração, que busca privilegiar a cooperação entre países latino-americanos e caribenhos. Aí, as condições são muito menos díspares, mas em alguns casos se reproduzem algumas práticas vantajosas similares às dos anteriores. As diferenças entre a economia brasileira e a boliviana, por exemplo, e a avidez que demonstram empresas como Odebrecht ou Petrobras exigem um grande cuidado no momento de se estabelecer acordos, para que sejam efetivamente superadas as condições de desigualdade e não apenas se privilegie o país de origem do capital. O único espaço que parece oferecer condições de integração favoráveis mutuamente é o que está sendo gestionado em instituições como a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) , Petrocaribe e o Banco do Sul, onde efetivamente se busca aproveitar as vantagens comparativas em circunstâncias de solidariedade e apoio mútuo aceitáveis para as partes e geradoras de uma dinâmica regional na qual o beneficio de um é parte do benefício de todos.

Como a senhora avalia a política externa regional do governo brasileiro?A política externa brasileira foi uma das preocupações latino-americanas que levou a uma retomada dos estudos de Ruy Mauro Marini. Já nos anos 80 do século passado ele chamava a atenção para um fenômeno de encadeamento e reprodução das dinâmicas capitalistas de acordo com uma estrutura hierarquizada, a partir da qual surgem hegemons regionais, de segundo e terceiro níveis, associados com o grande hegemon, mas com relativa margem de manobra que os situa em posição regional privilegiada. Entre os

estudiosos do assunto se discute tanto o papel de moderador desempenhado pelo Brasil como a suposta revitalização de um capital brasileiro, supostamente competidor do estadunidense. As alianças com o capital europeu, neste sentido, são enxergadas como uma oportunidade para o lançamento do Brasil potência. Efetivamente, a diversificação de sócios capitalistas permite um jogo um pouco mais versátil, em um campo de jogo definido; mas não é o caminho para sair deste campo. As insistentes propostas do governo venezuelano, buscando fortalecer posições contra-hegemônicas, foram sistematicamente rechaçadas pelo Brasil, que preferiu ser um jogador mais disciplinado, ao não enfrentar os organismos internacionais e aceitar as entradas massivas de capital estrangeiro. As empresas brasileiras que hoje são um paradigma do êxito econômico do Brasil, na verdade, já não são brasileiras. São empresas com capital brasileiro, mas que se nutriram de capital estrangeiro através das bolsas de valores

internacionais, particularmente a de Nova Iorque. Essa entrada de capitais, muitos deles estadunidenses, coincidiu com a ampliação das atividades destas empresas, colocando-as em um melhor lugar no mercado mundial. O que, evidentemente, é certo é que o Brasil melhorou suas condições de negociação e sua margem de manobra. Isso não significa, entretanto, que um megaprojeto como a IIRSA não responda a um desenho estratégico desde os centros de poder hegemônicos (nos Estados Unidos). Mas, sim, é evidente que um projeto de tal envergadura favorece aos interesses econômicos locais. Os interesses estratégicos na IIRSA, evidentemente, provêm das cabeças pensantes dos Departamentos de Defesa e de Estado e da cúpula empresarial dos Estados Unidos, mas o projeto despertou grande interesse entre as classes dominantes locais. Por isso, foi assumido por elas como próprio e lançado ao mundo pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. O mesmo aconteceu, certamente, com o Plano Puebla-Panamá.

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O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) é baseado em grandes obras de infra-estrutura voltadas para aumentar a escala de atividades primárias. Como a senhora avalia esta opção política? O que mais me preocupa, nestes casos, é a incapacidade de modificar a idéia de progresso, sobre a qual se constroem todas estas políticas. Está mais do que demonstrado, inclusive em escala de catástrofe, os danos que a industrialização, o crescimento, o domínio da natureza pelo homem, e, inclusive, o desenvolvimento, causaram ao planeta. A tal ponto que o que hoje mais está em risco é a própria vida humana. A ciência avançou até ao ponto de nos permitir avaliar os riscos de um futuro sobre as mesmas bases que nos levaram a esta situação limite. E, ainda assim, continuam sendo propostas as mesmas políticas predatórias, polarizadoras e insensatas, que desrespeitam a vida e que apenas têm como horizonte o lucro imediato, seja monetário ou político. É um crime contra a humanidade levar adiante projetos como a IIRSA e como os das grandes obras de infra-estrutura, que violentam irreversivelmente a vida da sociedade e da natureza. Construir uma via de trânsito pesado na região amazônica é um dos projetos mais perversos que o mundo já conheceu. E tudo isso se faz em nome de um progresso que, se permitirmos, será o exterminador da humanidade.

Como a estratégia de controle territorial-militar por parte dos EUA se acopla com a estratégia de controle econômico transnacional do continente? Os Estados Unidos, ao longo de sua história, foi estabelecendo posições militares em pontos estratégicos. Atualmente, a sub-região mais cuidada é a que rodeia o Canal do Panamá e a Bacia Amazônica. É o centro do continente e compreende, ao mesmo tempo, a passagem mais estreita (no Panamá) e a mais ampla, onde se pretende construir uma estrada que comunique, ao longo de 20 mil quilômetros, os dois oceanos: trata-se do eixo Amazonas, da IIRSA. Já no início do século XXI esta sub-região foi objeto de um redimensionamento estratégico. A Colômbia se converteu no centro do que, pouco a pouco, foi se consolidando como a construção de uma plataforma militar no Sul, com a capacidade das forças armadas estadunidenses e com condições de deslocamento rápido, não apenas na América do Centro e do Sul como também nas costas continentais, particularmente na África. Os Estados Unidos já possuem hoje, depois do Acordo Complementar para a Cooperação e Assistência Técnica em Defesa e Segurança entre os Governos da República da Colômbia e dos Estados Unidos da América, 28 bases

reconhecidas e mais quatro que estão em negociação no Panamá. Essas bases estão posicionadasde modo que, em conjunto, constituem um sistema de bases com funções distintas e complementares,articuladas em tempo real.Circundam e penetram a região amazônica-caribenha e têm uma capacidade de resposta que, em apenas três horas, abarca o continente por completo, até o círculo polar.Esta rede militar em realidade não é muito distinta, em termos conceituais, à rede constituída pelo Plano Puebla-Panamá e à IIRSA. Os critérios orientadores nos dois casos atendem à geografia dos recursos ainda que, evidentemente, o fazem de acordo com a sua especificidade. A crescente oposição dos povosaos projetos saqueadores, que violentam suas formas de vida e arrancam suas riquezas, estimulou a vocação militarista dos Estados Unidos a ponto de elevar essa oposição à categoria de ameaça à segurança nacional e, com isso, tentar justificar sua crescente presença militar na América Latina e no Caribe. O que não se obtém pelos mecanismos econômicos habituais, como os tratados ou as operações das empresas multinacionais, se assegura pelaforça da presença militar dissuasivaou punitiva.

karmo

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Passaram-ses seis anos desde a ocupação do Haiti, não seria o caso de retirar as tropas e oferecer um apoio que respeite a soberania haitiana?O Haiti hoje é um país ocupado militarmente por forças estrangeiras. O fato de se tratar de uma missão da Organização das Nações Unidas (ONU), talvez torne o ainda mais complicado na medida em que são várias as nações que têm responsabilidade por essa ocupação e pelas violações dos direitos humanos que implica. Já estão amplamente documentadas as atrocidades cometidas pelos militares estrangeiros contra os haitianos. O Brasil, por ser quem comanda esta missão, tem a maior responsabilidade. A população dos bairros mais pobres, que no caso do Haiti são paupérrimos, é permanentemente ameaçada e violentada. Homens, mulheres e, principalmente, meninos e meninas são objeto constante de ataque sexual; são espancados ou assassinados impunemente - e tudo sob o véu de proteção de uma missão de paz que outorga imunidade às tropas de ocupação. O caso é escandaloso e é uma afronta total à democracia e à livre auto-determinação do povo haitiano. Mas o mundo não parece preocupado com a previsão de duração da ocupação em, pelo menos, 14 anos. Ou seja, se ocupou um país e se decretou que os haitianos precisam de pelo menos vinte anos para desenvolver a capacidade de se auto-governarem.

No que se baseia a proposta de Bem Viver dos povos indígenas andinos? O Bem Viver ou Viver Bem é um convite à construção da vida à altura dos sonhos, e se propõe como alternativa ao desenvolvimento. Os povos retomaram seus sentidos de inteligibilidade da vida e do cosmos. Trata-se de uma bifurcação de sentidos, de uma revolução epistemológica que permite se pensar de um modo diferente do capitalismo deste mundo. É a negação do “There is no alternative”, imposta pelo neoliberalismo da boca de Margareth Tatcher.

O Bem Viver se coloca no ponto de compreensão fundamental do pensamento ocidental no qual se separam sociedade e natureza para tomar um caminho de uma integralidade complementar, não hierárquica, na qual os humanos são parte de um complexo bastante amplo chamado Pacha Mamma, ou Mãe Terra, em que não são “o” sujeito, mas “um”, entre tantos os sujeitos que compõem o conjunto. A sobrevivência e a felicidade se encontram mantendo a harmonia entre sociedade e natureza. Encontrar o melhor do outro para dar o melhor de si mesmo. O interessante é que consiste em uma proposta filosófica que pode ter todos os conteúdos práticos que os povos, os coletivos, as comunidades lhes forem outorgando. É um caminho para re-estabelecer a importância da vida como propósito central. O progresso, o crescimento e o desenvolvimento não cabem nesta proposta. Agora, temos que construí-lo, dar-lhe conteúdo com toda criatividade, nos valendo da memória dos tempos passados, das experiências de resistência à opressão, da história e das utopias que nos permitem imaginar um mundo sem excessos, um mundo de harmonia e felicidade. Essa construção não será nada simples. Sonhar nos dá a direção, mas os caminhos somos nós quem fazemos. Para chegar até lá, por exemplo, será necessário que os monopólios desapareçam, que a selva não seja destruída, que não haja mais impunidade, que a violência não substitua a política, que o trabalho deixe de ser alienante, reconstruir os laços comunitários e mais um sem fim de coisas e processos que não têm receita e não são fáceis. São desafios materiais, mas também subjetivos. Nossa concepção de mundo é uma concepção alienada que reproduz as relações de poder em todos os níveis. O primeiro passo, talvez, de construção deste outro mundo, é poder imaginá-lo a despeito destas consciências alienadas, é acabar com a alienação do pensamento para ter uma direção para o caminho.

A força coletiva dos povos da América gerou um campo dimensional com maior potencial emancipatório. Agora, precisamos converter a utopia em realidade. Não há outra maneira de sair das misérias do capitalismo, a não ser abandonar o próprio capitalismo. Estamos diante da possibilidade de uma bifurcação sistêmica, civilizatória, que comece a construir uma sociedade desde outro lugar epistêmico.

“A sobrevivência e a felicidade se encontram mantendo a harmonia entre sociedade e natureza:a vida é o propósito central”

Vere

na G

lass

* Patrícia Bonilha é assessora de comunicação da Rede

Brasil sobre IFMs – [email protected]

Tradução: Gabriel Strautman

“ Não há outra maneira de sair das misérias do

capitalismo, a não ser abandonar o próprio

capitalismo.”

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Luciana Badin*

BNDES: exportando desigualdadeCada vez mais poderoso, o Banco continua a negar sua responsabilidade sobre os severos impactos causados pelo financiamento que concede no Brasil e em outros países, além de não prestar contas sobre os critérios que adota para aprovação dos projetos

O principal agente do financiamento da infra-estrutura na região sul-americana é o Banco Nacional

de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Com um orçamento que somente este ano atinge a casa dos R$ 160 bilhões, o BNDES assume uma importância central na determinação dos rumos do desenvolvimento no Brasil e, cada vez mais, na América do Sul. Os financiamentos do BNDES para os países sul-americanos se intensificaram a partir de 2002 quando, através de uma mudança no estatuto do Banco, passou a ser possível financiar empreendimentos no exterior desde que os projetos resultassem na exportação de produtos brasileiros. Os contratos com os países vizinhos passaram a ser firmados através de acordos comerciais, nos quais a execução da obra está condicionada à contratação de empresas brasileiras para o fornecimento de máquinas, equipamentos e serviços de construção. Essa linha está intimamente ligada à estratégia de internacionalização de empresas multinacionais brasileiras, que contam com o apoio financeiro do BNDES para

a sua expansão na América do Sul e, cada vez mais, para a África. Com essa nova orientação, os desembolsos passaram de R$ 2,6 bilhões em 2001 para R$ 6,7 bilhões em 2008, passando a superar os desembolsos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) na América do Sul. Os questionamentos sobre os financiamentos do BNDES na região são muitos. Primeiro, é preciso destacar

que a sua atuação regional segue a cartilha do regionalismo aberto, que prega o aprofundamento do modelo de inserção competitiva, na qual a aposta é aproveitar as “vantagens comparativas” e atender a forte demanda dos países do centro e, mais recentemente, dos asiáticos, por produtos primários e intensivos em natureza. Com essa perspectiva, no final dos anos de 1990, o BNDES foi responsável pela formatação dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento (ENID), que apontavam para a construção de infra-estrutura regional e que, em 2000, resultaram na IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana), cujo conjunto de projetos está voltado para a competitividade externa e não para a interligação entre os países sul-americanos. O que está em curso é a manutenção e o reforço do “fluxo de negócios”, que é orientado pela lógica dos interesses dos grandes grupos econômicos. Do ponto de vista da política econômica interna, cabe questionar o sentido e a legitimidade de o governo financiar com enorme quantidade de

“As empresas mais beneficiadas na linha de crédito do BNDES

de apoio à exportação têm sido justamente aquelas que já estão

consolidadas no mercado nacional

e com projeção internacional.”

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dinheiro público a expansão de algumas poucas companhias brasileiras nos países vizinhos. As empresas mais beneficiadas na linha de crédito do BNDES de apoio à exportação têm sido justamente aquelas que já estão consolidadas no mercado nacional e com projeção internacional, como a Odebrecht e a Camargo Corrêa. A Odebrecht, por exemplo, está envolvida em praticamente todas as principais operações financiadas pelo Banco na América do Sul. Hoje, ela atua em treze países da região, ocupa a 16a posição entre as maiores empresas da América Latina e mais de 80% de sua receita advém do exterior. Ou seja, a Odebrecht não precisa de financiamento subsidiado para se projetar externamente, pois ela já é uma empresa sólida e bem posicionada internacionalmente. Se a proposta é incrementar as exportações brasileiras, cabe ao BNDES criar linhas que atendam às empresas menos competitivas, que são as que, de fato, precisam de incentivos para exportar.

Atuação obscuraOutra ordem de questionamento é a total falta de informação e procedimentos que viabilizem o exercício do controle social por parte das populações locais em relação ao projeto e seu executor. Se o acompanhamento da atuação do BNDES no Brasil é dificultado pela falta de informação do conjunto de sua carteira de crédito, bem como de dados relevantes para uma avaliação

que inclua o real impacto dos empreendimentos nos territórios, no que diz respeito às informações sobre os projetos regionais predomina a total obscuridade. No site do BNDES estão disponibilizados apenas valores agregados por país e a justificativa fica por conta do “sigilo comercial”. Segundo a nota explicativa, as operações da Área de Comércio Exterior se realizam mediante o financiamento a entidades públicas estrangeiras, “estando os contratos internacionais sujeitos a cláusulas de confidencialidade e sigilo comercial”. Com uma visão burocrática e legalista, falta ao BNDES uma postura mais democrática para distinguir o que realmente está sujeito a cláusulas de confidencialidade e o que, por direito, as populações dos países envolvidos devem saber para exercer o devido controle social dos projetos financiados pelo Banco e executados por empresas brasileiras. O caso mais exemplar da má atuação de uma empresa brasileira em um projeto financiado pelo BNDES é o da construção da central hidrelétrica de San Francisco no Equador, país que recebeu 21% dos desembolsos do Banco na região em 2008. O caso de San Francisco gerou uma crise diplomática na medida em que o governo equatoriano ameaçou não pagar o empréstimo de R$ 200 milhões concedido pelo BNDES, classificando de “terrível” a atuação da empresa no país, razão pela qual exigiu uma

“Falta ao BNDES

uma postura mais

democrática para

distinguir o que de

fato está sujeito

a cláusulas de

confidencialidade e o

que, por direito,

as populações dos

países envolvidos

devem saber.”

karmo

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Investimento alto, sem garantia

indenização de US$ 43 milhões em decorrência das irregularidades apresentadas na obra. As acusações que caíram sobre a empresa brasileira focavam nas falhas que fizeram a central deixar de funcionar apenas um ano depois de concluída a obra, o que colocou em risco o próprio fornecimento de energia no Equador, já que San Francisco é responsável por 12% da energia gerada no Equador. Na ocasião, o acordo proposto pela empresa foi negado e foi mantida a sua expulsão. As medidas adotadas pelo governo equatoriano envolveram contratos da Odebrecht da ordem de US$ 650 milhões, pois duas outras hidrelétricas, um aeroporto e um sistema de irrigação também estavam sendo executados pela empresa.

Na defesa do capital, não dos povosNeste episódio, chama a atenção a postura do BNDES que, prontamente, se pronunciou sobre a legalidade e exigibilidade das condições contratuais e afirmou que “como instrumento do Estado Brasileiro, prestará todo o apoio técnico necessário à legítima defesa dos interesses nacionais”, como se a sua

participação se encerrasse na garantia do retorno financeiro do empréstimo. É preciso reconhecer, que também dentro do Brasil, o BNDES tem uma postura de desresponsabilização sobre os resultados de seus investimentos. Seus procedimentos de análise e avaliação de projetos são meramente técnico/financeiros. A forma desastrosa como esses projetos se instalam nos territórios, sem qualquer planejamento ou contato com as populações diretamente afetadas pelos empreendimentos, marca o padrão de atuação dessa instituição. Apesar de o BNDES ocupar um lugar de protagonismo na alavancagem do modelo de desenvolvimento que se consolida no Brasil e cada vez mais na região sul-americana, falta a esse ente público não apenas procedimentos mas a própria elaboração de um pensamento estratégico frente aos desafios que se colocam nos tempos vindouros. Desenvolver sem esgotar nossas riquezas naturais, sem desestruturar a vida das populações e sem agravar as injustiças sociais e a exclusão de direitos no nosso País e nos países vizinhos é uma tarefa a qual o BNDES tem se furtado.

* Lucina Badin é economista do Instituto

Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)

e membro da coordenação nacional da Rede Brasil

sobre IFMs - [email protected]

Com a perspectiva de abrir um debate sobre a co-responsabilidade do BNDES, a Plataforma BNDES, articulação formada por mais de trinta organizações, redes e movimentos sociais brasileiros que lutam pela democratização do BNDES, realizará no Rio de Janeiro, entre os dias 23 e 25 de novembro, o I Encontro Sul-

Atingidos denunciam impactos do BNDES

Americano de Populações Atingidas pelos Projetos Financiados pelo BNDES. Nessa ocasião, as populações diretamente impactadas explicitarão as conseqüências do modelo de desenvolvimento financiado e estimulado pelo Banco e que é pautado pelos setores extrativistas, agroexportadores e de insumos básicos. (LB)

Nota: As operações diretas da Área de Comércio Exterior se realizam especialmente medianteo financiamento a entidades públicas estrangeiras com o objetivo de viabilizar a exportação de bens e serviços brasileiros, estando os contratos internacionais sujeitos a clausulas de confidencialidade e sigilo comercial. O destino das exportações brasilieras apoiadas pelo BNDES de forma direta e o valor financiado por país nos 12 meses encerrados em junho de 2009 estão disponíveis acima.

Veja abaixo, na reprodução da página eletrônica do BNDES, os valores agregados dos financiamentos regionais e... mais nada!

Direto da Fonte

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Rodrigo Vieira de Ávila*

A dívida sustenta o modeloA explosão das dívidas externa e interna no Brasil está totalmente vinculada à transformação do País em um mar de commodities e aos mega-investimentos na construção da infra-estrutura necessária para exportá-la

A dívida pública tem representado um mecanismo de dominação exercido pelos bancos e empresas

sobre os povos do Sul. Desde os anos de 1970, ditaduras implantadas no Brasil e vários outros países impuseram uma opção: o endividamento externo a juros flutuantes, ou seja, que poderiam ser aumentados livremente pelos bancos privados internacionais. A partir do final daquela década, tais taxas subiram vertiginosamente, forçando o Brasil a remeter ao exterior grandes somas de dólares, que somente poderiam ser obtidas por meio de novos empréstimos ou pela exportação de nossos recursos naturais. Desta forma, os bancos internacionais procuraram cobrar esta dívida por meio de diversas imposições estruturais, exigidas ao País por meio das Instituições Financeiras Multilaterais (IFMs), como o Fundo Monetário Internacional (FMI). Ao mesmo tempo, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) se aproveitavam desta situação para conceder empréstimos ao Brasil, sempre acompanhados do receituário para cada setor do País. Um importante item deste ajuste estrutural foi a imposição de um modelo de desenvolvimento excludente e predatório, que significou a destruição de grande parte do Cerrado e de outros importantes biomas nacionais, para dar lugar à grande agricultura de exportação e à extração de recursos minerais, em detrimento da agricultura familiar.

O gráfico acima demonstra este processo, com a linha pontilhada mostrando o grande ajuste feito no País a partir dos anos de 1980, principalmente após os primeiros acordos com o FMI, em 1982. A exportação de bens primários era estimulada para gerar os dólares necessários aos crescentes pagamentos de juros da dívida externa (representados pela linha contínua do gráfico).

Com o Plano Real, na segunda metade da década seguinte, a sobrevalorização do câmbio levou a um aumento das importações, gerando déficits na balança comercial. Para tentar reverter esta situação, foi aprovada a chamada “Lei Kandir” em 1996, que concedeu isenção do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para a exportação de produtos primários.

Brasil: Balança de Comércio e Remessas ao exterior (1970-2008)

Fonte: Banco Central

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Desta forma, o modelo excludente se aprofundou ainda mais. Outra forma do Brasil obter os dólares necessários à cobertura de tal rombo das contas externas foi o estabelecimento de altíssimas taxas de juros internas, atraindo o capital financeiro internacional. Explode assim a chamada “dívida interna” como um novo mecanismo de espoliação do País, mas que cumpre a mesma função da velha dívida externa. Após os movimentos sociais dos países do Sul terem tido sucesso em denunciar a dívida externa e as nefastas imposições dos bancos estrangeiros em conluio com o FMI, o sistema agora camufla tal estratégia por meio da “dívida interna”, alegando que esta seria devida principalmente à classe média brasileira.

Dívida interna: mais rentávelA partir de 2003, com a crescente demanda de commoditties no mundo, dentro de um modelo predatório do meio-ambiente, os preços dos recursos naturais sobem, permitindo novamente grandes superávits comerciais brasileiros. A isto se junta um grande fluxo de capitais para o Brasil, atraído pelas altíssimas taxas de juros da “dívida interna”, que passou a contar com a isenção de Imposto de Renda a partir de 2006. Tal “dívida interna” representa alternativa bem mais rentável ao capital internacional e às empresas e bancos aqui instalados que tomam empréstimos externos, e que - trazendo uma massa de dólares ao Brasil - provocam a valorização do Real. Desta forma, ao final da operação, tais agentes podem converter os títulos da dívida interna em uma maior quantidade de dólares, visto que estes ficaram mais baratos. Tais remessas podem ser de juros ou mesmo na forma de remessas de lucros dos bancos ou empresas estrangeiras aqui instaladas, dado que grande parte destes ganhos são obtidos por meio da compra de títulos públicos. Não por acaso, as remessas de lucros têm explodido nos últimos anos, conforme se vê também no gráfico.

Esta massa de dólares que entra no País é comprada pelo Banco Central (BC), que fornece em troca títulos da dívida interna aos investidores, que - assim - ganham juros altíssimos. Por outro lado, o governo passa a deter uma verdadeira montanha de reservas cambiais, sob a justificativa de que elas seriam necessárias para o enfrentamento da “crise financeira”. Em outras palavras, significa dizer que, caso os especuladores quiserem sair do País, o governo financia esta fuga. E onde são aplicados estes dólares? Principalmente em títulos do Tesouro Americano, que não rendem quase nada. Isto significa dizer que o povo brasileiro está financiando, a juros altíssimos, as políticas dos Estados Unidos como, por exemplo, o salvamento de bancos falidos. Outra recente destinação destes dólares - um total de US$ 10 bilhões - foi o empréstimo ao FMI, que ajudou a tirá-lo da crise financeira e de legitimidade que vivia até pouco tempo. Em suma: transforma-se o País em um mar de commoditties e num paraíso dos especuladores nacionais e estrangeiros, para que o povo brasileiro possa financiar, às custas da explosão da dívida interna, os governos dos países ricos e suas instituições multilaterais. Instituições essas que se prestam, na realidade, a aplicar o mesmo receituário neoliberal: privatizações, superávit primário, reformas que tiram direitos dos trabalhadores, além, claro, do modelo agrícola e mineral excludentee predatório. Neste sentido, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) busca viabilizar este modelo, por meio da construção de infra-estrutura para a exportação de produtos primários.

A dívida acabou? Em 2009, até 20 de outubro, o governo federal já havia gasto R$ 268 bilhões com juros e amortizações da dívida interna e externa, valor este equivalente a sete vezes os gastos com saúde, treze

“A dívida interna cresce sem parar, tendo atingido mais de R$ 1,8 trilhão em setembro, após ter crescido R$ 250 bilhões apenas nos primeiros nove meses do ano.”

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vezes os gastos com educação, ou 192 vezes os gastos com reforma agrária, no mesmo período. Ao mesmo tempo, a dívida interna cresce sem parar, tendo atingido mais de R$ 1,8 trilhão em setembro, após ter crescido R$ 250 bilhões apenas nos primeiros nove meses do ano. Tal crescimento absurdo decorre de um aumento de R$ 121 bilhões na dívida de responsabilidade do Tesouro Nacional (onde se incluem os R$ 100 bilhões em títulos emitidos para empréstimos do BNDES) e de mais R$ 129 bilhões nas chamadas Operações de Mercado Aberto do Banco Central,feitas em grande parte para financiara compra de dólares. Por esta razão, é completamente descabido o argumento oficial de que a dívida teria deixado de ser um problema. O que vem ocorrendo é uma “reciclagem” do velho mecanismo da dívida externa por meio do endividamento interno, que não pára de crescer e consome a maior parte dos recursos públicos. Desta forma, os investimentos necessários ao País ficam comprometidos, tais como a reforma agrária, que deveria fazer parte de uma estratégia central de desenvolvimento com justiça social e sustentabilidade ambiental. Ao mesmo tempo, não há limite para o endividamento, mesmo aquele tomado para disponibilizar R$ 100 bilhões para empréstimos do BNDES, cujas decisões de investimento carecem de maior transparência e participação social. Portanto, apesar dos argumentos oficiais em contrário, a dívida pública se coloca hoje como o centro dos problemas nacionais e continua ditando o modelo de “desenvolvimento” excludente, baseado na grande monocultura e na exportação de produtos primários.

Auditoria como alternativaDiante desta opção de privilegiar o setor primário-exportador deste modelo de “desenvolvimento” baseado na falta de investimentos sociais, a auditoria da dívida cumpre um papel essencial:

demonstrar o verdadeiro papel da dívida neste processo, mostrando que ela não teve como contrapartida a melhoria das condições de vida da população, mas surgiu de manipulações de juros que permitiram a dominação do País pelos bancos privados e IFMs, que servem aos interesses das grandes empresas transnacionais. Neste sentido, a auditoria da dívida tem se mostrado como um importante instrumento de transparência e mobilização social, tendo sido colocada em prática recentemente pelo governo equatoriano, de forma oficial, e com a participação da sociedade civil nacional e internacional. O resultado desta auditoria representou um grande precedente histórico, ao ter embasado a decisão de anulação de 70% da dívida com os bancos privados internacionais. Inspirados nesta experiência equatoriana, outros países, como o Paraguai, iniciaram auditorias

* Rodrigo Vieira de Ávila é economista da Auditoria

Cidadã da Dívida - [email protected]

Em nome de um modelo primário exportador, a plantação de cana invade a Área de Preservação Ambiental: a dívida sustenta os mega-investimentos no setor

oficiais. Bolívia e Venezuela apoiaram a iniciativa equatoriana na reunião da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), em novembro de 2008. Em dezembro daquele ano foi criada, no Brasil, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Dívida Pública, na Câmara dos Deputados. Esta CPI foi finalmente instalada em agosto de 2009 e está em funcionamento. Portanto, apesar do governo e da grande imprensa tentarem dizer que a dívida não é mais problema, os movimentos sociais têm conseguido colocar a auditoria da dívida na pauta, o que representa uma grande oportunidade para desmascararmos este processo de endividamento.

Nilo

D’Á

vila

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Cecília Campello do A. Mello*

Contra as “alternativas infernais”A Avaliação de Eqüidade Ambiental foi concebida como um instrumento para democratizar os procedimentos de avaliação de impacto de projetos de desenvolvimento e evidencia a perspectiva dos grupos sociais atingidos

A sentença pronunciada pelo presidente Lula traz em seu bojo a marca da impossibilidade, da

não-negociação, do constrangimento inexorável. Pode ser entendida como aquilo que os filósofos Isabelle Stengers e Phillipe Pignarre, denominam “alternativas infernais”, isto é, o “conjunto de situações que não parecem deixar nenhuma escolha a não ser a resignação ou uma denúncia que soa um pouco vazia, marcada de impotência, porque não oferece nenhuma possibilidade de tomada de ação” 1. Podemos citar alguns outros exemplos de alternativas infernais: se aumentarmos os salários, teremos demissões; se o meio ambiente for preservado, nosso país perderá competitividade; se a previdência social for mantida, as gerações futuras não terão como arcá-la. Segundo Stengers, as alternativas infernais são características do modo de funcionamento atual do capitalismo e funcionam como uma sentença de morte da política, isto é, da possibilidade de ação coletiva em torno da construção de um projeto diferente do hegemônico. A pergunta que nos cabe formular, portanto, é: como recolocar em termos políticos aquilo que hoje se apresenta nos

termos de uma alternativa infernal?2 O projeto de Avaliação de Eqüidade Ambiental (AEA), nasceu da parceria da Fase com o Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN) do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)3, movido pelo anseio de se dar uma resposta política à armadilha descrita, que se traduz com forte recorrência na defesa governamental dos chamados grandes projetos de desenvolvimento. A AEA foi concebida como um instrumento visando a democratização dos procedimentos de avaliação de impacto de projetos de desenvolvimento, através da evidenciação da perspectiva que é via de regra negligenciada pelos métodos tradicionais de estudo de impacto: aquela dos grupos sociais atingidos, isto é, daqueles que sofrem diretamente as consequências da opção pelas grandes obras. De sua primeira etapa, fez parte um diversificado conjunto de pesquisadores4, que se debruçou sobre o processo de licenciamento ambiental em cinco casos: o projeto da hidrelétrica de Belo Monte (PA); as hidrelétricas de Irapé e Murta (MG); carcinicultura

na zona costeira da Bahia e do Ceará; monocultura do eucalipto no norte do Espírito Santo e sul da Bahia; e as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira (RO).

Expansão capitalista Estes cinco casos são exemplares do modelo de desenvolvimento defendido pelo governo brasileiro, que tem no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) o coroamento de um projeto de crescimento econômico segundo um marco desenvolvimentista, ancorado na expansão do crédito para grandes empresas e na realização de grandes obras intensivas em uso dos recursos naturais. O Brasil submete-se de vez ao papel de fornecedor de matéria-prima e energia para os países do Norte e novos mercados em expansão. A incorporação de novas áreas até então não exploradas na espiral de acumulação capitalista, segundo a lógica da acumulação primitiva descrita por Marx e retomada por autores como David Harvey5, demarca um momento de investimento na expansão da fronteira capitalista para áreas até então protegidas da captura e mercantilização. É nesse sentido que a Amazônia brasileira - particularmente

“Ou fazemos as hidrelétricas que temos que fazer, ou nós vamos entrar na era da energia nuclear” (presidente Lula, início de maio de 2007)

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o potencial hidrelétrico de seus rios e o potencial da exploração mineral, em particular em Terras Indígenas (TIs) – emerge como o celeiro da expansão capitalista brasileira e alvo dos grandes projetos previstos no PAC. De acordo com dados do Instituto Socioambiental (ISA), somente na Amazônia, prevê-se a construção de um total de 247 usinas (entre Pequenas Centrais Hidrelétricas - PCHs - e Usinas Hidrelétricas - UHEs), além das 83 barragens que já estão em funcionamento. Vale lembrar que um dos blocos vetores do PAC é a assim chamada “melhoria do marco regulatório na área ambiental”. Em diferentes ocasiões, o governo federal expressou o fato de que entende a legislação ambiental como um “entrave para o desenvolvimento” e a solução para este “entrave” seria, segundo esta perspectiva, a desregulação dos aparatos administrativo e legal responsáveis pela gestão da questão ambiental. Neste quadro, o licenciamento ambiental vem sendo o alvo preferencial dos ataques do Ministério de Minas e Energia (MME) e da Casa Civil. O número recorde de licenças ambientais expedidas em 2008 (467 licenças, cem a mais que em 2007), 70% das quais expedidas após a entrada de Carlos Minc no Ministério do Meio Ambiente (MMA), revela que o atual governo tem buscado uma aceleração da liberação de licenças das obras do PAC a qualquer custo. Embora o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Roberto Messias Franco, afirme que o aumento do número de licenças não representa maior permissividade do governo com relação às exigências ambientais, empreendimentos polêmicos e altamente impactantes, cujos estudos vêm sendo questionados pela justiça, receberam licenças do órgão, como as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau no Rio Madeira e a usina nuclearde Angra 3.

Governo esquizofrênico A justificação das ações do MMA no sentido de flexibilizar os licenciamentos se coloca nesses termos: são constrangimentos inexoráveis que obrigam este ministério a aprovar as licenças de forma sumária. Ao mesmo tempo, o mesmo MMA dissemina um discurso que enfatiza um “aumento no rigor na expedição de licenças” e no combate aos crimes ambientais. Poderíamos qualificar este tipo de postura como uma espécie de “esquizofrenia administrativa”, em que o público se vê diante de mensagens simultâneas e contraditórias sendo emitidas pelo mesmo emissor. Em 1972, o antropólogo Gregory Bateson definiu o double-bind (ou duplo vínculo) como uma situação em que uma pessoa se vê diante de mensagens simultâneas de aceitação e rejeição, ou de estímulo e repressão. O double-bind é perverso porque ele gera uma situação em que o receptor da mensagem não pode ganhar. Ele é obrigado a conviver e aceitar uma ambigüidade externa flagrante. Na sabedoria popular, a lógica do double-bind aparece em ditos como “se correr

o bicho pega, se ficar o bicho come” e “morde e assopra”. O atual modelo de licenciamento ambiental – detalhadamente estudado nos cinco estudos de caso do projeto Avaliação de Eqüidade Ambiental - traz as marcas da lógica do “duplo vínculo”. Trata-se de um conjunto de regras que funciona cada vez mais como uma formalidade necessária para a aprovação das licenças e exploração dos recursos naturais, de modo a maximizar os ganhos do capital em nome de duvidosa geração de empregos e supostamente minimizar os impactos sobre o meio ambiente e as populações. O Projeto de AEA revela que só excepcionalmente o Ibama recomenda a não realização da obra e que o processo de licenciamento ambiental funciona como uma linha de produção da aceitação pública dos empreendimentos. As críticas levantadas sobre a viabilidade do projeto e seus impactos são respondidas sob a forma de condicionantes, que supõe-se passíveis de compensar o dano causado. Em todos os casos estudados, a participação pública foi limitada ao mínimo obrigatório por lei,

Com sua postura esquizofrênica, o governo afirma não ser permissivo, mas licencia obras impactantes e polêmicas: mais usinas nucleares, hidrelétricas, estradas na Amazônia...

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Page 30: Revista Contracorrente # 2

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* Cecília Campello do A. Mello é antropóloga e

doutoranda em Antropologia Social (PPGAS/MN/UFRJ).

Atua na Secretaria Executiva da Rede Brasileira de Justiça

Ambiental e é colaboradora da Fase no Projeto de Avaliação

de Equidade Ambiental – [email protected]

isto é, através de audiências públicas de caráter meramente consultivo, em que os anseios dos grupos sociais potencialmente atingidos são via de regra ignorados. A possibilidade de escapar deste “beco sem saída” nasce quando não se aceita o jogo imposto pelo emissor da mensagem dupla e se é capaz não apenas de formular uma crítica sobre o modo como os termos estão colocados, como também de definir o jogo segundo novos termos. É isto o que propõe a avaliação de eqüidade ambiental. Ela se pergunta: e se a regulação ambiental incorporar como critério que não deverá haver impactos desproporcionais de grandes obras sobre grupos sociais vulnerabilizados? E se esses grupos puderem fazer ver o seu modo de vida e avaliarem os aspectos não-monetarizáveis de seu mundo? E se os grupos potencialmente atingidos puderem mostrar para a sociedade abrangente todas as riquezas incomensuráveis em relação às quais o nosso modo de vida - baseado no consumo incessante e no uso predatório dos recursos naturais – é cego? Por exemplo, o que há no Rio Xingu que não pode ser mercantilizado? O que é este rio para os povos indígenas e ribeirinhos que ali vivem? Qual o sentido para as comunidades locais e para a sociedade brasileira da produção de energia voltada para a indústria siderúrgica e do alumínio?

O outro modelo já existeÉ bom lembrar que a Avaliação de Eqüidade Ambiental não é um novo instrumento técnico que pretende disputar com outras formas de avaliação existentes. Ao questionar o modelo atual de avaliação ambiental, a AEA opta por “habitar uma tangente”, isto é, situar-se no plano das controvérsias, que não devem ser combatidas ou obscurecidas; ao contrário, a Avaliação de Eqüidade assume as tensões sociais e políticas como o seu motor e defende que os

1- Pignarre, P. & Stengers, I. 2005. La sorcellerie capitaliste: pratiques de désanvoûtement. Paris: La Découverte.

2- Agradeço a Henri Acselrad e à Julianna Malerba pelos comentários à primeira versão deste artigo.

3- Coordenado por Jean-Pierre Leroy (Fase) e Henri Acselrad (IPPUR/UFRJ).

4- Ana Paula Santos Souza (Fundação Viver Preservar e Produzir - FVPP), Cecília Campello do A. Mello (UFRJ), Julianna Malerba (Fase), Klemens Laschefski (Universidade Federal de Viçosa - UFV e Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais – Gesta, da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG) e Luis Fernando Novoa Garzon (Universidade Federal de Rondônia - UFRO).

5- Harvey, D. 2003. O Novo Imperialismo. São Paulo, Loyola.

diversos grupos sociais potencialmente atingidos por grandes projetos sejam envolvidos de forma eqüânime, participativa e democrática em todas as decisões que digam respeito ao seu modo de vida presente e futuro. A avaliação de eqüidade ambiental é um instrumento que se propõe a exercitar o olhar para a descoberta de que um outro modelo de produção e consumo – sustentável e democrático - já existe Brasil adentro. Este modelo, ou melhor, essas saídas sempre criativas e combativas dos que escapam à mercantilização do seu território e modo de vida são arduamente defendidas pelos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, pequenos agricultores, pescadores, marisqueiras, quebradeiras de coco, enfim, todos os grupos sociais que conseguem traçar linhas de fuga em relação ao modelo de produção e consumo hegemônico. Um outro mundo já está sendo possível há muito tempo, nós é que pouca atenção prestamos a ele. A AEA, nesse sentido, se propõe a ser um instrumento para o exercício deste olhar, isto é, que possibilite a construção de uma saída política para os impasses descritos. Saída esta que, por definição, não está dada, mas precisa ser inventada.

“As alternativas infernais são características do modo de funcionamento atual do capitalismo e funcionam como uma sentença de morte da política, isto é, da possibilidade de ação coletiva em torno da construção de um projeto diferente do hegemônico.”

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Sônia Barbosa Magalhães e Francisco del Moral Hernandez*

Belo MonstroA insistência do governo em construir esta polêmica usina no coração da Amazônia, nos coloca no entreato de gravíssimos conflitos sociais, desterritorialização, destruição cultural e violação de direitos de povos indígenas e tradicionais

Em julho de 2009, movimentos sociais de Altamira, perplexos com desencontradas notícias sobre os

Estudos de Impacto Ambiental (EIA) da usina hidrelétrica de Belo Monte, demandaram a alguns pesquisadores, com largo trabalho na Amazônia, uma tradução destes estudos, parcialmente disponibilizados na página eletrônica do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), no mês de maio. No fim de abril de 2009, o Ibama havia condicionado o aceite dos Estudos à realização de uma série de estudos complementares que incluíam desde aspectos técnicos do projeto até análises sobre os povos indígenas, até aquele momento não apresentadas. Mas, em maio, renunciando, portanto, às suas próprias condicionantes, deslancha o processo para a realização de audiências públicas, “queimando” uma etapa do licenciamento prévio. Tal atropelo, que se traduzia em violação de princípios constitucionais de participação democrática, além de violação da Instrução Normativa do 184/2008 do próprio Ibama e omissão de estudos, havia motivado uma Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal/Altamira. Desse modo, o processo foi interrompido, sendo retomado somente em agosto com a polêmica e duvidosa realização de quatro audiências públicas, no período de 10 a 15 de setembro deste ano. O Painel de Especialistas, formado na primeira semana de agosto com a

participação de quarenta pesquisadores, debruçou-se sobre o estudo de impacto ambiental de Belo Monte. Este, elaborado pela empresa Leme Engenharia (afiliada ao Grupo Tractebel Engenharia, uma das Unidades da GDF-Suez - empresa resultante da recente privatização da Gaz de France), é financiado pela Andrade Gutierrez, Odebrecht e Camargo Corrêa – todas com interesse na construção de Belo Monte e com interfaces com as grandes empresas de produção de alumínio. Vale dizer que este Painel debruçou-se sobre seríssimas conseqüências ambientais, problemas técnicos e indefinições que suscitam dúvidas até sobre a saúde financeira do projeto – uma potência instalada de 11.233 Mw para uma energia efetivamente gerada, calculada em simulações, de 4.462 Mw. Isto é, menos de 40% do total instalado. O problema de fundo é o planejamento

energético. Por um lado, assentado sobre o gerenciamento da oferta, minimiza o gerenciamento e a reflexão sobre a demanda e desconsidera uma visão global sobre o uso extensivo dos rios no contexto de suas bacias, especialmente da Bacia Amazônica. Por outro, baseia a sua oferta em um modelo de desenvolvimento suportado pela exploração mineral/exportação de eletrointensivos, ou seja, na contra corrente de elementares princípios de sustentabilidade. Pautar o desenvolvimento da Amazônia pela oferta líquida de energia é escancarar as portas para os enclaves gerados pelos grandes projetos e suas conseqüências, num modelo que reproduz opções somente impostas durante a ditadura militar.

Tragédias à vistaSabemos que todos os empreendimentos hidrelétricos geram passivos ambientais pesadíssimos, ampla e tragicamente comprovados nos estudos científicos sobre a hidroeletricidade brasileira. Isto, porém, não é motivo para aceitar que o EIA de Belo Monte apresente falhas metodológicas graves e oculte regiões diretamente afetadas, subestimando impactos que incidem diretamente sobre o custo da obra, o risco do empreendimento e o destino de milhares de pessoas. Em face de tamanhas omissões e falhas, evidenciamos a sua inviabilidade. Por quê? Porque havia uma orquestração de discursos sobre uma viabilidade não demonstrada, isto é, que o próprio EIA não confirma. E, fiéis a princípios

“Não há certezas

técnicas que

assegurem a

viabilidade da

construção de Belo

Monte ou determinem

o seu custo”

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A usina de Belo Monte inundaria a Volta Grande do Xingu, considerada área de importância biológica extremamente alta: povos indígenas Juruna, Arara e Xikrin seriam diretamente impactados

Vere

na G

lass

de ética e precaução, sentimo-nos compelidos a dizer para a sociedade brasileira que não há certezas técnicas que assegurem a viabilidade da construção de Belo Monte ou determinem o seu custo, e não compactuamos com as “cegas” decisões geradoras de desastres consumados, como o foi a hidrelétrica de Balbina. No leque de imprecisões, destaca-se como paradigmática a situação da Volta Grande do Xingu, considerada pelo Ministério do Meio Ambiente como área de importância biológica extremamente alta (Port. n°9, MMA, 23/01/2007). Esta área, se construída a barragem, poderá sofrer uma redução drástica da oferta de água e do lençol freático, comprometendo os modos de vida dos povos indígenas Juruna, Arara e Xikrin e de povos tradicionais que habitam as margens do Rio Xingu e igarapés, além de destruir toda a floresta de seu entorno e toda a biodiversidade aquática e terrestre, incluindo espécies endêmicas da ictiofauna e de cavernas, que não foram estudadas. Sequer há estudos que possam avaliar completamente o que ali acontecerá, porque o EIA não os fez! Ademais, nenhum centímetro quadrado destas terras é assumido pelos empreendedores como área diretamente afetada! Os níveis de água no rio, no trecho à jusante da barragem principal, teriam até cinco metros de diminuição, comprometendo a segurança hídrica e alimentar desta região, simulação que fizemos para ter condições responsáveis de pôr a dúvida sobre a mesa – de um projeto que, simultaneamente, alaga e “seca” a Volta Grande do Xingu. O que se esconde no jogo de falhas e omissões? A descaracterização de que a geração de energia se utiliza diretamente de recursos hídricos das terras indígenas e modifica todo o ambiente que lhes suporta a vida e a cosmovisão! A minimização de custos socioambientais! A subestimação de populações sujeitas a deslocamento

compulsório, ou, o que é pior, desimcumbência da responsabilidade sobre os seus destinos!

Só não vê, quem não querNa contra corrente das discussões sobre o clima, o EIA minimiza as emissões de metano, omitindo as emissões das turbinas e vertedouros; e minimiza o desmatamento, omitindo cenários sobre a área a ser desmatada para reservatório, obras, canteiros, alojamentos e, especialmente, sobre as conseqüências do afluxo estimado de 100 mil pessoas em busca de emprego, numa região cujo território tem cerca de 70% de sua área protegida. Nosso estudo não objetiva se posicionar contra hidrelétricas, mas apontar problemas complexos de um projeto que se estende desde os anos de 1980, mas não resolve as suas próprias falhas e contradições, sejam de engenharia, sejam sociais, sejam ambientais. Estamos no entreato de gravíssimos conflitos sociais, de gravíssimos processos de desterritorialização, de destruição cultural, de violação de direitos de povos indígenas e tradicionais.

Do econômico-financeiro ao socioambiental, ninguém sabe o custo de Belo Monte. Qualquer estimativa com base no EIA peca pela subestimação. E, além de leis, resoluções e portarias nacionais, recomendações e convenções internacionais referentes à construção de barragens serão desrespeitadas caso Belo Monte vá adiante, como a Comissão Mundial de Barragens, Princípios do Equador e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Apresentamos nossas considerações ao Ibama, buscando contribuir para um Brasil desenvolvido, justo, equânime, no qual a tomada de decisão esteja baseada em avaliações sérias e competentes.

Painel de Especialistas para uma leitura crítica do EIA Belo Monte: http://www.internationalrivers.org/files/Belo%20Monte%20pareceres%20IBAMA_online%20(3).pdf

* Sônia Barbosa Magalhães é doutora em Antropologia, professora da Universidade Federal do Pará (UFPA) e desde 1984 pesquisa na Amazônia - [email protected]

* Francisco del Moral Hernandez é mestre e doutorando em Energia (Programa de Pós Graduação em Energia - PPGE, do Instituto de Eletrotécnica e Energia – IEE, da Universidade de São Paulo - USP) - [email protected]

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Movimento Xingu Vivo para Sempre*

Em defesa da segurança alimentar, do acesso à água, escolas e centros de saúde, do direito de confraternização dos povos e, principalmente, da natureza, movimentos sociais e indígenas refutam a construção de Belo Monte

Não passará!

Cacique Raoni, líder dos Caiapós, compactua com a avaliação de que haverá mortes entre brancos e índios se as obras começarem: responsabilidade do governo

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Page 34: Revista Contracorrente # 2

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O Rio Xingu é um símbolo da diversidade biológica e cultural brasileira. Ao longo de seus 2,7

mil quilômetros, ele corta o Mato Grosso e atravessa o Pará até desembocar no Rio Amazonas, formando uma bacia hidrográfica de 51,1 milhões de hectares (o dobro do estado de São Paulo). A maior parte de seu território é formada por áreas protegidas. São 27 milhões de hectares de alta prioridade para a conservação da biodiversidade, abrigando trinta Terras Indígenas (TIs), 24 povos com 24 diferentes línguas e oito Unidades de Conservação (UC). Essa grande riqueza sociocultural traduz-se pela presença de 20.776 indígenas, alguns vivendo isoladamente ainda, como demonstram estudos antropológicos realizados na região. Além de cerca de 13.000 extrativistas, remanescentes dos ciclos da borracha, vivendo em quatro Reservas Extrativistas (Resex) e outras áreas, há ainda milhares de agricultores familiares que ocuparam as margens das rodovias BR-163 e Transamazônica desde a década de 1970. Esta região abriga ainda centenas de outros pequenos e médios agricultores. Apesar de toda a diversidade e importância ecológica, social e cultural do Rio Xingu, o governo federal pretende executar o Aproveitamento Hidrelétrico (AHE) Belo Monte, obra prevista pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Há 30 anos, os movimentos sociais da Transamazônica e Xingu, em uma aliança de resistência com os povos da bacia do Xingu, resistem a este nefasto projeto de construção de barragens. O empreendimento trará forte pressão migratória à região da Transamazônica, atingindo o já inoperante sistema de serviço público local, como saúde, educação, e segurança pública; sem mencionar o grande impacto na vida das mulheres, como o aumento da exploração sexual, da violência e do abuso infantil, além do potencial aumento do conflito agrário e do desmatamento. A

possibilidade de implementação do AHE Belo Monte suscita para os povos da região grandes inseguranças. O Rio Xingu e seus afluentes são muito importantes para a população, permitindo o acesso às escolas, aos centros de saúde, os encontros entre povos, a obtenção de alimento e as trocas comerciais. Além da inviabilidade técnica do projeto, o processo de condução de implantação do empreendimento vem apresentando uma série de irregularidades no que diz respeito à legislação brasileira (indigenista, ambiental, administrativae constitucional). O Movimento Xingu Vivo para Sempre considera o empreendimento inviável e desnecessário, pelos imensuráveis danos ambientais, climáticos e sociais e por existirem alternativas economicamente viáveis ao projeto como, por exemplo, o leilão de concessão de exploração de energia eólica a ser realizado em novembro pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), com capacidade instalada de 13.000 Mw, maior que a própria AHE Belo Monte.

A decisão de construção de uma obra desse porte, em uma bacia como a do Rio Xingu, com sociobiodiversidade única no planeta, não pode ser tomada de qualquer jeito, atropelando a população, os costumes locais, a sabedoria dos povos das florestas, e atropelando o próprio processo de licenciamento previsto em lei. Diferentemente do que foi feito no Rio Madeira, os povos do Rio Xingu não se subordinarão à decisão sobre a construção da AHE de Belo Monte. Por essas razões, os povos da região não aceitarão que se empurre Belo Monte goela abaixo. Queremos aqui afirmar a posição dos movimentos sociais do Médio Xingu. Somos contrários a esse projeto que - em nome de um atropelo da agenda política governamental, interesses mercadológicos e passando por cima da legislação - desrespeita os povos e a natureza - não só do Xingu, mas de toda a Amazônia e do planeta.

* O Movimento Xingu Vivo para Sempre reúne mais de cem organizações em articulação com inúmeras entidades locais, regionais, nacionais e internacionais contra a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte

“Nós nunca impedimos o desenvolvimento sustentável do

homem branco, mas não aceitamos que o governo tome

uma decisão de tamanha irresponsabilidade e que trará

conseqüências irreversíveis para esta região e nosso povos,

desrespeitando profundamente os habitantes ancestrais

deste rio e o modelo de desenvolvimento que defendemos.

Desta forma, exigimos que o governo cancele,

definitivamente, a implementação desta hidrelétrica.

Caso o governo decida iniciar as obras de construção de

Belo Monte, alertamos que haverá uma ação guerreira

por parte dos povos indígenas do Xingu. A vida dos

operários e indígenas estará em risco e o governo

brasileiro será responsabilizado.”

Trechos da carta enviada ao Presidente Lula, no dia 01 de novembro, por 212 lideranças dos povos indígenas Mebengôkre (Kayapó), Xavante, Yudjá (Juruna), Kawaiwete (kaiabi), KisêdjÇe (Suiá), Kamaiurá, Kuikuro, Ikpeng, Panará, Nafukua, Tapayuna, Yawalapiti, Waurá, Mehinaku e Trumai, habitantes da bacia do Rio Xingu e das regiões circunvizinhas, que se reuniram em assembléia na aldeia Piaraçu (TI Capoto/ Jarina).

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A Amazônia como ela éV isualizar, mesmo que de modo impreciso, a atual cartografia da

Amazônia considerando os diferentes modos de intervenção no seu território não é tarefa fácil. Neste sentido, o Atlas de Pressões

e Ameaças às Terras Indígenas na Amazônia Brasileira traz uma singular e preciosa contribuição para a compreensão da dinâmica atual (pressões) e dos cenários e tendências (ameaças) relativas aos impactos das principais interferências sobre as Terras Indígenas (TIs) . Produzido pelo Instituto Socioambiental, com apoio da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Fase e Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, o atlas apresenta, em 47 páginas, 25 mapas sobre temas como: áreas protegidas, estradas,

Retrato do caos*

* Na Amazônia existem hoje 173 povos indígenas e 405 Terras Indígenas em diferentes estágios de regularização (21,7% do território amazônico), com uma população de cerca de300 mil pessoas.

* Existem 83 hidrelétricas funcionando e 247 planejadas (entre PCHs e UHEs), sendo que cálculos sobre somente 27 desses projetos apontam que eles podem afetar até 44 mil pessoas.

* Segundo informações do governo, 66% da expansão da geração de energia hidrelétrica para o País até 2020 deverá acontecer na Amazônia e aproveitamento de 44% do potencial hidrelétrico inventariado da região atingirá TIs(os povos indígenas serão os mais afetados por essa expansão).

* Há mais de 5 mil processos minerários - entre alvarás e licenças de exploração, áreas “em disponibilidade”, requerimentos de lavra garimpeira e pesquisa – que incidem sobre 125 TIs na Amazônia. Essas TIs abrigam uma população de mais de 14 mil pessoas.

hidrelétricas, desmatamento, agropecuária, queimadas, mineração, exploração madeireira, garimpo, petróleo e gás, população, saneamento básico, urbanização. Uma indispensável complementação às informações cartográficas é oferecida através de textos de contextualização, casos emblemáticos, cartogramas, tabelas, gráficos e fotos. Além de contribuir para o debate e a reflexão sobre os desafios colocados para a conservação da diversidade cultural e biológica das TIs, esta publicação tem o potencial de instrumentalizar movimentos indígenas, sociais, pesquisadores, militantes, ONGs, etc, em suas ações e estratégias na luta pelo respeito aos direitos das populações tradicionais e na busca de alternativas para o atual – e esgotado - modelo de desenvolvimento.

* Fontes: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM)

Crescimento Cumulativo de Estradas

* Há registros de pelo menos 1,3 mil áreas de garimpo na Amazônia(entre ativos e inativos)

* Em média, só 13% dos moradores das cidades da Amazônia Legaltêm acesso à rede de esgoto.

* Apesar de existirem áreas e regiões críticas, ameaçadas pelo desmatamento, mais de 98% do território total das TIs da Amazônia está preservado.

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“O Bem Viver é um caminho para reestabelecer a importância da vida como propósito central. O progresso, o crescimento e o desenvolvimento não cabem nessa proposta.”

(Ana Esther Ceceña)