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10/06/13 Revista Cult Entrevista Jacques Rancire
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Home > Edies > 139 > Entrevista Jacques Rancire
Entrevista Jacques Rancire
TAGS: Entrev ista
A associao entre arte e poltica segundo o filsofo Jacques Rancire
Gabriela Longman e Diego Viana
Fotos: Ilana Lichtenstein
Para Jacques Rancire, poltica e arte tm uma origem comum. Em suas obras, o filsofo francs
desenvolve uma teoria em torno da partilha do sensvel, conceito que descreve a formao da
comunidade poltica com base no encontro discordante das percepes indiv iduais. A poltica, para
ele, essencialmente esttica, ou seja, est fundada sobre o mundo sensvel, assim como a expresso
artstica. Por isso, um regime poltico s pode ser democrtico se incentivar a multiplicidade de
manifestaes dentro da comunidade.
Recm-lanado na Frana, seu ltimo livro, Le spectateur mancip (O espectador emancipado
ainda indito no Brasil), debate a recepo da arte e a importncia tica e poltica da posio do
espectador. O volume uma compilao de conferncias realizadas por ele nos ltimos anos, uma
delas no Sesc, em So Paulo. Em 2002, uma de suas principais obras, O mestre ignorante, foi
traduzida e distribuda gratuitamente entre professores em formao no Rio de Janeiro. Trata-se da
histria de Joseph Jacotot, que, no sculo 19, ensinou a lngua francesa a jovens holandeses da classe
operria. Detalhe: nem mesmo o professor conhecia o idioma de Zola.
Originalmente discpulo do filsofo marxista Louis Althusser e coautor de Ler O capital, de 1965,
Rancire afastou-se do pensamento do mestre nos anos 197 0. Rejeitou a ortodoxia marxista da
poca, mas jamais deixou de se considerar um homem de esquerda. At se aposentar em 2000, foi
professor da Universidade Paris 8, fundada para acolher formas de pensamento que no encotravam
espao no ambiente da Sorbonne. Sua ligao com o Brasil antiga. Sua esposa, Danielle Ancier, era
professora de filosofia na USP em 1968. Eles se conheceram quando ele esteve no pas para uma
conferncia sobre Ler O capital.
O filsofo nos recebeu em seu apartamento no nono arrondissement parisiense. Perto de completar
7 0 anos, afirma que o presente no muito alegre, mas critica as v ises saudosistas de parte da
esquerda. Defensor do ativ ismo social, ele comenta a ascenso dos ecologistas e questiona a ideia de
um mundo dominado por imagens. Convidado para um colquio no Rio de Janeiro pelo Ano da
Frana no Brasil, ele recusou em funo de um conflito de agenda, mas concendeu a seguinte
entrev ista para a CULT.
CULT Seu ltim o livro, Le spectateur m ancip, m enciona o teatro, as artes
perform ticas, a fotografia, as artes v isuais e o cinem a, m as no fala de T V. O espectador
de T V tam bm ativo?
Jacques Rancire No meu livro, eu tentei reinterpretar a relao das pessoas com o espetculo
sem me interessar tanto pela questo das mdias. Mas me centrei mais na ideia, to comum, de que
agora no h nada mais alm da TV no h mais arte, no h mais cultura, no h mais literatura,
nada.
H casos em que o espectador est na frente da TV mudando de canal sem prestar ateno ao que est
vendo. Eu me preocupei mais com o cinema, as artes plsticas, nos quais uma relao forte do olhar
est pressuposta. A TV, de modo geral, no pressupe um olhar forte, mas um olhar alienado ou
distrado.
No espetculo, o espectador de teatro levado a trabalhar, porque aquilo que ele tem sua frente o
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10/06/13 Revista Cult Entrevista Jacques Rancire
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obriga a um trabalho de sntese. preciso sair de uma pea, de uma exposio ou do cinema com
certa ideia na cabea, o que no necessariamente o caso da telev iso, em que as coisas podem
simplesmente passar.
J um lugar onde os espectadores se encontram, para as artes performticas, por exemplo, implica
um recorte fechado no tempo. No uma questo de suporte, mas do tipo de atitude e de ateno
criadas. Podemos nos colocar na frente de um filme de TV com a postura de quem est no cinema.
Nesse momento, ns agimos como o espectador de cinema.
CULT O senhor rejeita a ideia de estetizao da poltica que encontram os em Walter
Benjam in. Com o podem os interpretar a m anipulao das sensaes dentro do cam po
poltico? Por exem plo, o incentivo ao m edo do terrorism o, a apresentao de polticos
com o m ercadorias no seriam m aneiras de estetizar a relao das pessoas com o poder
poltico?
Rancire Penso que a poltica tem sempre uma dimenso esttica, o que verdade tambm para o
exerccio das formas de poder. De certa maneira, no h uma mudana qualitativa entre o discurso
em torno do terrorismo hoje e o discurso miditico contra os trabalhadores no sculo 19, que dizia
que os operrios contestadores cortavam pessoas em pedaos. Sempre houve, digamos, uma srie de
discursos organizados pelo poder. Eventualmente, eles serv iram como forma de ilustrao.
No h novidade radical. A esttica e a poltica so maneiras de organizar o sensvel: de dar a
entender, de dar a ver, de construir a v isibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos. Para mim,
um dado permanente. diferente da ideia benjaminiana de que o exerccio do poder teria se
estetizado num momento especfico. Benjamin sensvel s formas e manifestaes do Terceiro Reich,
mas preciso dizer que o poder sempre funcionou com manifestaes espetaculares, seja na Grcia
clssica, seja nas monarquias modernas.
H um momento em que preciso distinguir duas coisas: de um lado, a adoo de certas formas
espetaculares de mise-en-scne do poder e da comunidade. De outro, a ideia mesma de comunidade.
preciso saber se pensamos a comunidade poltica simplesmente como um grupo de indiv duos
governados por um poder ou se a pensamos como um organismo animado.
Na imaginao das comunidades h sempre esse jogo, essa oscilao entre a representao jurdica e
uma representao esttica. Mas no creio que se possa definir um momento preciso de estetizao da
comunidade.
Por exemplo, o nazismo, que usado frequentemente como exemplo de poltica estetizada, na
verdade tambm recuperou a esttica de seu tempo. Pense nas demostraes dos grupos de ginstica
em Praga nos anos 1930. Eram associaes apolticas ou absolutamente democrticas, com a mesma
esttica que encontramos no nazismo.
Para mim, preciso tomar distncia da ideia de um momento totalitrio da histria marcado
especialmente pela estetizao poltica, como se pudssemos inscrever isso num momento de anti-
histria das formas estticas da poltica e das formas de espetacularizao do poder.
CULT Um a das crticas m ais frequentes arte contem pornea a im possibilidade de
definir o que um a obra de arte e o que no . O senhor escreve que, para que um a
m aneira de fazer tcnica seja qualificada com o artstica, prim eiro preciso que seu
tem a o seja. Com o definir a obra de arte ou a arte em si?
Rancire No definimos a obra de arte como obra. O que eu digo, no fundo, que uma forma de
arte sempre ligada dignidade dos temas.
O romance torna-se grande arte quando a v ida de qualquer um se tranforma em arte. A fotografia no
cinema no s uma forma de mostrar o v isvel, mas mostra que uma cena de rua ou a v ida de
qualquer pessoa tem direito de ser citada na arte.
A partir do momento em que tudo representvel, no h mais especificidade. A especificidade no
ser dada, enfim, pela tcnica em particular, mas pelos cdigos de apresentao. Mais uma vez, no
creio que haja uma radicalidade nova.
H algumas dcadas, as anlises de Arthur Danto v ieram dizer que somente a instituio quem faz a
obra de arte. De certa maneira, isso sempre foi verdadeiro. A representao da representao ligada
a certo tipo de procedimento ou de instituio sempre foi necessria para identificar uma coisa como
pertencente ao universo da arte.
CULT Mas, hoje, m esm o um a grande parte do pblico questiona o fato de estar vendo
arte. No h um a m aior distncia entre a apresentao e a recepo?
Rancire Vivemos hoje em dia a contradio mxima, qualquer coisa pode entrar na esfera da
arte. Mais do que nunca, a arte, hoje, se constitui como uma esfera parte, com as pessoas que a
produzem, com as instituies que a fazem circular, seus crticos.
Numa poca em que os afrescos de uma igreja eram o que se considerava arte, essa questo
simplesmente no se colocava, porque a arte no existia como instituio. a contradio
constitutiva do regime esttico.
CULT A ltim a Bienal de So Paulo tinha um andar inteiram ente vazio, sim bolizando
o vazio na arte. Com o podem os interpretar esse vazio? O senhor fala do fim da arte
utpica. O vazio seria a arte atpica?
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Um a n oite de
m sica e poesia
Gr a v a r u m disco
com o u m a
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in ter g a l ct ica ,
10/06/13 Revista Cult Entrevista Jacques Rancire
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Rancire Podemos fazer o vazio significar vrias coisas. H artistas que organizam retrospectivas
de suas obras, e o que vemos? Nada. H apenas guias que falam. H muitas possibilidades. Podemos
conceber uma exposio sobre o tema do vazio no modernismo duro. Ou ento imaginar uma
exposio ps-moderna desencantada mostrando o vazio porque a arte contempornea vazia. Ou
ainda criar uma exposio em termos conceituais, em que efetivamente substitumos as obras pelo
discurso sobre as obras, e assim por diante.
Mas a verdade que eu nunca estou muito interessado por esse tipo de estratgia. Se partimos da
ideia de que no h nada, preciso mostrar que no h nada, e mostrar que o que h no vale nada, e
assim por diante.
So estratgias eficazes, mas no to interessantes. Quando no sabemos muito bem como qualificar
algo, sempre podemos fazer uso do vazio. Eu me lembro da Bienal de Veneza de dois anos atrs, em
que hav ia uma multiplicidade de obras neo-naf, neoexpressionistas, como iconografia provocante.
H multiplas estratgias.
CULT O senhor critica m uitas vezes a separao a priori entre atividade e passividade.
Nesse contexto, com o analisa as tecnologias colaborativas que esto surgindo na
atividade artstica?
Rancire O que digo no especialmente ligado arte colaborativa. Em primeiro lugar, toda
ativ idade comporta tambm uma posio de espectador. Agimos sempre, tambm, como
espectadores do mundo.
Em segundo lugar, toda posio de espectador j uma posio de intrprete, com um olhar que
desv ia o sentido do espetculo. minha tese global, que no est ligada s a uma arte interativa.
Todas as obras que se propem como interativas, de certa maneira, definem as regras do jogo. Ento,
esse tipo de obra pode acabar sendo mais impositivo do que uma arte que est diante do espectador e
com a qual ele pode fazer o que bem entender.
Podemos dizer, ento, que as obras esto no museu, na galeria, na internet, e o espectador
convidado a colaborar. Mas isso s mais uma forma de participao, e no necessariamente a mais
interessante.
CULT O senhor recupera o lado poltico da literatura, graas a seu poder de
reconfigurar os m odos de existncia, e evoca a passagem de Aristteles em que ele diz
que o ser hum ano poltico porque possui o logos, ou seja, capaz de fazer discursos.
Hoje, os m eios de publicao tradicionais, jornais, editoras etc. esto am eaados por
form as com o blogs e redes sociais. Que tipo de m udanas podem os esperar na vida
poltica com essas novas form as?
Rancire Isso depende de at que ponto a internet define uma escritura especfica. Para mim, na
verdade, a internet define essencialmente apenas um modo especfico de circulao da informao,
que no nega as formas anteriores da escrita. D para consultar, numa infinidade de sites, as obras
clssicas da literatura e da filosofia, ao mesmo tempo em que existe a linguagem SMS.
Tudo circula, cada vez mais rpido e com mais facilidade: da linguagem minimalista dos SMS aos
livros todos, digitalizados pelas grandes bibliotecas. Muitas vezes, recuperam-se livros que no
podem mais ser encontrados no papel. Desconfio sempre desse discurso de que o Google vai matar o
livro. No h motivo, porque podemos ler livros no Google.
Para pensar essa questo da poltica e da literatura na era da internet, precisamos primeiro pensar nas
relaes entre tipos de mensagem. A internet , para mim, um suporte que no vem associado a um
tipo de mensagem particular. Portanto, no deve causar grandes mudanas.
diferente do que aconteceu com a chegada do cinema, por exemplo. Podemos constatar que a
literatura no tem hoje o papel que tinha no sculo 19. Apesar do nmero enorme de romances
publicados, poucos so os que remodelam a imagem do indiv duo e da comunidade. Esse papel foi
assumido pelo cinema. A literatura oferecia uma capacidade de alargar as formas de percepo do
mundo e da comunidade, ela agia sobre a v iso e o sentimento de praticamente qualquer um. Hoje,
quem faz isso o cinema, a telev iso, a internet.
CULT At h pouco tem po, havia Bush e Dick Cheney de um lado e, de outro, a Europa
com o um a espcie de guardi do bom senso na poltica. Agora, os norte-am ericanos
elegeram Obam a e os europeus escolheram Sarkozy e Berlusconi, acom panhados por
um fortalecim ento geral dos partidos conservadores. Falando das eleies de 2002, o
senhor disse que no se pode vencer a extrem a direita associando-se ao consenso e s
oligarquias. O ano de 2009 a concluso do que com eou em 2002?
Rancire No acho que podemos comparar. Em 2009, foram eleies europeias. Se tomamos o
caso da Frana, em 2005 houve o referendo da Constitio Europeia e a Unio triunfou.
Em 2007 , Sarkozy chegou ao poder e renegociou os poderes dessa Constituio. Ele decidiu que no
se submeteria ao referendo pois, segundo ele, hav ia questes importantes de Estado envolv idas. Esse
um primeiro ponto. preciso dizer que falamos de 40% do eleitorado que votou e preciso pensar
nos 60% que no votou.
A mudana entre 2002 e 2009 que a parte do corpo eleitoral que no votou est mais esquerda. A
v itria da direita est ligada mais ao fato de que o eleitorado de esquerda no se reconhece nos
partidos de esquerda, do que numa converso da populao inteira ao sarkozismo. O eleitorado de
direita est contente com o que tem, est contente com Sarkozy e Berlusconi.
jornalismo lanamento LiteraturaLiter a tu r a br a sileir a livro Livros
msica Marcia Tiburi mostra Oficinaliterria Pintura poema Poesia polticapsicanlise quadrinhos Reportagem resenha
Rio de Janeiro So Paulo Sesc Teatro
10/06/13 Revista Cult Entrevista Jacques Rancire
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O eleitorado de esquerda no est satisfeito nem com os homens que esto poder, como Gordon
Brown, nem com os que esto na oposio, e o melhor exemplo a oposio socialista na Frana. No
acho que haja um crescimento extraordinrio da direita e da extrema direita, mas sim um desencanto
da esquerda.
CULT Mas a crise gerou nos Estados Unidos um abandono da direita, representada por
Bush
Rancire Houve uma mobilizao enorme em torno das eleies norte-americanas. Uma srie de
pessoas que nunca tinham votado foi votar pela primeira vez, especialmente os negros.
No caso da Europa, foi o contrrio. H pases onde apenas 20% dos eleitores votaram, e s 40% na
Frana. No acho que esse contraponto deva ser pensado em relao direta com a crise financeira.
O resultado foi precipitado por ela, mas a ideia de Obama contra Bush remete a uma insatisfao
anterior e mais fundamental do que a mera reao crise econmica.
CULT Os desinteresses pela poltica e pela arte seriam duas vertentes da m esm a
situao?
Rancire No tenho certeza, at porque o desinteresse pela poltica no to claro assim. Muita
gente votou nas eleies presidenciais h dois anos. Nas eleies europeias, aparentemente muitas
pessoas que normalmente votam no votaram, e muita gente que no costuma votar saiu de casa
porque queria salvar o planeta. Esse um primeiro aspecto.
O segundo que no creio que haja um desinteresse pela esttica, pela arte. As pessoas ainda vo ver
Jeff Koons em Versalhes. O interesse pelos artistas ainda muito importante. verdade que de vez em
quando h coisas desastrosas, teve La force de lart no Grand Palais e estava sempre deserto, mas as
pessoas se davam cotoveladas para ver Picasso.
CULT Se a m udana do m undo passa por reconfiguraes da m aneira de pensar e
entender a realidade, ento ela no passa pelas revolues com o as conhecem os?
Rancire Podemos pensar nisso baseados nas revolues que j aconteceram. Em primeiro lugar,
uma revoluo uma ruptura na ordem do que v isvel, pensvel, realizvel, o universo do possvel.
Os movimentos de revoluo sempre tiveram a forma de bolas de neve.
A partir do momento em que um poder legtimo se encontra deslegitimizado, parece que no est em
condies de reinar pela fora, porque caram todas as estruturas que legitimam a fora. Criam-se
cenas inditas, aparecem pessoas que no eram v isveis, pessoas na rua, nas barricadas. As
instituies perdem a legitimidade, aparecem novos modos de palavra, novos meios de fazer circular
a informao, novas formas da economia, e assim por diante. uma ruptura do universo sensvel que
cria uma mirade de possibilidades.
No penso as revolues, nenhuma delas, como etapas de um processo histrico, ascenso de uma
classe, triunfo de um partido, e assim por diante. No h teoria da revoluo que diga como ela nasce
e como conduzi-la, porque, cada vez que ela comea, o que existia antes j no vlido.
Existe uma carta interessante de Marx, um pouco aps 1848, quando os socialistas pensavam que as
estruturas seriam abaladas mais uma vez. Ele diz que as revolues no funcionam como os
fenmenos cientficos normais, so mais como os fenmenos imprev isveis, os terremotos. No
sabemos como elas vo se comportar. Todas as teorias cientficas, estratgicas, das revolues
demonstram isso.
CULT No podem os antecip-las
Rancire Podemos prepar-las, mas no antecip-las. A temporalidade autnoma de uma
revoluo, os espaos que elas criam no correspondem jamais ao quadro conceitual que temos no
incio.
CULT A estratgia da esquerda tradicional o confronto aberto, o que se ope sua
teoria de reconfigurao esttica da vida poltica
Rancire Temos de pensar na esttica em sentido largo, como modos de percepo e sensibilidade,
a maneira pela qual os indiv duos e grupos constroem
o mundo. um processo esttico que cria o novo, ou seja, desloca os dados do problema.
Os universos de percepo no compreendem mais os mesmos objetos, nem os mesmos sujeitos, no
funcionam mais nas mesmas regras, ento instauram possibilidades inditas. No simplesmente que
as revolues caiam do cu, mas os processos de emancipao que funcionam so aqueles que tornam
as pessoas capazes de inventar prticas que no existiam ainda.
No sou contra processos cumulativos, claro: se imigrantes ilegais tm capacidade de fazer greves e
manifestaes em condies perigosas para eles mesmos, isso define um alargamento no s do poder
e das capacidades que temos, mas tambm do mundo no qual inscrevemos nossas aes e nosso
pensamento.
A transformao dos mundos v iv idos completamente diferente da elaborao de estratgias para a
tomada do poder. Se h um movimento de emancipao, h uma transformao do universo dos
possveis, da percepo e da ao, ento podemos imaginar como consequncia tambm um
movimento de tipo revolucionrio, de tomada do poder. claro que estamos falando do passado,
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porque o presente no muito alegre.
CULT Por que o presente no m uito alegre?
Rancire O presente no alegre porque no h esperanas fortes, digamos assim, que sustentem
os movimentos existentes.
Por exemplo, a recente greve das universidades, que criou algumas formas de manifestao, digamos,
particulares: cursos na rua, no metr, invenes para deslocar para o campo da sociedade como um
todo o problema que atinge o ensino superior francs.
Mas todas essas inovaes foram completamente isoladas do ponto de v ista da informao. O ano de
1968 existiu em parte porque o rdio cobria profundamente o movimento estudantil, sabia-se tudo
que acontecia, hav ia uma gerao de jovens reprteres de rdio que fez circular as informaes.
Agora, aconteceu o contrrio. A mdia aprisionou o movimento universitrio numa espcie de
paisagem hostil, gente que no entendia, que dizia coisas alucinantes. O partido majoritrio de direita
(UMP) criou associaes de pais de estudantes exigindo o reembolso das inscries porque os
estudantes no tiveram aula. Isso era impensvel h dez anos.
As foras da dominao e da explorao aumentaram consideravelmente seus meios de ao. Diante
da crise financeira, no v imos nenhum discurso forte e srio contra o capitalismo, s esses pequenos
grupos e partidos anticapitalistas com as mesmas ideias de dcadas atrs. Nada que trouxesse
esperana, movimentos com ideias alternativas a uma concepo hegemnica confrontada com suas
prprias contradies.
O presente no muito alegre porque as foras da dominao e da explorao fizeram progressos
considerveis. Estudei, por exemplo, o movimento operrio do sculo 19, que criou novas formas de
associao e de v iso do mundo e que resultou em movimentos polticos que, como sabemos,
falharam. Mas certo que o universo dos possveis foi amplamente reformulado. O povo em
manifestao podia algo que no podia antes, diante da realeza.
No mesmo sentido, o operariado adquiriu novos poderes e direitos face aos patres. As formas de
comunicao se comunicam entre elas e criam um universo de circulao de energia, ideias,
vontades. Foi muito marcante, em 1968, vermos surgirem de repente, em diversos lugares ao mesmo
tempo, formas de contestao e de ao.
claro que tudo isso caiu com o movimento, mas foi um momento em que os estudantes v iram que
podiam fazer o mesmo que os operrios, e v ice-versa. Criaram-se formas de ao completamente
imprev istas. O que se transmite so aberturas do campo do possvel, no do campo estratgico.
CULT No interior de sua distino entre poltica e polcia, com o podem os interpretar
o crescim ento da vigilncia e do controle? Por que fizem os essa escolha, em vez do
encontro poltico?
Rancire a lgica do funcionamento dos Estados como instncias de administrao, e dos
sistemas miditicos: trocar a poltica pela identificao de problemas que precisam ser solucionados.
Se no o conflito que motor, o motor uma espcie de patologia da v ida poltica que a
administrao se prope a remediar. o modo de funcionamento do Estado moderno.
De um lado, h uma pretenso ao objetiv ismo, identificar os problemas e as imperfeies da
sociedade, e, de outro lado, precisamente essa espcie de objetiv ismo idealizado , essencialmente,
uma questo de gesto das opinies.
Tomando a questo da segurana, qual o balano da gesto de Sarkozy , primeiro como ministro do
Interior, depois como presidente da Repblica? Um desastre. Estamos muito menos seguros do que
antes. O que est em funcionamento a gesto da insegurana como um sentimento para agregar as
pessoas em torno de um poder que gerencia a segurana.
Resisto muito s teorias paranoicas de sociedade de controle que dizem que somos observados e
controlados em todo canto. No 11 de Setembro, v imos como as pessoas podem passar
tranquilamente diante das cmeras de segurana e fazer seu atentado sem serem molestadas. Acredito
muito mais na ideia de uma administrao ideolgica, no sentido tradicional, dos sentimentos,
particularmente no que diz respeito segurana.
Criamos um sentimento de que v ivemos na insegurana e precisamos de gestores de segurana. Isso
cria uma legitimao de decises autoritrias que podem se estender a praticamente tudo. No fim, a
segurana acaba significando qualquer coisa. A pobreza dos subrbios, a sade dos idosos, os pases
terroristas pelo mundo, os poluidores, qualquer coisa.
A segurana v ira um sentimento de perigo onipresente, extrapolando a ideia da proteo das pessoas
de bem contra os maus de qualquer tipo. Isso cria estruturas de gesto estatais e interestatais, que
no so necessariamente da ordem do controle minucioso ou do terror, mas de um sentimento
flutuante.
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