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Curinga Revista laboratório | Jornalismo | UFOP | Julho de 2013 | Ano III | nº6 Copa em Minas e no brasil Investimentos demais e direitos de menos Vozes do Morro A militância que movimenta outras ladeiras de Ouro Preto Umbanda em Mariana Mãe Marta e uma vida dedicada ao mais antigo terreiro da cidade A família mudou... e o parentesco pode ser apenas um detalhe

Revista Curinga Ed. 6

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Revista-laboratório do Curso de Jornalismo da Ufop - Universidade Federal de Ouro Preto.

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CuringaRevista laboratório | Jornalismo | UFOP | Julho de 2013 | Ano III | nº6

Copa em Minas e no brasilInvestimentos demais e direitos de menos

Vozes do MorroA militância que movimenta outras ladeiras de Ouro Preto

Umbanda em MarianaMãe Marta e uma vida dedicada ao mais antigo terreiro da cidade

A família mudou...e o parentesco pode ser apenas um detalhe

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Curinga é uma publicação da disciplina Laboratório Impresso II – Revista produzida

pelos alunos do curso de Jornalismo da Ufop. Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) / Departamento

de Ciências Sociais, Jornalismo e Serviço Social (DECSO) / Universidade Federal de Ouro Preto.

Professores Responsáveis: Frederico Tavares - 11311/MG (Reportagem)

Priscila Borges (Planejamento Visual)Ana Carolina Lima Santos (Fotografia)

Editora geral Joyce Afonso Subeditora

Isadora RabelloEditora fotográfica

Isadora BruzziEditora de arte

Rafa BuscacioSubeditor de Arte

Fábio BritoEditor digital

Arthur RosaEditores e revisores

Ana Luísa Rodrigues, Bárbara Costa, César Raydan, Laura Ralola,

Luís Fernando Bráulio, Patrícia BotaroRepórteres

Alexandre Anastácio, Ana Malaco, Caroline França, Gérsica Moraes, Jéssica Romero, Patrícia Souza,

Paulo Victor Fanaia, Ramon CottaInfografistas

Ana Paula Rodarte, Mariana MendesDiagramadores

Bárbara Zdanowsky, Bruna Silveira, Isabela Azi, Isadora Faria, Jessica Clifton,

Kleiton Borges, Lorena Costa, Rolder WanglerFotógrafos

Adriana Souza, Ester Louback, Filipe Barboza, Lívia Almeida, Nara Bretas, Paula Peçanha,

Rodrigo Pucci, Tamara Martins Produtores digitais

Ana Luíza Batista, Núbia Cunha, Rayana AlmeidaEndereço

Rua do Catete 166, Centro, CEP 35420-000Mariana-MG

Tiragem1.500 exemplares

Julho 2013

Cartas do leitor Para comentar as matérias ou sugerir pautas para nossa

próxima edição, envie e-mail para [email protected]

CuringaExpediente

O melhor jornal laboratóriodo Brasil já está nas ruas! Leia e repasse.

Jornal Laboratório do curso de Jornalismoda Universidade Federal de Ouro Pretowww.jornalismo.ufop.br/lampiao

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Editorial

No editorial da edição de número 4 da Re-vista CURINGA, de fevereiro de 2013, faláva-mos sobre o desaparecimento da juventude na política e a raridade com que se viam os jovens em manifestações. Em cinco meses, muita coisa mudou. Como dizem por aí, “o gigante acordou”. Milhares de jovens e adultos saíram das redes sociais e foram às ruas para mostrar sua indignação. Os principais questionamen-tos? Esgotamento diante da corrupção desen-freada, o descontentamento perante projetos de lei sem sentido, o aumento das tarifas dos ônibus e não apenas por isso. “Não é só por 20 centavos, o buraco é mais embaixo”, diziam alguns cartazes pelo Brasil durante as mani-festações do último mês de junho.

Nesta edição, a CURINGA mostra as vo-zes que ecoam no Brasil e na região mineira dos inconfidentes, seja nas manifestações ou no dia- dia, pela conquista de direitos ou pela luta contra o preconceito. Na editoria Contem-porâneo, você verá a cara de um país que in-veste bilhões para a Copa do Mundo enquanto seu povo é desalojado para o mesmo evento. Na reportagem especial, são apresentadas al-gumas formas de família que, mesmo não convencionais, possuem laços afetivos firmes, ao contrário do que pensam alguns parlamen-tares. A entrevista traz sujeitos que se mo-vem e movimentam o povo de Ouro Preto. O debate em torno da existência de uma onda conservadora entre os jovens, mesmo dentro das manifestações, é tratada na editoria Com-portamento. No ensaio fotográfico, a beleza de mulheres reais é protagonizada em uma relei-tura de propagandas famosas.

Em tempo de erupção, quando milhares de brasileiros estão inquietos perante a política, quando evidências que antes estavam escon-didas vêm à tona, a revista CURINGA realiza um raio X do contexto e conta para você, leitor, histórias de um país que esteve sonâmbulo e agora começa a bocejar.

E o Brasil

vai as ruas...

TexTo: Isadora rabello e Joyce afonso

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Entrevista

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Sumário

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JOVENS, PORÉM CONSERVADORES

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Uma geração de filhos das políticas neoliberais de Fernando Henrique Cardoso, a quem, desde cedo, apren-deram a admirar, viram com desdém a ascensão da políti-ca de esquerda no Brasil em 2002. Com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, o que antes era regalia de poucos, passa a estar na esfera de di-reitos de uma grande parcela da população.

Esses jovens desconten-tes “são de certa maneira o resultado de uma socieda-de profundamente desigual, marcada por uma violência sistemática contra os mais pobres, contra negros e con-tra as mulheres”, afirma o sociólogo e professor na Uni-versidade de Juiz de Fora (UFJF), André Drumond. Fa-

lando ainda sobre a juventu-de conservadora, o sociólogo completa “E existem, cumpre lembrar, diversas instituições que perpetuam esse estado de coisas, das quais poderíamos citar a família tradicional e patriarcal, sistemas de educa-ção que reproduzem desigual-dades, bem como a silenciosa concentração dos principais meios de comunicação”.

O “PIG” (Partido da Im-prensa Golpista), termo cunhado pelo jornalista Paulo Henrique Amorim para desig-nar a grande mídia, é a prin-cipal sustentadora ideológica desse grupo. Jornais como O Globo, Estadão, Revistas VEJA e Época, e as análises dos jornalistas Arnaldo Jabor e William Waack em telejor-nais, pautam o que será dito

entre os reacionários. “O im-pacto cultural do lixo que é jo-gado, todos os programas, as revistas, os rádios, os jornais, as músicas, favorece a conser-vação da sociedade como ela está aí”, afirma André Mayer, professor de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e orientador do Centro de Difusão do Comu-nismo (CDC-UFOP). “A ju-ventude conservadora, hoje, expressa exatamente o oco e o vazio que a sociedade coloca na vivência dela”, ressalta o professor.

Conservadores sempre existiram de maneira mais intensa nas classes domi-nantes, o que não exclui a presença deste pensamento em outros grupos sociais. A Marcha para Jesus, evento re-

PRECONCEITO

JOVENS, PORÉM CONSERVADORESTexTo: alexandre anasTácIo e Paulo VIcTor fanaIa edIção GráfIca: JessIca clIfTon e rodrIGo PuccI

O jornalista Luiz Carlos Maciel, em 1987, afirma em sua obra “Anos 60”: “Não nos passava pela cabeça que o ser humano pudesse passar seu tempo de vida na terra alheio aos problemas sociais e políticos; esta era, para nós, a pior das alienações.” Com o ego ferido, uma conservadora parte da juventude reage, discrimina e critica as políticas sociais que tentam lhes arrancar privilégios históricos

ligioso realizado anualmente em várias cidades do mundo mostra, por exemplo, que o conservadorismo atinge tam-bém outras esferas, mesmo que em um outro nível. A direita política, presente com maior força na elite, defende ideologicamente o fim das políticas sociais, a sagração do neoliberalismo, o exercício da influência dos militares e da Polícia Militar na socieda-de, o corte das relações com os países da América do Sul e a abertura de braços para os EUA e seu way of life.

Para André Mayer, a so-ciedade em geral é conserva-dora, pois não é uma questão do campo do indivíduo, e sim de sua identificação com o meio social em que ele está inserido. “Você passa a sua

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infância, a sua adolescência, a sua juventude e você não co-loca em xeque e não debate, hora alguma da sua vivência e de sua formação, o mode-lo de sociedade que está aí”, afirma. Segundo o professor, a palavra-chave é a “natu-ralização” do que está posto como modelo de sociedade, o que é uma construção his-tórica e social fortalecida na década de 90. Nesse contexto, há uma pasteurização, uma aceitação dos cidadãos a par-tir do modelo de postura que lhe cobram, para garantir sua sobrevivência no mundo ca-pitalista.

Alguns deles, inclusive jovens, apegados aos concei-tos de tradição e proprieda-de, levantam a bandeira da defesa da família e dos bons costumes sempre que qual-quer luta das minorias atinge o Congresso, como medidas feministas, dos negros e dos gays, principalmente. O atual porta voz da extrema direita e militar de reserva é o Deputa-do Federal Jair Messias Bol-sonaro (PP-RJ).

Preconceitos como o ra-cismo, o machismo e a homo-fobia, são reproduzidos por uma juventude reacionária, que vê as cotas, a validação do casamento civil igualitário e a entrada da mulher em es-paços majoritariamente mas-culinos, por exemplo, como perda de seus privilégios his-tóricos.

O trote nas universidades

Na última década, setores conservadores da sociedade burguesa voltam-se reagindo contra as mudanças sociais que aconteceram no Brasil,

tentando segurar os passos progressistas da sociedade com pensamentos arcaicos e ultrapassados. Uma das fer-ramentas que eles têm para se reafirmar como tal é a ma-nifestação dentro de locais onde um modelo excludente de sociedade ainda predomi-na. As universidades e seus trotes são um dos exemplos de espaços de perpetuação de discursos conservadores na sociedade.

O trote, analisa o sociólo-go André Drumond, “não é tão somente uma introdução na vida universitária, é tam-bém a afirmação de um con-junto de valores e significados importantes para o grupo em questão. Por isso, é razoável pensarmos que em cursos tra-dicionalmente ocupados por homens existam condições mais favoráveis para que mo-tivações machistas e homofó-bicas tomem lugar”.

De acordo com Drumond, “Nos últimos anos, o Brasil tem experimentado mudan-ças sociais muito profun-das (...) e essas mudanças, a despeito de serem menores do que se poderia esperar, acabam por reorganizar posi-ções.” Não à toa, afirma, “os mais conservadores, amea-çados em seu lugar de poder, transbordam no reacionaris-mo, e, assim, procuram girar a roda da história para trás.” Alusão feita pelo professor a um conhecido trecho do Ma-nifesto Comunista.

Em março deste ano, den-tro da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mi-nas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, veteranos promo-veram um trote de cunho na-zista e racista. Jovens pinta-ram alguns calouros de preto

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e amarraram suas mãos com correntes. Um dos alunos chegou a pintar no rosto um bigode semelhante ao que era usado por Hitler, enquanto posava para fotos fazendo a saudação nazista, um exem-plo de reprodução dos ideais de uma classe historicamente dominante.

“Sou contra o que acon-teceu, não encaro como uma simples brincadeira. Concor-do com a leitura que muitos fizeram do ocorrido, no sen-tido de que o que aconteceu é expressão de preconceitos velados que existem na socie-dade.”, afirma Renan Sales, estudante do sétimo período do curso de Direto da UFMG. Segundo ele, faltam iniciati-vas por parte da universidade para se discutir o preconceito e seus efeitos. Aquelas que existem, afirma, partem, em sua maioria, dos próprios alu-nos.

Semanas depois do tro-te, notícias de um grupo ne-onazista de Belo Horizonte apareceram nos jornais, após um deles ter agredido violen-tamente um morador de rua negro. A investigação da po-lícia apontou que ele tinha 25 anos e já estava relacionado a mais dois processos por ter esfaqueado homossexuais no centro de BH.

No mês de junho de 2013, uma série de protestos espa-lhados por todo Brasil evi-denciaram uma perspectiva social que foge àquela do pensamento conservador, so-licitando posicionamentos de sua ala mais jovem.

A Direita e as manifestações

Os eventos ocorridos por todo o Brasil, a onda de ma-nifestações ou, para alguns, a “primavera brasileira”, uma

alusão aos movimentos que abalaram os regimes de paí-ses do Oriente Médio parecem dificultar uma análise acerca da juventude conservadora brasileira. Contudo, uma ob-servação mais atenta mostra que esse grupo está presente também nas manifestações. Aproveitam os protestos para manipular o movimento com fetiche à lá “V de Vingança”, um culto a obra do quadrinis-ta Allan Moore e sua revolu-ção anônima e apartidária, para por em pauta o Impea-chment da presidente Dilma Roussef e a derrocada do PT. Outros, até mesmo defendem a política de repressão do go-verno Geraldo Alckmin e da Polícia Militar de São Paulo.

A Professora do Servi-ço Social da UFOP, Ednéia Oliveira aponta que “jovens reacionários entraram na manifestação e tiveram uma atitude fascista ao quebrar e queimar bandeiras dos movi-mentos de esquerda que estão nas ruas e na luta há muito tempo, substituindo-as, num ato nacionalista, pelas ban-deiras do Brasil”.

O artigo de Paulo Morei-ra Leite intitulado “Entre de-mocracia e fascismo”, em sua coluna semanal na Revista Isto É, trata do fato da mo-bilização ter assumido outra fisionomia, com “traços an-tidemocráticos acentuados.” As palavras do autor, nos fa-zem refletir: trata-se de de-mocracia ou fascismo? Talvez essa entrada da juventude re-acionária nas manifestações seja o claro exemplo para pensarmos o quanto de fas-cismo há no conservadorismo brasileiro. Como disse o can-tor e compositor Tom Zé em sua página do facebook “Não é que todo o conservador seja burro, mas todo burro é con-servador”.

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TexTo: JéssIca romero

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Teko Rosa, 25 anos, e Márcia Valadares, 57, são duas gerações diferentes. Mas algo une os dois, e os une a Ouro Preto: a vontade de se movimentar e movimentar o povo. Ele é uma das vozes que tem ecoado e se levantado do “morro para o centro”. Coordena o Fala Favela, projeto social que propaga o Movimento Hip Hop e usa a arte de rua para instigar a consciência política nos jovens das comunidades. Ela é um nome conhecido entre pessoas dos movimentos sociais da cidade. Sua história na militância começa quando ela tinha só 15 anos de idade, em plena Ditadura Miliar. E quem a conhece percebe que ainda está longe de terminar. Ambos falam à Curinga sobre a Ouro Preto que se move e que os move.

Teko: Conheci grande parte da periferia da cidade há seis anos, quando estava concluindo Artes Cênicas na Ufop e fazia teatro nas comunidades. Nessa época, já aconteciam as primeiras manifestações de Hip Hop no Bairro Piedade, e eu conheci os primeiros percursores do movimento aqui. Fiquei maravilhado, espantado com aquela cultura que além de ser muito forte, era também uma contestação dos jovens que tinham outra visão do que era a periferia. Digo que é uma história não contada pelos livros, a questão da própria construção de Ouro Preto, da negritude e dos nossos valores culturais. Muitas vezes a gente estuda algo que não vai pôr em prática e o Hip Hop me abriu esse horizonte.

O começo

Márcia: Ainda com quatorze anos, na década 1970, frequentei uma escola pública de arte fundada por Ana Amélia Melo Nuno, grande agitadora cultural da cidade. Lá fazia curso de desenho, mas eles explicavam muito sobre ter uma visão social do país. Ensinaram-nos os ideais socialistas e a importância da mobilização popular para derrotar o Governo Militar. Então eu tive essa formação quando ainda era muito nova, e logo após me formar no colégio fui trabalhar com restauração em Salvador, onde militei numa corrente radical do MNU (Movimento Negro Unificado). Seis meses depois, voltei pra cá e iniciei a militância e a luta pelo socialismo. Entre tantas histórias, idas e vindas, estive em Ouro Preto, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília. Estava na luta pelas Diretas Já, conheci Lula, Brizola e muitos dos artistas que apoiavam a causa. E estava aqui, compondo as rodas de capoeira, os grupos de dança afro, as passeatas e protestos. Não sei como nunca fui presa. Eu fiz essa fuzarca nos Anos de Chumbo, cara!

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Teko: O que eu vejo em Ouro Preto é que não existem leis ou políticas para fortalecer os movimentos. O que existe são os movimentos tentando se organizar e se mostrar através de reinvindicação. O poder público ou ignora os movimentos ou quando vê que pode ter vantagens, faz alguma coisa. O orçamento participativo não funciona, e a falta de incentivo cultural e social é grande. A maioria dos jovens com quem trabalho é de classe média a baixa, que mal consegue fazer o ensino médio porque tem que trabalhar, e se aliena pelo que a grande mídia mostra. Somos uma cidade em que 70% dos jovens são negros e não temos representatividade, pois se formos olhar quem está na Universidade não vemos esse jovem lá. Aqui eles não têm formas de lazer, entretenimento, não tem incentivo aos esportes, à cultura. Hoje vemos um crescimento dos jovens se envolvendo com a criminalidade, e a violência na cidade já está se tornando natural. Temos um reflexo muito grande do período da escravidão, e precisamos correr atrás dessa reparação, pois tudo que foi construído nessa região foi construído através de uma herança muito negativa para nós e eu temo que isso esteja acontecendo novamente, de outra forma.

Márcia: As pessoas que estão no poder público não têm consciência do trabalho social, pois quando chegamos para reivindicar nossos direitos eles nos tratam como vagabundos. Se alguém quer fazer uma denúncia de racismo em Ouro Preto, eles colocam panos quentes. A dificuldade é a falta de conhecimento do que é trabalho social justamente por quem está nesses cargos. Nosso trabalho social é grande, mas existe muito desrespeito. A população é contraditória, é uma população de maioria negra, mas você não vê essas pessoas lutando. Em 2005, quando nós iniciamos um movimento de luta pelas cotas, sofremos críticas, muitos não entenderam que é necessário. No caso das cotas, quem não luta não está na Universidade.

Teko: Nós já tivemos vários projetos itinerantes e o Fala Favela (FF) é o último. É uma mostra cultural, mas como oportunidade de protesto, em que se usa a própria fala pra mostrar que o jovem e as periferias precisam de investimentos. Percorremos os bairros para as apresentações de Hip Hop e fazemos os encontros sempre em quadras ou arenas. O FF nasceu da REDE (Associação Cultura de Rua), uma associação criada para unir grupos de todos os tipos de cultura de rua e desenvolver projetos comunitários. Em 2007, conseguimos aprovar a Lei Municipal 63507, que institui o dia 13 de Maio como o Dia Municipal da Cultura Hip Hop. Essa lei nos serve porque através dela o município deve ceder verba para apoiar as atividades culturais relacionadas ao Hip Hop.

Márcia: O Fórum da Igualdade Racial de Ouro Preto foi criado em 2000 e é uma instituição que trabalha com os movimentos de minorias da cidade. Na área cultural trabalhamos reforçando o valor das religiões de matriz africana, do samba, do congado, do Hip Hop, da nossa origem africana. Estamos envolvidos com vários movimentos, o Movimento Sem Terra, o Movimento Indígena, o Movimento dos Atingidos por Barragens e todos que precisarem. Minha preocupação hoje é a infiltração da Direita nos movimentos sociais, como existe no MST, então o meu trabalho é colocar as pessoas pra pensar, pra não se deixarem levar pela grande mídia reacionária e racista que marginaliza todos os movimentos por causa das minorias infiltradas. Trabalho para que as pessoas não queiram ser espertas, mas sim inteligentes em suas atitudes dentro dos movimentos sociais.

Movimentos sociais, poder público e população

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cer o morro, lá não tem beleza eStética,

a beleza é o povo.” márcia

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Teko: No último ano fiz parte da Secretaria de Cultura, eu era assessor de cultura, organiza-va as festas da comunidade. O atual governo até mostrou interesse em negociar, mas agora é pior, é como se fosse um “cala boca” mesmo. Te dou um cargo, mas você não pode contestar isso. Para mim não é vantagem nenhuma, pois eu trabalho com a base, e a base está insatis-feita com o governo. Se eu estou no governo, não posso estar com a base, e eu sou da base. Primeiro precisamos entender que temos três cidades, uma dentro da outra. Temos a Ouro Preto patrimônio histórico, que é a para ser dos turistas, a Ouro Preto universitária, que não se mistura de forma alguma com as ou-tras, e a Ouro Preto nossa, que é a Ouro Preto constituída dos morros. E onde estão os mo-vimentos sociais hoje? Na Ouro Preto cons-tituída pelos morros, que faz as outras duas funcionarem. E o turista que vem aqui não en-xerga essa movimentação social, ele vê só uma parte da cidade. E a Ufop poderia contribuir muito mais para Ouro Preto se desenvolver. Temos aí o curso de Medicina, de Direito e tan-tos outros que poderiam colaborar em projetos e se aproximar das comunidades.

Márcia: Preconceito por eu ser mulher e negra sempre existiu, mas eu estive na Universidade em 1975. Recebi conhecimento acadêmico e intelectual, mas precisei abandonar o curso de História na Ufmg para trabalhar. O pouco que estudei ensinou-me a me defender atra-vés da informação. As pessoas ficavam putas comigo, principalmente a elite da época, mas eles tinham medo porque eu respondia com argumentos e mandava se foder (sic). Meu pai me ensinou a ser a melhor em tudo que eu fizesse. Ele dizia: “Tudo que você for fazer na vida, faça o melhor para ser respeitada.” Sem-pre tive isso comigo: que tinha que fazer o me-lhor para meus inimigos terem medo antes de me criticar. Então sempre circulei bem entre as classes A e C, entre “intelectuais” e o povo.

Liderança e preconceitos

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TexTo: PaTrícIa souza

edIção GráfIca Isadora farIa

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Você é viciado? Álcool, cigarro, drogas, sexo? Nada disso! Para os antigos vícios, a moda agora é outra: apps, games, séries de TV e redes sociais.

Com as mudanças sociais e o avanço da tecnologia e da medicina, o que chamamos de “vício”, entrou em um universo mais amplo. E o problema pode não estar em consumir, e sim em ser impulsionado a fazer somente aquela de-terminada atividade, causando uma perda de liberdade do indivíduo.

Há quem passe horas assistindo vídeos no youtube, jogando na internet ou mexendo a todo minuto nos aplicativos de celular, ou até mesmo, aguardando a nova temporada e novo episódio daquela série instigante e divertida.

Somos seduzidos por novas tecnologias e nos sentimos presos até que surja uma nova rede social e novas formas de interatividade. Algumas pessoas pas-sam o dia todo aguardando o upload dos blogs de entretenimento para baixar ou assistir ao novo episódio da série do fall season. Checam a todo minuto o celular para ver se a mensagem enviada foi respondida, ou se “fulano” curtiu ou comentou seu novo “post” nas redes sociais.

Tome cuidado! Este comportamento pode viciar...É como se fosse um novo chocolate com recheio crocante, que você está louco para experimentar, ou uma nova tendência de sombras daquela marca de cosméticos que se pudesse, com-praria a coleção inteira!

Os dispositivos móveis podem facilitar a nossa vida, mas acabamos viven-do através do que ditam os apps, pois geram arquivos e fazem dos alertas um “agendamento”. Eventos, lembretes, alarmes, previsão do tempo, redes sociais, fotos, GPS, tudo isso para indicar o que está fazendo, o que está comendo, onde está e com quem.

A dependência por essas tecnologias está cada vez mais freqüente, princi-palmente entre os jovens, fazendo com que deixem suas obrigações familiares e sociais e passem tempo demasiado no mundo virtual. Estes vícios estão refle-tidos nas interações sociais, tornando nossas atitudes inquietantes, seguidas de madrugadas de insônia e ansiedade.

Os vícios comportamentais considerados “pequenos vícios” determinam o comportamento do indivíduo que não consegue controlar a vontade de utilizar alguma inovação tecnológica ou obsessão por alguma pessoa ou coisa. Estes maus costumes aparecem como distrações que acabam tomando proporções maiores e fazendo com que o sujeito gaste um tempo maior com estas “distra-ções”. São os pequenos vícios que estruturam nosso dia-a-dia e nossa subjeti-vidade.

Os hábitos viciosos são ativados por uma área do cérebro que chamamos de “áreas de recompensa”, ligadas à coordenação motora e comportamento emo-cional. Ao se dedicar a estas atividades, o cérebro libera substâncias que nos fazem dependente delas, pois nos proporcionam prazer.

Segundo a psicóloga Claudia Itabohany, podemos chamar estas manias de sintomas cotidianos, que podem ser amenos se não causam prejuízo para a vida mental e social do sujeito, caso contrário, podem se transformar em adoe-cimento psicológico. “Todos nós temos traços obsessivos e traços compulsivos e não é possível bani-los”, afirma a psicóloga.

Os desvios de atenção são maneiras perfeitas para uma fuga da realidade, de maneira ilusória, podem suprir e compensar algumas carências. Fugir das nossas angústias, disfarçar nossas ansiedades, sair de nossos momentos estres-santes e frustrações. Podendo ser uma forma de reação aos acontecimentos da vida, disfarces ou escapes para o “mal-estar” de se viver em sociedade.

Não ficar dependente da tecnologia é quase uma missão impossível. Ficar longe de vez em quando para tentar se desintoxicar, poderá ser uma boa es-tratégia. E como qualquer vício, a melhor solução é se abster e procurar outros tipos de atividades que não sejam “viciantes”.

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Pai, mãe e filhos sentados à mesa durante o café da manhã são o retrato da família tradicional típico dos comerciais de margarina. Publicitários, aqui vai uma dica: essa é apenas uma das diversas configurações familiares que existem. Mulheres que aderem à reprodução independente; avós que criam netos; pessoas do mesmo sexo que lutam pelo direito de constituírem sua própria família; vínculos que são criados independentemente do parentesco. Famílias que compartilham o pão, a geleia, o queijo, o leite... e momentos para serem eternizados em um álbum de retratos.

TexTo: carolIne frança

edIção GráfIca: bárbara zdanowsky

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pode produzir leis. Segundo ele, atualmente, a chance do projeto de lei ser aprovado é pe-quena, “porque, na verdade, existe uma ban-cada religiosa muito forte no Congresso e eles são contra isso”. Na prática, não há diferença, mas caso o projeto seja aprovado, o Código Civil Brasileiro sofrerá alterações, tornando o casamento assegurado pela lei.

Para Joana é preciso pensar que existe dis-tinção entre o reconhecimento do amor e o reconhecimento do direito. “O Estado nunca mandou no meu amor”, diz. Com a aprova-ção da união civil, uma infinidade de direitos em uma família passa a ser reconhecida. As mudanças vão desde declarar imposto de ren-da a obter um plano de saúde conjunto. Em sua opinião, embora a união estável reconhe-ça parte dos direitos que o casamento garante, não possui a mesma legitimação social.

Como militante, Joana acompanhou todo o processo de validação dessas decisões. “É engraçado que esses avanços na nossa socie-dade estejam vindo do poder judiciário, e não do legislativo”, comenta. O casamento civil igualitário é um assunto que está sendo de-batido mundialmente. Na América Latina, o Uruguai e a Argentina já o haviam aprovado, o que torna o Brasil um tanto quanto atrasado em relação a outros países. “A briga por reco-nhecimento de direitos iguais, por um trata-mento igual, é uma briga que não acaba agora, é uma briga constante”, diz.

A jornalista e professora, Joana Ziller, 38 anos, cresceu em uma família diferente da dos padrões tradicionais. Quando seus pais se co-nheceram, há aproximadamente 40 anos, op-taram por não se casar. Sua compreensão de família se difere da concepção padronizada. “Lá em casa tanto eu quanto meu irmão sem-pre fomos estimulados a buscar a proximidade com aquilo que a gente amasse, a pensar o que é que faz a gente mais feliz”, conta. Conheceu sua companheira há 11 anos e, para ela, desde o momento em que foram morar juntas, cons-tituíram uma família.

O casal oficializou a união após o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecer a união es-tável entre pessoas do mesmo sexo, em 2011. Pretendem, agora, transformá-la em união ci-vil, já que, recentemente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou uma resolução na qual os cartórios de todo o país são obrigados a converter a união estável homoafetiva em ca-samento civil e, também, a celebrá-lo. Assim, legalmente, terão os mesmos direitos de toda família. Joana diz que é importante separar o que é o reconhecimento de um direito e o que é a vida cotidiana. “Na vida de fato, a gente já é uma família há muito tempo”, ressalta.

De acordo com o professor de Direito Cons-titucional da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Alexandre Bahia, a legalização do casamento civil igualitário ainda depende de um ato do Congresso Nacional, pois só ele

Foto: adriaNa souza

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Vínculos afetivosA relação de parentesco é apenas um de-

talhe para algumas famílias. Há quem diga que o vínculo sanguíneo não é tão importan-te quanto o vínculo afetivo. Na década de 80, no auge dos seus 17 anos, a chef de cozinha, Cláudia Pessoa, 43, deixou a casa de seus pais adotivos em Uberaba e mudou-se para Ouro Preto. Não se enquadrava dentro das repúbli-cas femininas e como era frequentadora assí-dua da república federal masculina Aquarius, foi convidada a morar lá.

Desde o princípio, a relação que estabele-ceu não só com a república, mas também com seus moradores, foi especial, pois eles torna-ram-se, efetivamente, sua família. “Todos os meus momentos importantes aconteceram aqui ou com as pessoas daqui, que são os meus irmãos, que são os meus heróis, que são os meus exemplos”, diz. Foram inúmeras as histórias de vida compartilhadas com aquelas pessoas, o que fez com que a relação se forta-lecesse.

Cláudia chegou a morar na Itália, em Goi-ás, em Tiradentes e teve sua própria residência em Ouro Preto. Entre idas e vindas, sempre teve a república como seu lar e seu porto se-guro. Quando passou por um casamento con-turbado e engravidou de seu primeiro e único filho, teve que fazer escolhas. Assim, quando Pedro nasceu, os moradores tornaram-se seus tios e, também, babás. “Todo mundo, de uma maneira ou outra, se envolveu na criação do meu filho comigo”, comenta.

Pedro Pessoa, 20, costuma brincar que possui “uma mãe, um cachorro, 180 tios e 26 irmãos”, referindo-se aos ex e atuais mora-dores da Aquarius. Por conta do divórcio dos pais, sempre viveu com Cláudia e com Rex, o cachorro que também é tido como membro da família. Assim como a mãe, considera a repú-blica como sua casa. “Sempre que eu tive al-guma necessidade eu procurei, principalmen-te, o pessoal da república”, diz.

Quando passou no vestibular, tentou ba-talhar por uma vaga na república, mas desis-tiu. “É um pouco difícil você ter que começar do primeiro andar da hierarquia uma vez que você já tem uma intimidade tão grande com a casa, com todos os moradores e ex-alunos”, conta. Por enquanto, não se sente pronto para uma mudança de atitude para com os mo-radores. “Eu ainda tenho muita vontade de morar aqui algum dia, para ter um quadrinho e poder dizer: eu faço parte da história dessa república mesmo”, afirma.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geogra-fia e Estatística (IBGE), o número de crianças que são sustentadas pelos avós passam dos quatro milhões, conforme o Censo 2010. A es-tudante de pedagogia, Izabel Nascimento, 24, faz parte dessas estatísticas. Assim que saiu do hospital quando nasceu foi morar com seus avós. Seus pais passavam por uma fase ruim no casamento e discutiam muito. “Quando eu

nasci, minha mãe não queria que eu presenciasse, apesar de ser criança, as brigas deles”, conta. Após a separação, tanto seu pai quanto sua mãe constituíram novas famílias. No entanto, ela e o irmão continuaram morando com os avós, pois já ha-viam se acostumado.

A relação que mantém com a mãe é tranquila. “Ir para casa da minha mãe era como os outros filhos irem para a casa da avó no final de semana”, diz. Apesar de não manter contato constante com o pai, a figura paterna nunca lhe fez falta. Se-gundo ela, seu tio sempre esteve presente para cumprir esse papel. “A gente teve uma presença paterna em casa, não neces-sariamente do nosso pai biológico, mas tinha”, observa.

Avós têm o costume de mimar os netos, e não foi diferente com Izabel, que diz ter sido um tanto quanto mimada pela avó. Reconhece, também, que além de ter sido bem criada, rece-beu limites e incentivos, aprendeu valores éticos e cristãos, e a respeitar o próximo. “Ela [avó] sempre me deu uma educação muito boa e rígida”, comenta. Para ela, a estrutura familiar não depende somente do pai e da mãe, afinal, sua avó e seu tio sempre foram a base de sua família. “Acho que a estrutura não está no fato de se é pai ou se é mãe. É no carinho, no amor e na educação que se dá”, conclui.

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Foto: adriaNa souza

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Pais e filhosA vontade de ser mãe e a falta de um relacionamento es-

tável motivou a professora Dulcinéia dos Santos Pimenta, 33, a aderir ao método de inseminação artificial. Optou pela pro-dução independente quando percebeu que as chances de ser mãe diminuíram devido à sua dificuldade para engravidar. A ideia de utilizar um doador anônimo foi descartada quando um amigo resolveu assumir a paternidade. A sugestão partiu da mãe do próprio rapaz, que já tinha vontade de ser pai. “Ele achou interessante ter um filho de uma pessoa que também quer ter um filho”, diz.

Quando tomou sua decisão, muitas pessoas acharam inte-ressante. Uma amiga, porém, não aceitou bem a ideia de um conhecido assumir a paternidade, visto que, a princípio, Dul-cinéia não queria envolvimento com ninguém. Apesar de ter consciência de que haverá um relacionamento, quer continuar com seus planos. A primeira tentativa falhou. “Fiquei triste, mas não frustrada”, relata. Agora, pretende economizar para realizar o procedimento de fertilização in vitro até o final do ano.

A profesora não se sentia confortável para falar sobre seus problemas de fertilidade, apenas conformava-se com sua situ-ação e cogitou a possibilidade de adotar uma criança. Ainda pensa nessa opção, mas primeiro quer tentar engravidar. A de-cisão de criar uma criança sozinha não foi fácil, mas a vontade de experimentar a maternidade somada à estabilidade finan-ceira, lhe motivou a levar o seu desejo adiante. “Sempre tive esse sonho, mas agora ele acordou com toda a vontade”, conta.

A jornalista e professora Joana também pretende recorrer à inseminação artificial para ter um filho. Caso engravide, terá

que entrar na justiça para que sua esposa seja reconhecida como mãe. Assim como Dulcinéia, a outra possibilidade é a adoção. Como casal, podem pedir adoção conjunta, mas, ainda assim, terão que enfrentar trâmites jurídicos.

A lei de adoção, segundo o professor Alexandre, permite que pessoas solteiras, casadas ou que possuem união estável adotem uma criança. O STF, ao reconhecer a união homoafe-tiva como entidade familiar, em 2011, conferiu-lhe todos os efeitos jurídicos previstos para a união estável. Portanto, atu-almente, é possível que um casal homossexual peça a adoção tendo a união estável. Antes dessa decisão, era comum que casais tentassem adotar como se fossem pessoas solteiras e a deliberação ficava a critério do juiz.

Para o vereador Leandro Marques, 27, um casal, mesmo que sem filhos, pode ser visto como uma família tanto no valor social quanto no sentimental, mas acredita que uma criança completa este cenário. Ele e o parceiro têm uma filha de quatro anos de idade, cujo contato social ainda não é tão exposto a preconceitos e a críticas. Segundo ele, houve um acolhimento muito positivo por parte de seus familiares e amigos. “O pre-conceito sempre vai existir, principalmente, para aquelas pes-soas que não possuem a oportunidade de conhecer de perto esta realidade”, diz.

As diversas configurações familiares sempre existiram ou só foram percebidas agora? Difícil responder. O fato é que com as conquistas de direitos, com o acesso a novas formas de re-produção, com as relações que unem pessoas que são parentes ou não e, sobretudo, com afeto, famílias plurais ocupam seus lugares à mesa do café da manhã e produzem o seu próprio comercial de margarina.

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Pedro, Nina, e sua mãe, Cláudia.

Cláudia e Nina, a cachorrinha de estimação.

Izabel e sua avó, Idalira.

Dulcinéia e sua irmã, Luciana.

Foto: adriaNa souza

Foto: adriaNa souza

Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

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BELEZA REALAPRECIE SEM MODERAÇÃO

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O sonho de toda mulher? Ter o corpo perfeito, ser sedutora e sexy. Será? O padrão de beleza em propagandas não me representa. Gosto do meu cabelo natural, das minhas curvas, do meu certo desleixo em não me enquadrar à beleza ideal. Sou real com minhas singularidades e personalidade.

Não nego que, às vezes, gosto de me produzir para conquistar, me destacar com um realce na minha beleza. Mas não vivo apenas para provocar e seduzir. Gosto de ser única! Sou feliz em ser comum e ao mesmo tempo diferente. Tenho orgulho de ser singular, distinta entre tantas outras. Somos mulheres reais, e não uma criação da publicidade.

PANTERA

foTo e TexTo: lívia almeida

edIção GráfIca: bruna silveira

modelos: luiza felipe, maria elisa rei, luana barros, nany oliveira, nathália aguerrondo e bruna sales

MEU CABELO, MEU ESTILO.

EXCLUSIVA FÓRMULA

PROVÊ

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Você é mulher, use seu charme.

VITRINE

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Você é mulher, use seu charme.

DOCE CHEIROSOD&C

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A maioridade penal tem cor e classe

TexTo alexandre anasTácIo

edIção GráfIca Isadora farIa

“Se já tem idade para roubar, tem idade para ser preso”, “melhor na cadeia do que na rua”. Estas frases são recorrentes sempre que um crime grave envolve do lado infrator, um ado-lescente. Situações como essa, trazem à tona a discussão sobre a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos no Brasil. O último episódio de grande repercussão na mídia brasileira foi o assassinato de Victor Hugo Deppman, de 19 anos, morto por um jovem que estava a três dias de completar 18 anos. O crime aconteceu na porta do prédio onde Victor morava, em São Pau-lo, no dia 9 de abril desse ano.

O projeto de lei (PL) enviado ao Congresso Nacional pelo Governador de São Paulo, Geraldo Alckmin uma semana após o crime, busca ampliar a pena máxima para reincidência em infrações análogas a crimes hediondos de três para oito anos. Com essa proposta, o debate acerca da redução da maiorida-de penal em dois anos cresceu. A PL foi apoiada por frentes conservadoras em vários outros estados do país. Desde 1999, a redução da idade penal vem sendo discutida pelo Congresso brasileiro, em diferentes Propostas de Emenda à Constituição Federal (PECs). O plano apresentado várias vezes durante to-dos estes anos não demonstra nada além da hipocrisia de um Estado negligente. Um governo que não garante à sua popu-lação jovem seus direitos básicos como educação, saúde, lazer, cultura e moradia, e como consequência, ainda pune esse gru-po por sua própria displicência para com eles.

A discussão é muito mais ampla do que esse caso especí-fico. Não podemos nos prender em casos isolados, porque é aí que os argumentos se tornam superficiais. Ao se tomar as do-

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nião

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adolescente do país.Um estudo feito pela socióloga e pesquisadora da USP, Lia-

na de Paula, indica que o investimento preventivo melhoraria a qualidade de vida dos jovens e diminuiria, a médio prazo, a proporção de jovens que migram para o crime. Escolas sucate-adas ou mal equipadas, problemas de moradia e de saúde são alguns dos fatores que desestimulam os jovens e contribuem para sua exclusão tanto econômica quanto social”, aponta a pesquisa.

Existe dentro da frente conservadora do Congresso uma clara tendência à criminalização da pobreza. A juventude po-bre é a parcela que realmente sofre com esse descaso do Es-tado, que prefere jogá-la na cadeia a investir em políticas que realmente irão garantir que esse adolescente tenha acesso a di-reitos fundamentais para seu desenvolvimento como cidadão e profissional. Além disso, é sempre importante lembrarmos que diariamente jovens negros da periferia são mortos, vítimas dos mais variados motivos, dentre eles, o racismo, a segregação social e a violência da policia. Mesmo com esse fato, a revol-ta midiática e de certos setores da população é bem diferente, quando o ataque é feito a um jovem de uma classe mais alta da nossa sociedade.

A redução é uma irresponsabilidade social, pois tem um público alvo, que tem cor e classe social definidas. Uma medida como essa é uma confissão de culpa do Estado, que assume sua falta de vontade de investir em uma parcela bem específica da juventude brasileira, e para piorar, retira-lhe a liberdade e o futuro.

res de um ato violento feito por um adolescente, não devemos agir no impulso e criminalizar outros tantos, assim acabamos por fazer um debate quase sempre em cima dos efeitos da vio-lência e não da causa dela.

Diferente do que muitos pensam e do que é reproduzido pela grande imprensa, homicídios praticados por adolescentes não são tão frequentes. Em 2010, dos atos infracionais come-tidos por adolescentes em Belo Horizonte apenas 0,3% foram homicídios. As ocorrências registradas são, em sua maioria, por tráfico de drogas (27,2%), pelo uso de drogas (18,5%), por furto (10,7%) e roubo (7,7%) (dados da Vara Infracional da Infância e da Juventude de Belo Horizonte). Levando em con-sideração o contexto brasileiro, os dados mais recentes sobre o Sistema Nacional Socioeducativo reunidos pela Subsecretaria de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (SPDCA) mostram que dentro do universo de adolescentes em cumprimento da medida de internação, a grande maioria é por furto (42,62%), tráfico de drogas (11, 28%) e os homicídios representam 9,85%, do total de 10.651 casos em 2008.

Melhor do que um ato de punição é a prevenção. O baixo investimento em educação pública de qualidade e as péssimas condições socioeconômicas têm seus reflexos na sociedade como um todo. Alguns jovens sem perspectivas de futuro em um mercado de trabalho saturado encontram na criminalida-de uma saída para sobreviver. É importante ressaltar que de acordo também com a SPDCA, o número de adolescentes que cometeram crimes no ano de 2004 e que cumpriram medidas socioeducativas, não atingia 1% do universo total da população

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A ascensão das redes sociais trouxe a pos-sibilidade das pessoas compartilharem experi-ências na internet e unir laços que fazem a di-ferença. Com esse objetivo, surgiu o blog Tudo bem Ser Diferente, em 2012, de Sônia Pessoa, mãe de Pedro, garoto de 7 anos que teve hi-drocefalia quando bebê e ficou com sequelas de coordenação motora. O produto, que tam-bém possui uma página no Facebook, além de ser um fruto de angústias e um desabafo de Sônia, trata o tema educação inclusiva e da necessidade de uma sociedade que aceita os sujeitos com suas singularidades.

Sônia conta que um passo importante para a educação inclusiva é entender o alu-no, compreender os seus limites, valorizar as suas potencialidades e permitir que a cultura da padronização abra espaço para a cultura da heterogeneidade. ‘‘As famílias não buscam pena e privilégios. Trata-se do direito à educa-ção e da necessidade urgente de repensar uma educação baseada em padrões que não se apli-cam à diversidade social típica da sociedade contemporânea’’, diz.

A escola e a sociedade precisam compreen-der que a inclusão começa dentro de casa. Sô-nia destaca que o modo como os pais tratam as questões de diversidade será o jeito como as crianças vão receber as informações sobre determinado assunto. ‘‘Tentamos mostrar ao nosso filho a multiplicidade de pessoas de um mundo no qual nós devemos buscar o nosso lugar e a nossa identidade, respeitando o ou-tro, convivendo em harmonia e compreenden-do que opinião e expressão são livres e indivi-duais. E que o respeito ao outro traz também o respeito a nós mesmos’’, finaliza. www.tudobemserdiferente.wordpress.com

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Crianças que têm problema para escre-ver, manejar os materiais escolares, abotoar uma blusa, amarrar os sapatos e debruçar sobre a carteira nem sempre são pregui-çosas ou desajeitadas. Esses são sintomas possíveis do Transtorno do Desenvolvimen-to da Coordenação, o TDC, que segundo da-dos de 2011 da tese de doutorado de Ana Amélia Cardoso Rodrigues atinge 4,3% das crianças de 7 e 8 anos de idade de Belo Ho-rizonte, Minas Gerais. O TDC não tem uma causa específica, mas é muito comum em pessoas que nasceram prematuras.

O indivíduo com o transtorno pode apresentar na infância retrocesso no sentar, engatinhar, andar e ter problemas em ou-tras tarefas, como jogar bola, andar de bici-cleta e usar talheres. Lívia de Castro Maga-lhães, terapeuta ocupacional, enfatiza que essas dificuldades podem levar a pessoa portadora à restrição na participação social e impactar tanto no desempenho escolar quanto nas brincadeiras tipicamente in-fantis. ’’Crianças com TDC se cansam mais rápido e parecem mais desatentas, pois têm que prestar muita atenção visual e pensar no que fazer’’, conta. Na adolescência e fase adulta, os problemas persistem, porém com o risco para depressão e ansiedade.

Pais e escola devem trabalhar juntos na identificação do transtorno, pois são os pri-meiros a perceber os sintomas. Lívia explica que na escola, por exemplo, os professores podem fazer adaptações encurtando as ta-refas motoras e evitando o excesso de cópia do quadro no caderno. ’’A parceria e troca de informações é essencial para a criança, pois há necessidade de maior suporte e en-corajamento para o desempenho de tarefas motoras. A compreensão do problema é o primeiro passo’’, destaca Lívia.

Ser desajeitado é coisa séria

TexTo: ramon coTTa

edIção GráfIca: rolder wanGler

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Quando ocorre a inversão de papéis e as mulheres deixam de ser um objeto de desejo e assu-mem o microfone, o funk é um meio que exibe uma mulher segura da sua sexualidade e com atitude. A grande maioria das músicas cantadas pelas funkeiras evidencia questões de ero-tismo como se fosse um grito de li-berdade sexual, uma das bandeiras das feministas. “Só me dava porrada e partia pra farra. Eu ficava sozinha espe-rando você. Eu gritava e chorava, que nem uma maluca. Valeu, muito obrigada, mas agora eu virei puta!”, diz a canção da cantora Valesca Popozuda.

Lola Aronovich, professora de Literatura em Língua Inglesa na Universidade Federal do Ceará e autora do blog feminista ’’Escre-va, Lola, Escreva’’, acredita que o funk pode tratar machismo e fe-minismo em momentos distintos. ’’Quando explora a sexualidade da mulher como objeto de consumo, quando condena essa sexualidade, ou quando incita a violência, o funk é machista. Ao mesmo tem-po, quando põe a figura feminina como prota-gonista e agente da sua sexualidade, quando fala de prazer feminino como algo louvável, quando enaltece a se-xualidade feminina não como algo feito para se exibir e exci-tar os homens, mas como manifestação do desejo da mulher, ele pode estar sendo fe-minista’’, afirma.

Se no século 19, as mulheres luta-vam por direitos civis, como o voto feminino, hoje, as cantoras do funk esbravejam pela liberdade do prazer sexual presente na cultura da qual fa-zem parte. As reivindicações são mais que prazer, são denúncias cantadas sobre as opressões das quais foram submetidas ao longo da história: ’’Late que eu to passando’’.

RetalhosO Feminismo me representa

Ao escutar o trecho da canção do Mc Roba Cena que citava ’’Se dormir, vai tomar dormin-do’’, e em seguida ouvir a versão resposta des-sa música na voz de As Pretas, onde o verso era ‘’Tomar dormindo nada, as minas aqui do baile gosta de tomar acordada’’, Luisa Nolasco decidiu produzir o curta Mulheres no Funk. O filme acompanhou a vida de três funkeiras cariocas que lutam para conquistar um espaço que é predominantemente masculino. ’’Existe, sim, um feminismo no funk, mas não sei se é cons-ciente. Tem um movimento delas por batalhar por direitos iguais e apropriar do seu lugar’’, acredita a diretora.

O funk brasileiro surgiu no Rio de Janei-ro na década de 1980 influenciado pelo ritmo Miami Bass, da Florida, EUA. Ganhou ambiente nas periferias cariocas através dos bailes e das canções que narravam o cotidiano dos mora-dores das favelas. No final dos anos 1990, sur-giram também os ’’proibidões’’, músicas com temas ligados as drogas e com intenso apelo sexual.

A monografia ’’A representação feminina do funk em jornais po-

pulares do Rio de Janeiro’’, da estudante Mariana Gomes, conta que o número de mulheres nas

favelas cariocas é superior ao número de homens. Mes-mo sendo maioria no am-biente onde surge o funk,

elas são minoria nesse meio musical e poucas conseguem se inserir neste ambiente para cantar. Porém, esse

fato não é característi-co apenas do funk, e sim,

reflete o machismo tão presente na sociedade. His-toricamente as mulheres demoraram a sair de casa e hoje aos poucos conquistam

grandes chefias no mercado de trabalho.

TexTo: ramon coTTa

edIção GráfIca: rolder wanGler

Cachorras, preparadas e poderosas: As funkeiras

seriam as novas feministas?

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mãe marta de santo

Mariana, Minas Gerais. Casa verde, portas e janelas abertas, um homem negro sentado tranquilamente bebendo cerveja e ouvindo sertanejo. “Estou procurando a casa da Mãe Marta, você sabe onde fica?”. Silêncio. Bebeu mais um gole de cerveja, levantou-se e apon-tou pra dentro: “É aqui mesmo, moça, pode ficar à vontade”.

Marta não estava em casa. Fiquei esperan-do por quase uma hora em um salão colorido. Na parede, tive tempo de contar 114 corações vermelhos, 14 quadros e 6 bandeiras. No teto, 25 bandeirolas brancas e 27 bandeirolas azuis. No altar, o “Preto Velho”, uma entidade da Umbanda, dividia espaço com Nossa Senho-ra Aparecida, São Jorge e outros tantos santos que eu não consegui identificar. Eu ainda não sabia, mas já estava no terreiro da “Mãe Maria de Luanda”.

Marta chegou caminhando devagar e fu-mando um cigarro. A senhora negra, baixinha e de aparência frágil, logo avisou que não teria tempo pra conversar naquele dia. Contentei-

me em sentar mais um pouco e observá-la. Ela montou uma máquina de costura na sala e começou a confeccionar algumas peças para a apresentação de congado que aconteceria dois dias depois em Santo Antônio do Pira-pitinga, distrito de Piranga - MG. O congado, aliás, é uma das poucas coisas que consegue tirar a Mãe de Santo de perto do terreiro de Umbanda. Durante os quase 30 minutos que permaneci ali pude escutar Marta reclamando diversas vezes por terem lhe dado tanto traba-lho de última hora. Observando atentamente seu olhar, porém, vi claramente o prazer com que fazia aquilo tudo.

Voltei outro dia e parecia haver ali outra mulher. Desta vez a Mãe de Santo estava sor-ridente, brincalhona, mais disposta a conver-sar e a contar sua história de cinco décadas. Enquanto fritava “mentirinhas” para o lanche da tarde, uma massa de pastel caseira sem re-cheio, Marta começou nosso papo exatamente de onde eu queria: de como a Umbanda en-trou na sua vida.

TexTo: GersIca moraes edIção GráfIca: lorena cosTa

foTos: nara breTas

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A descoberta da mediunidade

Quando ainda era criança, sua mãe, Diva da Silva Nativo, incorporou pela primeira vez a “Mãe Maria de Luanda”, que hoje é a guia do terreiro. Ninguém da família frequen-tava terreiros de Umbanda ou sequer conhecia a religião. Marta conta que Diva relutou por um bom tempo mas resol-veu, enfim, assumir seu dom e abrir o terreiro. Ela lembra que sua mãe foi presa por diversas vezes e o terreiro só conseguiu um pouco mais de sossego quando foi registrado na Federação Espírita Um-bandista do Estado de Minas Gerais.

Ainda com 7 anos de idade, em uma brincadeira

despretensiosa com sua irmã mais nova, Marta incorporou seu guia “Pai Miguel” pela primeira vez. Ela conta que sua mãe lhe deu uma grande surra porque achou que a fi-lha estava caçoando do altar. Foi a partir daí que se tornou o braço direito de sua mãe e, desde então, já não era segre-do pra ninguém que um dia ela assumiria o comando do terreiro.

Na adolescência, confessa aos risos, era muito namora-deira e nunca admitiu intole-rância religiosa: “A primeira coisa que eu perguntava era se eles tinham preconceito com religião.”, lembra. Aos 20 anos, casou-se com Getú-lio – aquele mesmo homem sentado à porta de casa to-mando cerveja. Marta garan-

te que seu marido, apesar de não incorporar entidades, também é médium e possui uma sensibilidade muito apurada. Além disso, conta que ele a ajuda muito com o terreiro.

O casal, que fez questão de se casar na Igreja Católi-ca, teve dois filhos: Renata, de 29 anos e Marcelo, de 19. Marcelo nasceu na época em que Marta esteve briga-da com a mãe. “A gente bri-gava demais e minha mãe pediu que eu me afastasse dela. Eu comecei a traba-lhar fora, mas em todas as sessões e finais de semana estava aqui ajudando. Eu era teimosa!”, relata, bem-humorada. Sobre o período de gestação do filho, diz que sentiu muito desejo de en-

trar no rio e que seu marido sonhava com peixes todas as noites. Diferente de quan-do estava grávida de Renata, quando nada de inusitado ocorreu. Talvez isso tenha sido um sinal: Marcelo, que sempre ajuda a mãe nas ses-sões, se prepara para ser seu sucessor no terreiro.

Com a morte de Diva, há 5 anos, Marta diz não ter pensado duas vezes ao aceitar assumir o terreiro. A Mãe de Santo garante que o espiri-tismo - ela sempre se refere assim - tem uma doutrina muito solidária e que não há nada melhor pra ela do que fazer o bem aos outros. É esse o motivo que ela aponta para seguir em frente convivendo com o preconceito e as difi-culdades.

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A sessão

É praticamente impossí-vel falar sobre a vida de Mar-ta sem citar a Umbanda. É durante as sessões que aquela mulher frágil e cansada sur-preende pela força da espiri-tualidade.

No ritual que assisti esta-vam todos alvoroçados. Mar-celo havia recebido ameaças de agressão na rua. Não com-preendi ao certo o que havia acontecido, só sabia que tinha algo, ou tudo, a ver com in-tolerância religiosa. Quando o assunto é preconceito, Marta é categórica: “Me chamam de macumbeira, feiticeira... Não ligo pra nada disso! Só não admito que mexam com meus netos e meus filhos!”. Nesta mesma tarde, ela foi ti-rar satisfação com o rapaz que ameaçou seu filho.

A Mãe de Santo estava abatida e nervosa por causa do que aconteceu. Ela obser-vava cuidadosamente o ter-reiro, que ganhara uma nova decoração. As bandeirolas eram vermelhas e amarelas, em homenagem ao santo do dia: Santo Antônio. Marta, sistemática com a doutrina da Umbanda, se irritou diver-sas vezes com a desorganiza-ção e a demora dos médiuns pra começar a sessão. “Vocês estão muito moles hoje, nos-sa Senhora!”, reclamou. En-quanto observava o terreiro, seus netos entraram no salão gritando, brincando e rolando pelo chão. Ela respirou fundo, pegou uma vara que estava apoiada em um canto e, com cara de poucos amigos, man-dou todos pra fora.

Como era um dia festivo, o congado fez uma espécie de procissão descendo a rua to-cando, dançando e entoando hinos. Marta, já vestida com suas roupas brancas, recebeu todos na porta, pegou a ima-gem de Santo Antônio e bal-buciou orações enquanto le-vantava a imagem em direção às pessoas.

Logo após a abertura da sessão já havia pessoas no chão conversando com voz de criança. Marta, com uma gamela cheia de balas, dei-xou escapar, pela primeira vez naquele dia, um leve sorriso no canto da boca. Eram os “meninos de Angola” incor-porados pelos médiuns. Na Umbanda, as crianças sim-bolizam a alegria, a descon-tração e a sinceridade. Eles fizeram brincadeiras, pedi-ram doces e pareceram muito carinhosos.

Naquele dia, Marta avisou que não participaria da sessão pois estava gripada e cansa-da. Logo após a conversa com os meninos de Angola, ela se despediu e foi para a cozinha.

Marcelo assumiu o terrei-ro e incorporou seu guia “Pai Tomé”. Bastaram cinco mi-nutos pra que a Mãe de San-to voltasse chorando e sendo praticamente carregada no colo. Ouvi alguém comentan-do “A guia do terreiro quer descer”. Mãe Marta incorpo-rou “Mãe Maria de Luanda”.

Sua expressão, que antes era de dor deu lugar à sere-nidade. Agora Marta falava uma língua incompreensí-vel, provavelmente um dia-leto Angolano. A situação era bastante complexa para quem não conhece a Umban-da, afinal, ali estava apenas seu corpo cedendo lugar para uma entidade. Aquele olhar, aquela voz, aquelas palavras: eram ali Marta e “Mãe Maria de Luanda”.

Segundo ela, a melhor “definição” para a Umbanda é o mistério. Para compreender sua doutrina não é preciso ler livros, mas sim desenvolver a mediunidade. Mesmo tendo convivido com sua mãe, Mar-ta diz que foi incorporando entidades que aprendeu qua-se tudo o que sabe.

Sua espiritualidade de-senvolvida não consegue im-pedir que seu corpo se canse. Ela garante que o cigarro, que lhe rendeu um aneurisma em

2002, é o grande responsável pela sua fraqueza. “Tenho só 50 anos mas envelheci depressa porque fumo de-mais!”, brincou. Além dis-so, receber entidades e lidar com espíritos não é uma ta-refa fácil. A cada consulta, a Mãe de Santo se sente mais abatida e cansada. Seu filho Marcelo a ajuda sempre que pode, mas a tarefa de chefiar o terreiro ainda é dela. Marta diz, sem o menor medo, que sua morte está próxima e que seu filho, Marcelo, terá toda a liberdade do mundo para decidir se dará continuidade ao terreiro. Parece ser essa a intenção.

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O câncer é a principal causa de mortalida-de do mundo. Conforme pesquisa realizada pelo Inca, no Brasil foram diagnosticados 250 mil novos casos somente em 2012. De acordo com informações da OMS (Organização Mun-dial da Saúde) a estimativa é que no ano de 2030 haja cerca de 27 milhões de casos inci-dentes de câncer.

Diante desses dados preocupantes, a Re-vista CURINGA procurou o Dr. Hezio J. Fer-nandes Junior, oncologista do Instituto do Câncer Arnaldo Vieira Carvalho, para esclare-cer algumas dúvidas sobre a doença.

O médico explica que existem vários tipos de câncer, originários de todos os tecidos do corpo humano. A doença se caracteriza por um crescimento desordenado de células que adquirem a capacidade de “viajar” por todo organismo.

Segundo dados do INCA, o índice da do-ença na região Sul e Sudeste do Brasil é supe-rior a de outras regiões brasileiras e, de acordo com o oncologista, existe uma explicação para isso. A diferença se deve ao fato de que no Sul e Sudeste a população tem maior acesso a médicos e à medicina diagnóstica, ficando assim menos expostos à doenças infecto con-tagiosas, evitando uma morte precoce. Sendo assim, a expectativa de vida é maior nessa re-gião, e como o câncer é uma doença degene-rativa, ele atinge principalmente pessoas mais velhas.

Além das medidas preventivas, o médico destaca que é necessário fazer exames regula-res para detecção de cânceres precocemente, como o exame de papanicolau e mamografia para as mulheres e o exame de próstata em homens.

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CÂNCER NO BRASIL TexTo e edIção GráfIca: ana Paula rodarTe e marIana mendes

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1 - Pulmão: 90% dos casos diagnosticados estão associados ao consumo de derivados de tabaco.2 - Próstata: Sexto tipo de câncer mais comum no mundo, considerado o câncer da terceira idade.3 - Mama feminina: Segundo tipo mais frequente de câncer no mundo. Relativamente raro antes dos 35 anos.4 - Colo do Útero: Também conhecido como cervical, demora muitos anos para de desenvolver. O câncer pode ser facilmente descoberto no exame preventivo conhecido como Papanicolau.

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Distribuição proporcional dos dez tipos de câncer mais incidentes estimados

para 2012/2013 por sexo, exceto pele não melanoma. (FONTE:INCA)

Abolir o cigarro

Essa é a regra mais importante para prevenir o câncer.

Higiene bucal

Realize diariamente a higiene oral (escovação) e consulte o dentista regularmente.

Alimentação

Uma alimentação saudável pode reduzir as chan-ces de câncer em pelo menos 40%. Coma mais frutas, legumes, verduras, e evite produtos indus-trializados.

Álcool

Evite ou limite a ingestão de be-bidas alcoólicas. Os homens não devem tomar mais do que dois drinques por dia. As mulheres devem se limitar a um drinque.

Exercício

Pratique atividades físicas moderadamente durante pelo menos 30 minutos, cinco vezes por semana.

Exame das mamasMulheres, com 40 anos ou mais, devem realizar o exame clínico das mamas anualmente. E mulheres entre 50 e 69 anos, devem fazer uma mamografia a cada dois anos.

Acima de 50 anosÉ recomendável que mulheres e homens com 50 anos ou mais realizem exame de sangue oculto nas fezes todo ano.

Modos de Prevenção

Principais casos de câncer por região do BrasilCâncer infantil em BH

Os tipos de câncer mais comuns em Homens

Estimativas para os anos de 2012/2013 das taxas brutas de incidência por 100 mil e de número de casos novo por câncer, em homens e mulheres, segundo a região. (FONTE: INCA)

Distribuição percentual da incidência por tipo de câncer infanto- juvenil em Belo Horizonte, 2000 a 2001. (FONTE: INCA)

Evite exposição prolongada ao sol, entre 10h e 16h, e use sempre proteção adequada, como chapéu, barraca e protetor solar.

Leucemia 26%

Linfomas e Neoplasias Reticulo-Entoteliais 20% SNC e Miscelania

de Neoplasias Itracranianas e Intraespinhais 13% Tumores

de Osseos Malignas 9%

Carcinomas e Outras Neoplasias Malignas Epiteliais 8%

Sudeste 53%Centro-Oeste 8,5%

Sul 17,5%

Nordeste 17%

Nor

te 4

%

Cuidados com o sol

Os tipos de câncer mais comuns em Mulheres

Cólon e Reto: É tratável e curável na maioria dos casos ao ser detectado precocemente.

Estômago: Incidência maior em homens, por volta dos 70 anos. Cerca de 65% dos pacientes diagnosticados têm mais de 50 anos.

Cavidade Oral: Câncer que afeta lábios e interior da cavidade oral. É mais frequente em pessoas brancas.

Bexiga: Há três tipos de câncer que começam nas células que revestem a bexiga. São eles: carcinoma de células de transição, carcinoma de células escamosas e adenocarcinoma.

Esôfago: O mais frequente é o carcinoma epidermoide escamoso, responsável por 96% dos casos.

Cólon e Reto: Uma maneira de prevenir o aparecimento de tumores seria a detecção e a remoção dos pólipos (lesões benignas) antes deles se tornarem malignos.

Pulmão: Em 2008 no Brasil, o câncer de pulmão foi responsável por 20.622 mortes, sendo o câncer que mais fez vítimas.

Estômago: Incidência menor em mulheres, no Brasil está entre os 10 tipos de câncer mais frequentes.

Glândula Tireoide: Afeta mais as mulheres do que homens, sendo frequente entre pessoas de 25 a 65 anos .

Ovário: É o tumor gine-cológico mais difícil de ser diagnosticado e o de menor chance de cura.

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100 mil pessoas no Rio de Janeiro, 20 mil em Belo Hori-zonte, 65 mil em São Paulo foram às ruas e 10 mil ocuparam o Congresso Nacional em Brasília. No terceiro dia da Copa das Confederações sediada no Brasil, 17 de junho, 12 capitais fo-ram tomadas por manifestações e cerca de 230 mil pessoas foram protestar.

Após violenta reação e repressão da PM contra as mani-festações do Movimento Passe Livre na cidade de São Paulo, a adesão aos protestos, que já acontecia nas cidades-sede da Copa, tomou proporções nacionais. Segundo o Dossiê publica-do pela Articulação Nacional dos Comitês Populares dos Atin-gidos pela Copa e Olimpíadas (Ancopac), o processo violento protagonizado pelo Estado e pelas entidades responsáveis é um exemplo de descaso com os cidadãos. A população ques-tiona gastos com os Megaeventos enquanto educação, saúde, moradia e outros serviços públicos possuem investimentos precários.

Já foram gastos 27,4 bilhões de reais de recursos públicos e a previsão atual é de que o custo total seja de 33 bilhões de reais, segundo a Articulação. Essa quantia se aproxima do orçamento federal em educação este ano: 38 bilhões de reais. Além deste dinheiro, foi aprovada a isenção de impostos para as construtoras dos estádios e dos campos de treinos nas ou-

tras cidades, que atuarão como apoio à Copa.A Ancopac é composta por diversos movimentos sociais,

universidades e entidades da sociedade civil que se mobiliza-ram nas 12 cidades-sede da Copa. Cada Comitê local das ci-dades-sede demonstra, através de pesquisas e levantamentos, irregularidades na preparação desses Megaeventos esportivos.

A falta de transparência dos gastos aponta para a repeti-ção do que ocorreu durante os Jogos Panamericanos de 2007, quando se assistiu ao desperdício de recursos públicos (de acordo com o Tribunal de Contas da União, mais de R$ 3,4 bilhões foram gastos de forma indevida, como, por exemplo, atrasos em obras). Os estádios superfaturados “se transforma-rão em elefantes brancos.”, afirma Renato Cosentino do Copac – Rio, já que após o término desses eventos eles terão pouca utilidade pública.

Se forem contabilizados os recursos investidos para a re-alização da Copa e das Olimpíadas, “o país poderia diminuir o déficit habitacional, ampliar o acesso aos serviços urbanos básicos, promover melhorias socioambientais, programas de trabalho e renda, investir na saúde pública e na educação”, destaca Cosentino. Além disso, poderia construir uma política esportiva que promovesse o esporte amador, visando não ape-nas o esporte de alto rendimento.

Copa pra quem?Privatização, repressão policial, legislação de

exceções e remoções forçadas caracterizam a preparação dos Megaeventos

TexTo: ana malaco edIção GráfIca: kleITon borGes

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As manifestações em Minas

As manifestações se es-palharam por Minas Gerais. Belo Horizonte, cidade que será sede da Copa em 2014, assistiu durante os protestos o despreparo e a repressão policial. “A Praça Sete e a Ave-nida Antônio Carlos se trans-formaram em verdadeiros campos de guerra”, afirmou Fidélis Alcântara, membro do Copac-BH. A declaração remete ao papel violento da

polícia durante a manifesta-ção que reuniu mais de 70 mil pessoas no dia 22 de junho. O uso indiscriminado de bom-bas de efeito moral e de balas de borracha é um exemplo de como a Polícia Militar e a For-ça Nacional estão “contendo” os manifestantes.

A polêmica declaração do prefeito da capital mineira, Márcio Lacerda, no dia 24 de junho, de que a Polícia Militar “prendeu muito pouca gente” repercutiu entre os manifes-tantes que presenciaram ce-nas de horror na cidade. Se-gundo Fidélis “o prefeito de BH não está preparado para essas questões, assim como

Cuiabá3.200

Brasília2.000

Salvador24.000

Recife12.000

Natal4.000

Fortaleza20.000

Manaus3.600

não está preparado para ad-ministrar a cidade. Ou ele não viu as imagens ou não sabe realmente o que está aconte-cendo”.

O despreparo do Estado representado pela Polícia e pelos Governos Municipais e Estaduais que foram vistos em Belo Horizonte se repetem em outras cidades-sede dos Megaeventos Esportivos. Isso se confirma, segundo Isabela Miranda da Copac-BH, nas diversas declarações dos go-vernantes de todas as esferas. Ainda para Isabela, um dos pontos positivos que surgiu com os protestos, foi que se gerou uma tentativa de or-ganização popular, “pessoas que estiveram pela primei-ra vez nas ruas se sentiram motivadas a continuarem na luta, a se unirem à parcela da população organizada em movimentos que já estava nas

ruas”, completa. O que se vê são diversos

movimentos sociais, sindicais e de direitos humanos, que já estavam nas ruas, convo-cando toda a população em cada estado e cidade-sede. Diversas assembleias popula-res foram e seguiram sendo convocadas pelo país desde junho. Em Belo Horizonte, no dia 23, cerca de mil pessoas discutiram sobre a politização das manifestações embaixo do Viaduto Santa Tereza (no centro da capital). Com mais de cem inscrições de fala, a assembleia, que durou cerca de quatro horas, propôs que a população se organizasse para as próximas manifesta-ções e que pautas e fóruns de discussões fossem criados. O Comitê Popular dos Atingidos pela Copa organizou em cada cidade-sede uma agenda de ações. Os seminários sobre financiamento público e vio-lações de direitos pelos Me-gaeventos, que já aconteciam nessas cidades, são exemplos dessa agenda de ações.

Número de desalojados

equivale a aproximadamente 1000 desalojados

Porto Alegre32.000

Curitiba6.000

Rio de Janeiro38.297

Belo Horizonte14.000

São Paulo 89.200

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nos, que não tem infraestru-tura para garantir acesso a serviços públicos, como es-colas, hospitais e transporte. Além disso, o sentimento de pertencimento e de memória construído ao longo do tempo na antiga moradia é violado, segundo Joviano Mayer, ad-vogado popular e membro do Comitê em BH. “Não é só a casa que se perde na remoção, os laços construídos com vizi-nhos, amigos, a identidade e tradição coletiva da comuni-dade, todo esse sentimento também é violado”, conclui Joviano.

Outra ilegalidade denun-ciada pelos movimentos que

os dados das ocupações não organizadas foram cedidos sem precisão pelos governos, segundo a Articulação.

Dentre os inúmeros casos relatados pelos Comitês Po-pulares da Copa destas cida-des, emerge um padrão claro e de abrangência nacional. A relatora especial da ONU para a Moradia Adequada, Raquel Rolnik, acusou as au-toridades de várias cidades-sede dos Megaeventos de violar os direitos humanos ao praticar essas remoções forçadas. A denúncia da falta de transparência, de diálogo com os moradores e falta de negociação justa com as co-munidades afetadas, entre outras, foram apontadas por um Dossiê apresentado pela Ancopac para a ONU.

As famílias removidas são realocadas em terrenos distantes dos centros urba-

Perde-se a casa e a memória

Grandes projetos urba-nos com violação de direitos econômicos, fundiários, ur-banísticos, ambientais e so-ciais: assim foram as diversas obras públicas de infraestru-tura para preparação do país. Na questão dos impactos sociais, a violação do direito à moradia ganha destaque. Em Belo Horizonte, mais de quatro mil pessoas foram removidas de suas casas, é o que revela Dossiê de Vio-lações de Direitos Humanos. O documento produzido por cientistas sociais, economis-tas, advogados e diversas ou-tras pessoas que fazem parte da Ancopac também revela que em todo o país chega a 200 mil o número de pesso-as removidas e ameaçadas de remoção. Segundo Rena-to Cosentino, do Copac-Rio, o número pode ser ainda maior, já que a pesquisa con-tabilizou apenas os dados de comunidades organizadas. Já

1,53 biRecife

1,61 biFortaleza

1,19 bi

Porto Alegre

1, 98 biCuiabá

1,86 biBrasília

1,24 biSalvador

2,77 biManaus

2,48 biBelo Horizonte

3,6 biRio de Janeiro

4,55 bi São Paulo

1,46 biNatal

748,5 mi

Curitiba

Investimentos

compõem o Comitê em BH é o tratamento violento do Es-tado com moradores de rua. Tratamento que se repete com artesãos de rua e nômades. De acordo com o advogado popular, a violência cometida é resultado de uma “política de higienização”, implantada pelo poder público na capital mineira. A forma violenta uti-lizada para desocupar o cen-tro urbano vai de: caminhão pipa molhando moradores de rua, recolhimento de artesa-nato e matéria prima de artis-

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tasde rua, até colocação de concreto embaixo de viadutos.

Além disso, segundo o advogado Joviano Mayer, houve um aumento das abordagens aos moradores de rua, com a apreensão de pertences pessoais feita por fiscais da prefei-tura, com o apoio da Polícia Militar. Acompa-nhada a essa “política de higienização”, cresce o número de homicídios cometidos contra a população de rua. De acordo com pesquisa re-alizada pelo Centro Nacional de Direitos Hu-manos, nos últimos dois anos em Belo Hori-zonte foram assassinados cem moradores de rua, número que representa 5% da população desse grupo em BH. O estudo ainda revela que 40% dos homicídios foram cometidos com arma de fogo e que apenas quatro dos 100 ho-micídios tiveram investigação concluída.

É proibido trabalhar

Tanto o direito ‘ao’ quanto o direito ‘do’ trabalho estão previstos na Constituição Fede-ral de 1988 como direito fundamental social e regulados, também, em legislações próprias como a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). A despeito de todo esse sistema, po-rém, os casos de graves violações de direitos em nome da Copa do Mundo e das Olimpíadas se acumulam e avançam. A perseguição a líde-res sindicais e o desrespeito às liberdades de organização, greve e manifestação, são exem-

plos dessas violações de acordo com o Dossiê da Ancopac.

Em Belo Horizonte mais de 750 trabalha-dores informais foram destituídos de seus postos de trabalho. São cerca de 6 mil pessoas impactadas direta ou indiretamente, de acor-do com pesquisa produzida pelo Copac-BH. Nenhuma medida compensatória foi tomada até o fechamento desta edição, seja pela Pre-feitura ou pelo Governo do Estado, segundo Vanessa Cevidane, trabalhadora da Feira do Mineirinho que foi diretamente atingida.

Expositores como Vanessa perderam seus postos de trabalho com o fim da Feira do Mi-neirinho que dará lugar a um estacionamento para receber os jogos. O caso também é vivi-do por trabalhadores conhecidos como barra-queiros do Mineirão, que, com a privatização do estádio, foram proibidos de vender seus produtos. “Alguns de nós já estavam ali(no entorno do Mineirão) há mais de 30 anos compondo o cenário cultural e de memória da região.”, relata Ernani Pereira, líder dos movimentos dos barraqueiros do entorno do Mineirão.

Legislação de exceções

Na Lei n. 12.035/2009, entre outras coi-sas, são asseguradas condições excepcionais e privilégios para obtenção de vistos, exercício profissional de pessoal credenciado pelo COI

Foto: ester louBack

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e empresas que o patrocinam. Além de cessão de patrimônio público imobiliário, proteção de marcas e símbolos relacionados aos jogos, concessão de exclusividade para o uso (e ven-da) de espaços publicitários e prestação de vá-rios serviços sem qualquer custo para o Comi-tê organizador das Olimpíadas. A Lei também autoriza genericamente “destinação de recur-sos para cobrir eventuais déficits operacionais do Comitê Organizador”. Conhecida como “Ato Olímpico” essa Lei é a primeira de uma longa lista de medidas legais e normativas que instauram as bases de uma institucionalidade que não pode ser compreendida senão como uma infração ao estado de direito vigente.

Desde o anúncio de que o Brasil seria sede desses Megaeventos, nos níveis federal, esta-dual e municipal, uma interminável lista de leis, medidas provisórias, decretos, resoluções, portarias e atos administrativos de vários tipos instauraram o que vem sendo chamado de “ci-dade de exceção”. Permitir que estados e mu-nicípios se endividassem além do exigido pela Lei de Responsabilidade Fiscal para se inves-tir em obras da Copa, abreviar licenciamento ambiental e dispensar licitações, são uns dos muitos exemplos que configuram a legislação de exceção para cumprir as exigências da Fifa.

O poder público também criou um aparato especial de policiamento (Secretaria Extraor-dinária de Segurança para Grandes Eventos, Decreto n. 7.556/2011). Para complementar o cenário de exceção, uma nova tipificação pe-nal e juizados especiais são previstos na Lei Geral da Copa. De acordo com o Dossiê de Violação de Direitos Humanos, “para um país que há menos de 30 anos estava submetido à ditadura, a violação sistemática de nossa lega-lidade e a implantação da cidade de exceção constituem legados inaceitáveis.”.

Como exemplo, foi aprovado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no último dia 12 de junho, a proibição de movimentos e atos públicos para todo e qualquer indivíduo du-rante a Copa do Mundo. Além disso, está em tramitação o Projeto de Lei 728/2011que prevê que manifestações durante a Copa das Confe-derações e a Copa do Mundo sejam tratadas como atos de terrorismo. O PL também pre-vê a limitação ao direito dos trabalhadores à greve.

A Copa não é nossa

O Brasil é conhecido internacionalmente como país do futebol. Essa identidade cultu-ral presente nos brasileiros foi historicamen-te construída. A simplicidade do futebol no improviso do informal, quando o povo pode jogar até mesmo com uma bola de meia, fez desse esporte uma paixão nacional, segundo o professor de Direito da UFMG, Márcio Túlio Viana. O acesso aos estádios era outra marca cultural na relação com o esporte.

Algo que chamou atenção nas obras dos

Foto: ester louBack

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estádios foi a redução da capacidade de torcedores no Mara-canã. Construído para a primeira Copa do Mundo realizada no Brasil, em 1950, com capacidade oficial de 155 mil pessoas, o estádio do Maracanã era conhecido como o “Maior do Mun-do”. Consagrou uma divisão setorial que já era encontrada nos principais estádios: Geral, arquibancada, cadeiras numeradas, camarotes e tribuna de Honra, esta última reservada para au-toridades e personalidades. Se por um lado este desenho era uma representação da segregação econômica, social e política do país, por outro, garantia a participação de todos na plateia do mesmo espetáculo. Na partida final da Copa de 1950, regis-tros dão conta de que cerca de 203 mil brasileiros estavam no Maracanã e viram o Brasil ser derrotado pelos uruguaios. A di-visão também garantia a participação de torcedores de classes baixas e médias. Somadas, arquibancadas e geral acomodavam 80% do público.

Mas o futebol de Garrincha já não é o mesmo de acordo com o pesquisador. O que se tem visto na preparação desses Megaeventos também atinge imposições culturais. O processo de privatização dos estádios e as recomendações da Fifa reduzi-ram ou extinguiram lugares populares nos estádios, ampliando camarotes e lugares marcados. A Fifa também impôs padrões de comportamento aos torcedores, o que muda toda a cultura de alegria e participação da torcida brasileira. Exemplos disso são: plateia sentada, proibição das baterias percussivas e dos bandeirões aos quais a torcida está acostumada. Para Marco Túlio Viana, as consequências são inestimáveis, imensuráveis e de difícil reparação. “A cultura, os costumes, a criatividade e a forma de se organizar e manifestar dos torcedores brasilei-ros estão sendo violentamente impactados e transformados”, diagnostica o pesquisador

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Mariana possui o índice de pobreza elevado se comparado a Belo Horizonte, mesmo que com uma grande arrecadação para o porte da cidade. Confira o infográfico completo com mais in-formaçoes em nosso site.

Curingaonline

www.revistacuringa.ufop.br

Área

330,95Km

1193,29Km

População

54.219

2.375.151

Belo HorizonteMariana

5,43%

32,06%

Incidência de Pobreza

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www.revistacuringa.ufop.br

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