22
ARTE DA CRÔNICA IVAN ANGELO HUMBERTO WERNECK LUÍS HENRIQUE PELLANDA revista da 2012 2

Revista da Arquipélago 2

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Segunda edição da Revista da Arquipélago, publicação sobre os livros e os autores da Arquipélago Editorial.

Citation preview

ARTE DA CRÔNICA

IVAN ANGELO HUMBERTO WERNECK LUÍS HENRIQUE PELLANDA

revista da

20

12

2

REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 3

O encontro do jornalismo com a literaturaEsta segunda edição da Revista da Arquipélago não poderia ter outro assunto de capa. O lançamento da coleção Arte da Crônica é um marco na história da editora ao dar vazão a um antigo desejo da nossa equipe: ampliar a linha editorial sem desa-justar o foco. Explico: desde o co-meço da trajetória da Arquipélago, buscamos manter como principal vertente a publicação de livros de não ficção, especialmente reporta-gens e ensaios. O universo jornalís-tico é vasto e ainda temos muito o que fazer nesse campo. Ainda assim, sentíamos falta de editar literatura. E a crônica é, por excelência, o gê-nero que faz a ponte entre esses dois mundos. Em geral nascida nos jor-nais e revistas, a crônica é o cotidia-no transformado em literatura.

Na preparação da reportagem de capa, o jornalista Tomás Adam entrevistou os três primeiros au-tores da coleção: Ivan Angelo, Humberto Werneck e Luís Henri-que Pellanda. Além de apresentar as obras desses craques, a matéria também discute o panorama da crônica brasileira hoje, a relação do gênero com o jornalismo e o seu papel numa imprensa que parece reservar cada vez menos espaço para a subjetividade.

* * *A crônica também é um dos as-

suntos da entrevista com o profes-sor Luís Augusto Fischer. O mote é a comemoração do centenário de nascimento de Nelson Rodrigues. Mais conhecido por sua produção

Uma publicação da Arquipélago Editorial

Conselho editorial:Cristiano Ferrazzo

Fernanda Nunes BarbosaTito Montenegro

Edição:Tito Montenegro

Reportagem: Tomás Adam

Capa:Humberto Nunes/Lume Design

Apoio:Gráfica PallottiLume Design

APRESENTAÇÃO

NESTA EDIÇÃO

4 UNIVERSO ARQUIPÉLAGO

6 COLEÇÃO

Os novos livros de crônicas de Ivan Angelo, Humberto Werneck e Luís Henrique Pellanda

12 ENTREVISTA

Luís Augusto Fischer, autor de Inteligência com dor, fala sobre o centenário de Nelson Rodrigues

14 DEGUSTAÇÃO

Leia trecho do livro Entretanto, foi assim que aconteceu, do repórter Christian Carvalho Cruz

18 ARTIGO

Os Aforismos, de Karl Kraus, por Pedro Gonzaga

20 LIVRO-OBJETO

O design de Paola Manica para o livro Operação Portuga

revista da

Nº 2 · 2012

PAU

LIN

HO

SILV

AFE

RNA

ND

A B

IGIO

DAV

OG

LIO

dramatúrgica, que inclui peças como Bonitinha mas ordinária e Vestido de noiva, ele também era um exímio cronista. É justamente essa faceta do trabalho do escritor que Fischer analisa em seu livro In-teligência com dor. Para o professor, as crônicas de Nelson se aproxi-mam do ensaio, gênero inventado pelo francês Michel de Montaigne.

Outro destaque da edição é a reportagem “A princesa que toma-va ônibus”, do jornalista Christian Carvalho Cruz. Incluído no livro Entretanto, foi assim que aconte-ceu, o texto foi agraciado com o Prêmio Estado de Jornalismo 2011 na categoria “perfil ou entrevista”. Parabéns ao Christian. E uma boa leitura para você!

Tito Montenegro

REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 4

A jornalista mais premiada do paísA repórter Eliane Brum, autora do livro A vida que ninguém vê, é a jor-nalista mais premiada do Brasil, de acordo com ranking elaborado pelo site Jornalistas & Cia e divulgado no final de 2011. O levantamento con-sidera não apenas a quantidade total de prêmios, mas também a impor-tância de cada distinção. Em segun-do lugar aparece Miriam Leitão e, em terceiro, Caco Barcellos.

O histórico de Eliane Brum re-almente impressiona. São mais de quarenta prêmios nacionais e inter-nacionais de reportagem. Entre eles, destacam-se os prêmios Rei da Espa-nha, Esso e Vladimir Herzog. For-mada pela PUC do Rio Grande do Sul, Eliane começou no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, onde foram publicadas as histórias de A vida que

O jornalista e escritor Ivan An-gelo, autor de Certos homens, é o mais novo ministrante da Oficina de Escrita Criativa. Durante o ano de 2012, ele vai comandar a oficina de não ficção. No ano passado, esse mesmo curso foi ministrado por Humberto Werneck, autor de O pai dos burros e Esse inferno vai acabar. A Oficina de Escrita Criativa, loca-lizada em São Paulo, foi criada em 2010 pela jornalista e dramaturga Rosângela Petta e tem como ob-jetivo profissionalizar a atividade autoral.

Além do módulo de não ficção, a oficina oferece uma adaptação do conceituado curso de ficção que o escritor Luiz Antonio de Assis Bra-sil (na foto, com um grupo de alu-

UNIVERSO ARQUIPÉLAGO

Infantil, coordenado por Cláudio Fragata. Para mais informações so-bre inscrições e processo seletivo, acesse o site: www.oficinadeescritacriativa.com.br.

A VIDA QUE NINGUÉM VÊEliane Brum208 páginas | R$ 35,00

ninguém vê — livro que lhe rendeu um outro prêmio, o Jabuti de 2007 na categoria Reportagem. Vivendo em São Paulo desde 2000, ela foi re-pórter especial da Época. Atualmen-te, escreve uma coluna semanal para o site da revista.

nos) mantém há 27 anos na PUC do Rio Grande do Sul. Entre os cursos que ocorrem durante o ano estão os tutoriais de Conto, ministrado por Ronaldo Bressane, e de Livro

Escritor Luiz Antônio de Assis Brasil também está na oficina

Ivan Angelo na Oficina de Escrita Criativa

Compre pela loja virtual: www.livrariaarquipelago.com.br

lum

edes

ign.

com

.br

Cilon Cunha Brum foi visto pela última vez em 9 de junho de 1971. Militante comunista, deixou para trás

a faculdade e uma carreira promissora para combater o regime militar na chamada Guerrilha do Araguaia.

Cilon nunca voltou da selva. Seu sumiço foi encoberto pela mesma névoa de segredo e temor que a de

outros desaparecidos políticos. Mas ele nunca foi – nem poderia ser – esquecido. Antes do passado

ilumina um momento crucial da história brasileira pelo ponto de vista do núcleo familiar, sem cair nas

armadilhas do interminável embate ideológico entre esquerda e direita, civis e militares, vítimas e algozes.

Durante vinte anos, Liniane refez o percurso do seu tio Cilon, revirando arquivos e entrevistando todos

que o conheceram. O resultado é uma prosa ao mesmo tempo cortante e poética, revelando uma história

de família que é também a história de um país inteiro.

UMA HISTÓRIA DE FAMÍLIA. E TAMBÉMA HISTÓRIA DE UM PAÍSINTEIRO.

Cilon Cunha Brum foi visto pela última vez em 9 de junho de 1971. Militante comunista, deixou para trás

UMA HISTÓRIA DE FAMÍLIA. E TAMBÉMA HISTÓRIA DE UM PAÍSINTEIRO.

REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 6

A ARTE DA CRÔNICANova série da Arquipélago Editorial apresenta alguns dos melhores cronistas contemporâneos

Ivan Angelo foi flagrado apanhan-do pitangas na calçada de uma rua de seu bairro. Tentando ignorar quem passava ao lado, impávido, o escritor colhia os frutos. “Gordas pitangas, de cores variando do ver-melho ao roxo.”

A imagem traz em si boa parte dos elementos que formam uma crônica. Há, na sua essência, um tema aparentemente prosaico. Tam-bém está ali certo grau de nostalgia: afinal, no meio de uma cidade, tirar frutas direto do pé já não é mais algo tão corriqueiro quanto outro-ra. Adicione a isso o fato de ser uma história pessoal, contada em pri-meira pessoa e salpicada com um leve senso de humor. Voilà.

O caso das pitangas está em Certos homens, terceiro e mais re-cente volume da série Arte da Crô-nica, na qual a Arquipélago Edito-rial apresenta o trabalho de alguns dos principais cronistas brasileiros contemporâneos. Em seus textos, Angelo trata dos mais variados as-suntos — desde a funcionalidade dos bolsos de uma calça até a mal-dição de abril, o mais cruel dos me-ses — com o mesmo lirismo que o consagrou como romancista.

E é em seus trabalhos de ficção que o escritor busca a inspiração, e até o método para as crônicas. “Trabalho a crônica como literatu-

se nós recheamos pedaços de reali-dade com pedaços de nós mesmos? Crônica pode ser ficção, recorte do cotidiano, memória, reflexão, você pode criar um personagem narra-dor de suas emoções”, relata.

O local como denominador comum

Coincidência ou não, Ivan Angelo nasceu em Barbacena, Minas Ge-rais. O acaso está no estado natal: são mineiros alguns dos mais im-portantes nomes da crônica bra-sileira. A tradição passa por Hélio Pellegrino, Fernando Sabino, Car-los Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Re-sende. E o mais célebre de todos, Rubem Braga, embora capixaba, viveu em Minas durante parte de-cisiva dos anos de sua formação, quando escrevia nas páginas do fi-nado Diário da Tarde.

Justo, portanto, que a Arte da Crônica desse espaço a mais um mineiro. É de Humberto Werneck outro número da coleção, Esse in-ferno vai acabar. Mesmo vivendo há mais de quarenta anos em São Paulo, o belo-horizontino dedica boa parte de seus textos ao lugar onde nasceu e se criou. “É natural, e até fatal, que aquele começo da minha vida tenha deixado em mim

ra, e isso quer dizer: como um poe-ma, como um conto, como um ro-mance”, disse Angelo, em entrevista à Revista da Arquipélago. “A quali-dade literária eu pretendo que seja a mesma. Os processos de criação é que são diferentes. O romance toma anos de concentração e aper-feiçoamento. A crônica toma um dia, dois, às vezes uma semana.”

O autor de A festa e Amor?, am-bos vencedores do Prêmio Jabuti, não se furta em lançar mão de al-guns elementos ficcionais para es-crever suas crônicas. Para ele, é le-gítimo haver uma “licença poética” que dê poderes ao cronista inventar personagens e histórias sem maio-res constrangimentos. “E daí que as histórias sejam inverídicas? E daí

COLEÇÃO

CERTOS HOMENSIvan Angelo208 páginas | R$ 35,00

MA

RCEL

O M

IN

POR TOMÁS ADAM

REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 7

Então, retomando o início: vinha eu de volta do supermercado, com dois saquinhos de compras miúdas, caminhando atento às armadilhas das calçadas, quando vi, no chão, o cenário perturbador: pitangas caídas, maduras, vítimas de algum vento da manhã, muitas delas comidas pela metade, quantidade de caroços limpos de frutinhas já degustadas... Olhei para o alto: afe! Pé carregado, de vermelhas e roxas. Ali adiante, outro pé, igual!

Foi automático: passei as compras de um saquinho do supermercado para o outro e comecei a colheita. Dava-me o prazer de escolher as mais bonitas. Quando ficaram mais difíceis,

“Ivan Angelo é cronista da revista Veja São Paulo desde 1999

apanhei uma vassoura velha numa caçamba de demolição ali perto e com ela vergava os galhos mais altos, engordando o saquinho. Geleia rende pouco e a fartura de matéria-prima me empolgava. Nesse momento passava de carro um ex-colega de jornal, que me reconheceu e parou. Me senti ridículo. Já estava ensaiando explicações, longas talvez, que nos cansaria os dois, quando ele cortou:

– Maravilha! Eu sempre quis fazer isso e nunca tive coragem!

Desceu do carro e me ajudou.

[Trecho da crônica Pitangas, ou explicações para um ato impensado, de Ivan Angelo.]

lembranças fortíssimas. Lembran-ças que, mesmo sem saudosismo, volta e meia vêm à tona”, conta.

Completa o trio inicial da cole-ção Arte da Crônica o paranaense Luís Henrique Pellanda, que assi-na Nós passaremos em branco. Nas crônicas do escritor, fica ainda mais acentuada a importância de um de-terminado local físico como ponto de partida das histórias. De fato, a cidade de Curitiba parece ser um denominador comum às diferentes personagens que habitam o livro.

Seja morando em São Paulo, Nova Iorque ou Vacaria, o leitor de Nós passaremos em branco acaba-rá familiarizado com logradouros como Ébano Pereira, Saldanha Ma-rinho, Boca Maldita, Praça Osório e Ermelino de Leão — locais da re-gião central de Curitiba que, além

REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 8

de cenário da maioria das crônicas, foram representados pelo ilustrador Simon Ducroquet em um mapa no final do volume. Pellanda avalia que essa abordagem quase cartográfica não deve ser levada tão ao pé da le-tra: “Nomes de ruas, praças e aveni-das às vezes servem para aumentar a carga de veracidade de uma his-tória, fortalecem o tal pacto entre a crônica e quem a lê. Mas cada pes-soa, seja ela paranaense, carioca, russa ou nigeriana, também desen-volve sua maneira individual de ler e interpretar qualquer livro.”

O lugar da crônica na imprensa

Outro aspecto que une os três au-tores da Arte da Crônica é a pas-sagem pelo jornalismo. O ambiente das principais redações do país é mote de várias das crônicas publi-cadas nos volumes. Isso não signi-fica, no entanto, que o retrato delas seja muito positivo — que o diga Humberto Werneck e suas histó-rias do que ele chama de “clínicas de envelhecimento precoce”.

Ivan Angelo, que desembarcou em São Paulo em 1965 para traba-lhar no Jornal da Tarde, acredita que a escrita factual dos jornais e a poe-

sia da crônica andam juntas, mesmo que por conveniência. “Não é que as redações produzam histórias que viram crônicas. Escrever é o que o cara sabe fazer. Surge a oportunida-de de ganhar um dinheirinho extra usando uma habilidade que ele já tem. Por que não?”, questiona.

A rotina de um repórter que faz da narração de histórias um exercí-cio diário é, na visão de Luís Hen-rique Pellanda, o ponto de partida para treinar o olhar de um cronis-ta. “Nas redações, somos postos diariamente em contato com todo tipo de histórias, boas ou ruins. Ao abordá-las e registrá-las por escri-

ESSE INFERNO VAI ACABARHumberto Werneck192 páginas | R$ 34,00

to, somos obrigados a treinar não apenas o nosso texto, a nossa habi-lidade de escrever, mas também o nosso discernimento em relação às coisas do mundo” aponta.

Se as redações produzem bons cronistas, muito também se dá pelo tradicional espaço concedido pelos veículos brasileiros às crônicas. No caso dos textos agora publicados pela Arquipélago, eles tiveram uma primeira vida em revistas, jornais e até mesmo em sites. Ivan Ange-lo é cronista com espaço quinze-nal na Veja São Paulo. Humberto Werneck é cronista dominical de O Estado de S. Paulo. Luís Henrique

COLEÇÃO

Humberto Werneck escreve todo domingo no jornal O Estado de S. Paulo

LILO

CLA

RETO

REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 10

LUC

IAN

A T

HO

COLEÇÃO

NÓS PASSAREMOS EM BRANCOLuís Henrique Pellanda192 páginas | R$ 34,00

Pellanda é o representante da inter-net: suas crônicas foram publicadas originalmente no site Vida Breve, projeto coordenado por ele e pelo também jornalista Rogério Pereira.

Diante de tantas formas de pu-blicação, haveria alguma mídia mais adequada para o gênero? Fiel à tradição impressa, Werneck diz que a crônica “é uma benvinda con-tramão na imprensa de papel”. Isso porque ela traz um respiro à tempo-ralidade característica das notícias. “Não tenho dúvida de que o leitor, em meio à aridez da imprensa de papel, com suas notícias quase sem-pre ruins, gosta de encontrar de re-pente um oásis de subjetividade — assim como gosta de encontrar tons assumidamente pessoais em meio a uma prosa que faz o possível para ser impessoal”, aponta.

Um oásis virtual de subjetivi-dade, pode-se dizer, foi o papel re-presentado pelo Vida Breve. Assim como nos jornais e revistas, a in-ternet reserva muito mais espaço à dureza do noticiário e ao espetáculo

das celebridades do que à literatu-ra. Durante seus quase dois anos de existência, o Vida Breve publi-cava todos os dias uma crônica de um autor diferente, acompanhado por uma ilustração. O site, segun-do Pellanda, comprova que o texto tem valor pelo que é, e não pelo su-porte onde é publicado. “Há quem diga que a internet não serve para a crônica, como já se disse que o livro não servia. Alceu Amoroso Lima dizia que a crônica, num livro, era como um ‘passarinho afogado’. Bem, essas ideias caem por terra, não caem?”, pergunta.

Resistência contraa barbárie

Unidos em torno da série Arte da Crônica, Ivan Angelo, Humberto Werneck e Luís Henrique Pellanda pertencem a gerações diferentes, mas representam o que há de mais relevante na produção brasileira do gênero neste início de século. Desde a chamada época de ouro da crô-

Luís Henrique Pellanda foi um dos criadores e editores do site de crônicas Vida Breve

Clique aqui para assistir ao booktrailer do livro Nós passaremos em branco, dirigido por Rodrigo Stradiotto.

nica, o panorama da comunicação mudou, e, com isso, os textos vêm se adaptando. “O mundo, hoje, evi-dentemente já não é o mesmo dos anos 50 e 60, quando a revista Man-chete, por exemplo, semana após semana, servia ao leitor nada me-nos de quatro crônicas de primeira ordem. Nos meios de comunicação, para o bem e para o mal, num mo-vimento inexorável, a objetividade tomou quase todo o espaço da sub-jetividade”, lamenta Werneck.

Apesar dessa tendência, ainda há lugar para esse gênero essencial-mente brasileiro. “Cada cronista, sendo bom, encontrará seus leito-res”. O diagnóstico de Luís Henri-que Pellanda revela muito sobre a atual situação da crônica. Mesmo que os rumos do jornalismo te-nham afastado o noticiário da lite-ratura, a crônica resiste. Segue não apenas viva, mas cada vez mais necessária. Talvez para provar que, mesmo num mundo em que a pres-sa atropela, colher pitangas numa grande cidade e contar essa história aos leitores é a melhor maneira de enfrentar a barbárie.

REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 11

REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 12

Um indivíduo em criseNo centenário de Nelson Rodrigues, Luís Augusto Fischer celebra as qualidades que fazem o escritor relevante até hoje

Aos jovens que lotavam passeatas, liam Sartre, pregavam amor livre e transgrediam convenções, Nelson Rodrigues apresentava um lacônico conselho: “— Envelheçam!”. Essa relação tortuosa entre a ascendên-cia da contracultura e o rabugento reacionarismo do escritor foi tema de boa parte de suas crônicas – face pouco lembrada de uma obra onde a dramaturgia sempre recebeu maior atenção e louvor. Transcendendo as páginas de jornal onde foram pu-blicados, esses textos ganham uma dimensão ainda mais profunda e atemporal quando lidos hoje. É o que defende o professor Luís Augusto Fischer em Inteligência com dor: Ro-drigues foi mais do que um cronis-ta; ele era um verdadeiro ensaísta de seu tempo. Nesta entrevista, Fischer relembra alguns aspectos da obra do escritor pernambucano, cujo cente-nário é comemorado em 2012.

A celebração de um centenário cos-tuma aumentar o reconhecimento em torno da obra de um escritor. Na sua opinião, a obra de Nelson Rodri-gues já é merecidamente valorizada no Brasil?Creio que não ainda. Como drama-turgo sim, me parece que as coisas estão no devido lugar. Mas como cronista e ensaísta, ele parece ser ainda tomado como um mero es-quisito, um peculiar, um extrava-

gante, quando em seu texto há bem mais que isso — há todo um depoi-mento profundo sobre a experiência de ser brasileiro e um ocidental em seu tempo, de estar vivo e pensando no auge da Guerra Fria. Por isso o centenário pode ser uma boa opor-tunidade de levar mais gente a lê-lo.

E no exterior? Paulo Francis dizia que Nelson Rodrigues só não entrou no cânone teatral porque escrevia em português, língua pouco falada em outros países. O senhor concorda?Claro que sim. E essa condição é mais notável ainda a respeito de seu ensaísmo, gênero que depende mais da língua do que o teatro. Digamos que neste gênero ele sobrevive fácil à tradução — ainda que talvez falte algo, em outra língua, do coloquial

que ele alcançou estetizar em portu-guês brasileiro. Mas no ensaio a coisa é bem mais complicada, porque o gê-nero de Montaigne é muito profun-damente dependente do ritmo, das nuanças da língua em que é escrito.

Nelson Rodrigues era politicamente incorreto e conservador, uma heresia nos meios intelectuais de sua épo-ca. Ele era a antítese do “radicalismo acadêmico típico de assembleia es-tudantil” presente na Universidade, como o senhor mesmo relatou em um dos textos de Filosofia mínima. As posições políticas de Rodrigues ainda causam algum tipo de precon-ceito na academia? O escritor é tão estudado quanto deveria ser?Isso que tu chamas heresia de fato descreve bem o que aconteceu com sua obra entre, digamos, 1968 e sua morte, em 1980. Talvez tenha se agravado depois, até nossos dias, em função da maior presença da tal correção política nos meios intelec-tuais. Hoje me parece que vivemos ainda sob o signo dessa rejeição a ele por razões ideológicas. Pode ser que a prevenção anti-Nelson se dê hoje por motivos diferentes do que a de uma geração atrás – antes porque ele apoiava a ditadura e sacaneava a esquerda, hoje porque ele generaliza demais em seus juízos, sem ressalvar nada, uma espécie de crime em nos-sos tempos. De forma que ele é pou-

ENTREVISTA

INTELIGÊNCIA COM DOR Nelson Rodrigues ensaístaLuís Augusto Fischer 336 páginas | R$ 39,00

POR TOMÁS ADAM

REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 13

co estudado, sim: mais que vinte anos atrás, porque parece que em faculda-des de Jornalismo ele ganha certo destaque por sua crônica de tema es-portivo, mas menos do que merece.

Justamente por suas opiniões fortes, muitas crônicas de Nelson Rodrigues têm fortes aspectos temporais - fa-lam de acontecimentos da época em que foram escritos. Esses textos en-velheceram bem?Questão sempre delicada. Minha resposta modula a tua pergunta: lidos em conjuntos, os livros prin-cipais dele na área da crônica reve-lam, mais do que um conservador ou um reacionário, a agonia de

um indivíduo dos velhos tempos, anteriores à especialização no jor-nalismo, anteriores à massificação cultural norte-americana, anterio-res à banalização da violência. Ele resulta ser uma vez forte no teste-munho dessas passagens históri-cas, sempre na defesa intransigente de sua individualidade. Vistas em conjunto, de modo a constituírem mais do que um conjunto de pal-pites e excentricidades, suas crô-nicas, para fazer uma imagem, são uma espécie forte de narrativa, o romance da agonia de um indiví-duo. E considerando assim, as re-ferências circunstanciais perdem força, para dar lugar a esse grande

Karl Kraus retratado por Trude Fleischmann, em 1928

FERN

AN

DA

BIG

IO D

AVO

GLI

O

personagem: ele mesmo, um indi-víduo em crise com a massificação, lutando agonicamente para manter sua cabeça sobre os ombros.

Dramaturgo, ensaísta, cronista, jor-nalista, contista ou romancista: qual Nelson Rodrigues ficará para os pró-ximos 100 anos?Suspeito que será cada vez mais o dramaturgo. O narrador de contos e romances permanecerá como um caso, mais do que como um estilo. E o ensaísta, o cronista, o memorialista e em parte o jornalista permanecerá como uma espécie de segredo, com-partilhado por não muitos — como, de resto, ocorre com Montaigne.

LEIA TAMBÉM Conheça outras obras de Fischer lançadas pela Arquipélago

MACHADO E BORGES E outros ensaios sobre Machado de Assis288 páginas | R$ 37,00

FILOSOFIA MÍNIMALer, escrever, ensinar, aprender336 páginas | R$ 42,00> Clique aqui assista a vídeo em que Fischer fala sobre “Inteligência com dor”

REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 14

A princesa que tomava ônibus

DEGUSTAÇÃO

A reportagem a seguir, de Christian Carvalho Cruz, foi a vencedora do Prêmio Estado de Jornalismo na categoria “melhor perfil ou entrevista”. Este é um dos 23 textos que compõem o livro Entretanto, foi assim que aconteceu

Na quinta-feira, ao sair bem cedo de sua residência no Pacaembu, em São Paulo, D. Bertrand Januá-rio Maria José Pio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orleans e Bra-gança, caso se dispusesse a dar uma respirada mais audaz, breve que fosse, sentiria aquele cheiro azedo de amônia a lhe conspurcar as nari-nas. Mas ele tinha mais o que fazer. Dois pares de horas depois, como chefe interino da Casa Imperial do Brasil, foi recebido com pompa na Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, no centro do Rio de Janeiro. Adentrou a nave escoltado por 12 cadetes do Batalhão do Im-perador, imaculados e imóveis em suas casacas azuis, luvas brancas, chapéus de penacho e “sentido”, “apresentar armas” e “descansar” de praxe. Era a missa de sétimo dia da mãe de D. Bertrand: Sua Alteza Imperial e Real, D. Maria Elizabe-th Francisca Teresa Josefa de Wit-

telsbach e Croÿ-Solre de Orleans e Bragança — D. Maria da Baviera, na corte; Princesa-Mãe, no popular.

D. Maria expirou às 13h da sex-ta-feira 13, aos 96 anos, “confortada com os sacramentos da Santa Igreja”, conforme o anúncio fúnebre que a família fez publicar na seção de fa-lecimentos do Estado. Nascida em um castelo em Munique e neta do último monarca alemão a governar, o rei Luís III, ela ingressou na histó-ria do Brasil pelo altar. Em 1937, no mesmo castelo, foi desposada pelo príncipe Pedro Henrique, francês de nascimento, neto da Princesa Isabel. Ela estava com 22 anos. Ele, com 28. Antes, noivaram um ano e pouco para se conhecer melhor. Sem direi-to a pegar na mão, mas com passeio de veleiro pelos lagos bávaros, como prova o álbum de fotos da família.

Fazia cinco anos e meio que D. Maria, vítima de problemas cardí-acos, não deixava seu apartamento

de quatro quartos na Lagoa. Na noi-te anterior, ela recebera a extrema--unção do padre Jorjão (requisitado casador e batizador de celebridades cariocas) e, quando chegou a hora, estava cercada por 11 de seus 12 filhos, que rezavam o terço. O pri-mogênito D. Luiz Gastão Maria José Pio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orleans e Bragança, de 73 anos e adoentado em São Paulo, não pôde comparecer às exéquias, daí ter sido sempre representado pelo irmão D. Bertrand, o segundo na linha suces-sória ao trono brasileiro, se um tro-no existisse.

A escolha da Antiga Sé para a cerimônia tem significado. Ali D. Pedro I foi coroado imperador e contraiu matrimônio. Duas vezes. D. Pedro II foi batizado, casado e coroado. E a Princesa Isabel se uniu ao Conde d’Eu. No cais lá adiante, onde agora aportam as barcas tra-zendo o poviléu (também chamado

trabalhadores) de Niterói todas as manhãs, D. João VI desembarcou fugindo de Napoleão, em 1808. Pois foi nesse pedaço de pátria que D. Bertrand saltou do carro e se dirigiu apressado à porta da frente da cate-dral. Se tivesse desviado o olhar para sua direita teria visto um grupelho de súditos que, coçando a barri-ga uns, chupando laranja outros, liam as manchetes penduradas na banca de jornal. “Louraça belzebu sofreu violência sexual aos 7 anos”, informava o Meia Hora. “Amante de Loura Fatal pode não ter sido es-trangulado”, contava o Extra!. “Ro-naldinho leva R$ 80 mil para brin-car de foca”, espantava-se o Expresso da Informação. E, depois, quando Suas Altezas lamentam a “perda de valores da sociedade brasileira”, vêm uns esconjurados fazer troça...

“Quem são os exemplos de no-breza desses nossos dias? Rainha Xuxa? Adriano Imperador?”, invo-ca o advogado Antonio Gameiro, diretor do Círculo Monárquico do Rio, conglomerado de simpati-zantes da causa monarquista e, na presente ocasião, encarregado do cerimonial da missa. Ele está certo de que a salvação desse Brasilzão de pobres-diabos está na restaura-ção da coroa. Garante que quando esse dia chegar não se torrará um tostão nem a paciência do erário. A capital do império permanecerá em Brasília e, a despeito da feiura dos prédios do Niemeyer, que se há de fazer?, o imperador ocupará um dos palácios lá existentes — o Alvorada, de preferência, poden-do o primeiro-ministro se abole-tar no Planalto.

Na sacristia, um ordeiro vai-vém leva flores para lá e traz cas-tiçais para cá. Alguém quer saber se deve usar a âmbula grande para as hóstias. “Não precisa. Pode ser a pequena, mas enche até a boca”, instrui o professor de coroinhas Leandro Pereira, da Juventude Monarquista. É fácil distinguir os monarquistas derredor. Eles ves-tem ternos escuros e carregam o brasão da Família Imperial na la-pela. Falam mui educadamente e não exageram nos gestos — o que significa não fazer gesto nenhum, a maior parte do tempo. Tratam os príncipes e as princesas (juntando aí os 12 filhos, 25 netos e três bis-netos de D. Maria) por Sua Alteza, lhes dão sempre Dom e Dona, não importando a idade, e os cumpri-mentam com uma reverência, das pequenas: leve baixar de cabeça. Mas, acima de tudo, eles defen-dem a Família Imperial até no que ela não tem culpa. “Dom Luiz, o herdeiro do trono, contraiu pólio quando criança e se encontra de-bilitado, por isso não veio. Entre-

tanto, você deve considerar que naquela época não havia vacina para a doença”, ressalva Pedro An-drade Corrêa de Brito, presidente da Juventude Monarquista.

O rapaz deixa o pescoço cair respeitosamente e dá um passo atrás quando D. Bertrand se apro-xima trazendo o irmão, D. Antônio, terceiro na linha, para falar da mãe. Ele conversa baixinho e, traço co-mum nos Orleans e Bragança, tem um capricho natural na formulação das frases. “Mamãe teve trabalho comigo, fui uma criança teimosa”, ele começa, leve sotaque carioca. “Punha-me de castigo, proibindo--me os passeios a cavalo quando eu não entregava o dever de casa. Ela fazia questão de que arrumássemos nossas camas e passava para inspe-cionar. Estimulava uma pequena competição para ver quem deixava menos rugas no lençol”, continua. “Gostava demais da fazenda em Vassouras (interior do Rio), mas quando se mudou para a capital depois da morte de papai, em 1981, tomava ônibus para ir fazer o servi-ço social de que gostava tanto, que era dar aulas de pintura em porce-lana em uma entidade assistencial. E, primordialmente, jamais deixou de nos dizer que um monarca não se pertence, pertence à nação. Que estivéssemos prontos.”

Igreja cheia, sem viv’alma em mangas de camisa, a missa vai ter-minando. A família se reunirá mais uma vez no apartamento da falecida para um almoço. Degustarão es-trogonofe de filé mignon e pudim de leite condensado como sobre-mesa. Um pequeno convescote de

ENTRETANTO, FOI ASSIM QUE ACONTECEU Quando a notícia é só o começo de uma boa históriaChristian Carvalho Cruz184 páginas | R$ 34,00

REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 16

50 talheres. Antes, porém, os netos sobem ao altar para prestar a últi-ma homenagem à “vó Maria”. Lem-bram de como gostavam de caçar os ovos cozidos que, na Páscoa, D. Maria pintava à mão e escondia na propriedade. À saída, os 11 filhos se perfilam, D. Bertrand à frente, para receber os pesares “analógicos”, já que no anúncio fúnebre publicaram o e-mail condolê[email protected] a fim de recebê-los digitalmente também. Lá se vai mais de uma hora para atender a todos, entre eles as três enfermeiras que nestes últimos cinco anos e meio se revezaram para assistir D. Maria

em campos de concentração. “Ela falava para não nos preocuparmos, pois a Divina Providência não aban-dona as famílias numerosas. E assim foi. Jamais nos faltou o essencial, tampouco nos sobrou para luxar”, rememorava D. Bertrand na casa do Pacaembu, enquanto uma procissão de súditos de outro monarca, D. Ed-son Arantes do Nascimento Primei-ro e Único, enchia a rua a caminho do estádio para ver Santos x Once Caldas pela Libertadores. Fácil ou-vir a turba pela janela.

D. Bertrand mora ali com D. Luiz, de aluguel. Casa não muito grande e seca de afetação. Eles não

no apartamento da Lagoa, 24 ho-ras por dia. “Antes de piorar, o que aconteceu de seis meses pra cá, ela lia muito, sempre em alemão, trico-tava e, todas as tardes, às seis horas, via DVDs de ópera e de balé”, conta Márcia de Jesus de Souza. “Nunca se queixou de nada, nem de dor.”

Na noite de quarta, D. Bertrand já tinha destacado a resignação como traço importante da persona-lidade de D. Maria. E mais de uma vez ele repetiu o “nunca se queixou de nada” ao discorrer sobre as difi-culdades que a vida pôs no caminho dela: títulos e patrimônio confisca-dos pelos nazistas, parentes mortos

DEGUSTAÇÃO

> Clique aqui e leia outros trechos do livro “Entretanto, foi assim que aconteceu” no Issuu

PAU

LIN

HO

SILV

A

REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 17

Esta reportagem foi originalmente publicada no jornal O Estado de S. Paulo de 22 de maio de 2011

casaram nem tiveram filhos, e dizem viver graças a economias e doações vindas dos monarquistas país afora. Três desses trabalham voluntaria-mente na casa, em cujos cômodos de entrada funciona o escritório da Casa Imperial do Brasil. Seu diretor coordenador-geral, Gustavo Cintra do Prado, não escondeu o desapon-tamento quando me viu chegar sem gravata. Um zeloso da mesóclise, ele tinha recomendado o uso do acessório. “Obrigatório não é, mas far-se-á boa figura perante Sua Al-teza”, me dissera ao telefone. Não deu. Mas nem por isso D. Bertrand me tratou como um insurrecto do jeans com tênis. Pelo contrário. Ele se desculpou por não servir um ca-fezinho (“não estou acostumado a esse tipo de coisa”) e por ser dema-siadamente ordeiro: “Você mal se levantou e eu já estou arrumando as almofadas do sofá, veja que coisa”.

Com paciência, ele me contou da lembrança mais remota que guarda de D. Maria. Aconteceu em Mandelieu, sul da França, onde ele e três irmãos nasceram. Devia ter três ou quatro anos, fim da Segun-da Guerra. Passeio de velocípede, um soldado americano bêbado mete o coturno nas rodinhas do veículo. E lá se vai Sua Alteza Im-perial voando e se esborrachando no chão... (com todo o respeito), depois acolhido e consolado pela mãe. Eu pergunto se ele, franca-mente, acredita na restauração da monarquia no Brasil. “Não tenho dúvidas disso, nunca as tive”, ele diz, desafiando minha impertinên-cia com seus olhos grandes e reso-lutos. “A história é pendular. A era

das utopias se foi, o próximo passo é retornarmos aos tempos dos bons valores do imperador, que é uma figura suprapartidária e educada para servir à nação, não se servir da nação. Além do mais, a questão monárquica conta com a simpatia do povo. Você tem filha? Pois bem. Estará mentindo se disser que nun-ca a chamou de minha princesi-nha.” E, mais uma vez, insistiu no mantra da causa monárquica: “Pre-cisamos resgatar os bons valores”.

Lá fora, a vozeria santista au-mentava e a cada dois minutos um torcedor chegava para regar a tre-padeira que galga o muro de Suas Altezas, espargindo o odor de amô-nia que D. Bertrand não sentirá na manhã seguinte. A frente da casa se tornara uma fortaleza inexpugná-vel para o populacho urinar antes do jogo, protegido que ficava por uma caçamba coletora dos entu-lhos imperiais. Uns, mui respeito-sos, ainda ralhavam com os ami-gos sem decoro: “Peraí, pô! Deixa as moça passar primeiro”. Outros, com invejável perícia, seguravam a lata de cerveja na outra mão e ainda cantarolavam: “Dá-lhe-ô! Dá-lhe Santos meu amor!” Tudo na mais perfeita ordem e absoluta ausência de confusão. Até fila faziam, numa ancestral tropicalização de valo-res. Afinal de contas, remedando o nobre Muricy Ramalho, Viscon-de de Ibiúna e Arquiduque de Vila Belmiro, dir-se-ia o seguinte: “Isso aqui é Brasil, meu filho!”

FALE COM A ARQUIPÉLAGO

ARQUIPÉLAGO EDITORIAL LTDAAv. Getúlio Vargas, 901/506CEP 90150-003Porto Alegre - RS

(51) 3012-6975

[email protected]

Atendimento ao livreiro:Miréia Almeida de [email protected]

Representante para Minas Gerais:Diana Caldeira [email protected]

Representante para Norte e Nordeste:Renata [email protected]

Representante para Rio de Janeiro:Fernanda Nunes [email protected]

Departamento editorial:Tito [email protected]

Redes sociais:

www.facebook.com/arquipelagowww.twitter.com/arquipelagowww.youtube.com/arquipelagoeditorial

Loja virtual: www.livrariaarquipelago.com.br

Acesse o nosso site para conhecer todos os livros do catálogo e para obter a lista completa de livrarias e distribuidores.

www.arquipelagoeditorial.com.br

REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 18

O fôlego mais longoO escritor e tradutor Pedro Gonzaga escreve sobre os aforismos de Karl Kraus, reunidos em livro pela Arquipélago

Em um de seus mais célebres afo-rismos, Karl Kraus, figura mítica da Viena das primeiras décadas do sé-culo 20, no anoitecer e esfacelamen-to do Império Austro-Húngaro, di-zia que “O aforismo jamais coincide com a verdade; ou é uma meia ver-dade ou uma verdade e meia”. Ape-sar da aparente condescendência da frase, um jovem Elias Canetti, em A consciência das palavras, relata o caráter de culto quase religioso que cercava as leituras públicas de Kraus a que compareceu, marcadas pelo poder do orador implacável, capaz de eletrizar sua plateia com seus ditos que lembravam, em sua “lin-guagem curiosamente cimentada”, a dureza dos “parágrafos judiciais”. Como publicista, Kraus é um inqui-sidor. Durante mais de três décadas, dirigiu o jornal Die Fackel (A To-cha), no qual atacou figuras de vulto da cultura e da sociedade vienense, nunca fugindo a uma polêmica ou ao combate. É preciso salientar, no entanto, que estamos diante de um inquisidor às avessas, pois atacava e condenava os poderosos e os cé-lebres de uma posição periférica, fustigando a sociedade em seu com-portamento bovino e fútil. “Um ex-celente pianista, mas a sua execução precisa superar os arrotos da boa sociedade após um jantar”.

Isto me faz pensar que o aforista é, antes de tudo, um moralista (ao estilo de Quevedo e Swift) e um reacionário. Eliminando ambigui-

dades, entendo por reacionário o termo aplicado à voz que se ergue contra a mediocridade degenera-tiva de sua época – são os profetas bíblicos, um fabulista como Fedro (desprezado por ser ex-escravo), os grandes sátiros do Ocidente –, uma voz precisa e rascante, sempre afia-da, que busca na máxima economia da expressão, a verdade que se er-gue às margens do silêncio. “Há es-critores que já conseguem dizer em vinte páginas aquilo para o que às vezes preciso de até duas linhas.”

De fato, voltando à voz que se ergue isolada do vulgo, o aforista é, em sua solidão, um Quixote; suas armas, a ironia, o sarcasmo, o hu-mor autorreferente; seus moinhos, o pensamento uniforme, cômodo e insidioso, que se compraz, como

bem apontava Ortega y Gasset, em eliminar toda e qualquer diferença a fim de perpetrar um bem-estar em um primeiro momento estéril, mas que logo poderá se transfor-mar em autoritarismo ao encontrar um líder que fale inconteste ao co-ração das massas.

Mas, além dos predicados acima, o aforista também possui o dom da iluminação súbita, da antecipa-ção de uma verdade ainda vedada a maioria de nós, tem o ouvido para o idioma das gentes, para descobrir nos interstícios de frases-feitas, de desgastadas sabedorias, uma forma nova de dizer as coisas, e nisso sua arte se assemelha à do poeta, em-bora sejam distintos os seus meios e fins. Em vez da lira e do verso, o aforista usa o cinzel e a frase, talhan-do-a até reduzi-la a uma estrutura mínima e perfeita. Por vezes tal es-cultura precisa de tempo para ser compreendida. Um lance de olhar apenas poderá levar a um erro de interpretação, como bem alerta Karl Kraus no aforismo que segue: “Meus trabalhos devem ser lidos duas ve-zes para serem bem compreendidos. Mas tampouco me oponho a que se-jam lidos três vezes. Prefiro, porém, que não sejam lidos do que o sejam apenas uma vez. Não pretendo me responsabilizar pelas congestões de um imbecil que não tem tempo.”

Considerado um dos grandes es-critores em língua alemã do século passado e tido por muitos como um

ARTIGO

AFORISMOSKarl Kraus Trad.: Renato Zwick208 páginas | R$ 39,00

REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 19

nome capaz de figurar ao lado de Públio Siro, Marcial, La Rochefou-cald, Leopardi – para citar alguns artistas da forma breve, Karl Kraus estava, havia anos, afastado das es-tantes brasileiras, desde a edição de Ditos e Desditos, da Editora Bra-siliense, publicado ainda nos anos 1980, hoje uma raridade.

Aforismos procura corrigir essa ausência. Traduzido e selecionado por Renato Zwick a partir das três obras aforísticas publicadas por Kraus em vida (Ditos & Contraditos, Pro domo et mundo e De noite), o livro é uma excelente oportunidade para o leitor brasileiro conhecer um conjunto representativo de textos do autor, além, é claro, de permitir aos

antigos admiradores um reencon-tro, agora em língua materna, com a verve implacável do polemista de Viena, não poucas vezes citado pelo saudoso Paulo Francis.

Entre o conjunto de temas em que se dividem as seleções estão as mulheres, os escritores, os políticos, as autoridades alemãs e a sociedade como um todo. A tom, porém, que percorre boa parte dos aforismos é o do humor, um humor ácido, por ve-zes tingido de melancolia, por vezes de deboche, por vezes com tal densi-dade de cores que dificulta qualquer classificação: “O mundo é uma pri-são em que é preferível a solitária.”

Kraus ainda investe suas cargas contra a psicanálise, a literatura de

Pedro Gonzaga é tradutor e escritor, autor de A última temporada (poemas), entre outros. Este artigo foi publicado originalmente na revista Dicta & Contradicta número 6.

Karl Kraus retratado por Trude Fleischmann, em 1928

REPR

OD

ÃO

/ A

CER

VO D

O W

IEN

MU

SEUM

seu tempo e os malefícios da guer-ra. Morto em 1936, escapou de ver o continente europeu ser mais uma vez assolado pela insanidade e pelo horror, horror que por certo an-tevira já à abertura de seu ensaio Terceira noite de Valpúrgis, publi-cado postumamente, em que dizia: “Nada me ocorre acerca de Hitler”. Como bem afirma Renato Zwick na introdução de Aforismos, “tal per-plexidade é apenas retórica, pois Kraus tinha noção clara do que es-tava acontecendo”.

“O aforismo jamais coincide com a verdade. Ou é uma meia verdade, ou uma verdade e meia.”

“O Diabo é um otimista se acha que pode tornar piores os seres humanos.”

“As mulheres pelo menos possuem cosméticos. Mas com que os homens encobrem seu vazio?”

REVISTA DA ARQUIPÉLAGO • 20

OPERAÇÃO PORTUGADesigner inspira-se na imagem e na textura do asfalto para livro que a história de um grupo de corredores de rua

O livro Operação Portuga — Cinco homens e um recorde a ser batido, do jornalista Sérgio Xavier Filho, dire-tor de redação da revista Runner’s World Brasil, conta a história de um grupo de corredores de rua às voltas com um problema: bater o recorde obtido por um de seus integrantes em uma maratona. O cenário da tra-ma serviu de inspiração para a de-signer Paola Manica, que utilizou na capa uma foto de asfalto coberta por um verniz com textura áspera. “O asfalto faz parte do cenário em que o treino acontece. Muita gente cor-re na rua ou em pistas que têm essa textura”, diz Paola. “Além disso, traz a dureza do preparo de um marato-nista direto para a capa.”

LIVRO-OBJETO

OPERAÇÃO PORTUGACinco homens e um recorde a ser batidoSérgio Xavier Filho176 páginas | R$ 32,00

Caderno fotosde

ABC ABC FONTES E FOTOSA escolha das fontes também foi muito bem pensada. “Nada melhor do que usar a referência até o fim. Na rua, as inscrições são pintadas com letras do tipo stencil”, diz Pa-ola. No miolo do livro, há também um caderno de fotos, com 16 pági-nas coloridas. A imagem do asfalto e o amarelo também dão as caras por ali. “As fotos eram muito in-teressantes e tínhamos muito ma-terial para trabalhar. A inspiração veio de revistas esportivas”, conta Paola. “Usamos elementos da pró-pria capa, acrescentando boxes pre-tos e amarelos com linhas fortes na diagonal para ganhar dinamismo, irreverência e dar uma cara mais esportiva mesmo.”