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REVISTA DA ESCOLA DA MAGISTRATURA REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO EMARF Tribunal Regional Federal da 2ª Região Volume 8 Março de 2007

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REVISTADA ESCOLA DA

MAGISTRATURA REGIONALFEDERAL DA 2ª REGIÃO

EMARF

Tribunal Regional Federal da 2ª Região

Volume 8Março de 2007

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Esta revista não pode ser reproduzida total ou parcialmente sem autorização

Revista da Escola da Magistratura Regional Federal / Escola

da Magistratura Regional Federal, Tribunal Regional Federal : 2ª

Região. n. 1 (ago. 1999)

Rio de Janeiro: EMARF - TRF 2ª Região / RJ 2007 - volume 8, n. 1

Irregular.

ISSN 1518-918X

1. Direito - Periódicos. I. Escola da Magistratura Regional

Federal.

CDD: 340.05

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Diretoria da EMARF

Diretor-GeralDesembargador Federal Benedito Gonçalves

Diretor da RevistaDesembargador Federal André Fontes

Diretor de EstágioDesembargador Federal Raldênio Bonifácio Costa

Diretor de Relações PúblicasDesembargador Federal Clélio Erthal

Diretor de PesquisaDesembargador Federal Sergio Feltrin

EQUIPE DA EMARFRegina Elizabeth Tavares Marçal - Assessora Executiva

Carlos José dos Santos DelgadoEdith Alinda Balderrama Pinto

Fay de Mello Mattos FilhoJackson de Castro SkuryLeila Andrade de Souza

Maria de Fátima Esteves Bandeira de MelloReinaldo Teixeira de Medeiros Júnior

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Presidente:Desembargador Federal FREDERICO GUEIROS

Vice-Presidente:Desembargador Federal CARREIRA ALVIM

Corregedor-Geral:Desembargador Federal CASTRO AGUIAR

Membros:Desembargador Federal PAULO FREITAS BARATA

Desembargadora Federal JULIETA LÍDIA LUNZDesembargadora Federal TANIA HEINE

Desembargador Federal ALBERTO NOGUEIRADesembargador Federal PAULO ESPIRITO SANTODesembargadora Federal MARIA HELENA CISNE

Desembargadora Federal VERA LÚCIA LIMADesembargador Federal ROGÉRIO CARVALHO

Desembargador Federal ANTÔNIO CRUZ NETTODesembargador Federal RICARDO REGUEIRA

Desembargador Federal FERNANDO MARQUESDesembargador Federal RALDÊNIO BONIFÁCIO COSTA

Desembargador Federal SERGIO FELTRIN CORRÊADesembargador Federal FRANCISCO PIZZOLANTEDesembargador Federal BENEDITO GONÇALVES

Desembargador Federal IVAN ATHIÉDesembargador Federal SÉRGIO SCHWAITZERDesembargador Federal POUL ERIK DYRLUND

Desembargador Federal ANDRÉ FONTESDesembargador Federal REIS FRIEDE

Desembargador Federal ABEL GOMESDesembargador Federal LUIZ ANTÔNIO SOARESDesembargador Federal MESSOD AZULAY NETO

Desembargadora Federal LILIANE RORIZJuiz Federal Convocado GUILHERME CALMON

Juiz Federal Convocado JOSÉ NEIVAJuiz Federal Convocado LUIZ PAULO ARAÚJO FILHO

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SUMÁRIO

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR OMISSÃO NA ÁREA DE SEGURANÇAPÚBLICA: O PROBLEMA DOS DANOS CAUSADOS POR MULTIDÕES NO TRIBUNALDE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO .................................................. 9

Cesar Caldeira

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A DISCIPLINA DA EFICÁCIA DAS MEDIDASPROVISÓRIAS NÃO CONVERTIDAS .................................................................. 49

Edilson Pereira Nobre Júnior

DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO: PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS, GARANTIAS EPRERROGATIVAS DOS MEMBROS E UM BREVE RETRATO DA INSTITUIÇÃO ..... 65

Felipe Caldas Menezes

“PARTE” OU “CAPÍTULO” DE SENTENÇA E ANULAÇÃO PARCIAL DO JULGADO .... 103

Marcelo Alexandrino da Costa Santos

VISÃO CRÍTICA E SISTEMÁTICA DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO À LUZ DAFILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO. .......................................................................... 123

Paulo Rangel

PROTEÇÃO DA IMAGEM VERSUS LIBERDADE DE INFORMAÇÃO ......................... 143

Rui Stoco

MEDIDAS DE URGÊNCIA NA FASE DE ADMISSIBILIDADE DE RECURSO ESPECIAL OUEXTRAORDINÁRIO NO TRIBUNAL A QUO – RECURSO DA DECISÃO DOPRESIDENTE OU VICE-PRESIDENTE – DESCABIMENTO DE MANDADO DESEGURANÇA NA ORIGEM .............................................................................. 165

J.E. Carreira Alvim

OS FATORES DE ATRIBUIÇÃO NA RESPONSABILIDADE POR DANOS ................... 177

André R. C. Fontes

ESTADO E DIREITO ............................................................................................. 189

Reis Friede

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Revista da EMARF - Volume 8

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O DANO MORAL E SUA QUANTIFICAÇÃO .......................................................... 197

Valéria Medeiros de Albuquerque

REDEFINIÇÃO DE PAPÉIS NA EXECUÇÃO DE QUANTIA CERTA CONTRA A FAZENDAPÚBLICA ........................................................................................................ 203

RIicardo Perlingeiro Mendes da Silva

RECENSÃO À “INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO”, DE KARL ENGISCH(FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN) .......................................................... 221

Eugênio Rosa de Araújo

DIVIDINDO O INDIVISÍVEL E RELATIVANDO O RELATIVISMO, EM MATÉRIA DE DIREITOSHUMANOS. ................................................................................................... 271

Regina Coeli Medeiros de Carvalho Peixoto

RESERVA DO POSSÍVEL PARA QUEM? ................................................................. 287

Américo Bedê Freire Júnior

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A COISA JULGADA NO DIREITO PROCESSOPENAL. ........................................................................................................... 295

Rodolfo Kronemberg Hartmann

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POROMISSÃO NA ÁREA DE SEGURANÇA

PÚBLICA: O PROBLEMA DOS DANOSCAUSADOS POR MULTIDÕES NO TRIBUNALDE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Cesar Caldeira - Professor Doutor, Pesquisador e Advogado.Doutor em Direito pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de

Janeiro). Mestre em Direito pela Yale Law School (EUA)

Sumário: I A trajetória das decisões judiciais no Tribunal de Justiça. IIDécada de quarenta: policial dispara tiros contra multidão desarmadano Distrito Federal. A interpretação do artigo 194 da Constituição de1946. III As multidões agitadas dos dois lados da Baía de Guanabara e aomissão policial. IV A “revolta das barcas” em Niterói. V A doutrinanormativista da responsabilidade subjetiva do Estado nos casos demovimentos multitudinários. VI Uma proposta alternativa de critério deavaliação. VII Depredação e saque de supermercado na época do PlanoCruzado na presença da Polícia Militar: caso fortuito. VIII Dois casos depredações por multidões julgados na década de noventa pelo Tribunalde Justiça do Estado do Rio de Janeiro. VIII.1 Quebra-quebra contra oaumento das passagens de ônibus. VIII.2 Conclusões sobre aresponsabilidade civil do Estado por omissão nos casos de movimentosmutitudinários no Rio de Janeiro. IX Um caso especial: ocupação depropriedade particular que se torna favela. X Bibliografia.

As decisões judiciais coletadas e analisadas na pesquisa podem serclassificadas em torno de problemas, que devido às suas característicassão abordados de maneira diferenciada pelos próprios magistrados edesembargadores.

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O conjunto de seis casos versa sobre depredações e saques praticadospor movimentos multitudinários, desde o final da década de cinquentaaté 1998. O princípio-garantia da responsabilidade objetiva do Estado,presente desde a Constituição de 1946 até hoje, não responsabiliza opoder público pela reparação de danos causados por atos predatórios deterceiros. Porém, quando a lesão do patrimônio ou do direito do cidadãoocorre por omissão da autoridade competente, a Fazenda Pública vincula-se à obrigação de indenizar o prejuízo, restando-lhe o direito de regressocontra o responsável pela omissão. Conforme será analisado nos casosencontrados, é indispensável que se evidencie o nexo de causalidadeentre a omissão das autoridades e os danos praticados pela multidão (fatode terceiros). Neste ponto reside a dificuldade fundamental, pois adoutrina normativa dominante tem adicionado ao requisito constitucionaldo nexo causal, exigências construídas para criar obstáculos insuperáveisà responsabilização do Estado por omissão. Típica barreira acrescentadaindevidamente é a exigência de que haja uma comunicação prévia àautoridade policial da iminência do saque ou da predação pela multidão.Outro empecilho introduzido sub-repticiamente é um padrão de contornosnada severo de “caso fortuito”, que alegado em defesa do Estado servepara excluir sua responsabilidade e recusar pleitos contra a omissão dapolícia de manutenção da ordem pública.

A defesa do Estado nos casos de movimentos multitudinários é feitapela construção de argumentos de que sua responsabilidade, caso existapor fatos de terceiros, é subjetiva. As decisões judiciais tem aplicado adoutrina da “falta do serviço”, com uma apreciação bastante lata daexcludente do “caso fortuito”. Mesmo assim, dos seis casos encontrados,o Estado foi condenado em três (Apelação Cível nº 40.928, ApelaçãoCível nº 14.466, e Apelação Cível 3.800/98), em dois não foiresponsabilizado por maioria ( Apelação Cível nº 4545/90, e EmbargosInfringentes nº 78/91 na Apelação Cível nº 4545/90).

I A TRAJETÓRIA DAS DECISÕES JUDICIAIS NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

A discussão jurisprudencial sobre responsabilidade civil do Estado,no Rio de Janeiro, na área de segurança pública foi bastante reduzida

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Cesar Caldeira

até o início dos anos oitenta. No período de existência do Estado daGuanabara (1960-75) não foi encontrado, por exemplo, qualquer caso deação indenizatória contra o Estado por morte de detento sob sua custódia.Isto se altera dramaticamente no período de existência do Tribunal deJustiça do Estado do Rio de Janeiro (1976 em diante). Aliás, na pesquisaefetivada sobre outros estados da federação, apenas em São Paulo foiencontrado um caso de “menor assassinado no Recolhimento Provisóriode Menores por outros menores”, no período anterior a 1976. Esta decisãounânime da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulode 1973 usa uma noção “culpa objetiva” para indicar a responsabilidadedo Estado por omissão no art. 107 de Constituição e, condená-lo a pagarindenização de 2/3 do salário mínimo de menor até a idade que a vítimacompletaria 25 anos.1

Na tentativa de realizar um exame abrangente e completo, forampesquisadas todas as revistas jurídicas que publicaram decisões, primeiro,do Distrito Federal, e depois do Estado da Guanabara. Na próxima seção,os casos relevantes são apresentados.

1 Os desembargadores confirmaram a sentença de primeiro grau nos seguintes termos:“Quanto ao mérito, nenhum reparo merece a sentença, que bem apreciou a espécie e concluiu,acertadamente, pela responsabilidade da ré, condenando-a a pagar indenização pela morte do filhoda autora, o qual foi assassinado quando se encontrava sob custódia do Estado, no RecolhimentoProvisório de Menores desta Capital, onde fora colocado com outros menores de inegávelpericulosidade.Foi o que restou demonstrado nos autos, decorrendo o evento da omissão dos funcionários doreferido Recolhimento, os quais não exerceram a vigilância necessária para evitar o estrangulamentoda vítima por dois menores que também se achavam internados, mas de mau procedimento, jámarginalizados da sociedade e psicologicamente desajustados.Indiscutível, pois, a responsabilidade do Estado cuja culpa, no caso é objetiva, nos termos do artigo107 da Constituição Federal”.Apelação Cível nº 226.776 (Recurso “ex officio”) – Capital. 2ª Câmara Cível do Tribunal de justiçado Estado de São Paulo. Relator: Des. Jurandyr Nilsson. Decisão: por unanimidade. Julgamento: 02/10/1973.Apelante: Benedita da Silva. Apelada: Fazendo do Estado. Ementa: Responsabilidade Civildo Estado. Menor assassinado no Recolhimento Provisório de Menores por outros menores. Faltade vigilância dos funcionários. Indenização devida até que a vítima atingisse os 25 anos de idade.Responde o Estado pela indenização resultante da morte de menor que se encontrava sob custódiano Recolhimento Provisório de Menores e ali foi assassinado por outros menores. Essa indenizaçãoé devida até que a vítima atingisse 25 anos de idade, data que, provavelmente, se casaria deixandode prestar auxílio em casa.

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II DÉCADA DE QUARENTA: POLICIAL DISPARA TIROS CONTRAMULTIDÃO DESARMADA NO DISTRITO FEDERAL. A INTERPRETAÇÃODO ARTIGO 194 DA CONSTITUIÇÃO DE 1946

Este caso pode ser um precursor longínquo de todos aqueles que geramvítimas inocentes de disparos de arma de fogo: os conhecidos casos de“balas perdidas” do Rio de Janeiro da década de noventa.

O acórdão do Tribunal Federal de Recursos2 confirma a sentença deprimeiro grau que condenou a União. O fato ocorrido não é tratado emdetalhe no relatório do ministro Aguiar Dias. Um policial, “em serviço demanutenção da ordem”, disparou contra uma multidão “inerme”, na qualse encontrava o marido da autora da ação indenizatória, no dia 19 desetembro de 1943. O cidadão faleceu. A viúva pleiteou ma indenização,“na qualidade de mãe de duas filhas”. Aguiar Dias em seu voto afirma:

“Encarada a questão à luz do artigo 194 da Constituição, não há quefalar em culpa. Ao contrário do que sustenta a União, essa norma lidaem conjugação com o seu parágrafo único, mostra que o elementosubjetivo não é indispensável à fixação da responsabilidade civil doEstado. Basta por esse efeito, o fato danoso, em ligação de causa eefeito com o ato injusto da Adminstração”.3

O voto vencido não discorda do mérito do acórdão, mas de como sepagar os honorários do advogado. A União é condenada a pagar “umapensão equivalente a um terço dos salários da vítima, desde 19 de setembrode 1943”. Não existe qualquer referência a dano moral nesta época.

Há um detalhe revelador neste acórdão: uma referência clara àscontrovérsias interpretativas sobre o artigo 194 da Constituição. De fato,este artigo inovou na ordem juridico-constitucional ao prever aresponsabilidade objetiva do Estado. Em 1954, quando este acórdão foiproferido havia ainda resistências doutrinárias e jurisprudenciais. AguiarDias se refere a estes obstáculos no trecho citado a seguir, onde explicita

2 Apelação Cível nº 4.936, do Distrito Federal. União Federal versus Carlota Cardoso Ribeiro efilhas. Primeira Turma do Tribunal federal de Recursos. Relator: Min. Aguiar Dias. Decisão: pormaioria. Voto vencido: Min. Elmano Cruz. Julgamento: 20/04/1954. Ementa: Não há que falar emculpa, em matéria de responsabilidade civil do Estado em face do texto constitucional. Interpretaçãodo artigo 194 da Constituição. RDA, vol. 42, out./dez., 1955, p. 253-254.3 RDA, vol. 42, out./dez., 1955, p. 254.

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Cesar Caldeira

que grosseiras violações de direitos como as praticadas pelo policialresponsabilizariam o Estado mesmo com fundamento na culpa.

“Admitamos, porém, para satisfazer a esse teimoso espírito misoneístaque, no direito brasileiro só se configure a responsabilidade civil doEstado com base na culpa. A solução continuará a ser a mesma. Comefeito que é, senão culpa, sair o policial, em serviço de manutençãoda ordem, a provocar e agravar desordem, disparandoimprudentemente, negligente ou, talvez, perversamente, contra amultidão inerme?

Era preciso que neste país não houvesse uma consciência jurídicapara admitir como regular ato como esse que revela, ou incapacidadepara a função, caso em que teria ocorrido má escolha, a culpa ineligendo, ou perversidade grosseira, sinal dessa culpa e, ainda, deculpa in vigilando.” 4

Conforme se evidencia no material jurisprudencial pesquisado, os fatosadministrativos que dão origem às ações indenizatórias na área de segurançapública são em regra grosseiras violações de direitos fundamentais comoo da integridade fisica e moral da pessoa, sua liberdade e propriedade.5

Não existe, porém, a exigência no direito brasileiro, para ser obtida aresponsabilização civil do Estado, de “culpa grave” (faute lourde), comona doutrina e prática administrativa francesa.6 Esta é uma intromissãodoutrinária e jurisprudencial indevida de um modelo jurídico alienígena,acolhida para criar barreira à efetivação do princípio-garantia constitucionalda responsabilidade civil objetiva do Estado.

A teoria objetiva adotada pelas Constituições a partir de 1946 significaprecisamente isto: os prejudicados não precisam evidenciar que houveculpa dos agentes públicos, mesmo que a rigor e de fato, seja evidenteque ela exista. É, no entanto, extremamente freqüente que os

4 RDA, vol. 42, out./dez., 1955, p. 254.5 O diretor da Revista Jurisprudência Brasileira, na abertura do volume sobre responsabilidade civildo Estado, dá seu testemunho também neste sentido: “Vistos em seu conjunto, os acórdãos aquipublicados dão, nitidamente, a impressão de que a desorganização e ineficiência do Estado, emtodos os níveis são tão grandes no Brasil, que sua responsabilidade nem precisaria ser objetiva, poisgeralmente envolve certa dose de culpa”. (itálicos no original) CZAJKOWSKI, Rainer. “Sobre aresponsabilidade civil do Estado” in Jurisprudência Brasileira: Responsabilidade Civil do Estado.Vol. 170. Curitiba: Editora Juruá, 1993, p. 126 Ver, ROBERT, Jacques. Droits de l´homme et libertés fondamentales 5ème. Edition. Avec lacollaboration de Jean Duffar. Paris: Editions Montchrestien, 1994, p. 289.

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desembargadores e ministros identifiquem nos acórdãos, de plano, aculpa existente para facilitar a argumentação, com o fez o insuspeitoministro Aguiar Dias.

III AS MULTIDÕES AGITADAS DOS DOIS LADOS DA BAÍA DEGUANABARA E A OMISSÃO POLICIAL

No final dos anos cinquenta e início da década de sessenta,movimentos multitudinários causaram danos à propriedades privadas eprovocaram duas ações indenizatórias por responsabilidade civil do Estadopor omissão. Por extraordinário que possa parecer, depois desses casossomente um caso de depredação de supermercado na época do PlanoCruzado nos anos oitenta foi encontrado (Apelação Cível 2830/88). Nadécada de noventa foi julgado um caso de depredação popular emdecorrência de majoração de passagem de ônibus no Tribunal de Justiçado Rio de Janeiro ( Apelação Cível nº 4545/90, e Embargos Infringentesnº 78/91 na Apelação Cível nº 4545/90). Devido ao número restrito decasos, a responsabilidade civil do Estado por omissão face a movimentosmultitudinários será tratada nesta seção IV.2.

IV O CASO DA PILHAGEM DO MERCADO S. SEBASTIÃO NO ESTADODA GUANABARA

No dia 5 de julho de 1962, uma multidão saqueou os armazénslocalizados no Mercado S. Sebastião. Três empresas acionaram o Estadoda Guanabara em busca de ressarcimento pelos prejuízos. Na sentençade primeiro grau, o juiz julgou procedente a ação. O Estado da Guanabaraapelou, e pediu a reforma da decisão “por entender que a culpa do fatocabe à União: O Governo Federal (fls. 120/124), através de seus servidoresà época, organizaram e provocaram os acontecimentos criminosos, quandose celebrizou o chamado Comando Geral dos Trabalhadores”.

A Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara,por unanimidade, confirmou a decisão do juiz monocrático. “Consideraramque: a ação foi proposta contra o Estado, como entidade federativa, onde

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são asseguradas as garantias dos direitos à vida e à propriedade, art. 53da Constituição Estadual. A ele, cabe organizar sua Polícia, para a qualtodos concorrem, através do tributo para sua manutenção. Não há porquecompelir o particular a citar a União como responsável, em razão da áreade atrito, outrora, entre o Governo da União e o do Estado. A este éfacultado o direito regressivo, se for o caso, e de demonstrar a ocorrênciada força maior que impossibilitou a contenção do saque. Quanto ao mérito:a extensão dos danos, não foi posta em dúvida, com apoio na prova pericialdo Instituto de Criminalística (fls. 10), realizado logo a seguir à pilhagem,nos armazéns do Mercado S. Sebastião.”7

Esta decisão judicial é, de certa forma, surpreendente visto queinúmeros obstáculos são constantemente postos à obtenção deressarcimento por danos causados por movimentos multitudinários.Circunstâncias políticas muito peculiares moldam os acontecimentos daépoca do saque e o momento da tomada da decisão judicial. Havia naconjuntura uma crise política nacional na época do saque. Santiago Dantashavia sido indicado para Primeiro Ministro, mas tinha sido rejeitado pelasforças políticas conservadoras. Jango Goulart indica, então, Moura deAndrade. Ocorre uma mobilização sindical de repúdio, e uma convocaçãode greve geral para o dia 5 de julho de 1962 – data dos saques popularesao Mercado S. Sebastião. A greve se realiza sobre a liderança do CGC, enão do CGT que somente será organizado em agosto de 1962. Comoconquista dessa greve obteve-se o 13º salário.8

A decisão do Tribunal é posterior ao golpe militar de 31 de março de1964, época que já havia sido reprimida a mobilização sindical populistae de esquerda. A pacificação policial da questão social e sindical talvezajude a compreender porque as empresas conseguem o devido e justoressarcimento que em outras circunstâncias, passadas e futuras, será difícil

7 Apelação Cível nº 40.928. 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara.Relator: Des. Eduardo Jara. Decisão: unânime. Julgamento: 28/12/1964. Ementa: Indenização.Atos de pilhagem pela multidão. Responsabilidade do Estado. Revista de Jurisprudência do Tribunalde Justiça do Estado da Guanabara, nº 14, ano VI, 1967, p. 175-176.8 Para a história do período, ler: MARTINS, Luiza Mara Braga. “O populismo, a crise do modeloexportador da economia e a liberdade sindical (1960-1964)” in LOBO, Eulália Maria Lahmeyer(coordenação). Rio de Janeiro operário: natureza do Estado, conjuntura econômica, condiçõesde vida e consciência de classe. Rio de Janeiro: Access Editora, 1992, p. 308-392.

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conseguir. Até o governo Leonel Brizola (1983-86) não haverá maishesitação em usar a polícia contra movimentos de multidão.

IV A “REVOLTA DAS BARCAS” EM NITERÓI

Os fatos do segundo caso ocorreram no ano de 1959, em Niterói: afamosa “revolta das barcas”.9 A ação indenizatória foi movida pela I.B.M.– Indústrias, Máquinas e Serviços Ltda. contra o Estado do Rio de Janeiro,“porque ao Estado assistia a obrigação de manter a ordem pública e degarantir o direito de propriedade”.

A sentença de primeiro grau foi favorável à empresa, condenando oEstado a ressarcir a partir do laudo pericial sobre os danos. A decisão doTribunal de Justiça do Rio de Janeiro confirmou a sentença, da maneiraseguinte:

“As manifestações de populares de protesto contra a deficiência dosserviços de transporte marítimo na Guanabara, agravada pela grevedos empregados da empresa que os explorava, e que degeneraramem depredações, incêndios e saques, não teriam chegado a tal pontoem que chegou se imediatamente o governo tomasse as medidasenérgicas que a situação exigia.

Essa opinião da quase unanimidade da imprensa e dos que tiveram adesdita de apreciar as cenas de vandalismo de que foi palco a capitaldo Estado.

Tal omissão da polícia que muitos se convenceram que a ordem partirado Governador, que teria dito que a “Polícia não poderia hostilizar opovo de maneira alguma”, como noticiaram os jornais.

Depois que os acontecimentos cresceram de modo assustador, dandoa impressão de que não poderia mais ser controlado, o Governo tomou,já à noite, a providência que estava indicada desde o início do conflito:

9 Foi uma pequena revolução popular ocorrida em Niterói no dia 22 de maio de 1959, segundoEdson Nunes. Dela resultaram seis mortos e 118 feridos, depredação de imóveis, uma intervençãomilitar na cidade e, finalmente, a estatização do serviço de lanchas que faz a travessia para o Rio deJaneiro. Foi destruído, durante um dia inteiro de desobediência civil e violência coletiva, tudo aquiloque fazia lembrar a existência dos concessionários desses serviços. Ler a respeito: NUNES, Edson. Arevolta das barcas: populismo, violência e conflito político. Rio de Janeiro: Garamond, 2000. 162 p.

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requisitou o auxílio das tropas do Exército sediadas em São Gonçalo,que de pronto estabeleceram a ordem na cidade.

Não há como negar a responsabilidade do Estado, resultante dodescaso, da negligência das autoridades que tinham por dever mantera ordem pública e garantir o direito de propriedade. Houve,evidentemente, omissão de um dever prescrito em lei, o quecaracteriza a culpa in omittendo”.10

O acórdão cita dois arestos do Supremo Tribunal Federal, em apoio asua decisão, nos quais se afirma a responsabilidade do Estado por danoscausados por movimentos multitudinários à propriedade privada que deveser garantida.11 É citado também Aguiar Dias:

“Há uma corrente de opinião que reconhece a obrigação de indenizaros danos causados por movimentos multitudinários, quando tenhahavido prévio aviso ou solicitação de garantia por parte da vítima, ouquando se demonstre que o governo, funcionando regularmente,podia evitar os danos que fez. Consagra-se, aí, a teoria da culpa nosmais acanhados limites. Preferível é o critério de alguns julgados quedecidem no sentido da inversão da prova, que o Estado respondepelo dano causado aos particulares, sempre que não provar haverempregado todos os meios ao seu alcance para evitá-los”.12

As decisões do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara e do Tribunalde Justiça do Rio de Janeiro da década de sessenta foram as únicasencontradas na pesquisa em relação ao problema dos prejuízos causadospor movimentos multitudinários e omissão policial.

Alguns pontos merecem destaque nos dois casos: 1) O Estado foiresponsabilizado civilmente por omissão por não garantir a propriedadeprivada. 2) O nexo de causalidade foi estabelecido entre dano causado e

10 Apelação Cível nº 14.466. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Relator: Des. Moacyr BragaLand. Julgamento: 17/08/1964. Decisão: unânime. Ementa: Responsabilidade civil do Estado.Danos causados pela multidão. O Estado responde civil mente pelos danos causados ao patrimônioparticular pela multidão.11 “O Estado responde pelos danos causados aos particulares pelos movimentos multitudinários,contra os quais lhe cabe o dever de garantir a propriedade privada” (acórdão da Primeira Turma norecurso extraordinário nº 8.572, Revista Forense, vol. 107, p. 275). “O Estado, e não a União,responde pelos danos causados por movimento multitudinário, verificado com dano à propriedadealheia, em período de estado de guerra, não valendo, em contrário, a circunstância de estar o paíssob o domínio discricionário” (acórdão da Segunda Turma no recurso extraordinário nº 14.649,Revista Forense, vol. 127, p. 456). RDA, vol. 85, jul./set. 1966, p. 210-212.12 RDA, vol. 85, jul./set. 1966, p. 211.

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as ações das multidões. Não existe prática de atos danosos por agentespúblicos: ocorreu omissão das polícias no seu dever funcional primáriode prevenir e reprimir de maneira pronta e eficaz os atos predatórios demultidões. 3) Não foi exigido pelos tribunais que as empresas avisassemàs polícias desses eventos predatórios. Aliás, não foi exigido das empresasdepredadas nenhuma providência reativa. 4) Os tribunais partiram dapremissa que a missão institucional das polícias é pró-ativa: é dever policialestar sempre alerta e informado através de suas fontes de inteligênciapróprias sobre distúrbios sociais de massa.

Os critérios acima adotados pelos Tribunais da Guanabara e do Rio deJaneiro são inteiramente compatíveis com os requisitos daresponsabilidade objetiva do Estado por omissão. A questão central é ofato danoso – as predações efetivadas por multidões, que foramcomprovadas – e o seu nexo de causalidade com a omissão administrativa.Nos casos examinados as devidas providências de prevenção dosdistúrbios ou repressão dos atos predatórios não foram tomadas pelasautoridades governamentais policiais. Esta inação policial constitui causados fatos danosos praticados pelas multidões. Daí, a responsabilizaçãocivil do Estado por omissão.

Nas predações em Niterói, o Tribunal fluminense indica talvez “parasatisfazer a esse teimoso espírito misoneísta”, como diria Aguiar Dias,que houve descaso e negligência por parte das autoridades que tinham odever de manter a ordem e garantir o direito de propriedade. “Houve,evidentemente, omissão de um dever prescrito em lei, o que caracterizaa culpa in omittendo”, afirma o acórdão. O dever legal adquire nessafrase um sentido bastante amplo de “preservação da ordem pública e daincolumidade das pessoas e do patrimônio”, para usar a expressãoconsagrada, posteriormente, no texto constitucional de 1988. Estas sãocertamente funções dos órgãos de segurança pública na sociedade. OTribunal caracteriza como sendo “culpa in omittendo” descumprir essesdeveres amplos de atuação nas circunstâncias do evento.13 Assim, o teoria

13 Ou seja, o que certa doutrina normativa chama de “omissão genérica”. Os autores que distinguemas omissões entre “específicas” e “genéricas”, doutrinam que é necessária a demonstração de culpado Poder Público (responsabilidade subjetiva) nos casos de omissão “genérica”, como os danospraticados por terceiros (movimentos multitudinários). Ler, CASTRO, Guilherme Couto de. AResponsabilidade Civil Objetiva no Direito Brasileiro - o papel da culpa em seu contexto. Rio deJaneiro: Ed. Forense, 1997, p. 56-59.

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aplicada foi a “culpa anônima do serviço”14 (doutrina francesa da “fautedu service”).

V A DOUTRINA NORMATIVISTA DA RESPONSABILIDADE SUBJETIVADO ESTADO NOS CASOS DE MOVIMENTOS MULTITUDINÁRIOS

Em 1904, antes portanto do velho Código Civil, Amaro Cavalcantiescrevia sobre a reparação por danos nos casos de omissão do Estado:

“Quando, porém, se tratar de um dever particularizado pela lei, oupelas circunstâncias especiais do caso, por exemplo, o dever daautoridade pública competente de impedir que se realize um ataqueà propriedade, tendo sido avisada ou solicitada, em tempo, para impedi-lo e, não obstante, deixado o ato consumar-se por sua negligência,culpa ou dolo; - em caso tal, entendemos que a responsabilidade civildo Estado é de rigorosa justiça; porque a omissão aludida é a causaeficiente do dano, de maneira tão manifesta e irrecusável como seele proviesse de um ato, realmente positivo, ilegal e culposo, dorepresentante do Estado, em relação às garantias da segurançaindividual e da propriedade”.15

A lição doutrinária de Amaro Cavalcanti está perfeitamente adequadaà Constituição de 1891, a primeira da República, que estabelecia oprincípio-garantia da responsabilidade subjetiva do Estado no art. 82: “Osfuncionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos eomissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim pelaindulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente osseus subalternos.” Estava essa doutrina também adequada à Lei nº 221,de 20 de novembro de 1894, art. 13 que na interpretação dada à épocaresponsabilizava a União por atos de suas autoridades administrativas.16

Os doutrinadores normativos da teoria da responsabilidade subjetivado Estado por omissão pregam critérios de avaliação assemelhados aos

14 A doutrina francesa da “faute du service” é traduzida de várias maneiras como culpa do serviço,falta do serviço ou falha do serviço.15 CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade Civil do Estado, tomo I, nova edição atualizada porJosé de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Editor Borzoi, 1957, p. 400.16 Cf. BARBOSA, Rui. A Culpa Civil das Administrações Públicas. Obras Completas de RuiBarbosa, Vol. XXV, 1898, Tomo V. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1898, p. 61.

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do início do século para a responsabilização do Estado por omissão poratos de movimentos multitudinários. Houve, assim uma atualizaçãodoutrinária até o Código Civil de 1916. A responsabilidade objetiva doEstado prevista a partir da Constituição de 1946, porém, não foi aindaincorporada.

Sonia Sterman17 afirma que o fundamento da responsabilidade doEstado por movimentos multitudinários encontra-se no Código Civil.18

“No curso da ação ajuizada com fundamento no art.15 c/ art. 159 doCódigo Civil, pelo particular contra o Estado, haverá necessidade deperquirição de culpa, que consiste na omissão do Estado quanto aoseu dever de segurança e, quanto ao particular, também a prova deter ele contribuído na sua parcela quanto à segurança pública, avisandoà polícia da ocorrência do evento, pedindo-lhe providências para evitardanos a sua integridade física e a sua propriedade”.19 (itálicos nosso)

Este critério de avaliação do comportamento do particular elude o deverprimário das instituições policiais na manutenção cotidiana do policiamentoostensivo e preventivo. A autora parte de uma noção superada e anacrônicade polícia reativa, principalmente à chamadas telefônicas. Na prática, essadoutrina normativa pretende transferir o ônus da informação sobre avulnerabilidade social e da prática criminosa, à vítima.20

17 Procuradora do Estado de São Paulo que publicou sua dissertação de mestrado sobre aresponsabilidade civil do Estado face à predações por movimentos multitudinários. Foi feita apartir da experiência da Autora na defesa do Estado de São Paulo nas ações ajuizadas pelosparticulares para obtenção de ressarcimento pelos saques praticados contra lojas e ambulantesautorizados no centro de São Paulo em 1983, e na cidade de Ribeirão Preto na época da comemoraçãoda Copa do Mundo de 1982. Ler: STERMAN, Sonia. Responsabilidade do Estado. MovimentosMultitudinários: Saques, Depredações, Fatos de Guerra, Revoluções, Atos Terroristas. São Paulo,Ed. Revista dos Tribunais, 1992. 122p.18 “O fundamento da responsabilidade do Estado por movimentos multitudinários é o art. 15 c/c art.159 do Código Civil, pois o art. 37, §6º, da Constituição Federal de 1988, somente diz respeito aosdanos ocasionados pelos agentes da Administração e não aos danos ocasionados por atos de terceiros,em pessoas físicas ou propriedades privadas ou, ainda, por fenômenos da natureza. O referidoartigo, e seu inciso da Carta Maior, só atribui a responsabilidade objetiva ao Estado pelos danos queseus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros.” STERMAN, Sonia. Responsabilidade doEstado. Movimentos Multitudinários: Saques, Depredações, Fatos de Guerra, Revoluções, AtosTerroristas. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1992, p. 108.19 STERMAN, Sonia. Responsabilidade do Estado. Movimentos Multitudinários: Saques,Depredações, Fatos de Guerra, Revoluções, Atos Terroristas. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais,1992, p. 108.20 Nisso a doutrina parece inspirada na “doutrina de segurança nacional” que pregava que todapessoa natural ou jurídica é responsável pela segurança. Ver a respeito, o artigo 1º da Lei nº 6.620de 17 de dezembro de 1978 (Lei de Segurança Nacional).

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Ocorre nessa doutrina uma extraordinária inversão da funçãoinstitucional e social da polícia de segurança pública. Ao invés desseórgão público atuar efetivamente para “preservar a ordem e garantir aincolumidade da pessoa e do patrimônio” são os cidadãos em situaçãode risco iminente que devem agir para se proteger de forma pronta eeficaz – telefone à mão, no mínimo – para mobilizar a polícia. Se a vítimaassim não proceder será, segundo a doutrina de Sonia Sterman, culpada,posto que negligente. Mesmo se a desafortunada vítima de depredaçõesfeitas por multidões conseguir no meio do tumulto telefonar, e ser atendidaao telefone deverá ainda provar que a polícia eventualmente falhou, queo serviço foi anormal. Qual o critério de avaliação proposto para que ojuiz venha a aferir a “culpa do Estado”? A rigor, não se apresenta nenhum.Escreve a autora em conclusão:

“A aferição da culpa do Estado e do particular, quanto ao aspecto desegurança pública, somente pode ser aquilatada pelo Poder Judiciárioatravés do processo regular e mediante produção de provas, poissomente a esse Poder compete aferir, mediante análise de cada casoconcreto, se o Estado através da polícia, agiu ou não corretamente e seo particular procurou evitar os atos danosos produzidos pela multidão.”21

Essa doutrina normativa enfraquece as garantias do cidadãoasseguradas pelas Constituições brasileiras desde 1946, primeiro, aoatribuir ao particular uma culpa como vítima negligente por não chamarimediatamente a polícia. Segundo, ao onerar a vítima com o ônus daprova da culpa do Estado no caso de omissão. Há um paradoxo notável. Amissão constitucional das polícias é manter a ordem pública e combateratos delituosos; mas se a desordem predatória de massa ocorre énecessário- pela doutrina normativa - que a vítima do fato danoso evidenciea falha do serviço policial.

VI UMA PROPOSTA ALTERNATIVA DE CRITÉRIO DE AVALIAÇÃO

A polícia preventiva, particularmente atribuída à Polícia Militar, temfunção administrativa ativa e espontânea. Mário Masagão22 explica que

21 STERMAN, Sonia. Responsabilidade do Estado. Movimentos Multitudinários: Saques, Depredações,Fatos de Guerra, Revoluções, Atos Terroristas. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1992, p. 108.22 MASAGÃO, Mário. Curso de Direito Administrativo, 4ª ed. revista. São Paulo: Editora Revistados Tribunais, 1968, p. 47-53.

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“as funções ativas consistem em deliberar ou em executar deliberações”.Estas “funções ativas” por sua vez se subdividem em espontâneas eprovocadas.

“São funções espontâneas as que a administração executaindependentemente de quem quer que seja. O Estado tem de exercê-las, sob pena de faltar aos seus deveres. Exemplo: as de políciapreventiva.” 23(itálicos nosso)

O saque, o arrastão, o quebra-quebra, o incêndio provocado empúblico, a predação multitudinária por tempo prolongado são fatos sociaisque evidenciam, por sua própria ocorrência, a omissão policial. O pontode partida da análise da responsabilidade objetiva é o dano sofrido pelavítima. O prejuízo de que se queixa a vítima tem que ser conseqüênciada omissão administrativa para que o Estado seja responsabilizadocivilmente. É, portanto, indispensável o nexo causal entre o fato danosoe a omissão policial.

As polícias precisam ser avaliadas, em juízo, nos casos deresponsabilidade do Estado por omissão como organizações profissionaiscompetentes que tem informações, recursos pessoais e materiais, emissões funcionais de agir sempre em defesa da ordem pública.

A verificação de existência, ou não, de omissão na manutenção daordem pública é feita face ao problema concreto – danos causados porgrupos de desordeiros que não foram controladas pela polícia. Cabe, emdefesa do Estado, se provar que ocorreu uma causa excludente do nexode causalidade como a força maior.

As decisões judiciais dos Tribunais de Justiça da Guanabara e do Estadodo Rio aplicaram critérios de avaliação estabelecidos normativamente, e“padrões jurídicos” (standards)24 que são construídos pela jurisprudênciae pela doutrina, e aceitos pelos desembargadores. No caso da pilhagemdo Mercado São Sebastião caberia ao Estado da Guanabara “demonstrar aocorrência da força maior que impossibilitou a contenção do saque”. No

23 MASAGÃO, Mário. Curso de Direito Administrativo, 4ª ed. revista. São Paulo: Editora Revistados Tribunais, 1968, p. 48.24 Sobre o conceito de “standard” (padrão) jurídico, ler: ARNAUD, André-Jean (org.) DicionárioEnciclopédico de Teoria e sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 770-771.

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caso da “revolta das barcas”, o acórdão afirma que as” depredações,incêndios e saques não teriam chegado ao ponto que chegou seimediatamente o Governo tomasse as medidas enérgicas que a situaçãoexigia”. Somente à noite, o acórdão especifica, o Governo fluminense“requisitou o auxílio das tropas do Exército sediadas em São Gonçalo,que de pronto restabeleceram a ordem na cidade”. Aqui o Tribunal avalia,através de um “standard de comportamento” que houve omissão pois oExecutivo não usou, conforme devia, imediatamente de toda a força erecursos necessários e disponíveis para debelar as depredações. O padrãoadequado de ação ou comportamento é que o Executivo aja imediatamentecom todos os recursos e meios adequados e disponíveis para restringiros efeitos danosos dos distúrbios, e fazê-los cessar. Se não o fez, se omitiu.Como danos resultaram aos particulares, surge a obrigação de ressarci-los porque não garantiu a incolumidade de suas propriedades, quandoera oportuno e com os recursos que tinha ao seu dispor. A função do“standard” é proporcionar uma ligação entre a norma jurídica vigentecom outras regras (sociais, morais, técnicas) às quais é necessário recorrer,ao julgar um caso concreto, para verificar a presença da qualidade exigidapelo princípio ou regra de direito positivo.

Na análise da jurisprudência é tarefa do jurista verificar se os padrõesde avaliação adotados são, ou não, compatíveis e adequados com osprincípios e regras jurídicas positivas. Certos padrões (standards) deorigem em doutrina normativa, ou construções jurisprudenciais, podemser inconsistentes ou incompatíveis com as prescrições vigentes, pois,pertencem à modelos jurídicos parcialmente modificados, ou não maisvigentes. Outros padrões de apreciação propostos- como o do telefonemaprévio em caso de predações por multidões – servem talvez para protegeras deficiências do próprio serviço policial de escrutínio judicial, eindiretamente, limitar as possibilidades de ressarcimento devido pelaFazenda Pública. É preciso, por isso, estar atento para o significado docritério de avaliação proposto: é para garantir o cidadão (ex parte populo)ou para garantir o Estado e as corporações policiais (ex parte principis). Aperspectiva adotada nesta tese é de que as garantias constitucionais numEstado Democrático de Direito precisam ser interpretadas e aplicadas paragarantir a cidadania e um Estado socialmente eficaz e justo.

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VII DEPREDAÇÃO E SAQUE DE SUPERMERCADO NA ÉPOCA DO PLANOCRUZADO NA PRESENÇA DA POLÍCIA MILITAR: CASO FORTUITO

O Supermercado Silva Ltda., localizado em Três Rios teve seurepresentante legal preso em flagrante, na época do Plano Cruzado, poralegada infração da lei de Economia Popular, tendo ficado detido, doque decorreu ter seu estabelecimento sido forçado a cerrar suas portas.Enquanto preso, o seu sócio teve a notícia de que o supermercado estavasob ameaça de saque e depredações, o que comunicou à autoridadepolicial, a qual “pediu insistentemente a presença da Polícia Militar”. APolícia Militar compareceu ao local com “uma patrulhinha”, mas aindaassim se permitiu o arrombamento, o saque e a destruição das máquinas,instalações e equipamentos, por uma multidão. Alguns dos saqueadores,que portavam mercadorias furtadas, chegaram a ser presos. Só horasdepois compareceu outro destacamento da Polícia Militar – dois“patamos” conduzindo maior número de soldados” - para montar guarda.Todos esses acontecimentos foram amplamente noticiados pela imprensalocal. Instaurado inquérito, foi verificada por peritos violência contra opatrimônio, com grandes danos, os quais, ao que sustenta a autora,aconteceram por omissão da Polícia Militar, que compareceu ao localantes de ocorrerem os ataques da multidão.

O Estado contestou, quanto ao mérito, referindo-se a publicações naimprensa, ser de opinião geral que “o reduzido contingente policial nadapodia fazer”. Quanto aos documentos juntos pela autora, afirmou que “elanão sabe o que diz, pois suas alegações contrastam com as conclusões dolaudo do Instituto de Criminalística Carlos Éboli”, que apresentou.

“Não se demonstrou o nexo da causalidade entre o fato e a atuaçãoda Polícia Militar. Toda a prova demonstra que ela não incitou amultidão, ao contrário do que afirmou a autora. Não houve culpa dosagentes da autoridade, que não fizeram uso de arma de fogo e,portanto, não foram imprudentes. Não houve negligência, pois a Políciaatendeu ao chamado de início com uma patrulhinha e depois comdois veículos. Nem se verificou imperícia, pois impossível debelarinvasão por duas mil pessoas. Tudo resultou da revolta do povo contraos comerciantes em muitos lugares, mesmo na Capital. O Estadodeve zelar pela segurança, mas não pode propiciar a felicidade dopovo, nem responder por todos os atos criminosos praticados em seu

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território. Mais ainda, é de todo exagerado o pedido, mesmo ante olaudo pericial.”

O Ministério Público teve como improcedente a ação. Nãocomprovada a culpa do Estado, que não poderia ser demonstrada porpublicações na imprensa, não sujeitas à contradição. A única testemunhademonstrou ter a autoridade tomado as providências necessárias dentrodos recursos que dispunha. “De qualquer forma configurou-se casofortuito, pois fato imprevisível que ultrapassou as exigências normais dasegurança pública.”

A sentença de primeiro grau julgou improcedente o pedido, “pornão se configurar culpa aquiliana nem responsabilidade objetiva do Estado,pois seria impossível exigir que uma patrulhinha contivesse milhares depessoas”.25

A 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,por unanimidade,26 manteve a sentença de primeiro grau e condenou aautora ao pagamento das custas e de honorários de advogado.

“Nada demonstra imprudência das autoridades ou dos policiais, que,ao contrário, agiram firmemente, embora com cautela, de modo aevitar danos pessoais que poderiam ter repercussões ou provocarreações ainda muito piores. Nem demonstraram elas negligência,pois atenderam à convocação, enviando de logo ao local o pequenocontingente de que podia dispor na cidade do interior onde ocorreramos distúrbios. E enviaram as pessoas indicadas para tal função, nãoincidindo em erro ao elegê-las como aptas a desempenhá-las. Tudodemonstra, assim, seguramente, a ocorrência de caso fortuito, pois

25 O relatório do Des. Paulo Pinto indica ainda que a apelação da autora (fls. 105/112), no sentidoda reforma da sentença para que fosse julgada procedente a ação, foi contrariada às fls. 119/121.Valeu-se o Estado de apelação (fls. 116/118), como recurso adesivo, para o efeito de condenação daautora ao pagamento das custas e de honorários de advogado. Contra-razões às fls. 126/127.Opinou a a Curadoria de Fazenda no sentido do desprovimento da apelação da autora e do acolhimentodo recurso do Estado, já que fora apenas adiado o pagamento das custas, não concedido o benefíciode gratuidade.26 Apelação Cível nº 2830/88 (Capital) 3ª Câmara Cível Relator: Des. Paulo Pinto. Decisão:Unânime Julgamento. 10/11/88 Registro. 30/03/89Partes: Apelantes: 1. Supermercado Silva Ltda1. Estado do Rio de JaneiroApelados: os mesmos Responsabilidade civil do Estado. Dano causado por reação multitudinária. Não comprovada culpados agentes do poder público e não sendo caso de responsabilidade objetiva, não há dever deindenizar.

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decorrentes os danos de circunstâncias imprevisíveis e incontroláveis,irremediáveis, de modo a excluir a responsabilidade do Estado porculpa de seus prepostos e a responsabilidade objetiva prevista naConstituição Federal então vigente, bem caracterizada na doutrina ena jurisprudência amplamente invocadas pela autora. Menos ainda secomprovou tivessem os policiais incitado a multidão ao desatino. Deve-se ter em conta que a autora nenhuma prova produziu no sentido dedemonstrar a culpa dos prepostos do Estado, limitando-se a procurarfazê-lo com juntada de exemplares de publicações na imprensa local,cujo valor probante é muito relativo, pois notoriamente distorcidaspor vezes ante as circunstâncias locais, por emoção ou reação popularno momento, que tais notícias até mesmo ocasionalmente podemacentuar, sofrendo mais, tal prova, a deficiência resultante de nãoestar sujeita a qualquer contraditório.”

Este caso propicia reflexões sobre o significado da teoria que justificaa não responsabilização do Estado quando depredações e saques ocorremna presença da polícia.

Celso Antonio Bandeira de Mello e Sonia Sterman doutrinam sobreimportância da prova de ter o particular “contribuído na sua parcela deresponsabilidade quanto à segurança pública, avisando a polícia daocorrência do evento, pedindo-lhe providências para evitar danos a suaintegridade física e a sua propriedade”.27 Este caso apresenta uma situaçãoextraordinária, pois um preso avisa à Policia Civil, que por sua vez,insistentemente solicita à Polícia Militar que tome providências para evitarum iminente saque por multidões enfurecidas ao Supermercado Silva,em Três Rios. A Polícia Militar envia uma “patrulhinha” para o local, istoporque foi obstinadamente alertada. Nada indica que a Polícia Civil tenha

Responsabilidade civil do Estado. Depredação por reação multitudinária. Caso fortuito. Uma vezdemonstrado que as autoridades policiais convocaram a Polícia Militar e esta compareceu, com opequeno contingente que podia dispor em cidade do interior, agindo com cautela, mas com firmezapara evitar arrombamento e depredação do estabelecimento comercial acusado de infração denormas de congelamento de preços, não se configura responsabilidade do estado por danos resultantes,pois não comprovada imperícia, negligência ou imprudência de seus prepostos e nem caracterizadaa responsabilidade objetiva prevista em norma constitucional então vigente. Configurou-se em taiscircunstâncias caso fortuito, pois imprevisível e incontrolável a reação multidinária de que resultamos danos. Sentença confirmada quanto ao mérito.27 STERMAN, Sonia. Responsabilidade do Estado. Movimentos Multitudinários: Saques,Depredações, Fatos de Guerra, Revoluções, Atos Terroristas. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais,1992, p. 108.

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tomado qualquer providência para colaborar, no mínimo, na investigaçãosobre esta notícia de situação pré-delitual.

A esta situação em que as polícias locais são previamente alertadasde um iminente saque de supermercado se pode classificar juridicamentede “caso fortuito”?

O acórdão afirma que: “Tudo demonstra, assim, seguramente, aocorrência de caso fortuito, pois decorrentes os danos de circunstânciasimprevisíveis e incontroláveis, irremediáveis”.

O relatório dos fatos do caso parecem refutar que o evento seja“imprevisível”. O saque pelas multidões era tão previsto que as políciascivil e militar foram antecipadamente avisadas de um evento de massaque aconteceu na sua presença de soldados. Por outro lado, geraperplexidade a defesa do Estado: “Tudo resultou da revolta do povo contraos comerciantes em muitos lugares, mesmo na Capital.” Saques estavamocorrendo contra supermercados que violavam o Plano Cruzado em várioslocais – e a imprensa os divulgava com alarde, em manchetes –, por issomesmo, era dever da polícia antecipar-se aos futuros eventos delituososna cidade. Deveria ficar em alerta, em prontidão, ainda mais que haviaum caso rumoroso em relação ao Supermercado Silva. Se era previsível,o dever da “polícia de manutenção da ordem pública” era evitá-lo. O ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo na década de sessenta,Hely Lopes Meirelles, escreve a respeito:

“Pode-se dizer que a polícia de manutenção da ordem pública é a quese destina a impedir os atos individuais ou coletivos que atentem contraa segurança interna, as atividades lícitas, os bens públicos ou particulares,a saúde e o bem-estar das populações, e a vida dos cidadãos, mantendoa situação de garantia e normalidade que o Estado assegura, ou devaassegurar, a todos os membros da sociedade. Essa é a missão precípua daforça pública, hoje denominada Polícia Militar”.28

A noção de “caso fortuito” nos casos envolvendo questões policiaisprecisam ser apreciados com rigor devido à missão constitucional dos

28 MEIRELLES, Hely Lopes. “Polícia de manutenção da ordem pública”, in Direito Administrativoda Ordem Pública, 2ª ed. Álvaro Lazzarini et.al. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 155.

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órgãos de segurança pública. Um dos mais importantes recursos da políciaprofissional é a inteligência – controle sobre informações que antecipemsituações de risco, e dados oriundos de investigações para solucionarcrimes. O contribuinte paga impostos e orçamentos vultosos são alocadosà segurança pública para que as forças policiais coletem cotidianamenteessas informações necessárias para intervir em situações devulnerabilidade social. Essas exigências institucionais do trabalho policialdevem ser ponderadas ao se avaliar o que é “caso fortuito”, sob pena dese escusar grave ineficácia policial sob o pretexto de uma noção que sóganha efetivo significado quando aplicada criticamente a um contextosocial. A excludente do nexo de causalidade do “caso fortuito” em matériade segurança pública precisa ser avaliada, quando invocada em defesado Estado, com enorme cautela e imparcialidade pelo magistrado,indagando-se o que seria razoável exigir-se como padrão de conduta dapolícia preventiva nas circunstâncias.

Sergio Cavalieri Filho ao comentar a diferença entre caso fortuito eforça maior escreve:

“Em nosso entender, estaremos em face do caso fortuito quando setratar de evento imprevisível e, por isso, inevitável. Se o evento forinevitável, ainda que previsível, por se tratar de fato superior às forçasdo agente como normalmente são os fatos da Natureza, como astempestades, enchentes etc., estaremos em face da força maior, comoo próprio nome odiz. É o act of God, no dizer dos ingleses, em relaçãoao qual o agente nada pode fazer para evitá-lo, ainda que previsível.

Como se vê, não se pode estabelecer a priori um critério paracaracterização do caso fortuito e da força maior. É preciso apreciarcaso por caso as condições em que o evento ocorreu, verificando senessas condições o fato era imprevisível ou inevitável.

... A imprevisibilidade, portanto, é elemento indispensável para acaracterização do caso fortuito, enquanto a inevitabilidade o é daforça maior”.29 (itálicos no original)

No caso do saque ao Supermercado Silva, o acórdão identifica casofortuito com força maior, no que segue, por um lado, o Código Civil, art.

29 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil, 2ª ed. revista, aumentada eatualizada, São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 66-67.

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1.058: “O caso fortuito, ou de força maior, verifica-se no fato necessário,cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”.

Por outro lado, está aí assinalada uma opção doutrinária normativa,conforme lembra Cretella Júnior:

“Para a doutrina que aceita a responsabilidade pública, fundada naculpa administrativa, o caso fortuito é assimilado à força maior, porqueambas as causas não podem acarretar a responsabilidade pessoal doautor aparente do dano: o funcionário público capitula fisicamentediante da força maior, porque humanamente é impossível deter-lheos efeitos e sucumbe ante as conseqüências danosas do caso fortuito,cuja previsibilidade ficou além da sua captação intelectual.”30

A previsão de ações delituosas constitui encargo profissional dos serviçosde inteligência policial, que são possíveis de ser aperfeiçoadosconstantemente, seja pela capacitação dos policiais em investigação científica,seja pela introdução de tecnologia apropriada de comunicação e análise deinformações. Os saques de supermercados previamente anunciados nãopodem ser classificados como “caso fortuito” em sentido estrito.

As “circunstâncias incontroláveis e irremediáveis” não foramdevidamente analisadas. A expectativa de saque por multidões exigepronta mobilização de um contingente policial de poder dissuasório. Aexibição de força policial armada sabidamente inibe multidões, e talvezcom maior eficácia numa cidade do interior. Não há qualquer menção deque a multidão estivesse armada ou tivesse combatido os policiais. Aocontrário, os indícios são de que a força pública não foi usada para conterdistúrbios de rua, com técnicas que demonstrem firmeza de propósito.Existem inúmeras possibilidade de conter multidões sem ter que dispararbalas. Entretanto, não existe menção de choque entre policiais e ospopulares, e não há, menos ainda, indício de prisões significativas. “Algunsdos saqueadores, que portavam mercadorias furtadas, chegaram a serpresos”, afirma o relatório. Não se menciona quantas prisões foramefetuadas. Não há sequer indicação de que na correria por perseguiçãopolicial algum acidente ocorreu. Fica a impressão que o saque populardecorreu sem oposição da força policial.

30 CRETELLA JUNIOR, José. O Estado e a obrigação de indenizar. Rio de Janeiro: Forense, 1998,p. 136.

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Themistocles Brandão Cavalcanti distingue doutrinariamente casofortuito de força maior, mas afirma que existem dois elementos comuns:imprevisibilidade e irresistibilidade. Sobre o este segundo elemento,escreve:

“A idéia de irresistibilidade é função da violência do fato, da forçaexcepcional dos elementos de destruição, violência que sobrepujatodas as precauções tomadas. ...Deverá ser considerado irresistível odano quando todas as medidas para evitar o acidente foram tomadas,quando, apesar das providências, das precauções, o fato ocorrer,zombando de todo esforço da técnica, do emprego, dos meiosaconselhados e adequados conhecidos”.31

Esta noção de irresistibilidade, apesar de muito genérica, serve comoreferência para a discussão sobre o nexo causal entre a ação preventivada polícia de Três Rios e os eventos multitudinários danosos.

O acórdão unânime da 3ª Câmara Cível concluiu que os saques edepredações eram, além de imprevisível, “incontrolável, irremediável,de modo a excluir a responsabilidade do Estado por culpa de seusprepostos e a responsabilidade objetiva prevista na Constituição Federalentão vigente”.

A ira dos “fiscais do Sarney” contra a venda de mercadorias acimada tabela marcou uma época política. A “maquiagem” de produtos e o“mercado negro” frustraram as expectativas do cidadão na estabilizaçãoeconômica. A ordem pública não pode, entretanto, ser comprometidapor eventuais políticas econômicas de maior, ou menor, apoio popular. Adecisão judicial de responsabilizar o Estado por não garantir a propriedadede empresários inescrupulosos pode ser contrária à opinião pública. Masno Estado de Direito, as garantias dos direitos precisam prevalecer, e aadministração e o judiciário atuarem com imparcialidade.

Nesse caso, aplicação da responsabilidade subjetiva da “culpaadministrativa” deveria apontar para o mau funcionamento do serviço, sea interpretação dos fatos for que a prevenção e repressão policial dos

31 CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Tratado de Direito Administrativo, 4ª ed. vol. 1. Rio deJaneiro: Livraria Freitas Bastos, 1960, p. 419.

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saques foi mal conduzida ou executada. Ou, apontar para o não-funcionamento do serviço em virtude da omissão culposa da polícia.32

Vista pela teoria objetiva, nesse caso não se configura a excludentedo caso fortuito ou força maior – para usar o critério do acórdão- pois osaque foi previsto, anunciado, e medidas policiais preventivas de caráterdissuasório evitariam a predação. Houve inequivocamente um eventodanoso cuja causa jurídica omissão de providências policiais imediatas eadequadas para evitar um acontecimento previsto e, por isso, resistívelcom o uso legítimo da força pública com firmeza e técnica profissionalrazoavelmente exigível.

VIII DOIS CASOS DE PREDAÇÕES POR MULTIDÕES JULGADOS NADÉCADA DE NOVENTA PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DORIO DE JANEIRO

Somente duas decisões em um caso de movimento multitudinárioforam encontradas na pesquisa sobre responsabilidade civil do Estado naárea de segurança pública no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro noperíodo 1989-1998. Por isso, é oportuno comentar esses casos neste ponto.

32 Um caso análogo de São Paulo pode ser lembrado para indicar que a aplicação da doutrina da“culpa do serviço” pode resultar na responsabilização do Estado. Na apelação civil nº 163.541, aempresa Auto Ônibus Parada Inglesa teve seus veículos depredados, em virtude de um movimentode agitação popular, atribuindo ao Estado a omissão de providências ao seu alcance para evitar odano. Ao afirmar que “o Estado descumpriu a sua obrigação de zelar pela integridade dos bens dosparticulares”, o relator Des. Octávio Stucchi, escreve: “Ao aflorar o movimento multitudinário,providências foram solicitadas e a intervenção da autoridade embora, timidamente, conjurou operigo imediato; e a autora atendeu à recomendação para a retirada de veículos em circulação.Posteriormente, quando a agitação se agigantou, os reiterados apelos caíram no vazio e os múltiplose insistentes pedidos de proteção foram simplesmente ignorados (fls.). A Inércia e indiferença dasautoridades policiais e militares foi a tônica nessa fase mais grave dos acontecimentos. Tempohouve, e com larga sobra, para uma intervenção eficiente.Nem caberia a desculpa, com força exoneradora, de que a exaltação tomara conta da cidade toda,com o acirramento de ânimos pela paixão política da época eleitoral. Se assim fosse, maior razãopara a vigilância das autoridades e maior energia na repressão dos assaltos e na prevenção dosdistúrbios. O Estado falhou, naqueles momentos difíceis, à sua missão e, não empregando os meiosao seu alcance para arredar a depredação, tornou-se responsável pelos danos”. Apelação Cível nº163.541 (recusro “ex officio) Capital. Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado deSão Paulo. Relator: Des. Octávio Stucchi. Decisão: unânime. Julgamento: 12/10/1967. Partes:apelados: Empresa Auto O ônibus Parada Ingles Ltda. e Fazendo do Estado. Apelados: os mesmos.Ementa: Responsabilidade civil do Estado. Veículos de empresa particular depredados por massapopular. Omissão das autoridades policiais. Obrigação da Fazenda Pública de reparar o dano. Açãoprocedente. O Estado pode ser compelido à composição de prejuízos decorrentes de danos causados

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VIII.1 QUEBRA-QUEBRA CONTRA O AUMENTO DAS PASSAGENS DE ÔNIBUS

O apelante Féliz Carlos Caudet atravessava a Av. Rio Branco quandofoi atingido por uma bomba durante os incidentes que marcaram a revoltade populares em face da majoração das passagens de ônibus no dia 30de junho de 1987. Foi internado no setor de ortopedia do Hospital SouzaAguiar, onde se submeteu a uma cirurgia. Ingressou com uma açãoordinária de indenização contra o Estado que foi julgada improcedentena sentença de 1º grau. Apelou dessa sentença ao Tribunal de Justiça doRio de Janeiro, que julgou, por maioria, improcedente o pedido.33

O voto do relator indica que a Polícia Militar chegou em tempo, porémo número de policiais foi insuficiente para conter os depredadores. Foram,então, chamados mais policiais. O tumulto começou em torno do meiodia, e só foi debelado por volta das 18 horas. O relator acolhe as notíciaspublicadas no Jornal do Brasil e O Globo para fundamentar seu relato.

O relator adere à interpretação do artigo 107 da Constituição de1967/69 e do artigo 37, §6º, da vigente Constituição feita pela doutrinanormativa de Hely Lopes Meirelles34, que “chega a citar jurisprudênciaque tem exigido a prova de culpa da administração nos casos dedepredações por multidões.”

pela multidão à propriedade privada, desde que omisso ou desidioso na prestação de garantias.33 Apelação nº 4545/90. 6ª Câmara Cível. Julgamento: 19/03/1991. Decisão: por maioria Relator:Des. João Carlos Pestana de Aguiar. Voto vencido: Des. Mello Serra. Partes: Apelante Félix CarlosCaudetApelado: Estado do Rio de Janeiro Responsabilidade civil do Estado. Incidentes de revolta dapopulação em decorrência da majoração de passagens de ônibus. Autor atingido por bomba. Culpaincomprovada. Voto vencido concedendo indenização por dano material.Ementa: Pedido de indenização contra o Estado por ter o Autor sido atingido por uma bombadurante incidentes de revolta da população pela majoração das passagens de ônibus. Incomprovaçãoda culpa do Estado no fato. Improcedência confirmada.Voto vencido: O cidadão tem direito à incolumidade pessoal (art. 5º da Constituição Federal). Édever do Estado prestar segurança e por isso utilizará a força necessária para desanimar os atos deviolência (art. 144, da Constituição Federal). Distúrbio localizado, mas diante do emprego tímidoda força pública, prolongou-se no tempo, dando causa a tumulto e as conseqüências graves deledecorrentes, como o dano sofrido pelo cidadão, e que, por essa causa, deve o Estado indenizá-lo.Impossibilidade de indenização cumulativa por danos moral e material, pois esta última exclui aprimeira porque nela compreendida. Provimento parcial da apelação. Revista de Direito Vol 11,1990, p. 258-260.34 O trecho aludido pelo relator é o seguinte: “O que a Constituição distingue é o dano causado pelosagentes da administração (servidores) dos danos ocasionados por atos de terceiros ou por fenômenosda Natureza. Observe-se que o art. 37, §6º, só atribui responsabilidade objetiva à Administraçãopelos danos que seus agentes, nessa qualidade causem a terceiros. Portanto, o legislador constituinte

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A questão crucial neste caso para a decisão judicial é, como sempre,fixar o nexo causal entre a bomba que atinge o cidadão (fato danoso) e aomissão policial. O voto do relator afirma que este nexo causal –indispensável para a responsabilização civil do Estado – não foiestabelecido, seja com a omissão ou com a ação policial.

“Na hipótese, tivesse o Autor, ora Apelante, comprovado o retardo daP.M. no comparecimento ao local, estabelecendo uma correlação decausa e efeito desse retardo com o dano por si sofrido, ou comprovadoque a bomba cujos fragmentos o atingiram fora lançada por um agentede autoridade, aí teríamos a prova indispensável da causa do dano,qual fosse a ação ou inação dos agentes da autoridade pública.

Na hipótese, não veio aos autos essa prova, fato constitutivo do pedidoem face do que o alegado ferimento sofrido pelo Apelante decorreudos distúrbios populares em cujo epicentro foi o mesmo transitar, aequivaler a um roubo ou furto em via pública, obviamente inindenizávelpelo poder público”.

O voto vencido do Des. Mello Serra na apelação cível nº 4545/90 fixadois pontos. Primeiro, que houve prova de que “a força pública não foiempregada como devia ser, preservando a integridade pessoal epatrimonial dos cidadãos (art. 5º, caput, e 144, caput, da ConstituiçãoFederal), e como corolário inevitável deve o Estado reparar os danos quedeu causa com a sua ineficiência”.

O Des. Mello Serra fundamenta seu voto a partir da perspectiva dafunção constitucional dos órgãos de segurança pública.

“Embora a segurança pública seja um direito e responsabilidade detodos os cidadãos é dever do Estado assegurá-la e, para tanto, cabe-lhe o exercício do poder de polícia, com ou sem emprego de força,para preservação da ordem pública, e da incolumidade das pessoas edo patrimônio (art. 144 da Constituição Federal).

A segurança pública é monopólio do Estado e é exercida, ex vi do art.144, nºs I a V, da Constituição Federal, pelas polícias federal e estadual.

Não pode o cidadão substituir-se ao Estado e exercer qualquer dasações próprias da polícia.

Daí exigir-se que o Estado cumpra sua missão constitucional e, senão o faz, por culpa de seus agentes, deve reparar o dano causado.”

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O segundo ponto do voto do Des. Mello Serra é que o dano estáprovado. “Houve danos físicos, que o Estado deve reparar, incluída naindenização do dano material, a ser apurada em execução, a referente adano moral, ante a impossibilidade de cumulação, porque essa estáincluída naquela.”

O voto vencido possibilitou os Embargos Infringentes nº 78/91 naApelação Cível 4545/90, que foi decidido por maioria pelo 4º Grupo deCâmaras Cíveis.35

O relator Des. Marden Gomes frisa, de início, que o aspecto principalda lide não está na teoria defendida (responsabilidade objetiva versusresponsabilidade subjetiva do Estado)36. “É que, seja qual for a teoriaabraçada, insta demonstrar a existência do dano e da relação dacausalidade, ônus que incumbe ao ofendido e do qual se descurou porcompleto, daí o desacolhimento de seu pedido na sentença confirmadapela douta maioria.”

só cobriu o risco da atuação ou da inação dos servidores públicos; não responsabilizou objetivamentea Administração por atos predatórios de terceiros, nem por fenômenos naturais que causem danosaos particulares. Para a indenização desses atos e fatos estranhos à atividade administrativa observa-se o princípio geral da culpa civil, manifestada pela imprudência, negligência ou imperícia narealização do serviço público que ensejou o dano. Daí por que a jurisprudência, mui acertadamentetem exigido a prova da culpa da Administração nos casos de depredação por multidões e deenchentes e vendavais que, superando os serviços públicos existentes, causam danos aos particulares.Nestas situações, a indenização pela Fazenda pública só é devida se comprovada a culpa daAdministração. E na exigência do elemento subjetivo culpa não há qualquer afronta ao princípioobjetivo da responsabilidade sem culpa, estabelecido no art. 37, § 6º, da CF, porque o dispositivoconstitucional só abrange a atuação funcional dos servidores públicos, e não os atos de terceirose os fatos da Natureza. Para situações diversas, fundamentos diversos”. Cf. MEIRELLES, HelyLopes. Direito Administrativo Brasileiro, 18ª ed., Ed. Malheiros, São Paulo, 1993, p. 560. Entrevárias atividades, Hely Lopes Meirelles foi Secretário de Segurança Pública de São Paulo.35 Embargos Infringentes nº 78/91 na Apelação Cível 4545/90 4o Grupo de Câmaras CíveisRelator: Des. Marden Gomes Julgamento: 02/10/91 Decisão: por maioria Votos vencidos: Des.Semy Glanz e Des. Narciso Pinto. Reg. 19/12/91Embargante: Felix Carlos Caudet Embargado: Estado do Rio de JaneiroEmenta: Movimentos multidinários. Responsabilidade objetiva do Estado. Improcede pedido deindenização quando incomprovados os danos e a relação de causalidade. A responsabilidade civil daadministração emana tão somente da atuação ou inação de seus servidores públicos.36 “Enquanto o embargante agasalha sua pretensão na responsabilidade objetiva do Estado, oudoutrina do risco administrativo, a isso se contrapõe o embargado, tentando direcionar a questãopara a teoria da culpa. A discussão, assim considerada, não oferece grande atrativo, divorciada quese encontra dos demais elementos estruturais do ato ilícito, cuja presença se faz necessária para darlugar à responsabilidade civil e o conseqüente dever de indenizar”.

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O relator afirma que a comprovação do dano alegado é deficiente37 eque as circunstâncias do evento danoso não estão totalmenteesclarecidas.38 E conclui:

“De qualquer forma, o movimento que teria dado origem aos eventuaisdanos foi repentino, consoante informam os autos, e a ação repressorada polícia não tardou. Nessas condições dentro da melhor doutrina, oEstado não responde pelos prejuízos advindos, com fundamento naresponsabilidade objetiva da administração, limitada que se encontra,por lei, a cobertura do risco administrativo pela atuação ou inaçãodos servidores públicos”.

O voto vencido foi redigido pelo Des. Semy Glanz, que curiosamente,recorre também à Hely Lopes Meirelles39, além de José Afonso da Silva40,para sustentar que ao caso se aplica a responsabilidade objetiva do Estado.

O relator dos embargos infringentes havia, no entanto, deslocado ofoco da discussão para a comprovação do dano e da relação decausalidade. O Des. Semy Glanz sustenta que o “dano está bem provado,em fls. 48.”41 Quanto ao fato, a fotografia que consta nas fls. 20, mostra

37 “Com efeito, o autor, na peça inaugural reclama o ressarcimento,pelas lesões sofridas, com otratamento e pela redução da capacidade laborativa, mas nenhum elemento trouxe à colação, capazde comprovar a sua asserção, senão os recibos de pagamento de benefício pelo INPS e o diagnósticooperatório aludido na certidão fornecida pelo Hospital Municipal Souza Aguiar. Desistiu da provapericial requerida (fls.70). Sequer alegou uma incapacidade total temporária com resultados danososem sua atividade laborativa”.38 “Com relação ao evento que teria dado causa aos invocados prejuízos carreou aos autos, tãosomente, exemplares de jornais dos quais consta seu nome como uma das vítimas do movimentopredatório, o que não se afigura suficiente, pois não afasta a possibilidade de ter sido outra a causada lesão, quem sabe alheia aos acontecimentos narrados. O próprio autor, na inicial, sustenta tersido atingido por uma bomba enquanto na petição destes embargos (fls.125) alude a uma baladisparada por um policial”.39 “Aqui não se cogita da culpa da Administração ou de seus agentes, bastando que a vítima demonstreo fato danoso e injusto ocasional por ação ou omissão do Poder público. Tal teoria como seu nomeestá a indicar, baseia-se no risco que a atividade pública gera para os administrados e na possibilidadede acarretar danos a certos membros da comunidade impondo-lhes um ônus não suportado pelosdemais”. (Direito Adm. Bras.. cap X, evolução). Cf. citação nos Embargos Infringentes nº 78/91 naApelação Cível 4545/90, fls. 154.40 “O terceiro prejudicado não tem que provar que o agente procedeu com culpa ou dolo, para lhecorrer o direito ao ressarcimento dos danos sofridos.” (Curso de Dir. Const. Positivo, 6ª ed., 1990,p. 567, Princípio da resp. civil da administração). Cf. citação nos Embargos Infringentes nº 78/91na Apelação Cível 4545/90, fls. 154.41 “A certidão hospitalar, em que aparece o socorro, tendo como causa “agressão”, sendo a vítimainternada no serviço de ortopedia, constando: fratura 1/3 distal de tíbia e perôneo. Diagnósticopré-operatório: fratura exposta tíbia e perõneo direito por PAF (projétil de arma de fogo”. Apósconsta que feito curativo, foi transferido para outro hospital. Cf. citação nos Embargos Infringentesnº 78/91 na Apelação Cível 4545/90, fls. 155.

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“o próprio autor, caído e a seu lado, indo em sua direção, um policialfardado, constando sob a foto, o nome do autor”. Conclui, então, o Des.Semy Glanz:

“Ora, evidente que fratura da perna (tíbia e perôneo), internação emhospital e suas conseqüências representam dano . Assim, queiramosou não, o dano está provado. E a relação de causalidade também.Onde ocorreu o dano? Na via pública. Em que situação? Quandohavia distúrbios e a polícia reprimia. Está tal fato provado? Claro, pelafoto e pelas certidões de socorro, com o nome do autor. Assim, danoe nexo causal foram comprovados. Não se precisa comprovar a culpado Estado, pois este responde objetivamente. Quem deveria, aliás,provar que não atirara a bomba e não atingira o embargante, é oEstado. Realmente como observa o douto e sempre invocado Min.Aguiar Dias, ocorre nesses caos a inversão do ônus da prova. Pois sea vítima foi atingida e caiu, como exigir dela que vá arrolar testemunhasde fato? Seria bem mais fácil que os policiais presentes o fizessem ouque narrassem o fato. Se cabe à vítima (que em geral desmaia ou atémorre) provar o fato, evidentemente que a responsabilidade não seprovará.

Por tais motivos, o voto é dar provimento ao recurso, avaliando-se osdanos em liquidação, já que a inicial, infelizmente, não prima pelamelhor técnica”.

O voto do Des. Semi Glanz interpreta a situação como a de uma vítimainocente de um disparo de arma de fogo (“bala perdida”) durante umconflito de rua com a participação de policias em atividade repressiva. Ahipótese deixa de ser vista como de responsabilidade do Estado poromissão.

O Des. Glanz passa a analisar um contexto precariamentedocumentado, devido ao próprio conflito, como um caso em queprovavelmente a polícia disparou contra a multidão para dispersá-la eatingiu a vítima na perna. Como poderia a vítima, caída, com dores nomeio de um quebra-quebra, estabelecer a origem dos disparos e assimevidenciar o nexo causal? O Desembargador invoca um critério- que foiadotado várias vezes em casos de vítimas inocentes de disparos de armasde fogo (“balas perdidas”) pelo Tribunal de justiça do Rio de Janeiro –adequado para buscar a verdade nos fatos: a inversão no ônus da prova.Este é o critério apropriado, por ser razoável, nas circunstâncias do caso

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concreto. Não adotá-lo significa, conforme sentencia o Desembargador“que a responsabilidade não se provará”.

VIII.2 CONCLUSÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADOPOR OMISSÃO NOS CASOS DE MOVIMENTOS MUTITUDINÁRIOSNO RIO DE JANEIRO

Os casos analisados na década de sessenta, inicialmente, e na décadade noventa apontam para dificuldades interpretativas significativas, quese evidenciam nas divergências nos julgamentos da Apelação Cível nº4545/90 e dos Embargos Infringentes nº 78/91.

Primeiro, apesar dos procuradores do Estado alegarem em sua defesaque a responsabilidade por omissão é subjetiva, o fato é que estaclassificação constitui uma distinção especiosa. Mesmo em São Paulo,onde se encontram os principais mentores dessa doutrina normativa, oTribunal de Justiça repudiou em várias ocasiões esta construção. O Des,Candido Rangel Dinamarco, em decisão unânime, afirmou na ApelaçãoCível 55.394-1/198542, o seguinte:

“A jurisprudência tem apoiado significativamente a idéia de que o art.107 da CR tem o escopo de repartir pela população os danos sociaisdecorrentes das atividades exercidas pelos agentes e funcionáriosestatais, bem como das deficiências dos serviços públicos a cargo doEstado. É arbitrária, porque não corresponde a essa importante garantiaconstitucional nem ao seu espírito, a restrição proposta pela apte., deque por atos omissivos do seu pessoal o Estado só responderá quandohouver culpa. Quer se trate de conduta omissiva ou comissiva, osdanos ligados à atividades de agentes e funcionários sãoresponsabilidade civil objetiva do Estado, dispensado o elementosubjetivo.” (itálico nosso)

42 Apelação Cível nº 55.394-1/85 – Salto 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de são Paulo. Apte.Prefeitura Municipal Apdo. Ivanir Paulino Dias. Rel. Des. Rangel Dinamarco. Julgamento: 05/02/85. Decisão: unânime. Ementa: Responsabilidade civil do Estado. Caráter objetivo, quer se trate deconduta comissiva, quer omissiva. Responsabilidade civil do Estado – Interno de hospital municipal,com distúrbios mentais decorrente de intoxicação, que foge e vem a ser atropelado e morto – Falhano dever de vigilância – Veículo atropelador também pertencente ao Município e que trafegavairregularmente- Procedência.

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Segundo, o ponto que suscita dificuldade real aos tomadores de decisãoé o estabelecimento, ou não, do nexo de causalidade entre os atos damultidão de predadores e a omissão estatal. Os Embargos Infringentesnº78/91 divide o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro nesta questão paraa responsabilidade objetiva, na qual é sempre indispensável indicar onexo causal entre o dano sofrido pela vítima e a omissão administrativa.O voto do relator e o voto do Des. Semy Glanz reconhecem que a petiçãoinicial não estabelece claramente o nexo de causalidade.

A responsabilidade objetiva do Estado precisa ser apreciada, em todasua extensão, como uma conquista da cidadania. O seu ciclo aindaincompleto em termos de efetividade acompanha a trajetória da criaçãode garantias de eficácia do direito dos particulares perante o poderpúblico. Esta é a grande contribuição do direito contemporâneo emconstrução. Após o reconhecimento de direitos fundamentais deinviolabilidade da vida, da liberdade e da propriedade, e a sua expressãopositivada nas constituições escritas, é indispensável criar garantias efetivasdesses direitos. A criação dessas garantias de eficácia por sua vezdemandam reformas institucionais para serem aplicadas em sua plenitude.

Aqui se pode re-apresentar o problema latente que se esconde sob asregras processuais que estão no centro da controvérsia da responsabilidadeobjetiva versus responsabilidade subjetiva do Estado: o significado práticodo ônus da prova.

A pesquisa empírica realizada sobre responsabilidade civil do Estadona área de segurança pública aponta constantemente para este aspecto:sob a retórica de uma disputa sobre o “direito material” estãosubentendidas escolhas sobre como alocar o ônus da prova do nexo causal,e a admissão de certos elementos de prova como conclusivas ousuficientes para estabelecer a prova do nexo causal.

Existência de nexo causal entre o fato danoso e a ação ou omissão doagente estatal é requisito para a configuração da responsabilidade objetivado Estado. Nos casos de omissão policial na área de segurança pública,conforme se constata, os magistrados enfrentam um problema que seapresenta ostensivamente de maneira diversa dos casos tradicionais deatos comissivos.

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A atividade de manutenção da ordem pública é de tempo integral ealcance amplo: deve agir pronta e eficazmente para evitar e reprimirdesordens públicas e delitos, quando e onde acontecerem com os meiosadequados e necessários, e agindo dentro da sua autoridade legal. Arealização dessas atividades policiais são dever primário do Estado, ecomo tal precisam ser avaliados pelo Judiciário. A inação policial, noentanto, é aspecto ainda pouco apresentado em ações indenizatóriascontra o Estado. Surpreende que tão poucos casos de movimentosmultitudinários tenham sido encontrados na pesquisa, principalmente,se for considerado que a memória do cidadão carioca registra inúmeroscasos de quebra-quebra e arrastões.

É provável que a grande dificuldade para as vítimas de danos nas açõesindenizatórias concernentes movimentos indenizatórios esteja nasexigências de comprovação do nexo causal entre o fato danoso e a omissãopolicial. Raras pessoas testemunham contra as polícias, ou policiais, pormedo, muitas vezes justificado, de retaliação e perseguição pessoal efamiliar. Policiais, por sua vez, em regra não testemunham contra policiais.Não surpreende que jornais, vídeos, fotos, material de imprensa em geralseja usado preponderantemente nos casos envolvendo policiais, conformese constatou ao longo da pesquisa feita.

A questão que se apresenta desafiadoramente para os juristas e osmagistrados está em como, a partir dos entendimentos doutrinários einterpretações construídas pela prática judicial passada, superar osobstáculos à comprovação do nexo de causalidade que tornam aresponsabilização civil do Estado uma promessa irrealizável.

Uma das respostas, bastante freqüente, nas decisões do Tribunal deJustiça do Rio de Janeiro, consiste em inverter o ônus da prova. Conformeindicou o Des. Semy Glanz nos Embargos Infringentes 78/91, ascircunstâncias e características do evento danoso, às vezes, tornamimpossível ou altamente improvável que a vítima possa estabelecer aautoria do dano. Aguiar Dias, transcrito no caso da “revolta das barcas”,aponta para a inversão do ônus da prova nos casos de movimentosmultitudinários: “o Estado responde pelo dano causado aos particularessempre que não provar haver empregado todos os meios ao seu alcancepara evitá-los”.

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A análise do Des. Semy Glanz do quebra-quebra em via pública queresultou numa vítima de disparo de arma de fogo de autoria desconhecidasugere também a opção da inversão do ônus da prova. A pesquisa constataque a polícia não age para preservar o local do crime ou do evento danoso,que a perícia em regra não é usada ou não tem condições de trabalhopara funcionar adequadamente, e que, portanto, as chances de se detectarde quem é a autoria de um disparo de arma de fogo (nos inúmeros casosde “balas perdidas” analisados) é reduzidíssima.

A inversão do ônus da prova, aparece nas decisões em que, geralmente,está se aplicando a teoria francesa da faute du service, conforme alertaSergio Cavalieri Filho:

“Convém, ainda, registrar que em inúmeros casos de responsabilidadepela falta de serviço admite-se a presunção de culpa em face daextrema dificuldade, às vezes intransponível, de se demonstrar que oserviço operou abaixo dos padrões devidos, casos em que se transferepara o Estado o ônus de provar que o serviço funcionou regularmente,de forma normal e correta, sem quê não conseguirá elidir a presunçãoe afastar a sua responsabilidade”.43 (itálicos no original)

Existe outra linha jurisprudencial, que corajosamente se expressou noTribunal de Justiça do Estado da Guanabara, ainda durante a época maisrepressiva do governo militar. São os dois acórdãos encontrados sobre“bala perdida” no Rio e se referem a estudantes mortos em passeatas deprotesto em via pública.

O primeiro acórdão transcreve a sentença do Juiz de Direito VivaldeBrandão Couto de 24 de julho de 1970. Manuel Rodrigues Ferreira foibaleado com um tiro na cabeça, por um soldado da Polícia Militar doEstado, nos tumultos de rua, entre estudantes e membros daquela milícia, nodia 21 de junho de 1968, a chamada “sexta-feira sangrenta”.44 O juiz acolhe,em primeiro lugar, as provas mencionadas na inicial. E adiciona que:

“em tema de responsabilidade civil contra pessoas de direito públicointerno, onde de lege lata, domina o princípio do risco administrativo,

43 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil, 2ª ed. revista, aumentada eatualizada, São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 160.44 Na manchete do Correio da Manhã do dia 22 de junho está escrito: “Polícia chegou atirando”.“Toda a agitação que dominou o centro da cidade na tarde de ontem começou pouco depois domeio-dia [...] quando dois soldados da PM que guardavam a entrada lateral da embaixada,acompanhados de agentes do Dops e da Polícia Federal, à paisana, abriram fogo contra os estudantes,

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o ônus probandi se inverte para propiciar ao ente estatal demandadoa prova da ocorrência de caso fortuito ou força maior, ou de culpaexclusiva da vítima, únicos motivos exoneradores do dever deindenizar. Pois bem. Aqui, o Réu, na dilação que lhe abriu o Juízo,nada fez para ilidir sua responsabilidade, chegando mesmo a agravá-la, por sonegar, à conta da omissão das autoridades competentes, acausa-mortis do menor (Cfr. o doc.de fls 13).”

O juiz constrói, a seguir, a figura da vítima inocente, do jovem estudantee trabalhador que foi colhido pelos dramáticos eventos do qual nãoparticipava como os contestadores da ditadura militar (“solertesdesordeiros”, “maus brasileiros, provocadores da arruaça”).

“O que importa é o direito, cuja garantia está afetada na locomoçãodo cidadão, na via pública, indene de balas assassinas, direito esse sóque não pode proteger aqueles maus brasileiros, provocadores daarruaça, porque não estavam no exercício regular de prerrogativascívicas, ao contrário, versavam em coisa ilícita.

Outra, porém , era a situação da vítima, de antecedentes estudantisincensuráveis, sem qualquer participação nas manifestações de rua,do dia fatídico, sendo colhido pelo infortúnio, em frente à loja emque trabalhava, onde não pode ter acesso, ante a cautela de seuspatrões em cerrar as portas”.

O raciocínio do destemido juiz parece demasiado seletivo. Algumintérprete do texto pode entender que se a bala assassina tivessealcançado o líder estudantil Vladimir Palmeira, que discursou no eventode protesto, o dano causado seria justo e não caberia indenização. Estaseria uma noção perversa de “culpa exclusiva da vítima”.45 Não é razoávele proporcional se reprimir passeatas e discursos de protestos com tirosna multidão desarmada, ou seus líderes.

O juiz afirma, ao justificar a condenação do Estado:

“Por outro lado, perfilho o entendimento, segundo o qual, no empenhoda responsabilidade civil do Réu, não importa saber se a bala assassina

que já haviam feito sua concentração no pátio do MEC e caminhavam [...] em direção ao restauranteCalabouço”. Cf. transcrição em: VALLE, Maria Ribeiro do. 1968: o diálogo é violência. Movimentoestudantil e ditadura militar no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999, p. 103.45 Segmentos significativos da opinião pública apoiavam as manifestações de protesto estudantil.No dia 26 de junho de 1968, houve a chamada “Passeata dos Cem Mil”, quando pacificamente seprotestou contra as brutalidades policiais que culminaram na “sexta-feira sangrenta.”

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partiu de armas portadas por milicianos da Polícia Estadual emboraem ação regular, ou pela dos solertes desordeiros, cuja atitudeimpatriótica engolfou a cidade num movimento multitudinário detriste memória”. (itálicos nossos)

A 8ª Câmara Cível do Tribunal do Estado da Guanabara, em decisãounânime, confirmou a sentença, pois “todos os elementos existentes nosautos informam que o evento resultou de ato de um agente da autoridadepública, não tendo o Estado feito prova de qualquer das circunstânciasque excluiriam sua responsabilidade.”.46

O segundo acórdão não menciona o nome da vítima, nem a data oucaracterísticas do fato danoso em detalhe. Confirma simplesmente asentença de primeira instância que reconhece a responsabilidade doEstado pela morte do filho dos apelados e afirma, em decisão porunanimidade, no voto do relator:

“E, no caso não há dúvida de que mesmo não fosse a morte causadapor disparos de policiais, mas de populares, teria o Estado faltado aodever precípuo que tem de manter a segurança pública.”47

Apesar de manter a sentença, a 6ª Câmara reduz a pensão estipuladade 2/3 para 1/3 dos ganhos da vítima durante os dez primeiros anos,baixando para 1/5 até o término do prazo.

Nesses dois casos encontra-se o raciocínio jurídico de que nos casosde “passeata” que foi alvo de disparos de arma de fogo, não importa asua origem, o Estado é responsável pelo dano causado. Esta construçãopretoriana estará muito presente no julgamento dos casos das chamadas

46 Apelação Cível nº 74.704. 8ª Câmara Cível. Relator: Des. Ivan Castro de Araujo e Souza.Julgamento: 30/11/1970. Decisão: unânime. Ementa: Em tema de responsabilidade civil contrapessoas de direito público interno, domina o princípio do risco administrativo, pelo que se inverteo onus probandi, cabendo ao Estado provar a ocorrência de caso fortuito, força maior ou culpaexclusiva da vítima. confirmação da decisão recorrida, que julgou procedente a ação de indenização,mormente quando a prova existente indica que o sinistro decorreu de ato de agente da autoridade.”Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara, ano XII, nº 28, 1973,p. 401-403.47 Apelação Cível nº 87 360/74 6ª Câmara Cível relator: Des. Aloysio Maria Teixeira Julgamento.26/03/74 decisão: unânime Ementa: Confirma-se sentença que reconheceu a responsabilidade doEstado pela morte da vítima, em virtude de disparo de arma de fogo, na ocasião em que a políciaprocurava reprimir abusos de uma “passeata” na via pública. Revista de Jurisprudência do Tribunalde Justiça do Estado da Guanabara, ano XIV, nº 35, 1975, p. 189-190.

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“balas perdidas”, desde que se prove que havia participação de policiaisno evento que resultou em danos a uma “vítima inocente”.

IX UM CASO ESPECIAL: OCUPAÇÃO DE PROPRIEDADE PARTICULARQUE SE TORNA FAVELA

Há um caso que traz alguma dificuldade na classificação como demovimento multitudinário, e por isso é abordado agora em separado. Orelatório do acórdão sugere que as autoridades administrativas talveztenham ido além da omissão, e estabelecido um quase conluio com osinvasores de uma propriedade particular localizada em Jacarepaguá, quese transforma em favela.

“No presente caso, não se pode afastar a idéia de que oempreendimento da autora , quando irretorquível e reconhecidamenteconcluído, viu-se sujeito a uma turba invasora, não impedidalegalmente pela autoridade constituída, que o fez depredar,impossibilitando a sua venda a terceiros, de molde a privar a primeiraapelante do lucro iminente que auferiria com a regular negociaçãodas unidades edificadas, isso sem falar que toda a área vizinha foi eestá hoje demagogicamente invadida, transformada em favela, ondeprolifera a ilegalidade e o crime organizado, também motivado pelodescaso e omissão proposital, talvez, da autoridade competente.”48

O Estado alegou que não restou provado nos autos a omissão do PoderPúblico, pois é “diligente a autoridade competente em relação aos atosnoticiados de invasão de áreas urbanas.” O Des. Marcus Tullius Alves afirma,que ao contrário, existe prova que a autoridade mesmo alertada não agiu.

“Omissa é a autoridade delegada e o próprio Estado, que alertados atempo de saques e invasões comandadas por interesses políticos, se

48 Apelação Cível 3.800/98. 9ª Câmara Cível. Julgamento: 06/08/98 Decisão : Unânime Relator:Des. Marcus Tullius Alves Reg. 21/12/98 Partes: Apelantes: Delfin Rio S/A Crédito Imobiliário eEstado do Rio de Janeiro. Apelados: os mesmos. Ementa: Responsabilidade civil do Estado.Indenização. Invasão e depredação de propriedade privada praticada por multidão em desordem.Inércia e omissão das autoridades competentes. Culpa caracterizada. Lucros cessantes reconhecidos.Decisão parcialmente modificada. Rejeição do recurso intentado pelo Estado vencido. Omissa seapresenta a Administração Pública, agindo com culpa, quando se abstém de praticar atos ouprovidências que a lei lhe impõe, propiciando que pela inércia resulte dano e prejuízo para oparticular, pois não se pode conceber da existência do Estado que não tenha como função precípuaa garantia da ordem e a tutela jurídica. (CLG)

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faz esconder no manto da hierarquia, da burocracia, da alegação puerilda falta de recursos, da submissão a interesses eleitoreiros ou outrasformas de subterfúgios, que não o cumprimento de sua real e atualmissão, ensejando que a turba se arremesse contra propriedadeprivada regular, assumindo ares de que age por direito que lhes estariasendo negado pelo próprio ente estatal.

Diante da prova produzida nos autos, especialmente da constataçãode que a autoridade competente tinha anterior ciência de que a áreaobjeto de lide encontrava-se na linha de invasão pela turba delirante,habilmente conduzida por líderes locais e ausentes, não se podefugir ao raciocínio verdadeiro e desinteressado de que, no caso, oEstado deveria ou poderia prevenir os efeitos danosos do movimentoorquestrado, opondo-se regularmente a intenção e ao atomultitudinário nocivo, do qual, repita-se, possuía anterior ciência,preservando a autora dos prejuízos que se lhe impôs.”

A autoridade não cumpriu com o seu “dever de vigilância”. E conclui,o relator:

“Por outro lado, não constrói a afirmativa de que não restoucomprovado o nexo causal, conquanto, simples é a constatação deque ocorrida e comprovada a omissão do Estado e verificado o dano,caracterizada fica a responsabilidade atribuída”.

Neste caso julgado a partir da teoria da “falta de serviço”, o relatorenfatiza que a Administração foi alertada da invasão, fato que é negadopelo Estado. É efetivamente relevante se houve prévia comunicação àautoridade de uma ocupação popular organizada dos prédios do particular?Talvez seja possível realizar uma mobilização clandestina, sem qualquerinformação vazada para a polícia, no Rio. Porém, uma vez ocupados osprédios por que a polícia não retirou o grupo de pessoas do local? Houveocupação, seguida de alguma predação dos imóveis, e fixação do grupono local, dando origem a uma favela, que continuou a se expandir pelavizinhança. Torna-se difícil, frente a esses fatos e a inação continuadadas autoridades, que a comunicação prévia, ou não, teria qualquerimportância.

Celso Antonio Bandeira de Mello, que é o expoente mais notável da teoriada responsabilidade subjetiva do Estado por omissão, argumenta que:

“É óbvio que nem todos os serviços estatais podem ser tão perfeitosque estejam em condições de acobertar todos os administrados contra

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os riscos que a vida coletiva enseja. Eis por que descabe responsabilizaro Estado pela omissão em prevenir quaisquer inundações, incêndiosou assaltos.

A responsabilidade só irromperá se for demonstrável que a falta deserviço decorreu não das contingências inerentes à limitação normalde um serviço de segurança, mas à incúria, ao desmazelo, à imperíciade seus agentes. Seria o caso, v.g., de haver-se solicitado socorropolicial, ante indício da iminência de um assalto (como, p.ex. estaremtipos suspeitos a rondar a casa), e a Polícia se omitir em enviar compresteza a proteção pedida.”49

A polícia de manutenção da ordem pública exerce, conforme jámencionado, função administrativa ativa e espontânea (Mário Masagão).Conseqüentemente, de acordo com Álvaro Lazzarini, o administrativistaque mais influenciou os estudos sobre polícias no Brasil, “a omissãopolicial, causadora de danos aos administrados, deve gerarresponsabilidade civil do Estado, mesmo que a autoridade policial, sejaPolícia Civil, seja Polícia Militar, não tenha sido solicitada”. Odesembargador paulista leciona:

“Lembre-se que é atividade jurídica do Estado, e assim é indelegávela manutenção da ordem interna, vale dizer a atividade de manutençãoda ordem interna, objeto de segurança pública, com estadoantidelitual. Se o Estado falha nesse seu dever, omitindo-se, nadamais justo de que suporte o risco, reparando o dano que o deficienteserviço policial possa ter causado ao administrado”.

No caso da continuada ocupação dos prédios por invasores emJacarepaguá é incontestável a omissão administrativa, pois só a inérciapolicial dá causa a este fato danoso ao proprietário. Afinal, a preservaçãoda ordem pública consiste em atos e providências para assegurar a situaçãode não ocorrência de delitos e sua imediata repressão legal pelas polícias.

“Num regime de honesta condução das coisas públicas, aadministração segura, por assim dizer, os administrados contra os atosilícitos dos funcionários. Os exemplos a que assistimosquotidianamente, de sacrifício do patrimônio, dos interesses e às vezesda própria vida dos particulares são, na maioria dos casos e,

49 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. “Responsabilidade Extracontratual do Estado porComportamentos Administrativos”, Revista dos Tribunais, ano 70, vol.55, outubro de 1981, p.15.

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principalmente, quando se trata de movimento multitudinário,legítimas expressões de falta do Estado ao seu dever de assegurar apaz social. Ora é sua benevolência, em numerosos casos, a suaconivência nos atentados, a que a polícia assiste ou em que elacolabora, ora a sua insuficiência para conter a turba exaltada, nãovalendo como escusa a alegação tantas vezes repelida de que omovimento era irreprimível, para equipará-lo ao caso fortuito ou deforça maior, porque, principalmente agora, uma Políciamediocremente aparelhada tem meios eficientes para debelarrapidamente os movimentos de rua”.50

Em conclusão, o mais alarmante neste caso é que, na pesquisa seconstata, que as indenizações devido a danos causados por ações ouomissões dos serviços de segurança pública tem valores bastante baixosquando se trata de violação da integridade física e moral da pessoa. Estessão, aliás, a quase totalidade dos casos encontrados. A ocupação dosprédios em Jacarepaguá resultou na condenação, em decisão unânime,do Estado do Rio de Janeiro, por responsabilidade civil por omissão, navultosa indenização de R$ 1.727.582,00 (hum milhão, setecentos e vintee sete mil e quinhentos e oitenta e dois reais), devidamente atualizadadesde a feitura do laudo.

X BIBLIOGRAFIA

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50 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil, vol. II ,10ª ed., revista e atualizada. Rio deJaneiro, Forense, 1997, p. 579.

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O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E ADISCIPLINA DA EFICÁCIA DAS MEDIDAS

PROVISÓRIAS NÃO CONVERTIDASEdilson Pereira Nobre Júnior - - Professor da UFRN, Professor da

Especialização em Direito Administrativo da UFPE e Mestre emDireito pela UFPE. Juiz Federal.

O Constituinte de 1988, mantendo tradição inaugurada em 1891,reservou ao Supremo Tribunal Federal papel de destaque na organizaçãojudiciária patrial, consistente na missão de guardião da autoridade,inteireza positiva e uniformidade interpretativa da Lei Máxima.

Essa afirmativa é corroborada pelo art. 102, caput, do Texto Magno, aodeclarar competir àquele, de maneira precípua, a vigilância daConstituição, cabendo-lhe, entre outras competências, as de julgar: a) aação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ouestadual; b) a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou atonormativo federal; c) mandado de injunção, quando a norma indispensávelà eficácia de direito ou liberdade constitucional for da alçada do Presidenteda República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, doSenado Federal, do Tribunal de Contas da União, dos Tribunais Superiores,ou do próprio Supremo Tribunal Federal; d) recurso extraordinário, desdeque a decisão recorrida contrarie dispositivo da Constituição, declare ainconstitucionalidade de tratado ou lei federal, ou que julgue válida leiou ato de governo local, contestado em face da Constituição; e) a argüiçãode descumprimento de preceito fundamental, disciplinada,recentemente, pela Lei 9.882, de 03-12-99. Fora do largo elenco do art.102 da CF, colhe-se no art. 103, §2º, do mesmo diploma, a competência

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para processar e julgar a ação declaratória de inconstitucionalidade poromissão.

Daí se pode, com facilidade, perceber que, conquanto possa não seadmitir a existência de efeito vinculante às decisões do Supremo TribunalFederal em matéria de interpretação da Lei Maior, salvo a explícita previsãoconstitucional no particular da ação declaratória de constitucionalidade,não se pode deixar de constatar a circunstância de que, na prática, enormeinfluência tais deliberações exercem sobre os julgamentos dos demaisjuízes e tribunais.

Tanto é assim que, tão logo promulgada a atual Lei Fundamental, oMin. Sydney Sanches, comentando, em estudo doutrinário, as novasatribuições confiadas ao Pretório Excelso, destacou: “a função precípuade guarda da Constituição confere ao Supremo Tribunal Federal posiçãode enorme responsabilidade e importância na implantação e preservaçãoda nova ordem constitucional” 1.

Feita essa advertência inicial, segue-se que, na Constituição promulgadaem 1988, dentre os inúmeros dispositivos que vêm ensejando maioresdiscussões, está o seu art. 62, ao traçar competência legislativa especialem prol do chefe do Poder Executivo, consistente na edição de medidasprovisórias.

Acolheu-se, assim, instituto que habilita o Governo a legislar poratribuição própria, sem prévio consentimento do Parlamento2, cujaintervenção fiscalizadora se faz posteriormente, a exemplo do que ocorre,em virtude da necessidade inarredável de ação legislativa rápida,vivenciada nos tempos hodiernos, com vários modelos hauridos noconstitucionalismo contemporâneo, a saber: os arts. 77 da Constituiçãoitaliana de 1947 (decreto-legge), 81 da Constituição alemã de 1949 (estadode necessidade legislativa), 16 e 34 da Constituição da França de 1958(poderes extraordinários do Presidente da República e o regulamentoautônomo), 44 da Constituição da Grécia de 1975 (adoção de atos

1 O Supremo Tribunal Federal na Nova Constituição. In: A Constituição Brasileira 1988 –Interpretações. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 214.2 A legislação governamental por competência constitucional específica não constitui novidade emnosso sistema jurídico, como se pode relembrar do decreto-lei das Constituições de 1937 (arts. 13e 14) e de 1969 (art. 55), sem contar os Atos Institucionais nº 2 (art. 30) e 5 (art. 2).

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legislativos em circunstâncias excepcionais de necessidadeextremadamente urgente e imprevista), 198º da Constituição de Portugalde 1976 (decreto-lei), 86 da Constituição hispânica de 1978 (decreto-ley),99, inciso 3, da Constituição da Nação Argentina de 1853, com a reformade 1994 (decretos de necesidad y urgencia) e, mais recentemente, osarts. 101 da Constituição da Croácia (decretos com força de lei), 108 daConstituição da Eslovênia de 1991 (decretos com força de lei), 114.4 daConstituição da Romênia de 1991 (ordenanças de urgência), 109 daConstituição da Estônia (decretos presidenciais) e 85 da Lituânia (decreto-lei), ambas de 1992.

É sabido que, na praxe, o Congresso Nacional tem, com freqüência,se omitido no exercício do relevante controle que lhe outorgara oConstituinte, pois não vem convertendo, no escasso trintídio constitucional,as medidas provisórias editadas pelo Presidente da República,ocasionando o fenômeno que se convencionou denominar de reedição,de admissibilidade tranqüila no Supremo Tribunal Federal3.

A não conversão em lei tem como efeito implicar na perda da vigênciada medida provisória desde a sua edição (ex tunc), conforme textoexpresso do art. 62, parágrafo único, primeira parte, da CF, no que colherainspiração no art. 77.3 da Constituição italiana.

Não se pode descartar haverem as normas, contidas na medida nãoconvertida, logrado aplicação a numerosos casos concretos durante asua efêmera vigência. Qual será, então, a sorte dos atos realizados combase na referida norma? Reputar-se-ão írritos ou válidos? A princípio, aprimeira alternativa se impõe. A perda de eficácia ex tunc da medidaprovisória desemboca, como corolário lógico, na cessação, tambémretrooperante, das suas aplicações4.

3ADIN 293-7, Pleno, mv, rel. Min. Celso de Melo, DJU de 16-04-93; ADIN 1.660-SE, Pleno, mv,rel. desig. Min. Nélson Jobim, DJU de 07-12-2000, p. 04; ADIN 1.610-5, Pleno, mv, rel. Min.Sydney Sanches, DJU de 05/12/97, p. 63.148; ADIN 1.398-1 – DF, Pleno, rel. Min. Carlos Veloso,DJU 27/06/97.4 Mais simples a sistemática projetada para o extinto decreto-lei, haja vista que o art. 55, §2º, da LeiMaior revogada, era expresso em enfatizar que a rejeição daquele não implicará na nulidade dos atospraticados durante a sua vigência. Assim também era, na península itálica, com o art. 3º da famigeradaLei 100, de 1926, prevendo que não convertido o decreto-legge no prazo marcado, que se prolongavaaté dois anos, a cessação dos seus efeitos se dava ex nunc.

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Para uma resposta completa, inconcebível, porém, olvidar-se otemperamento imposto pela parte final do parágrafo único do art. 62,preceituando caber ao Congresso Nacional a disciplina das relaçõesjurídicas, decorrentes da temporária aplicação das medidas provisóriasnão transmudadas em lei. Estatuiu o Constituinte, conforme se pode versem sombra de dúvidas, a solução para o problema calcada no institutoda convalidação dos efeitos das medidas provisórias não convertidas.

Percebe-se, portanto, que a melhor exegese do art. 62, parágrafo único,parte final da CF, é aquela a recomendar, ante a não-validade das normasda medida não convertida, a qualidade de inválidos aos atos perpetradosno decorrer de sua aplicação. No entanto, permite-se ao CongressoNacional regular – e com força retroativa, advirta-se – as conseqüênciasda medida provisória, reconhecendo-lhe, no todo ou em parte, validade.Pode, assim, o Legislativo, conferir validez a atos praticados com fulcroem medida provisória não aprovada5.

Trata-se de previsão expressa de retroatividade pela própriaConstituição, a ressalvar apenas as regras que consagrara nos seus arts.5.º, XXXVI, XL e 150, III, a, desde que a base fática indispensável à suaaplicação preceda à convalidação. Para uma melhor compreensão,esclareça-se que a configuração de ato jurídico perfeito, direito adquirido,ou coisa julgada, anteriores à vigência da medida provisória não

5 No sistema jurídico italiano, prevalece a convicção de competir ao Parlamento disciplinar ou nãotais relações jurídicas (Sentenze 86/1966, 144/1972 e 185/1981; recentemente, esse pendor constoude forma cristalina da Sentenza 84/1996, a ser doravante mencionada), não existindo obrigatoriedadepara fazê-lo. Da mesma forma, caso as Câmaras decidam fazer uso de tal competência, não estãosujeitas a qualquer prazo de preclusão, podendo, como bem anota Alessandro Pizzorusso (Leccionesde Derecho Constitucional. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1984. p. 275-276) fazê-lo em procedimento singularizado, em relação à lei de conversão, ou no corpo desta, ou aindaatravés da lei de conversão de outro decreto-legge, conforme ressaltou a Corte Constitucional naSentenza 249, de 28 de maio de 1996, relatada pelo Juiz Enzo Cheli (disponível em www.giurcost.org/decisioni. Acesso em 09-07-01). No Brasil, a doutrina se biparte, havendo alguns autores que, àconsideração de ser inconstitucional a omissão do Congresso Nacional, advogam a possibilidade,para combatê-la, de ajuizamento de mandado de injunção ou de ação declaratória deinconstitucionalidade por omissão, como é o caso de Ivo Dantas (Aspectos jurídicos das medidasprovisórias. 3. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 1997. p. 85) e Clèmerson Merlin Clève (Atividadelegislativa do Poder Executivo no Estado Contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo:RT, 1993. p.173), enquanto outros propendem à liberdade da avaliação política de agir do Parlamento,servindo de exemplo José Afonso da Silva, embora este ressalve possa o Judiciário ser convocado aexaminar o assunto a teor do disposto no art. 5º, XXXV, se houver lesão de direito de outrem (Cursode direito constitucional positivo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 465).

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convertida, mas cujos efeitos foram convalidados pela atividade doCongresso Nacional, orienta-se pela nota da intangibilidade. Caso o fatogerador daqueles institutos se situe em instante posterior à convalidação,deverá aplicar-se a disciplina introduzida pela medida provisória cujaeficácia fora convalidada, não sendo a hipótese de prestigiar-se asegurança jurídica.

O fenômeno, originário do ordenamento constitucional italiano, foibem retratado através de Federico Sorrentino, ao expressamentemencionar a possibilidade de retroação, inclusive com a possibilidadede não se proceder ao respeito aos correspondentes limitesconstitucionais. Diz o autor: “A falta de conversão autoriza, como se viu,as Câmaras a disciplinar com lei as relações jurídicas surgidas com baseno decreto não convertido, consentindo aquelas em assim superareventuais limites à retroatividade das leis e, sobretudo, em derrogar oprincípio da decadência retroativa dos decretos não convertidos, fazendoseguras as relações que tal decadência renderia inválidas”6. Mais à frente,remata: “Na praxe o legislador faz uso deste poder com uma fórmulageral de sanatória de todos os atos e relações conseqüentes ao decretonão convertido: isto equivale a uma confirmação do decreto pelo períodono qual aquele esteve em vigor, com todas as conseqüências que podemprovir em sede aplicativa”7.

O magistério do referido autor, deduzido do exame da ordem jurídicaitaliana, mas que guarda, nesse ponto, sensível similitude com a nossa,longe está a induzir a autorização para que, nas reiterações, as futuras

6 “La mancata conversione, autorizza, como si è visto, le Camere a disciplinare con legge i rapportigiuridici sorti sulla base del decreto non convertito, consentendo loro di superare così eventualilimiti alla retroattività delle leggi e, soprattutto, di derogare al principio della decadenza retroattivadei decreti non convertiti, facendo salvi rapporti che tale decadenza renderebbe invalidi”. (Ildecreto legge non convertito. In: BAUDREZ, Maryse et alli. I decreti-legge non convertiti. Milano,Giuffrè, 1996. p. 82).7 “Nella prassi il legislatore fa uso di questo potere con una formula generale di sanatoria di tutti gliatti e i rapporti conseguenti al decreto non convertito: ciò che equivale ad una conferma deldecreto per il periodo in cui esso è stato in vigore, con tutte le conseguenze che ne possonodiscendere in sede applicativa”. (ibidem, p. 82). A Corte de Cassação (Sentenze 4.262, de 06-10-77e 3.034, de 25-05-79) – mostra-nos Giovanni Pitruzzzella (La legge di conversione del decreto-legge. Pádua: CEDAM, 1989. p. 330) – no particular das relações tributárias, manifesta-se que aincidência retroativa da lei de sanatória somente poderá atingir situações de fato, geradoras docrédito tributário, caso sucedidas durante a vigência do decreto-legge não convertido. O raciocíniojurisprudencial peninsular é idêntico ao que expusemos no parágrafo anterior ao objeto desta nota.

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edições de decreti-legge tragam a cláusula de que ficam convalidadas asrelações jurídicas surgidas com fundamento no decreto-legge nãoconvertido, haja vista que o art. 77.3 da Constituição Italiana atribui talcompetência à lei.

A semelhança dos sistemas, antes apontada, reside em que o art. 62,parágrafo único, parte final, da CF, é expresso, para não dizer enfático,em ditar que, não convertida a medida provisória em lei, os efeitos destadecorrente serão disciplinados pelo Congresso Nacional. Isso é osuficiente para excluir, nesse campo, a atividade isolada do Chefe doPoder Executivo.

O Supremo Tribunal Federal, inicialmente, propendeu a esseentendimento, salientando o despropósito do Presidente da Repúblicaem editar medida provisória, com vistas a prover a competência do art.62, parágrafo único, parte final, da Lei Básica. Expresso, a esse respeito,o despacho, da lavra do Min. Celso de Mello, ao negar seguimento àADIN 365-8/6008, ratificado em sede de agravo regimental9.

É sabido que, posteriormente, o STF, em várias oportunidades, comose pode exemplificar no julgamento da ADIN 1.660-SE, ao reputar válidaa MP 560/94 e suas reedições, que instituíram a alíquota de 12% para acontribuição previdenciária dos servidores públicos federais, louvou-seno entendimento de que referido instrumento normativo, renovado,sucessiva e tempestivamente, manteve, por isso, a eficácia de lei.

8 DJU de 05-10-90, p. 10.717. Cuidava-se a hipótese de impugnação, pela Confederação Nacionalda Indústria, da Instrução Normativa 102/90, editada pela Secretaria da Receita Federal, apontadacomo instituidora de novas hipóteses de incidência do IOF. Em decisão monocrática, entendeu-seincabível a ação direta de inconstitucionalidade, uma vez que o ato regulamentar em causa, emestabelecendo interpretação não autorizada à MP 195/90, não traduzia situação de conflitoconstitucional, mas de ilegalidade. Atento à circunstância fática de que o art. 10 da MP 212/90,dispondo sobre o mesmo assunto, inserira cláusula de convalidação das MP’s 195/90 e 200/90, orelator, no referido despacho, tecera breve consideração sobre essa questão, a despeito de nãoconstituir a finalidade primordial do feito em exame: “A disciplina das relações jurídicas formadascom base no ato cautelar não convertido em lei constitui obrigação indeclinável do CongressoNacional, que deverá regrá-las mediante procedimento legislativo adequado. O exercício dessaprerrogativa congressional deriva, fundamentalmente, de um princípio essencial de nosso sistemaconstitucional: o princípio da reserva de competência do Congresso Nacional. A disciplina de quetrata o parágrafo único do art. 62 da Carta Política tem, por isso mesmo, na lei formal, de exclusivaatribuição do Congresso, seu instrumento jurídico idôneo, sendo relevante observar que, de seuprocesso de formação, co-participará o Presidente da República, pelo exercício da competênciaconstitucional de que dispõe para sancionar ou vetar os projetos de lei aprovados pelo Legislativo”.9 AGRADI 365 – DF, Plenário, ac. un., rel. Min. Celso de Mello, DJU de 15-03-91, p. 2.645.

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Na motivação exarada no julgado, acima referenciado, não é abordadoo tema da convalidação dos efeitos das anteriores medidas provisóriasnão convertidas. A discussão teve como foco a possibilidade ou não dereedição.

Não obstante, em recente manifestação na ADINMC 2.251 – DF10,assestada contra o art. 14 da MP 1.984 –19, que convalidara os atospraticados com base na MP 1.984 –18, o Plenário do Supremo TribunalFederal, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, entendeu,já agora enfrentando o tema, não ofender a competência do PoderLegislativo a circunstância de medida provisória convalidar a eficáciaproduzida por medida provisória não convertida. Uma abordagem críticadesse julgado configurará o objeto deste estudo.

É certo que, aproximadamente três meses depois, no desate do RE254.818 – PR11, o Supremo Tribunal Federal manteve decisão do TribunalRegional da 4ª Região, que aplicara o benefício de suspensão da açãopenal pela suposta prática do delito do art. 95, d, da Lei 8.212/91, previstona Medida Provisória 1.571 – 6/97, mas suprimido pela Medida Provisória1.571-8/97, em virtude da convalidação dos efeitos daquela pela Lei 9.639/98, tendo o relator, ao ensejo da confirmação de seu voto, feito remissãoelogiosa ao voto-vista do Ministro Moreira Alves, ao reputar válida talcláusula, contida na lei de conversão, a qual seria, no particular,insuscetível de veto, por a matéria ser específica de decreto legislativo.

Da decisão no RE 254.818 – PR penso não haver decorrido a alteraçãodo ponto de vista fixado na também recente ADINMC 2.251 – DF,porquanto no voto do relator, Min. Sepúlveda Pertence, disponibilizado noInformativo STF nº 220, haja vista a não publicação da respectiva ementa,não fora reativado o debate em torno da violação do art. 62, parágrafoúnico, da CF, pela circunstância de a convalidação da eficácia dos atos demedida provisória não convertida advir de medida provisória posterior.

10 Plenário, mv, rel. Min. Sydney Sanches, DJU 23.08.2000, Informativo STF n.º 199. Considerando-se que, ao instante em que escrito este trabalho, a ementa do julgado ainda não tinha sido publicada,com a disponibilização dos votos predominantes e minoritários, o nosso conhecimento da doutrinanaquele firmada se limita a resenha contida em órgão de divulgação da Excelsa Corte.11 Pleno, ac. un., rel. Min. Sepúlveda Pertence, julg. em 08-11-2000, Informativo STF nº 209.

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Abstraindo-se a quizília doutrinária sobre se a espécie normativaadequada para se concretizar o fim visado pelo art. 62, parágrafo único,parte final, da CF, é a lei ou o decreto legislativo12, porquanto ambos sãoprodutos da atividade legislativa do Congresso Nacional (e assim, emambas hipóteses, eventual inconstitucionalidade formal seria facilmentecontornada), é de concluir-se, sem tergiversação, que o dispositivoconstitucional, ao contrário do respeitável ponto de vista do SupremoTribunal Federal ADINMC 2.251 – DF, dispôs pela não admissibilidade damedida provisória, vista esta emanar, como frisado linhas retro, da atuaçãoexclusiva do Poder Executivo.

É induvidoso que o Supremo Tribunal Federal, na sua missão deguardião da Lei Magna, possa adaptar o contéudo das normasconstitucionais às mudanças na sociedade, sem que para tanto sejanecessário alterar o texto daquelas. No entanto, essa operação exegética,denominada mutação constitucional, não pode ser arbitrária. Não há deesconder limites, entre os quais, pondera Hesse13, o de que resultainadmissível uma interpretação diferente dos enunciados magnos em

12 Favoráveis à lei para o desempenho da competência do art. 62, parágrafo único, parte final, daLei Básica, podemos citar: Ivo Dantas (Aspectos jurídicos das medidas provisórias. 3. ed. Brasília:Brasília Jurídica, 1997. p. 85; Nagib Slaibi Filho (Anotações à Constituição de 1988 – aspectosfundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p. 346); José Afonso da Silva (Curso de direitoconstitucional positivo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 465); Clèmerson Merlin Clève(Atividade Legislativa do Poder Executivo no Estado Contemporâneo e na Constituição 1988.São Paulo: RT, 1993. p.173). Diversamente, para Alexandre de Moraes (Direito constitucional. 8.ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 536), o veículo apropriado será o decreto legislativo. Esta fora aopção, a nosso ver acertada, da Resolução 01/89 do Congresso Nacional (arts. 6º, parágrafo único,7º, II e 17). Almejando pôr cobro à discussão, a PEC 472 – C, de 1997, projeta o acréscimo de §1ºao art. 62, conferindo tal mister ao decreto legislativo.13 Constitución y derecho constitucional. In: BENDA, Ernesto et alii. Manual de derechoconstitucional, Madri: Marcial Pons, 1996. p. 10. Luís Roberto Baroso (Interpretação e aplicaçãoda Constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 146), ao referir-se ao fenômeno comointerpretação evolutiva, adverte que esta há de sofrer limitações, ora porque a abertura da linguagemconstitucional e a polissemia de seus termos não são absolutas, estancando-se diante de significadosmínimos, ora em virtude dos princípios fundamentais do sistema serem intangíveis, de sorte que asalterações informais introduzidas pela via hermenêutica não poderão contravir os programasconstitucionais. Idem Arnaldo Penteado Laudísio (Controle de constitucionalidade e interpretaçãoconstitucional. Revista Ajufe, São Paulo, v. 45, p. 46, abr./jun., 1995), ao suster que a exegese deveencontrar divisas, a fim de que não seja desnaturado o texto, a intenção e a genética constitucional.Acrescente-se ainda que o próprio Supremo Tribunal Federal, na Representação deInconstitucionalidade 1.417 – 7 (Pleno, ac. un., rel. Min. Moreira Alves, DJU de 1.417 –7, p.8.397), deixou evidente não caber a aplicação do princípio da interpretação conforme à Constituiçãoquando a única exegese possível para harmonizar a norma impugnada com a Lei Maior contrariaro sentido inequívoco desta.

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aberta contradição com o texto da Lei Fundamental. Admitir-se que adisciplina das relações jurídicas surgidas com base em medida provisória,não transmudada em lei no prazo de 30 dias, seja realizada por outramedida provisória, é o mesmo que desconstituir a cláusula contida noart. 62, parágrafo único, segunda parte, da CF, quando enuncia, sem deixara mínima margem de dúvida, dever “o Congresso Nacional disciplinar asrelações jurídicas delas decorrentes”.

Indispensável, mais uma vez, o recurso ao sistema jurídico italiano,cuja prática do decreto-legge, fonte informativa da medida provisória,recua há aproximadamente 54 anos, sem contar as decretações deurgência emanadas com autorização implícita do Estatuto Albertino de1848 e sob os auspícios da Lei 100, de 1926, produto do regime fascista14.E não é só. O apelo ao modelo italiano torna-se obrigatório quando seconstata – não é demasiado tornar a repetir – que o art. 77.3, da Lei Maiorda Itália de 1947, perfilha idêntica solução à preconizada pelo art. 62,parágrafo único, parte final, da CF, ao dizer competir às Câmaras talregulação. A única diferença – a nosso ver, desinfluente para oquestionamento proposto pela inicial – é que o constituinte peninsularhouve por bem indicar a lei como o instrumento posto à mão doParlamento para dispor sobre as relações surgidas no espaço de vigênciade decreto-legge não convertido.

Atenta à hipótese, que se tornou freqüente na Itália, no interregnoantecedente à Sentenza 360, de 17 de outubro de 199615, onde ossucessivos decretos-leis, embora sem lograr conversão em lei, declaravamválidos, para o passado, os efeitos dos precedentes, de que eramreprodução, a doutrina, sem maiores considerações, ante a pacificidadeque deveria ostentar o tema, reputara impossível que um decreto-leggedispusesse sobre os efeitos de outro decreto-legge, mantendo-oshígidos16. Nesse ponto, aliás, clara é a lição de Vezio Crisafulli que, em

14 Em retrospectiva, Biscaretti di Ruffia (Diritto Costituzionale. 15. ed. Nápoles: Jovene Editore,1989. p. 569) aponta, no solo itálico, o pioneirismo para o decreto de 27 de maio de 1948.15 Rel. Juiz Enzo Cheli, disponível em www.giurcost.org/decisioni. Acesso em 08-02-01. Aludidadecisão que, segundo Maryse Baudrez (Décrets-lois réitérés en Italie: l’exaspération mesurée de laCour constitutionnelle. Revie Française de Droit Constitucionnel, nº 32, p. 752, 1997),consubstanciou lídima “bomba” jurisprudencial, ao interditar a reiteração do decreto-legge.16 Entre as diversas hipóteses de utilização indevida do decreto-legge, listadas por Franco Modugno,em trabalho realizado em co-autoria com Alfonso Celloto (Rimedi all’abuso del decreto-legge.

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comentários à Constituição de 1947, afirma: “Em verdade, a circunstância -agora apontada no texto - de que o sujeito lexical da disposição da últimaparte do art. 77 da Constituição são apenas as Câmaras, constitui um forteindício da inconstitucionalidade da convalidação, disposta mediante umnovo decreto, do efeito produzido por decreto-lei não convertido”17.

Vittorio di Ciolo, fazendo remissão à Lei 400/88, que traçaprocedimentos a serem observados na emissão de decreti-legge, afirma:“É conhecido que o art. 15 da Lei n.º 400/1988 estabelece, além disso,que o Governo não pode, mediante decreto-lei, regular as relaçõesjurídicas surgidas com base em decretos não convertidos (é que o últimoinciso do art. 77 da Constituição confia às Câmaras tal tarefa:também se reconheceu que uma aplicação lenta da previsão constitucionalpode determinar efeitos danosos para os sujeitos que, em obséquio à lei,tenham-se submetido às disposições do decreto)”18.

Alfonso Celloto, por sua vez, é peremptório: “Igualmente pacíficaaparece a preclusão para os decretos de sanar os efeitos surgidos combase em decretos precedentes não convertidos, ante a explícita reservaàs “Camere (de) regular com lei as relações jurídicas surgidas com basenos decretos-lei não convertidos”19.

Giurisprudenza Costituzionale, ano XXXIX, nº 5, p. 3.234, set./out. 1994), está a de regular asrelações jurídicas surgidas com base em decreto não convertido, exemplificada, dentre outrassituações, pelo decreto-legge 457, de 24 de novembro de 1992 e de suas reiterações (decreto-legge17, de 23 de janeiro de 1993, e 80, de 25 de março de 1993), os quais, tenderam a convalidar osefeitos do art. 20 do decreto-legge 195, de 01 de novembro de 1992, 274, de 30 de abril de 1992,e 325, de 01 de julho de 1992).17 “Per la verità, la circostanza - dianzi accennata nel testo - che il soggetto lessicale della disposizionedell’ultima parte dell’art. 77 Cost. siano proprio <le Camere> costituisce un indizio assai fortedell’inconstituzionalitá della convalida di effetti prodotti da un decreto-legge non convertito,disposta con un nuovo decreto”. (Lezioni di Diritto Costituzionale. Padova: Cedam, 1993. p. 100).18 “È noto che l’art. 15 della legge n. 400/1988 stabilisce, tra l’altro, che il Governo no pùo,mediante decreto-legge, regolare i rapporti giuridici sorti sulla base dei decreti non convertiti (èl’ultimo comma dell’art. 77 della Costituzione che affida alle Camere tale compito:anche se va riconosciuto che un’applicazione lenta della previsione costituzionale può determinareeffetti danosi per i soggetti che, in ossequio alla lege, abbiano ottemperato alle disposizioni deldecreto)”. (Riflessioni in tema di decreti-legge non convertiti. In BAUDREZ, Maryse et alli. Idecreti-legge non convertiti. Milano, Giuffrè, 1996. p. 137-138). Para ser mais preciso, é bomdizer que, na Itália, demais da Constituição, o art. 15, inciso segundo, letra d, da Lei 400/88,tentando racionalizar a matéria, obsta que um decreto-legge regule as relações produzidas pordecreto-legge não convertido.19 “Ugualmente pacifica appare la preclusione per i decreti a sanare gli effetti sorti sulla base diprecedenti decreti non convertiti, stante la esplicita riserva alle “Camere [di] regolare con legge irapporti giuridici sorti sulla base dei decreti-legge non convertiti”. (L’abuso del decreto-legge.Roma, Cedam, 1997. p. 535).

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Não pára por aí. Giovanni Pitruzzella, a propósito de comentar o art.77.3, parte final, da Lei Maior itálica, acentuou, sem dar azo a qualquerdúvida: “A disposição em exame pode ser entendida no sentido que proíbeque a disciplina das relações jurídicas surgidas com base em um decreto-lei não convertido seja disposta por um outro decreto-lei, mas deste modoaquela não faz outra coisa que reforçar uma norma já deduzida dacomplexa disciplina predisposta pelo art. 77”20.

As lições da doutrina produziram forte eco perante a CorteConstitucional, que vedou a chamada reiterazone “a catena”, conformeexemplifica a Sentenza 544, de 14 de dezembro de 1989, ou seja, que aconvalidação tivesse lugar mediante os sucessivos decreti-leggeproduzidos em cadeia. Embora essa não tenha sido a questão principaldo debate, da referida decisão é encontradiça a seguinte passagem: “Nãopode haver dúvida que o decreto-lei seja uma fonte incompetente pararegular as relações jurídicas surgidas com base em precedentes decretosnão convertidos e que, em geral, uma disposição de um decreto-lei, aqual estabelece um termo dos seus efeitos, a partir da data da entradaem vigor do precedente decreto não convertido, possa suscitar sériasdúvidas sobre a correção da conduta do Governo à luz do art. 77 Cost. E15l. 400/1988”21.

20 “La disposizione in esame può essere intesa nel senso che essa vieti che la disciplina dei rapportigiuridici sorti sulla base di un decreto non convertito sia disposta con un altro decreto legge, ma inquesto modo essa non fa altro che ribadire una norma già desumibile dalla disciplina complessivapredisposta dall’art. 77”. (La legge di conversione del decreto legge. Pádua: CEDAM, 1989. p.332). No mesmo sentido, consultar ainda: Paolo Biscaretti di Rufia (Diritto Costituzionale. 15. ed.Nápoles: Jovene Editore, 1989. p. 569), Livio Paladin (Diritto Costituzionale. 3. ed. Milão:CEDAM, 1998. p. 198), Fausto Cuocolo (Principi di Diritto Costituzionale. Milão: Giuffrè Editore,1996. 163), Giuseppe de Vergottini (Diritto Costituzionale. Pádua: CEDAM, 1997. p. 209). Nadoutrina francesa, merecedora de destaque Maryse Baudrez, professora da Universidade de Toulon,às voltas com a análise da figura do art. 77 da Constituição italiana (Décrets-lois réitérés en Italie:l’exaspération mesurée de la Cour constitutionnelle. Revie Française de Droit Constitucionnel, nº32, p. 751, 1997), torna manifesta a compulsoriedade do pensamento aqui exposto ao depois daSentenza 84/1996 da Corte Constitucional.21 “Non vi può esser dubbio che il decreto-legge sia una fonte incompetente a regolare i rapportigiuridici sorti in base a precedenti decreti non convertiti e che, in generale, una disposizione di undecreto-legge la quale stabilisca una decorrenza dei propri effetti a partire dalla data di entrata invigore del precedente decreto non convertido possa suscitare seri dubbi circa la correttezza dell’operatodel Governo alla luce dei citati art. 77 Cost. e 15 l. 400/1988”. (Apud Franco Modugno e AlfonsoCelloto. Rimedi all’abuso del decreto-legge. Giurisprudenza Costituzionale, ano XXXIX, nº 5, p.3.242, set./out. 1994)

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Mais recentemente, por ocasião de questão incidental de legitimidadeconstitucional do art. 2º do Decreto-legge 238, de 21 de junho de 1995,que modificara o art. 8º do Código de Processo Civil italiano, suscitadapelo Pretor de Verona, a Corte Constitucional, rejeitando-a na Sentenza84, de 21 de fevereiro de 1996, relatada pelo Juiz Renato Granata, expôs:“E esta Corte já afirmou, em geral (sentença n. 243 de 1985), que ‘atravésda técnica da sanatória’ ‘o terceiro inciso do art. 77 da Constituição habilitao legislador a ditar uma regulamentação retroativa das relações, sem poroutros limites a não ser aqueles representados pelo respeito das outrasnormas e princípios constitucionais’”22. Prosseguindo, acentuou que oconteúdo da disposição não convertida, embora reproduzido em um oumais decretos-lei sucessivos até a sua conversão em lei, fora atingidopela cláusula de salvaguarda, contida naquela, a qual tem a função derepristinar, segundo uma opção atribuída à avaliação discricionária doParlamento, uma continuidade normativa, fazendo remontar no tempo anova disciplina à originária disposição não convertida, com a consolidaçãodos efeitos desta. Restou elucidada, de maneira tácita, mas ao mesmo temposuficientemente óbvia, que tal atribuição constitui exclusividade do PoderLegislativo, não se admitindo a interferência substitutiva do Governo.

Fazendo-se incidir tais ensinamentos ao modelo brasileiro, adaptadosà pequena diferença introduzida pelo art. 62, parágrafo único, parte final,da Lei Máxima, tem-se, da mesma forma, a total impossibilidade de medidaprovisória disciplinar as relações jurídicas surgidas sob o efêmero impériotemporal de medida provisória não convertida em lei.

A razão para tanto não deveria dispensar maiores comentários, emvirtude da clareza da dicção constitucional. O Constituinte de 1988 serviu-se, no dispositivo acima mencionado, do binômio Congresso Nacional,órgão que, na redação mais límpida impossível do art. 44, caput, daConstituição Federal, tem a seguinte configuração: “Art. 44. O PoderLegislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmarados Deputados e do Senado Federal”. Daí se vê que a medida provisória,

22 “E questa Corte già affermato, in generale (sentenza n. 243 del 1985), che “traverso la tecnicadella sanatoria” “il terzo comma dell’art. 77 da Costituzione abilita il legislatore a dettare unaregolamentazione retroattiva dei rapporti”, senza porre “altri limiti se non quelli rappresentati dalrispetto delle altre norme e principi costituzionali”. (Disponível em www.giurcost.org/decisioni.Acesso em 09-03-01).

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cuja competência para a sua edição pertence ao Presidente da República,é inteiramente inidônea para o fim sob discussão.

Visto isso, não se pode deixar de considerar que a grande maioria dostribunais e juízes, apesar da não existência de previsão de eficáciavinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunalde Justiça, em matéria constitucional e legal, respectivamente, vemadotando, no desate dos litígios que lhe são submetidos, as orientaçõesde ditas Cortes, a fim de evitar desagradáveis incoerências na aplicaçãodo ordenamento jurídico, as quais, em algumas situações, têm sidocapazes de gravemente maltratar o princípio da isonomia.

A despeito dessa postura, estou em que a observância dos precedentes,emanados das Cortes Superiores, pelos juízes e tribunais inferiores, nãoé tal que seja capaz de transformar estes na condição de meros autômatosna aplicação das orientações firmadas por aquelas. Absolutamente. Nospaíses, cuja cultura jurídica é fortemente marcada pela doutrina doprecedente, assoma possível ao julgador distanciar-se, motivadamente,da orientação naquele assentada.

Invoque-se a consagrada opinião de Charles D. Cole, ao anotar quequando “o juiz de primeira instância se depara com a aplicação de umprecedente anterior que tenha sido muito desgastado com o passar dotempo ou por outros casos precedenciais deixando claro que o precedentedeveria ser revogado se o caso fosse submetido à Corte recursal própria,ele pode se recusar a seguir o precedente” 23. Corroborando esseentendimento, demasiado pertinente o ensinamento de João de CastroMendes, no sentido de “que os precedentes e regras devem ser seguidos,a não ser que sejam abertamente absurdos ou injustos”24.

Atento a tais pontos de vista, de inegável valia, demonstrando que avinculação precedencial não é uma província estranha a exceções,manifesto-me pela razoabilidade da não observância da orientação firmadana ADINMC 2.251 – DF, a qual, a despeito de promanada do sábio

23 Precedente judicial – a experiência americana. Revista de Processo, a. 23, n. 92, out./dez., 1998.p. 80.24 Direito comparado. ed. rev. e atual. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de DireitoLisboa, 1982-1983, p. 207.

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descortino da Excelsa Corte, investe, de maneira flagrante, não só emdetrimento da letra, mas sobretudo do espírito do art. 62, parágrafo único,parte final, da Constituição vigente.

Não se diga que o assunto é de somenos importância. Pelo contrário,é capaz de assumir, nos casos concretos, grande interesse, no escopo doresguardo do postulado da segurança jurídica, principalmente quando seobserva em nosso país forte tendência legislativa, centrada no uso damedida provisória como instrumento de restrição de direitos. Algunsexemplos, versados nas linhas abaixo, são bastante esclarecedores.

O art. 192, I e II, da Lei 8.112/90, assegurava ao servidor que contassecom tempo para aposentar-se com proventos integrais o direito, nainatividade, à remuneração do padrão da classe imediatamente superioràquela em que se encontrava posicionado. Caso aquele já estivesseposicionado na última classe, faria jus à diferença entre a remuneraçãodesta e da antecedente.

Em 11-10-96, fora editada a Medida Provisória 1.522, revogando, àsexpressas, o art. 192 da Lei 8.112/90. Ao depois de várias reedições, foratransformada na Lei 9.527/97, que manteve a ab-rogação do citadodispositivo. À vista disso, indaga-se qual o termo a quo da alteraçãojurídica? Poderá ser considerada a data do início da cadeia das medidasprovisórias, todas reiteradas no trintídio constitucional, o que recairia nodia 11-10-96? Adotando-se a concepção acolhida na ADINMC 2.251 – DF,a resposta inelutavelmente seria afirmativa.

Todavia, não se pode olvidar que a Lei 9.527/97, ao converter em lei aextinção da aludida vantagem funcional, enunciara, no seu art. 16, apenasa convalidação dos efeitos produzidos pelas Medidas Provisórias 1.573 –13, de 27-10-97, e 1.595 – 14, de 10-11-97. Quanto às medidas provisóriasanteriores, o ato de convalidação teve sua origem em medida provisóriaposterior, como a hipótese vivenciada pela própria Medida Provisória1.595 – 14, cujo art. 15 diz ficarem convalidados os atos praticados combase na Medida Provisória 1.573 – 13/97.

Diferentemente, com a leitura do art. 62, parágrafo único, parte final,da CF – cuja finalidade outra não fora senão a de reservar ao Parlamentoa missão de controlar a legislação governamental, a fim de que o

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desvirtuamento desta não afetasse o equilíbrio entre os poderes estatais–, somente pode ser reputada extinta a vantagem do art. 192 da Lei 8.112/90 a contar de 27-10-97 e não de 11-10-96, porquanto aquele assinala omarco, a partir do qual a eficácia da longa cadeia de medidas provisóriasnão convertidas tivera a sua convalidação operada mediante atividade doCongresso Nacional, calcada no art. 16 da Lei 9.527/97. Daquela data,então, é que, validamente, poderá operar seus efeitos a restriçãoestipendiária imposta aos funcionários públicos da Administração FederalDireta, Autárquica e Fundacional.

De concluir, portanto, que os servidores públicos federais que tenhamreunido os requisitos necessários à aposentação, por tempo de serviço, comproventos integrais, até 27-10-97, poderão ser beneficiados pela vantagemdo art. 192, I e II, da Lei 8.112/90. Indevido será pensar, pelas razõesexpostas, que a extinção de tal benefício pudera ter início em 11-10-96.

O mesmo sucedeu com a licença-prêmio por assiduidade, substituídapela licença para capacitação. Neste ponto, a agressão à segurança jurídicarestou mais evidente, uma vez a Lei 9.527/97, no seu art. 7º, terresguardado o direito adquirido dos servidores à sua contagem até 15-10-96, quando a extinção da vantagem, como já salientado linhas atrás,somente ocorrera em 27-10-97, data da Medida Provisória 1.573 – 13,primeira a possuir os seus efeitos salvaguardados na forma do art. 62,parágrafo único, parte final, da Lei Magna. Idêntica sorte se estende àforma de pagamento de substituições, em face de mudança imposta aoart. 38 da Lei 8.112/90. Não se pense que essa viciada praxe legislativaestá circunscrita à limitação dos direitos funcionais, mas poderá, de igualmaneira, ser verificada por ocasião das restrições de outros direitossubjetivos, efetuados pela via da medida provisória.

Disso tudo, assoma importante concluir que, tendo em vista a consentidareedição sem peias de medida provisória haver quase conduzido a umaabsorção do poder de legislar pelo Presidente da República, com graveprejuízo à separação de poderes, torna-se necessário que tal práticadegenerativa seja minimizada, a fim de que pelo menos reste incólume asegurança jurídica, cuja tutela não dispensa que a convalidação dos efeitosdas anteriores medidas não convertidas seja efetuada de acordo com osprecisos termos do art. 62, parágrafo único, parte final, da Constituição.

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Como a nossa experiência em tema de legislação pelo Executivo ébastante recente, haja vista que os modelos constitucionais pretéritosforam desenvolvidos sob clima político de exceção, resta-nos esperarque a Suprema Corte não dê por encerrada a discussão do assunto com aADINMC 2.251 – DF, de sorte a que, no futuro, aquele possa serreexaminado, com a prevalência das opiniões vencidas dos MinistrosMarco Aurélio e Celso de Mello25.

25 De salientar que o uso abusivo de medidas provisórias foi passível de censura pelo Min. Celso deMello, em despacho no RE 239.286 (RDA 219/323-329).

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DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO:PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS, GARANTIAS E

PRERROGATIVAS DOS MEMBROS E UMBREVE RETRATO DA INSTITUIÇÃO

Felipe Caldas Menezes* - Defensor Público da União no Rio de Janeiro

1. DEFENSORIA PÚBLICA E ACESSO À JUSTIÇA

Não há como tratar do tema Defensoria Pública sem antes falar sobreo princípio constitucional do acesso à Justiça (art. 5º, inciso XXXV). Istoporque a grande razão de ser da Instituição não consiste apenas emassegurar aos desprovidos de recursos econômicos o acesso formalnominal aos órgãos jurisdicionais, mas o acesso real e a proteção efetivae concreta dos seus interesses1. Em suma, a Defensoria Pública objetivaa garantir aos necessitados, na feliz expressão da moderna doutrinaprocessualista, o acesso à ordem jurídica justa2.

Na visão de Mauro Cappelletti e Bryan Garth, podem constituirobstáculos ao acesso à justiça: a) o valor das custas judiciais, a existênciade causas de valor pequeno e o tempo de duração do processo; b) osrecursos financeiros das partes, a ausência de aptidão para reconhecer

* Defensor Público da União no Rio de Janeiro, membro da Diretoria Executiva da Associação dosDefensores Públicos da União – ADPU, gestão de outubro de 2003 a junho de 2005, e Substituto doDefensor Público–Chefe da Defensoria Pública da União no Rio de Janeiro.1 SOARES, Fábio Costa. “Acesso do Hipossuficiente à Justiça: A Defensoria Pública e a Tutela dosInteresses Coletivos Lato Sensu dos Necessitados”, in Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2002, p. 74.2 A expressão “acesso à ordem jurídica justa” conforme ensinamentos de Fábio Costa Soares (Op.cit. p. 79) foi cunhada por Kazuo Watanabe e aceita pela doutrina processualista contemporânea.

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um direito de forma a propor uma ação ou apresentar sua defesa, aexistência de litigantes habituais e eventuais; c) os problemas especiaisrelacionados aos interesses difusos, de natureza transindividual3.

Os obstáculos apontados ao acesso à Justiça em grande parte podemser ultrapassados com a atuação de uma Defensoria Pública forte, autônomae independente como veremos no decorrer do presente trabalho.

2. CONCEITO DE DEFENSORIA PÚBLICA E FORMA DE COMPROVAÇÃODE NECESSIDADE ECONÔMICA

A própria Constituição da República Federativa do Brasil, promulgadaem 05 de outubro de 1988, encarregou-se de fixar o conceito deDefensoria Pública no caput do art. 134, como sendo a “instituição essencialà função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica ea defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5°, LXXIV”.

Como se pode extrair de tal conceito, com o advento da Carta Políticade 1988, a Defensoria Pública foi eleita pela norma fundamental como oórgão público responsável pela orientação jurídica e pela representaçãodos economicamente necessitados.

No Capítulo IV, do Título IV, a Defensoria Pública foi alçada, ao lado doMinistério Público (arts. 127 a 130), da Advocacia Pública (art. 131 e 132)e da Advocacia (art. 133 da CRFB/88), à categoria de instituição incumbidade exercer uma das funções essenciais à Justiça.

Outra inovação da Carta Política de 1988 foi trazer no rol dos direitosindividuais não apenas a assistência judiciária, ou seja, aquela prestadadentro da relação jurídica processual, mas a assistência jurídica, queengloba tanto a prestação da assistência judicial, quanto da extrajudicial.

O Art. 5°, inciso LXXIV, da CRFB/88 estabelece que “o Estado prestaráassistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiênciade recursos”. O necessitado, então, é aquele que comprova a insuficiênciade recursos. Pergunta-se: de que forma se dá essa comprovação?

3 CAPPELLETI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. PortoAlegre: Fabris, 1988, p. 15-29.

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Quanto às pessoas físicas, o Supremo Tribunal Federal considerarecepcionada a Lei n° 1.060/50, concluindo que a mera declaração deque a pessoa não possui condições de arcar com o pagamento das custasprocessuais e dos honorários advocatícios, sem prejuízo do sustento próprioe de sua família, já é suficiente para que faça jus à assistência jurídica4.

A declaração acerca da condição de economicamente necessitadopode constar do próprio bojo da petição inicial, nos exatos termos do art.4º, caput, da Lei n° 1.060/50, ou de documento em separado, denominadona prática forense de “declaração de pobreza”.

Feita tal declaração, estabelece-se em favor do declarante, nos termosdo art. 4°, § 1°, da Lei n° 1.060/50, presunção relativa de sua necessidadeeconômica. Contudo, até mesmo para evitar que o benefício sejaconcedido de forma indiscriminada para pessoas que afirmem de formainverídica tal condição, a própria lei prevê que, na relação jurídicaprocessual, pode a parte contrária, caso queira produzir prova no sentidode derrubar tal presunção, apresentar impugnação do direito à assistênciajudiciária, em peça processual autônoma, que será autuada em apartado(art. 4°, § 2°, e art. 7°, caput e parágrafo único, da Lei n° 1.060/50).

Inobstante, pode o juiz, diante de prova existente nos autos, fazer talcontrole ex officio (arts. 5°, caput, 1ª parte, e art. 8°, da Lei n° 1.060/50). Ao Defensor Público, dentro de sua independência funcional,também incumbe fazer o controle acima referido em fase preliminar daprestação de sua assistência jurídica, levando em conta os critériosobjetivos adotados pela Instituição (valor máximo da renda mensal), assimcomo os aspectos subjetivos (gastos extraordinários – medicamentos,alimentação especial etc. –, renda per capita familiar, entre outros).

O controle acerca do deferimento ou não da gratuidade de justiça énecessário porque os órgãos públicos, pautados que são pelos princípiosda legalidade e moralidade (art. 37, caput, da CRFB/88), não podem fecharos olhos para o cometimento de alguns ilícitos decorrentes de afirmaçõesde necessidade econômica inverídicas, que podem gerar sanções tanto

4 2ª T., RE 205.746/RS, Relator: Min. Carlos Velloso, j. 26/11/1997, DJ de 28/02/1997, p. 4.080.No mesmo sentido: 2ª T., AI 136.910 AgR/RS, Relator: Min. Maurício Corrêa, j. 26/06/1995, DJde 22/09/1995, p. 30.598.

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no campo processual (art. 4°, § 1°, in fine, da Lei n° 1.060/50), quantono campo penal (art. 299 do CP).

E a pessoa jurídica? Pode a mesma vir a gozar da gratuidade de justiçaprevista na Lei n° 1.060/50?

Nesse particular, embora o Supremo Tribunal Federal considere a Lein° 1.060/50 recepcionada pela Constituição da República, firmou oentendimento de que tal diploma legal não se aplica às pessoas jurídicas.Assim, para a pessoa jurídica não basta a mera declaração, exige-se aefetiva prova de sua insuficiência de recursos5.

No Superior Tribunal de Justiça o tema é um pouco controvertido:algumas decisões são no mesmo sentido da jurisprudência do SupremoTribunal Federal6, outras, porém, além da efetiva comprovação danecessidade econômica, exigem que a pessoa jurídica não tenha finslucrativos e exerça atividades filantrópicas, beneficentes, pias ou morais,ou que seja microempresa familiar ou artesanal7.

3. RESUMO DO HISTÓRICO DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA

Tendo por base os brilhantes artigos de Humberto Peña de Moraes8 ede José Carlos Barbosa Moreira9, é oportuno fazer um breve relato dahistória do instituto da assistência judiciária.

5 Tribunal Pleno, Rcl 1.905 ED-AgR/SP, Relator: Min. Marco Aurélio, j. 15/08/2002, DJ de 20/09/2002, p. 88. No mesmo sentido: 1ª T., AI 506.815 AgR/DF, Relator: Min. Sepúlveda Pertence, j.:23/11/2004, DJ de 17/12/2004, p. 53.6 4ª T., Resp 323.860/SP, Processo n°: 200100599360, Relator: Min. Barros Monteiro, j. 09/11/2004, DJ de 07/03/2005, p.: 258. No mesmo sentido: 4ª T., Resp 512.335/SP, Processo n°:200300270450, Relator: Min. Aldir Passarinho Junior, j. 21/10/2004, DJ de 09/02/2005, p. 194.7 2ª T., AGA 592.613/SP, Processo n°: 200400372379, Relator: Min. Castro Meira, j. 05/10/2004,DJ de 13/12/2004, p. 304. No mesmo sentido: 1ª T., RESP 690.482/RS, Processo n°: 200401376607,Relator: Min. Teori Albino Zavascki, j. 15/02/2005, DJ de 07/03/2005, p. 169.8 MORAES, Humberto Peña de. “A Assistência Judiciária Pública e os mecanismos de acesso àJustiça, no Estado Democrático”, in Revista de Direito da Defensoria Pública II/70.9 MOREIRA, José Carlos Barbosa. “O direito à assistência jurídica”, in Revista de Direito daDefensoria Pública V/122. Tal artigo tem por base palestra proferida em 30/10/1990, promovidapela Procuradoria-Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (PGDP-RJ), hojeDefensoria Pública–Geral do Estado do Rio de Janeiro (DPGE-RJ), por ocasião do lançamento daRevista de Direito da Defensoria Pública IV.

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Há referências históricas da existência do direito de os menosabastados gozarem de proteção especial perante o Estado-Juiz desde oCódigo de Hamurabi, rei da Babilônia, entre 2.067 e 2.025 a.C.. O soberanode Sumer e Acad fez insculpir em seu monumento a seguinte regra:

Eu sou o governador guardião. Em meu seio trago o povo das terrasde Sumer e Acad. Em minha sabedoria eu os refiro, para que o fortenão oprima o fraco e para que seja feita justiça à viúva e ao órfão.Que cada homem oprimido compareça diante de mim, como rei quesou da justiça.

Ultrapassados os tempos mais primitivos, em que o processo e as normaseram mais simples, a justiça deixou de ser totalmente gratuita10. Em Atenas,sob o poderoso argumento de que todo direito ofendido deve encontrardefensor e meios de defesa, eram nomeados, anualmente, 10 (dez)advogados para defender os pobres, perante os Tribunais cíveis e criminais.

Em Roma, as idéias de igualdade perante a lei contribuíram paraconsolidar o patrocínio gratuito deferido aos necessitados, cabendo aConstantino (288 a 337 d.C.) a primeira iniciativa de ordem legal, queveio a se inserir na legislação de Justiniano (483 a 565 d.C.), de garantiradvogado a quem não possuísse meios para constituir patrono.

Na Idade Média, por influência das idéias cristãs, passou-se a encarartoda forma de assistência aos pobres como dever de natureza ética ereligiosa11, incluindo a assistência judiciária.

Nesse período, destacou-se na prestação da assistência jurídica a figurade Yves Heloury de Kermartin, nascido em 17 de outubro de 1253, nasproximidades de Tréguier, na Baixa Betranha. Tendo estudado Teologia eDireito Canônico na Universidade de Paris e, posteriormente,especializado-se em Direito Civil em Orleans, voltou para Bretanha, ondeatuou primeiramente como juiz episcopal12 nas cidades de Rennes e,

10 Segundo o sempre brilhante mestre José Carlos Barbosa Moreira “até certa época, os própriosjuízes cobravam os serviços das partes; só a partir da Revolução Francesa é que o mundo ocidentalse beneficiou da prática oposta: os juízes passaram a receber os seus vencimentos do poder público,em vez de cobrar das próprias partes a retribuição do serviço que prestavam.” (Op. cit. p. 122).11 MOREIRA, José Carlos Barbosa, op. cit., p. 124.12 Ainda segundo José Carlos Barbosa Moreira (op. cit. p. 124) podem ser encarados comoconseqüência da concepção cristã de assistência aos pobres o fato de “atribuir competência à justiçaeclesiástica (que, naquela época se distinguia perfeitamente dos outros aparelhos judiciários) para

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mais tarde, de Tréguier, sua terra natal13. Acumulou as atividades desacerdote, advogado e juiz, o que era perfeitamente possível naquelestempos em que não vigorava de forma estrita a atual distinção de funções.

Yves entregou-se à defesa dos miseráveis e oprimidos contra ospoderosos e costumava dizer: “jura-me que sua causa é justa e eu adefenderei gratuitamente”. Notabilizou-se por dedicar a sua erudição adefender nos tribunais toda a minoria deserdada de fortuna. Seusemolumentos, quando foi Juiz de Rennes, eram oferecidos aos pobres,para que fossem usados em sua defesa. Yves faleceu em 19 de maio de1303, aos 50 (cinqüenta) anos de idade.

Após rigoroso processo de investigação, o Papa Clemente VI, com aBula de 19 de maio de 1347, proclamou Yves, hoje conhecido como SantoIvo, “inscrito no Catálogo dos Santos Confessores, devendo ser veneradoanualmente no dia 19 de maio”.

Foi de sua inspiração a criação da “Instituição dos Advogados dosPobres”, especialmente para patrocinar as causas dos revéis, pobres, viúvase órfãos. As razões históricas e de identidade das funções constitucionaisda Defensoria Pública com a instituição criada pelo Santo advogadoinspiraram a escolha da data de sua morte (19 de maio) para ascomemorações do Dia Nacional da Defensoria Pública, nos termos da Lein° 10.448, de 9 de maio de 2002.

Na Idade Moderna e em toda a Era Liberal, após tentativas esporádicasocorridas a partir do fim da Idade Média, difundiu-se a prática de os juízesnomearem ex officio advogados para defenderem gratuitamente osnecessitados.

No século XIX (1851), coube à França editar um Código de AssistênciaJudiciária, que veio a inaugurar a nomenclatura ainda hoje utilizada emvários países.

processar e julgar as causas em que fossem interessadas pessoas de pequenos recursos ou semnenhum recurso. Essa justiça era prestada sem retribuição direta pelas partes, ao contrário do queacontecia, como tive ocasião de assinalar, com outros órgãos judiciários, em que os juízes cobravamos seus serviços dos diretamente interessados.”13 BORGES, Arthur de Castro. Santo Ivo: História da Advocacia e do seu Santo Patrono. 3ª ed.. SãoPaulo: LTr, 1994.

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Com o advento do chamado Welfare State, passou a ter relevância ocombate às desigualdades sociais. Assim, adotou-se em caráter pioneiroa atribuição do patrocínio dos cidadãos menos afortunados a profissionaisliberais mediante remuneração estatal, por meio de uma Lei Inglesa de1949, denominada Legal Aid and Advice Act.

Posteriormente, ao lado da solução inglesa, difundiu-se uma outraque previu a criação de órgãos públicos para prestação direta dos serviçosde representação em juízo e de assessoramento e consultoria parapessoas que não pudessem custear tais serviços. Essa solução difundiu-se nos EUA, nas décadas de 60 e 70, onde foi instituída uma rede deórgãos chamados Neighbourhood Law Centers, situados principalmenteem zonas de população mais carente.

No Brasil, a assistência judiciária tem seu embrião nas OrdenaçõesFilipinas, que vigoraram de 1823 até 1916 e que substituíram asOrdenações Manoelinas. Cabe, até mesmo por curiosidade, fazer-sereferência ao dispositivo (Livro III, Título 84, § 10), in litteris:

§ 10 – Em sendo o aggravante tão pobre que jure não ter bensmóveis, nem de raiz, nem por onde pague o aggravo, e dizendo naaudiência uma vez o Pater Noster pela alma del Rey Don Diniz, ser-lhe-á havido, como que pagasse os novecentos réis, contanto quetire de tudo certidão dentro no tempo, em que havia de pagar oaggravo.

A herança portuguesa na matéria era tradicional. De um lado havia adispensa das custas judiciais àqueles comprovadamente impossibilitadosde com elas arcar e, de outro, solicitava-se a advogados que, porgenerosidade, prestassem graciosamente seus serviços a essas pessoas.

As primeiras tentativas de reforma desse sistema ocorreram ainda noImpério. À época, Nabuco de Araújo tomou a iniciativa de criar, no Institutodos Advogados do Brasil, um Conselho destinado a “prestar assistênciajudiciária aos indigentes nas causas cíveis e crime, dando consultas, eencarregando a defesa dos seus direitos a algum dos membros doConselho ou Instituto”14.

14 MOREIRA, José Carlos Barbosa, op. cit., p. 128.

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No começo do período republicano é imperiosa a referência a doisdecretos: o Decreto nº 1.030/1890, que autorizou o Ministério da Justiçaa criar uma comissão de patrocínio gratuito aos pobres, e o Decreto nº2.457/1897, que criou o serviço de assistência judiciária.

No primeiro estatuto da OAB, criada em 1930, havia um capítulodestinado à assistência judiciária, porém, as normas ali previstas estavamnitidamente ligadas à concepção de dever honorífico do advogado, práticaainda existente e que merece críticas de abalizada doutrina15.

A primeira Constituição a positivar o instituto, incluindo-o dentre osdireitos e garantias individuais e prevendo a criação de órgão especialpara a sua prestação, foi a de 1934 (art. 113, n° 32).

A União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária,criando, para esse efeito órgãos especiais e assegurando a isenção deemolumentos, custas, taxas e selos.

Com o advento da Constituição de 1937, a assistência judiciária deixoude ter tratamento constitucional.

O tratamento inaugurado com a Constituição de 1934 foi restabelecidocom a promulgação da Constituição de 1946 (art. 141, § 35).

Art. 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeirosresidentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida,à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termosseguintes:

(...)

§ 35 – O poder público, na forma que a lei estabelecer, concederáassistência judiciária aos necessitados.

15 “A atribuição de dever honorífico ao advogado é uma solução por vários motivos insatisfatória, semnenhum detrimento para os profissionais que, muitas vezes com boa vontade, se dispõem a exercergratuitamente a sua atividade profissional em benefício de quem não pode remunerá-los. É naturalque, numa sociedade como a nossa, em que o advogado profissional liberal se sustenta graças aoproduto do seu trabalho, é natural que ela não possa constituir solução genérica. É natural até que, emcertos casos, o advogado resista um pouco a ver-se onerado com uma pluralidade de causas que nãocomportem remuneração. Na prática, muitas vezes tem acontecido que as causas das pessoas semrecursos se vêem atribuídas a profissionais de menor experiência ou de menor capacidade; o prejuízoé evidente para a defesa judicial desses direitos” (José Carlos Barbosa Moreira, op. cit., p. 124)

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Para regulamentar infraconstitucionalmente tal dispositivo, entrou emvigor a Lei n° 1.060/50.

Também entre os direitos e garantias individuais o tema foi tratado naConstituição de 1967 (art. 150, § 32) e pela Emenda Constitucional n° 1de 1969 (art. 153, § 32), com a seguinte redação:“será concedidaassistência judiciária aos necessitados, na forma da lei.”

Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasilde 1988, o direito à assistência ganhou reconhecida ampliação, seja noque pertine ao fato de positivar a assistência extrajudicial, uma das facetasda assistência jurídica, prevista no rol do art. 5° (inciso LXXIV), seja nosentido de eleger e denominar o órgão estatal incumbido de suaprestação, qual seja, a Defensoria Pública (art. 134)16.

4. DISTINÇÃO ENTRE OS INSTITUTOS: GRATUIDADE DE JUSTIÇA,ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA, ASSISTÊNCIA JURÍDICA E DEFENSORIAPÚBLICA

Deve-se sempre ter em mente a distinção entre os institutos da justiçagratuita ou gratuidade de justiça17, assistência judiciária, assistência jurídicae Defensoria Pública.

Pontes de Miranda18 conceitua o benefício da justiça gratuita comoinstituto de direito pré-processual consistente no “direito à dispensaprovisória de despesas, exercível em relação jurídica processual peranteo juiz que promete a prestação jurisdicional”.

O ilustre Mestre estabelece também o conceito de assistência judiciária(instituto de Direito Administrativo) como sendo “organização estatal ouparaestatal, que tem por fim, ao lado da dispensa provisória das despesas,a indicação de advogados”.

16 MOREIRA, José Carlos Barbosa, op. cit., p. 130.17 V. art. 18, inciso II, Lei Complementar n° 80/94.18 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. 2ª ed. São Paulo: Revista dosTribunais, V. 648, p. 641.

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Aqui estão compreendidos, pois, além da Defensoria Pública (órgãooficial estatal), outros prestadores desse serviço público, como osadvogados dativos que atuem por meio de convênios firmados pela OABcom os Tribunais, os escritórios modelos das Faculdades de Direito, ossindicatos19 etc.

Como lecionam Cleber Francisco Alves e Marilia Gonçalves Pimenta20

a assistência jurídica

...engloba a assistência judiciária, além de outros serviços jurídicosnão relacionados ao processo, tais como orientar, esclarecimento dedúvidas e prestando orientação e auxílio à comunidade no que dizrespeito à formalização de escrituras, obtenção de certidões, registrosde imóveis.

Inclui-se aqui também a tentativa de conciliação, cujo instrumento detransação subscrito por Defensor Público, independentemente dehomologação judicial posterior, nos termos do art. 585, inciso II, do CPC,constitui título executivo extrajudicial21, bem como a prestação deassistência no âmbito de procedimentos administrativos22.

A Defensoria Pública, como já mencionado, é a instituição estatal oficialresponsável pela prestação da assistência jurídica com importante papelconstitucional de garantir o acesso à justiça e a observância do devidoprocesso legal e de seus corolários do contraditório e da ampla defesa.

5. PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS DA DEFENSORIA PÚBLICA

São princípios institucionais da Defensoria Pública, conforme previsãodo art. 3° da Lei Complementar n° 80/94, a unidade, a indivisibilidade ea independência funcional.

19 V. art. 8°, inciso III, da CRFB/88; art. 14 da Lei n° 5.584/70; e art. 592, inciso II, alínea “a” daCLT.20 ALVES, Cleber Francisco; PIMENTA, Marilia Gonçalves. Acesso à Justiça: em preto e branco:Retratos Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 103.21 A tentativa de conciliação além de função institucional prevista no art. 4°, inciso I, da LeiComplementar n° 80/94, também é prevista entre as atribuições específicas do Defensor Público daUnião no art. 18, inciso III, do mesmo diploma legal.22 A atuação em procedimentos administrativos encontra previsão legal nos artigos 4°, inciso IX;14, caput, in fine; 18, inciso VII; e na parte final do art. 20; todos da Lei Complementar n° 80/94.

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Com base no ensinamento de Cleber Francisco Alves e Marilia GonçalvesPimenta23, a unidade consiste em entender a Defensoria Pública,englobadas aqui a Defensoria Pública da União, as dos Estados e a doDistrito Federal e dos Territórios, como “um todo orgânico, sob a mesmadireção, os mesmos fundamentos e a as mesmas finalidades”. GuilhermePeña de Moraes24, citando Paulo César Pinheiro Carneiro, ensina que

...a unidade da Defensoria Pública ‘não significa que qualquer deseus membros poderá praticar qualquer ato em nome da instituição,mas sim, sendo um só organismo, os seus membros ‘presentam’ (nãorepresentam) a instituição sempre que atuarem, mas a legalidade deseus atos encontra limites no âmbito da divisão de atribuições e demaisgarantias impostas pela lei’.

Tal unidade, existente nos mesmos moldes do Ministério Público (art.127, § 1°, da CRFB/88), como reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal25

não implica, entretanto, em vinculação de opiniões.

Além do fundamento infraconstitucional (art. 3° da Lei Complementarn° 80/94), o princípio institucional da unidade tem sede constitucionalno próprio caput do artigo 134 da Constituição Federal, uma vez que talnorma, emanada do poder constituinte originário, reza, no singular: “ADefensoria Pública é instituição...”. Daí decorre que o parágrafo inseridono art. 134 pela Emenda Constitucional n° 45/2004, no sentido de conferirautonomia financeira e orçamentária apenas às Defensorias PúblicasEstaduais e não à Defensoria Pública da União e à Defensoria Pública doDistrito Federal e dos Territórios, em expressa contrariedade ao caput doart. 134 da CRFB/88, deve ser considerado inconstitucional em suainterpretação literal, devendo ser feita interpretação conforme, ampliandoo alcance do dispositivo, para conferir tal autonomia à Instituição comoum todo.

A indivisibilidade, por seu turno, significa que a Defensoria Públicaconsiste em “um todo orgânico, não estando sujeita a rupturas oufracionamentos”26. Esse princípio permite que seus membros se substituam

23 Op. cit., p. 112.24 MORAES, Guilherme Peña de. Instituições da Defensoria Pública. São Paulo: Malheiros, 1999,p. 174.25 1ª T., AI 237400 ED/RS, Relator: Min. Ilmar Galvão, j. 27/06/2000, DJ de 24/11/2000, p. 102.

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uns aos outros, a fim de que a prestação da assistência jurídica aconteçasem solução de continuidade27, de forma a não deixar os necessitadossem a devida assistência.

Hipótese de aplicação prática dos princípios da unidade e daindivisibilidade ocorre nos casos de intimação pessoal28 da DefensoriaPública. No âmbito dos processos da Justiça Federal, a Defensoria Públicada União é, em geral, pessoalmente intimada por meio de mandadojudicial cumprido por oficial de justiça.

Ocorre que, nos mandados de intimação, via de regra, sãoinobservados tais princípios, visto que deles consta como intimando oDefensor Público atuante naquele processo o que acaba por acarretardificuldades de ordem prática nos casos de férias, licenças, remoções,promoções, exonerações, aposentadorias, dentre outros. O tecnicamentecorreto seria constar como destinatária da intimação a Instituição, podendoa intimação ser recebida por qualquer de seus membros com atribuiçãopara atuar perante aquele órgão jurisdicional.

Por fim, a independência funcional, enquanto princípio institucional,consiste em dotar a Defensoria Pública de “autonomia perante os demaisórgãos estatais” 29, na medida em que as suas funções institucionais podemser exercidas inclusive contra as pessoas jurídicas de direito público dasquais fazem parte30 como entes despersonalizados pelo fenômeno dedireito administrativo da desconcentração31, e impede que seus membrossejam subordinados à hierarquia funcional, ficando os mesmossubordinados apenas à hierarquia administrativa.26 MORAES, Guilherme Peña de, op. cit, p. 174.27 “A Defensoria Pública pertence aos Defensores Públicos e aos assistidos, e a sua razão de serconsiste no fato de que as suas normas fundamentais e o funcionamento de seus órgãos não podemsofrer qualquer solução de continuidade. Uma vez deflagrada a atuação do Defensor Público, deve aassistência jurídica ser prestada até atingir o seu objetivo, mesmo nos casos de impedimento, férias,afastamento ou licenças, pois nesses casos, a lei prevê a possibilidade de substituição ou designaçãode outro Defensor Público, garantindo assim o princípio da eficiência do serviço público introduzidono art. 37 da Carta Magna pela Emenda Constitucional n° 19/98.” (Paulo Galliez. PrincípiosInstitucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 27).28 V. art. 44, inciso I; art. 89, inciso I, e art. 128, inciso I, da Lei Complementar n° 80/94 e art. 5°,§ 5°, da Lei n° 1.060/50.29 ALVES, Cleber Francisco; PIMENTA, Marilia Gonçalves, op. cit., p. 113.30 V. art. 4°, § 2°, da Lei Complementar n° 80/94.31 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed.. São Paulo:Malheiros, 2002, p. 273.

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Tal princípio institucional “elimina qualquer possibilidade de hierarquiadiante dos demais agentes políticos do Estado, incluindo os magistrados,promotores de justiça, parlamentares, secretários de estado e delegadosde polícia”32.

Essa independência da Instituição em relação a outros órgãos estataispode ser encarada como aspecto externo da independência funcional(princípio institucional). Mais adiante será analisada uma outra faceta daindependência funcional: a garantia conferida aos membros da Instituição(aspecto interno)33.

6. INGRESSO NA CARREIRA DA DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO

O ingresso na carreira, conforme mandamento constitucional (art. 37,inciso II, c/c art. 134, parágrafo único, da CRFB/88), dá-se por meio deaprovação prévia em concurso público.

O concurso público para preenchimento dos cargos de DefensorPúblico da União de 2ª Categoria, cargo inicial da carreira, conformeprevisão dos artigos 24 a 27 da Lei Complementar n° 80/94, é de âmbitonacional, de provas e títulos e com participação da Ordem dos Advogadosdo Brasil.

Os candidatos devem possuir registro na Ordem dos Advogados doBrasil, ressalvada a situação dos proibidos de obtê-la34, e comprovar, nomínimo, dois anos de prática forense, assim considerado o exercícioprofissional de consultoria, assessoria, o cumprimento de estágio nasDefensorias Públicas35 e o desempenho de cargo, emprego ou funçãode nível superior de atividades eminentemente jurídicas.

Apesar de exigir-se dos candidatos a inscrição na Ordem dos Advogadosdo Brasil, a mesma, no entanto, não é imprescindível para a efetiva

32 GALLIEZ, Paulo Cesar Ribeiro. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2001, p. 27.33 V. arts. 43, inciso I; 88, inciso I, e 127, inciso I, da Lei Complementar n° 80/94.34 V. art. 27 a 30 da Lei nº 8.906/94.35 V. art. 145 da Lei Complementar nº 80/84 e art. 28 do Regulamento do Estatuto da Advocacia eda OAB.

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atuação do Defensor Público, eis que está impedido, nos termos do art.134, parágrafo único, da CRFB/88 (regulamentado pelo art. 46, inciso I,da Lei Complementar nº 80/94), de exercer a advocacia fora de suasatribuições. Isto porque o art. 3º, § 1º, da Lei nº 8.906/94, que prevê asubordinação dos integrantes da carreira da Defensoria Pública ao Estatutoda OAB, encontra-se eivado tanto de inconstitucionalidade formal, quantode inconstitucionalidade material36.

O dispositivo é formalmente inconstitucional, a uma, porque nãoobserva a norma constitucional do art. 61, § 1º, inciso II, alínea “d”, queprevê a iniciativa privativa do Presidente da República para as leis quetratem de organização da Defensoria Pública; a duas, porque viola areserva de lei complementar prevista no parágrafo único do art. 134 daConstituição Federal, que reza que “lei complementar organizará aDefensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios eprescreverá normas gerais para sua organização nos Estados”.

Além dos vícios formais apontados, a norma também é materialmenteinconstitucional por não render obediência aos princípios da igualdade(art. 5°, caput e inciso I da CRFB/88), da proporcionalidade (com sedeconstitucional no inciso LIV do art. 5°) e do non bis in idem, princípiogeral de direito que é decorrência do princípio constitucional daindividualização da pena (art. 5º, inciso XLVI).

A individualização da pena consiste na atividade de determinarconcretamente qual é a pena aplicável àquela pessoa em decorrência docometimento de um determinado ilícito. O princípio da individualizaçãoda pena que, conforme entendimento jurisprudencial do Superior Tribunalde Justiça, também é aplicável na esfera administrativa37, para algunsautores tem três fases: a legislativa, a judicial e a administrativa38. Aqui

36 Posicionamento extraído da “Consulta sobre a Obrigatoriedade do Pagamento pelos DefensoresPúblicos Impedidos da Advocacia Privada”, memorial elaborado pela Associação dos DefensoresPúblicos do Estado do Rio de Janeiro e publicado na Revista de Direito da Associação dos DefensoresPúblicos do Estado do Rio de Janeiro I/1-14.37 3ª Seção, MS 8526/DF, Processo nº: 200200854213, Relator: Min. Hamilton Carvalhido, j. 10/12/2003, DJ de 02/02/2004, p.:267.38 O ilustre jurista Celso Ribeiro Bastos menciona a existência de tal posicionamento em sua obraintitulada “Comentários à Constituição do Brasil” (São Paulo: Saraiva, 2001, v. 2, p. 256), mas tementendimento no sentido contrário, qual seja, de que a individualização da pena começa apenas coma atividade judicial.

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se tem, desde a fase legislativa, a possibilidade de incidência de duassanções de mesma natureza (sanções administrativas disciplinares) pelaprática do mesmo fato: uma prevista no Estatuto da OAB e outra previstano regime disciplinar próprio da Lei Complementar nº 80/94, o que revelaa flagrante inconstitucionalidade material do art. 3º, § 1º, da Lei nº 8.906/94. Ademais, revela-se extremamente desproporcional e desigual.

Após a aprovação em concurso público de provas e títulos, o DefensorPúblico da União é nomeado pelo Presidente da República, nos termosdo art. 28 da Lei Complementar nº 80/94, e, após a posse, evento queaperfeiçoa a relação entre o Estado e o nomeado39, o mesmo passa aestar investido no cargo.

Neste ponto também observa-se, na prática forense, um equívoco porparte dos Magistrados, quando em suas decisões deixam, por exemplo,assim consignado: “nomeio o Defensor Público subscritor da peça de fl.‘X’ para o patrocínio do Autor”. Por vezes, aqueles chegam a indicarnominalmente o Defensor Público “nomeado” no decisum, revelandoevidente impropriedade técnica em tal modo de proceder, a uma, porquea prestação da assistência é função da Instituição (art. 4º da LeiComplementar nº 80/94); a duas, porque, além de revelar interferênciana divisão interna do trabalho entre os membros da Instituição e, via deconseqüência, na própria independência funcional em seu aspectoexterno, não observa os princípios da unidade e da indivisibilidade,segundo os quais qualquer membro da instituição com atribuição paraprestar a assistência jurídica perante aquele órgão jurisdicional estáautorizado a atuar naquele procedimento em nome da Defensoria Pública.

Talvez tal equívoco encontre origem na confusão que é feita entre aatuação do Defensor Público, agente político40 que presenta a instituiçãoDefensoria Pública, e a dos denominados advogados dativos.

39 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed.. São Paulo:Malheiros, 2002, p. 132.40 Sobre o enquadramento dos Defensores Públicos dentre os agentes políticos, veja-se PauloGalliez, “As Prerrogativas da Defensoria Pública em Face da Lei n° 7.871 de 08/11/89”, in Revistade Direito da Defensoria Pública VI/130; Diogo Figueiredo Moreira Neto, “A Defensoria Públicana Construção do Estado de Justiça”, in Revista de Direito da Defensoria Pública VII/33; JeanMenezes de Aguiar, “Considerações Acerca do Defensor Público como Agente Político do Estado– A vez de todos”, in Revista de Direito da Defensoria Pública X/178; Francisco Bastos Viana deSouza. “O Defensor Público como Agente Político do Estado”, in Revista de Direito da Defensoria

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Os advogados dativos são nomeados pelo juiz para assumir o munuspúblico de prestar a assistência judiciária quando não houver DefensoriaPública no local, nos termos do art. 5º, § 3º, da Lei nº 1.060/50. A partirda nomeação feita, que pode ser precedida ou não da indicação dobeneficiário da referida assistência, o advogado dativo declara se aceitaou não o encargo (art. 5º, § 4º, da Lei nº 1.060/50). Em aceitando, passaa estar obrigado a cumprir fielmente o munus que lhe foi conferido, sobpena de fixação de multa, sem prejuízo da sanção disciplinar cabível,conforme previsão do art. 14 da Lei nº 1.060/50. Negando-se a assumir oencargo, deve expor justificadamente seus motivos à autoridade judicial,que poderá isentá-lo temporária ou definitivamente (art. 15, caput, eparágrafo único, da Lei nº 1.060/50).

O patrocínio de determinada pessoa pela Defensoria Pública estádiretamente condicionado ao fato de a Instituição, por meio de seusmembros, ter concluído pela hipossuficiência econômica daquela.Concluindo-se pela necessidade econômica, do munus constitucional deprestar a assistência jurídica, independentemente de qualquer decisãojudicial, decorre a capacidade postulatória com os poderes gerais para oforo (cláusula ad judicia), prescindindo de mandato, conforme positivadono art. 44, inciso XI, da Lei Complementar nº 80/94. Cumpre ao Judiciárioapenas pronunciar-se acerca da gratuidade de justiça, ou seja, sobre opedido de isenção do pagamento das custas.

Nas causas já em curso em que haja, por exemplo, a renúncia oufalecimento do patrono da parte, cessando os poderes a ele conferidos,antes de intimar-se pessoalmente a Defensoria Pública, deve haver aintimação pessoal da parte para que regularize sua representaçãoprocessual, uma vez que a possibilidade de escolha da defesa técnica éum dos aspectos da ampla defesa (art. 5°, inciso LV, da CRFB/88 c/c art.8°, n° 7 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos de 1969 –Pacto de San Jose da Costa Rica).

Do mandado de intimação pode constar que, caso a parte não tenhacondições de arcar com as custas processuais e com os honoráriosadvocatícios, sem prejuízo do sustento próprio e de sua família, lhe éfacultado comparecer à Defensoria Pública para atendimento,oportunidade em que a Instituição, por meio de seus membros, dentro

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de sua independência funcional, analisará a ocorrência ou não de hipótesede prestação da assistência jurídica integral e gratuita.

7. GARANTIAS DOS MEMBROS DA DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO

As garantias dos membros da Instituição estão positivadas no art. 43da Lei Complementar n° 80/94.

A primeira delas, talvez a mais importante, é a independência funcionalem seu aspecto interno. Independência funcional, aqui, significa que osmembros da Defensoria Pública devem respeito, no âmbito administrativo,a seus superiores hierárquicos (no âmbito da Defensoria Pública da União,aos Defensores Públicos-Chefes, dirigentes dos Núcleos e dos órgãos deatuação da Defensoria Pública da União nos Estados e no Distrito Federal41,bem como aos órgãos da Administração Superior - Defensoria Pública-Geral da União42, Subdefensoria Pública-Geral da União43, ConselhoSuperior da Defensoria Pública da União44 e Corregedoria-Geral daDefensoria Pública da União45), mas a formação de seu convencimentotécnico-jurídico é exercida de forma livre e independente, sem ainterferência de quem quer que seja.

As demais garantias46 e prerrogativas47 podem ser encaradas comocorolários da independência funcional, prestando-se à sua efetivaaplicabilidade.

A inamovibilidade encontra sede constitucional no parágrafo únicodo art. 134 e consiste na vedação da remoção do Defensor Público do

Pública XI/49-52; Andréia Gonçalves Vangelotti. “Defensor público: Agente Político; AgenteAdministrativo ou uma Classe de Agentes Especiais do Estado?”, in Revista de Direito da DefensoriaPública XI/251-256; e Guilherme Peña de Moraes. “Instituições da Defensoria Pública”. SãoPaulo: Malheiros, 1999, p. 162.41 V. arts. 15 e 17 da Lei Complementar n° 80/94.42 V. art. 5°, inciso I, alínea “a”, c/c 6° e 8° da Lei Complementar n° 80/94.43 V. art. 5°, inciso I, alínea “b”, c/c 7° e 8°, parágrafo único, da Lei Complementar n° 80/94.44 V. art. 5°, inciso I, alínea “c”, c/c 9° e 10 da Lei Complementar n° 80/94.45 V. art. 5°, inciso I, alínea “d”, c/c 11 e 13 da Lei Complementar n° 80/94.46 MORAES, Guilherme Peña de. Op. cit., p. 175.47 GALLIEZ, Paulo Cesar Ribeiro. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2001, p. 33.

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órgão de atuação onde o mesmo esteja lotado para qualquer outroindependentemente de sua vontade, ou seja, de forma compulsória.Conclui-se, pois, que a remoção compulsória prevista como sanção noart. 50, § 1°, inciso III e § 4° da Lei Complementar n° 80/94 éinconstitucional, pois estabeleceu em nível infraconstitucional limitaçãoà garantia da inamovibilidade, quando a norma constitucional não prevêqualquer restrição48.

Se o constituinte pretendesse estabelecer limites à inamovibilidade,teria, no art. 134, parágrafo único, feito as mesmas ressalvas previstas emrelação aos membros da Magistratura (art. 95, inciso II) e do MinistérioPúblico (art. 128, § 5°, inciso I, alínea “b”). Não podendo a normainfraconstitucional restringir garantias estabelecidas pela ConstituiçãoFederal. A garantia da inamovibilidade dos Defensores Públicos só podeser encarada como absoluta.

A garantia da irredutibilidade dos vencimentos é comum a todos osservidores públicos (art. 37, inciso XV, da CRFB/88), não cabendo aquifazer maiores digressões sobre a mesma.

Por fim, tem-se a garantia da estabilidade. Na qualidade de ocupantede cargo público, o Defensor Público é estável após 3 (três) anos deefetivo exercício (aspecto objetivo: decurso do prazo), ficando sujeito aestágio probatório de 24 (vinte e quatro) meses (aspecto subjetivo:avaliação funcional), previsto no art. 20 da Lei n° 8.112/90, conformeentendimento recentemente adotado pela Terceira Seção do SuperiorTribunal de Justiça, verbis:

MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDORES PÚBLICOS. ESTÁGIOPROBATÓRIO. ART. 20 DA LEI N.º 8.112/90. ESTABILIDADE. INSTITUTOSDISTINTOS. ORDEM CONCEDIDA.

1. Durante o período de 24 (vinte e quatro) meses do estágioprobatório, o servidor será observado pela Administração com afinalidade de apurar sua aptidão para o exercício de um cargodeterminado, mediante a verificação de específicos requisitos legais.

48 No sentido da inconstitucionalidade da remoção compulsória, veja-se Cleber Francisco Alves eMarilia Gonçalves Pimenta. Op. cit., p. 114; e Sílvio Roberto Mello Moraes. “A garantia daInamovibilidade dos Membros da Defensoria Pública”, in Revista de Direito da Defensoria PúblicaVII/42-48.

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2. A estabilidade é o direito de permanência no serviço públicooutorgado ao servidor que tenha transposto o estágio probatório. Aotérmino de três anos de efetivo exercício, o servidor será avaliado poruma comissão especial constituída para esta finalidade.

3. O prazo de aquisição de estabilidade no serviço público não restavinculado ao prazo do estágio probatório. Os institutos são distintos.Interpretação dos arts. 41, § 4º da Constituição Federal e 20 da Lei n.º8.112/90.

4. Ordem concedida.49

8. PRERROGATIVAS DOS DEFENSORES PÚBLICOS DA UNIÃO

As prerrogativas dos membros da Defensoria Pública da União sãofaculdades especiais50, conferidas a esta categoria de agentes políticosdo Estado, para que sejam alcançadas as finalidades da Instituição.

A caracterização do Defensor Público como agente político dá-se pelofato de suas funções ou atribuições terem assento constitucional, depossuírem autonomia funcional e por não se sujeitarem imediatamenteao regime jurídico comum dos servidores públicos, possuindo umalegislação que lhe é própria51. Nesse sentido, é imperiosa a transcriçãodo ensinamento de Sérgio de Andréa Ferreira, que insere os DefensoresPúblicos no rol dos agentes políticos:

A) Agentes Políticos, que se seguem:

a) omissis.

b) omissis.

c) omissis.

d) Membros do Ministério Público, da Defensoria Pública, da AdvocaciaGeral da União e das Procuradorias locais, dos Estados e do Distrito

49 3ª Seção, MS 9373/DF, Processo n°: 200302026109, Relatora: Min. Laurita Vaz, j. 25/08/2004,DJ de 20/09/2004, p. 182.50 JÚNIOR, José Cretella. “Os cânones do Direito Administrativo”. Revista de Informação Legislativa97/13.51 SOUZA, Francisco Bastos Viana de. “O Defensor Público como Agente Político do Estado”, inRevista da Defensoria Pública XI/49-52.

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Federal – Titulares de funções (cargos) exercidas nas mencionadasinstituições de provedoria de justiça. Investidura efetiva mediantenomeação por concurso. Os Membros do Ministério Público adquirem,ulteriormente, vitaliciedade. Cada um dos conjuntos citados éorganizado obrigatoriamente em carreira (arts. 127 a 135 da CF).52

Segundo lição de Hely Lopes Meirelles:

As prerrogativas que se concedem aos agentes políticos não sãoprivilégios pessoais; são garantias necessárias ao pleno exercício desuas altas e complexas funções governamentais e decisórias. Semessas prerrogativas os agentes políticos ficariam tolhidos na sualiberdade de opção e de decisão, ante o temor de responsabilizaçãopelos padrões comuns da culpa civil a que ficam sujeitos osfuncionários profissionalizados.53

As prerrogativas estão previstas no art. 44 da Lei Complementar n°80/94, consistindo naquelas a seguir elencadas.

8.1. INTIMAÇÃO PESSOAL E CONTAGEM EM DOBRO DE TODOS OS PRAZOS

Art. 44 – São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública daUnião:

I – receber intimação pessoal em qualquer processo e grau dejurisdição, contando-se-lhe em dobro todos os prazos;

As prerrogativas da intimação pessoal de todos os atos e da contagemem dobro de todos os prazos, ao invés de ocasionarem violação aoprincípio da isonomia, antes prestigiam-no, na medida em que, devidoao grande volume de procedimentos judiciais e extrajudiciais sob aresponsabilidade de cada Defensor Público, estabelece tratamentodesigual aos desiguais, na exata medida de sua desigualdade.

A prerrogativa da intimação pessoal, quando não observada (o quenão raro ocorre), gera a nulidade dos atos processuais posteriores54.

52 FERREIRA, Sérgio de Andréa. Comentários à Constituição de 1988. pp. 112/113.53 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26ª ed. São Paulo: Malheiros,2001, pp. 72/73.54 STF, 1ª T., HC 83847/PE, Relator: Min. Joaquim Barbosa, j.: 01/06/2004, DJ de 20/08/2004, p.50. STJ, 4ª T., RESP 558897/PR, Processo n°: 200301375225, Relator: Min. Fernando Gonçalves,j. 21/10/2003, DJ de 03/11/2003, p. 324.

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No âmbito das Varas Cíveis da Justiça Federal da Capital da SeçãoJudiciária do Estado do Rio de Janeiro, estabeleceu-se, como já referido,a praxe de intimar pessoalmente a Defensoria Pública por meio demandados cumpridos por oficiais de justiça. No entanto, nada impedeque a intimação pessoal se dê por outros meios pelos quais se concluapela ciência pessoal e inequívoca do membro da Defensoria Públicaacerca da prática do ato, como por exemplo, a vista pessoal dos autos.

Há grande controvérsia jurisprudencial a respeito do termo inicial paraa contagem do prazo. Existem várias decisões do Superior Tribunal deJustiça no sentido de que, no caso de os representantes judiciais dosórgãos públicos federais (Advogados da União e Procuradores da FazendaNacional) serem intimados pessoalmente55 por meio de mandado, o prazopara a prática do ato seria contado da própria intimação, pela aplicaçãoda regra contida nos artigos 240 e 242 do CPC56.

Inúmeras decisões também do Superior Tribunal de Justiça apontamem sentido totalmente diverso, reputando como termo a quo do prazo ajuntada do mandado de intimação cumprido aos autos, nos termos do art.241, inciso II, do CPC57.

No caso da Defensoria Pública, a controvérsia ganha mais um temperointerpretativo, uma vez que o art. 240 do CPC refere-se expressamenteapenas à Fazenda Pública e ao Ministério Público. O prazo para aDefensoria Pública tem, sem sombra de dúvidas, como termo inicial odia da juntada aos autos do mandado devidamente cumprido, nos termosdo art. 241, inciso II, do CPC. Isto porque não se pode fazer interpretaçãoextensiva para limitar uma garantia, que, em última análise, é doeconomicamente necessitado que se vale da assistência prestada de formaheróica pelos pouquíssimos membros que integram esta nobre Instituição.Quanto ao tema, deve-se ter em mente a lição que se segue:

55 V. art. 38 da Lei Complementar n° 73/93 e art. 17 da Lei n° 10.910/2004.56 1ª T., RESP 500066/RJ, Processo n°: 200300241280, Relatora: Min. Denise Arruda, j. 14/09/2004, DJ de 25/10/2004, p.: 217. 5ª T., AGA 487975/RJ, Processo n°: 200201715676, Relator:Min. Gilson Dipp, j. 13/05/2003, DJ de 02/06/2003, p.:336. 6ª T., AGRESP 614449/RJ, Processon°: 200302238243, Relator: Min. Paulo Gallotti., j. 21/09/2004, DJ de 07/03/2005, p. 356.57 5ª T., RESP 584134/RJ, Processo n°: 200301538094, Relator: Min. Jorge Scartezzini, j. 25/05/2004, DJ de 02/08/2004, p. 521. 4ª T., RESP 547695/MG, Processo n°: 200301016143, Relator:Min. Barros Monteiro, j. 11/11/2003, DJ de 16/02/2004, p. 271. 1ª T., RESP 492151/RJ, Processon°: 200201622914, Relator: Min. Luiz Fux, j. 21/10/2003, DJ de 03/11/2003, p. 255.

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Ocorre que a Assistência Jurídica integral e gratuita está prevista dentrodo rol de Direitos Individuais previstos no artigo 5° da Carta Magna,inserido no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, decorrendodo Princípio da Dignidade da Pessoa, princípio fundamental do EstadoDemocrático de Direito disposto no artigo 1°, inciso III, daConstituição. Decorre, também, dos objetivos fundamentais daRepública Federativa do Brasil, contidos no artigo 3°, dentre eles,aquele de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir asdesigualdades sociais e regionais.58

No Processo Penal não há regra semelhante à do art. 241, inciso II, doCPC, sendo que, salvo previsão legal expressa em sentido contrário, otermo a quo do prazo processual será, sem qualquer controvérsia, o diaem que se efetuar a intimação ou a ciência inequívoca da decisão judicial,nos termos do art. 798, § 5°, do CPP59.

Com relação à contagem em dobro de todos os prazos processuais, aúnica exceção reconhecida pela jurisprudência é observada nosprocedimentos dos Juizados Especiais Federais60. A decisão da TurmaNacional de Uniformização, no entanto, fundamentou-se em premissatotalmente equivocada, qual seja, a aplicação do princípio da igualdade,equiparando a Defensoria Pública da União às pessoas jurídicas de direitopúblico para efeitos da aplicação do art. 9° da Lei n° 10.259/2002.

Ocorre que, até mesmo por questões fáticas, não há como se equiparara Defensoria Pública da União que conta, atualmente, com pouco maisde 100 (cem) cargos de Defensores Públicos em todo o país, pararepresentar a grande massa de necessitados, com as pessoas jurídicas dedireito público que contam com milhares de representantes organizadosem diversas carreiras (Advogados da União, Procuradores Federais eProcuradores da Fazenda Nacional) espalhados pelo Brasil.

Com tamanha desigualdade, pergunta-se: como se considerar aplicávela noção constitucional de igualdade, que encontra sua razão de ser namáxima de Aristóteles “a igualdade consistente em aquinhoar os iguais

58 ALVES, Cleber Francisco; PIMENTA, Marilia Gonçalves. Op. cit., p. 117.59 2ª T., HC 76256/PR, Relator: Min. Néri Da Silveira, j. 05/05/1998, DJ de 15-12-2000, p. 63.60 Turma Nacional de Uniformização, Incidente de Uniformização de Jurisprudência, Processo:200340007063637/PI, Relator: Juiz Federal Hélio Silvio Ourem Campos, j. 31/08/2004, DJU de03/12/2004.

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igualmente e os desiguais na medida de sua desigualdade” 61, e queentre nós foi disseminada por Rui Barbosa?

Ademais, o próprio Supremo Tribunal Federal já entendeu pelapossibilidade de aplicação do prazo em dobro no âmbito dos JuizadosEspeciais62.

8.2. COMUNICAÇÃO DA PRISÃO E DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL AO DEFENSORPÚBLICO GERAL

II – não ser preso, senão por ordem judicial escrita, salvo em flagrante,caso em que a autoridade fará imediata comunicação ao DefensorPúblico Geral;

(...)

Parágrafo único – Quando, no curso de investigação policial houverindício de prática de infração penal por membro da Defensoria Públicada União, a autoridade policial, civil ou militar, comunicará,imediatamente, o fato ao Defensor Público Geral, que designarámembro da Defensoria Pública para acompanhar a apuração.

Outra prerrogativa dos Defensores Públicos consiste na necessidadede comunicação de sua prisão ou da existência de eventual investigaçãocriminal contra o mesmo ao Chefe da Instituição. Assim, para os DefensoresPúblicos há uma ampliação do rol das pessoas que devem serimediatamente comunicadas de sua prisão. Além, da autoridade judiciáriacompetente e da família ou pessoa por ele indicada, também deve serimediatamente cientificado o Defensor Público-Geral (art. 5°, inciso LXII,da CRFB/88 c/c art. 44, inciso II, da Lei Complementar n° 80/94).

8.3. PRISÃO ESPECIAL

III – ser recolhido a prisão especial ou a sala especial de Estado-Maior, com direito a privacidade e, após sentença condenatória

61 BULLOS, Uadi Lamego. Constituição Federal Anotada. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 77.62 2ª T., HC 80502/RS, Relator: Min. Nelson Jobim, j. 12/12/2000, DJ de 24/08/01, p. 44.

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transitada em julgado, ser recolhido em dependência separada, noestabelecimento em que tiver de ser cumprida a pena;

O Defensor Público da União tem, ainda, direito à prisão especial emseparado. Tal prerrogativa, ao contrário da previsão do art. 295 do CPP,existe não apenas para a prisão cautelar, mas também para a prisãoenquanto pena privativa de liberdade a ser executada após o trânsito emjulgado da sentença condenatória, à semelhança do que ocorre com osmembros do Ministério Público da União63.

8.4 USO DE VESTES TALARES E INSÍGNIAS

IV – usar vestes talares e as insígnias privativas da Defensoria Pública;

Se uma pessoa que não seja Defensor Público da União usarpublicamente vestes talares (palavra originada de tale, talonis –expressões que significam calcanhar -; sinônima de toga, beca –vestimenta usada durante os trabalhos forenses) e as insígnias (símbolos,emblemas ou sinais) privativas da Defensoria Pública da União, poderestar configurada a contravenção penal de uso ilegítimo de uniforme oudistintivo, prevista no art. 46 da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei n° 3.688/41).

8.5 VISTA PESSOAL DOS AUTOS

V – (vetado);

VI – ter vista pessoal dos processos fora dos cartórios e secretarias,ressalvadas as vedações legais;

(...)

VIII – examinar, em qualquer repartição, autos de flagrante, inquéritoe processos;

A vista pessoal dos processos fora de secretarias pode ser submetidaa vedações legais, como a constante do art. 40, § 2°, do CPC. Inexiste,

63 V. art. 18, inciso II, alínea “e”, da Lei Complementar nº 75/93.

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contudo, qualquer limitação ao Defensor no tocante a examinar os autosna própria Secretaria do Juízo.

Essa prerrogativa muitas vezes é desrespeitada por algumas Secretariasdas Varas Federais da Capital da Seção Judiciária do Estado do Rio deJaneiro. Normalmente alega-se que a Defensoria Pública não pode tervista dos autos fora da secretaria porque o mandado de intimação aindanão foi juntado aos autos.

Ora, como já demonstrado acima, existe uma grande controvérsiajurídica acerca do termo inicial do prazo para a prática dos atos processuais.No próprio Tribunal Regional Federal da 2ª Região há os que consideramcomo termo inicial para a contagem do prazo para a interposição de recursoso dia em que se efetuou a intimação pessoal da Defensoria Pública.

Logo, em havendo a negativa da vista dos autos fora da secretariaantes da juntada do mandado, sem haver qualquer previsão legal nessesentido, além de estar-se violando a prerrogativa prevista no art. 44, incisoVI, da Lei Complementar n° 80/94, observa-se, via de conseqüência, odesrespeito à garantia do devido processo legal (art. 5°, inciso LIV, daCRFB) e de seus corolários, quais sejam, os princípios do contraditório eda ampla defesa (art. 5°, inciso LV, da CRFB/88).

Tem-se, pois, aqui, mais um fundamento (esse de ordem prática) paraa interpretação no sentido de que o prazo do Defensor Público tem comotermo inicial a juntada do mandado cumprido aos autos (art. 241, incisoII, do CPC).

Outra dificuldade encontrada para a fiel observância de tal prerrogativaé a exigência que se faz aos estagiários da Defensoria Pública, devidamenteidentificados pelo crachá da Instituição e munidos de ofício subscrito porDefensor Público autorizando-os a retirar os autos com carga, de que estejamportando a carteira de estagiário da OAB/RJ. É fato notório (art. 334, incisoI, do CPC), que outras instituições como o Ministério Público Federal,Advocacia-Geral da União e Procuradoria Federal, dentre outras, enviam àssecretarias um funcionário identificado por meio de ofício, que não temqualquer inscrição na OAB/RJ ou habilitação profissional para o exercícioda advocacia, para proceder à retirada dos autos das secretarias com vista.Pergunta-se: por que tal tratamento diferenciado?

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Por fim, cabe ressaltar que não está configurada a existência de prazocomum para a prática do ato processual se a intimação dos outrosadvogados dá-se por publicação da decisão na imprensa oficial e apenasposteriormente a Defensoria Pública é intimada; ou se os outrosrepresentantes das partes têm prazo simples e esse já se esgotou, nãohavendo, pois, qualquer óbice à concessão da vista dos autos fora desecretaria.

8.6 COMUNICAÇÃO PESSOAL E RESERVADA COM OS ASSISTIDOS

VII – comunicar-se, pessoal e reservadamente, com seus assistidos,ainda quando estes se acharem presos ou detidos, mesmoincomunicáveis;

Essa prerrogativa tem como objetivo assegurar a observância aoprincípio da ampla defesa, na medida em que eventual recusa decomunicação do Defensor Público com seu assistido poderia impedirque aquele esclarecesse a este os aspectos técnicos do processo, bemcomo impossibilitaria o profissional responsável pela defesa de terconhecimento de fatos relevantes ao julgamento da lide. A comunicaçãodo Defensor com o seu representado de forma reservada encontraprevisão expressa na Convenção Interamericana de Direitos Humanos de1969 (Pacto de San Jose da Costa Rica)64.

8.7 MANIFESTAÇÃO POR MEIO DE COTAS

IX – manifestar-se em autos administrativos ou judiciais por meio decota;

A palavra cota significa anotação que se faz nos autos com o objetivode informar ou requerer algo. Essa prerrogativa é importante na medidaem que, devido ao grande volume de trabalho, os requerimentos maissimples podem ser feitos nos próprios autos do processo,independentemente de petição. Observe-se, ainda, que as cotas marginais

64 V. Art. 8°, n° 6.

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e interlineares são proibidas (art. 161 do CPC), bem como as normas dosartigos 156 (uso do vernáculo) e 169 (uso de tinta escura indelével),ambos do CPC, devem ser respeitadas.

8.8 PODER DE REQUISIÇÃO

X – requisitar de autoridade pública e de seus agentes exames,certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos,informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercíciode suas atribuições;

O poder de requisição do Defensor Público é uma das mais importantesprerrogativas. No caso da Defensoria Pública da União, além de servirpara obter elementos probatórios importantes, serve ainda como meiode cumprir a função institucional de tentar encontrar solução extrajudicialao conflito de interesses (art. 4°, inciso I, c/c 18, inciso III, da LeiComplementar n° 80/94).

Requisição difere de requerimento65, e constitui ordem, atoadministrativo dotado de imperatividade e auto-executoriedade, cujodestinatário somente pode escusar-se de cumprir quando forflagrantemente ilegal. O não atendimento da requisição sujeita o seudestinatário às sanções penais (configura-se, em tese, o crime dedesobediência – art. 330 do CP) e administrativas cabíveis (sançõesdisciplinares).

8.9 DESNECESSIDADE DE PROCURAÇÃO

XI – representar a parte, em feito administrativo ou judicial,independentemente de mandato, ressalvados os casos para os quaisa lei exija poderes especiais;

O Defensor Público representa os beneficiários da assistência jurídicagratuita com os poderes gerais para o foro (cláusula ad judicia), sem a

65 Segundo Guilherme Peña de Moraes: “Requisição é exigência legal, enquanto que requerimento ésolicitação de algo permitido em lei.” (Instituições da Defensoria Pública. São Paulo: Malheiros,1999, p. 288).

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necessidade de lhe ser outorgada procuração. A procuração somente éexigida quando, para a prática do ato houver necessidade de outorga depoderes especiais, como aqueles previstos no art. 38, in fine, do CPC(receber citação, confessar, reconhecer a procedência do pedido, transigir,desistir, renunciar ao direito sobre que se funda a ação, receber, darquitação e firmar compromisso) e nos arts. 39 (exercício do direito derepresentação) e 44 (exercício do direito de queixa), ambos do CPP.

Como tais atos envolvem a disposição de direitos materiais ou apossibilidade de responsabilização criminal dos assistidos (art. 339 doCP), o ideal é que o Defensor Público pratique o ato juntamente com osmesmos, exigindo que tenham conhecimento do inteiro teor da petiçãoe que também a subscrevam66.

8.10. DEIXAR DE PATROCINAR AÇÃO

XII – deixar de patrocinar ação, quando ela for manifestamenteincabível ou inconveniente aos interesses da parte sob seu patrocínio,comunicando o fato ao Defensor Público Geral, com as razões de seuproceder;

Essa prerrogativa, além de resguardar a independência funcional doDefensor Público no sentido de desobrigá-lo de propor demanda queconsidere manifestamente incabível ou inconveniente, resguarda aprópria parte de eventual condenação nas penas da litigância de má-fé(art. 14, inciso III, c/c art. 17, inciso I, ambos do CPC).

Porém, é exigível que o Defensor Público, dentro dos princípiosconstitucionais da publicidade e da motivação que regem a AdministraçãoPública (art. 37, caput, e art. 93, inciso X, ambos da CRFB/88), formandoseu convencimento acerca da inviabilidade da pretensão jurídica,fundamente sua decisão e dela busque dar ciência ao assistido.

66 Nesse mesmo sentido a opinião de Sílvio Roberto Mello Moraes, verbis: “na realidade, censuramoso legislador por exigir a outorga de mandato nos casos em que a lei exige poderes especiais. Somosdo entendimento de que, nestes casos, bastaria a anuência expressa do assistido com os termos dapetição que, obrigatoriamente, seria assinada por este e pelo defensor público, sem necessidade daformalidade da outorga de procuração, ato de natureza essencialmente ‘privatistico-contratual’.”(Princípios Institucionais da Defensoria Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 103).

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8.11 MESMO TRATAMENTO RESERVADO AOS MAGISTRADOS E ÀS DEMAISFUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA

XIII – ter o mesmo tratamento reservado aos magistrados e demaistitulares dos cargos das funções essenciais à justiça;

A expressão “ter o mesmo tratamento” envolve não apenas o tratamentoformal e protocolar, com a utilização do devido pronome de tratamento(Excelência), mas também serve como cláusula aberta, que deve serutilizada para a aplicação analógica de algumas prerrogativas das outrascarreiras, como a Magistratura e o Ministério Público.

8.12. OITIVA DO DEFENSOR COMO TESTEMUNHA

XIV – ser ouvido como testemunha, em qualquer processo ouprocedimento, em dia, hora e local previamente ajustados com aautoridade competente;

Tal prerrogativa é comum aos demais agentes políticos (art. 411 doCPC; art. 221 do CPP; art. 33, inciso I, da Lei Complementar n° 35/79; art.40, inciso I, da Lei n° 8.625/93 e art. 18, inciso II, alínea “g”, da LeiComplementar n° 75/93) e prescinde de maiores explicações.

9. ATRIBUIÇÕES DOS DEFENSORES PÚBLICOS DA UNIÃO

Os Defensores Públicos da União exercem, nos termos do art. 14 daLei Complementar n° 80/94, suas atribuições nos Estados e no DistritoFederal junto aos órgãos da Justiça Federal Comum, das JustiçasEspecializadas (Justiça do Trabalho, Justiça Eleitoral e Justiça Militar daUnião), bem como dos Tribunais Superiores (STF, STJ, TST, TSE e STM) e dasinstâncias administrativas da União (TCU, Tribunal Marítimo, INSS, processosadministrativos disciplinares de servidores públicos federais etc.).

Essas atribuições são exercidas conforme a categoria de cargo efetivoocupada pelo membro da Instituição.

Os Defensores Públicos da União de 2ª Categoria, cargo inicial dacarreira, atuam junto aos órgãos de primeira instância da Justiça Federal

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(Varas Federais e Juizados Especiais Federais), da Justiça do Trabalho (Varasdo Trabalho), da Justiça Eleitoral (Juízos Eleitorais junto às Zonas Eleitorais),da Justiça Militar (Auditorias Militares das respectivas CircunscriçõesJudiciárias Militares da União), junto ao Tribunal Marítimo e junto àsinstâncias administrativas da União.

Já os Defensores Públicos da União de 1ª Categoria, cargointermediário da carreira, atuam junto aos Tribunais Regionais Federais,Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunais Regionais Eleitorais, conformeprevisão do art. 21 da Lei Complementar n° 80/94.

Por derradeiro, no estágio final da carreira, os Defensores Públicos daUnião de Categoria Especial têm atribuição para atuar perante o SuperiorTribunal de Justiça, Tribunal Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitorale Superior Tribunal Militar, com exceção do Supremo Tribunal Federal,perante o qual o Defensor Público-Geral exercerá suas atribuiçõesfuncionais com exclusividade, salvo as hipóteses de delegação67.

Há os que defendem que as funções institucionais da Defensoria Públicadividem-se em duas grandes categorias: funções típicas e funções atípicas.

As funções típicas são as relacionadas com a atuação na prestação daassistência jurídica integral e gratuita aos economicamente necessitados,segundo o mandamento constitucional, ao passo que as funções atípicassão atribuídas pela legislação infraconstitucional aos Defensores Públicosque devem exercê-las independentemente da situação econômico-financeira da parte.

São exemplos clássicos de funções atípicas, a atuação do DefensorPúblico como curador especial, nas hipóteses previstas em lei (arts. 9°,218, §§ 2° e 3°, 302, p. único, 1042, 1.79 e 1.182, § 1°, todos do CPC) ea atuação em favor de Réu criminal que, mesmo tendo plenas condiçõeseconômicas, recusa-se a constituir advogado de sua confiança, aplicando-se aqui os arts. 261 e 263¸ caput e parágrafo único, do CPP.

Por seu turno, há uma outra corrente, que deve ser levada emconsideração, especialmente diante da situação de implantação em caráter

67 V. arts. 8º, incisos XV e XVIII, do caput e inciso II do parágrafo único.

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emergencial e provisória da Defensoria Pública da União68, que defendeque, mesmo nas hipóteses de curador especial (art. 4° da Lei Complementarn° 80/94) e na hipótese de réu criminal “indefeso”, deve ser feita umainterpretação conforme a Constituição para delimitar o alcance dessasatuações nos exatos limites do papel conferido à Defensoria Pública pelaCarta Magna, isto é, a Instituição somente poderá prestar a assistênciajurídica quando restar comprovada a necessidade econômica. Segundoessa corrente, não há que se falar em funções atípicas.

Corroborando essa última posição, o Supremo Tribunal Federal69, aoenfrentar a constitucionalidade dos dispositivos da Constituição do Estadodo Rio de Janeiro que conferiam à Defensoria Pública a legitimidade paraa propositura de ação civil pública70 limitou tal legitimidade às hipótesesem que restasse comprovada a necessidade econômica dos interessados.

A legitimidade ativa da Defensoria Pública para propor ações civispúblicas atualmente encontra previsão legal apenas no que tange àsquestões relativas à defesa do consumidor, por força da combinação doart. 82, inciso III, da Lei nº 8.078/90 com o art. 4º, inciso XI, da LeiComplementar nº 80/94. Há ainda a possibilidade de representação deassociações economicamente necessitadas em juízo (art. 5º da Lei nº7.347 c/c art. 82, inciso IV, da Lei nº 8.078/90).

Contudo, para que se amplie o acesso da população carente à justiça,na já mencionada concepção de Mauro Cappelletti e Bryan Garth, éimperioso que se reconheça a ampla legitimação da Instituição para apropositura de ações coletivas em prol dos necessitados.

10. DIFERENÇAS ENTRE O ADVOGADO E O DEFENSOR PÚBLICO

Na visão do ilustre Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, PauloCésar Ribeiro Galliez71, a prestação jurisdicional está para a Magistratura68 V. Lei n° 9.020, de 31 de março de 1995.69 Tribunal Pleno, ADI 558 MC/RJ, Relator: Min. Sepúlveda Pertence, j. 16/08/1991, DJ de 26/03/1993, p. 5.001.70 art. 176, § 2º, inciso V, alíneas “e” e “f”, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que após aEmenda Constitucional nº 04/91 tiveram sua numeração alterada para art. 179, § 2º, alíneas “e” e “f”.71 GALLIEZ, Paulo Cesar Ribeiro. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2001, p. 24.

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e o exercício da ação penal está para o Ministério Público da mesmaforma que a garantia do acesso à justiça e os corolários do devido processolegal, em especial o contraditório e a ampla defesa do cidadão necessitado,estão para a Defensoria Pública.

Enquanto o Ministério Público é a instituição guardiã precípua dosdireitos coletivos em gênero (englobando os direitos coletivos em espécie,os direitos difusos e os individuais homogêneos)72, a Defensoria Públicaé a instituição guardiã dos direitos individuais da esmagadora maioriados cidadãos brasileiros, ou seja, dos mais de 85% (oitenta e cinco porcento) que recebem menos do que 5 (cinco) salários mínimos, grupoque o Banco Mundial classifica como em condição de miséria absoluta73.

Embora haja controvérsia acerca do conceito de agente político, dianteda definição adotada pelo sempre brilhante mestre Hely LopesMeirelles, no sentido de serem pertencentes a esta categoria aquelesque “atuam com plena liberdade funcional, equiparável à independênciados juízes nos seus julgamentos, desempenhando suas atribuições comprerrogativas e responsabilidades próprias, estabelecidas na Constituiçãoe em lei especiais”74, imperioso é concluir que os Defensores Públicossão agentes políticos.

Enquanto o advogado é tido como indispensável à administração dajustiça (art. 133 da CRFB/88), a Defensoria Pública é instituição essencialà função jurisdicional do Estado (art. 134 da CRFB/88). Segundo as palavrasde Paulo César Ribeiro Galliez “daí resulta que a atividade da DefensoriaPública não se limita somente à administração da Justiça, com a qual,evidentemente, também colabora e integra”75.

O Defensor Público, como visto, para representar a parte em processocom os poderes da cláusula ad judicia prescinde de celebração com seusrepresentados de contrato de mandato76, decorrendo tais poderes do

72 V. art. 81 da Lei n° 8.078/90.73 MORAES, Humberto Peña de, “A Assistência Judiciária Pública e os mecanismos de acesso àJustiça, no Estado Democrático”, in Revista de Direito da Defensoria Pública II/84.74 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26ª ed.. São Paulo: Malheiros,2001, p. 71.75 GALLIEZ, Paulo Cesar Ribeiro. “As Prerrogativas da Defensoria Pública em Face da Lei n° 7.871de 08/11/89”, in Revista de Direito da Defensoria Pública VI/130.76 V. art. 44, inciso XI, da Lei Complementar n° 80/94.

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munus público, do mandato constitucional por ele exercido. O seu vínculocom o representado não é de índole contratual e privada (embora algunsautores, minoritariamente, entendam desta forma77), mas de índoleeminentemente pública estatutária78 e, por isso, o referido representadoé denominado “assistido”, e não “cliente”.

A advocacia, embora envolva munus publicum com função social, nãoé atividade de Estado, mas privada (art. 2°, § 1°, da Lei n° 8.906/94),sendo livre o seu exercício nos termos do Estatuto da Advocacia (art. 7°,inciso I, da Lei n° 8.906/94), conforme posicionamento do STJ, in litteris:

...A advocacia não é atividade do Estado. Ao contrário, privada. Livre éo seu exercício, nos termos do Estatuto do Advogado. A advocacianão se confunde com a Defensoria Pública. Esta é instituição essencialà função jurisdicional do Estado, incumbindo a orientação jurídica e adefesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5°,LXXIV (Const. Art. 134). O Defensor Público, ao contrário do advogadoexerce função pública. O advogado, designado para exercer a defesade alguém, exerce munus publicum (Lei n° 8.906, de 14/7/1994, art.2°, §2°). Assim, não exercendo função pública não é funcionáriopúblico para efeitos penais.

Recurso conhecido e por maioria de votos foi-lhe dado provimento,vencido o Sr. Min. Adhemar Maciel que negou provimento.79

Tal decisão corrobora a clara distinção feita por José Fontenelle Teixeirada Silva entre a chamada Advocacia Privada (art. 133 da CRFB/88) e a muibem denominada Advocacia Estatutária, que é exercida pelos membrosdo Ministério Público (quando não atuam como fiscais da lei), pelascarreiras da Advocacia Pública (arts. 131 e 132 da CRFB/88) e pelaDefensoria Pública (art. 134 da CRFB/88)80.

77 ETIENNE, Adolfo Filgueiras. “Da Relação Jurídica Contratual existente entre o Assistido e oEstado – Requisitos, Eficácia, Prova e Conseqüências Práticas”, in Revista de Direito da DefensoriaPública XIX/13-24.78 ALVES, Cleber Francisco e PIMENTA, Marilia Gonçalves. Op. cit. p. 118.79 6ª Turma, RHC 3.900/SP, Relator: Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 12/9/1994, DJ de 03/04/1995, p. 8.148.80 SILVA, José Fontenelle Teixeira da. “Advocacia Privada e Advocacia Estatutária – Uma NovaProposta de Classificação das Atividades Privativas da Advocacia”, in Revista de Direito daAssociação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro II/183.

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Destarte, conforme limitação estabelecida pelo próprio mandamentoconstitucional (art. 134, p. único, da CRFB/88), ao Defensor Público é vedadoo exercício livre da advocacia, não podendo fazê-lo fora das atribuiçõesinstitucionais (art. 46, incisos I e II, da Lei Complementar n° 80/94).

Embora o art. 3°, § 1°, da Lei n° 8.906/94 tente submeter os DefensoresPúblicos às normas do Estatuto da Advocacia, reconhece que estes estãosubmetidos a estatuto jurídico próprio. Como já visto antes, tal dispositivoé flagrantemente inconstitucional.

O profissional da advocacia privada recebe honorários, sejamcontratuais, sejam os arbitrados pelo Poder Judiciário (nos casos deausência de previsão contratual ou nos casos de prestação da assistênciajudiciária onde a Defensoria Pública ainda não estiver devidamenteestabelecida), sejam os oriundos dos ônus da sucumbência (arts. 22 a 24da Lei n° 8.906/94). O Defensor Público está proibido de receberhonorários (art. 46, inciso III, da Lei Complementar n° 80/94), tendo comoúnica contraprestação lícita dos serviços por ele prestados a percepçãovencimental advinda dos cofres públicos.

11. UM BREVE RETRATO DA INSTITUIÇÃO

A Defensoria Pública da União tem pouco mais de 110 (cento e dez)cargos de Defensores Públicos, sendo 70 (setenta) deles criados por lei(art. 5°-A da Lei n° 9.020/95, inserido pela Lei n° 10.212/2001) e osdemais provenientes da transformação prevista no art. 138 da LeiComplementar n° 80/94.

A Instituição conta atualmente nos seus quadros com pouco mais de90 (noventa) Defensores Públicos espalhados em pouco mais de 30(trinta) órgãos de atuação, hoje denominados de Núcleos.

No Núcleo do Rio de Janeiro - RJ há no total 15 (quinze) DefensoresPúblicos, dos quais 9 (nove) são de 2ª Categoria, em atuaçãopreferencialmente perante os órgãos jurisdicionais de primeira instânciada Justiça Federal e junto às Autorias da Justiça Militar da União, e osoutros 6 (seis) têm atuação preferencialmente perante o Tribunal RegionalFederal da 2ª Região.

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Desses 9 (nove) Defensores Públicos de 2ª Categoria, 6 (seis) exercemsuas atribuições perante 30 (trinta) Varas Federais Cíveis, 4 (quatro) VarasFederais Previdenciárias e 8 (oito) Varas de Execução Fiscal; 2 (dois) atuamjunto às 4 (quatro) Auditorias da Justiça Militar da União existentes na 1ªCircunscrição Judiciária Militar; e 1 (um) membro atua junto aos 9 (nove)Juizados Especiais Federais. Dentro da reserva do possível81, não há comoprestar a assistência jurídica perante as Varas Criminais Federais, assimcomo perante a Justiça Eleitoral e a Justiça do Trabalho.

Para a alteração dessa situação o único passo dado até o momentoconsistiu na criação, por meio de Decreto Presidencial, de 15 de abril de2005, no âmbito do Ministério da Justiça, de um Grupo de TrabalhoInterministerial, coordenado pelo Defensor Público-Geral da União, quetem como uma das finalidades estudar e elaborar propostas para aampliação do quadro de pessoal da Defensoria Pública da União.

12. CONCLUSÃO

O presente trabalho tem por finalidade precípua tornar conhecida aInstituição, sua função, as prerrogativas e garantias de seus membros,sua grave situação atual de carência estrutural, esperando fielmentesensibilizar as autoridades a fim de que efetivamente tomem providênciaspara garantir aos cidadãos não apenas a mera possibilidade de demandarou defender-se formalmente em juízo.

É certo que os cidadãos necessitados e os membros da Instituiçãoestão cansados de ouvir manifestações vazias no sentido de fortalecer aDefensoria Pública.

Para ser Defensor Público da União, especialmente no Rio de Janeiro,é necessário ser vocacionado e estar pronto para fazer diversos sacrifíciospessoais. Para os nobres colegas, verdadeiros heróis, e para osestagiários82, braços direitos e fiéis escudeiros, sem os quais a tarefa

81 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R.. The Cost of Rights, New York: Norton, 1999.82 V. art. 145 da Lei Complementar n° 80/94.

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seria ainda mais árdua, mister a transcrição das palavras de um dos maioresjuristas pátrios, José Carlos Barbosa Moreira83:

...quero dizer-lhes que tenho a maior admiração pela missão, hojeconstitucional, de que estão investidos. Ela é essencial não apenas àjustiça, mas á realização de algo que transcende o próprio serviço dajustiça, que é promoção social do povo brasileiro. Acrescento que,quanto maiores as dificuldades, que certamente enfrentam e vãoenfrentar, tanto mais estimulados devem sentir-se. Dizia o historiadorToynbee que as grandes civilizações surgiram ao longo dos temposcomo respostas a desafios; isso que se passou na história dos povospassa-se também na história das pessoas. Não se iludam com a falsaidéia de que um pequeno caso seja menos importante; um pequenocaso é tão importante quanto um grande. Às vezes nos deixamosimpressionar, quando pensamos na imensidão dos problemas e ficamosachando que estamos fazendo tão pouco, que estamos cuidando dehipóteses individuais, que isso não vai contribuir para melhorar omundo. Quero lembrar as palavras de um famoso estadista, que certavez disse: ‘É muito difícil para nós sabermos o que devemos fazerpara salvar o Mundo, mas é relativamente fácil, em cada momento,sabermos o que temos de fazer para cumprir nosso dever’. Quemsabe se à custa disso, à custa do cumprimento modesto, discreto,aparentemente pouco importante, dos nossos deveres quotidianos,conseguiremos, não digo salvar o mundo, que é superior à força dequalquer mortal, mas pelo menos torná-lo um pouco mais humano? Éessa a exortação que lhes faço,...

Em conclusão, não se pode pensar em atender aos princípiosfundamentais da República Federativa do Brasil, em especial aosfundamentos previstos no art. 1º, e aos objetivos fundamentais elencadosno art. 3º nem em efetivo exercício dos direitos e garantias positivadosnos incisos do art. 5º da Constituição Cidadã de 1988, sem que a DefensoriaPública esteja devidamente estruturada de forma a garantir aosnecessitados o acesso a uma ordem jurídica justa.

13. BIBLIOGRAFIA

AGUIAR, Jean Menezes de. Considerações Acerca do Defensor Público como Agente Políticodo Estado – A vez de todos. Revista de Direito da Defensoria Pública X/173-180.

83 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., p.137.

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“PARTE” OU “CAPÍTULO” DE SENTENÇA EANULAÇÃO PARCIAL DO JULGADO

Marcelo Alexandrino da Costa Santos - Juiz do Trabalho naPrimeira Região

INTRODUÇÃO:

Não é difícil identificar a tendência dos tribunais à integral anulaçãode sentenças, ainda que os vícios evidentemente não se espraiem portodas as suas partes.

Tal prática, embora de ampla aceitação, deixa de lado a previsão legalautorizadora da anulação parcial (parágrafo 1o do art. 588 do CPC), vai deencontro a princípios bem arraigados na teoria geral do processo e dosrecursos, amplia os danos marginais por indução processual em sentidoestrito1 e, em certa medida, desprestigia a decisão de primeiro grau.

Este ensaio tem o claro propósito de incitar discussões que abrammargem a uma abordagem do tema que, a um só tempo, tenha respaldolegal, seja amparada por sólida doutrina e mostre-se condizente com amoderna visão do processo de resultados.

“PARTE” OU “CAPÍTULO” DE SENTENÇA:

O ajuizamento da demanda implica a dedução de uma pretensãobifronte, “a qual inclui, antes do pedido de uma sentença favorável de

1 Consistentes em um “efeito colateral da duração do processo”, que decorre “da simples permanência,ao longo da duração do processo, do estado de insatisfação do direito controvertido”. GUERRA,Marcelo Lima. Execução forçada – controle de admissibilidade. 2. ed. São Paulo: RT, 1998. p. 34-35.

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determinada espécie e sobre determinado objeto concreto, o do própriojulgamento da pretensão ao bem da vida”2.

É certo, portanto, que, inaugurado com a demanda, o processo é naturalmentevocacionado à prolação de uma sentença que disponha, de modo imperativo,sobre o mérito da causa, eliminando a crise jurídica lamentada pelas partes,quer pelo acolhimento, quer pela rejeição do(s) pedido(s) formulado(s); maspode ocorrer, também, de extinguir-se anomalamente, em função de umaquestão meramente processual, sem qualquer pronunciamento sobre arelação jurídica material e/ou direito controvertidos.

De acordo com o caput do art. 832 da CLT, deverão constar da decisão“o nome das partes, o resumo do pedido e da defesa, a apreciação dasprovas, o fundamento da decisão e a respectiva conclusão”: identificam-se, aí, os três requisitos (rectius: elementos) da sentença, a que alude oart. 458 do CPC – relatório, fundamentação e dispositivo.

Há, contudo, preceitos do Código de Processo Civil que referem “parte”da sentença, sem definir o significado desse termo quando atrelado aoprovimento jurisdicional em tela3. Confiram-se, por exemplo, o art. 505,segundo o qual “a sentença pode ser impugnada no todo ou em parte”, eo parágrafo 1o do art. 588, que dispõe que “se a sentença provisoriamenteexecutada for modificada ou anulada apenas em parte, somente nessaparte ficará sem efeito a execução”.

A identificação do que seja “parte” ou “capítulo” entre os elementos dasentença revela-se, assim, necessário instrumental para a delimitação doobjeto de impugnação, do interesse de recorrer, de eventual reformatio inpejus, da coisa julgada e da própria execução. Daí dizer-se que “trata-sedas partes em que a sentença comporta uma decomposição útil”4.

O tema já foi objeto de intensos debates na doutrina italiana5, dos

2 DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de sentença. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 52.3 A expressão “capítulo de sentença”, que não figura no CPC nem na CLT, é, para esse efeito,equiparada a “parte de sentença”. Foi adotada a partir de uma tradução equivocada da palavraitaliana capo, que, significando cabeça ou chefe, expressa a idéia de elemento mais importante naestrutura da sentença.4 DINAMARCO, Cândido Rangel. op. cit. p. 13.5 Como observam Montesano e Arieta, “la tematica del capo di sentenza [...] presenta aspetti diparticolare complessitá ed ha portanto da tempo la dottrina ad assumere posizioni tra loro assai

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quais ressaltaram posições bastante conhecidas: a de que as partes oucapítulos de sentença são apenas os preceitos imperativos, contidos nodispositivo, atinentes ao mérito da causa (Chiovenda e Calamandrei); a deque também envolvem, igualmente no decisório, os pronunciamentosrelativos à própria admissibilidade do exame de mérito (Liebman); a de quese limitam à resolução das questões e não propriamente ao julgamento(Carnelutti); e aquela segundo a qual a utilidade da identificação dos capítulospoderá situá-los no decisório e/ou na motivação6, conforme eventual recursomanejado vise à motificação de um ou de outra (“relativistas”)7.

Em doutrina nacional, Frederico Marques, aparentemente aderindoàs idéias de Carnelutti, conceituou capítulos de sentença como “asquestões preliminares que o juiz deva apreciar a fim de decidir sobre aadmissibilidade da tutela jurisdicional, assim como as preliminares demérito, as questões prejudiciais, e cada um dos pedidos cumulados emsimultaneus processus”8. Arrematou, contudo, parecendo quereraproximar-se de Chiovenda e Liebman9, que “quando há controvérsia ouquestões pertinentes à quantidade, ou à estimativa da pretensão a sersatisfeita, haverá desdobramento de capítulos na sentença de mérito. Ovalor do bem, ou interesse em contenda, nesse caso, pode dar origem,quantitativamente, a tantos capítulos quantas forem as variações numéricasque o fato possa suscitar10”.

diversificate, cha vanno, per um verso, dall’identificazione del capo di sentenza nella statuizioneattorno ad ogni singola domanda e, all’oposto, all’equiparazione tra capo di sentenza e risoluzionedi ciascuna delle questioni, di rito e di merito, che precedono la decisione di merito.” Cf.MONTESANO, Luigi e ARIETA, Giovanni. Diritto processuale civile. Vol. II – La cognizionecontenziosa di rito ordinario. 2 ed. Torino: G. Giappichelli Editore, 1997. p. 279.6 DINAMARCO, Cândido Rangel. op. cit. p. 18.7 Cf. Stefania Rinaldi, referindo expressamente Sergio Costa: “Vi è, inoltre, chi individua il concettodi parte di sentenza utilizzando un criterio relativo: pronuncia su domanda laddove l’impugnazioneda proporre sia l’appello e statuizione su questione quando l’impugnazione da proporre sia ilricorso per cassazione.” RINALDI, Stefania. Considerazioni in tema di ammissibilità del ricorsoincidentale condizionato, parte di sentenza ed interesse ad impugnare. Texto eletrônico em http://www.judicium.it/archivio/rinaldi01.html, acessado em 08 de fevereiro de 2004.8 MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. III Vol. 2. parte. São Paulo:Saraiva, 1975. p. 47.9 Para um e para outro, estando-se diante de bens apreciáveis quantitativamente, a sentença podevir a se cindir em tantos capítulos quanto forem as unidades. Assim, por exemplo, se se pede opagamento de R$ 10,00, mas a condenação é ao pagamento de R$ 8,00, tem-se dois capítulos desentença: aquele em que acolhido o pedido em relação ao pagamento de R$ 8,00, e aquele em querejeitado o pedido em relação ao pagamento de R$ 2,00. Tem-se, aí, o “acolhimento parcial” dopedido, que necessariamente implica sua também parcial rejeição.10 Idem, p. 48.

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Outros autores brasileiros tocaram no assunto: fizeram-no, ao analisara coisa julgada, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel GarciaMedina11; ao discorrer sobre recursos, José Carlos Barbosa Moreira12,Nelson Nery Junior13 e José Rogério Cruz e Tucci14.

Este último evidencia forte influência do pensamento de Chiovenda,asseverando que “apesar da sentença ou acórdão ser formalmente únicoem seu aspecto material, poderá conter ele tantas decisões diversasquantos forem os assuntos separados sobre que versem”15 e “no tocanteao elemento imperativo, ou seja, às disposições ou capítulos da sentençadefinitiva, a apelação abrange todos os capítulos impugnados e os deledependentes à medida que o forem”16.

Mas foi Dinamarco quem recentemente lançou-se ao desafio de exporo tema com profundidade e à luz do ordenamento pátrio17. Sustentou, comclareza e precisão, que a noção de capítulos de sentença que mais seadequa ao direito processual civil brasileiro é aquela exposta no notávelescrito de Liebman18, ressaltando que, no que diz respeito ao processocivil brasileiro, a busca de elementos para a caracterização dos capítulosde sentença normalmente volta-se para a disciplina dos recursos, insistindo,no entanto, que o tema tem assento cativo na teoria pura da sentença19.

De fato, o objeto do processo, no Brasil, identifica-se com o pedido,uma vez que apenas o pronunciamento jurisdicional sobre este podesolucionar ou influir na solução da crise que agita as partes20. Por seu

11 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada –hipóteses de relativização. São Paulo: RT, 2003.12 Comentários ao código de processo civil. V vol, 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.13 Teoria geral dos recursos – princípios fundamentais. 4. ed. São Paulo: RT, 1997.14 Lineamentos da nova reforma do CPC. São Paulo: RT, 2002.15 Op. cit. p. 51.16 Idem. p. 498. Para Marcus Vinicius Tenório da Costa Fernandes, Cruz e Tucci haveria aderido aopensamento de Dinamarco, forte na doutrina de Liebman (Cf. FERNANDES, Marcus ViniciusTenório da Costa. Capítulos de sentença. São Paulo, 2001. Dissertação de Mestrado - Faculdade deDireito da Universidade de São Paulo.. p. 70). Parece-nos, contudo, que a menção à sentençadefinitiva o afasta de Liebman, na medida em que este reconhecia a existência de capítulos,também, nas sentenças terminativas.17 Capítulos de sentença. São Paulo: Malheiros, 2002.18 “Parte” o “capo” di sentenza, in Rivista di diritto processuale. Padova: Cedam, 1964. p. 47 ss.19 DINAMARCO, Cândido Rangel. op. cit. p. 31.20 Confira-se a lição de Barbosa Moreira: “A providência a que se visa é a prestação jurisdicionalconsubstanciada na sentença definitiva. O contorno dessa providência – e portanto a sua maior ou

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Marcelo Alexandrino da Costa Santos

turno, a qualidade da coisa julgada somente é adquirida pelos comandoscontidos na conclusão da sentença (decisório, dispositivo, decisum)21,em que se responde à já mencionada pretensão bifronte, podendo-sedispor que (a) falta determinada condição de admissibilidade do examedo mérito e, portanto, o pedido não pode ser julgado; e/ou (b) o pedidoé acolhido ou rejeitado22. Conforme o caso, à míngua de impugnação,ter-se-á (a) coisa julgada formal, de eficácia endoprocessual, com efeitosrestritos ao próprio processo em que proferida a sentença; ou (b) coisajulgada material, de eficácia exoprocessual, cujos efeitos se projetampara fora do processo23.

Essa aptidão exclusiva do dispositivo à aquisição da qualidade da coisajulgada, por si só, retira qualquer sentido da aplicação da teoria decarneluttiana de partes ou capítulos de sentença como soluções dequestões24 ao processo civil – e, conseqüentemente, trabalhista (art. 769da CLT) – brasileiro.

De outra parte, não há, em nosso direito processual civil ou trabalhistarecursos como o ricurso nell’interesse della legge25 do processopeninsular, que visa à modificação, não do dispositivo, mas da motivação,ou seja, das premissas lógicas sobre as quais se assenta o julgamento26.

menor extensão – é fixado, como se sabe, pelo pedido do autor, ao qual corresponde, na linguagemda doutrina, o objeto do processo” (grifo no original). MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Açãodeclaratória e interesse”, in Direito processual civil – ensaios e pareceres. Rio de Janeiro: Borsoi,1971. p. 11. No mesmo sentido, DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do processo civil. SãoPaulo: Malheiros. 2003. p. 35.21 Os motivos, a verdade dos fatos e a apreciação de questão prejudicial decidida incidentemente sãoexpressamente excluídos do âmbito da coisa julgada, ainda que importantes “para o alcance daparte dispositiva da sentença” (art. 469 do CPC). E aqui chame-se a atenção do leitor para a atecniada redação do inciso III do art. 458 do Código de Processo Civil: no dispositivo, o juiz não resolvequestões – o que é próprio da fundamentação –, mas anuncia o resultado dessa resolução.22 Também adquire a qualidade da coisa julgada material a pronúncia das demais hipóteses arroladasno art. 269 do CPC, as quais guardam óbvia relação com os provimentos de procedência ouimprocedência do pedido.23 GUERRA, Marcelo Lima. Execução forçada – controle de admissibilidade. 2. ed. São Paulo: RT,1998. p. 12.24 CARNELUTTI, Francesco. Capo di sentenza, in Rivista di diritto processuale. Padova: Cedam,1933. p. 118.25 Cf. Codice di procedura civile italiano: Art. 363 (Ricorso nell’interesse della legge)Quando le parti non hanno proposto ricorso nei termini di legge o vi hanno rinunciato, ilprocuratore generale presso la Corte di cassazione puo’ proporre ricorso per chiedere che siacassata la sentenza nell’interesse della legge. In tal caso le parti non possono giovarsi dellacassazione della sentenza.

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Quando muito, o teor da fundamentação pode condicionar oconhecimento dos “recursos de direito” (recurso de revista, recursoespecial, recurso extraordinário), mas não é à sua alteração que estesvisam, e sim à do dispositivo27.

Portanto, também não se aplica, ao processo brasileiro, a teoria dosrelativistas italianos.

Finalmente, não cabe, no direito processual pátrio, a teoria restritivade Chiovenda, segundo a qual os capítulos de sentença se resumiriam aoacolhimento ou à rejeição dos pedidos formulados na demanda, na medidaem que o pronunciamento jurisdicional sobre o próprio direito ao examedo mérito também está vocacionada à produção de efeitos práticos sobreo objeto do processo, “in quanto rende possibile od impossibile umgiudizio su di esso”28.

De referir, ademais, que o Código de Processo Civil ostenta regrasque revelam a autonomia dos preceitos imperativos, contidos nodispositivo, sobre a admissibilidade do exame de mérito. Assim, dispõeo par. 1o do art. 162 que “sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo aoprocesso, decidindo ou não o mérito da causa”29, enquanto o art. 459contém menção, não só ao acolhimento ou rejeição, no todo ou em parte,do pedido formulado pelo autor, mas também da extinção do processosem julgamento de mérito”.

26 É muito feliz a lição de Liebman, segundo a qual a sentença comporta um conteúdo lógico - namotivação - e, outro, imperativo – no dispositivo -, sendo aquele pressuposto deste. Cf. LIEBMAN,Enrico Tulio. “Parte” o “capo” di sentenza, in Rivista di diritto processuale. Padova: Cedam,1964. p. 47. Portanto, “o dispositivo deve ser uma conseqüência lógica do que se apreciou nafundamentação, uma conclusão, congruente, enfim, com os argumentos já expendidos pelo juiz” –TEIXEIRA FILHO. Manoel Antonio. A sentença no processo do trabalho. 2. ed. São Paulo: Ltr,1996. p. 310.27 DINAMARCO, Cândido Rangel.Capítulos de sentença. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 33.28 LIEBMAN, Enrico Tulio. Op. cit. p. 54.29 Relevantes, a esse propósito, os dizeres de Barbosa Moreira: “Para o Código, então, recebe adenominação de sentença [...] o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, julgando ou não omérito da causa. O traço conceptual decisivo, portanto, para a identificação de uma sentença éapenas este: o de que se trate de ato que ponha fim ao processo, conforme diz a lei, ou, maisexatamente, ao procedimento em primeiro grau de jurisdição, porque, obviamente, com a interposiçãodo recurso, continua a fluir o mesmo processo, não se forma processo novo” (grifos nossos).MOREIRA, José Carlos Barbosa. “O sistema de recursos”, in Estudos sobre o novo código deprocesso civil. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1974. p. 179.

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Saliente-se, ainda, que, a despeito de se revestir de coisa julgadameramente formal, a decisão sobre a inadmissibilidade do exame domérito constitui, conforme relembra Liebman, “una distinta statuizioneimperativa suscettibile di passare in giudicato”30.

À luz destas considerações, faz-se certo que o dispositivo da sentençapode comportar preceitos concretos e imperativos em relação (1) ao direitoao julgamento do mérito, afastando ou acolhendo preliminares, e/ou (2)ao próprio direito ou relação afirmada, rejeitando ou acolhendo os pedidosusualmente formulados na demanda, ou, exclusivamente no caso daschamadas “ações dúplices” (v.g., “ação de consignação em pagamento”),na contestação, bem como pronunciando-se de acordo com as demaishipóteses do art. 269 do CPC.

Por conseguinte – e mantendo-se em mente que só no dispositivo “seformulam preceitos destinados a produzir efeitos sobre a vida dos litigantesou do processo mesmo”31, pois é ali que o juízo “proclamará o resultadodo julgamento, acolhendo ou rejeitando os pedidos do autor, oudeclarando extinto o processo sem julgamento do mérito, conforme fora hipótese”32 -, pode-se afirmar, com segurança, que capítulos de sentença,no direito processual brasileiro, são as “unidades autônomas do decisórioda sentença”, quer de mérito, quer heterogêneas33, “no sentido de quecada um deles expressa uma deliberação específica [...] distinta dascontidas nos demais capítulos”34. Ou, em outras palavras, “são capítulosde sentença as partes em que ideologicamente se decompõe o decisóriode uma sentença ou acórdão, cada uma delas contendo o julgamento auma pretensão distinta”35.

30 “Parte” o “capo” di sentenza, p. 55.31 DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de sentença, p. 16.32 TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. op. cit. p. 310.33 Dizem-se “homogêneos” os capítulos que versam exclusivamente sobre o mérito da causa – aíincluídas as decisões sobre honorários de advogado/perito e sobre os custos do processo, ao que sechama “mérito secundário”. São “heterogêneos” os capítulos que, ao lado daquelas, contiverempreceitos sobre a admissibilididade do exame do mérito. A esse propósito, confira-se DINAMARCO,Cândido Rangel. Capítulos de sentença. p. 34.34 Cf. Dinamarco, op. loc. cit.35 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. III vol. São Paulo:Malheiros, 2001. p. 200.

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Tais unidades integrantes do “coração da sentença”36,37 são passíveisde isolamento mediante cortes verticais na estrutura horizontal dodispositivo38. Podem, contudo, guardar relação de dependência, umadiante da outra. Por exemplo, o capítulo em que acolhido o pedido depagamento de diferenças decorrentes da repercussão de horasextraordinários no cálculo da remuneração do repouso semanal éobviamente dependente daquele referente ao próprio pagamento dashoras extraordinárias que se afirmaram trabalhadas. Também os capítulosreferentes ao mérito são evidentemente dependentes daquele(s) quepreceitua(m) sobre a admissibilidade da análise deste último39.

E é justamente esse isolamento de cada parte ou capítulo quepossibilitará a delimitação das nulidades que venham a inquinar umadeterminada sentença.

Cabe ainda o registro de que André Fontes, juiz federal de segundograu e professor de direito processual civil na Universidade do Rio de36 Assim se refere Barbosa Moreira ao dispositivo, no seu recente “O que deve e o que não deve figurarna sentença”, in Temas de direito processual (oitava série). São Paulo: Saraiva, 2004. p. 123.37 São de extrema relevância, especialmente para o processo do trabalho, em que normalmentediversos pedidos são cumulados, as observações de Marcelo José Magalhães Bonicio: “É na partedispositiva, pois, que devemos buscar os capítulos de sentença, mas, convém advertir, nem sempreencontramos decisões judiciais fiéis à sistematização estabelecida no art. 458 do Código de ProcessoCivil. Em algumas situações a parte dispositiva da sentença encontra-se dispensa ao longo da motivação,ou então simplesmente antecede a esta. Em situações assim, é bom lembrar que a análise da existênciade capítulos de sentença não leva em consideração nenhum critério ligado a localização da partedispositica. Interessa, isto sim, o conteúdo da decisão, ou seja, o momento em que o juiz julga,efetivamente, o pedido formulado”. BONICIO, Marcelo José Magalhães. Capítulos de sentença eefeitos dos recursos. São Paulo, 2002. Dissertação de Mestrado - Faculdade de Direito da Universidadede São Paulo. p. 16. É, portanto, tecnicamente equivocada a menção à integação da fundamentaçãoao dispositivo, comumente encontada em sentenças em que se julgam pedidos cumulados: tal comodois corpos, que não ocupam o mesmo lugar no espaço, a fundamentação jamais poderá integrar odispositivo: o que há, nesses casos, são dispositivos que se seguem a cada item da fundamentação.Deve figurar expresso acolhimento ou rejeição das preliminares e/ou acolhimento ou rejeição dospedidos, ainda que em seguida a cada resolução das questões na motivação, sob pena de ter-se porinexistente o(s) dispositivo(s). Assim, tem mais rigor técnico a menção, no fecho da sentença, aoacolhimento ou a rejeição, “conforme acima decidido”. Pela mesma razão, não é exata a afirmaçãode que não há dispositivo nas sentenças em que os capítulos se encontram claramente delimitados aolongo da motivação (à qual, repise-se, aqueles jamais integram).38 Relembre-se que, os capítulos que dispõem sobre quantidade são passíveis de decomposição.Assim, o corte vertical ora mencionado separa, se houve pedido de 10 unidades e condenação aopagamento de 4, por exemplo, um capítulo, em que acolhido o pedido em relação a essas 4 e outroem que rejeitado o pedido em relação a 6: o acolhimento parcial de determinado pedido implicanecessariamente a sua também parcial rejeição, dando azo a dois capítulos distintos.39 É chamado condicionante ou subordinante o capítulo de que depende outro, ao qual se denominadependente.

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Janeiro, tem sustentado que, havendo cúmulo de pedidos, haverá cúmulode tantos outros processos materializados nos mesmos autos e não apenasde demandas instauradoras de um só processo; daí extraímos que oscapítulos de sentença representariam preceitos imperativos em respostaa cada uma das demandas cumuladas e correspondentes a cada um dossimultaneus processus – a sentença, assim, seria apenas formalmente,mas não materialmente, una.

Recentemente, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel GarciaMedina firmaram idêntico entendimento, asseverando que “a cada pedido,que poderia ter sido autonomamente formulado, corresponde uma açãoe a cada ação, um processo [...] Temos por verdadeiro que os capítulosda sentença, quando correspondem a pedidos que poderiam ter sidoautonomamente formulados, consistem, materialmente, em sentença. Ouseja, tendo-se feito dois ou mais pedidos, tantas sentenças (materialmenteconsideradas) haverá quantos forem os pedidos feitos”.40

Quer se concebam, ou não, os capítulos, notadamente aqueles emque se acolhem preliminares ou se decide sobre o mérito, como preceitosimperativos de sentenças materialmente diversas, a sua autonomia, unsem relação aos outros – inclusive os dependentes-, é ponto pacífico:conseqüentemente, também o é a possibilidade de isolamento de cadauma dessas partes e a delimitação da extensão de determinada invalidadeque esteja a macular o ato processual do juízo.

DAS NULIDADES DA SENTENÇA:

O regramento legal sobre as nulidades processuais não é exauriente.Tratam delas os artigos 243 a 250 do CPC e 794 a 798 da CLT, nenhum seprestando a definir ou discriminar nulidade propriamente dita,anulabilidade e inexistência do ato.

40 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada –hipóteses de relativização. São Paulo: RT, 2003. p. 84. No mesmo sentido, leciona Nagib SlaibFilho que “no dispositivo haverá tantos comandos quantas sejam as relações processuais, devendonotar que cada parte em determinado pólo, cada pedido e cada fundamento de pedir institui umarelação processual (CPC, art. 301, § 2º)”. SLAIB FILHO, Nagib. Sentença cível (fundamentos etécnica). 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 490.

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Para diferenciar uma hipótese das outras, Manoel Antonio TeixeiraFilho conceituou ato nulo como “o que tem existência em desacordocom a lei e cuja invalidade pode ser alegada pelas partes, a qualquertempo, ou decretada, ex officio, pelo juiz, não podendo, em princípio,ser ratificada e não sendo apto para gerar preclusão”41. E, invocando adoutrina de Galeno Lacerda, asseverou que “o traço característico dossistemas das nulidades processuais reside na natureza da normadesrespeitada, considerada em seu aspecto finalístico”, de sorte que “sea norma reflete predominante interesse público, a sua violação acarretaa nulidade (absoluta) do ato infrigente”42.

No que diz respeito à anulabilidade, afirma o mestre paranaense quetambém decorre da discrepância entre o ato e o modelo legal. A notadistintiva, contudo, em relação aos atos nulos está em que “os atosanuláveis não podem ser decretados ex officio, sendo indispensével,para tanto, a iniciativa do interessado, exceto se deu causa à contaminaçãodo ato”; por conseguinte, a impugnação do ato anulável está normalmentesujeita à “preclusão (temporal) e, também, possibilidade de convalidação”.E arremata: “existirá anulabilidade (ou nulidade relativa”) quando o atoinfringido tutelar interesse que diga respeito, essencialmente, às partes”43.

Tais lições são endossadas por Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva,para quem “a nulidade absoluta tem como característica a ofensa a umanorma que visa [a] resguardar o interesse público, sendo assim insanável.Já quando a norma violada tiver por objeto um interesse da parte, denatureza privada, a hipótese será de nulidade relativa ou de anulabilidade.Nulidade relativa, sempre que a norma for cogente, e anulabilidade,quando permissiva”44

Quanto à inexistência, trata-se do “ato que, por não atender a umaexigência fundamental, da lei, só existe materialmente (ou seja, no mundomaterial) e não juridicamente”. É “o não-ato”, “sem vida jurídica”45.

41 TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. op. cit. p. 334.42 Idem.43 Idem, ibidem.44 DA SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes. Teoria da inexistência no direito processual civil. PortoAlegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 29.45 TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio. op. cit. p. 337.

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A doutrina costuma referir, ainda, às irregularidades, “vícios de pequenaimportância, de modo que não têm potencialidade para trazer prejuízo aqualquer das partes. O ato irregular é existente, válido e eficaz, sendopossível de regularização de ofício a qualquer tempo e grau dejurisdição”46.

É intuitivo que as nulidades podem se infiltrar na sentença por duasvias: de um lado, os elementos estruturais; de outro, os capítulos de sentença.

São elementos estruturais da sentença, não apenas os descritos nocaput do art. 832 da CLT47 e nos três incisos do art. 458 do CPC, já referidosneste estudo: também o são aqueles a que aludem os três primeirosparágrafos do art. 832 da Consolidação, bem como a data e a assinaturado juiz (par. 2o do art. 851 da CLT; art. 164 do CPC).

Os vícios incidentes sobre os elementos estruturais da sentença sãode fácil identificação e não oferecem grandes problemas quanto aos seusefeitos (ou ausência de efeitos): “a falta de relatório ou de motivaçãoimporta em nulidade absoluta da sentença [...] Já a falta de dispositivoimplica inexistência jurídica da sentença [...] porque [...] torna o atoirreconhecível como sentença, vez que o mesmo não contém decisão (oque, como parece óbvio, é elemento constitutivo mínimo da sentença”48.Também é inexistente a sentença não assinada49, mas a falta de dataimplica mera irregularidade, já que, se não mencionada, tem-se porprolatada a decisão na data de sua publicação50.

Via de regra, eventuais vícios nos elementos da sentença sãoinicialmente sanáveis por meio de embargos de declaração.

De resto, o exame do tema refoge ao objeto deste estudo51: o que seevidencia relevante, aqui, é a identificação de vício que macule um oumais capítulos de sentença e qual o efeito prático que daí possa advir,quando invocada nulidade como objeto do recurso.

46 DA SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes. op. cit. p. 30.47 No procedimento sumaríisimo trabalhista, é dispensado o relatório (art. 851-I da CLT).48 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. I Vol. Rio de Janeiro; FreitasBastos, 1998. p. 392. No mesmo sentido, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel GarciaMedina - op. cit., p. 84.49 Cf. SLAIB FILHO, Nagib. ob. cit. p. 495. Também, POLONI, Ismair Roberto. Técnica estruturalda sentença cível (juízo comum e juizado especial). 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 60.50 SLAIB FILHO, Nagib. idem, p. 494.

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CAPÍTULOS E ANULAÇÃO PARCIAL DA SENTENÇA:

Como visto, capítulos de sentença são as unidades autônomas em quese desdobra o decisum de uma sentença formalmente una, ainda quepossa haver relação de dependência entre algumas dessas unidades. Taiscapítulos podem ser verticalmente dispostos e encontram-se atrelados àspremissas lógicas expostas na motivação, também sujeitas a cortesverticais, que evidenciam a profundidade com que o juiz examina asquestões que influirão no resultado da causa.

Ora, positivando o princípio da conservação dos atos processuais,estatui o art. 798 da CLT que “a nulidade do ato não prejudicará senão osposteriores que dele dependam ou sejam conseqüência”, o que encontraeco no art. 248 do Código de Processo Civil, segundo o qual “anulado oato, reputam-se de nenhum efeito todos os subseqüentes que deledependam; todavia, a nulidade de uma parte do ato não prejudicará asoutras, que dela sejam independentes”.

É, pois, natural a ilação de que o vício que recai sobre um determinadocapítulo de sentença não contamina, senão, aquele(s) que dele for(em)dependente(s). Esta constatação adquire especial importância na medidaem que o princípio da conservação milita “em prol da economia e dacerteza jurídica”52, valores sabidamente caros à teoria geral do processo.

Também o princípio da transcendência, segundo o qual “só haveránulidade quando resultar dos atos inquinados manifesto prejuízo às parteslitigantes” (arts. 794 da CLT e par. 1o do art. 249 do CPC), põe a salvo oscapítulos de sentença não viciados e independentes daquele sobre oqual recai a nulidade.

51 Diz-se, ainda, dos requisitos de dicção da sentença (termo utilizado por Manoel Antonio TeixeiraFilho – cf. ob. cit. p. 311), extraídos dos artigos 128, 460, 535 do CPC e 897-A da CLT: certeza,clareza, exaustividade, harmonia intrínseca e adequação aos limites da causa. A classificação dainvalidade de algum requisito de dicção – que, em princípio, influi diretamente sobre determinadocapítulo de sentença – dependerá do tipo de interesse lesado. Assim, a contradição entre odispositivo e a motivação poderá ensejar nulidade absoluta, pois ofende ao interesse público sentençaem que a conclusão seja contrária às premissas em que se apóia, enquanto a falta de clareza poderáensejar mera irregularidade, se, ainda que exigindo esforço incomum, não impedir o entendimentodo julgado.52 DA SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes. op. cit. p. 31.

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Tais normas, de acordo com os ensinamentos de Dinamarco, ditam“regras para o confinamento das nulidades, evitando que secomprometam todos os efeitos de um ato [...], sempre que seja suficientea anulação parcial”. Para o mestre da escola paulista de direito processual,tais regras são também “de fundo racional, destinadas a mitigar os rigoresdo regime das nulidades processuais”53.

Por conseguinte, “se não houver uma relação de dependência entreelas [decisões], a nulidade de um desses capítulos do ato não se propagaaos demais: só se prejudicam os efeitos atingidos pelo vício, preservando-se todos os outros que o ato tiver (utile per inutile non vitiatur)”54.

Se não bastasse a clareza da aplicabilidade das normas acima referidasaos capítulos de sentença, seria suficiente a simples leitura do parágrafo1o do art. 588 do CPC para que se afastasse qualquer sombra de dúvidaquanto ao amparo que a anulação parcial da sentença recebe do direitopositivo pátrio. Afinal, está ali expressamente previsto que “se a sentençaprovisoriamente executada for modificada ou anulada apenas em parte,somente nessa parte ficará sem efeito a execução”.

Portanto, ao anular uma sentença inteira, que comporte capítulos nãocontaminados pelo vício que inquina um ou alguns dos demais, o Tribunalvai de encontro a “postulados técnico-processuais irrefutáveis” e à“razoabilidade interpretativa, à qual repugna anular o não-nulo só pelofato de estar circunstancialmente reunido com o nulo na unidade formalde uma sentença”55.

Não faz sentido, por exemplo, o acórdão que anula integralmenteuma sentença por restrição ao direito de defesa, quando a prova indeferidavisava, apenas, à demonstração da identidade de funções, mas, além dopedido de pagamento de diferenças decorrentes da equiparação salarial,havia outros, como o de pagamento de adicional de insalubridade eindenização por danos morais, aos quais correspondeu regular atividadeprobatória e prolação de capítulos de sentença independentes.

53 Instituições de direito processual civil. II vol. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 599-600.54 Idem, p. 600.55 DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de sentença. p. 86.

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Também não tem razão a anulação de toda uma sentença em quepronunciada a incompetência material do juízo quanto ao pedido decomplementação de aposentadoria, quando outros tantos pedidoscumulados na demanda mereceram julgamento de mérito, que em nadafoi influenciado pelo capítulo em que se rechaçou o direito ao examedaquela outra específica pretensão do autor.56

Tal prática evidenciar-se-ia tanto mais preocupante, se eventual recursose limitasse à anulação do capítulo desfavorável à parte: nessa hipótese,além dos dispositivos acima mencionados, o acórdão regional teria violadoa regra do art. 515, caput, do CPC, segundo a qual “a apelação devolveráao tribunal o conhecimento da matéria impugnada”.

Sobre o assunto, discorre Barbosa Moreira: “a interposição do recursotransfere ao órgão ad quem o conhecimento da matéria impugnada.Podem variar, de recurso para recurso, a extensão e a profundidade doefeito devolutivo; aquela, porém, não ultrapassará os limites da própriaimpugnação: no recurso parcial, a parte [da sentença] não impugnadapelo recorrente escapa ao conhecimento do órgão ad quem”57.

Mais: se os outros pedidos houvessem sido acolhidos, e apenas o autorhouvesse recorrido, a anulação dos capítulos de sentença hígidosimplicaria flagrante reformatio in pejus, desmoronando a posição devantagem que a parte havia obtido.

De resto, dispondo sobre capítulos de sentença independentes e nãoimpugnados, o acórdão evidentemente incidiria em violação à coisa julgada,uma vez que, diante de recurso parcial, transitam em julgado, desde logo,as unidades do decisório que não foram objeto de impugnação.

56 Recentemente, a Primeira Turma do TRT da Primeira Região, em acórdão cuja relatora foi aMM. Juíza Elma Pereira de Melo Carvalho, muito apropriadamente cassou apenas a parte de umasentença em que se pronunciava a incompetência da Justiça do Trabalho para examinar a pretensãode indenização por dano moral, determinando o retorno dos autos ao juízo a quo para que julgasseo pedido e sobrestando a análise das “outras questões veiculadas no recurso” até o retorno dos autosàquele Colegiado (RO 25830/01).57 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 22. ed. Rio de Janeiro:Forense, 2002. p. 123.

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NULIDADE PARCIAL E INTERESSE EM RECORRER:

É bem conhecida a classificação dos requisitos a que subordinada aadmissibilidade dos recursos proposta por Barbosa Moreira: de um lado,aqueles concernentes à própria existência do direito de recorrer e àdecisão recorrida em si mesmo considerada – requisitos intrínsecos; deoutro, os que dizem respeito ao exercício daquele direito e a fatoresexternos à decisão impugnada – requisitos extrínsecos.58

São requisitos intrínsecos gerais o cabimento, o interesse em recorrere a legitimação para recorrer; extrínsecos, a tempestividade, a regularidadeformal, o preparo e a inexistência de fato impeditivo ou extintivo dodireito de recorrer.

A existência de vício em apenas um ou alguns capítulos dedeterminada sentença, que conte com partes não contaminadas, temespecial repercussão sobre o interesse em recorrer, de que é titular, aolado dos outros dois legitimados a que alude o art. 499 do CPC, a partevencida ou sucumbente.

A noção de sucumbência apresenta aspectos de notável complexidade,na medida em que diz respeito à delimitação do prejuízo sofrido pelaparte em conseqüência do acertamento contido na sentença59.

A sucumbência pode ser formal, “quando o conteúdo da parte dispositivada decisão judicial diverge do que foi requerido pela parte” na demanda,ou material, quando a decisão “colocar a parte [...] em situação jurídicapior daquela que tinha antes do processo, isto é, quando a decisão produzirefeitos desfavoráveis à parte [...] , ou ainda quando a parte não obteve noprocesso tudo aquilo que com ele poderia ter obtido”60.

58 Neste sentido, MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 22. ed. Rio deJaneiro: Forense, 2002. p. 116 e NERY JUNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos – princípiosfundamentais. 4. ed. São Paulo: RT, 1997. p. 238.59 MONTESANO, Luigi e ARIETA, Giovanni. Diritto processuale civile. Vol. II – La cognizionecontenziosa di rito ordinario. 2 ed. Torino: G. Giappichelli Editore, 1997. p. 270.60 NERY JUNIOR, Nelson. op. cit. p. 262. Ainda, Montesano e Arieta, op. cit., p. 270, para quem“la dottrina più recente distingue tra soccobenza formale, che si verifica a carico della parte che siavista respingere la demanda da essa proposta [...] e la soccombenza materiale che ha riferimento alpregiudizio che comunque deriva dalla sentenza nei confronti della parte che abbia visto accoglierela domanda dell’altra [...] anche con riferimento allo scarto di vantagio esistente tra la pronunciagià emessa e quella eventualmente conseguibile in via d’impugnazione.

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Diz-se prática da sucumbência, quando a parte é confrontada comcapítulo de sentença de mérito que lhe é desfavorável (acolhimento dopedido para o réu; rejeição, para o autor); teórica, quando determinadaquestão preliminar ou prejudicial é rejeitada, mas o mérito principal éjulgado favoravelmente à mesma parte61.

Ademais, a sucumbência pode ser total, se todos os capítulos desentença são desfavoráveis à parte, ou parcial, se há capítulos que lhesejam favoráveis.

Sendo a sucumbência parcial, na hipótese de a sentença conter capítulosinválidos e outros não, a parte a quem a nulidade prejudica tem interesseexclusivamente à anulação de tais capítulos, uma vez que “só existeinteresse em recorrer para melhorar, jamais para piorar”62. Quanto aosdemais, se também desfavoráveis, o fundamento da impugnação deveráser outro e, se favoráveis, nada poderá ser suscitado em relação a eles.

Logo, na hipótese de a parte argüir a nulidade de toda a sentença emrazão de vício que não contamine cada qual de seus capítulos, caberá aoTribunal delimitar a extensão da sucumbência e o correspondente o âmbitodo interesse em recorrer, conhecendo da impugnação, no particular, apenasno que disser respeito às partes sobre os quais recair a suposta invalidade.

Do contrário, ao admitir, como integral, um recurso que deveria serconhecido apenas parcialmente, estará o órgão ad quem obstando otrânsito em julgado dos capítulos hígidos e, conseqüentemente, ampliandoos danos marginais por indução processual em sentido estrito: ao invésde cumprir com sua nobre missão de apaziguar, estará permitindo que aparte a quem aproveita o conteúdo dos julgamentos válidos sofra, commaior intensidade, os efeitos deletérios que naturalmente acompanhama duração do processo63.

61 “Si pensi al convenuto che si vede respingere l’eccezione d’incompetenza o di prescrizione, mache risulti vittorioso in merito con l’integrale rigetto della domanda dell’attore”. MONTESANO,Luigi e ARIETA, Giovanni. Diritto processuale civile. I Vol. – Le disposiozioni generali. Torino: G.Giappichelli Editore, 1993. p. 130.62 DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de sentença. p. 103.63 Os danos marginais são ainda mais evidentes quando o capítulo que padece da invalidade, tendopronunciado a extinção do processo sem apreciação do mérito, é vinculado a “questão de direito”:afinal, de acordo com a nova disciplina do parágrafo 3º do art. 515 do CPC, “nos casos de extinçãodo processo sem julgamento de mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causaversar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento”. Nessahipótese, portanto, se o recurso visar apenas à cassação da pronúncia de (parcial) extinção doprocesso, o próprio tribunal deve julgar o pedido, atendendo, assim, à finalidade da norma em apreço.

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CONCLUSÃO:

Conforme exposto nas linhas acima, cada pronúncia do juízo sobre osrequisitos de admissibilidade do exame de mérito e cada julgamento dospedidos formulados na demanda constituem capítulos autônomos de umasentença que formalmente apresenta-se una.

Logo, recaindo o vício sobre determinado capítulo (e, havendo, sobreaqueles que dele dependam), a sentença, de rigor, deverá ser anuladaapenas parcialmente, reservando-se para momento posterior àprovidência sanatória, se for o caso, o exame dos demais temas cujoconhecimento fora devolvido ao Tribunal.

Tal entendimento encontra amparo em sólida doutrina e expressaprevisão legal (par. 1o do art. 588 do CPC), amoldando-se muitoconfortavelmente aos preceitos dos artigos 248 e 249, parágrafo 1o, doCPC e 794 e 798 da CLT.

Ressalte-se, por fim, que a anulação parcial da sentença obsta: (a) aprodução de efeitos do acórdão sobre capítulos que, por não teremdesafiado recurso, não tenham sido objeto de devolução ao juízo ad quem;(b) a possibilidade de o acórdão, vindo a anular capítulo que não desafiouimpugnação, ofender a coisa julgada; (c) a possibilidade de o acórdão -determinando novo julgamento de pedidos inicialmente decididos deforma favorável ao recorrente - configurar indesejável reformatio in pejus;(d) o integral reexame, pelo juízo prolator da sentença, das mesmaspretensões por ele já analisadas, eliminando-se o risco de, se elaboradapor outro juiz, a decisão correspondente a capítulos não viciados vir acolidir com a originária, inclusive contra o interesse do próprio recorrente;e (e) o prolongamento desnecessário da atividade de conhecimentoquanto aos temas a que se referem os capítulos hígidos e a conseqüentemajoração dos danos marginais por indução processual.

Com as palavras acima, esperamos ter lançado, ainda queminimamente, alguma luz sobre o tema, que certamente comporta oacréscimo de outras idéias e discussões

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VISÃO CRÍTICA E SISTEMÁTICA DOESTATUTO DO DESARMAMENTO À LUZ DA

FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO.Paulo Rangel* - Promotor de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

Mestre em Ciências Penais pela UCAM. Doutor em Direito pela UFPR

O governo federal sancionou1 a Lei 10.826/03 que dispõe sobre ochamado Estatuto do Desarmamento dando nova disciplina ao velhoproblema do registro, posse, comercialização de armas de fogo e muniçãono País, em um discurso nitidamente espetaculoso visando, como eledisse, diminuir a violência no Brasil.

A sensação que tenho é que antes da aprovação do Estatuto todospodíamos andar armados pelas ruas porque não era crime. De que criançasexibiam seus revólveres e atiravam nas janelas da vizinhança, brincandode bandido e mocinho com balas de verdade. De que armas eramvendidas à qualquer cidadão que comprasse nas lojas munido apenas decarteira de identidade, título de eleitor e comprovante de residência e,claro, o dinheiro, saindo da loja com seu três oitão na cintura esbanjandoagressividade e dando tiros para o alto. O dono da loja simplesmenteolharia para o comprador e, uma vez comprovando que os documentoseram verdadeiros, nos entregaria a arma. De que bandidos, com dinheiroilícito, compravam todos os estoques de munições das lojas vizinhas e searmavam porque o governo permitia-lhes o acesso as armas de fogo.

* O autor é promotor de justiça do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Ciências Penais pelaUCAM. Doutor em Direito pela UFPR e professor de direito processual penal da UCAM/ daEMERJ e do CEPAD.1 D.O.U. de 23.12.2003

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Quero dizer: sempre foi crime e sempre foi proibido ter armas sem registroem casa, ou quiçá portá-las nas ruas. Um policial que quisesse compraruma arma passava por uma série de exigências legais e a arma somenteera entregue depois de aprovada toda documentação pelos órgãospróprios. O Exército sempre controlou a venda de armas no País e quaisseriam ou não de uso exclusivo das Forças Armadas. O que mudou? Emessência nada. Apenas alguns crimes foram criados, outros tornadosinafiançáveis (???) e algumas regras administrativas permissivas, proibitivase coercitivas.

Determinada autoridade, integrante do governo, chegou ao cúmulode dizer que deveríamos criminalizar o uso da arma de brinquedo, ouseja, queria acabar com minha infância. Não teve coragem, mas proibiua fabricação, venda, etc2.

Mas fizeram o Estatuto e, óbvio, com ele o alarde espetaculoso deque agora a violência vai diminuir.

Como sempre o paradigma é de que a lei penal mais severa irá inibira onda de violência que assola nossas cidades, razão pela qual o governosensível (??) as questões da violência urbana resolveu encaminhar e forçar,ainda esse ano, a aprovação do referido estatuto.

Um excelente marketing político para um primeiro ano de governo.

Será mesmo que a violência irá diminuir no dia ou meses seguintes aaprovação desta lei? Tem a violência como causa o uso indiscriminado dearmas no País fazendo do Brasil um verdadeiro faroeste?

Penso que não. Não tenho dúvidas nenhuma de que violência não seinibi com lei penal mais severa, mas sim com investimentos na área socialcom diminuição das desigualdades que nelas existem, educação eemprego para todos, saneamento básico nas comunidades excluídassocialmente, além, é óbvio, de um exaustivo combate a corrupção eincremento desse dinheiro nas referidas comunidades onde todos, semexceção, possam ter acesso à bens mínimos e necessários ao consumopara uma vida boa (good life).

2Art. 26. São vedadas a fabricação, a venda, a comercialização e a importação de brinquedos,réplicas e simulacros de armas de fogo, que com estas se possam confundir.

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Contudo, Dussel3 irá mostrar que essa vida boa somente será possívelna medida em que a vítima4, o excluído social, estiver integrada ao sistemasendo vista como o Outro igual e não excluído. O discurso, inclusive,Habermasiano5, do consenso não incluí essas vítimas. O referido consensoé entre os iguais e não também entre as vítimas.

Por isso Dussel6 indaga:

Como se sabe que a necessidade X determina aexigência ética de convocar o afetado para a discussão? Acham-se osafetados convocados em situação simétrica? Quem ou com que critérioético descobre essas necessidades e com que princípio se produz oprocesso que culmina na simetria? Estes e muitos outros problemasmateriais, Habermas os deixa por resolver.

A ética do discurso é perigosa porque excluí as vítimas, razão pelaqual falece de legitimidade o referendo popular previsto no art. 35, § 1ºdo Estatuto7, pois não obstante haver um consenso não tem apoio emuma ética de conteúdo, formal, ou seja, a vida humana em toda suaessência e nos seus principais aspectos: da produção (da vida humana);da sua reprodução e do seu desenvolvimento.

Na medida em que se excluem as vítimas desse debate, o referendo,mesmo expressando a opinião da maioria, não significa dizer democrático,muito menos válido. Trata-se de um vício na forma de alcançar o consensomoral, a validade. Uma coisa é o conteúdo veritativo do ato, outra é a formacomo ele foi praticado para se alcançar à validade. O que significa dizer: nãopodemos confundir a questão da ética com a questão da moral discursiva8.

3 DUSSEL, Henrique. Ética da Libertação. Rio de Janeiro: Vozes, 2002, p. 119.4 Nesta Ética, o Outro não será denominado metafórica e economicamente sob o nome de pobre.Agora, inspirando-nos em W. Benjamim, o denominarei “a vítima”- noção mais ampla e exata(Dussel, ob. cit. p. 17)5 Para Habermas uma norma só pode aspirar a ter validade quando todos os afetados conseguirempôr-se de acordo enquanto participantes de um discurso prático em que essa norma é válida(Habermas, 1983, p. 76; trad. esp. p. 86). Contudo, esquece que as vítimas não participam dessediscurso o que lhe retira a validade.6 Dussel: 2002, p. 196.7Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional,salvo para as entidades previstas no art. 6o desta Lei. § 1o Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendopopular, a ser realizado em outubro de 2005.8 DUSSEL, ob. cit. p. 212.

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O reconhecimento do sujeito ético como igual (e não como vítima,excluído) é um momento do exercício da razão ético-originária.

Por isso, Rosenfeld9 analisando o conflito entre o eu (self) e o outro otem como deslocado, mas não superado e cita Rousseau:

Na concepção de Rousseau, a vontade geral não é nem a vontade doindivíduo, nem a da maioria. Ao contrário, tal como Rousseau a vê, avontade geral é a soma das diferenças entre as vontades individuais,ou o “acordo de todos os interesses” que “é produzido pela oposiçãorecíproca de cada um com os demais”. Nesse sentido o que há noreferendo popular é a vontade de todos, ou seja, a soma dos interessesparticulares ou privados.

A coação que se quer impor, através do Estatuto, tem que ser ética,não apenas legítima. Por isso Dussel10 nos diz:

A coação legítima é ética na medida em que se exerce cumprindocom as exigências dos princípios material, formal, discursivo e defactibilidade ética: que se garanta a vida de todos os afetados, queparticipem simetricamente nas decisões de mediações factíveiseticamente.

Em síntese, pense em um fato: o uso das drogas com as conseqüênciasque lhe são inerentes (aumento da violência urbana, corrupção policial,aumento da população carcerária, etc.). A causa é uma só: a classe médiae a elite cheiram cocaína e fumam maconha demais. Resultado: queremeliminar seus fornecedores com penas de morte por não conseguiremresolver seus conflitos familiares. Por isso, querem fazer plebiscito paradiscutir a pena de morte11. Logo, tal discussão falecerá de legitimidadepor expressar a vontade de todos, mas não a vontade geral (Rousseau).

Se depender do Estatuto em comento a violência vai sim, aumentar.Veja que regra magnífica para dar poderes aos prefeitos e,conseqüentemente, torná-la um instrumento de satisfação política, atravésde uma verdadeira guerra civil a ser instaurada, oficialmente, emdeterminadas cidades, entre elas a do Rio de Janeiro.

9 ROSENFELD, Michel. A Identidade do Sujeito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos,2003, p. 39.10 Ob. Cit. p. 545.

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Art. 6o É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional,salvo para os casos previstos em legislação própria e para:

(...)

III – os integrantes das guardas municipais das capitais dos Estados edos Municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes,nas condições estabelecidas no regulamento desta Lei;

IV - os integrantes das guardas municipais dos Municípios com mais de50.000 (cinqüenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes,quando em serviço; (Redação dada pela Lei nº 10.867, de 2004)

§ 1o As pessoas previstas nos incisos I, II, III, V e VI deste artigo terãodireito de portar arma de fogo fornecida pela respectiva corporaçãoou instituição, mesmo fora de serviço, na forma do regulamento,aplicando-se nos casos de armas de fogo de propriedade particular osdispositivos do regulamento desta Lei.

O que significa dizer: nos municípios com mais de 500 mil habitantesa guarda municipal vai poder andar armada mesmo fora de serviço.Pergunto: qual a qualificação para que um guarda municipal (QUE NÃO ÉPOLICIAL) possa andar armado? Nenhuma.

Uma questão constitucional, como sempre, foi desconsiderada, qualseja: a guarda municipal ao exercer, armada, suas funções fere o âmbitode atribuições das polícias militares, civis e federal (esta, em suas diversasmodalidades), pois sua destinação funcional não lhe permite, muito menosexige, andar armada, até porque não integra o rol dos órgãos responsáveispela segurança pública. Logo, não lhe é lícito portar arma, no exercíciode suas funções. Nesse sentido, o Estatuto do Desarmamento éinconstitucional12. Guarda Municipal tem o dever de proteger o própriomunicipal, ou seja, o patrimônio do poder público municipal (parques,jardins, praças, ciclovias, etc).

11 Esbarrando na cláusula pétrea (art. 60, §4o., IV, da CRFB).12Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercidapara a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, atravésdos seguintes órgãos:I - polícia federal;II - polícia rodoviária federal;III - polícia ferroviária federal;IV - polícias civis;V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

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No Rio de Janeiro um camelô13 atirou contra um guarda municipal,matando-o. Agora, a resposta vai ser no mesmo nível. Não são poucos osconflitos entre guardas e camelôs (ou vendedores ambulantes) no centrodo Rio de Janeiro e, acredito, em outras grandes capitais. Imaginem, agora,tais conflitos serem solucionados com a guarda municipal armada? Repito:guarda municipal não exerce atividade policial. A lei assegura, inclusive,o direito dos guardas municipais, nos municípios com mais de 500 milhabitantes, andarem armados fora de serviço. Por que e para que? Paraque possamos ter mais armas nas mãos de pessoas desqualificadas edespreparadas aumentando a demanda judicial.

Alguém tem dúvida de que vai aumentar a violência? Eu não. Tenhocerteza de que teremos não só conflitos entre guardas e ambulantes,mas também, com policiais civis e militares que serão chamados a contertais conflitos e se depararão com guardas armados não com cassetetes,mas sim com armas de fogo. Resultado: violência e mais violência.

Aqui a pressão política dos prefeitos foi intensa durante a tramitaçãodo projeto visando armar suas guardas e, conseqüentemente, dar poderesa elas inerentes a atividade policial o que, por si só, descaracteriza suasatividades, mas populariza o prefeito e lhe permite, em suas campanhas,falar de segurança pública, mesmo não sendo de sua esfera de atribuiçãotratar da mesma. Contudo, o povo acredita e o elege.

Diante disso, o que se fez? Editou-se uma norma, com sanções severas,com nítido propósito de punir pessoas de bem que possuírem armas emcasa, salvo se as devolverem ao Estado no prazo estabelecido. Qual arazão de ser de tal exigência? Desarmar o cidadão de bem que se tornaum perigo a um governo que adota medidas impopulares. In verbis:

Art. 29. As autorizações de porte de armas de fogo já concedidasexpirar-se-ão 90 (noventa) dias após a publicação desta Lei.

Parágrafo único. O detentor de autorização com prazo de validadesuperior a 90 (noventa) dias poderá renová-la, perante a Polícia Federal,nas condições dos arts. 4o, 6o e 10 desta Lei, no prazo de 90 (noventa)dias após sua publicação, sem ônus para o requerente.

13 Entenda-se meliante. Camelô que defende seu trabalho, de forma honesta, não anda armado.Arma não é seu instrumento de trabalho.

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Art. 30. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradasdeverão, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 (centoe oitenta) dias após a publicação desta Lei, solicitar o seu registroapresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origemlícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos.

Art. 31. Os possuidores e proprietários de armas de fogo adquiridasregularmente poderão, a qualquer tempo, entregá-las à Polícia Federal,mediante recibo e indenização, nos termos do regulamento desta Lei.

Art. 32. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradaspoderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicaçãodesta Lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamentodesta Lei.

Parágrafo único. Na hipótese prevista neste artigo e no art. 31, asarmas recebidas constarão de cadastro específico e, após a elaboraçãode laudo pericial, serão encaminhadas, no prazo de 48 (quarenta eoito) horas, ao Comando do Exército para destruição, sendo vedadasua utilização ou reaproveitamento para qualquer fim.

Percebam que os únicos que serão chamados à responsabilidade sãoaqueles que possuem armas em casa, pois o meliante, por si só, e pelaatividade que desempenha (roubo, tráfico, homicídio, etc.), já estaráincluído em um tipo penal próprio que não será cumulado com o portede arma. Ou seja, aquele que mata com uma arma de fogo não respondepelo porte de arma e homicídio (pelo menos assim penso, pois o crimede dano absorve o de perigo), da mesma forma o ladrão que assalta umônibus não responde pelo roubo com emprego de arma de fogo cumuladocom porte de arma. Do contrário, haveria um bis in idem. Isto todos sabeme aprendem nos primeiros anos do berço universitário.

O que se quer então? Estabelecer a cultura do medo. Falácia legislativae governamental. A idéia, falsa, de que agora a violência vai diminuir14.O Estado, visando aumentar o consumo, impõe a sociedade à cultura domedo, das grades, dos portões altos, dos horários controlados, dos carros

14 Vide a Lei 8.072/90 – Lei dos Chamados Crimes Hediondos que em nada diminuiu a violência,muito pelo contrário, aumentou. A Lei de tortura não impede que casos como do Chinês, nopresídio, e do cozinheiro, nas dependências da PF, ambos no Rio de Janeiro, ocorram.

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blindados15 e com insufilm, dos condomínios fechados, do crescimentoincomensurável das firmas particulares de segurança (nas mãos de muitasautoridades), criando um pânico bem maior do que a própria violência. Éa indústria do medo.

Bauman16, analisando a globalização, nos ensina que:

Os medos contemporâneos, os “medos urbanos” típicos, ao contráriodaqueles que outrora levaram à construção de cidades, concentram-se no “inimigo interior”. Esse tipo de medo provoca menospreocupação com a integridade e a fortaleza da cidade como umtodo – como propriedade coletiva e garante coletivo de segurançaindividual – do que com o isolamento e a fortificação do próprio lardentro da cidade. Os muros construídos outrora em volta da cidadecruzam agora a própria cidade em inúmeras direções. Bairros vigiados,espaços públicos com proteção cerrada e admissão controlada, guardasbem armados no portão dos condomínios e portas operadaseletronicamente – tudo isso para afastar concidadãos indesejados,não exércitos estrangeiros, salteadores de estrada, saqueadores ououtros perigos desconhecidos emboscados extramuros.

Não estou dizendo que violência não existe, mas apenas afirmandoque o Estado se aproveita desse fator universal e incuti o medo17 em suapopulação, cobrando dela a fatura com o voto e a promessa de que vaiinibir a violência, uma vez eleito18.

Ademais, uma população armada e um ex-governo de esquerda, commedidas impopulares, não combinam entre si19, razão pela qual essapopulação deve ser desarmada. E o bandido? Porque não o desarmam?

15 Quem passa pela Barra da Tijuca nestes últimos dias de 2003 talvez nem repare nesta propagandade uma grande distribuidora de carros para bacanas. Ou vai ver até nota e não se choca,achando coisa normal, já incorporada à paisagem da cidade. Mas deveria se chocar, sim. Trata-se de uma liquidação de carros blindados – ou seja, preparados para a guerra. Significa que omercado movido pela violência e pelo medo é crescente. Não dá para achar que isso é normal(Coluna do ALCELMO GOES, O GLOBO, p. 14, 27/12/03).16 Bauman, Zygmunt. Globalização: As Conseqüências Humanas. Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p. 55.17 É obrigatória, hoje, a leitura do livro de Vera Malaguti Batista: O Medo na Cidade do Rio deJaneiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003, onde o leitor vai encontrarinformações importantes para compreensão e dimensão do problema. O livro faz uma incursãohistórica delimitando bem a problemática e nos fazendo entender à questão do medo. Vale a pena ler.18 Quantos foram eleitos com discursos de que iriam diminuir a violência? No Rio de Janeiro o entãocandidato a governador do Estado, Moreira Franco, foi eleito afirmando que acabaria com aviolência em seis meses. Em entrevista à TV, ano passado, afirmou que, na época, se tratava de ummarketing político e que, hoje, não usaria desse método.19 Vejam as reformas da previdência com perseguição aos idosos em que o discurso era de que o

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Bem, esse não compra armas em loja e seu desarmamento pressupõemedidas sociais sérias que ultrapassam um simples olhar através do texto legal.

Muitos dos que ocupam o governo central hoje participaram deguerrilha urbana e rural durante o regime militar, ou seja, sabem o quesignifica uma arma nas mãos de um grupo insatisfeito.

Em 1964, quando o militar ocupou o poder, uma das primeiras medidasfoi retirar as polícias militares das mãos dos governos estaduais locandoa PM como força auxiliar da reserva do exército. Era o enfraquecimentodos governos locais a fim de que qualquer insurreição pudesse serfacilmente controlada pelo governo militar. Ou seja, armas nas mãos dequem está insatisfeito tem um significado: problemas.

Não há dúvida de que a arma é um dos instrumentos mais nefasto queo homem já inventou. Nasceu nas mãos dos caçadores do períodopaleolítico20, já que o homem necessitava, como onívoro21 que semprefoi, de proteínas. No início, o homem, caçou animais com instrumentospontudos para que atravessassem seus corpos. Tratava-se de uma caçacom o objetivo de sobrevivência. Depois, visando poder e domínio, passoua investir contra seus semelhantes. Nasceu o guerreiro. As estruturasinstitucionais fizeram nascer os militares e estes formaram os exércitos.A revolução industrial fez o homem aprimorar (???) o instrumento queserviu, no início, para seu alimento e vestimenta. Nasceram os tanques,aviões de guerra e bombas atômicas22.

Moral desta triste história: aquele instrumento que nasceu com oobjetivo de fazer o homem sobreviver (agasalhando-o e alimentando-o)põe em risco (ou retira), hoje, sua própria vida. Tornou-se um instrumentode poder e domínio. Manda quem tem a maior e melhor indústria bélica,logo há um grande interesse em ser o único e exclusivo vendedor dearmas do planeta. Afinal, as guerras financiam esses países.

aposentado era intocável. Aumento do imposto de renda dos trabalhadores. Observe a contínuadependência econômica financeiro internacional. A expulsão dos radicais do PT, partido que semprefoi radical em suas críticas ao governo passado.20 Relativo ao primeiro período da idade da pedra. Chamado também de período “da Pedra Lascada”.21 Que come de tudo. Que se alimenta de animais e vegetais.22 DUSSEL, ob. cit. p. 547.

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Destarte, existe uma intenção (pressão) internacional para que o Brasil proíbavenda de armas em seu território e apenas o mercado paralelo (contrabando)ou oficial (Forças Armadas) possam comprar no mercado internacional.

Vejam o que a indústria bélica americana fez no mundo durante quasemetade de um século:

1953 – Os EUA derrubaram Mossadeq primeiro Ministro do Irã ecolocou SHAD como ditador.

1954 – Os EUA derrubam ARBENZ, Presidente da Guatemala: 200civis morreram.

1963 – Os EUA apóiam o assassinato do presidente Sul Vietnamita, DIEM.

1963/1975 – O exército americano mata 4 milhões na Ásia.

11 de setembro 1973 – EUA armam um golpe de Estado no Chile e oPresidente Salvador Allende é assassinado sendo colocado no poder, pelosEUA, o ditador Augusto Pinochet: 5 milhões de chilenos são mortos.

1977 – Os EUA apóiam o governo militar de El Salvador: 70 milsalvadorenhos e 4 freiras americanas são mortos.

1980 – Os EUA treinam Bin Laden e terroristas para matar soviéticos.A CIA dá U$ 3 bilhões aos terroristas.

1981 – O governo Reagan treina e financia os Contras na Nicaráguae 30 mil nicaragüenses são mortos.

1982 – Os EUA dão a Saddam Hussein armas e dinheiro para que elemate os Iranianos.

1983 – A Casa Branca fornece armas e dinheiro ao Irã para ele mataros Iraquianos.

1989 – O agente da CIA Manuel Noriega, Presidente do Panamá,desobedeceu as ordens de Washington levando os EUA a invadirem oPanamá e derrubarem Noriega: 3 mil civis panamenhos morreram.

1990 – O Iraque invade o Kuwait com armas americanas.

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1991 – Os EUA invadem Iraque e Bush reempossa o ditador do Kuwait.

1998 – Clinton manda bombardear uma fábrica de armamentos noSudão: era apenas uma fábrica de aspirina.

1991- Até hoje aviões americanos bombardeiam o Iraque. A ONUestima que 500 mil crianças iraquianas morreram devido as sançõesimpostas ao Iraque.

20 de abril de 1999 – O maior bombardeio americano na guerra deKosovo: hospitais e escolas primárias foram atingidas.

2000/2001 – Os EUA dão ao Afeganistão dos Talibans U$ 245 milhõesde ajuda.

11 de setembro de 2001 – Osama Bin Laden mata 3 mil pessoas comtécnicas aprendidas na CIA23.

O que isso significa? Que a indústria de armas é o que financia oboom americano. O Americano vive da guerra e do medo e, por via deconseqüência, da venda de armas. O medo faz as pessoas consumireme o consumo aumenta a oferta fortalecendo o sistema capitalista.

Por isso os ensinamentos de Bauman24 são imprescindíveis e devemser conhecidos por todos:

Toda a informação que vem “de fora” são imagens de guerra,assassinatos, drogas, pilhagem, doenças contagiosas, refugiados efome; isto é, de algo ameaçador para nós.

Ainda menos freqüente é nos lembrarem, quando o fazem, daquiloque sabemos, mas preferimos não ouvir: que todas essas armas usadaspara transformar lares distantes em campos de morticínio foramfornecidas por nossas indústrias bélicas, ávidas de encomendas eorgulhosas de sua e competitividade global (sem grifos no original).

O homem moderno25 quer, a qualquer custo, conciliar o inconciliável:

23 Esses dados foram retirados do documentário “Tiros em Columbine” (título original: Bowling forColumbine) de Michael Moore, vencedor do Oscar de Melhor Documentário.24 Bauman: 1999, p. 83.25 Ou pós-moderno, ou se preferirem transmoderno, não importa. Quero apenas a me referir aohomem hodierno.

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liberdade e segurança. Ambas são urgentes e indispensáveis, masinconciliáveis sem que haja atrito. Bauman26 nos ensina:

A promoção da segurança sempre requer o sacrifício da liberdade,enquanto esta só pode ser ampliada à custa da segurança. A segurançasacrificada em nome da liberdade tende a ser a segurança dos outros;e a liberdade sacrificada em nome da segurança tende ser a liberdadedos outros.

Mas e o Estatuto do Desarmamento, o que tem a ver com isso? Tudo.Por que todo esse alarde? Desconhecimento, má-fé ou cretinice, aindanão descobri.

Há um interesse internacional em que o País proíba a venda de armaspassando a consumir apenas as do mercado internacional. Contudo, a proibiçãoaumentará a corrupção e o mercado paralelo. Lembram da Lei Seca27?

O crime, tornando-se inafiançável, possibilitará uma negociaçãoinescrupulosa nas unidades policiais por determinados policiais corruptosque, embora minoria, existem.

Mas vejam a ausência de sistemática da lei, no plano processual.

Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito,transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter,empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório oumunição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo comdeterminação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de 2 (dois)28 a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvoquando a arma de fogo estiver registrada em nome do agente.

26 Baumann, Zygmunt. Comunidade: A Busca por Segurança no Mundo Atual. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2003, p. 24. (cf. também do mesmo autor O Mal-Estar da Pós-Modernidade).27 A proibição começou às 12:01 de 17 de janeiro de 1920. À meia-noite de 7 de abril de 1933, acerveja e o vinho retornaram à legalidade. E no dia 5 de dezembro de 1933, em clima de réveillon,os bares dos Estados Unidos voltaram a funcionar a pleno vapor. Os efeitos da experiência foramdesastrosos. A fabricação clandestina, sem nenhuma fiscalização depreciou a qualidade da bebida e,em casos extremos, aleijou e matou milhares de pessoas que ingeriram a primeira mistura queaparecesse, de óleo de cozinha a água de colônia, de fluido de isqueiro a sucos e xaropes rusticamentefermentados. A distribuição ilegal fez proliferarem os gangsters e a corrupção policial - a atmosferada época está viva na cabeça de todos que acompanham até hoje nos filmes a confrontação entreAl Capone e Elliot Ness.

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Art. 21. Os crimes previstos nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis deliberdade provisória.

O indivíduo que for preso e tiver registro da arma pagará fiança peranteo juiz, não na delegacia, porque a autoridade policial não pode concederfiança nos crimes apenados com reclusão, mas apenas nos de detençãoe prisão simples (art. 322 do CPP). Não seria de bom alvitre que sealterasse também o art. 322 do CPP para permitir que a autoridade policialconcedesse a fiança quando o preso possuísse o registro da arma? Seria,mas não fizeram. Esse é o problema das reformas pontuais. Então, temosque interpretar de acordo com a Constituição e assegurar a liberdade doindivíduo. Isso é ser garantista, ou seja, garantir o que está na Constituição(art. 5º, XV) já que o legislador ordinário não o fez. Repelir o que está nalei ordinária em nome do que está na Constituição se o que está na leiordinária não reflete o texto constitucional, isso não é muito, é o mínimoe é simples.

Lenio Streck29 nos ensina:

Direito Constitucional, mais do que disciplina autônoma é modo deser; é modo de agir; é uma construção como bem diz Hesse; mais doque isto, é condição de possibilidade do processo interpretativo.Nenhum texto poderá ter sentido válido se esse sentido não estiverde acordo com a Constituição (sem grifos no original).

Aqui paira o frágil e falso paradigma de que a lei pode tudo e que suaspalavras têm força suficiente para dar segurança jurídica à sociedadecomo em um simples passe de mágica. A voz de Jacinto Nelson deMiranda Coutinho30 nos ensina sobre a palavra que não dá conta de tudo:

A quimera da “lei que dá conta” diz respeito ao problema – deimpossível solução – da segurança jurídica. Não é preciso saber muitosobre a “viragem lingüística” para se ter presente que a palavra nãosegura nada (não permitindo “o” sentido mas tão-só “um” sentidoentre tantos possíveis; tampouco “a” verdade – Toda! –, sempre demaispara um humano), justo porque desliza em giros produzidos pelas

28 Entendo que essa pena admite suspensão condicional do processo. Para tanto, vide meu DireitoProcessual Penal. 11 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 348.29 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma Nova Crítica do Direito.2 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 236.30 COUTINHO, Nelson Jacinto de Miranda e outro. O ABSURDO DAS DENÚNCIAS GENÉRICAS.

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freudianas condensações e deslocamentos (ou metáforas e metonímias,como queria Lacan), motivo bastante para ser levada mais a sério noDireito, o que, de fato, não ocorre. Eis aí a fonte de boa parte dosofrimento de alguns juristas ao se defrontarem com ceguinhos,nefelibatas e catedráulicos, como conceituou Lyra Filho, mormenteem períodos como o atual, onde se manipula discursivamente tudo oque for possível. Os lúcidos, sem embargo, sempre souberam ler nasentrelinhas, de modo a não se iludirem. Bom exemplo são os europeusque viveram sob o jugo de Hitler e têm muito a ensinar sobre oassunto: “Le leggi contano fino a un dato punto: anche perfette, restanosulla carta quando nelle midolla pubbliche esplodano appetiti, deliri,fobìe; ma dove siano sbagliate, disseminano effetti nefasti.” (CORDERO,Franco. Criminalia: nascita dei sistemi penali. Roma-Bari: Laterza,1986, p. 97). Tradução livre: “As leis contam até um determinadoponto: ainda que perfeitas, restam sobre o papel quando nos miolosque compõem o espaço público explodem apetites, delírios, fobias;mas onde são equivocadas, disseminam efeitos nefastos.

Vamos imaginar um exemplo:

O indivíduo é preso e autuado em flagrante delito na delegacia, porviolar o art. 14, sem registro da arma, e é recolhido ao cárcere (o crime éinafiançável). Contudo, poderá o juiz conceder liberdade provisória, nosexatos limites do parágrafo único do art. 310 do CPP, já que a vedação deliberdade provisória é para os crimes dos arts. 16, 17 e 18 e NÃO PARA OCRIME DO ART. 14 o que, por si só, nos autoriza outra discussão31. Logo,se é proibida a liberdade provisória para os crimes dos arts. 16, 17 e 18 éporque é permitida para o crime do art. 14. É o óbvio do óbvio.

Ouso ir um pouco mais longe.

Imagine que o juiz que se deparou diante do pedido de liberdadeprovisória (pela prática do crime do art. 14) é fã incondicional do Estatutodo Desarmamento e formado na Universidade do Movimento da Lei e daOrdem32 e indefere o pedido deixando o acusado preso até final do

31 Ao proibir a liberdade provisória para esses crimes o legislador restabelece a prisão obrigatória noprocesso penal o que caracteriza um retrocesso social inadmissível em um Estado Democrático deDireito. Tal vedação é inconstitucional, pois não se retrocede diante das conquistas sociais alcançadas,pelo menos enquanto estivermos na democracia.32 Em outras palavras quero dizer que tal juiz é severo no seu atuar e acha que, efetivamente, a leivai diminuir a violência urbana. Acreditem: ele existe, não é uma ficção.

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processo quando, então, o condena, digamos, pela sua mão pesada, àpena máxima de quatro anos de reclusão33.

Pois bem. Sendo réu primário e de bons antecedentes terá o juiz quesubstituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (cf. art.44 do CP 34), o que significa dizer: o réu será solto quando sua culpa forreconhecida, mas permanecerá preso enquanto for considerado inocente.Preso durante o processo e solto ao final do mesmo. Pode? Claro quenão. Não haverá homogeneidade35 na prisão cautelar que lhe for impostadurante o processo. Então porque a lei veda a liberdade provisóriamediante fiança, mas não veda a liberdade provisória sem fiança?Simplesmente por que falta sistemática na elaboração da lei. Faz-se a leisem preocupação e seriedade sistemática.

A autoridade policial fica impedida de conceder fiança por se tratarde crime punido com reclusão. Contudo, o juiz poderá conceder liberdadeprovisória e, ao final do processo, substituir a pena privativa de liberdadepor restritiva de direitos.

Na sistemática processual atual, prisão somente nos crimes punidos,in concreto, com pena acima de quatro anos. Ora, porque não admitirmosque a autoridade policial possa, desde já, conceder fiança nos crimespunidos com reclusão com pena máxima até quatro anos, in abstrato,evitando, assim, que o indivíduo permaneça preso, na fase policial, eseja solto durante o processo? Imagine um furto simples: preso emflagrante a autoridade policial não poderá conceder fiança, mas oferecidaà denúncia o MP irá fazer a proposta de suspensão condicional doprocesso. Se o acusado não aceitar, o processo seguirá e, se no final forcondenado, o juiz aplicará o art. 44 do CP. Há lógica? Há sistematicidade?Não, claro que não.

33 Perceba que estou sendo bem severo em minha análise, mas já escutei de juiz a assertiva de que ocrime de porte de arma é perigoso e deve ser punido nos rigores da lei.34 Art. 44- As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade,quando:I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido comviolência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;II - o réu não for reincidente em crime doloso;III - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bemcomo os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente (sem grifos nooriginal).35 Cf. meu Direito Processual Penal. 11 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 559.

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Qual a dificuldade, então? Olhar para o texto legal (Estatuto doDesarmamento) e aplicar a razoabilidade necessária para extrairmos delea norma36 que é compatível com o princípio da proporcionalidade inseridona Carta Magna.

Logo, o texto do parágrafo único do art. 14 é inconstitucional por feriro princípio da proporcionalidade.

Vejam que negação da fiança está prevista sempre na Constituição enão em lei ordinária. A Constituição autoriza, excepcionalmente, que alei ordinária vede a fiança porque a liberdade, no Estado Democrático deDireito, é a regra, a prisão à exceção. Veja o texto constitucional do art. 5º:

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

XLIII - a lei37 considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graçaou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes edrogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, poreles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendoevitá-los, se omitirem;

XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de gruposarmados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estadodemocrático;

LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a leiadmitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;

Nesse sentido, a lei ordinária não poderia proibir a fiança semautorização constitucional. O inciso LXVI acima é claro em afirmar que sea lei admite liberdade provisória (cf. art. 310, parágrafo único do CPP)não poderá ser negada, ate porque, repetimos, tal negação somente aConstituição poderia fazê-lo.

Logo, o art. 21 que veda a liberdade provisória vai pelo mesmo ralo dainterpretação que estou fazendo, pois ao negá-la está repristinando a

36 Norma e texto são diversos entre si. Norma é o produto da interpretação de um texto. O mesmotexto pode ter diferentes normas. Texto não subsiste como texto. Não há texto isolado da norma.Contudo, a interpretação deve, e somente pode ser, a luz da Constituição (cf. Streck, Lenio. Ob. cit.p. 243/257).37 A Lei é a 8.072/90.

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prisão obrigatória há muito abolida no direito brasileiro38. O que se podefazer é: o réu preenche os requisitos legais para se beneficiar da liberdadeprovisória? Não. Então o juiz nega o benefício, mas tem previsão em leipara sua concessão. O que não podemos admitir é a proibição legal,infraconstitucional.

Outra questão que tem trazido discussão é a do art. 16 do Estatutoquando se refere a conhecida arma raspada. Se a epígrafe se refere aarma de uso restrito, que tipo de arma deverá ser raspada? Qualquerarma, ou apenas de uso restrito?

Posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito

Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter emdepósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar,remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo,acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização eem desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:

I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal deidentificação de arma de fogo ou artefato (sem grifos no original);

È óbvio, por respeito ao princípio da reserva legal e por amor ahermenêutica jurídica, que o parágrafo diz respeito ao caput, logo armacom numeração raspada somente poderá ser a de uso restrito. Não sendolícito entendermos que poderá ser também uma arma de uso permitidoquando o tipo originário se refere a arma de uso proibido. Se houversupressão ou alteração de marca de arma de uso permitido será outrotipo que não o do artigo 16 em comento.

O golpe de cena foi perfeito. A sociedade acreditou e o governo faturousua popularidade com a aprovação do Estatuto. Mas..... E a violência?Bem, essa vai continuar a existir com seu alto índice enquanto o governonão a encarar com medidas sérias que exigem um olhar para a raiz doproblema: educação, ocupação social ética, trabalho, moradia, saúde,

38 Cf. meu Direito Processual Penal. 11 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 478/480.

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saneamento básico para todos, fim dos bolsões de miséria39, erradicaçãodo trabalho e da exploração infantil, alimentação digna conquistada enão dada como esmola (através de restaurantes populares)40 e,principalmente, seriedade no trato com a coisa pública. Aí sim, acreditoque a violência irá DIMINUIR, mas não acabar.

Preste atenção o leitor: Se pegarmos a riqueza total dos 358 maioresbilionários do mundo isso equivale à renda somada dos 2,3 bilhões maispobres, ou seja, a 45% da população mundial. Se esse bilionáriosdecidissem ficar apenas com US$ 5 milhões para se manter e distribuir oresto, praticamente dobrariam a renda anual de quase metade dapopulação da terra. O que significa dizer: a globalização deixa poucos,muito poucos, mais ricos, e muitos, a maioria, mais pobres41.

Como podem fatos criminais, citados pela mídia, terem acontecidosse o Estatuto do Desarmamento foi aprovado? Ou seja, quem diz que aviolência vai diminuir, em decorrência da aprovação do Estatuto, ou é umimbecil, ou está de má-fé, ou não entende nada de segurança pública.Prefiro acreditar que está de má fé, pois imbecil não ganha dinheirofácil, sem cometer crimes, com o aumento da violência e o ignorante emsegurança pública não se arrisca a dar palpites naquilo que não entende.

Então, fico por aqui.

29 de março de 2004. 23h

39 No caso brasileiro, há 53 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza. Destas, 30 milhõesvivem entre a linha de pobreza e acima da linha da miséria. Cerca de 23 milhões estariam nasituação que se define como indigência ou miséria. A pobreza no Brasil é formada por doisgrandes grupos. Há 30 milhões de pessoas vivendo com extrema dificuldade, donas de uma rendamensal per capita inferior a 80 reais. E há mais 23 milhões que vivem ainda em pior situação,sobrevivendo de maneira primitiva. Não ganham dinheiro bastante para comprar todos os diasalimentos em quantidade mínima necessária à manutenção saudável de uma vida produtiva – ouseja, algo em torno de 2000 calorias (Revista VEJA. Miséria: O Grande Desafio do Brasil, ano35, nº 3, 23 de janeiro de 2002, p. 85).40 De início, é uma atitude louvável dar comida a quem não tem para comer. Contudo, a perpetuaçãodisso, diariamente, com aquelas pessoas catando dinheiro nas ruas (R$1,0) para conseguir ter umaúnica refeição ao dia, é humilhante para elas e, principalmente, para o País. Restaurante popular é oatestado da incompetência estatal, não por conceder alimentação a um preço mais barato, mas porreconhecer que as pessoas não têm o que comer, ou que o dinheiro que ganham (quando ganham) nãoé o suficiente para tanto. O Brasil tem terra fértil, o que se planta, se colhe. Penso que as médias egrandes empresas deveriam ser obrigadas a dar refeição balanceadas, por nutricionistas, à seusfuncionários e o dinheiro poderia ser abatido no imposto de renda para diminuir a carga tributária. Enão, como ocorre, vale refeição que é negociado no mercado paralelo e trocado no comércio pormercadorias. Resultado: trabalhadores mal alimentados, rendimento profissional diminuído e futurosproblemas de saúde com sobrecarga na rede pública de saúde e na previdência social.41 Bauman: 1999, p. 79.

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BATISTA, Vera Malaguti. O Medo na Cidade do Rio de Janeiro: Dois Tempos de umaHistória. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

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________ A Globalização: As Conseqüências Humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

________ Comunidade: A Busca por Segurança no Mundo Atual. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 2003.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do Novo Juiz no Processo Penal. InCrítica À Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 03.

______ Efetividade do Processo Penal e Golpe de Cena: Um Problema às Reformas Processuais.In: Wunderlich, Alexandre (Org.). Escritos de Direito e Processo Penal em Homenagem aoProfessor Paulo Cláudio Tovo. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002, p. 139.

_______ A Crise de Segurança Pública no Brasil. In:Garantias Constitucionais e ProcessoPenal. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002, p. 181.

DUSSEL, Henrique. Ética da Libertação. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.

_________ Método para Uma Filosofia da Libertação. São Paulo: Loyola, 1986.

_________ Hacia Una Filosofía Política Crítica. Bilbao: Desclée, 2001.

HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. São Paulo: Loyola,2002.

OLIVEIRA, Manfredo A. de. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo: Loyola, 1993.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 11 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

ROSENFELD, Michel. A Identidade do Sujeito Constitucional. Belo Horizonte:Mandamentos, 2003.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma Nova Crítica doDireito. 2 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004.

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PROTEÇÃO DA IMAGEM VERSUS LIBERDADEDE INFORMAÇÃO

Rui Stoco - Juiz Substituto em Segundo Grau em São Paulo. Pós-graduado em Direito Processual Civil. Professor e coordenador de

cursos de pós-graduação. Autor da obra “Tratado deResponsabilidade Civil” (Ed. RT)

SUMÁRIO: 1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ACERCA DA PERSONALIDADE, DA IMAGEM E DA INTIMIDADE. 1.1 – Teoria dos direitos dapersonalidade. 1.2 – A imagem, sua visão e meios legais de proteção. 2.LIBERDADE DE INFORMAÇÃO. 3. A PROTEÇÃO DA IMAGEM VERSUSLIBERDADE DE INFORMAÇÃO OU LIBERDADE DE IMPRENSA. 3.1 –Liberdade de pensar e de manifestar o pensamento. 3.2 – Liberdade deinformação e direito à informação. 3.3 – Meios e modos de divulgaçãosocial e seus limites. 3.4 – Abuso do direito de divulgar e informar. 4.CONCLUSÕES.

“Antes de compreendermos as normas, devemos entender o seuobjetivo.” (Paulo José da Costa Júnior, Crimes do colarinho branco. S.Paulo: Saraiva, 2000).

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ACERCA DA PERSONALIDADE,DA IMAGEM E DA INTIMIDADE

1.1 – Teoria dos direitos da personalidade

Localiza-se a elaboração da teoria dos direitos da personalidade na reação

surgida contra o domínio absorvente da tirania estatal sobre o indivíduo.

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A teoria contratualista supôs a existência de um Estado perante o qualos indivíduos depunham sua liberdade em troca da proteção que delereceberiam, o que gerou a categoria dos direitos inatos.1

Essa categoria de direitos à personalidade foi definida por juristasalemães na segunda metade do século passado, especialmente por GAREISe KÖHLER, citados por PACCHIONI E STOLFI2, que os chamouIndividualrechte ou Personalitätsrechte, quer dizer, “direitos individuais”ou “direitos de personalidade”. Utilizaram-se ainda as expressõesIndividualitätsrechte – “direitos da individualidade – ePersönlichkeitsrechte – “direitos sobre a própria pessoa”.

RAVA, GANGI e DE CUPIS falam em “Direitos Essenciais ouFundamentais da Pessoa”; RUI TOMÁS em “Direitos da Própria Pessoa”;WACHTER e BRUNS em “Direitos de Estado” e PUGLIATTI E ROTONDI emDireitos Personalíssimos.3

LIMONGI FRANÇA preferia a expressão “Direitos da Personalidade”,consagrada por quase um século, ou ainda, “Direitos Privados daPersonalidade”.

Durante a elaboração do Código Civil alemão de 1900, os direitos dapersonalidade foram reconhecidos e o § 847 resguarda quatro bens dapersonalidade: a vida, o corpo, a saúde e a liberdade. A estes se acresceramo direito à honra e ao nome, totalizando seis direitos da personalidade.

Modernamente, a estes se juntaram os direitos à própria imagem, direitosobre a voz humana e o direito à própria intimidade.

Daí a lição de VON TUHR, no sentido de que “el cuerpo y la vida, lalibertad, el honor etc., son objeto cuya protección constituye el problemafundamental de todo ordenamiento jurídico”.4

1. DE MATTIA, Fábio Maria. Direitos da personalidade: Aspectos gerais, Revista Forense, Rio deJaneiro, v. 262, p.79.2. PACCHIONI E STOLFI. Nome civile e commerciale. Dizionario Pratico del Diritto Privato, v.4, p. 84.3. CASTÁN TOBEÑAS, José. Derecho Civil Español Común y Foral, 9. ed., Madrid, 1956, t. 1,vol. 2, p. 739.4. VON TUHR, Andreas. Derecho civil. Buenos Aires: Depalma, 1946, vol. 2, p. 187.

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Rui Stoco

Para TRABUCCHI5 deve-se falar em direitos essenciais originários ouinatos porque se pressupõe existam antes do reconhecimento jurídico.O direito objetivo teria como escopo principal garanti-los através de umatutela de modo cada vez mais perfeita, sendo certo que a afirmação dessesdireitos gerou no decorrer dos tempos os grandes movimentos políticosque refletiram, grandemente, nas legislações.

DE CUPIS6, certamente o mais autorizado estudioso da matéria,assevera que os direitos da personalidade são, tão-somente, aquelesconcedidos pelo ordenamento jurídico.

Para nós, hodiernamente, a questão está superada, posto que a CartaMagna de 1988 torna invioláveis a imagem, a honra, a intimidade e a vidaprivada, enquanto atributos da personalidade, no art. 5.º, incisos V e X.

Também os Códigos Civis italiano e português e o projeto de CódigoCivil da França regulam os direitos da personalidade.

O Código Civil Brasileiro de 2002 (Lei n.º 10.406/02) contém um capítuloexclusivo acerca dos direitos da personalidade (art. 11 e seguintes),resguardando, inclusive o direitos da personalidade das pessoas jurídicas(art. 52).

LIMONGI FRANÇA7 os definiu do seguinte modo: “Direitos dapersonalidade dizem-se as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversosaspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim as suas emanações eprolongamentos”.

Em excepcional artigo de doutrina este mesmo autor ensina que os Direitosda Personalidade se distinguem em sentido estrito e em sentido lato:

“Em sentido estrito, é o direito geral e único da pessoa sobre si mesma.Em sentido lato, é, além deste, quanto respeite, outrossim, aos seusdiversos aspectos, projeções e prolongamentos. São Direitos daPersonalidade de natureza pública a generalidade daqueles definidosnas declarações constitucionais dos direitos do cidadão. São de natureza

5. TRABUCCHI, Alberto. Istituzioni di diritto civile, tredicesima edizione riveduta. Padova: Cedam,1962, p. 91.6. DE CUPIS, Adriano. I diritti della personalità. Milão: Dott. A. Giuffrè Editore, 1950.7. LIMONGI FRANÇA, Rubens. Manual de direito civil. 3 ed. São Paulo, Revista dos Tribunais,1975, vol. 1, p. 403.

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social o direito à educação, ao trabalho, ao lazer, ao sossego etc. São denatureza privada todos os que dizem respeito aos aspectos privadosda personalidade, inclusive aqueles que, segundo outras perspectivas, sepossam considerar também como de natureza pública ou social”. 8

Complementa TERESA ANCONA9 que “os direitos da personalidade sãoas prerrogativas do sujeito em relação às diversas dimensões de suaprópria pessoa. Assim, na sua dimensão física exerce o homem os direitossobre sua vida, seu próprio corpo vivo ou morto ou sobre suas partesseparadamente. Isto é o que chamaríamos de direitos sobre a integridadefísica. Como é óbvio, faz parte dessa integridade a saúde física e aaparência estética; por isso foi que afirmamos ser o dano estético, comodano moral, uma ofensa a um direito da personalidade. Outra dimensãodo homem é a intelectual. Como decorrência disto tem a pessoa humanadireito às suas próprias criações artísticas, literárias e científicas, assimcomo tem o direito de manifestar opiniões como lhe convier. É o que oProf. LIMONGI FRANÇA chamava de direitos à integridade intelectual.Finalmente, temos a dimensão moral e é aí que se localiza o gozo dos direitossobre a integridade moral. Dentre esses estão o direito à liberdade, à honra,ao segredo, ao recato, ao nome, ao próprio retrato e à própria imagem”.

Afirmava ORLANDO GOMES10 que “sob a denominação de direitos dapersonalidade compreendem-se os direitos personalíssimos e os direitossobre o próprio corpo. São direitos considerados essenciais aodesenvolvimento da pessoa humana que a doutrina moderna preconizaa disciplina no corpo do Código Civil, como direitos absolutos, desprovidos,porém, da faculdade de disposição. Destinam-se a resguardar a eminentedignidade da pessoa humana, preservando-a dos atentados que podesofrer por parte dos outros indivíduos”.

De tudo se dessume, parafraseando SADY GUSMÃO11, que “a amplitudedesse direito que se expande em uma ausência indiscriminada deobstáculos ao desenvolvimento da atividade do sujeito, que se expande,

8. LIMONGI FRANÇA, Rubens. Direitos da personalidade – Coordenadas fundamentais, Revistados Tribunais, São Paulo, v. 567, p. 13.9. LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 25.10. GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil, Rio de Janeiro; Forense, 1965, p. 131.11. GUSMÃO, Sady Cardoso. Personalidade. Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro,coordenação de J. M. de Carvalho Santos, Rio de Janeiro: Borsoi, v. XXXVII, p. 73.

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assim, em várias direções, de difícil determinação completa, tantas sãoas formas da atividade humana”.

O direito à intimidade, sobre o qual não se pode deixar de mencionar,dada a sua grande importância, tem origem remota, apontando-se ajurisprudência inglesa do século XVIII como o seu berço, embora apariçõesesporádicas surjam em registros mais antigos.

Fato inconteste é que assume inicialmente o caráter de proteção aodomicílio para mais tarde evoluir para outras modalidades.12

Concordam os autores ter sido nos Estados Unidos da América, emfins do século passado, onde se estabeleceu a prática verdadeira do “rightof privacy” ou “right to be let alone” a partir da obra de WARREN eBRANDEISS.13

Em França foi também a jurisprudência que, por primeiro, à falta denormas específicas, prestou contribuição efetiva e fundamental para oreconhecimento do direito à vida privada, só introduzido na legislaçãodaquele país em 1970.

Nesse país, conforme esclarece JEAN-JACQUES ISRAEL14, a liberdadeda vida privada está regulamentada na Lei de 17.07.1970 e pelo art. 9.º doCódigo Civil, acrescentando que proteger a vida privada significa asseguraro direito integral da pessoa em toda a sua esfera de proteção.

O referido artigo 9.º do Código Civil Francês dispõe:

Article 9o. – Les juges peuvent, sans préjudice de la réparation dudommage subi, prescrire toutes mesures, telles que séquestre, saisieet autres, propres à empêcher ou faire cesser une atteinte à l’intimitéde la vie privée; ces mesures peuvent, s’il y a urgence, être ordonnéesen référé.

(Os juízes podem, sem prejuízo da reparação do dano suportado,prescrever todas as medidas, tais como seqüestro, penhora e outras,

12. FERREIRA, Ivette Senise. A intimidade e o direito penal, Revista Brasileira de Ciências Criminais,São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 5, janeiro-março/94, p. 97.13. WARREN E BRANDEIS. The right of privacy. Harvard Law Review, 1890, p. 193.14. ISRAEL, Jean-Jacques. Droit des libertés fondamentales. Paris: LGDJ, 1998, p. 383.

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especialmente para impedir ou fazer cessar um atentado à intimidadeda vida privada; tais medidas podem, se houver urgência, serapressadas).

Aliás, nessa esteira, o art. 7.º do Código Civil italiano permite ao titulardo direito ao uso do nome requerer a cessação das atividades queimpeçam o exercício do seu direito, de modo a possibilitar a inibição douso ilegítimo do nome por outrem:

Art. 7.º – Tutela del diritto al nome – La persona, alla quale si contestiil diritto all’uso del proprio nome o che possa risentire pregiudiziodall’uso che altri indebitamente ne faccia, può chiedere giudizialmentela cessazione del fatto lesivo, salvo il risarcimento dei danni. L’autoritàpuò ordinare che la sentenza sia pubblicata in uno o più giornali.

Como se verifica, a preservação da intimidade, da imagem da pessoaou do seu vultus vem alcançando status de prioridade nas legislaçõesmais avançadas de outras nações.

Em França, como visto, a tutela para proteções que tais ganhou forosde exclusividade, protegendo-se a privacidade das pessoas e o resguardode sua imagem como bem da vida e direito fundamental, a ponto depermitir toda e qualquer medida – ainda que antecipada, de naturezacautelar – para seu amparo efetivo.

No Brasil, como acima observado, a Constituição Federal de 1988, emseu art. 5.º, inciso X, afirmou não só a inviolabilidade da intimidade e davida privada, como – para dar concreção a essa garantia de resguardo enão tornar a regra meramente programática – assegurou o direito deindenização no caso de sua violação.

Alçou, pois, o direito à intimidade e de inviolabilidade da vida privadaà condição de princípio irretirável, posto protegido como cláusula pétrea.

Diz-se que o denominado direito à personalidade, que engloba todosos aspectos acima enumerados, tais como a imagem, a honra, o segredo,o recato, o resguardo, o nome, o próprio retrato, a intimidade, o direitode estar e ficar só, constitui patrimônio intocável do indivíduo ejuridicamente tutelado.

É o que se verá à luz de princípios estabelecidos na ConstituiçãoFederal, que protegem tanto o direito de personalidade quanto a liberdade

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de informação, mas tendo em vista o princípio não escrito ou supralegal,que convencionamos chamar de “relatividade dos direitos”.

1.2 – A imagem, sua visão e meios legais de proteção

A imagem deve ser vista sob a ótica de dois planos e, ainda, segundosua projeção, ou seja, sob o ponto de vista de quem dela tem notícia.

A primeira visão é da pessoa sobre si mesma e o juízo de valor quedela própria faz (visão ou plana interna).

Esse conceito de si mesmo servirá para o suposto ofendido de parâmetropara avaliar o comportamento do autor da ofensa.

A segunda visão é o juízo que terceiro faz de determinada pessoa (visãoou plana externa), sendo certo que nem sempre a impressão que esteterceiro faz de nós coincide com o conceito que fazemos de nós mesmos.

Significa que projetamos várias imagens como fotografias e projeçãode nosso vultus: política, social, profissional e tantas outras multifacesque reveladas, assumem feição e características próprias, ainda que nãoconcordemos com a chamada visão externa, posto que diversa da interna(de nós sobre nós mesmos).

Se a ofensa à nossa imagem, enquanto atributo da personalidade,relaciona-se e tem vínculo com nossa atuação política ou como candidatoa cargo eletivo, a questão assume feição eleitoral. Se a relação é com anossa intimidade e vida privada, a questão posta-se no âmbito do DireitoConstitucional e Civil e a solução é o resguardo do direito de personalidadee a reparação civil (CF/88, art. 5o, incisos V e X), posto que o importante,neste caso, é que a imagem constitui o sinal sensível da personalidade:traduz para o mundo exterior o ser imaterial da personalidade, delineia-a, dá-lhe forma.

Assumindo contornos de calúnia, difamação ou injúria, o resultadoserá a responsabilização penal, política e civil; as duas primeirasoriginalmente e a última conseqüencial, posto que a condenação noâmbito criminal faz coisa julgada no cível, ou original, se colocada aquestão substancial em discussão na esfera civil.

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E, de acordo com o meio ou veículo utilizado, o resgate da ofensa sedará à luz da Lei de Imprensa, assumindo regramento próprio, inclusivecom direito de resposta, previsto nesse Estatuto.

Note-se, portanto, que a nossa legislação está pronta para atender atodos esses aspectos e assim deve ser, tendo em vista a independênciadas instâncias.

2. LIBERDADE DE INFORMAÇÃO

A liberdade da imprensa das empresas noticiosas e dos meios dedivulgação e de informação decorre de um princípio maior econstitucionalmente assegurado, que é o da “livre manifestação dopensamento”, estatuído no art. 5.º, inciso IV, da Carta Magna, e firmadocomo direito e garantia fundamental.

Com mais especificidade o art. 220 dessa Carta de Princípios preceituaque “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e ainformação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerãoqualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.

Mas o princípio escrito decorre do direito natural que o antecede,pois não se pode conceber o homem que não seja livre para manifestarseu pensamento, suas idéias, anseios e posições.

A atual Lei de Imprensa (Lei 5.250, de 1967) preceitua no art. 1.º: “É livrea manifestação do pensamento e a procura, o recebimento e a difusão deinformações ou idéias, por qualquer meio, e sem dependência de censura,respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer”.

Fundamental observar que o preceito, ao mesmo tempo em quegarantiu a liberdade de manifestação do pensamento e, em resumo, aliberdade de noticiar e de informar, afastou os óbices pertinentes aosmeios de divulgação; impediu a dependência da notícia a alguma condiçãoe proibiu a censura, seja prévia ou posterior.

Aliás, o mesmo art. 5.º da CF/88 consagrou no inciso IX a livre expressãoda atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,independentemente de censura ou licença.

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Entretanto, estabeleceu o limite da notícia: a divulgação deve estarcontida na normalidade e na fidelidade do fato, pois proíbe-seexpressamente o abuso.

Consagrou-se então o entendimento de que a liberdade de imprensa,embora sendo garantida por preceito constitucional, não se constitui, comose verá, em direito absoluto, devendo ser exercida com consciência eresponsabilidade, respeitando outro valores também importantes eigualmente protegidos.

3. A PROTEÇÃO DA IMAGEM VERSUS LIBERDADE DE INFORMAÇÃOOU LIBERDADE DE IMPRENSA

3.1 – Liberdade de pensar e de manifestar o pensamento

A manifestação do pensamento e a liberdade de imprensa, emboraasseguradas e resguardadas pela Constituição Federal, poderão sofrerlimitações em circunstâncias excepcionais.

Invoque-se como exemplo o que ocorre em período eleitoral, quandoa imagem política do candidato, partido, coligação, assumem maior valiae despertam mais atenção e curiosidade, de modo que os veículos deinformação e os homens de imprensa não podem emitir qualquer juízode valor, de ordem subjetiva, seja ele positivo ou negativo, acerca docandidato, sob pena de sanção pecuniária (art. 45, III da Lei n.º 9.504/97).

É, aliás, o que assentou a Corte Superior Eleitoral, afirmando que: “Asrestrições que a liberdade de imprensa tem no período eleitoral assentam-se em princípios outros que buscam bem assegurar o processo eleitoral,com suporte também na Constituição”.15

Veja-se que em seu art. 5o, incisos V e X a Constituição Federal protegea intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, enquantoatributos da personalidade.

15. TSE, Acórdão 3.012, de 28.02.2002, Agr. no Agr. Instr. 2.012, Classe 2a/SP, Rel. Min. Sálvio deFigueiredo, Ementário de Decisões do TSE, p. 12, maio/2002.

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Mas, como se fora a outra face da mesma moeda, essa Carta dePrincípios também assegura a inviolabilidade da liberdade de consciência(inciso VI), a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística,científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença(inciso IX) e a liberdade de manifestação do pensamento (inciso IV).

Essa proteção e liberdades constituem garantias fundamentais docidadão e direitos irretiráveis, posto que considerados como cláusulapétrea pela própria Constituição Federal.

Portanto, de um lado, afirma e protege o direito de personalidade e,de outro, a liberdade de expressão, de manifestação do pensamento ede comunicação sem que se possa disso inferir contradição lógica ouconflito de preceitos de ordem constitucional.

Importante lembrar que o art. 220 dessa mesma Carta Magna tambémassegura o direito à informação jornalística, como veículo de comunicaçãosocial, agora, apenas sob esse particular aspecto, não mais como garantiafundamental, de modo que, nessa parte, pode ser objeto de alteraçãoatravés do Poder Constituinte Derivado, ou seja, com a utilização deEmenda Constitucional, dispondo o art. 220:

“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e ainformação sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerãoqualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

“§ 1o – Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraçoà plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo decomunicação social, observado o disposto no art. 5o, IV, V, X, XII e XIV.

“§ 2o – É vedada toda e qualquer censura de natureza política,ideológica e artística”.

Nesse quadro de licença e proteção inclui-se, ainda, a liberdade deopinião, que se resume à própria liberdade de pensamento em suasinúmeras formas de expressão.

Um dos aspectos externos da liberdade de opinião é a liberdade demanifestação do pensamento, protegida no art. 220 da Carta Magna, acimatranscrito.

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Como observou JOSÉ AFONSO DA SILVA, “trata-se da liberdade de oindivíduo adotar a atitude intelectual de sua escolha, quer um pensamentoíntimo, quer seja a tomada de posição pública; liberdade de pensar edizer o que se crê verdadeiro”.16

Esse mesmo autor ensina que a liberdade de comunicação consistenum conjunto de direitos, formas, processos e veículos, que possibilitama coordenação desembaraçada da criação, expressão e difusão dopensamento e da informação” (ob. cit., p. 221).

A liberdade de pensamento “é o direito de exprimir, por qualquerforma, o que se pense em ciência, religião, arte, ou o que for”.17

Todo homem tem liberdade de pensar e seu interior é imperscrutável,pois outrem não consegue ingressar no íntimo e interior da pessoa, ouseja, no centro de sua psique, nem se admite que se faça essa incursão poroutros meios tecnicamente possíveis, seja através da hipnose, de aparelhosde medição, seja por qualquer outro meio, sem autorização expressa.

O ato de pensar, como manifestação psíquica interna e livre do serhumano, enquanto não é exteriorizado ou comunicado a outrem,encontra-se interiorizado e, assim, fora de todo poder social e de avaliação.

Até então é do domínio somente do próprio homem, de sua inteligênciae de Deus, como observou o Padre JOSÉ SCAMBINI.18

Mas além da liberdade de pensar, tem liberdade de expressar ouexteriorizar o seu pensamento sem censura prévia.

3.2 – Liberdade de informação e direito à informação

Impõe-se, ainda, para que este breve bosquejo não reste incompleto,lembrar a existência de nítida distinção entre liberdade de informação edireito à informação.

16. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9. ed., 3. Tiragem. São Paulo:Malheiros, p. 220.17. SAMPAIO DÓRIA. Direito Constitucional – Comentários à Constituição de 1946, v. 3, p. 602.18. SCAMBINI, José (Padre). Liberdade Religiosa nas Constituições Brasileiras. Petrópolis-Rj.:Vozes, 1978, p. 103.

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O direito de informar ademais de constituir um direito individual,espraia-se também no direito coletivo de informar e alcança os meios dedivulgação, geralmente constituídos em pessoas jurídicas, encontrandosupedâneo na liberdade de manifestação do pensamento como gênero.

O direito à informação liga-se ao conceito de cidadania. Toda pessoatem direito à informação, segundo o conceito de liberdade plena afirmadopela CF/88, assegurando-se o conhecimento de atos, de acontecimentos,de situações de interesse geral e particular, de obter certidões, de sercomunicado da existência de processos e procedimentos contra si, de teracesso aos registros públicos e de registros relativos a sua própria pessoa.

Em termos de maior especificidade tem-se a liberdade de informaçãojornalística, ou seja, a informação e a notícia através dos meios decomunicação antigos e modernos, constituídos pela imprensa falada(rádio), escrita (jornais, revistas e periódicos) e televisada (canais abertose fechados de televisão) e, ainda, através da Internet ou Intranet.

Essa liberdade a que se refere o art. 220, § 1o da CF/88, como se verifica,não se limita apenas à liberdade de imprensa em seu sentido estrito.

A informação por esses meios alcança qualquer forma de difusão denotícias, opiniões, comentários, registros e constatações.

3.3 – Meios e modos de divulgação social e seus limites

Pode-se dizer que em certos momentos a mídia ou os meios de comunicaçãode massa não só dão a notícia mas também “criam” a notícia ou criam situaçõespara que se transformem em notícia. O avanço desse conceito tem levado àcriação de fatos pela própria mídia para, em seguida, divulgá-los.

Quando um acontecimento verdadeiro é dramatizado e noticiadoatravés de interpretação teatral ou por personagens fictícios ou, ainda,através de “interpretação” factual, tem-se a divulgação de fato verdadeiromas modificado em sua fidelidade casual.

Embora admitidas, em tese, essas técnicas, o meio empregadocontamina, fragiliza e até desvirtua o resultado, passando este a

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apresentar poder ofensivo e danoso, sendo certo que o excesso poderácaracterizar abuso do direito de informar e converter-se emcomportamento punível, seja no âmbito criminal como no âmbito civil.

Tem-se então o que podemos chamar de ilícito por contaminação do meio.

Com a sua enorme capacidade de poetizar e versejar pilheriando,EDUARDO GALEANO escreveu: “La televisión, muestra lo que ocurre? Ennuestros países, la televisión muestra lo que ella quiere que ocurra; ynada ocurre si la televisión no lo muestra. La televisión, esa última luzque te salva de la soledad y de la noche, es la realidad. Porque la vida esun espectáculo: a los que se portan bien, el sistema les promete umcómodo asiento”.19

Já disse MARX20, citado por JOSÉ AFONSO DA SILVA21: “A imprensalivre é o espelho intelectual no qual o povo se vê, e a visão de si mesmoé a primeira confissão de sabedoria”.

Mas, não obstante a dicção do art. 220 da CF/88, impõe-se não esquecerda advertência de JOSÉ AFONSO DA SILVA22 ao observar: “A liberdade demanifestação do pensamento tem seus ônus, tal como o de o manifestanteidentificar-se, assumir claramente a autoria do produto do pensamentomanifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos aterceiros.

Daí porque a Constituição veda o anonimato.

A manifestação do pensamento, não raro, atinge situações jurídicasde outras pessoas a que socorre o direito, também fundamental eindividual, de resposta.

Há dois séculos passados obtemperou CHASSAN23 que “a liberdadeilimitada da palavra e da imprensa, isto é, a autorização de tudo dizer e

19. GALEANO, Eduardo. La television/2.20. MARX, Karl. Debate sobre a liberdade de imprensa e comunicação (série de artigos publicadosno Rhemische Zeitung, em 5, 8, 10, 12 e 19.05.1842. In: Karl Marx. A liberdade de Imprensa,Porto Alegre: L & PM Editores, 1980, p. 42, trad. De Cláudia Schiling e José Fonseca).21. SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 223.22. IDEM. Ob. cit., p. 222.23. CHASSAN. Traité des délitis et contraventions de la parole, de l’écriture et la presse. 2. ed.,1851, v. I, p. 5.

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tudo publicar, sem expor-se a uma repressão ou a uma responsabilidadequalquer é, não uma utopia, porém, uma absurdidade que não pode existirna legislação de nenhum povo civilizado”

O Tribunal de Justiça de São Paulo também assentou entendimentoparelho, quando decidiu:

Ação Civil Pública. Objetivo de proibição de nova veiculação, emprograma de televisão, de cenas de agressão e tortura contra criança.– “Os direitos constitucionais previstos no art. 220 da Constituição daRepública não são plenos, sofrendo limitações sempre que suamanifestação puder ofender ou restringir outras garantiasconstitucionais atribuídas a terceiros”. 24

Do que se dessume que a solução prática e a perfeita interação econvivência dos preceitos exige de cada qual que se comporte com cautelae seriedade, pois se a divulgação de informação é um direito, a fidelidadeao fato, a ausência de excessos ou de sensacionalismo é um dever.

Não se admitem insinuações, interjeições, dubiedades,sensacionalismo ou dramatização ofensiva ou perniciosa sobre fatosverdadeiros.

Condena-se e pune-se no âmbito civil tanto a notícia falsa, forjada esem pertinência fática, ou seja, a notícia inexistente no plano fenomênico,como a notícia verdadeira mas travestida, desvirtuada ou divulgada comexcesso e abuso.

Como se verifica, ao mesmo tempo em que a Carta Magna protege apessoa no que tem de mais sagrado (além da vida), que é a suapersonalidade, de que são espécies a intimidade, a vida privada, a honrae a imagem, também assegura a liberdade de imprensa e a divulgação,sem censura prévia, de fatos da vida e do cotidiano.

Não há como afirmar que a liberdade de imprensa se sobrepõe aosdireitos individuais fundamentais do cidadão ou, por outro lado, que aimprensa deva ficar, invariavelmente, coarctada e impedida de divulgare informar em face daqueloutros direitos.

24. TJSP, Câm. Esp., Ap. 84.312-0, Rel. Des. Denser de Sá, j. 01.04.2002.

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Tão importante quanto preservar e resguardar a individualidade e aintimidade das pessoas, quando necessário, é assegurar o direito dedivulgação dos fatos pela imprensa quando estes alcancem dignidade einteresse público ou social que suplante aqueles.

A divulgação de fatos verdadeiros, tal como ele ocorreram no mundofenomênico, ademais de legítima é necessária e salutar.

Já se disse que “a liberdade de imprensa é valor indissociável dademocracia” e que “sem a liberdade de imprensa fica mais difícil oexercício das demais liberdades”.25

3.4 – Abuso do direito de divulgar e informar

Essa divulgação só não encontrará legitimidade, nem dignidade dedireito assegurado, quando ocorra o abuso do direito de informar edivulgar.

Este abuso pode ser identificado quando se noticia fato (ou imagem)não verdadeiro; quando o fato, apesar de verdadeiro, é desvirtuado,deturpado, “dramatizado”, caricaturizado ou satirizado, de modo a tornar-se ofensivo e danoso; nas hipóteses de calúnia, injúria e difamação;quando o fato, embora verdadeiro e divulgado corretamente e comexação, encontra vedação legal (como, por exemplo, no caso dos menoresde dezoito anos ou na difusão de opinião favorável ou contrária a candidato,partido político ou coligação e a seus órgãos ou representantes, a partirdo dia 1o de julho do ano de eleição, por força da Lei das Eleições) ou,ainda que verdadeiro e divulgado correta e adequadamente, tem o poderde causar gravame, submeter ao ridículo, denegrir a imagem da pessoa,tornar sua vida insuportável ou arruinar sua vida privada ou profissional.

Como afirmamos em outra obra de nossa autoria: “O abuso do direito,em palavras simples e objetivas, pressupõe licitude no antecedente eilicitude no conseqüente, pois originariamente o agente lança mão deum direito mas o exerce com excesso ou com abuso. Então, o ato que era

25. TSE, Rec. na Repr. 105, Classe 30a/DF, Acórdão 105, Rel. Min. Edson Vidigal, j. 15.09.98.

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inicialmente lícito, em um segundo momento converte-se em ilícito peloexcesso e não em razão da sua origem”.26

Ensinou JOSSERAND: “Os direitos se realizam não em uma direçãoqualquer, mas em uma ambiência social, em função de sua missão e naconformidade destes princípios que são, como se disse, subjacentes àlegalidade, e constituem, em seu conjunto, um direito natural de conteúdovariável e como uma superlegalidade. É a teoria do abuso do direito queo mantém em seu caminho, e o impede de se afastar dele, conduzindo-o, assim, num impulso seguro até a finalidade a atingir”.27

Consoante RIPERT E BOULANGER28: “Quando se usa do seu direito, oato resultante é lícito; se ele for ilícito, é que se ultrapassou seu direito,portanto, age-se sem direito”. (quand on use de son droit, l’act accompliest licite, s’il est illicite, c’est qu’on dépasse son droit, donc que l’on agitsans droit).

O mesmo JOSSERAND29 ensinava que o titular de direito subjetivo pode,ao exercê-lo, fazê-lo de tal maneira que transgride as normas do direitoobjetivo, caracterizando-se aí o abuso do direito.

Ainda mais preciso, o jurista português CUNHA DE SÁ30 observou que“o abuso do direito traduz-se, pois, num ato ilegítimo, consistindo a suailegitimidade precisamente num excesso de exercício de um certo edeterminado direito subjetivo”.

4. CONCLUSÕES

Deve-se, portanto, entender que não há mais possibilidade do serhumano viver isolado e sem comunicação com as pessoas.

26. STOCO, Rui. Abuso do direito e má-fé processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.143.27. JOSSERAND, Louis. De l’espirit des droits e de le leur rélativité. 1927, p. 415.28. RIPERT E BOULANGER. Traité de droit civil d’après le Traité de Planiol. t. 2, n. 295.29. JOSSERAND, Louis. Evolutions et actualités, p. 89.30. CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do direito. Coimbra: Livraria Almedina, 1997,reimpressão da edição de 1973, p. 103.

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A globalização tornou o homem um ser universal, que não podeprescindir – seja para satisfação pessoal, interesse social ou por exigênciaprofissional – do relacionamento, da interação e da comunicação einformação.

A dificuldade, portanto, é encontrar o ponto de equilíbrio, de modo aassegurar a liberdade de imprensa sem deixar de proteger os direitosindividuais tidos como fundamentais.

Como já afirmado alhures, “a imagem é a projeção dos elementosvisíveis que integram a personalidade humana, é a emanação da própriapessoa, é o eflúvio dos caracteres físicos que a individualizam.

“A sua reprodução, conseqüentemente, somente pode ser autorizadapela pessoa a que pertence, por se tratar de direito personalíssimo, sobpena de acarretar o dever de indenizar que, no caso, surge com a suaprópria utilização indevida.

“É certo que não se pode cometer o delírio de, em nome do direito deprivacidade, estabelecer-se uma redoma protetora em torno de umapessoa para torná-la imune de qualquer veiculação atinente à sua imagem;todavia, não se deve exaltar a liberdade de informação a ponto de seconsentir que o direito à própria imagem seja postergado, pois a suaexposição deve condicionar-se à existência de evidente interesse público,a ser satisfeito, de receber informações, isso quando a imagem divulgadanão tiver sido captada em cenário público ou espontaneamente”.31

Em suma, o resguardo da intimidade não implica necessariamentenum isolamento, na segregação social quando seja conveniente à pessoa,mas “numa conduta de resguardo das interferências alheias, de não ser oindivíduo importunado pela curiosidade ou pela indiscrição, de poderdesfrutar a sua paz de espírito e ver respeitados os atributos de suapersonalidade, frente aos outros indivíduos ou ao Estado”.32

Afirmou PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR: “Certamente as barrasdivisórias das esferas da vida privada não deverão ser rígidas, e sim, pelo

31. STJ, 4.ª T., REsp. 58.101-SP, Rel. César Asfor Rocha, j. 16.09.1997, RSTJ 104/326.32. FERREIRA, Ivette Senise. A intimidade e o Direito Penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais,São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 5, p. 96, janeiro-março/94.

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contrário, flexíveis e elásticas. Desse modo, sua maior ou menor amplitudepoderá depender da categoria social à qual pertençam os respectivostitulares”.33

E acrescentou:

“Se se tratar de pessoa notória, o âmbito de sua vida privada haveráde reduzir-se, de forma sensível. E isto porque, no tocante às pessoascélebres, a coletividade tem maior interesse em conhecer-lhes a vidaíntima, as reações que experimentam e as peculiaridades queoferecem”.34

Também JOSÉ ROBERTO NEVES AMORIM entende que “certasintromissões devem ser toleradas, principalmente quando se trata depersonalidades notórias, podendo haver a autorização para divulgação”.35

Nessa mesma esteira posicionava-se o saudoso e pranteado BITTAR:

“Excepciona-se da proteção a pessoa dotada de notoriedade e desdeque no exercício de sua atividade, podendo ocorrer a revelação defatos de interesse público, independentemente de sua anuência.Entende-se que, nesse caso, existe redução espontânea dos limitesda privacidade (como ocorre com os políticos, atletas, artistas e outrosque se mantêm em contato com o público com maior intensidade).Mas o limite da confidencialidade persiste preservado: assim sobrefatos íntimos, sobre a vida familiar, sobre a reserva no domicílio e nacorrespondência não é lícita a comunicação sem consulta aointeressado. Isso significa que existem graus diferentes na escala devalores comunicáveis ao público, em função exatamente da posiçãodo titular, dentro dos círculos já referidos”.36

Sempre nos pareceu que o grau de resguardo e de tutela das pessoasfamosas e notórias não pode ser o mesmo do homem comum, até porquea fama e o prestígio costumam ser a meta optata de certas pessoas ecelebridades e, assim, o meio e modo pelo qual obterão esse desiderato.

33. COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Agressões à intimidade – O episódio Lady Di, São Paulo,Malheiros, 1997, p. 27.34. IDEM, ob. cit. p. 27-28.35. AMORIM, José Roberto Neves. Direito sobre a história da própria vida, Revista dos Tribunais,São Paulo, v. 749, p. 127, março de 1998.36. BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade, apud AMORIM, José Roberto Neves.Direito sobre a história da própria vida, Revista dos Tribunais, v. 749 , p. 127, março de 1998.

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Portanto, pode-se afirmar que essa invasão da privacidade por partedos meios de comunicação (imprensa ou mídia) é consentida, ainda quede forma tácita, na medida em que não há fama se a imagem não éexteriorizada e divulgada pelos meios que a tecnologia dispõe.

Como observado, evidente que uma pessoa famosa, extremamenteconhecida e que, às vezes, vale-se da mídia para ganhar notoriedade oumanter a fama, não pode dizer-se incomodada com o assédio da imprensa.

Paga, em verdade, o ônus de ser famosa.

Também as autoridades públicas de grande projeção no podemreclamar ou invocar o direito à intimidade quando seus passos, atospraticados no exercício profissional, viagens e passeios são divulgados ecomentados, como os Chefes de Poder, Ministros de Estado, atores decinema e teatro, esportistas e outras celebridades.

De tanto quanto exposto, vê-se que a questão é complexa e nãoencontra resposta satisfatória.

RENÉ DOTTI mostrou que a alegada e suposta existência de umahierarquia entre os direitos não se mostra como solução, assim semanifestando: “As limitações reciprocamente impostas não resultam dahierarquia entre as liberdades em conflito – posto não ser adequado umcritério de superposição – mas das circunstâncias que interferem emcada situação concreta. Em algumas delas, deve ser consideradoprevalecente o direito à intimidade; em outras, deve-se ter comoprioritário o direito à informação”.37

Do que se conclui que nem a pessoa humana tem direito absoluto denão ter sua imagem divulgada, nem a imprensa tem o direito absoluto deinvadir a intimidade e a privacidade das pessoas ou divulgar imagens enotícias sem perquirir suas conseqüências.

Lembrou esse notável e admirado jurista RENÉ DOTTI: “Antes, porém,de qualquer tentativa de proposição acerca da possível compatibilidade,

37. DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Revistados Tribunais, 1980, p. 181.

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é preciso reconhecer que não existem direitos ilimitados. Todos eles,desde o mais fundamental que é a vida, comportam privações e limitações:as penas de morte e de prisão; as sanções patrimoniais; o confinamento;o banimento; as buscas e apreensões; a desapropriação; o confisco etantas outras providências postas em movimento com o objetivo desatisfazer interesses coletivos ou individuais, são alguns exemplosdaquelas. Tais limitações, resultam da imposição da vida em sociedadeem suas mais diversificadas expressões”.38

Se, de um lado, a liberdade de informação é uma regra, por outro, adignidade da pessoa humana é um dogma e deve, como tal, sempre serpreservada, sob pena de responsabilidade e obrigação de reparar aviolação e ofensa.

É, portanto, a relatividade desses direitos contrapostos que estabeleceo ponto de equilíbrio e estabelece as balizas e limites além dos quais seingressa no campo do abuso do direito ou mesmo do abuso do poder,convertendo o ato legítimo no antecedente em ilegítimo no conseqüentepelo desbordamento do seu exercício, ingressando-se, a partir dessemomento, no campo da responsabilidade penal ou civil e nascendo, então,a obrigação de reparar e o direito de obter essa reparação.

Enfim, as questões relativas ao tema e a ocorrência de abuso que seconverta em calúnia, difamação, injúria ou mesmo em comportamentoilícito e indenizável devem ser analisadas de per si, caso a caso, semregras preestabelecidas, sob pena de equívocos e erros não admitidos.

A única regra a seguir traduz-se na correta interpretação da Carta Magna,dando aos preceitos acima abordados exegese que conduza à suaharmonização e não à supremacia de uma norma sobre a outra ou a exclusãodesta por aquela, todas elas com dignidade e status de garantia constitucionale aptas a realizar os fins a que se destinam e, portanto, na obediência aosdireitos do seu semelhante, sem ultrapassar ou abusar do próprio direito.

O segredo está na forma de exercitar esses direitos e dos seus limites,de modo que o exercício anormal de um direito constitucionalmenteassegurado não invada a esfera de proteção dos direitos de outros, tambémconstitucionalmente assegurados.

38. DOTTI, René Ariel. Ob. cit., p. 176.

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MEDIDAS DE URGÊNCIA NA FASE DEADMISSIBILIDADE DE RECURSO ESPECIAL

OU EXTRAORDINÁRIO NO TRIBUNAL AQUO – RECURSO DA DECISÃO DO

PRESIDENTE OU VICE-PRESIDENTE –DESCABIMENTO DE MANDADO DE

SEGURANÇA NA ORIGEMJ. E. Carreira Alvim - Desembargador do Tribunal Regional Federal

da 2ª Região. Doutor em Direito pela UFMG; professor-adjunto deDireito Processual Civil da Faculdade de Direito da UFRJ; membro do

Instituto de Pesquisa e Estudos Jurídicos – IPEJ-RJ

SumárSumárSumárSumárSumárioioioioio: 11111..... Introdução. 2.2.2.2.2. Recursos especial e extraordinário. 3.3.3.3.3. Efeitosdos recursos especial e extraordinário. 4.4.4.4.4. Efeito suspensivo a recursoespecial ou extraordinário a ser interposto. 5.5.5.5.5. Medida cautelar na fasede admissibilidade de recurso especial ou extraordinário. 6.6.6.6.6. Naturezada competência para medida cautelar na pendência de juízo deadmissibilidade no tribunal a quo. 77777..... Descabimento de mandado desegurança na fase de admissibilidade de recurso especial ouextraordinário. 8.8.8.8.8. Recurso da decisão do presidente ou vice-presidenteem medida cautelar perante o tribunal a quo. 9.9.9.9.9. Considerações finais.

1. INTRODUÇÃO

O sistema processual brasileiro bem que poderia ser denominado“sistema recursal”, tamanho o número de recursos nominados por ele

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admitidos, pois, mesmo quando esgotados todos os recursos previstosem lei, a jurisprudência se inclina em admitir um “espectro de recurso”como os embargos declaratórios com efeitos modificativos, ou até a maisextravagante teratologia recursal, concebida pelo antiprocessualismo, queé o mandado de segurança contra ato judicial.

O mandado de segurança, criado como garantia constitucional paratutela de direito líquido e certo em face da Administração Pública, hámuito foi despido da sua majestática posição de garantia da jurisdiçãoconstitucional das liberdades —, habeas corpus, habeas data e mandadode segurança – transformado em recurso ordinário na Justiça do Trabalhoe nos Juizados Especiais estaduais, em que o juiz é transformado deagente julgador em autoridade coatora, e seus eventuais erros dejulgamento, em ilegalidade ou abuso de poder.

Recentemente, o mandado de segurança tem sido utilizado “a torto ea direito” como sucedâneo recursal, na fase de admissibilidade de recursoespecial ou extraordinário, casos em que tribunais a quo vêm cassando,em sede mandamental, decisões do presidente ou vice-presidente,usurpando, por essa via, a competência do tribunal ad quem (STJ ou STF).

2. RECURSOS ESPECIAL E EXTRAORDINÁRIO

Os recursos especial e extraordinário são recursos com assento naConstituição, estando o especial previsto no art. 102, III, “a” a “c”, e oextraordinário no art. 105, III, “a” a “d”, tendo por objetivo, o primeiro depreservar a uniformidade da legislação infraconstitucional em todo oterritório nacional, e o segundo, a supremacia dos preceitos e princípiosconstitucionais também sobre todo o território do País.

A competência para julgar o recurso especial é, sabidamente, doSuperior Tribunal de Justiça, e para julgar o recurso extraordinário, doSupremo Tribunal Federal, embora sujeitos ambos os recursos a juízoprovisório de admissibilidade perante o tribunal de origem.

Nos termos do art. 541 do CPC, o recurso extraordinário e o recursoespecial, nos casos previstos na Constituição Federal, são interpostosperante o presidente ou vice-presidente do Tribunal recorrido, em

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petições distintas, que devem conter os requisitos previstos nos incisos Ia III, dentre os quais “a demonstração do cabimento do recurso interposto”.Se tais recursos se fundarem em dissídio jurisprudencial, deve orecorrente fazer a prova da divergência nos moldes previstos no parágrafoúnico do art. 541.

Reza o art. 542 do CPC que, recebida a petição recursal pela secretariado tribunal, intima-se o recorrido para apresentar suas contra-razões —,prazo este de quinze dias (art. 508) —, findo o qual os autos são conclusosao órgão competente (presidente ou vice-presidente, conforme oregimento interno) para admissão ou não do recurso, também no prazode quinze dias (art. 542, § 2º), em decisão fundamentada.

Se os recursos especial e extraordinário não forem admitidos, dessadecisão de inadmissão no tribunal de origem, que é uma decisãointerlocutória monocrática do presidente ou vice-presidente, cabe agravode instrumento, no prazo de dez dias, para o Superior Tribunal de Justiçaou para o Supremo Tribunal Federal, conforme o caso, observado odisposto no art. 544 do CPC, agravo este que não está sujeito a exame deadmissibilidade no tribunal de origem.

Portanto, os recursos especial e extraordinário são recursos que,inobstante o juízo de admissibilidade no tribunal a quo, admitidos ounão-admitidos, sobem, de qualquer jeito, ao tribunal de destino, com aúnica diferença de que, na primeira hipótese sobem nos próprios autos,e, na segunda, por traslado no bojo de agravo de instrumento. Por essarazão, costumo dizer, que o presidente ou vice-presidente do tribunal deorigem faz aí o papel de verdadeira “rainha da Inglaterra”, porque sedecidir que o recurso interposto sobe, ele sobe (nos próprios autos) e, sedisser que não sobe, ele sobe do mesmo jeito (em agravo de instrumento)ao tribunal de destino.

3. EFEITOS DOS RECURSOS ESPECIAL E EXTRAORDINÁRIO

Os recursos especial e extraordinário são recursos dotados ex vi legisde efeito somente devolutivo, nos termos do § 2º do art. 542 do CPC, oque possibilita o cumprimento ou execução provisória da sentença (art.

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475-O) — conforme se trate de obrigação de fazer, não fazer, entregarcoisa ou pagar quantia certa — ou do acórdão se tiver havido recurso (art.512), ou, ainda, da decisão monocrática (art. 557, § 1º-A).

Embora o art. 475-I fale em cumprimento da sentença e o art. 475-Oem execução provisória da sentença, na verdade tal só acontece quandoa sentença passa em julgado na inferior instância, porque, se houverapelação, o julgamento proferido pelo tribunal substitui a sentençarecorrida no que tiver sido objeto do recurso, nos termos do art. 512,pelo que o cumprimento (ou execução) nunca será da sentença, mas doacórdão ou da decisão monocrática.

No entanto, embora providos de efeito apenas devolutivo, ajurisprudência, tanto do STJ quanto do STF, admite lhes seja outorgadotambém o efeito suspensivo, o que faz com que o acórdão1 fique suspensoaté que venha a transitar em julgado. Se se tratar de decisão monocrática(art. 557, § 1º-A), é preciso que seja interposto agravo interno para oórgão colegiado (turma ou câmara), para, só então, abrir-se ao recorrentea via especial ou extraordinária.

Como a competência para o juízo de admissibilidade dos recursosespecial e extraordinário é do presidente ou vice-presidente do tribunala quo —, conforme dispuser o respectivo regimento interno —, cabe-lhe,também, a competência para atribuir a esses recursos, no contexto demedida cautelar, o respectivo efeito suspensivo, mantendo, temporal eprovisoriamente, a eficácia do acórdão recorrido, até que cheguem osautos ao tribunal de destino. O efeito suspensivo, em tais modalidadesrecursais, tem utilidade apenas quando a sentença for favorável aorecorrente, mas se o acórdão recorrido lhe for contrário, caso em que asuspensão da eficácia deste mantém, temporariamente, a eficácia dasentença reformada.

4. EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO ESPECIAL OU EXTRAORDINÁRIOA SER INTERPOSTO.

Como a concessão de efeito suspensivo a recurso especial ou

1 Ou a decisão monocrática do relator, quando for o caso (art. 457, § 1o-A).

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extraordinário tem por finalidade a suspensão de eficácia do acórdãoimpugnado, pode parecer uma lógica conseqüência do seu cabimento,que lhes venha a ser atribuído tal efeito apenas quando já efetivamenteinterpostos na origem. Como, no entanto, somente a decisão colegiada(acórdão) pode ser objeto de recurso especial ou extraordinário,2 se assimfosse, a parte que tivesse sucumbido nesse recurso (agravo de instrumentoou apelação), por decisão monocrática proferida com base no art. 557, §1º-A, não teria como neutralizar-lhe os efeitos, enquanto não viesse a serjulgado o eventual agravo interno interposto para o órgão colegiado dotribunal a quo (art. 557, § 1º).

Se, por exemplo, uma apelação vem a ser provida por decisão colegiada(turma, câmara), a parte prejudicada pelo acórdão pode valer-se do recursoespecial ou extraordinário, e postular, desde logo, em cautelar incidental,a concessão do respectivo efeito suspensivo, preservando a eficácia dasentença até o seu julgamento; mas, se o julgamento da apelação for pordecisão monocrática (relator), terá a parte por ela prejudicada de interporo agravo interno e aguardar a sua decisão pelo colegiado (acórdão), para,só então, interpor o recurso especial ou extraordinário. É fácil perceberque, em se tratando de situação de urgência, essa demora podedeterminar o perecimento do próprio direito material, pelo que a doutrinae a jurisprudência se apressaram em lhe dar solução adequada ecompatível com a “ampla defesa” consagrada pela Constituição (art. 5º,LV). Assim, surgiu a concepção pretoriana de se conceder efeito suspensivoa recurso especial ou extraordinário a ser interposto, prescindindo-se deum acórdão para viabilizá-lo, bastando à parte recorrente demonstrar oeventual cabimento desse recurso, no contexto de uma medida cautelar,na qual obterá não só a concessão do efeito suspensivo desejado, como,também, a medida de urgência para a efetiva tutela do seu direito.

Suponha-se que o titular de um direito líquido e certo impetre ummandado de segurança contra o ato administrativo determinante docancelamento de seus proventos ao largo do contraditório e do direitode defesa, vindo o juízo de primeiro grau a negar-lhe a tutela liminar;

2 Nos termos da Súmula nº 640 do STF: “É cabível recurso extraordinário contra decisão proferidapor juiz de primeiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado especial cível ecriminal.”. Como exemplo de causa de alçada pode ser citada a hipótese prevista no art. 34 da Leinº 6.830/80.

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suponha-se, também, que interposto o agravo de instrumento no tribunal,o relator entenda ser tal recurso inadmissível em mandado de segurançae lhe negue seguimento; e suponha-se, por fim, que o impetranteinterponha o agravo interno, caso em que não tem como obrigar o relatora levá-lo, de imediato, a julgamento do colegiado, para abrir-lhe,eventualmente, a porta do recurso especial ou extraordinário. Nessahipótese, não tem o agravante outra alternativa, senão a de ajuizar umamedida cautelar, pleiteando a concessão de efeito suspensivo ao recursoespecial ou extraordinário a ser interposto, e, ao mesmo tempo, pedir atutela antecipada no tribunal, para o restabelecimento dos seus proventos.3

Neste sentido, orienta-se a jurisprudência:

MEDIDA CAUTELAR – EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO ESPECIAL AINDANÃO-INTERPOSTO – VIRTUAL PROVIMENTO – SITUAÇÃO URGENTE EEXCEPCIONAL – POSSIBILIDADE – PRESENÇA DE PLAUSIBILIDADEJURÍDICA E PERIGO NA DEMORA.

É possível o empréstimo de efeito suspensivo a recurso especial aindanão interposto na origem, quando presentes o perigo de lesãoirreversível e a aparência do bom direito.

Liminar confirmada. (AgRg na MC 11.004/SP, rel. Ministro HumbertoGomes de Barros, STJ, 3a Turma, unânime, DJ 13/3/2006, p. 315).

5. MEDIDA CAUTELAR NA FASE DE ADMISSIBILIDADE DE RECURSOESPECIAL OU EXTRAORDINÁRIO.

Se, nos tribunais superiores, prevalecesse, em toda a sua extensão, aregra processual que disciplina as medidas cautelares, deveriam estas —, uma vez interposto recurso especial ou extraordinário —, ser requeridasdiretamente ao tribunal de destino (art. 800, parágrafo único). No entanto,primeiramente o STF, e, depois, o STJ, firmaram o entendimento de que asua competência, para a concessão de medidas cautelares, só se firma apartir do momento em que o recurso especial ou extraordinário é admitidono tribunal a quo, ou, na hipótese de não ser recebido, após a subida do3 No TRF-2ª Região, há decisões no sentido de não admitir agravo de instrumento em mandado desegurança (Agravo Interno no A.I 2005.02.01.003351-2-RJ), embora, majoritariamente, o venhaadmitindo (A.I. 2005.02.01.001877-8).

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agravo de instrumento dele imposto ao tribunal ad quem.

Daí, terem esses tribunais entendido —, e, hoje, a sua jurisprudênciaé pacífica e uniforme a respeito —, que cabe ao órgão monocrático dotribunal de origem (presidente ou vice-presidente) a concessão demedidas de urgência, enquanto não tiver havido decisão sobre aadmissibilidade ou inadmissibilidade do recurso especial ou extraordináriopara o tribunal de destino.

Consolidado esse entendimento pretoriano, a possibilidade de concessãode efeito suspensivo a recurso especial ou extraordinário a ser interpostofoi uma necessária conseqüência dessa diretriz, justo para não sacrificar odireito do recorrente à ampla defesa consagrada na Constituição.

A esse respeito, editou o STF a Súmula nº 635 — “ Cabe ao Presidentedo Tribunal de origem decidir o pedido de medida cautelar em recursoextraordinário ainda pendente do seu juízo de admissibilidade” —, queveio, mais tarde, a ser agasalhada pelo STJ.

6. NATUREZA DA COMPETÊNCIA PARA MEDIDA CAUTELAR NAPENDÊNCIA DE JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE NO TRIBUNAL A QUO.

É sabido que a competência recursal tem natureza hierárquica oufuncional, sendo, portanto, absoluta, e como tal, não pode ser transposta,pelo que não admite, em nenhuma hipótese, modificação.

Como a competência para processar e julgar o recurso especial ouextraordinário é do STJ ou do STF, também desses tribunais é o juízo deadmissibilidade desses recursos, que tem lugar por ocasião do seujulgamento, não havendo aí nenhuma novidade, porquanto, também aapelação passa pelo crivo de admissibilidade do juízo de primeiro grau, semprejuízo do seu reexame pelo tribunal por ocasião do julgamento do apelo.

Quando se atribui ao presidente ou vice-presidente do tribunal a quoa competência para juízo de admissibilidade desses recursos, isso significaque esse órgão monocrático do tribunal de origem (segundo grau) atuacomo órgão delegado do tribunal de destino (superior), agindo em nomedeste e não como órgão do tribunal a quo. Destarte, não tem o tribunal aquo, por nenhum de seus órgãos, nem mesmo pelo Plenário, competência

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(poder jurisdicional) para formular juízo de valor diverso do formuladopelo presidente ou vice-presidente, por atuarem em escala hierárquicadistintas: o tribunal de origem atua como simples tribunal de segundo grau,enquanto o presidente ou vice-presidente atua como órgão delegado dotribunal superior. É como se o presidente ou vice-presidente fosse o próprioSTJ ou STF a decidir sobre a matéria inserida na sua área de competência.

7. DESCABIMENTO DE MANDADO DE SEGURANÇA NA FASE DEADMISSIBILIDADE DE RECURSO ESPECIAL OU EXTRAORDINÁRIO.

Por se tratar de competência hierárquica ou funcional, repita-se acompetência de rever as decisões do presidente ou vice-presidente éexclusivamente dos tribunais de destino, STJ ou STF, não podendo o tribunalde origem faze-lo, sob pena de usurpar competência de tribunal superior.

O mandado de segurança contra ato judicial, utilizado como sucedâneorecursal, com o objetivo de neutralizar as decisões do vice-presidente dotribunal a quo, nas medidas de urgência, se mostra incabível, porquantoesse remédio constitucional, para ser manejado, pressupõe que, alémde um direito líquido e certo ao procedimento recursal, tenha o órgãojulgador a necessária competência para julgá-lo.4

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça pôs uma pá de cal sobreessa questão, deferindo liminar na Medida Cautelar nº 11.448-RJ,5 tendo porobjeto a atribuição de efeito suspensivo a recurso especial a ser interpostocontra o acórdão do Plenário do TRF-2ª Região, que não conhecera doagravo interno interposto contra a decisão concessiva da liminar, nos autosdo Mandado de Segurança nº 8.789, ocasião em que suspendeu a execuçãodas decisões proferidas pelo Tribunal local para restabelecer a autoridadeda decisão do vice-presidente desse mesmoTribunal.4 O Regimento Interno do TRF-2ª Região (Emenda Regimental nº 17, publicada no DOU de 25/1/2002, pp. 184-196), não outorga a qualquer de seus órgãos, e muito menos ao Plenário, competênciapara reexaminar as decisões do presidente ou do vice-presidente na fase de admissibilidade derecurso especial ou extraordinário.5 A Medida Cautelar nº 11.448-RJ teria sido dispensável se o então Vice-Presidente do STJ, noexercício da Presidência, Ministro Barros Monteiro, houvesse determinado o processamento daReclamação nº 2.138-RJ, oferecida com o propósito de preservar a competência daquela Corte, emvez de negar-lhe seguimento com fundamento nos arts. 4º da Lei n. 8.437/92 e 38 da Lei n. 8.038/90 c.c. o art. 34, XVIII, do RISTJ.

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A propósito, registra o relator que:

“Com efeito, a decisão proferida pelo Tribunal local referendou liminarconcedida por seu relator, que, por sua vez, suspendera a decisãoproferida pelo vice-presidente do Tribunal, de deferimento de efeitosuspensivo a recurso especial. Ora, no exercício das atribuiçõesrelacionadas com o juízo de admissibilidade de recursos para asinstâncias extraordinárias — previstas nos artigos 542 e 543 do CPC enas quais se inclui também a de atribuir ou não efeito suspensivo aosreferidos recursos, quando ainda pendentes de admissão (Súmula635/STF) 6 – o vice-presidente atua como delegado do Tribunal adquem (grifei). Nessas circunstâncias, as decisões que profere nãoestão sujeitas a controle por qualquer dos órgãos do Tribunal local.

.....................................................................................................................”.

E, mais adiante, conclui:

“À luz desse entendimento, evidencia-se a impropriedade da utilizaçãodo mandado de segurança como instrumento para, perante o Tribunala quo, reformar ou anular a decisão do seu vice-presidente que, certaou erradamente, conferiu efeito suspensivo a recurso especial.”

8. RECURSO DA DECISÃO DO PRESIDENTE OU VICE-PRESIDENTE EMMEDIDA CAUTELAR PERANTE O TRIBUNAL A QUO.

Considerando que o presidente ou vice-presidente do tribunal a quo,enquanto na formulação de juízo de admissibilidade de recursos especiale extraordinário, age como órgão delegado dos tribunais ad quem (STJou STF) —, fora, portanto, do raio de alcance da censura do respectivotribunal —, cumpre determinar qual o recurso cabível da decisão queconcede ou nega a medida cautelar na origem, seja em recurso interposto,mas ainda não-admitido, seja em recurso a ser ainda interposto. O eventualagravo interno (regimental) fica descartado, porquanto o presidente ouvice-presidente do tribunal local não atua na qualidade de relator doprocesso, mas como órgão delegado do STJ ou do STF, sendo, por idênticarazão, descartado, também o mandado de segurança perante o tribunal a quo.

6 Súmula 635/STF: “Cabe ao Presidente do Tribunal de origem de decidir o pedido de medidacautelar em recurso extraordinário ainda pendente do seu juízo de admissibilidade”.

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O recurso cabível, em casos tais, será evidentemente da competênciado tribunal de destino, mostrando-se adequado a esse desiderato o agravode instrumento, por analogia do art. 544 do CPC, que é também o recursodestinado a fazer subir recurso não-admitido na origem. Se a situação forde extrema urgência (risco iminente de dano grave ao direito dorecorrente), em que não se possa aguardar o processamento de eventualagravo de instrumento na origem, é admitida a medida cautelar no tribunalde destino, que deve ser instruída com as peças necessárias ao examedo objeto da cautelar.

Em sede doutrinária, TEORI ALBINO ZAVASCKI versou a matéria, que étranscrita na decisão proferida no Mandado de Segurança nº 8.786, doqual foi o relator, nestes termos:

“Questão importante é a que diz respeito ao controle, por via recursal,da decisão que, no tribunal de origem, nega ou defere a medidacautelar. Considerando que se trata de decisão sobre matéria que, notribunal ad quem, está sujeita ao princípio da colegialidade, comofazem certo os regimentos internos do STF (art. 21, IV e V, e art. 317)e do STJ (art. 34, V e art. 258), não teria nenhum sentido lógico emuito menos sistemático considerá-la irrecorrível quando proferidaainda na origem. Por outro lado, considerando que se trata de decisãointegrada ao juízo de admissibilidade do recurso especial ouextraordinário, em que o presidente ou o vice-presidente dotribunal a quo atua como órgão delegado do STF ou do STJ (g.m.)é certo que tais decisões devem ser submetidas a controle perante otribunal competente para o julgamento do recurso cujo efeitosuspensivo foi concedido ou negado. Descarta-se, com esseentendimento, a viabilidade de agravo regimental ou de qualqueroutra medida (v.g., mandado de segurança) para órgão colegiadodo tribunal de origem (g.m.). Não havendo a lei previstoexpressamente o recurso apropriado para a decisão incidente (aliás, opróprio incidente é fruto de construção pretoriana e não da lei,conforme se viu), há que se aplicar aqui, por analogia, a disciplinaprevista para as decisões proferidas no juízo de admissibilidade. Cabívelserá, portanto, o agravo de instrumento previsto no art. 544 do CPC,que será instruído com as peças adequadas ao exame, pelo tribunal,do objeto específico e peculiar do recurso: o cabimento ou não daantecipação da tutela recursal no recurso especial ou extraordinário.É possível que, em situações de excepcional urgência, o recurso deagravo, pela demora em sua tramitação na origem, não tenha a

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agilidade suficiente para estancar o risco iminente de dano grave aodireito da parte. Em casos tais, evidenciada a relevância jurídica dasalegações e o periculum in mora, a única alternativa que se mostrapossível é, outra vez, a medida cautelar, agora dirigida diretamenteao STF ou ao STJ, conforme o caso. (ZAVASCKI, Teori Albino,Antecipação da Tutela, 4ª ed., Saraiva, 2005, pp. 150-151).”

Em sede doutrinária e jurisprudencial, o trato da competênciajurisdicional exige zelo do julgador em todos os seus graus, porque se otribunal local (intermediário) não reconhecer a competência alheia, nãoterá autoridade para exigir que outrem lhe reconheça a própriacompetência.7

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Estas considerações não têm outro propósito senão o de alertar ospretórios para a questão da “competência em juízo de admissibilidadede recursos especial e extraordinário” —, sobretudo no que toca às medidascautelares na origem —, com o propósito de preservar a competência dopresidente ou vice-presidente do tribunal local, que, além de ter sobreos seus ombros a difícil tarefa de prestar tutela de urgência, nessa fasedo processo, não está sujeito a juízo de reprovação do seu próprio tribunal,senão do tribunal do qual é delegado.

7 Essa a razão pela qual merece reflexão a afirmativa, tantas vezes impensadamente repetida, de que“a decisão judicial não se discute, cumpre-se”, porquanto, “quando alguém manda o que não pode(ou não deve), errado não está quem não cumpre, mas quem manda”.

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OS FATORES DE ATRIBUIÇÃO NARESPONSABILIDADE POR DANOS

André R. C. Fontes - Desembargador do Tribunal Regional Federalda 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo)

Sumário: Metodologia. Introdução. § 1º A responsabilidade por danos. §2º Os fatores de atribuição. § 3º Os fatores de atribuição subjetivos. § 4ºOs fatores de atribuição objetivos. Conclusões.

METODOLOGIA

Nas “Quintas Jornadas de Direito Civil” da Argentina, realizadas em1971, na cidade de Rosário, a Quinta Comissão aprovou como conclusãoque “a obrigação de ressarcir reconhece como regra os seguintespressupostos: I) antijuridicidade; II) danos; III) causalidade; IV) fatoresde atribuição”1.

Passados vinte e sete anos desde a sua aprovação, continuadesconhecida no Brasil a conclusão acerca dos “fatores de atribuição”.

Este ensaio visa a colmatar essa lacuna na literatura brasileira e aordenar a sua compreensão sistemática. O trabalho se inicia com adeterminação de um conceito. Partiu-se da premissa de que todo oconhecimento é conceitual, seja ele científico ou do senso comum2. Porconceito entendeu-se o significado que os fatores de atribuição teriampara o Direito3.

1 VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A.. Responsabilidad por daños. Buenos Aires: Depalma, 1994. p. 111.2 COSTA, Newton da. Lógica Indutiva e Probabilidade. São Paulo: Hucitec, 1993. p. 11.3 COSTA, Cláudio Ferreira. Filosofia Analítica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992. p. 14.

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Considerou-se que este conceito seria substancial e fundado,expressando um valor de aplicação como regra de conduta social4, aindaque os conceitos jurídicos sejam predominantemente indeterminados5.A generalização do conceito e a sua capacidade de atender a vários ramosda Ciência Jurídica atribuem aos fatores de atribuição o predicado deverdadeira categoria jurídica6, porque aqui se propõe que eles sejamtidos como conceitos fundamentais com relação a certa ordem, servindode apoio para a compreensão de determinada esfera do conhecimento7.Mas não se trata de categoria puramente abstrata, que mais se situaria nocampo da lógica, e sim de categoria concreta, baseada em componentesfactuais, como toda base mesma do sistema categorial jurídico8.

A existência de um nome ou designação (rectius: termo),representando aquele conceito9, isto é, distinguindo o conceito da suaexpressão verbal ou simbólica, é algo determinante. Aqui o termo éusado como expressão de um conceito10. A fim de tornar mais preciso oobjeto, empregou-se um termo particular11 ou singular12 para os “fatoresde atribuição”. Entendeu-se por termo particular um nome específico.Dessa forma, permitiu-se que os “fatores de atribuição” assumissem umaexistência própria por meio da linguagem13. A designação é decisivapara a afirmação de uma teoria e tão difícil quanto instruí-la é nominá-la14, pois o homem tem mais propensão para idéias do que para inventarpalavras15.

4 BIELSA, Rafael. Metodologia Jurídica. Santa Fé: Editora Castellvi, 1961. p. 69.5 ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1988. p. 208.6 RIVERO, Jean. Curso de Direito Administrativo Comparado. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense,1990. p. 56.7 TERAN, Juan Manuel. Filosofia del Derecho. 5.ed. Cidade do México: Editorial Penna, 1971. p. 87.8 DIMAS, Lemus. Hacia uma Teoria General del Patrimonio, trabalho guatemalteco perante o XIICongresso Internacional de Notariado Latino. Buenos Aires, 1973. p. 25.9 HEMPEL, Carl G. Filosofia da Ciência Natural. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970. p. 109.10 VIRIEUX-REYMOND, Antoinette. La Logica Formal. Buenos Aires: Libreria El Ateneo Editorial,1976. p. 14.11 HEMPEL, Carl G.. Op. cit. 109.12 LIARD, L.. Lógica. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963. p. 1513 CUPIS, Adriano de. Osservatorio sul Diritto Civile. Milão: A. Giuffrè, 1992. p. 39.14 RUMNEY, Jay, MAIER, Joseph. Manual de Sociologia. 9. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores,1979. p. 164.15 DE TOCQUEVILLE, citado por Rumney e Maier, op. cit. p. 164.

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Adotou-se como critério de classificação dos fatores de atribuição oconteúdo16, já usado na literatura argentina, pois o instituto éunicompreensivo dos seus aspectos subjetivos e objetivos17.

Nosso método de investigação baseou-se na chamada TeoriaPerspectivista. Assim, na elaboração deste ensaio considerou-se oconjunto de pontos de vista, desde os quais esta adquire uma significaçãopotenciada, esgotando, até os limites do possível, a totalidade da visãodo tema18. Dentre as perspectivas possíveis no Direito, optou-se pelajurídico-positiva19.

INTRODUÇÃO

O prejuízo que alguém causa a outrem constitui um dano20. Como,em sentido amplo, toda atividade determina algum sacrifício ou prejuízo,normalmente esse dano integra o conteúdo do tráfico jurídico como danode natureza econômica21. Entretanto, os riscos do tráfico compreendemoutros danos, causados por prejuízos injustos22, que causam a lesão a uminteresse merecedor de tutela jurídica23 e atingem o equilíbrio dasrelações exigindo a sua recomposição. São danos que derivam de umcomportamento anômalo que atingem a esfera jurídica alheia24. Aprobabilidade de esses danos ocorrerem se agrava pela complexidadedos casos resultantes do constante progresso social25, que torna impossívela precisa indicação, por meio de tipos legais, da pluralidade dos fatosque devem ser qualificados como injustos, e que impõe, no enunciadolegal, a diretriz máxima de duas cláusulas gerais: o princípio da

16 BIELSA, Rafael. Op. cit. p. 188.17 VÁZQUEZ Ferreyra, Roberto A.. Op. cit. p. 195.18 MARIN PEREZ, Pascual. Manual de Introduccion a la Ciencia del Derecho. 2. ed. Barcelona:Bosch, 1968. p. 68.19 MARIN PEREZ, Pascual. idem. p. 27.20 TORRENTE, Andrea; SCHLESINGER, Piero. Manuale di Diritto Privato. 12. ed. Milão: Giuffrè.p. 695.21 ALPA, Guido. Istituzioni di Diritto Privato. 2. ed. Turim: UTET, 1997. p. 1096.22 TRABUCCHI, Alberto. Istituzioni di Diritto Privato. 31. ed. Pádua: CEDAM, 1990. p. 189.23 BARBERO, Domenico. Il Sistema del Diritto Privato. 2. ed. Turim: UTET, 1992. p. 854.24 BESSONE, Mario et alii. Istituzioni di Diritto Privato. 3. ed. Turim: Giappichelli, 1996. p. 945.25 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. III. 10. ed. Rio de Janeiro:Forense, 1997. p. 363.

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atipicidade do ilícito civil26 e o princípio do ressarcimento de todo danoqualificado como injusto27. Esse ressarcimento é de cariz tão-somenteindenizatório e não preventivo ou punitivo28, motivo pelo qual jamaisdeve se tornar um meio de enriquecimento ilegítimo para a vítima29.

Do fato causador do dano injusto nasce a obrigação de indenizar. Essarelação obrigacional vista da parte do credor é qualificada como direitosubjetivo30. Na concepção civilística, esse credor tem duas espécies depoderes: (a) o direito à prestação (direito subjetivo) e (b) o poder deexigí-la (pretensão)31. Ao direito subjetivo de ser indenizado corresponderáuma pretensão32 (ou mesmo múltiplas pretensões33) , ou seja, o poder deexigir a indenização do causador34.

Sujeitam-se a esse tipo de injusto duas classes de situações: (a) asituação econômica (gerando o dano patrimonial) e (b) a situaçãopsicofísica (gerando o dano moral). A ambas assegura-se a reparaçãodos danos mediante indenização pretendida pelas vítimas ao causadordo prejuízo. O agressor sujeita-se ao dever de indenizar com base naidéia de que a liberdade do homem traz implícita a responsabilidade -inclusive patrimonial - por seus atos35.

Todo esse fenômeno é designado de responsabilidade por danos.

26 TORRENTE, Andrea; SCHLESINGER, Piero. Op. cit. p. 695.27 GALGANO, Francesco. Diritto Privato. 5. ed. Pádua: Edizioni Cedam, 1988. p. 341.28 ASÚA GONZÁLEZ, Clara et alii. Manual de Derecho Civil, vol. II. Madrid: Ed. Marcial Pons,1996. p. 450.29 GEORGIN, Charles. Notions Élémentaires de Droit Civil. 7. ed. Paris: Éditions Eyrolles, 1947. p.337.30 CZACHÓRSKI, Witold. Il Diritto delle Obbligazioni. Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiane,1980. p. 29.31 COMPARATO, Fábio Konder. Natureza do Prazo Extintivo da Ação de Nulidade do Registro deMarcas. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, 77. p. 58.32 KOHLER, Josef. Lehrbuch der Rechtsphilosophie. Berlin und Leipzig: Dr. Walther Rothschild,1909. p. 56.33 MEDICUS, Dieter. Allgemeiner Teil des BGB. 4., neubearbeitete Auflage. Heidelberg: Müller, Jur.Verl., 1990. p.34.34 WOLF, Ernst. Allgemeiner Teil des bürgerlichen Rechts. Lehrbuch. 3.,erw. Aufl. Köln; Berlin;Bonn; München: Heymann, 1982. p. 120.35 VALLET DE GOYTISOLO, Juan. Panorama del Derecho Civil. 2. ed. Barcelona: Bosch, 1973.p. 221.

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§ 1º A RESPONSABILIDADE POR DANOS

A responsabilidade é uma conquista da civilização36. Evoluiu de suaforma clássica, fundamentada na culpa e vem se sujeitando a inovaçõesconceituais e se moldando em torno da Teoria do Risco. Deste modo,hoje se caminha no sentido de exigir tão-somente a existência de nexocausal entre o evento ocorrido e o dano conseqüente37. Até mesmo oseu fundamento começa a ser alinhado a partir de novas concepçõesfilosóficas, como o personalismo ético, entendido aqui como forma deter o agente responsabilidade, por assumir as conseqüências do próprioagir segundo as bases éticas38.

Entretanto, a responsabilidade por danos é regularmente tratada comoum complexo de três requisitos: (a) uma atividade (requisito subjetivo),(b) um nexo de causalidade (requisito formal) e (c) um dano (requisitoobjetivo). No Direito Privado o primeiro requisito (a atividade) deve serqualificado normalmente como culposo.

No atual conhecimento do tema, entende-se serem funções daresponsabilidade por danos: (I) a afirmação do poder estatal; (II) a sanção;(III) a prevenção; (IV) o ressarcimento39.

Nessa perspectiva, as mudanças sociais e o anseio de justiça idealimpõem a evolução desses conceitos, bem como exigem que aresponsabilização busque soluções que não se afastem dos seus própriosfundamentos, logrando sempre a reparação de todo o dano injusto, enão simplesmente sancionar a culpa40, o que exigiria a própria superaçãodo termo “responsabilidade civil” por “responsabilidade por danos”41,preferido na designação deste trabalho.

36 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. III. Rio de Janeiro: Ed. Forense,1997. p. 363.37 VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A. Op. cit. pp. 362-363.38 AMARAL, Francisco. Direito Civil brasileiro. Introdução. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1991. p.596.39 ALPA, Guido. Op. cit. 1096.40 VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A. Op. cit. p.24541 idem. p. 245.

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§2º OS FATORES DE ATRIBUIÇÃO

Por “fatores de atribuição” se entende “o fundamento da obrigaçãoindenizatória que atribui juridicamente o dano a quem deve indenizá-lo”42. Diante de um dano injusto ocorrido, “o fator de atribuição nos daráa última resposta acerca de quem e porque o deve suportar”43. “Ao sefalar de fator de atribuição se faz menção ao fundamento de que a leitoma em consideração para se atribuir juridicamente a obrigação deindenizar um dano, fazendo recair seu peso sobre quem em justiçacorresponde”44. Constitui a “razão especial” que estabelecerá a quem sedeve impor as conseqüências do dano45. Constituem os fatores deatribuição a resposta à seguinte questão: por que da obrigação deindenizar?46

Seriam, pois, os “fatores de atribuição” um pressuposto da obrigaçãode ressarcir, junto com a ilicitude, o dano, a causalidade e outras partesde natureza complementar integrante do sistema jurídico47.

Sob certa ótica, os “fatores de atribuição” poderiam ser compreendidoscomo um risco criado pela existência ou atuação de determinado grupo48.

O termo no plural se justificaria na idéia de um catálogo amplo eaberto no qual se incluem critérios subjetivos e objetivos49. Assim, nãose limitariam aos casos de responsabilidade subjetiva50

A evolução da responsabilidade por danos alcançaria, assim, com os“fatores de atribuição”, a última etapa de seu desenvolvimento,substituindo a culpa (fundamento comum inicial) como critério básicodo sistema ressarcitório, dada a insuficiência dos seus resultados51.

42 VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A.. Op. cit.. p. 19443 idem. p. 193.44 idem. p. 193.45 idem. p. 193.46 idem. p. 193.47 BAIGÚN, David e BERGEL, Salvador Dario. El fraude en la administración societaria. BuenosAires: Ed. Depalma, 1988. p. 104.48 MOSSET ITURRASPE, Jorge. Responsabilidad por daños. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni Editores,1992. p. 5949 VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A. Op. cit. p. 113.50 idem. p. 113.51 GESUALDI, Dora Mariana. Responsabilidad civil : fatores objetivos de atribuición, relaciónde causalidad. Buenos Aires: Ed. Ghersi-Carozzo, 1987. pp. 15-16.

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A culpa é compreendida como um dos fatores de atribuição, ao ladodo risco criado, a eqüidade, a garantia dentre outros52.

Os “fatores de atribuição” subjetivos se baseiam exclusivamente naculpa e no dolo53. Porém, é de se notar que a referência aos fenômenosque compreendem o conteúdo dos “fatores de atribuição” objetivos (comoa solidariedade e a equidade, dentre outros) é meramente enunciativa,sujeita a constante expansão.

§ 3º OS FATORES DE ATRIBUIÇÃO SUBJETIVOS

Por fatores subjetivos de atribuição se entende aqueles “que têm emconta a análise valorativa da conduta do autor do prejuízo”54. Decorrem dequalquer ato voluntário dirigido ao fato causador do dano55, podendo talcomportamento danoso ser reprovado a título de culpa ou ainda de dolo.

Os únicos fatores subjetivos de atribuição são: (a) a culpa e (b) o dolo56.Esses, por sua vez, são modalidades fundamentais que compõem a culpaem sentido amplo57, já que se torna inicialmente irrelevante a distinçãoem Direito Civil, por mensurar-se o dano e não o ânimo do agente58. Emsentido lato, a culpa é pressuposto e medida da imputabilidade59, mesmoentendida como fator de atribuição60. No entanto, por não constituiremrequisito presente em toda e qualquer responsabilidade, os fatoressubjetivos não são exigidos na responsabilidade objetiva: em verdade,são eles forma de classificação de conhecimento do fenômeno, e nãomeio de sujeição da realidade.

52 Para um exame do processo histórico que redundou nos fatores de atribuição, veja-se PIZZARRO,Ramón Daniel. Responsabilidad por el riesgo o vicio de la cosa. Buenos Aires: Universidad, 1983.53 VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A.. Op. cit. p. 197.54 VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A.. Op. cit. p. 196.55 idem. p.196.56 idem. p. 196.57 TELLES, Inocêncio Galvão. Direito das Obrigações. 6. ed. Coimbra: Coimbra Editora,1989. p.341.58 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. I. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense,1993. pp. 452-453.59 DUSI, Bartolomeo. Istituzioni di Diritto Civile. 2. ed. Turim: G.Giappichelli, 1937. p. 168.60 VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A. Op. cit. p. 248

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§ 4º OS FATORES DE ATRIBUIÇÃO OBJETIVOS

Em linhas gerais recebem a designação de fatores objetivos deatribuição toda série aberta de critérios legais de imputação que justificama imposição de dano a determinado agente61.

São assim designados porque contrastam com os fatores subjetivos62.Estão categorizados como objetivos porque dispensam a valoração daconduta do agente causador do dano63, tornando irrelevante avoluntariedade e a culpabilidade64, pois o fundamento da reparação estáassentado numa causa externa, diversa do juízo de valoração que exigiao comportamento danoso65.

Não se esgotam no fenômeno denominado de “risco criado”66, poisconstituem um catálogo aberto e dinâmico que se amplia por toda obralegislativa ou mesmo jurisprudencial ou doutrinária67, ainda que essa não-taxatividade seja dirigida ao futuro68.

Tendem os fatores de atribuição em sentido objetivo a serem relatadosapenas em rol enunciativo, pela dinâmica na inclusão dos novos critériosdecorrentes da criação jurisprudencial, que vem reconhecendo os novose avançados fatores objetivos próprios da socialização dos danos, já agoracom critério não somente de conotação jurídica, mas, tambémeconômica69.

No estado atual do conhecimento acerca dos fatores objetivos deatribuição, enumera-se os seguintes fenômenos70:

a) a solidariedade;

b) a seguridade social;

61 VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A.. Op. cit. p. 207.62 idem. p. 196.63 Idem, p. 207.64 Idem, p. 196.65 Idem, pp. 196-197.66 Idem, p. 207.67 Idem, p. 196.68 Idem, p. 196.69 Idem, p. 197.70 VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A.. Op. cit. p. 207.

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André R. C. Fontes

c) o risco criado;

d) a eqüidade;

e) a garantia e tutela especial do crédito;

f) igualdade dos ônus públicos;

g) seguro;

h) critérios econômicos.

Todavia, é intuitivo que novas áreas estão vocacionadas para contribuirna elevação do rol de fatores objetivos, como a defesa do consumidor, omeio ambiente e a situação de titular do poder de controle de situaçõesempresariais ou complexas como, por exemplo, na subcontratação.

CONCLUSÕES

1 - O fator de atribuição nada mais é que o fundamento da reparaçãopela socialização do risco.

2 - Constitui uma forma de consolidar a responsabilidade por danos,em decorrência das mudanças sociais, com a superação da tradicionalresponsabilidade civil.

3 - Integra um juízo normativo em branco, capaz de ser completadopor novas fórmulas identificadas na realidade social.

4 - Visa a legitimar os novos critérios de responsabilização, elencadose denominados de fatores objetivos de atribuição.

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ESTADO E DIREITOReis Friede* - Desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª

Região

Historicamente, duas diferentes doutrinas sobre a relação entre o Estadoe o Direito evoluíram, em relativa situação de aproximado paralelismo,buscando explicar o gênesis da concepção jurídico-legal do Direito emcontraposição à efetiva realidade político-formal do Estado: a doutrinadualista e a doutrina pluralista.

A primeira, de natureza dual, simplesmente afirma tratar-se o Estado eo Direito de duas realidades distintas, desprovidas de qualquer formarelacional, e plenamente independentes; ao passo que a segunda, denatureza plural, defende tese oposta, segundo a qual o Direito é sempreresultado da sociedade (e dos agrupamentos coletivos) e das instituiçõespúblicas e sócio-políticas (ainda que primitivas e iniciais) quenecessariamente a compõem.

De fato, não obstante a insistência perpetuadora de alguns adeptos daprimeira linha de pensamento (muito mais fundamentada em concepçõesfilosóficas, religiosas e mesmo mitológicas do que propriamente realistas),a corrente pluralista tem demonstrado, de forma cada vez mais categórica,sua base científica, mesmo desde os primórdios da antiguidade clássica.

ARISTÓTELES (385-322 aC), discípulo de PLATÃO, já afirmava que oEstado era o elemento fundamental para prover as condições para aordem perfeita (nomos) e a lei o instrumento para a racionalização desta.

* Reis Friede; Desembargador Federal e Professor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito / UFRJ,é Mestre e Doutor em Direito e Autor, dentre outras, da obra “Curso de Ciência Política e de T.G.E.:Teoria Constitucional e Relações Internacionais”, Forense Universitária.

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HOBBES (1588-1679) já apregoava o Direito como produto do Estado paraproteger os cidadãos contra inimigos externos e discórdias internas.ROUSSEAU (1712-1778), traduzindo o Estado através de um contrato social,defendia o Direito como mecanismo de conciliação entre a vontadeindividual e o bem coletivo. MONTESQUIEU (1689-1775) interpretava oEstado, simplesmente, como o “sujeito que estabelece normas”.DURKHEIM (1858-1917), MAX WEBER (1864-1920), H. LEVY-BRUHL (1857-1939) e R. POUND (1870-1964), por sua vez, creditavam ao Estado anatureza institucional, associando o Direito como elemento,respectivamente, de conexão com a coação organizada, disposição daordem coercitiva, de criação de normas obrigatórias e de controle doprocesso de reconhecimento e realização das necessidades humanas.

(É importante consignar, consoante lição de LUÍS MIR (in Guerra Civil,Geração Ed., 1ª Ed., SP, 2004, p. 186 e segs.) que o Direito éconsiderado um fenômeno verificável em todas as organizações sociaisque, a exemplo do Estado, se constituem em verdadeiros centros deprodução de normas, até porque ubi societas ibi jus (onde houversociedade haverá Direito).)

Por outro prisma, não há como deixar de reconhecer que formaselementares de Direito não somente regulavam (como ainda regulam,mesmo que excepcionalmente) agrupamentos sociais básicos e asociedade primitiva, muito antes do advento das sociedades complexas,das Nações e, por via de conseqüência, do próprio Estado, como tambémcontinuam, sob certo aspecto, a regular condutas de organizaçãocomportamental interna e externa de grupos paraestatais e mesmo, emalgum grau, de indivíduos isolados.

(Tal constatação, vale esclarecer, encontra, entretanto, muito mais desua verdade na irrefutável constatação de que o Direito se constituiem uma inexorável realidade ficcional,– necessitando pois, sempre eem qualquer hipótese, da existência concreta de um elementogarantidor, dotado de capacidade real de transformar o Direitooriginariamente abstrato (teórico) em um Direito concreto e efetivo(pragmático) –, do que propriamente na pseudo idéia de que possaexistir (de forma permanente) entidades geradoras de Direitoconcorrendo diretamente com o Estado, considerando que, – comobem adverte HANS KELSEN (1881-1973), em sua consagrada obra TeoriaPura do Direito (Reine Rechtslehre) –, em grande medida, a realidade

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Reis Friede

do Estado se confunde com a própria realidade do Direito, fazendocom que a força operativa do Estado e a vigência das leis que omesmo edita criem o denominado “constrangimento organizado”(fruto da exteriorização do poder soberano) e a chamada ordem jurídicadotada de caráter de organização totalizante em que o território estatalpassa a ser um simples âmbito geográfico de aplicação espacial dalei, ao passo que o povo uma mera esfera de aplicação pessoal dalei.Portanto, quando grupos paraestatais (ou mesmo,excepcionalmente, indivíduos isolados) competem com o podernormativo, inerente ao Estado, o que existe, em essência, é o início(ou mesmo a consolidação) de um genuíno “Estado Paralelo”, em umprocesso dialético de confronto, cujo resultado será, necessariamente(ainda que sem um lapso temporal totalmente previsível), a substituiçãodo Estado Oficial (existente) pelo (novo) Estado Paralelo (caso clássicoda Alemanha no final da década de 20 e início dos anos 30, do séculoanterior, quando o Estado Oficial deu lugar ao Estado Nazista) ou, aoreverso, a sua absorção, com a conseqüente descaracterização (oumesmo efetiva destruição) do mesmo (como é o caso da ampla maioriados Estados contemporâneos consolidados, especialmente no chamadoPrimeiro Mundo).No que concerne, por outro lado, à indiscutívelexistência do Direito em Sociedades anteriores ao advento de Estado,- e mesmo em Nações dotadas ou não de territórios -, é cediço concluirquanto à inconteste direção evolutiva destas coletividades sociais nafutura construção político-estrutural do Estado (como é o caso clássicoda Palestina). Neste sentido, resta oportuno consignar a idéiaaristotélica de uma autêntica organização teleológica das comunidadesnaturais: “a Cidade (Estado) é o fim de todas as comunidades naturais”(Pol.I,2).)

Ainda assim, é correto afirmar que, com o advento do Estado, - naqualidade de ente coletivo último, resultante do processo evolutivo dosagrupamentos sociais humanos (considerando a própria impossibilidadefática de sobrevivência isolada (solitária) do ser humano) -, o Direito, nãoobstante a aparente diversidade de suas pretensas ordens jurídicas (infra-estatal / sociedades civis de modo geral, supra-estatal / organismosinternacionais, paraestatal / contrária à ordem estatal oficial e mesmotransestatal / indiferente à ordem estatal oficial), sempre se efetiva comoconseqüência do mesmo, ainda que possa, eventualmente, se exteriorizar(temporariamente) de forma diversa e paralela em relação ao próprioente estatal oficial.

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Tal fato, cumpre esclarecer, decorre da sinérgica existência do terceiroelemento constitutivo do Estado, ou seja a soberania (em seu aspectosubstantivo) que encerra, em sua vertente exteriorizante, a própria concepçãoestrutural do Estado e do poder originário constituinte, na qualidade dederradeiro responsável pela sua caracterização existencial e funcional.

(Resta evidente, por outro lado, que a temporariedade relativamenteà exteriorização de um reconhecido direito paralelo, especialmentede natureza paraestatal, - concorrendo diretamente com o direitoestatal (e, em alguns casos, até mesmo desafiando a ordem jurídico-política oficial) -, depende, sobretudo, da capacidade efetiva deprojeção da soberania (e de seu conseqüente poder de concreção)do Estado, na exata medida que em sendo a soberania um conceitomeramente abstrato, somente através da exteriorização decaracterísticos elementos de força (militar, econômica, política epsicossocial) é verdadeiramente possível a efetiva e concreta existênciado Estado como genuína realidade político-jurídica.)

Não é por outro motivo que ALESSANDRO GROPPALI (in Douttrina delloStato) afirma textualmente que, através do poder soberano (superanus,supremitas, supremacia ), o Estado se impôs como entidade dotada depoder incontestável, assegurando, para si, com plena hegemonia, omonopólio exclusivo da criação da normatividade jurídica.

“As normas que qualquer outra sociedade expedir para sua própriaorganização e funcionamento são de caráter meramente social esomente se tornam jurídicas quando reconhecidas pelo Estado ouadmitidas na ordem jurídica estatal. Os grupos sociais minoritáriosque existem no Estado podem ser regulados por um código própriode normas, mas estas somente serão consideradas como ordensjurídicas válidas apenas no âmbito interno, pois, se observadas dolado de fora, isto é, do ponto de vista da ordem estatal, ficamimediatamente privadas de autonomia. Se forem contrárias à ordemjurídica estatal, serão eliminadas.(...)

(...) Mesmo uma empresa criminosa organizada, denominada societassceleris, pode apresentar uma hierarquia com especificação de direitose deveres, e suas normas podem, até, ser análogas às normas doEstado, mas nunca serão idênticas, pois não são verdadeiras. Autênticasnormas jurídicas são o contrário disso: seus membros agem em abertocontraste com a ordem jurídica que tutela um determinado conjuntode valores sociais.”(Alessandro Groppali in Douttrina dello Stato).

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1. CONCEPÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO E SUA RELAÇÃO COM OESTADO

Não obstante a relativa primazia, no seio da doutrina pluralista, daconcepção política do poder soberano, afirmando o Estado como entidadecriadora do Direito (positivo), sob a ótica técnico-jurídica, não podemosdeixar de registrar a existência de uma concepção interpretativa, de nítidafeição filosófica, que traduz o fenômeno jurídico em relativacontraposição, como uma espécie de “freio e contra-peso” ao própriopoder estatal.

Esta concepção ideológica que, de maneira simplificada, percebe oDireito como instrumento de oposição ao pretenso “poder imperial” doEstado, ignora, todavia, os vícios de sua própria origem histórica, qualseja: a luta dos agrupamentos humanos organizados dentro do Estado,mormente na Europa absolutista, contra o poder imperial do Rei(governante), fundado, por sua vez, na concepção vigente à época,naquele continente, relativamente à chamada soberania teocrática.

Por efeito conseqüente, toda a construção filosófica de um pretensoDireito contra o Estado (e não produzido pelo mesmo), foi (e, em outrassituações, continua a ser) cunhada muito mais para respaldarideologicamente a “derrubada” de um regime político do quepropriamente para afirmar a possibilidade da existência de um Direito –genuinamente legítimo e forjado por um indivíduo ou um grupo deindivíduos (o que se coaduna mais próximo da realidade pertencente aum Estado, em inexorável contraposição político-jurídica ao mesmo, sema intenção (direta ou indireta) de, na coexistência temporal de Direitosantagônicos (o estatal oficial e o grupal (ou mesmo individual)), forjarum novo Estado substitutivo ao oficialmente existente).

Não podemos nos esquecer que todos os direitos fundamentaisindividuais (e as liberdades públicas de modo mais amplo) encontram-seassegurados no que convencionamos chamar de Constituição que, emlinguagem simples, nada mais é do que a declaração última de conclusãoda construção do próprio Estado, obra derradeira do denominado PoderConstituinte, na qualidade de expressão máxima da soberania nacional.

Portanto, é o próprio Estado, - através de sua inerente normatividade -,que assegura, em última instância, os direitos individuais, afirmando os

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limites de atuação do poder público governamental em sentido amplo(ações executivas, legislativas e jurisdicionais) em relação aos seuscidadãos (nacionais) e eventualmente aos estrangeiros em seu territóriogeográfico.

“A expressão Direitos Constitucionais Fundamentais se refere,sobretudo, a uma ideologia política de determinada ordem jurídica ea uma concepção de vida e do mundo histórico, designando, noDireito Positivo, o conjunto de prerrogativas que se concretizam paraa garantia da convivência social digna, livre e igual da pessoa humanana estrutura e organização do Estado” (Pinto Ferreira in Manual deDireito Constitucional, p. 52).

NOTAS COMPLEMENTARES:

1. Estados Paralelos Transnacionais e Transideológicos

É de considerar, em necessário acréscimo, que nem sempre o objetivoúltimo dos grupos paraestatais ou mesmo transestatais é a “derrubada”formal do Estado oficial (e de seu conseqüente Direito positivo) para, emseu lugar, construir, na mesma extensão do âmbito espacial (territóriogeográfico em sua totalidade) e pessoal (somatório dos nacionais (povo)),um novo Estado, em sua plenitude estrutural.

Muito pelo contrário, contemporaneamente, estes grupos, de nítidafeição transideológica e transnacional, buscam, - de um mododiametralmente diverso de outros movimentos típicos da realidade dosséculos XIX e XX -, a obtenção de uma soberania restrita a uma dimensãoterritorial reduzida (porém compreendida nas fronteiras do territórioestatal oficial) e a uma igualmente dimensão pessoal reduzida (apenassobre uma parcela populacional existente no território restrito ou deinteresse específico), procurando estabelecer, neste contexto, acaracterização efetiva de um autêntico “Estado Paralelo” em que sejapossível o exercício pleno de um correspondente “Direito Paralelo”.

(Sem precisar citar diretamente a situação da Colômbia, em que, hámais de 40 anos, grupos paramilitares (como as FARC) controlamparcela expressiva do território estatal e da população local, exercendo

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– como se Estado fosse – a primazia dos poderes inerentes à soberania,dentre as quais a edição das leis; vale mencionar a própria situação dacidade do Rio de Janeiro, onde a ausência, pelo menos parcial, doEstado oficial tem viabilizado a caracterização estrutural de verdadeirosterritórios (fragmentados) em que a população local é regida por leisparalelas que têm permitido não somente a edição de normasadministrativas de postura municipal próprias (v.g. cotas (gabarito) deconstrução civil), passando pela exploração paralela de serviçospúblicos, até a criação de órgão policial e judicante, inclusive compermissivo legal-constitucional de execução de pena de morte.)

Esta realidade, resta registrar, é típica do que convencionou-sedenominar por Estados Fracos (dotados de regimes políticos nãoplenamente consolidados) em que a efetivação do poder inerente àsoberania ainda não ocorreu (ou jamais ocorrerá), forjando um Direito deexteriorização meramente ficcional.

“(...) Os danos são evidentes (relativamente à instalação dos “EstadoParalelo” nas favelas cariocas). Principalmente no que tange àsegurança pública. Como esses locais se transformaram em trincheiras,com toda a dificuldade de acesso e monitoramento, a polícia nãoconsegue desencastelar os bandidos. As explosões de violência sãoprevisíveis e toleradas. Na semana passada, traficantes tomaram umônibus e queimaram vivos os passageiros. Cinco pessoas que voltavampara casa morreram carbonizadas, entre elas uma menina de 2 anos.Doze pessoas ficaram feridas. Foi o 73º ataque de traficantes a ônibusno Rio de Janeiro neste ano. Nada foi feito antes para evitar essesataques. Previsivelmente, nada será feito agora. Em um país civilizado,manifestações de crueldade e impunidade dessa magnitudederrubariam o prefeito, o governador, o ministro da justiça e opresidente. No Brasil, vai-se colocar a culpa na desigualdade de rendae tudo continuará na mesma. Se o crescimento descontrolado dasfavelas é um drama, a impunidade dos criminosos que elas escondemé uma tragédia.

O primeiro passo para entender a favelização é notar que o processoé secular e nunca foi enfrentado a sério. A favelização ocorreu novácuo do Estado. (...) (Ronaldo Franco e Ronaldo Soares in O Dramado Populismo Urbano; Revista Veja, 7 de dezembro de 2005, p. 84)

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2. Estado Paralelo Clássico

É no chamado Estado Paralelo Clássico, - em virtual oposição aosobjetivos restritivos dos grupos paraestatais (e, em certo aspecto,transestatais) típicos do século XXI -, que se verifica a plena (e gradativa)substituição do Estado Oficial pelo novo Estado, com nítida e diferentematiz ideológica.

Além do caso clássico da Alemanha, destaca-se o exemplo do Vietnãonde, durante muitos anos, perdurou a existência de diversos gruposparaestatais (v.g. o movimento vietgong) atuando em confronto com o EstadoOficial do Vietnã do Sul, apoiado por um governo estrangeiro (EUA), quepor sua vez, encontrava-se constantemente ameaçado pelo Estado Oficialdo Vietnã do Norte que acabou, em 1975, por invadi-lo e unificá-lo,absorvendo não só os vietgongs como todos os demais grupos paramilitarese de guerrilha, expulsando os últimos soldados e assessores norte-americanos, e solidificando, assim, uma única e efetiva soberania política,caracterizando, desta feita, a construção (e a correspondente consolidação)– em território geográfico e sobre o povo do antigo Vietnã do Sul - , de umnovo Estado, gerador de uma nova e oficial normatividade jurídica, aindaque, neste caso particular, preexistente em Estado vizinho (o que a doutrinaclássica costuma designar por transformação do Estado na modalidadeextinção (através de conquista ou incorporação)) mesmo se considerarmos,na hipótese, a evidente identidade sócio-cultural de ambas populaçõesque se constituíram à época (como obviamente ainda se constituem) emum só povo e, conseqüentemente, em uma única Nação.

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O DANO MORAL E SUA QUANTIFICAÇÃOValéria Medeiros de Albuquerque - Juíza

Federal da 9 ª Vara/RJ. Professora de Direito Tributário da Uni-Rio.

È indiscutível nos dias de hoje a importância da reparação por danomoral, estando a mesma expressamente prevista nos artigos 186 e 927,caput do Código Civil vigente.

Danos morais são lesões sofridas por pessoas físicas ou jurídicas emcertos aspectos da personalidade, ocasionadas por investidas injustas eatos ilícitos de terceiros, causando-lhes dores, mágoas, constrangimentos,vexames, enfim, sentimentos e sensações negativas. Atingem amoralidade e a afetividade da pessoa e contrapõem-se aos danosdenominados materiais, que são prejuízos suportados no âmbitopatrimonial do lesado. A concomitância dos danos de natureza moral epatrimonial se verifica sempre que os atos agressivos alcançam a esferageral da vítima, como, por exemplo, nos casos de morte de parentepróximo em acidente ou ataque à honra alheia pela imprensa. Tais danos,além de atingirem as esferas íntima e valorativa do lesado, lhesproporcionam reflexos patrimoniais negativos. O prejuízo é resultanteda ofensa à integridade psíquica ou à personalidade moral, com possívelou efetivo prejuízo do patrimônio moral.

Hoje em dia, destaca-se sobremaneira a reparação civil por danosmorais em decorrência da evolução das comunicações e da crescenteconscientização a respeito dos direitos da personalidade.

Segundo Maria Helena Diniz1, responsabilidade civil é “a aplicaçãode medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial

1 Curso de Direito Civil Brasileiro, Responsabilidade Civil. Ed. Saraiva, São Paulo, 1984. vol. 7 º , p. 32.

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causado a terceiros, em razão de ato do próprio imputado, de pessoa porquem ele responde, ou de fato, de coisa ou animal sob sua guarda(responsabilidade subjetiva), ou, ainda, de simples imposição legal(responsabilidade objetiva)”.

Quanto à prova do dano moral, defendo a corrente segundo a qualeste está ínsito na própria ofensa, decorrente da ilicitude em si mesma.Logo, se a ofensa é grave e de repercussão, esta é a prova e a justificativapara a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.

CRITÉRIOS PARA A QUANTIFICAÇÃO:

O tema se reveste de contornos extremamente polêmicos quando,constatado o dano moral, se parte para sua quantificação, apesar deexistirem pulverizados, tanto na doutrina como na jurisprudência, algunsparâmetros para a fixação.

Conforme entendimento do Desembargador Sérgio Cavalieri Filho 2,“uma das objeções que se fazia à reparabilidade do dano moral era adificuldade para se apurar o valor desse dano, ou seja, para quantificá-lo.A dificuldade, na verdade, era menor do que se dizia, porquanto eminúmeros casos a lei manda que se recorra ao arbitramento (Código Civilde 1916, art. 1.536, § 1o). E tal é o caso do dano moral. Não há, realmente,outro meio mais eficiente para se fixar o dano moral a não ser peloarbitramento judicial. Cabe ao Juiz, de acordo com o seu prudente arbítrio,atentando para a repercussão do dano e a possibilidade econômica doofensor, estimar uma quantia a título de reparação pelo dano moral.

Em vários dispositivos legais vamos encontrar critérios para aquantificação do dano moral. Os tribunais, reiteradamente, têm adotadoo critério previsto no art. 84, § 1 º , do Código Brasileiro deTelecomunicações, que manda fixar a indenização entre 5 e 100 saláriosmínimos para as hipóteses de calúnia, difamação ou injúria. (...)

2 Programa de Responsabilidade Civil, Malheiros Editores, São Paulo, 2002, 3 ª edição, p. 95/96.

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Valéria Medeiros de Albuquerque

A Lei de imprensa, por seu turno (Lei n º 5.250/67), em seus arts. 51 e52, limita a determinados números de salários mínimos a responsabilidadecivil do jornalista profissional e da empresa que explora o meio deinformação ou divulgação. Estou convencido, todavia, de que não há maisnenhum limite legal prefixado, nenhuma tabela ou tarifa a ser observadapelo juiz, mormente após a Constituição de 1988. Nesse sentido,recomendo a leitura do brilhante acórdão da 1 ª Câmara Civil do Tribunalde Justiça do Rio de Janeiro no julgamento da Ap. Cível 5.260/41, do qualfoi relator o eminente Ministro Carlos Alberto Direito, quando aindaDesembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A ementa dessev. acórdão, na parte que nos interessa, diz assim: “A indenização pordano moral, com a Constituição de 1988, é igual para todos, inaplicável oprivilégio de limitar o valor da indenização para a empresa que explora omeio de informação e divulgação, mesmo porque a natureza da regraconstitucional é mais ampla, indo além das estipulações da Lei deImprensa.“

Em recente julgamento envolvendo reparação por dano moral ocorridona 6a. Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2 ª Região, doqual participei como revisora, travou-se uma longa discussão acerca daquantificação do dano moral.

O processo em tela envolvia pedido de indenização por dano moralformulado pelos pais em razão da morte da filha, aos cinco anos, infectadapelo vírus da AIDS em uma transfusão de sangue realizada em hospitalpúblico.

Ora, imagino a dor destes pais. A extensão do sentimento de dorresultante da perda de um filho é incomensurável, inexistindo indenizaçãosuficiente para reparar integralmente a falta irreversível, sendo possível,tão somente, a amenização de seus efeitos. A dor, pode-se dizer, é umantecedente, do qual são conseqüentes os sofrimentos, os sentimentosque devem ser arredados ou, no mínimo, minorados, pelo que se reparamtais conseqüências e seqüelas.

A dificuldade na fixação do quantum da indenização tem geradodiversas tentativas de padronização, as quais restaram infrutíferas, levando-nos à conclusão de que o melhor caminho é o discernimento do

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magistrado, considerando os critérios sugeridos tanto pela doutrina ecomo pela jurisprudência, com razoabilidade, de acordo com aspeculiaridades de cada caso, tais como a dimensão do sofrimento íntimoexperimentado, o grau de culpa do infrator, o nível sócio-econômico dosautores e o porte econômico dos réus, havendo sempre algumsubjetivismo.

Nossa jurisprudência vem consolidando este posicionamento,conforme exemplificado nas seguintes ementas:

Civil. Recurso especial. Ação de indenização por danos materiais ecompensação por danos morais. Erro médico. Morte de menor duranteprocedimento cirúrgico de baixo risco. Choque anafilático enegligência do cirurgião. Pensão mensal vitalícia afastada pelo Tribunal.Deficiência de fundamentação do recurso quanto ao ponto.

Fixação dos danos morais.

- Não se conhece de recurso especial deficientemente fundamentado.

- A revisão do valor estipulado como compensação pelos danos moraissofridos só é possível em casos excepcionais, para que se afasteflagrante descompasso em relação ao que ordinariamente entende oSTJ como “ justa compensação”.

- Tal medida se justifica, na presente hipótese, porque não é de seaceitar que o Tribunal reduza o valor compensatório estabelecidopela sentença apenas com fundamento em um prévio tabelamentode valores financeiros, válido para toda e qualquer demanda, de formaa relegar a um plano secundário as circunstâncias fáticas específicasde cada lide.

Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.

(STJ - RESP 659.420-PB – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJ: 01/02/06)

RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. MORTE.INDENIZAÇÃO. PENSIONAMENTO. TERMO AD QUEM. TABELA DOIBGE. CRITÉRIOS. ORIENTAÇÃO DO TRIBUNAL. RELATIVIDADE.CORREÇÃO MONETÁRIA.

-Não obstante ter a jurisprudência desta Corte, na maioria dos casos,fixado, para fins de pensão indenizatória, como tempo provável devida do falecido, a idade de 65 (sessenta e cinco) anos, certo é que

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tal orientação não é absoluta, servindo apenas como referência, nãosignificando que seja tal patamar utilizado em todos os casos,notadamente naqueles em que a vítima já possuía idade avançada oumesmo superior ao referido patamar.

- A correção monetária, em dívida por ato ilícito, incide a partir dadata do efetivo prejuízo e, não, do ajuizamento da ação, nos termosdo verbete 43, da Súmula do STJ.

(STJ – RESP 72.739/SP – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira – DJ06/11/2000)

Logo, não resta dúvida, o arbitramento judicial é o meio mais eficientepara a fixação e quantificação do dano moral e o magistrado, componderação e razoabilidade, o fará. Embora o julgador não estejasubordinado a nenhum limite numérico nem a qualquer tabela prefixada,deve estimar uma quantia compatível com o nível de reprovação daconduta ilícita e a gravidade do dano produzido, atentando sempre paraa necessidade de se coibir o enriquecimento sem causa.

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REDEFINIÇÃO DE PAPÉIS NA EXECUÇÃO DEQUANTIA CERTA CONTRA A FAZENDA

PÚBLICA1

Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva - Professor Titular daFaculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense. Juiz

Federal no Rio de Janeiro. Mestre e Doutor em Direito pelaUniversidade Gama Filho. Membro do IBDP, do Instituto

Iberoamericano de Derecho Procesal, e da Sociedade Brasileira deDireito Internacional.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A natureza jurídica do precatório e os demaismeios de realização do título executivo – 3. Delimitação de atribuiçõesdo Presidente do Tribunal e o do juiz da execução no regime doprecatório – 4. Aspectos pontuais e atuais da “execução” sob regime deprecatório e RPV – 5. A Execução forçada de crédito de pequeno valor,nos JEFs e contra as Fazendas estaduais e municipais – 6. A execuçãoforçada contra a Fazenda Pública e considerações finais.

1. INTRODUÇÃO

A lei processual brasileira trata a execução de sentenças contra aAdministração Pública de forma absolutamente incoerente, nãoconsiderando, na escolha do procedimento, a natureza do litígio (públicoou privado) nem a qualidade da parte (ente privado, ente público ouente privado no exercício de função pública).

1 Texto da palestra proferida nas Jornadas de Direito Processual Civil, do Instituto Brasileiro deDireito Processual, realizadas entre 10 e 14 de outubro de 2005, em Brasília-DF. Publicado na Revistado Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, vol. 31, Brasília, CJF, dez. 2005.

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De acordo com o Código de Processo Civil, a título de exemplo, sãoidênticos os procedimentos de execução de obrigação de fazer destinadoao particular e à Fazenda Pública.

Nesse mesmo diploma, a execução de quantia certa contra a FazendaPública é indistintamente por meio de precatório judicial, poucoimportando ser oriunda de um crédito de direito privado.

É, ainda, irrelevante pelo Código de Processo Civil, que o devedor,sendo pessoa jurídica de direito privado, esteja no exercício de funçãopública, realizando um serviço essencial à sociedade; neste caso aplicar-se-ão as regras da execução contra particulares.2

A incoerência é patente, leva à perplexidade e a um sentimento deinjustiça, ora admitindo indevidamente uma execução plena orarestringindo-a desnecessariamente3.

Vale refletir sobre as seguintes situações.

A execução de obrigação de fazer contra a Fazenda Pública, mesmoque envolvendo uma despesa milionária e com possibilidades de sacrificaro orçamento público, estará sujeita a um procedimento idêntico ao daexecução contra particulares, inclusive quanto aos meios de coerçãopsicológica do art. 461, do CPC.

Por outro lado, uma execução de quantia certa de obrigação alimentar,que pela própria natureza é essencial à vida, dependerá de previsãoorçamentária e o seu pagamento ocorrerá, na melhor das hipóteses, noexercício financeiro seguinte4.

2 A exceção, não prevista do CPC, é do Dec.-lei 509/69, que assegura à Empresa Brasileira deCorreios e Telégrafos (ECT), pessoa jurídica de direito privado, o regime do precatório judicial, cf.AgIn 561.641/RS, Rel. Min. Cezar Peluso, DJU em 17.10.2005, p. 74 (Disponível no site do STF– Jurisprudência – Decisão monocrática).3 V. Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva. Execução no Código Modelo Ibero-Americano deDireito Processual e as causas de interesse público (Inédito).4 Na Reclamação 3.350, de que foi relator o Min. Celso de Mello, o Supremo Tribunal Federalreafirmou que os créditos alimentares estão sujeitos a precatório e o seqüestro só cabe no caso depreterição: “ (...) no julgamento de mérito da ADIn 1.662-SP, que a previsão de que trata o § 4.º doartigo 78 do ADCT-CF/88, na redação dada pela EC 30/00, refere-se exclusivamente aos casos deparcelamento de que cuida o caput desse dispositivo. Inaplicável, portanto, aos débitos trabalhistasde natureza alimentícia. (...) Ratificação da exegese de que a única situação suficiente para motivaro seqüestro de verbas públicas destinadas à satisfação de dívidas judiciais alimentares é a ocorrênciade preterição da ordem de precedência, ausente no caso concreto”. (Disponível no site do STF –Jurisprudência – Decisão monocrática. DJU em 08.03.2006, p. 52)

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É, a meu ver, uma anomalia de origem profunda, cercada de dogmas,e de inteira responsabilidade da doutrina brasileira, que somente há poucodesperta para a necessidade de consolidação de uma disciplina autônomadestinada ao processo civil das causas de Direito Administrativo, DireitoTributário e Direito Previdenciário, para a qual Cássio Sacarpinella Buenoutiliza a expressão “Direito Processual Público”5.

Porém, embora seja a execução de obrigação de fazer contra a FazendaPública tema demasiadamente instigante, limitar-me-ei à execução dequantia certa, considerado pela legislação o único procedimento especialem relação aos particulares.

2. A NATUREZA JURÍDICA DO PRECATÓRIO E OS DEMAIS MEIOS DEREALIZAÇÃO DO TÍTULO EXECUTIVO

É tradição do Direito Constitucional brasileiro prever o precatório judicialcomo procedimento de pagamento de título executivo judicial contra aFazenda Pública.

Está convencionado entre nós que o precatório judicial impede a execuçãoforçada, sujeitando o pagamento à existência de dotação orçamentária prévia,o que depende de lei e, portanto, de vontade e política.

A previsão constitucional do precatório judicial associado às regrasorçamentárias é inegavelmente incompatível com a expropriação judiciale já me levou a classificá-lo como uma execução impossível ou voluntária,na esteira dos ensinamentos de Liebman6.

Após novas reflexões, arrisco afirmar que o precatório judicial sequeré procedimento de execução, como ocorre na obrigação de fazerinfungível, em que o devedor necessita ser instado por meios de coerçãopara realizar o título.

O precatório judicial é um procedimento administrativo e complexo,que externa um ato de vontade da Fazenda Pública devedora nocumprimento extrajudicial do título executivo.

5 Direito Processual Público. Malheiros, 2003, p. 31.6 Ricardo Perlingeiro. Execução contra a Fazenda Pública. Malheiros, 1999, p. 235.

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É administrativo porquanto associado às regras e princípiosorçamentários, internos e inerentes à Administração Pública, a quemcompete, com exclusividade, gastar aquilo que prevê.

É complexo porque está sujeito a etapas que transitam por órgãos doExecutivo, Legislativo e até mesmo do Judiciário, em função atípica queé a do Presidente do Tribunal.

É voluntário porque depende de disponibilidade orçamentária em leie é extrajudicial devido ao pagamento ser realizado sem que hajainterferência do juiz da execução.

A natureza jurídica do precatório, tal como proposta, consiste no cerneda questão, tratando-se de premissa básica para todo raciocínio ecompreensão do sistema brasileiro de execução de sentenças contra aFazenda Pública.

O precatório judicial é um procedimento alheio ao processo deexecução de quantia certa contra a Fazenda Pública, que sequer temprevisão no Código de Processo Civil.

O mal não está exatamente no precatório, mas sim na impossibilidadede execução forçada, ou mais grave, naquela interpretação de que oprecatório constitucional implica na impossibilidade de expropriaçãojudicial da Fazenda Pública.

Na verdade, qualquer título executivo de quantia certa contra um enteparticular pode ser realizado voluntária ou involuntariamente. É natural,assim, que o devedor, desejando pagar o título, procure o credor epromova a quitação extrajudicial, ou às vezes, instado no processo deexecução, o faça judicialmente.

Entretanto, não efetuando o pagamento, esse devedor estará sujeito àexecução forçada, de modo a permitir a satisfação do título por meio deexpropriação judicial.

É coerente e lógico que a Fazenda Pública, pagando voluntariamentesuas dívidas judiciais, o faça por meio do precatório, sendo igualmentelógico que, dependendo esse ato de vontade, seja indispensável umaprevisão orçamentária. Tudo aquilo que se gasta por vontade própriadepende de orçamento prévio.

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Incoerente e incompreensível seria se estivéssemos diante de umaexecução forçada e a Fazenda Pública dependesse de previsãoorçamentária. Só se prevê aquilo que está no âmbito de suadisponibilidade.

Mas como o precatório é um ato de vontade, esta vontade, para sermaterializada, depende de previsão.

Está, ainda, intrinsecamente vinculada ao precatório a observância àordem de preferência, pois se o pagamento é voluntário, em tese poderiahaver escolha de credor, sem razoabilidade7 ou acobertando advocaciaadministrativa.

Entretanto, nunca é demais lembrar que não assegurar o direito à execuçãoé o mesmo que negar o direito de ação8, não sendo admissível no atualestágio da sociedade interpretar o princípio do Estado Democrático de Direitode modo a concluir que não há execução contra a Fazenda Pública9.

Não é o precatório que deve impedir a execução forçada contra aFazenda Pública, mas sim a supremacia do interesse público sobre oindividual que, à luz do caso concreto, pode realmente levar ao sacrifícioda execução.

O precatório judicial é um procedimento de cumprimento voluntáriodo título executivo, sem prejuízo da execução forçada que for consideradanecessária.

A efetividade da jurisdição em face da Fazenda Pública deve cederapenas nos casos em que o direito ali declarado colocar em risco uminteresse maior.

7 Um critério razoável seria o apresentado, recentemente, pelo Ministro Nelson Jobim, Presidentedo Supremo Tribunal Federal, ao propor que “a ‘fila’ dos credores passasse a ser ordenada cumprindouma função social, ou seja, ela teria ordem crescente, com os pagamentos começando pelos títulosde valores mais baixos” (Jobim propõe alternativa para pagamento de precatórios judiciais, Notíciasdo Supremo Tribunal Federal, Brasília, STF, 06.09.2005. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>Acesso em: 09.10.2005.8 Juan Antonio Robles Garzón. Avances en la ejecución de sentencias contra la Administración.Navarra, 2004, p. 18.9 Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional, t. IV. Coimbra, 1998, p. 248; Marcelo Caetano.Manual de Direito Administrativo. Almedina, 1994, p. 1.400, v. II.

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No direito português, apenas para citar um modelo mais próximo, existemas causas legítimas de descumprimento da execução que são alegadas eprovadas pela Administração Pública em processo com contraditório10.

O exemplo lusitano é bem interessante para compreendermos osistema do precatório brasileiro.

Em Portugal, o título executivo contra a Administração Pública podeser realizado de duas maneiras, uma por procedimento administrativo,em que o orçamento prévio é condição sine qua non, e outra por execuçãoforçada, em que apenas os bens públicos dominiais responderão11.

No Brasil já temos algo parecido.

Com a Emenda Constitucional 30, de 2000, os créditos de pequenovalor não se sujeitam ao precatório judicial.

Isso não significa que a Fazenda Pública não possa mais pagarvoluntariamente suas dívidas judiciais de pequeno valor.

Em absoluto; o que a regra constitucional deseja é afastar tão-somentea imposição de que o pagamento voluntário seja exclusivamente por meiodo precatório judicial, facultando à Fazenda Pública a utilização de outrosmeios infraconstitucionais para realizar voluntariamente o título.

E assim tem ocorrido no âmbito da Justiça Federal, por meios dasdenominadas Requisições de Pequeno Valor (RPV), que nada mais sãodo que procedimentos com a mesma natureza jurídica dos precatórios,diferenciando-se apenas quanto ao prazo para pagamento, que é inferior.

A dispensa de precatório, prevista na Emenda Constitucional 30, por sisó, não enseja um direito ao credor público, pois esse pagamento, quandovoluntário, continuaria a depender de previsão orçamentária e vontadepolítica do devedor.

10 Diogo Freitas do Amaral. A execução de sentenças dos tribunais administrativos. Coimbra,1997, p. 223. Sobre os limites à execução forçada no direito espanhol: Milagros López Gil, Avancesem la ejecución de sentencias contra la Administración. Navarra, 2004, 67.11 Sobre a penhora de bem público: Art. 822, b, e art. 823, 1, ambos do Código de Processo CivilPortuguês. No direito espanhol, vale consultar a Sentença do Tribunal Constitucional Espanhol n.166/1998, que trata da inconstitucionalidade de leis que vedam a penhora de bens públicos dominiais.A respeito do procedimento administrativo e judicial para realização do título executivo no direitoportuguês: Ricardo Perlingeiro. Execução contra a Fazenda Pública. Malheiros, 1999, p. 74.

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Na realidade, o direito do credor público à execução das sentenças épreexistente à referida Emenda Constitucional e decorre do princípio do acessoà Justiça, sendo, nesse ponto, irrelevante a Constituição dispensar o precatório.

Porém, o interessante nisso tudo é que, com essa alteraçãoconstitucional, foi editada a Lei 10.259/2001, que trata dos juizadosespeciais federais e, no seu art. 17, prevê a execução forçada dos créditosde pequeno valor, sujeitando a Fazenda Pública ao seqüestro de numeráriocorrespondente.

Não era nem mesmo uma conseqüência lógica da nova regraconstitucional, porém o seqüestro da Lei dos Juizados Especiais Federaisjamais foi considerado inconstitucional, o que é demonstração de quehoje, ao menos quanto aos créditos de pequeno valor, coexistem na leiduas maneiras de realizar títulos executivos: uma voluntária, por meio daRPV, e outra forçada por meio do seqüestro.

De todo o exposto, permito-me a uma conclusão parcial: as normasconstitucionais que prevêem o precatório judicial ou a sua dispensa nãoafastam do legislador infraconstitucional o poder de dispor sobre aexecução forçada contra a Fazenda Pública, que deve ser conduzida, nocaso concreto, de modo a preservar a supremacia do interesse público.

3. DELIMITAÇÃO DE ATRIBUIÇÕES DO PRESIDENTE DO TRIBUNAL EO DO JUIZ DA EXECUÇÃO NO REGIME DO PRECATÓRIO

Observando o disposto no art. 730 do Código de Processo Civil, o juizda execução deve proceder à citação da Fazenda Pública, para oporembargos, e na ausência ou improcedência destes, requisitar o precatório.

A fase jurisdicional propriamente dita do juiz da execução esgota-secom a declaração do valor devido e com a declaração do status de credore de devedor.

A partir daí, já no procedimento do precatório, nada mais restará aojuiz da execução.

O meio pelo qual será elaborada a fila de credores, ou a forma depagamento, integral ou parcelado, em fila única ou especial de credores

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alimentares, será ditado pela Fazenda Pública nesse procedimentoadministrativo complexo.

Os deveres da Fazenda Pública no precatório, incluindo-se todosagentes públicos que dele participam, sejam do Executivo, do Legislativoou do Judiciário, no caso do Presidente do Tribunal, estão sujeitos àsregras administrativas e orçamentárias, e ao imperativo constitucional daobservância à ordem de preferência.

O juiz da execução apenas declara o título, apontando o credor e odevedor, e este, observando a ordem de preferência e disponibilidadeorçamentária, efetua o pagamento.

A interferência do juízo da execução no precatório é inconstitucionalpor ofensa ao princípio da tripartição de poderes.

Não cabe, por exemplo, ao juízo da execução: (a) impor oprocessamento de precatório enquanto não houver trânsito em julgadoda sentença de embargos ou liquidação, enquanto a lei orçamentáriadispuser diferentemente12; (b) determinar que o pagamento seja integral,se a lei previr parcelamento de até 10 anos13; ou, ainda, (c) decidir que olevantamento não será condicionado à apresentação de certidõesnegativas14.

Da mesma maneira, seria inconstitucional a interferência do Presidentedo Tribunal no valor do título fixado pelo juízo da execução, pois além deestar, indevidamente, exercendo uma função jurisdicional, correria o riscode quebrar a ordem de preferência no caso da retificação ensejar umvalor superior ao requisitado.

A função jurisdicional conferida ao Presidente do Tribunal diz respeitotão-somente à decisão sobre o seqüestro no caso de quebra da ordem depreferência, o qual depende de processo autônomo, garantido o direitode ampla defesa e do contraditório.

A propósito, tal processo é independente da execução e do próprioprecatório, sendo curiosa posição a do Presidente do Tribunal, que hoje

12 Art. 23 da Lei 10.934/2004.13 Art. 24, I, da Lei 10.934/2004.14 Lei 11.033/2004.

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é o único a ser responsabilizado pela quebra da ordem, já que os recursosrequisitados em precatórios são disponibilizados, pela Fazenda Pública,ao Judiciário, competindo àquele dirigente máximo a elaboração da listae a distribuição correspondente aos credores15.

Na verdade, a competência para o processo do pedido de seqüestroserá do órgão “Presidência”, não podendo o ser julgado pelo mesmo juizpresidente que dera causa à quebra da ordem, pois seria o caso deimpedimento.

4. ASPECTOS PONTUAIS E ATUAIS DA “EXECUÇÃO” SOB REGIME DEPRECATÓRIO E RPV

O procedimento do precatório judicial, na fase perante a Presidênciado Tribunal, deve ser regulamentado por ato administrativo normativo,que, na ausência de lei, assegure a observância à ordem de preferênciae às normas orçamentárias.

O pagamento do título executivo, sob modalidade de precatório, podeser integral ou parcelado, sujeito a uma fila comum ou especial.

O pagamento será integral se for de natureza alimentar, pequeno valorou então decorrente de ação judicial intentada a partir de 2000; seráparcelado em até 10 anos se o crédito não for alimentar ou de pequenovalor e decorrer de ação intentada até 199916.

Compete ao Presidente do Tribunal atribuir natureza alimentar oucomum ao título executivo, e indicar ser o pagamento parcelado ouintegral, a partir de informações que são prestadas pelo juízo da execução.

No âmbito da Justiça Federal, a Resolução 438, do Conselho da JustiçaFederal, de 30 de maio de 2005, dispõe sobre o precatório judicial e asrequisições de pequeno valor.

15 Art. 100, § 2.º, da CF/88: “As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignadosdiretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exeqüendadeterminar o pagamento segundo as possibilidades do depósito, e autorizar, a requerimento docredor, e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o seqüestro daquantia necessária à satisfação do débito”.16 Art. 78 do ADCT da CF/88, com redação da EC 30/2000.

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A diferença entre o procedimento do precatório e da requisição depequeno valor reside, basicamente, no prazo do pagamento, que na RPVé de até 60 dias da data da apresentação no Tribunal, enquanto que oprecatório é pago no exercício seguinte ao da apresentação.

No mais é tudo igual: natureza de pagamento voluntário; naturezaadministrativa do procedimento; origem orçamentária; competênciaconcentrada na Presidência do Tribunal.

Segundo a Lei 10.259/2001, sendo a Fazenda Pública ente federal,pequeno valor corresponde a 60 salários mínimos.

Tratando-se de ente estadual ou distrital, pequeno valor correspondea 40 salários mínimos e, no caso de ente municipal, a 30 salários mínimos,de acordo com o art. 87 dos ADCT da Constituição Federal, com a redaçãoconferida pela emenda Constitucional 37/2002.

O valor do limite a ser considerado para o efeito de pagamento semprecatório é o da data da apresentação da requisição no Tribunal, não seaplicando atualização monetária ou juros de mora, entre a data do cálculoe a data da requisição.

No caso de litisconsórcio simples, leva-se em conta valor por autor oupor devedor, porém em relação a cada autor considera-se a totalidadedos seus pedidos, eventualmente cumulados.

Aquele que desejar a dispensa do precatório, embora possua um créditosuperior ao limite, deverá renunciar expressamente ao remanescente,sendo vedado o desmembramento para o efeito de recebimento de partepor precatório e de parte por RPV.

Não obstante, depois de efetuado o pagamento sem precatório,havendo ainda valores a receber por fato superveniente e do qual nãotinha conhecimento o credor, será admissível o fracionamento, porém opagamento desse remanescente será por precatório.

A cessão de créditos, seja na fase cognitiva seja na fase executiva, oupendente o precatório ou RPV, não é capaz de alterar a natureza do crédito(alimentar e comum), a forma de pagamento (integral e parcelado), ou,ainda, o procedimento (precatório e RPV).

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Por exemplo, um crédito decorrente de desapropriação, no valor deR$ 100.000, sujeito ao parcelamento, se for cedido a 10 pessoas,ensejando um valor individual de R$ 10.000, continuará sendo pago porprecatório, embora inferior ao limite.

O mesmo ocorreria com a retenção dos honorários contratuais17.Digamos que o credor dessa desapropriação autorizasse a retenção de20% do total da execução, a título de honorários contratuais, em favor doseu advogado.

Esse percentual deverá ser pago mediante precatório e no mesmonúmero de parcelas a que seria pago o crédito originário.

A Resolução 438, do CJF, não exige peças ou cópias dos autosprocessuais, bastando informações do Juiz ou do Diretor de Secretaria aoPresidente do Tribunal18, o que, além de trazer celeridade e economiaprocessual, conduz corretamente ao juízo da execução os incidentes daexecução, relativamente ao valor e titularidade do título.

Dentre outras, a referida Resolução exige, como documento essencialà instrução dos precatórios, informações sobre o CPF do credor19 e sobre otrânsito em julgado da decisão de conhecimento20, da decisão que homologaos valores requisitados, ou da data em que estes se tornaram preclusos21.

A exigência de CPF dos credores decorre de lei de responsabilidade fiscal,que impõe a todos beneficiários do poder público a identificação prévia22.

17 Art. 5.º, § 2.º, da Resolução 438, do CJF, de 2005: “A parcela da condenação comprometida comhonorários de advogado por força de ajuste contratual não perde sua natureza, e dela, condenação,não pode ser destacada para efeitos da espécie de requisição; conseqüentemente, o contrato dehonorários de advogado não transforma em alimentar um crédito comum, nem substitui umahipótese de precatório por requisição de pequeno valor”.18 Art. 6.º da Resolução 438/CJF: “O juiz da execução informará na requisição os seguintes dadosconstantes do processo (...)”.19 Art. 6.º, IV.20 Art. 6.º, VIII.21 Art. 6.º, IX: “data de preclusão da oposição ao título executivo, quando este for certo e líquido,ou, se o título não for certo e líquido, a data em que, após citação regular do devedor, transitou emjulgado a decisão ou a sentença de liquidação”.22 LC 101/2000, art. 10: “A execução orçamentária e financeira identificará os beneficiários depagamento de sentenças judiciais, por meio de sistema de contabilidade e administração financeira,para fins de observância da ordem cronológica determinada no art. 100 da Constituição”.

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A definitividade não só da sentença de conhecimento, masespecialmente do valor requisitado, decorre de princípio orçamentáriosegundo o qual o poder público não deve ser instado ao desembolso dequantias ou créditos provisórios, que poderiam ser destinados a outrasfinalidades23.

Além disso, permitir que seja expedido um precatório em sede deexecução provisória é, indiretamente, um meio de burlar a ordem depreferência, “guardando lugar na fila” para favorecer aqueles que têmexpectativa de direito, em detrimento dos que já obtiveram um título definitivo.

A inobservância aos requisitos formais para instrução do precatório eda RPV é causa de cancelamento, para que não seja possível que umcredor mais antigo, sem preencher os requisitos previamenteestabelecidos, receba na frente de credor mais novo que cumpriurigorosamente as regras.

A retificação é admitida apenas nos casos de erros materiais que não ensejemaumento de despesa quanto da apresentação do precatório no Tribunal24.

Quanto ao pagamento, no texto da referida Resolução 438, do CJF, oTribunal solicitará à agência bancária a abertura de conta específica emnome do beneficiário e efetuará o depósito, que terá natureza extrajudiciale, portanto, não estará sujeito a alvará judicial25.

A extinção dos alvarás judiciais, no pagamento de valores decorrentesde precatórios e RPVs, é condizente com a natureza administrativa,voluntária e extrajudicial daquele procedimento.

23 Posição de Leonardo Santos Carvalho (Efetividade da jurisdição em sede de execução porquantia certa contra a Fazenda Pública. Monografia de conclusão de curso. Rio de Janeiro, UFRJ,2004). Hoje a questão está pacificada na jurisprudência, ante a redação do art. 100, § 1.º, da CF/88,com a redação da EC 30/2000, que exige o trânsito em julgado da sentença que declara valorescontra a Fazenda Pública. Porém, até então vinha sendo admitida execução provisória contra aFazenda Pública (RE 463.936/PR, Rel. Joaquim Barbosa, DJU em 05.10.2005, p. 97. Disponívelno site do STF – Jurisprudência – Decisão monocrática). Registre-se, entretanto, que a perspectivasustentada neste ensaio é outra, a de que o precatório não sendo uma execução, não há que se falarem determinação do juiz para que seja processado precatório provisoriamente. O Presidente doTribunal é quem definirá a situação, na qualidade de longa manus do devedor e observandoestritamente a legislação orçamentária que, de um modo geral, exigia o trânsito em julgado.24 Art. 13 da Resolução 438, do CJF, de 2005.25 Art. 17 caput da Resolução 438, do CJF, de 2005.

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O saque desses valores depositados diretamente será promovido pelopróprio interessado ou por procurador, não necessariamente porprocuração ad judicia, observando-se as regras bancárias estabelecidaspelo Banco Central26

5. A EXECUÇÃO FORÇADA DE CRÉDITO DE PEQUENO VALOR, NOSJEFS E CONTRA AS FAZENDAS ESTADUAIS E MUNICIPAIS

A Lei 10.259/2001, no seu art. 17, permite que o juízo da execução requisiteda Fazenda Pública o valor devido em até 60 dias, sob pena de seqüestro.

Esse prazo começa a contar da data em que é protocolada a RPV noTribunal, que, no exercício de função administrativa, quase um longamanus do devedor, tem o dever de efetuar o pagamento em 60 dias.

A rigor, não sendo o pagamento efetuado no referido prazo, estariamos juizes autorizados a promoverem o seqüestro imposto pela Lei 10.259/2001, sem que haja necessidade de novo procedimento requistório.

O seqüestro a que se refere é, na realidade, um arresto de naturezaexecutiva, encerrando uma desapropriação judicial.

Apreendida a importância, não se abre prazo para defesa, mesmoporque esta já fora exercida anteriormente, entregando-se os recursosao credor e realizando o título.

Porém, a controvérsia maior está na execução de pequeno valor de causasnão sujeitas ao procedimento especial dos juizados especiais federais.

No caso do devedor ser Fazenda federal, o cabimento do seqüestro éinquestionável, devendo, assim, haver compatibilidade entre asdisposições do Código de Processo Civil e o prazo de 60 dias que a Fazendafederal possui para o pagamento sem sujeitar-se ao seqüestro.

Inicialmente, o procedimento será o mesmo, devendo a Fazenda federalser citada para opor embargos no prazo de 30 dias.

26 Art. 17, § 1.º, da Resolução 438, do CJF, de 2005.

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A diferença será a partir do término do prazo para oposição dosembargos ou do seu julgamento improcedente.

Não haverá expedição de precatório, mas sim de RPV, para que, noprazo de 60 dias, seja procedido voluntariamente o pagamento, sob penado juiz da execução determinar o seqüestro.

De fato, uma vez realizado esse seqüestro nada mais resta senãoentregar a importância ao credor, da mesma maneira que adotado para oprocedimento nos Juizados Especiais Federais.

No âmbito da Justiça Estadual, os limites para pagamento sem precatórioforam fixados por Emenda Constitucional e, portanto, a RPV pode seraplicada pelos Tribunais estaduais.

Penso, todavia, que se trata de uma faculdade do Estado, que, de acordocom sua discricionariedade política, irá incluir no orçamento verbadestinada ao pagamento das requisições de pequeno valor; não o fazendo,persistiria o procedimento do precatório judicial.

Assim entendo porque a Constituição Federal não prevê o valor dolimite nem o prazo para o pagamento sem precatório, delegando aolegislador infraconstitucional a regulamentação, que deve ser fruto dapolítica legislativa de cada unidade federativa27.

A dúvida, entretanto, é se cabe o decreto de seqüestro caso não hajao pagamento do crédito de pequeno valor, seja por RPV seja por outromeio qualquer.

Retorno às idéias iniciais deste texto, a de que o regime do precatórioimposto pela Constituição não pode jamais ser justificativa para inviabilizaruma execução forçada contra a Fazenda Pública.

Se o precatório judicial não é óbice, por que não admitirmos a execuçãoforçada de pequeno valor contra a Fazenda estadual, distrital ou municipal?

27 Embora não tenha sido aprovada, serve de alerta que a MedProv 252, conhecida como “MP doBem”, votada em 06.10.2005, acrescentava os §§ 5.º e 6.º ao art. 17 da Lei 10.259/2001,determinando que as requisições judiciais que não fossem atendidas por falta de disponibilidadeorçamentária só poderiam ser pagas no exercício financeiro seguinte ou após abertura de créditosuplementar. Além disso, o Projeto de Lei 5.760/2001, de autoria do Senador Paulo Hartung, apóssucessivas emendas, prevê a revogação do seqüestro do art. 17 da Lei 10.259/2001.

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Surge aí uma questão de Direito Constitucional e Direito Administrativo.Qual bem público estaria sujeito à expropriação judicial? No âmbitofederal, a lei considerou dominial o dinheiro.

Será que essa lei federal poderia indicar bens estaduais e municipaiscomo dominiais para o efeito de execução forçada? Creio que haveriaofensa ao princípio da federação.

Não obstante, não seria razoável concluir pela impossibilidade deexecução forçada contra a fazenda estadual, distrital ou municipal.

Na falta de lei definindo qual bem deva ser dominial, deverá o juiz daexecução, após ouvir a Fazenda Pública, decidir a respeito, observandoprincipalmente a necessidade de continuidade de serviço públicoessencial à coletividade, que, de fato, seria uma causa legítima dedescumprimento à ordem judicial.

Nada impede, entretanto, que ponderando valores constitucionais o juizopte pela execução forçada e determine o seqüestro ou a apreensão debens públicos estaduais ou municipais necessários à satisfação do crédito28.

6. A EXECUÇÃO FORÇADA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA ECONSIDERAÇÕES FINAIS

Cabe execução forçada contra a Fazenda Pública para pagamento devalores superiores ao que a legislação considera pequeno valor?

A lei tolera e todos fazem vista grossa à execução de obrigação defazer contra a Fazenda Pública. O Código de Processo Civil, como jáconsignei, admite a execução de obrigação de fazer contra a FazendaPública, indicando o mesmo procedimento dispensado a devedoresparticulares.

28 Na Reclamação 3.216/RN, de que foi relator o Min. Carlos Velloso, o Supremo Tribunal Federal,em sede de execução trabalhista de crédito de pequeno valor contra o Estado do Rio Grande doNorte, manteve decisão de juiz trabalhista que “expediu a Requisição de Pequeno Valor, estipulandoprazo de 60 (sessenta) dias para pagamento, sob pena de bloqueio das verbas do Estado, bem comoexpediu o Mandado de Seqüestro”. Disponível no site do STF – Jurisprudência – Decisão monocrática.

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Sendo assim, não é difícil imaginar a execução forçada de quantiacontra a Fazenda Pública.

Em um caso excepcional, de extrema gravidade e clamor social,reveste-se uma obrigação de pagar quantia certa como sendo de obrigaçãode fazer e a solução seria encontrada.

O pagamento seria feito de imediato, com utilização da força, semque houvesse precatório.

Imaginem, ainda, um pedido para pagamento de tratamento médicono exterior.

Não tenho dúvidas de que a hipótese encerraria obrigação de dardinheiro, porém, desta forma, não seria possível o cumprimento imediato,ao menos diante de uma interpretação literal do Código de Processo Civil.

Então, vamos fazer de conta tratar-se de execução de obrigação defazer: o pedido é para que o Estado seja obrigado a providenciar otratamento no exterior.

Porém, o que importa naquele caso ser obrigação de fazer ou obrigaçãode dar dinheiro? Qual a diferença em termos orçamentários ou deimpossibilidade real de cumprimento pela Administração Pública? Nãoserá a mesma?

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal manteve decisão que,expressamente, determinara o pagamento imediato de importânciasuperior a R$ 100.000,00, para assegurar tratamento médico, sob ofundamento de que as finanças públicas cedem ao direito à vida29.

Adianto que não estou a criticar o fundamento de tais decisões, muitopelo contrário.

O que desejo é despertar atenção sobre um fato: o de que já estamos,ainda que inconscientemente, convivendo com a execução forçada dequantia certa contra a Fazenda Pública. Ela é real e vem ocorrendo emcasos excepcionais, que cada vez são mais freqüentes.

29 Suspensão de tutela antecipada 36-8, Rel. Min. Nelson Jobim, DJU em 27.09.2005, p. 6.

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O que me preocupa, contudo, é a falta de procedimento objetivoprevisto em lei, que não deve tardar, sob pena de gerar grave insegurançae frustrações generalizadas.

De toda sorte, não tenho dúvidas de que sendo estritamente necessárioo pagamento imediato, sem que haja condições do credor aguardar ocumprimento voluntário sob o regime do precatório, é seu direito exigirdo Estado uma execução forçada, em que a Fazenda Pública, quandomuito, terá oportunidade para demonstrar que o desembolso da quantiaacarretará dano ao interesse público.

A propósito, é importante registrar que a Fazenda Pública, ao alegarrisco de ofensa à ordem pública ou ao interesse público, não deve adentrarnos fundamentos da decisão questionada, mas tão-somente quanto àimpossibilidade dos seus efeitos, devendo assim proceder em processoautônomo, em que seja assegurado o contraditório e a defesa do credor.

A execução forçada contra a Fazenda Pública é um tema cercado dedogmas, que não mais se sustentam. Não há argumento jurídico para queno direito brasileiro seja desconhecida a execução forçada ou, pior, paraque finjamos que ela não existe nem ocorre.

Temo que tal omissão legislativa esteja refletindo a desconfiança quese tem do Poder Judiciário, que, cometendo abusos ou distorções,extrapolaria suas funções, interferindo-se indevidamente nos demaisPoderes de Estado.

Estou convencido, ainda assim, que o melhor remédio para adesconfiança é a transparência e a objetividade.

A partir do momento que existirem regras claras de que a execuçãoforçada é possível desde que não atinja bens ou serviços públicosdeterminados, o grau de responsabilidade de todos os envolvidosaumentará: partes, juízes, e administradores terão maior cautela em pedir,decidir e cumprir.

A previsão em lei da execução forçada, com limites que observem asupremacia do interesse público, permitirá um sistema de responsabilidades,em que haverá maior respeito ao princípio do Estado de Direito.

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______. Execução no Código Modelo de Processo Coletivo para Ibero-América e as causasde interesse público. Trabalho apresentado nas Jornadas Especiais de Processo Coletivodo Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, realizadas em Barcelona, 2005,com apoio da Fundação Capes. Inédito.

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< http://www.cjf.gov.br/manuais/man_procedimentos.asp >. Acesso em: 13 out. 2005.

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RECENSÃO À “INTRODUÇÃO AOPENSAMENTO JURÍDICO”, DE KARL

ENGISCH (FUNDAÇÃO CALOUSTEGULBENKIAN)

Eugênio Rosa de Araújo - Juiz Federal da 17ª Vara Federal do Riode Janeiro

1. Sobre o sentido e a estrutura da regra jurídica 2. A elaboração dejuízos jurídicos concretos a partir da regra jurídica, especialmente oproblema da subsunção 3. A elaboração de juízos jurídicos abstratos apartir das regras jurídicas. Interpretação e compreensão destas regras 4.Interpretação e compreensão das regras jurídicas. Continuação: olegislador ou a lei? 5. Conceitos jurídicos indeterminados, conceitosnormativos, poder discricionário 6. Preenchimento de lacunas e correçãodo direito legislado incorreto 7. Da lei para o Direito, da jurisprudênciapara a filosofia do Direito

1. SOBRE O SENTIDO E A ESTRUTURA DA REGRA JURÍDICA

No Direito, a palavra validade tem um significado muito particular –

ela traduz a idéia de que uma relação da vida é visualizada de determinada

maneira (ex.: pais e filhos em face do Direito Civil e do Direito Penal).

De um modo geral, o Direito se curva diante da natureza e apenas

afirma aquilo que é. Por exemplo, uma mulher casada que engravida

tem a paternidade presumida de seu esposo. Considera-se (vale) como

filho o feto, embora de forma presumida.

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Nesse caso, o ponto de vista jurídico pode estar em conflito com oponto de vista natural. A incerteza do pai é eliminada no interesse dasegurança jurídica através da presunção de que o marido que coabitoucom a mãe é o pai da criança.

Assim, muito embora o legislador se esforce, nem sempre os dadosespecificamente jurídicos precisam coincidir com os dados naturais,embora deva ser almejada a coincidência.

O conceito jurídico do fato natural (ex.: o parentesco) tem um alcanceparticular que lhe empresta uma significação que funciona como hipóteselegal à qual a norma jurídica liga conseqüências jurídicas.

Quando se diz que o pai ilegítimo não é parente de seu filho ilegítimo,com esta regra jurídica se quer significar que à hipótese legal dadescendência ilegítima não são ligados os mesmos efeitos jurídicos queà hipótese legal de descendência legítima.

O que são efeitos jurídicos? É a relatividade da regulamentação jurídica,sob a forma de diferentes efeitos jurídicos referidos à mesma situaçãofática básica, que nos faz compreender melhor a relatividade daregulamentação jurídica na formação dos conceitos da hipótese legal.

A sucessão legítima e a ilegítima poderiam ter diferentesconseqüências jurídicas embora constituíssem uma mesma situação defato material, porque o legislador tem a liberdade de, em face de umfato natural unitário, determinar diferentemente os pressupostos dahipótese na perspectiva de pontos de vista específicos, ao concebê-losde diferentes modos, tendo em conta diferentes conseqüências jurídicas.

As conseqüências jurídicas consistem em direitos (poderes jurídicos)e deveres, e que estes direitos e deveres são reconhecidos como jurídicos.Eles apenas são reconhecidos como jurídicos quando podem serdefendidos e efetivados através de meios jurídicos, i.e., podem fazer-sevaler perante as autoridade judiciais e administrativas.

As conseqüências jurídicas são constituídas por direitos e deveres. NoDireito, há grandezas negativas, conseqüências jurídicas negativas, i.e.,a negação de direitos e deveres. Se, v.g., um negócio jurídico é contrário

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Eugênio Rosa de Araújo

à lei (promessa de prestar falso testemunho mediante paga), o negócio énulo, o que significa que dele não resultam quaisquer direitos ou obrigações.

Pode-se distinguir, ainda, hipótese legal, de que eles podem resultardireitos e deveres de conteúdo negativo, i.e., referentes a uma omissão,a um não-fazer algo, v.g., não fazer barulho e o correspondente direito.

Autênticas grandezas negativas em sentido jurídico são negações dedireitos e deveres que seguem conexas à nulidade dos negócios jurídicoscontrários à lei e aos bons costumes. Elas representam como umcancelamento das conseqüências jurídicas que nós, estranhamente,chamamos de “conseqüência jurídica”, pois dizemos que a ofensa à leipor parte de um negócio jurídico tem por conseqüência jurídica a nulidadedo negócio e que, portanto, ele não produz propriamente quaisquerconseqüências jurídicas.

Essa ambigüidade reside no fato de chamarmos “conseqüência jurídica”uma parte constitutiva da regra jurídica (composta de hipótese legal econseqüência jurídica) que prescreve ou estatui a constituição de umdireito ou dever ou aquilo a que o direito e o dever se referem (aprestação, a pena, etc.).

Por exemplo, é preciso distinguir entre a estatuição da regra jurídica,prescrevendo que de um contrato de compra e venda resultam certosdireitos e deveres (é esta a conseqüência jurídica como parte constitutivada regra de direito) e os próprios direitos e deveres das partes contratantesque se encontram prescritos naquela regra: o direito do vendedor a exigiro preço da venda e o dever do comprador de pagar e receber a mercadoria.

Para afastar dúvidas, convém dar à conseqüência jurídica, quando estaseja entendida no sentido de elemento constitutivo da regra jurídica, adesignação de comando ou estatuição jurídica.

O centro gravitacional do Direito reside no fato de ele positivamenteassegurar direitos e impor deveres.

De um modo geral tem-se a conseqüência jurídica ou efeito jurídicode uma factualidade juridicamente relevante, que consiste na constituição,extinção ou modificação de uma relação jurídica.

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Relação jurídica é uma relação de vida definida pelo Direito(comprador/vendedor, cônjuges, etc.).

Pelo lado do seu conteúdo, as relações jurídicas apresentam-se comopoderes (direitos) aos quais se contrapõem os correspondentes deveres.

Se analisarmos a relação jurídica enquanto conteúdo de “conseqüênciajurídica”, veremos que ela não funciona como conseqüência jurídica,mas como hipótese legal destinada a produzir conseqüências jurídicas eque, ao invés, na medida em que a relação jurídica, ou a sua constituição,extinção ou modificação seja encarada como conseqüência jurídica, estaformulação, por sua vez, nada mais exprime senão direitos e deveres,sua constituição, etc.

Pode-se concluir que as conseqüências jurídicas, que nas regras deDireito aparecem ligadas às hipóteses legais, são constituídas por direitose deveres. As estatuições das conseqüências jurídicas prescrevem aconstituição ou a não-constituição de direitos e deveres.

É fora de dúvida que não existem direitos sem deveres, ao passo queé duvidoso que a todos os deveres correspondam direitos referidos aocumprimento desses deveres.

As conseqüências jurídicas previstas nas regras de Direito sãoconstituídas por deveres e um dever consiste sempre no dever-ser decerta conduta.

As regras jurídicas são regras de dever-ser e são verdadeiramenteproposições ou regras hipotéticas. Elas afirmam um dever-ser condicional,um dever-ser condicionado através da hipótese legal (ex.: na compra evenda a entrega da coisa e o pagamento do preço).

Podemos afirmar que as regras jurídicas, como regras de dever-serdirigidas a uma conduta de outrem, são imperativas. Pode-se esclarecer,ainda, o conceito de dever-ser pelo conceito de valor: uma conduta édevida (dever-ser) sempre que a sua realização é valorada positivamentee a sua omissão, valorada negativamente.

Dizer que as regras jurídicas são imperativas significa dizer queexprimem uma vontade da comunidade jurídica, do Estado ou do

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legislador. Esta vontade dirige-se a uma determinada conduta dos súditos,exigindo-a com vistas a determinar a sua realização. Enquanto osimperativos jurídicos estiverem em vigor, eles têm força obrigatória. Osdeveres (obrigações) são, portanto, o correlato dos imperativos.

Tanto as definições legais como as permissões são regras não-autônomas: apenas têm sentido em combinação com imperativos quepor ele são esclarecidos e limitados. Também os imperativos só se tornamcompletos quando lhes acrescentamos os esclarecimentos que resultamdas definições legais e das delimitações do seu alcance, das permissões,assim como de outras exceções.

Os verdadeiros portadores de sentido da ordem jurídica são asproibições e as prescrições (comandos) dirigidas aos destinatários doDireito, entre os quais, os próprios órgãos estatais.

Em relação às denegações de conseqüências jurídicas (nulidade donegócio), as prescrições ou comandos que impõem a prestação sãotambém limitados pelas regras sobre a nulidade dos negócios jurídicos.

No caso de revogação de um imperativo, a revogação não é, elamesma, um imperativo nem parte integrante de um imperativo; noimperativo, a vontade do destinatário do Direito é vinculada, ao passoque na norma jurídica revogatória, essa vontade é libertada (revogaçãodo aborto, p. ex.).

Se, no entanto, a regra da proibição do aborto é quebrada apenas emalguns casos (terapêutico), a proibição não deixa de ser regra geral,havendo em relação à parte destacada uma regra permissiva limitadoranão-autônoma.

Pelas normas revogatórias, certas formas de conduta são subtraídasao domínio do jurídico e relegadas para o “espaço ajurídico”. O quesubsiste são imperativos.

Outra classe de normas importante é a das normas atributivas. Sãoaquelas que conferem direitos subjetivos (ex.: garantias fundamentais,propriedade, etc.).

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O Direito objetivo é a ordem jurídica, o conjunto das normas ou regrasjurídicas que nós concebemos como imperativas. O Direito subjetivo é opoder ou legitimação conferidos pelo Direito.

Os direitos subjetivos são mais do que simples permissões. Reconhece-se ao seu titular uma esfera de poder, de modo a ser-lhe possível, dentrodela, acautelar os seus próprios interesses. O direito subjetivo é um poderque ao indivíduo é concedido pela ordem jurídica e, pelo que respeita àsua finalidade, um meio para a satisfação de interesses humanos.

Toda regra jurídica perfeita (completa) contém uma prescrição (umcomando); muitas, além disso, contêm uma concessão.

A regra jurídica que me atribui a propriedade não se limita a estabelecerpara os outros a proibição de me perturbarem no domínio da coisa, antesme conferem, ao mesmo tempo, o domínio sobre a coisa, no sentido deque eu próprio possa exigir que não me perturbem.

A concessão de direitos subjetivos é, no fundo, um modo de falar sobreuma constelação de imperativos entrelaçados de uma forma especial.

Sempre que há direitos subjetivos, sempre que eles são concedidos,os são através da criação de imperativos. O Direito não dispõe de qualqueroutro meio de ação, senão aquele que lhe é conferido através do poderde emitir comandos.

Os direitos subjetivos só podem ser concedidos quando se agravamas outras pessoas com exigências e obrigações, mesmo que se trateapenas da obrigação de conservar uma coisa ou abster-se de uma ação.

Em relação à distinção entre a simples permissão e a concessão dedireitos subjetivos, é preciso frisar que a cada nova permissão são limitadasas proibições e os imperativos perdem terreno. Em novas concessões dedireitos, os imperativos aumentam necessariamente. O domínio dopermitido alarga-se tanto mais os imperativos se dissolvem. Inversamente,o inventário dos direitos subjetivos apenas pode aumentar em paralelocom o aumento do inventário das proibições e prescrições.

É preciso lembrar que a vontade do legislador não é desvinculada(incondicionada), um mero arbítrio. Os comandos e proibições do Direito

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têm as suas raízes nas chamadas normas de valoração e fundamentam-seem valorações, aprovações e desaprovações. Todo imperativo jápressupõe o juízo de que aquilo que se exige tem um valor particular,um valor próprio, e é por isso mesmo exigido.

O Direito enquanto norma determinativa (= imperativa) não é“pensável” sem o Direito enquanto norma valoradora – o Direito comonorma valoradora é um pressuposto necessário e lógico do Direito comonorma determinativa, pois quem pretende “determinar” alguém a fazeralgo tem de previamente conhecer aquilo que quer determinar: ele temde “valorá-lo” em um determinado sentido positivo.

Firmado que as normas jurídicas são, no seu conteúdo essencial,imperativos, cabe a pergunta: são imperativos categóricos ou hipotéticos?

Já se viu que as regras ou proposições jurídicas são regras hipotéticasde dever-ser.

Os imperativos hipotéticos colocam a necessidade prática de uma possívelconduta como meio para qualquer outra coisa que se pretenda alcançar.

Os imperativos categóricos seriam aqueles que apresentassem umaconduta como objetivamente necessária por si mesma, sem referência aqualquer outro fim.

Os imperativos hipotéticos têm o seguinte teor: se queres alcançareste ou aquele fim, deves recorrer a este ou àquele meio. São indicaçõestécnicas, nas quais se pressupõe “hipoteticamente” um determinado fim.Aqui a questão não é saber se o fim é racional ou bom, mas apenas o quetemos de fazer para alcançá-lo. Um traço essencial da técnica deformulação dos imperativos hipotéticos é ensinar os meios de realizardeterminados fins sem discutir ou apreciá-los moralmente.

De modo diverso, a função de um imperativo categórico é dizer qualo fim a que se deve propor ou seguir, em cada caso, incondicional eabsolutamente sem referência a um outro fim.

Aqui, importa salientar que a técnica ensina os meios para alcançar ofim desejado e deixa à moral a determinação do próprio fim. A técnica émoralmente indiferente e recebe a significação de moralidade ouimoralidade a cujo serviço se propõe.

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Indaga-se: a ciência jurídica é mais informada por uma orientaçãotécnica ou ética? As regras jurídicas são concebidas como preceitos queexigem determinados meios para determinados fins. Grande parte dosimperativos proíbe ou prescrevem determinadas condutas para criaremaquelas posições de privilégio denominadas direitos subjetivos.

Ao lado disso, o Direito está sob o signo e o critério da conveniênciapolítica (da adequação a fins). Ele deve conformar e modelar a vida dacomunidade de modo ajustado a certos fins.

O próprio Direito aprecia os fins em ordem aos quais estabelece assuas regras. Ele valora determinados fins como bons e por isso mesmo sesubmete, na medida em que é informado pela aspiração do “justo” aosprincípios morais. Fixa, portanto, os fins e exige a sua realização de umaforma tão incondicional, de um modo tão “categórico”, como a moral.

Na interpretação e na aplicação dos imperativos jurídicos, devemosentender/compreender estes como meios para alcançar os fins que oDireito considera bons. Inversamente, quando nos achamos diante deimperativos hipotéticos, somos livres para nos decidir a favor ou contra ofim. Só se quisermos o fim e o quisermos alcançar com segurança, é quetemos de nos orientar pelo imperativo hipotético, o qual nos aconselhaos meios apropriados.

Assim, o Direito tem ao mesmo tempo um caráter hipotético ecategórico. Quanto à sua substância, a regra jurídica é um imperativocategórico. Ela exige/prescreve incondicionalmente (ex.: pagar impostos,contratos, tratados).

O certo é que depende de nós se queremos, ou não, vincular-nos àcelebração de um contrato. Nesse caso, está em nossas mãos o poder deutilizar as regras e os preceitos jurídicos como meios para a modelaçãoplanejada de nossas relações de vida. Uma vez que nos tenhamosvinculado, é-nos exigido categoricamente o cumprimento das obrigaçõesassumidas.

Toda regra jurídica representa uma hipótese, pois que ela é apenasaplicável quando se apresentarem certas circunstâncias de fato que naprópria regra se acham descritas.

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A rigor, a proibição de matar tem o seguinte teor: quando não é casode legítima defesa, guerra, sentença de morte, é proibido matar. Tem-seaqui um imperativo concebido sob a forma hipotética. Para nãoconfundirmos com o “imperativo hipotético”, pode-se designá-lo comoum “imperativo condicional”.

Em determinados casos concretos, pode-se duvidar sobre o quepertence à hipótese legal e o que faz parte da conseqüência jurídica.Quando a lei diz “aquele que por ação ou omissão voluntária,negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, aindaque exclusivamente moral, comete ato ilícito”, podemos perguntar se afórmula “causar dano a outrem” pertence à hipótese legal ou àconseqüência jurídica.

A solução é a seguinte: pertence à hipótese legal que um determinadoprejuízo tenha surgido, e à conseqüência jurídica que esse prejuízo devaser indenizado. Pertence à hipótese legal tudo aquilo que se refere àsituação que está conexa ao dever-ser, e à conseqüência jurídica tudoaquilo que determina o conteúdo deste dever-ser.

Tanto a hipótese legal como a estatuição (conseqüência jurídica) são,sob o aspecto de elementos da regra jurídica, representados por conceitosabstratos. A hipótese legal e a conseqüência jurídica (estatuição), comoelementos constitutivos da regra jurídica, não devem ser confundidoscom a concreta situação da vida e com a conseqüência jurídica concreta,tal como esta é proferida ou ditada com base naquela regra. Para maiorclareza, chamamos por isso “situação de fato” ou “concreta situação davida”: a hipótese legal concretizada.

Outro problema é a questão de saber qual a relação em que seencontram entre si a hipótese legal e a conseqüência jurídica. Trata-sede uma relação de condicionalidade: a hipótese legal, como elementoconstitutivo abstrato da regra jurídica, define conceitualmente ospressupostos sob os quais a estatuição da conseqüência jurídica intervéme a conseqüência jurídica é desencadeada.

É logicamente indiferente dizer que, sob as condições (pressupostos)formuladas na hipótese legal vale (intervém) a conseqüência jurídica, oudizer que para a hipótese legal vale a conseqüência jurídica.

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Uma modificação no mundo do Direito somente surge (acontece)quando se verifica a situação descrita na hipótese legal para tantonecessária; se ela desencadeia sempre que a situação descrita na hipóteselegal se apresenta como uma necessidade inarredável, por assim dizerautomaticamente, e isto no preciso momento em que a situação descritana hipótese legal se completa: entre a causa jurídica e o efeito não semedeia, como na natureza física, qualquer espaço de tempo mensurável.

A causalidade jurídica (a circunstância de um fato arrastar consigoefeitos de Direito) baseia-se na determinação da lei e, por isso, pode serlivremente modelada por ela: o Direito pode coligar a quaisquer fatosquaisquer conseqüências jurídicas.

Da idéia de causalidade jurídica extraem-se conseqüências práticas.Ex.: um conseqüência jurídica não pode produzir-se duas vezes ou serduas vezes anulada. Não há “efeitos duplos” no Direito. Se adquiro oimóvel por compra e venda, não posso adquiri-lo novamente porusucapião; se um negócio é anulado por um motivo, não pode serdeclarado nulo mais uma vez por outro motivo.

Um direito, uma vez constituído, não pode voltar a constituir-se, e umdireito que ainda não se constituiu ou se extinguiu não pode ser anulado.Um direito não-constituído não pode ser anulado.

Quando o Juiz refere à regra jurídica uma faticidade concreta previstana hipótese legal, uma situação da vida, i.e., quando ele a subsume àhipótese abstrata da lei, esta subsunção, por si só, não chega àconseqüência jurídica concreta, mas unicamente quando logicamentepressupõe que, na lei, por um lado e, no caso concreto, por outro, asituação descrita na hipótese legal arraste consigo a conseqüência jurídica.

É a este arrastar atrás de si que os causalistas dão a designação decausalidade jurídica. Por conseguinte, chamaremos de causalidade estaconexão entre hipótese legal e conseqüência jurídica, in abstrato (dentroda regra jurídica, portanto) ou in concreto (quer dizer, com referência aocaso da vida que cai sobre a regra jurídica).

É sempre verdade que a causalidade natural se baseia em leis naturais,ao passo que a causalidade jurídica se funda em leis humanas, sendoestas últimas produto de uma criação arbitrária.

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Cumpre mencionar a questão dos duplos efeitos. No caso, váriashipóteses legais trazem, abstratamente, a mesma conseqüência jurídica,por exemplo: uma pessoa compra um bem o qual já tenha usucapido. Aqui,o resultado concreto – transferência da propriedade –, de forma concretae convergente, é baseado, no entanto, em hipóteses abstratas distintas.

É possível que se constituam uma após outra duas obrigações derealizar uma e a mesma prestação, e bem assim que eu seja proprietáriopor dois fundamentos distintos (comprei imóvel o qual já havia usucapido),sendo indiferente que estes dois fundamentos surjam um ao lado dooutro. É igualmente possível que uma e mesma relação jurídica deva sernegada por dois fundamentos diferentes. É possível que um crédito sejapago e depois prescreva e, ainda, é possível que um negócio jurídicopossa ser nulo por dois fundamentos, como por falta de forma e ao mesmotempo por doença mental de uma das partes, pelo que poderá um negóciojurídico nulo ser ainda atacado em via de anulação e tornar-se nulo poreste outro motivo, pois que também nesse caso trata-se apenas de umapluralidade de fundamentos da não-existência do vínculo.

O problema dos efeitos duplos é dificultado pelo fato de que nemsempre se distinguem e se separam com suficiente precisão os diferentesgrupos de casos. Nos duplos fundamentos, trata-se de uma conseqüênciajurídica procedente de vários fundamentos, ao passo que nos efeitos duplostrata-se de várias conseqüências jurídicas iguais quanto ao seu conteúdo.

A presença dos fatos concretos que preenchem a hipótese legal abstratada regra jurídica passa a ser a base em que se funda o juízo cognitivosobre a atualidade (= efetiva existência) da conseqüência jurídica.

A questão de saber em que medida uma e mesma conseqüênciajurídica pode ser derivada de vários complexos de fatos que afundamentam, apenas pode ser decidida de caso para caso, segundopontos de vista próprios do jurista e metodologicamente corretos.Fundamentalmente, nada obsta à admissibilidade de efeitos duplos, querse trate de duplos fundamentos ou de conseqüências duplas.

O problema da subsunção parte do realce da conexão entre hipóteselegal e conseqüência jurídica, de qualquer modo que a interpretemos ou

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designemos, aparece como uma conexão produzida pelo Direito Positivo,i.e., pela lei.

2. A ELABORAÇÃO DE JUÍZOS JURÍDICOS CONCRETOS A PARTIR DAREGRA JURÍDICA, ESPECIALMENTE O PROBLEMA DA SUBSUNÇÃO

Vamos falar novamente do problema da regra jurídica.

O Direito, quando se dirige a nós, o faz tendo em conta que atuamosatravés de ações. A todo momento, o Direito determina nossos atos eomissões através dos quais construímos nossa vida.

A forma sob a qual o Direito adquire um significado determinante donosso viver consiste em que ele diz o modo como in concreto nosdevemos conduzir. O Direito destila-se em regras concretas de dever-sere a todo momento dele solicitamos como devemos ou não agir (o que élícito, o que não se deve fazer...).

Sabemos que, na vida moderna, é a lei que nos informa sobre oconcreto dever-ser jurídico, obrigando-nos a relacionar a vida com oDireito. Tal questão conduz-nos ao problema do “pensamento jurídico”.

A determinação daquilo que, in concreto, é juridicamente devido oupermitido é feita de um modo autoritário através de órgãos aplicadoresdo Direito e pelo Direito mesmo instituídos, i.e., através dos tribunais edas autoridades administrativas.

Rege-nos o princípio da legalidade (art. 5º, II, CF/88), sendo este umaspecto essencial do Estado de Direito de nossa vida pública.

Pelo princípio da legalidade, todos os atos do Estado devem poder serreconduzidos a uma lei formal ou “com base” numa lei formal. Não seconsente que um ato do Executivo seja pura e simplesmentefundamentado no Direito não escrito ou em princípios ético-sociais geraiscomo justiça, moralidade, etc.

É preciso lembrar, no entanto, que é função da administração e dos tribunaismoldar a vida da comunidade estatal segundo pontos de vista de utilidade eeqüidade, inclusive segundo um critério discricionário ou de “livre iniciativa”.

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Para analisarmos o pensamento dos juristas na aplicação da lei àconcreta situação da vida, é preciso focar o processo de aplicação emque ele se apresenta de uma forma depurada.

O juiz perante o seu cargo e a sua consciência somente poderá sentir-se justificado quando a sua decisão também possa ser fundada na lei, oque significa ser dela deduzida. A descoberta e a fundamentação nãosão procedimentos opostos.

O centro de gravidade dessa fundamentação é a premissa menor. Nela jáse acha mencionada a subsunção. Em regra, com ela encontra-se estreitamenteconexa uma verificação de fatos, i.e., dos fatos que são subsumidos.

Temos de nos debruçar com mais vagar na verificação dos fatos comotais. As provas, diz-se, têm o objetivo de criar no juiz a convicção daexistência de determinados fatos.

Assim como o historiador descobre os fatos históricos com base nasfontes ao seu dispor, assim também no processo judicial os fatosjuridicamente relevantes são descobertos com base nas declarações doacusado (confissão) e nos meios de prova: objetos suscetíveis de inspeçãoocular direta, documentos, testemunhas e peritos.

Ao falarmos de fatos, temos em vista acontecimentos, circunstâncias,relações, objetos e estados, todos situados no passado, ou mesmo sótemporalmente determinados, pertencentes ao domínio da percepçãoexterna ou interna e ordenados segundo leis naturais.

A prova judicial é, na maioria dos casos, “por indícios”, quer dizer,prova feita através de conclusões dos “indícios” para os fatos diretamenterelevantes cuja verificação está em causa.

Indícios são os fatos que têm na verdade a vantagem de seremacessíveis à nossa percepção e apreensão atuais, mas que em si mesmosseriam juridicamente insignificativos se não nos permitissem umaconclusão para aqueles fatos de cuja subsunção às hipóteses legais setrata, e a que chamamos “fatos diretamente relevantes”.

Aquilo que é diretamente relevante depende de cada regra jurídica ede sua hipótese legal. Também ao conceito de fato diretamente relevante

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pertence uma certa relatividade. Entre os indícios, a confissão no processopenal tem um valor, e no processo civil, outra.

Acrescente-se que também as afirmações das testemunhas dos fatosnada mais são que “indícios”. As afirmações (depoimentos) dastestemunhas apenas são “fatos indiretamente relevantes”, os quaispermitem uma conclusão relativamente fundada para o fato que se situano passado e sobre o qual são feitas afirmações (depoimentos).

Ao falarmos de conclusão, devemos frisar que se trata de umaconclusão apenas válida com certo grau de probabilidade, maior ou menor,baseada nas regras de experiência. Regras que, por sua vez,desempenham importante papel no procedimento judicial probatório esão fornecidas ao tribunal nos casos difíceis, por peritos.

A indagação processual da verdade é juridicamente regulada,observando-se os limites jurídicos processuais de sua indagação.

Ora, se a verificação dos fatos integrada na premissa menor como umresultado parcial é já o produto de atos cognitivos e deduções complexas,algo de semelhante ocorre com a subsunção que se passará a considerarem si mesma.

Escolhamos um exemplo em que a lei, para a descrição do tipo legal,serve-se de conceitos que não requerem quaisquer valorações e, portanto,não são conceitos normativos, mas conceitos descritivos.

Podemos tomar o conceito de coisa e a questão de saber se a energiaelétrica deve ser subsumida a este conceito.

Na subsunção, trata-se de submeter um caso individual à hipótese outipo legal e não diretamente subordinar ou enquadrar um grupo de casosou uma espécie de casos.

Para Larenz, subsunção é a afirmação de que as características referidasna hipótese da regra jurídica encontram-se realizadas na situação de vidaa que a mesma afirmação se reporta.

Assim, a subsunção é a determinação da coincidência do “complexoconcreto de características” com a “definição abstrata do conceito” ou

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determinação da identidade “entre os conteúdos da experiência”, significadosem geral pelas palavras da lei (buzinar de carros) e o fato da experiênciaimediatamente sensível da situação concreta (o buzinar deste carro).

Ainda em relação à estrutura lógica da subsunção de um caso a umconceito jurídico, nota-se que ela representa uma relação entre conceitos:um fato tem de ser pensado em conceitos, pois que de outra forma –como fato – não é conhecido, ao passo que os conceitos jurídicos, comoo seu nome diz, são sempre pensados na forma conceitual.

São, portanto, subsumidos conceitos de fatos a conceitos jurídicos.

A subsunção de uma situação de fato concreta e real a um conceitopode ser entendida como enquadramento desta situação de fato, do “caso”,na classe dos casos designados pelo conceito jurídico ou pela hipóteseabstrata da regra jurídica.

A interpretação do conceito jurídico é o pressuposto lógico dasubsunção, a qual, por seu turno, uma vez realizada, representa um novomaterial de interpretação e pode servir posteriormente como material outermo de comparação.

Em cada subsunção efetivamente nova, o caso a subsumir difere-se sobqualquer aspecto dos casos até então enquadrados na classe e, porconseguinte, impõe sempre ao jurista, que está vinculado ao princípio daigualdade, a penosa questão de saber se a divergência é essencial ou não.

A interpretação não só fornece o material de confronto para asubsunção como ainda os pontos de referência para a comparação. Destaforma, ela decide ao mesmo tempo sobre aqueles momentos (aspectos)do material de confronto e da situação de fato a decidir que hão de serentre si comparados.

É ela ainda quem decide por que meios do espírito a comparaçãodeve ser realizada: se por meio dos sentidos externos ou por meio dopensamento e, neste último caso, se por meio do pensamento cognitivoou emocional.

São agora necessárias algumas considerações sobre as conseqüênciasde não se lograr estabelecer a premissa menor.

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Até aqui, temos pressuposto que se consegue obter a premissa menor,que se chega à verificação de fatos que podem ser subsumidos a umconceito jurídico, e isto de modo a podermos, da combinação da premissamenor com a maior, deduzir a conclusão.

O ônus da prova relaciona-se com a hipótese de, apesar de todas asatividades probatórias, subsistirem dúvidas na questão de fato.

As dúvidas sobre os fatos não podem, como as dúvidas sobre o direito,ser afastadas, e nos esforçamos simplesmente para decidir por umadeterminada concepção. Por outro lado, é também proibido ao tribunalrecusar-se a decidir, alegando dúvida na questão de fato. O tribunal temde resolver o litígio, muito embora não possa resolver a dúvida. De outromodo, ele não cuidaria da pacificação em concreto das relações da vida.

Caso existam dúvidas sobre a questão de fato, o juiz terá de “presumir”a situação de fato. No processo penal, in dubio pro reo e no processocivil, in dubio contra actorem.

Se, por exemplo, o demandado admite ter recebido o empréstimo eapenas se limita a contestar, com a alegação de que já o restituiu, caso arestituição continue a ser objeto de contestação e de dúvida, é aodemandado que cabe o ônus de provar esta exceção. Se não provar arestituição, será condenado a pagar ao demandante (equivale ao in dubiocontra reum).

Relativamente àquelas oposições e exceções cuja prova compete aodemandado, este é equiparado, pelo risco do processo, a um demandanteque não consegue provar os fatos que fundamentam sua pretensão.

3. A ELABORAÇÃO DE JUÍZOS JURÍDICOS ABSTRATOS A PARTIR DASREGRAS JURÍDICAS. INTERPRETAÇÃO E COMPREENSÃO DESTASREGRAS

No capítulo anterior, tratou-se do silogismo jurídico. A premissa menoré o nervo que veicula até o caso concreto as idéias jurídicas gerais contidasna lei, i.e., na premissa maior, o que torna possível a conformidade docaso com a lei.

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Viu-se que a subsunção contida na premissa menor remete para uma“interpretação” da lei e, dessa forma, para uma atividade mental realizadaem torno da premissa maior.

Foi dito que a premissa maior, com a qual a menor se combina, éextraída da lei. Representou-se a lei como imperativo condicional (dever-ser através da limitação da lei), ao passo que a premissa maiorcorrespondente à lei traduz um juízo hipotético (ordena uma ação que éboa relativamente a um objetivo possível ou real).

Seria muito simples se a elaboração da premissa maior se reduzissea converter o imperativo condicional (“faça o que está na lei”) em umjuízo hipotético.

Cabe aqui relembrar algo que já se disse sobre juízos hipotéticos eimperativos condicionais.

Proposições ou regras devem ser hipotéticas. Elas afirmam (um dever-ser condicional), um “dever-ser” condicionado através da hipótese legal.

Embora as leis designem as conseqüências jurídicas como “obrigações”ou se exprimam de qualquer outra maneira, o que se quer significarsempre é que algo deve acontecer.

O “dever-ser” é dirigido por uma vontade supra-ordenada a umavontade subordinada. O “tu deves” tem caráter imperativo. Podemos,então, afirmar que as regras jurídicas, como regras de dever-ser dirigidasa uma conduta de outrem, são imperativas.

O deverá-ser através do conceito de valor implica que uma conduta édevida (deve ser) sempre que a sua realização for valorada positivamente.

Os deveres (obrigações) são, portanto, correlatos dos imperativos.

A máxima “o que não é proibido é permitido” pode também ser invertida:“o que é permitido não é proibido”. Tanto as definições legais como aspermissões são, pois, regras não autônomas. Apenas têm sentido emcombinação com imperativos que por elas são esclarecidos ou limitados.

Os verdadeiros portadores de sentido da ordem jurídica são asproibições e as prescrições (comandos) dirigidas aos destinatários do

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Direito, entre os quais se contam, de resto, os próprios órgãos estatais.

Uma primeira e mais complicada tarefa que o jurista tem dedesempenhar para obter a premissa maior jurídica consiste em aglutinarnum todo unitário as partes ou elementos de um pensamento jurídico-normativo completo que, por razões “técnicas”, encontram-se dispersas,senão violentamente separadas.

O jurista deve reunir e conjugar aquelas partes constitutivas dopensamento jurídico-normativo que são necessárias para a apreciação edecisão do caso concreto.

No caso do art. 121 do CP, a premissa maior completa seria: segundo oDireito Penal o homicida, “imputável”, que não esteja numa “causa dejustificação ou exclusão” e que provoque “intencionalmente” a morte deuma “pessoa” com “crueldade” ou “motivo torpe”, etc., sofrerá a pena tal.

A complementação da premissa maior será, conforme o caso, tãoextensa quanto o exigir da apreciação e da decisão do caso.

Quanto mais compreensiva e sutil a legislação, maiores são asexigências postas pela reunião e congregação das partes que integram anorma jurídica a fim de se obter um domínio mental da lei.

Quando aplicamos um artigo do Código, aplicamos todo o Código etodo o ordenamento jurídico.

Pode parecer a tese um exagero, mas ela põe em destaque a unidadedo ordenamento jurídico, vez que é preciso traduzir a premissa maiordentro do contexto de todo o código ou ordenamento jurídico, porquecompõem um complexo harmônico de pensamentos jurídicos.

É preciso ter em mente que o jurista reúne o material legislativodisperso num todo unitário com sentido e, desta forma, prepara a premissamaior de que necessita no caso concreto. Se a esta premissa pode-se daruma expressão lingüística satisfatória, isso é coisa secundária e nemsempre possível.

Talvez a premissa maior apresente-se como uma tessitura depensamentos que só possa receber uma expressão lingüística adequada

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em uma série de proposições. O essencial será que, no sentido lógico, aconexão intrínseca dos pensamentos jurídicos forme aquela premissa maiorcom a qual se combinam a premissa menor e, através dela, a conclusão.

Aqui, trata-se de reconduzirmos a premissa maior do domínio do“extensivo” para o do “intensivo”, isto é, “da subsunção global” para a“subsunção particular”.

A subsunção se processa pela equiparação do caso a decidir “aqui eagora” àqueles casos que sem dúvida são abrangidos pela lei, mas aquestão de saber quais são estes casos e sob que pontos de vista e aspectoso novo caso será passível de equiparação será decidida através dainterpretação da disposição legal em foco.

Através da interpretação, são intercaladas, entre a premissa maior e adecisão do caso, várias premissas menores as quais facilitam a subsunção.

Um exemplo simplório: alguém furtar algo dentro de um “espaçofechado”.

1. O espaço fechado que se destina ao ingresso de pessoas encontra-se cercado de dispositivos de segurança.

2. O espaço fechado é um carro, e dele são subtraídos objetos (ocarro era conversível, em parte...)

3. O espaço fechado é um carro e um passageiro subtrai, de um outro,objetos.

A tarefa da interpretação é fornecer ao jurista o conteúdo e o alcance(extensão) dos conceitos jurídicos. A indicação do conteúdo é feita pormeio de uma definição, i.e., pela indicação das conotações conceituais(“espaço fechado é um espaço aberto que...”). A indicação do alcance(extensão) é feita pela apresentação de grupos de casos individuais quesão passíveis de subsunção ao conceito jurídico.

Vamos demonstrar agora a metodologia da interpretação, da apreensãodo sentido do compreender jurídico.

Dispomos de inúmeros métodos de interpretação e pontos de vistainterpretativos: a interpretação segundo o teor verbal (interpretação

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gramatical); a interpretação com base na coerência (conexidade) lógica;a interpretação “lógica” ou “sistemática”, que se apóia na localização deum preceito no texto da lei e na sua conexão com outros preceitos; ainterpretação a partir da conexidade histórica, particularmente baseadana “história da gênese do preceito”; e, finalmente, a interpretação baseadana ratio, no fim, no “fundamento” do preceito (a interpretação“teleológica”).

Tais espécies de interpretação pertencem ao patrimônio adquirido dahermenêutica jurídica.

Enneccerus declara que a interpretação tem de partir do teor verbalda lei, tendo em conta as regras da gramática e o uso corrente dalinguagem, ao tomar em particular consideração também os “modos deexpressão técnico-jurídicos”.

Acrescenta que, além do teor verbal, devem ser considerados: “acoerência interna do preceito, o lugar em que se encontra e as suasrelações com outros preceitos” (ou seja, a interpretação lógico-sistemática), assim como a situação que se verificava anteriormente àlei, toda sua evolução histórica, bem como a história da gênese dopreceito, que resulta dos trabalhos preparatórios, e o fim particular da leiou do preceito em singular (interpretação teleológica).

Arrematava afirmando que o preceito da lei deve, na dúvida, serinterpretado de modo a ajustar-se o mais possível às exigências da nossavida em sociedade e ao desenvolvimento de toda a nossa cultura (paraEngish é interpretação teleológica).

Com referência à interpretação gramatical, é freqüente o mal-entendidoque consiste em se supor que existe uma pura interpretação verbal outerminológica distinta de uma interpretação do sentido.

Ora, o Direito “fala a sua própria língua”. Por isso, o que importa sempreé o sentido “técnico-jurídico” o qual possui contornos mais rigorosos queo conceito da linguagem corrente.

Muitas vezes, o legislador liga a uma palavra sentidos diferentes, ex.:funcionário, posse, propriedade, negligência, etc. Fala-se, nestes casos,de uma “relatividade de conceitos jurídicos”. Ela resulta inevitável, dada

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a inserção dos conceitos em contextos sistemáticos e teleológicosdiferentes. A pura interpretação verbal é afastada pela interpretaçãosistemática e teleológica.

Em relação à interpretação sistemática e a teleológica, é preciso dizerque a conexidade (coerência) lógico-sistemática não se refere só aosignificado dos conceitos jurídicos em cada contexto de idéias (v.g., osignificado do conceito de posse no quadro dos parágrafos relativos aoabuso de confiança): a conexidade refere-se à plenitude do pensamentojurídico latente (oculto, não manifestado) na regra jurídica individual,com a sua multiplicidade de referências às outras partes constitutivas dosistema jurídico global.

É difícil separar a interpretação sistemática da teleológica: enquantointerpretação sistemática ela já é, simultaneamente, teleológica, tendoem vista que as regras têm por função preencher certos fins emcombinação com outras normas, complementando-se mutuamente.

O conceito de fim é elástico e plurissignificativo. Ele se estende,segundo seu conteúdo, a idéias como manutenção da segurança jurídica,conservação da ordem pública, bem-estar social, proteção da boa-fé, etc.,fazendo com que a interpretação teleológica traduza-se em uma soluçãometódica dos conflitos de interesses através de critérios, valorações eopções legais.

Cumpre ainda falar sobre a “interpretação a partir da história dopreceito”. Trata-se de, com atenção a todos os elementos dentro do nossoalcance, penetrar o mais completamente possível no espírito do legisladore tomar em linha de conta a situação jurídica existente no momento emque a lei foi editada, situação essa que há de se presumir que o legisladoresteve presente.

A interpretação teleológica e a histórica entrelaçam-se principalmentequando é preciso descobrir o que o legislador teve em mente, visto quea correta compreensão dos preceitos exige o exame dos fundamentoshistórico-culturais e o papel e significado da tradição (vide a importância,até hoje, do Direito Romano).

É preciso reconhecer que ainda não dispomos de uma teoria jurídicainterpretativa que ofereça uma hierarquização segura dos múltiploscritérios de interpretação.

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Dizer que os métodos gramatical, lógico, histórico e sistemático devemser considerados conjuntamente é passar por cima do problema.

A questão é intrincada. Importa que os juristas, ao interpretar,transcendam o horizonte visual da simples prática, voltando-se para umacompreensão num sentido mais elevado, mesmo que esta nos arrastepara uma posição filosófica, histórico-cultural ou política.

4. INTERPRETAÇÃO E COMPREENSÃO DAS REGRAS JURÍDICAS.CONTINUAÇÃO: O LEGISLADOR OU A LEI?

A moderna doutrina da compreensão conhece múltiplas distinções docompreender.

Costuma-se distinguir a compreensão de um sentido (apreensão doconteúdo objetivo de uma expressão) da compreensão do que venham aser os motivos daquele que se exprime.

Outra distinção é a que procura compreender o que foi pensado e aque procura compreender quais razões teriam levado ao pensamento.

Tais reflexões levam a um trabalho de “conhecimento do conhecido”, i.e.,o conhecimento daquilo que foi produzido pelo espírito humano – o conhecido.

Pode-se dizer que é necessário compreender melhor o autor do queele se compreender a si próprio.

André Gide dizia que “antes de explicar o meu livro aos outros, aguardoque os outros o expliquem a mim. Querer explicá-lo primeiro significariaao mesmo tempo limitar o seu sentido; pois, ainda que saibamos aquiloque quisemos dizer, não sabemos todavia se dissemos apenas isso.”

Tal é o desafio em situar a interpretação e a compreensão jurídicas.

É preciso, ainda, distinguir as intenções da história do Direito e as dadogmática jurídica.

Ao historiador do Direito, importa descobrir os motivos das leis (o quelevou o legislador a inovar o ordenamento?) para revelar a faceta dacompreensão pelos motivos.

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A compreensão histórica da lei começa com o sentido “pensado edesejado”, pondo em conexidade fatos históricos, com vistas à descobertados motivos, em um constante interrogatório das raízes históricas e do“espírito da época” em que a lei se desenvolveu e se formou.

No que se refere à dogmática jurídica, em princípio a esta deveinteressar o conteúdo da lei em si, seu alcance prático, conteúdo, extensãodos seus conceitos e normas, sem descuidar dos significados políticos,éticos e culturais que a envolvem.

Na teoria da interpretação, duas vertentes se digladiam – a teoriasubjetivista e a teoria objetivista.

Em breve síntese, é possível dizer que a sujetivista prestigia a vontadedo legislador, ao passo que a objetivista destaca o sentido objetivamenteválido da regra jurídica.

A problemática tem um contorno muito interessante: o conteúdoobjetivo da lei e, conseqüentemente, o último escopo da interpretação,seriam fixados pela “vontade” do legislador histórico, de modo que adogmática deve seguir as pegadas do historiador ou, ao contrário, oconteúdo da lei tem autonomia em si mesmo e nas suas palavras enquanto“vontade da lei”, revelando um sentido objetivo independente do quepassou pela cabeça do legislador e que, por isso, tem um movimentoautônomo, suscetível de evolução como tudo na vida ?

Dizem os objetivistas que, com a edição da lei, esta desprende-se doseu autor e adquire uma existência objetiva própria. A obra do autor é otexto da lei. As expectativas do autor da lei não apresentam nenhumcaráter vinculativo, sendo meras expectativas, ficando, ele próprio, sujeitoao comando de sua criação.

O sentido incorporado na lei pode ser mais rico do que tudo aquilo queseus autores pensaram (se é que pensaram...), já que a lei e seu conteúdonão são estáticos, mas algo vivo, mutável e suscetível de adaptação.

O sentido da lei logo se modifica pelo fato de ela passar a constituir partede uma ordem jurídica global e, portanto, participar da sua constante mutaçãoem razão da unidade da ordem jurídica. Nunca é demasiado lembrar quequando se interpreta um artigo de lei, interpreta-se todo o ordenamento.

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Novas disposições legais influem nas antigas, modificando-as oudando-lhes novo colorido. Também novos fenômenos técnicos,econômicos, sociais, políticos, culturais e morais têm de ser juridicamenteapreciados com base nas normas jurídicas preexistentes (vejam osexemplos do exame de DNA, a globalização, uniões estáveis entrehomossexuais e a clonagem...).

O direito, ao ser obrigado a encarar fenômenos e situações históricasque de maneira nenhuma poderiam ter sido pensadas, ele cresce paraalém de si mesmo.

Por isso, ficamos em condições de “compreender melhor” a lei doque compreender o próprio legislador histórico. É a partir da situaçãopresente que nós, a quem a lei se dirige e que temos de nos afeiçoar aela, havemos de tirar aquilo que é racional, adequado e adaptado àsnossas circunstâncias.

O juiz, como membro de Poder, deve nortear sua interpretação deacordo com a época atual, situando-se no presente: sua perspectiva nãodeve voltar-se ao passado, mas ao presente e ao futuro.

Como membro do “Terceiro Poder”, o juiz é, portanto, igual aolegislador, na medida em que, por meio de interpretação objetivista, deixavaler a lei no sentido de sua própria autonomia (da lei e da jurisdição).

No caso das leis interpretativas que veiculam interpretações autênticas,elas têm significado apenas para a disposição concreta cuja interpretaçãoas esclarece. Trata-se de regra jurídica passível, ela própria, de interpretação.

Assim, a função jurídica da interpretação como critério do métodointerpretativo correto e científico deve servir-se de cada um dos métodos,visualizando o espaço histórico e sua objetividade.

Outra questão é a de se saber em que medida estes conteúdos de sentido(históricos ou objetivos) são vinculativos para a aplicação prática do Direito.

O problema se direciona para a mescla dos métodos, o que confereao juiz legitimidade para, desprendendo-se da “vontade” do legisladorhistórico, dar à lei um sentido ajustado ao momento atual, um sentidorazoável adequado aos fins do Direito.

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Tratado o tema da correlação entre o “pensamento” do legislador e aconstrução de sentido ajustada à situação atual, fica patente a necessidadede ajustar as teorias interpretativas aos métodos gramatical, sistemático eteleológico.

Somente através da combinação dos métodos histórico e objetivista,poderemos obter decisões seguras no processo interpretativo.

Em todas as fases da interpretação (gramatical, lógico-sistemática eteleológica) persistirão questões em aberto e pontos de relativaambigüidade. Em todas estas fases nos deparamos com a pergunta:vontade da lei ou do legislador? Que sentido ligou o legislador às suaspalavras, ou então, qual o sentido que as palavras, em si mesmas, sãoportadoras?

Prossigo: que significado tem a conexão lógico-sistemática segundoas intenções do legislador, ou que significado resulta dessa conexãodentro da própria lei? Qual o fim que persegue o legislador histórico ouqual o fim que está imanente na lei?

No momento em que nos decidimos por uma teoria da interpretação,também as questões relativas ao teor literal, à conexão sistemática e aofim assumem uma conformação específica.

Se cada elemento (literal, histórico, teleológico, etc.) é, por si só,plurissignificativo, o quadro pode se alterar caso queiramos perquirir ummomento histórico, ou mesmo descobrir uma interpretação razoável eajustada à nossa realidade atual.

Isto traz novas dificuldades e novas dúvidas, mas o método redundana possibilidade de um modo de interpretação gramatical-subjetivo,gramatical-objetivo, teleológico-subjetivo ou teleológico-objetivo, o quefaz reconduzir a interpretação ao processo de interpretação.

Devemos, ainda, ter em conta que o subjetivismo ou o objetivismo,por si só, não caracterizam os métodos da interpretação e da compreensão.Se me ponho na posição subjetivista, permanece ainda a questão de sabero que se deve decidir em primeira linha: se os comandos que o legisladorhistórico “representou” (quais as hipóteses e conseqüências jurídicas teveem mente), os seus fins (quais efeitos quis obter com os preceitos) ou a

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sua atitude globalmente considerada (quais idéias ou princípios osnortearam).

Do mesmo modo, se assumirmos o ponto de partida objetivista tambémaqui teremos de considerar objetivos e pontos de vista segundo os quaiso sentido objetivamente implícito na lei deve ser atualizado.

Aquilo que pode ser retirado da lei como objetivamente razoável, justo,de acordo com nossa época, ajustado à situação atual, apenas pode serdeduzido se soubermos o que queremos, i.e., um entendimento corretoda lei tem como pressuposto que nos compreendamos corretamente.

Somente quando já tivermos concebido a decisão e os fundamentosmateriais em que ela se apóia, é que poderemos perguntar à lei em quemedida esta decisão é “imanente” às palavras da lei como sentido possível(pré-compreensão – círculo hermenêutico).

Para completarmos o quadro problemático entre a teoria subjetivistae a teoria objetivista da interpretação, resta ainda uma análise dosconceitos não unívocos de interpretação extensiva e interpretaçãorestritiva, com algumas direções de pensamento conexas entre si.

Por um lado, podemos nos situar num aspecto lingüístico e contrapor umsentido “imediato”, “estrito”, “rigoroso”, “restritivo” a um sentido “afastado”ou “mediato”, “lato”, “extensivo”. Uma teoria atém-se mais estritamente e asegunda, menos estritamente, ao sentido lingüístico das palavras.

Muitas vezes, utilizam-se os conceitos de interpretação extensiva erestritiva de um modo mais livre, referindo-os ao afastamento completodo sentido literal em favor de uma genuína vontade do legislador ou dalei. Por esta fórmula, dissolvem-se os limites entre a interpretação, porum lado, e o preenchimento de lacunas e a correção da lei que veremosadiante, por outro.

Vê-se que os dois conceitos acima referidos induzem a pensar narelação entre o sentido das palavras de um determinado preceito e o seudomínio de aplicação (sentido da palavra domínio de aplicação): ainterpretação estrita (restritiva) refere o preceito a um círculo menor decasos do que a interpretação lata (extensiva).

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As leis freqüentemente se referem à palavra “causa”. Esta palavra éinterpretada ou no sentido de “relação condicionante”, ou no sentido de“conexão típica” entre uma conduta e um resultado.

Segundo a primeira interpretação, todo e qualquer ferimento (por maisleve que seja) que, por qualquer complicação, conduza à morte, é “causal”em relação a esta; na segunda, ao contrário, tal ferimento só é “causal”em relação à morte que condicionou quando for tipicamente mortal. Estainterpretação apresenta-se em relação à primeira como “restritiva”,enquanto restringe o domínio de aplicação do conceito de causa, e,portanto, o domínio de aplicação de todo o preceito.

A compreensão da contraposição dos conceitos de interpretaçãoextensiva ou restritiva não é puramente lingüística, mas, antes, objetivaou de fundo, sendo-lhe inerente certo formalismo, na medida em queele se refere à relação extrínseca dos preceitos da lei com o seu “âmbito”,quer dizer, com o seu domínio de aplicação.

A distinção restritiva/extensiva adquire uma significação materialquando a referimos à relação entre as normas jurídicas e a liberdade, ouaos direitos subjetivos, ou ainda, à preexistência de um princípio geral.

Por vezes afirma-se que: in dubio pro libertate ou singularia non suntrestringenda. Neste caso, uma interpretação estrita e rigorosa (restritiva)equivale a um entendimento de que as leis penais, as restrições àpropriedade, as imposições de deveres, as exceções a um princípio, sãointerpretadas de forma a serem limitados tanto quanto possível o poderpunitivo, a interferência na propriedade, a imposição de obrigações ou aexceção a uma regra.

À luz do que se disse sobre a distinção de interpretação extensiva/restritiva, é “extensiva” aquela interpretação que alarga o poder do Estadoàs expensas da liberdade, prejudica os direitos subjetivos ou quebra osprincípios jurídicos fundamentais através do alargamento das exceções.

Por exemplo, o princípio segundo o qual os atos praticados para afastarum perigo atual para a integridade física ou a vida não devem ser sujeitosà punição (ex.: estado de necessidade); caso seja interpretado de formaextensiva significa uma limitação à punibilidade, o que alarga,

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eventualmente, o domínio de aplicação desse princípio. Teremos, noentanto, uma exceção ao princípio do estado de necessidade quando umindivíduo, sendo policial, tem como obrigação legal resistir ao perigo emanter-se no seu posto com perigo de vida e sob quaisquer circunstâncias.Aqui o preceito relativo ao estado de necessidade é restringido atravésdo alargamento do dever de enfrentar o mesmo estado de necessidade.

O exemplo do policial nos esclarece o caráter formal do conceito dedomínio de aplicação e também sobre a relatividade dos conceitos de“princípio” e “exceção”: o regime excepcional do policial constituiu um“retorno” à regra da punibilidade, já que se apresenta como exceção deuma exceção, i.e., exceção à impossibilidade excepcional dos atospraticados em estado de necessidade.

Pode-se colocar a questão das distinções até agora realizadas de formacrítica, posto que todas elas (restritiva/extensiva) estão sujeitas a certasreservas na medida em que vários preceitos mutuamente se completam.A limitação ou extensão de um dos preceitos pode ser, inversamente, umalargamento ou restrição de outros preceitos, sendo igualmente relativaa relação entre regra e exceção.

Verificamos que também o conceito de liberdade é, ele mesmo, muitasvezes relativo: num conflito entre um policial e um cidadão que “resistaà autoridade”, não está somente em jogo a liberdade do cidadão, mastambém a liberdade de atuação do agente policial (o que implica dizerque as máximas in dubio pro libertate, in dubio contra fiscum ou singularianon sunt extendenda, são pouco seguras).

Do que se viu, é possível aceitar a oposição conceitual já referida,operando-se com os conceitos de vontade do legislador e vontade da lei.Aqui, as palavras da lei são consideradas como meios de expressão davontade do legislador ou da lei, e o seu sentido é ampliado ou restringidode acordo com essa vontade.

Do ponto de vista subjetivista a distinção entre interpretação extensivae restritiva refere-se apenas à relação lógica da expressão com opensamento, na medida em que aquela pode ter um conteúdo menor oumaior que este.

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No primeiro caso, a correção da expressão realiza-se através de umainterpretação extensiva; no segundo através de uma interpretaçãorestritiva. Ambas se propõem a fazer coincidir a expressão com opensamento efetivo (do legislador).

Uma interpretação corretiva em qualquer sentido somente seriaadmissível no caso de as palavras da lei puderem ser consideradas aindacomo uma declaração da sua vontade, se bem que imperfeita, inteligível,embora tomadas em consideração todas as circunstâncias relevantes.

Com isto, quer-se significar que a interpretação deve se manter semprede qualquer modo nos limites do “sentido literal” e, portanto, pode,quando muito, “forçar” estes limites, mas nunca ultrapassá-los. Para alémde tais limites, já não há interpretação extensiva, mas sim “analogia”.

O mesmo pode se dizer da interpretação restritiva. Aquelas disposiçõesque, por exemplo, expressamente (ainda que em contrário da vontadedo legislador) se refiram apenas a “homens” (varões), nunca podem, porinterpretação extensiva, abranger também as “mulheres” e serem, assim,alargadas aos “seres humanos em geral”.

Como se apresentam, porém, os conceitos de interpretação extensivae restritiva, do ponto de vista da teoria objetivista? Como tal teoria concebee respeita o texto independentemente da vontade do legislador, comoportador de um sentido imanente, à primeira vista pode parecer quesequer há qualquer margem para interpretação extensiva ou restritiva.

Se o sentido literal é unívoco, é porque o espírito objetivo semanifestou precisamente deste modo; se o sentido literal é equívoco, adecisão há de ser, então, a favor do sentido “razoável”. Ocorre que, tambémnos objetivistas, deparamos-nos com os conceitos de interpretaçãoextensiva e restritiva.

Para tal corrente, então, para fazer vingar o sentido razoável em facedo teor verbal incorreto, é preciso verificar se a lei foi defeituosamenteconcebida (interpretação extensiva ou restritiva), pois do ponto de vistaobjetivista, não só a lei pode ser mais inteligente do que o seu autor,como também o intérprete pode ser mais inteligente do que a lei.

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Por fim, e em um certo sentido, a interpretação extensiva e a restritivajá podem ser consideradas como uma espécie de complementação dalei. Indo adiante, ingressaremos na heurística (pesquisa) jurídica praeterlegem, cujo principal exemplo é a analogia, e com a heurística jurídicacontra legem, que em sentido estrito significa uma “correção” da lei.Interpretar, portanto, apresenta-se como via de uma descoberta(heurística) do Direito secundum legem, de acordo com o princípio dafidelidade ao texto legal.

5. CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS, CONCEITOSNORMATIVOS, PODER DISCRICIONÁRIO

Hoje nos deparamos com diversos modos de expressão legislativaque fazem com que o julgador (o órgão aplicador do direito) adquiraautonomia em face da lei.

Como modos de expressão deste tipo, distinguimos: conceitos jurídicosindeterminados, conceitos normativos, conceitos discricionários ecláusulas gerais (diferentes formas de afrouxamento da vinculação legal).

Conceito indeterminado é aquele cujo conteúdo e extensão são emlarga medida incertos. Conceitos absolutamente determinados são muitoraros no direito (v.g., conceitos numéricos).

Os conceitos jurídicos são predominantemente indeterminados pelomenos em parte, v.g., aqueles conceitos naturalísticos recebidos pelodireito, como os de escuridão”, “sossego noturno”, “ruído”, “perigo” e“coisa”. Do mesmo modo se pode dizer dos conceitos jurídicos como“crime”, “ato administrativo”, “negócio jurídico”, etc.

Nos conceitos jurídicos indeterminados, podemos distinguir um núcleoconceitual e um halo conceitual. Sempre que temos uma noção clara doconteúdo e da extensão de um conceito, estamos no domínio do núcleoconceitual. Onde as dúvidas começam, começa o halo do conceito.

Os conceito normativos, por sua vez, são também conceitosindeterminados. Contrapõem-se estes conceitos aos conceitos descritivos,i.e., aqueles conceitos que designam “descritivamente” objetos reais ou

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que participam da realidade, i.e., objetos perceptíveis pelos sentidos:“homem”, “morte”, “cópula”, “escuridão”, “vermelho”, “velocidade”,“intenção”, etc.

Também entre os conceitos descritivos encontram-se muitos conceitosindeterminados. Nem todos os conceitos indeterminados são, porém eao mesmo tempo, “normativos”.

Destacando-se dois significados diferentes do conceito normativostrictu sensu, podemos entender por conceitos “normativos” aqueles que,contrariamente aos conceitos descritivos, visam a dados que não sãosimplesmente perceptíveis pelos sentidos, mas que só em conexão como mundo das normas se tornam representáveis e compreensíveis.

Os conceitos descritivos de “homem”, “morte” e “escuridão” sãoconceitos de experiência, mesmo quando referidos a valores. Ao contrário,dizer que uma coisa é “alheia” podendo ser objeto de furto, significaque ela pertence a outro que não o agente. Pressupõe-se o regime depropriedade do Direito Civil.

No caso do sentido normativo (e não simplesmente referido a valores)tem ele, de igual modo, conceitos jurídicos como “casamento”, “afinidade”,“funcionário público”, “menor”, “indecoroso”, “íntegro”, “indigno”, “vil”(baixo) os quais radicam seu teor de sentido em quaisquer normas (dedireito ou morais).

Conceitos como casamento e menoridade são relativamentedeterminados, pois os pressupostos da sua aplicação são definidos demodo bastante preciso. Pode-se até mesmo definir estes pressupostosatravés de conotações descritivas, v.g., declarando “menor” aquele queainda não completou 18 anos.

É sempre necessária uma valoração para aplicar, no caso concreto,um conceito normativo: se alguém é casado ou menor tal pode ser“estabelecido” por critérios descritivos. Ao contrário, se uma predisposiçãode caráter é “indigna”, se um motivo é “vil”, se um escrito é “pornográfico”,se uma representação é “blasfema”, isso só poderá ser decidido combase numa valoração.

Os conceitos dessa espécie chamam-se conceitos carecidos de um

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preenchimento valorativo. O volume normativo destes conceitos tem deser preenchido caso a caso, através de atos de valoração (valoraçãoindividual autônoma ou adoção de valorações alheias [“generalidade depessoas”]). Seja como for, à valoração irá inerente uma indeterminaçãoque nos mostra os conceitos normativos como uma classe especial deconceitos indeterminados.

Os conceitos discricionários põem-se a serviço do afrouxamento davinculação legal, bem como permitem uma certa autonomia da valoraçãopessoal.

É necessário saber se, ao lado dos conceitos indeterminados enormativos, podemos reconhecer os discricionários que postulam umaparticular posição ou atitude do funcionário ou do juiz.

Vista pelos clássicos, a discricionariedade é no sentido de que o pontode vista de quem exerce o poder discricionário deve valer como relevantee decisivo.

Para Forsthoff, poder discricionário significa um espaço de liberdadepara a ação e para a resolução, a escolha entre várias espécies de condutaigualmente possíveis. O Direito Positivo não dá a quaisquer destasespécies de conduta preferência sobre as outras.

“Espaço livre” é a possibilidade de se escolher entre várias alternativasdiferentes de decisão, esteja o espaço livre apenas entre duas decisõescontraditoriamente opostas (v.g., conceder ou não uma autorização) ouentre várias decisões à escolha numa relação disjuntiva (nomear umprofessor em uma lista de três).

É o conteúdo intrínseco do critério “possibilidade de escolha” queevidencia a particularidade dos conceitos de discricionariedade. Talpossibilidade não é só a de fato, mas também uma possibilidade jurídica:é o direito, quase sempre a lei, que numa parte da norma abre apossibilidade de uma escolha entre várias alternativas de fato possíveis.

No caso da “discricionariedade vinculada”, o exercício do poder deescolha deve ir endereçado a um escopo e é resultado da dicção que é o“único ajustado”, em rigorosa conformidade com as diretrizes legais, ao

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lado de uma cuidadosa consideração de todas as “circunstâncias do casoconcreto”.

A incerteza eventualmente existente é um mal que se tem de aceitar.O espaço residual (espaço livre – restringido) da subjetividade naapreciação do justo depois de atendidos as regras e as circunstânciaspode não ser totalmente eliminado.

Os espaços da livre apreciação distinguem-se das genuínas atribuiçõesde poder discricionário (i.e., atribuições de poder para umadiscricionariedade livre) pelo fato de que as atribuições de poderreconhecem um “espaço ou domínio de liberdade de decisão própria”onde se deve decidir segundo as “concepções próprias” daquele a quema competência é atribuída.

O autêntico poder discricionário é atribuído pela lei quando a decisãosobre o correto ou conveniente é confiada à responsabilidade de alguéme definida à valoração individual da pessoa chamada a decidir em concreto,porque se considera a melhor solução aquela que, dentro de determinadoslimites, como pessoa consciente de sua responsabilidade, faça valer seupróprio ponto de vista.

É problema de interpretação verificar quando, na relação entre a lei ea administração, temos de aceitar a abertura de um “poder discricionário”.

Tem de se decidir caso a caso qual intenção inspira aqueles conceitosque se suspeita serem discricionários, se eles possibilitam a descobertade uma decisão como a única justa (correta) segundo critérios firmes.

Os conceitos indeterminados (mormente os descritivosindeterminados) e os conceitos normativos (v.g., características normativas– hipótese legal no direito penal com “mal sensível”) não se reportam avalorações pessoais, se bem que permitem um espaço residual deapreciação pessoal do justo e correto, porque sua interpretação e aplicaçãono caso concreto é ambivalente.

Inversamente, pode-se dizer que os conceitos discricionários, comoregra, são formulados pela sua própria estrutura como indeterminados enormativos (v.g., interesse público, equidade, dureza).

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Se se pode falar da discricionariedade do legislador e do governo,também é possível falar da judicial, que aparece na determinação dasconseqüências jurídicas do fato punível ou na fixação da reparaçãopecuniária do dano moral, ou em certas medidas processuais baseadasna mera conveniência (reunião de processos). O “podem” não significamera possibilidade fática, mas se traduz em um poder de escolha.

No domínio da administração ou jurisdição, a convicção pessoal(valoração) de quem seja chamado a decidir é elemento decisivo paradeterminar qual das várias alternativas que se oferecem como possíveisentre certo “espaço de fogo” será havida como a melhor e a justa.

É problema de hermenêutica indagar onde e em que extensão taldiscricionariedade existe.

Assim, os conceitos indeterminados contrapõem-se aos conceitosdeterminados; os conceitos normativos contrapõem-se aos descritivos; eos espaços ou âmbitos de livre discrição contrapõem-se às vinculaçõesaos critérios objetivos do justo.

O conceito multisignificativo de cláusula geral é conceito que secontrapõe a uma elaboração casuística das hipóteses legais. Casuística éaquela configuração da hipótese legal (enquanto somatório depressupostos que condicionam a estatuição) que circunscreve particularesgrupos de casos na sua especificidade própria.

As cláusulas gerais e o método casuístico nem sempre se excluemmutuamente dentro de uma certa matéria jurídica, mas, antes, podem tambémse complementar. Uma combinação de ambos é o método exemplificativo.

As cláusulas gerais não apresentam qualquer estrutura própria. Nãoexigem processos de pensamento diferentes daqueles que são pedidospelos conceitos indeterminados, os normativos e os discricionários. Tendoem vista sua técnica legislativa e graças à sua generalidade, elas tornampossível sujeitar um mais vasto grupo de situações, sem lacunas e compossibilidade de ajustamento a uma conseqüência jurídica.

O casuísmo está sempre exposto ao risco de apenas fragmentar e“provisoriamente” dominar a matéria jurídica. Este risco é evitado pelautilização das cláusulas gerais, embora outros devam ser aceitos.

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Constitui um ato de interpretação interrogar os conceitos normativoscontidos em lei para saber se eles foram concebidos como critériosobjetivos de valor ou como autorizações para se proceder a uma valoraçãopessoal, como conceitos dos quais decorre uma apreciação “vinculada”ou um genuíno poder discricionário.

Nos conceitos descritivos indeterminados, não nos afastamos da baseda interpretação e daquela que lhe é conexa da subsunção. O manejodos conceitos puramente empíricos é interpretação. Por exemplo, “períodonoturno” e “escuridão” são conceitos empíricos que podem dificultar ainterpretação e a subsunção (que na interpretação se baseia) dos casosconcretos e abrigar o aplicador do Direito a uma particular ponderação.

Os conceitos normativos contêm certa ambigüidade. Esta significa queo conceito em questão pressupõe certas normas (menoridade, casamento,funcionário, etc.) ou a normatividade traduz carência de umpreenchimento valorativo. Ex.: saber se o dedo indicador é um “membroimportante do corpo”, se os combates de boxe são compatíveis com osbons costumes, ou se um curador “violou gravemente suas obrigações”.

Em tais casos, a lei é de opinião de que há concepções moraisdominantes pelas quais o juiz deve se deixar orientar. Se se tratar, v.g., dequestões éticas fundamentais, o juiz não poderá desprezar aquilo que sechama “lei moral objetiva”, que o legislador pressupõe e aceita como válida.

A função dos conceitos normativos, em boa parte, é justamente elespermanecerem abertos às mudanças das valorações: a valoração que oconceito normativo aqui exige é uma questão de conhecimento. O órgãoaplicador do direito tem de averiguar quais são as concepções éticasefetivamente vigentes. A valoração pessoal é apenas uma parte domaterial do conhecimento, e não o último critério de conhecimento.

Assim, as decisões através das quais estes conceitos normativoscarecidos de preenchimento valorativo são “concretizados” têm osignificado de algo como uma espécie de interpretação destes conceitos,ao mesmo tempo que também a determinação da valoraçãocorrespondente ao caso concreto revela certo parentesco com asubsunção.

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Os conceitos normativos (ao contrário dos descritivos) podem adaptar-se elasticamente à configuração particular das circunstâncias do casoconcreto e ainda a qualquer mudança das concepções valorativas.

Nos conceitos normativo-subjetivos, cujos protótipos são os genuínosconceitos discricionários, os quadros ou molduras da livre discriçãoautorizam o órgão aplicador do direito a considerar como vinculante ejusta a valoração por ele pessoalmente tida por justa. Nestes termos,conscientemente se conformam com uma pluralidade de sentidos.

O quadro ou moldura de decisão pessoal não só é restringido atravésde limites legais, mas ainda de outras limitações segundo os costumesou as idéias de direito ou de Estado.

A proibição da arbitrariedade e da falta de pertinência exigeconsideração, posto que na utilização do poder discricionário são evitadosexcessos e abusos desse poder. Neste momento, supomos que a decisão“pessoal” é uma decisão ajustada, proferida com base em uma convicçãoíntima e sincera.

A discricionariedade implica não apenas a livre escolha dos fins, mastambém, em certos casos, a livre escolha dos meios, embora não sejapossível negar uma certa relatividade desta distinção.

Por diversas formas, o aplicador do Direito, através da equidade quese prende com os conceitos indeterminados e com os conceitosnormativos, com as cláusulas de discricionariedade e as cláusulas gerais,é chamado a descobrir o direito do caso concreto, não simplesmenteatravés da interpretação e da subsunção, mas também através de“valorações e decisões de vontade”.

No exercício do poder discricionário, surgem várias alternativas à escolha(fungibilidade), cada uma delas pode ser fungível e defensável, em vistada grande ambigüidade que permanece dentro do “espaço de fogo”.

Essa fungibilidade ou justificabilidade não exclui a esgrima deargumentos e críticas sobre as razões porque precisamente esta ou aqueladecisão é a melhor e “genuinamente” reta. O reto tem de ser sempredefensável, mas nem tudo que é defensável tem de ser aceito como reto,pois continua a ser discutível. Aquilo que em todo caso tem de ser

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reconhecido como defensável deve valer como dentro do espaço demanobra do poder discricionário e, nessa medida, deve valer como correto.

Aplicadores do Direito são comissionados a procurar o que é de direito,o que é conveniente e o que é a medida justa no caso concreto, paraempenhar a sua responsabilidade e a sua melhor ciência e consciência,sim, mas ao mesmo tempo através de um modo criativo e, talvez por issomesmo, inventivo.

6. PREENCHIMENTO DE LACUNAS E CORREÇÃO DO DIREITOLEGISLADO INCORRETO

Sabe-se que a lei pode autorizar ao Juiz o exercício da função delegislador, dentro de certos limites, efetuando juízos de valor.

Veremos agora o direito remetido a novas vias de pensamento quandose trata de preencher lacunas e retificar incorreções no ordenamentojurídico. Lacunas e incorreções podem se reunidas sob o conceito comumde deficiência.

A deficiência denominada lacuna é afastada por meio da integraçãojurídica, atuando o juiz praeter legem e supplendi causa, ao passo que naincorreção o afastamento dá-se pela correção da lei: o juiz atua contra legem,corrigendi causa. A fronteira entre ambas nem sempre é nítida e segura.

O conceito de lacuna jurídica pode ser traduzido por uma incompletudeinsatisfatória no seio de um todo jurídico.

O que é o todo jurídico dentro do qual se abre a lacuna?

Houve quem desenvolvesse teoremas (proposições que, para setornarem evidentes, carecem de demonstração) segundo a plenitude(fechamento ou completude) da ordem jurídica transformada em dogmae que contesta a existência de genuínas lacunas jurídicas.

Tais teoremas fundamentaram-se no conceito de espaço ajurídico. Otodo jurídico estende-se sobre um determinado domínio e é, nestes termos,fechado. Ao lado dos domínios regidos pelo direito existem outros quenão são por ele afetados, v.g., os domínios da crença e das relações de

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sociabilidade. Estes domínios caem no “espaço ajurídico”. Não se tratade lacunas, mas de algo que se situa fora do Direito. Realmente, umalacuna jurídica seria uma lacuna no todo jurídico, certo que o espaçoajurídico se estende para além e em volta do jurídico.

As lacunas são deficiências no Direito Positivo (do direito legislado oudo direito consuetudinário), apreensíveis como faltas ou falhas de conteúdode regulamentação jurídica para determinadas situações de fato em que éde se esperar uma regulamentação, e que tais falhas admitam sua remoçãoatravés de uma decisão judicial jurídico-integradora.

Na medida em que a interpretação baste para responder às questõesjurídicas, o direito não será lacunoso. Pelo contrário, a analogia possuiuma função integradora. Ela não exclui as lacunas, mas as fecha ou ascolmata. O mesmo vale para os princípios gerais do Direito. Tambémquando o legislador conscientemente deixou uma questão em abertopara decisão, uma questão que ele deixou ao parecer da ciência e daprática, teremos de falar de uma lacuna.

Nestes termos, existem lacunas involuntárias e voluntárias. Para Engish,não se deveria falar de lacuna quando o legislador, através de conceitosjurídicos indeterminados, ou de cláusulas gerais, reconhece à decisãouma certa margem de variabilidade. Aqui nos encontramos peranteafrouxamentos planejados da vinculação legal para ajustamento da decisãoàs circunstâncias particulares do caso concreto e às concepções variáveisda comunidade jurídica.

A linha de fronteira entre a aplicação do direito secundum legem e opreenchimento de lacunas praeter legem torna-se pouco nítida nascláusulas gerais.

Falou-se das lacunas sob o aspecto de sua relação intrínseca com otodo jurídico. Agora é preciso identificar o momento ou aspecto daincompletude insatisfatória, da incompletude contrária a um plano. Antesde sentirmos a não-existência de uma regulação como lacuna, é precisoverificar o plano do legislador ou da lei, posto que uma inexistênciaplanejada de certa regulamentação surge quando uma conduta,“consciente e deliberadamente”, não é declarada como punível, quandonós aguardávamos sua punibilidade. Se a impunidade nos cai mal, pode-se

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falar de uma “lacuna político-jurídica”, de uma “lacuna crítica”, de uma“lacuna imprópria”, i.e., de uma lacuna do ponto de vista de um futurodireito mais perfeito (de lege ferenda); não, porém, de uma lacunaautêntica e própria, i.e., de uma lacuna do direito vigente (de lege lata).

O Juiz não pode colmatar as lacunas de lege ferenda, mas apenas asde lege lata.

O conceito de espaço ajurídico se justifica na medida em que implicaa idéia de que a não-ligação, “consciente e deliberada”, de conseqüênciasjurídicas a determinados fatos os deixa fora do direito e não provoca umaverdadeira lacuna.

É sempre verdade que o primeiro passo do julgador consiste emverificar a necessidade e a justificação da integração de lacunas.

Para Engish, na determinação de lacunas não podemos nos ater apenasà vontade do legislador histórico. A mudança das concepções de vidapode fazer surgir lacunas que anteriormente não haviam sido notadas eque temos de considerá-las como lacunas do direito vigente e nãosimplesmente como lacunas jurídico-políticas.

Diz-se, ainda, que não há apenas “lacunas primárias”, lacunas deantemão inerentes a uma regulamentação legal, mas, ainda, “lacunassecundárias”, i.e., lacunas que só supervenientemente se manifestam,porque as circunstâncias se modificaram. As regulamentações jurídicasnão raro se tornam posteriormente lacunosas em razão de fenômenoseconômicos novos (v.g., inflação) ou de progressos técnicos (Internet,inseminação artificial, clonagem), fazerem surgir questões jurídicas às quaisa regulamentação anterior não oferece qualquer resposta satisfatória.

Voltando ao problema de saber através de que métodos de pensamentojurídico há de se proceder ao preenchimento das lacunas, devemoscomeçar pelo mais conhecido de todos, o argumento de analogia.

A conclusão por analogia é uma conclusão “do particular para oparticular”, ao passo que a conclusão por dedução parte do particularpara o geral. O conceito plurissignificativo de “semelhança” é o eixo daconclusão. Somente nos fenômenos particulares, a partir dos quais seconclui, se abstrai um pensamento geral, é possível concluir (dedução)para um outro particular.

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Para que exista uma conclusão de analogia juridicamente admissível,requer-se a prova de que o particular em relação ao qual a regulamentaçãofalha tenha em comum com o particular para o qual existe regulamentaçãoaqueles elementos sobre os quais a regulamentação jurídica se apóia.

A analogia é lícita enquanto se verificar aquela semelhança. Quandoa semelhança cessa, onde aparece uma diferença essencial, a analogiaencontra os seus limites e surge, em certos casos, o chamado argumentoa contrário, a saber, o argumento que parte da diversidade dos pressupostospara a diversidade das conseqüências jurídicas.

Existem outros problemas particulares conexos com o conceito deanalogia no Direito.

Toda regra jurídica é suscetível de aplicação analógica, até mesmo deDireito Consuetudinário. Não tem aplicação apenas dentro do mesmoramo do Direito, tampouco dentro de cada código.

Vemos a analogia intercalada entre a interpretação e o argumentocontrário. Também, nem sempre é fácil descobrir a fronteira entre ainterpretação e a analogia. Esta se insere por detrás da interpretação, pordetrás mesmo da interpretação extensiva.

Se para a interpretação se assenta a regra de que ela encontra o seulimite onde o sentido possível das palavras já não dá abertura a umadecisão jurídica (o limite das hipóteses de interpretação é o sentidopossível da letra), é nesse limite que começa a indagação de umargumento de analogia. Não raramente, é duvidoso saber se o sentidoliteral não poderá ser referido à situação concreta através de uma“interpretação extensiva”.

A linha limítrofe entre a interpretação – especialmente a extensiva –por um lado, e a analogia, pelo outro, é fluída. Isso tem importância práticaquando é juridicamente permitida toda espécie de interpretação, mas estáproibida, em vez disso, uma aplicação analógica dos preceitos jurídicos.

As questões da metodologia da interpretação reaparecem, mutatismutandis, na analogia, especialmente a questão de saber em que medida,para a descoberta do “pensamento fundamental” decisivo, deve-seprocurar a vontade do legislador histórico ou a vontade “objetiva” da

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própria lei, e, logo, a questão de saber que significado têm os fins inerentesa um preceito para a apreensão do respectivo sentido (não se conhece apenasuma interpretação teleológica, mas também uma analogia teleológica).

Podemos distinguir a analogia da lei (analogia legis) da analogia do direito(analogia juris). Na primeira, parte-se de uma regra jurídica isolada e dela seretira um pensamento fundamental aplicável a casos semelhantes. Nasegunda, parte-se de uma pluralidade de normas jurídicas e se desenvolvemcom base nelas (através de indução) princípios mais gerais aplicados a casosque não cabem em nenhuma norma jurídica. Ex. de analogia juris: uma sériede preceitos individuais do Código Civil que impõem a obrigação de indenizarpor uma conduta culposa em face da contraparte contratual, na fase dacontratação, e fazem derivar o princípio geral de que – após a simplesiniciação das negociações – fundamenta-se um dever de cuidado entre aspartes, cuja violação induz em responsabilidade por perdas e danos (aresponsabilidade por culpa in contraendo).

A distinção entre analogia da lei e analogia do direito, no fundo, apenasse refere à base de indução usada na elaboração do pensamentofundamental, base essa que, em um caso, é mais restrita e, em outro,mais ampla. Trata-se, apenas, de uma diferença de grau.

Há limites para a analogia. Se uma disposição é editada para umdeterminado caso excepcional ou para um grupo de tais casos, não podeser analogicamente aplicada a casos nos quais se não verifique esta situaçãoexcepcional. Cabe aqui o argumento a contrário: na falta dos pressupostosparticulares, a conseqüência jurídica específica tem de ser denegada. Poroutro lado, nos limites do pensamento fundamental do preceito excepcional,é bem possível uma analogia (a possibilidade de retirar o réu da audiênciapode ser aplicada à testemunha – preceito singular).

A máxima singularia non sunt extendenda deve ser manejada com a maiorcautela e não diz nada de novo em face das considerações anteriormentefeitas sobre a relação entre a analogia e o argumento a contrário.

Diversamente, tem de se reconhecer como limite à admissibilidadeda analogia a proibição desta, por vezes estabelecida pelo legislador:nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege.

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Como critério para determinação dos limites entre uma interpretaçãoextensiva, ainda permitida, e uma aplicação analógica, que já não o é,temos novamente o sentido literal possível.

É hora de tratar da questão de saber por que modo se deve procederao preenchimento de lacunas quando a “capacidade de expansão” lógicae teleológica da lei ou de uma norma de Direito Consuetudinário nãobastar para descobrir e fundamentar a decisão procurada.

No caso da interpretação extensiva, como apreciar juridicamente umtratamento médico com morfina para aliviar as dores insuportáveis de umpaciente já condenado à morte, no caso de existir o perigo de, através daalta dose indicada, ser apressada a morte do paciente? Na medida em quenos apegarmos à lei penal e à sua interpretação tradicional, temos dereconhecer que o encurtamento da vida conscientemente aceito (porqueprognosticado como altamente provável) é um ato de homicídio doloso(voluntário), que em todo caso pode ser punido com um pena mais brandaquando possa estar ligado à “solicitação expressa e séria” do paciente morto.É também duvidosa a existência de um erro invencível sobre a proibiçãopor parte do médico que provoca a “morte misericordiosa”.

No manejo da analogia, é preciso observar o critério de orientação damaior utilidade possível para a comunidade estatal, um proveito maiorque o prejuízo.

Recomenda-se como meio de preenchimento de lacunas, além dasconsiderações puramente teleológicas sobre a aptidão de umaregulamentação jurídica para a realização prática de determinados fins,uma valoração jurídica, moral ou cultural tanto do próprio fim como domeio de que se lança mão para o atingir. O princípio da ponderação e doconfronto de bens e deveres é o único meio de proteger um bem jurídicoou cumprir um dever imposto ou reconhecido pelo Direito, a questão desaber se aquela ação é lícita, não é proibida, ou é ilícita deve ser decididacom base no valor relativo que o Direito vigente reconhece aos bensjurídicos ou deveres em conflito.

Tal fórmula, além de considerações práticas e técnicas (qual a gravidadedo perigo que ameaça o bem jurídico, em que medida é necessário sacrificarum bem ou um dever?) há de se apoiar em critérios de valor “objetivos”.

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A questão decisiva será sempre de saber em que medida a “valoraçãopessoal” do juiz é entendida como uma decisão efetivamente pessoal,subjetiva, e em que medida ela é uma decisão que encontra apoio emcritérios objetivos. Na dúvida, procurar-se-á no preenchimento de lacunasuma decisão objetiva.

Há ainda a questão de saber se, apesar das possibilidades de umadescoberta integradora do direito, não haverá casos nos quais não sejapossível uma colmatação de lacunas, i.e., se, além das lacunas do DireitoPositivo, não haverá finalmente lacunas da ordem jurídica global. De fato,podem ficar em aberto lacunas insuscetíveis de preenchimento, que odogma da plenitude do ordenamento jurídico, segundo o qual “para cadaquestão jurídica há de ser sempre possível encontrar uma resposta”, nãoé absolutamente válido. É verdade que vale a regra do non liquet, queveda a denegação de justiça, mas ela não é válida a priori: em certoscasos de lacuna, o juiz pode recusar a resposta. Pensemos nos casos doDireito Público e Internacional. O Tribunal não tem competência paraproferir uma decisão segundo o critério ou segundo pontos de vista deoportunidade apenas.

Nestes termos, não existe uma plenitude (fechamento) da ordemjurídica que seja lógica e teorética (especulativa) juridicamentenecessária. A plenitude da ordem jurídica deve ser mantida como umaidéia “regulativa”, como um princípio da razão. O que de nós se exige éque a todas as questões jurídicas respondamos juridicamente, quecolmatemos as lacunas do Direito Positivo, na medida do possível, atravésde idéias jurídicas.

Ao lado do princípio da plenitude do ordenamento jurídico, cabe situaro princípio da unidade do ordenamento jurídico.

O princípio da unidade do ordenamento nos conduz às questõesreferentes à correção do direito incorreto. Uma das faces do princípio éo postulado da exclusão das contradições na ordem jurídica. Estas seapresentam como erros ou incorreções. Nem toda contradição redundaem uma incorreção.

Sobre as contradições na ordem jurídica, partindo do Direito legisladoe traçando um paralelo com as lacunas primárias e secundárias, podemos

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distinguir as contradições primárias e secundárias, conforme identificadasdesde o início do complexo de regras ou posteriormente.

O legislador às vezes se dá conta de uma contradição da lei nova comas preexistentes, no todo jurídico mais amplo em que se insere a novaregulamentação.

Tal ocorre em contradições do novo com o antigo regime onde nemsempre aquelas podem ser apreendidas pelo novo regime.

Podem-se identificar algumas espécies de contradições, cada uma comseu alcance particular e seu peculiar significado metodológico.

Por outro lado, as contradições de técnica legislativa consistem emuma falta de uniformidade da terminologia adotada pela lei. V.g.: oconceito de funcionário no Direito Público não é o mesmo em DireitoPenal. Pode alguém ser funcionário em sentido jurídico-penal sem queo seja em termos de Direito Público; do mesmo modo conceitos comocoisa, posse, erro, publicidade, negligência, exceção têm nas diferentesnormas jurídicas diferentes significações. Fala-se de uma relatividade dosconceitos jurídicos.

A ordem jurídica exige uma variação individualizante dos conceitoscom vistas à sua adaptação ao sentido particular da determinação do direitoem concreto.

A “negligência”, no Direito Penal, tem interpretação diversa da doDireito Civil, porque a punição exige, na determinação da culpa, um graumais elevado do que na indenização dos prejuízos, sendo certo que osconceitos recebam o seu conteúdo e o alcance do contexto em que seinserem, especialmente do contexto normativo e teleológico.

Podem ser ainda citadas as contradições normativas que consistemem uma conduta in abstrato ou in concreto aparecer ao mesmo tempocomo prescrita e não-prescrita, proibida e não-proibida, ou até comoprescrita e proibida. V.g.: dever de obediência às ordens do superior e,ao mesmo tempo, proibição de atos puníveis como matar. Tal contradiçãonormativa tem de ser removida.

Muitas contradições, no entanto, são aparentes. É o que podemos

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afirmar todas as vezes que, a uma interpretação correta das normas queprima facie se contradizem e da sua inter-relação, mostra-se, logo, que umadelas deve ter precedência sobre a outra. Incide aqui o postulado do princípioda unidade e da coerência (ausência de contradições) da ordem jurídica.

Tal postulado funciona da seguinte forma: a norma especial temprecedência sobre a geral; a norma superior prefere a inferior; a normaposterior tem precedência sobre a anterior.

Se, dentre várias normas entre si contraditórias, não for possível destacaruma como a “mais forte”, como a única válida e decisiva, então, dentreas normas que entre si se contradizem, entrando em conflito umas comas outras, surge a chamada “lacuna de colisão”, que deve ser colmatadasegundo os princípios gerais do preenchimento de lacunas. Vê-se aquicomo os postulados da coerência (ausência de contradições) e da plenitudeda ordem jurídica se encontram.

As contradições valorativas são aquelas que resultam do fato de olegislador não ter se mantido fiel a uma valoração por ele próprio realizada.V.g.: pena proporcionalmente mais grave para um crime de menorpotencial ofensivo. Aqui, o legislador se põe em conflito com suaspróprias valorações, e que, portanto, a contradição valorativa é umacontradição imanente. Tais contradições têm de ser aceitas, todavia, cadacontradição valorativa imanente deve constituir um estímulo a queverifiquemos cuidadosamente se ela não poderá ser eliminada atravésda técnica de interpretação.

Contradições teleológicas, embora raras, aparecem sempre que a relaçãode meio e o fim entre as normas não se verifica, mas deveria se verificar.

O legislador visa, com determinadas normas, a determinado fim, masatravés de outras normas rejeita aquelas medidas que se apresentam comoas únicas capazes de servirem de meio para se alcançar tal fim, ou ainda,adia a edição de normas que confiram executoriedade à lei.

Freqüentes e inevitáveis são as contradições de princípios e seconstituem em desarmonias que surgem em uma ordem jurídica pelofato de, na constituição desta, tomarem parte diferentes idéiasfundamentais entre as quais se pode estabelecer um conflito.

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7. DA LEI PARA O DIREITO, DA JURISPRUDÊNCIA PARA A FILOSOFIADO DIREITO

O pensamento do jurista moderno se orienta pela lei, seu entorno,seu alcance, seus limites, suas lacunas e suas incorreções, tendo comometa a descoberta do Direito no caso concreto.

Veremos outros métodos de descoberta do Direito não vinculados àlei, destacando-se a sua descoberta por meio dos precedentes (case Law).

O case Law reside no fato de que o apoio que o juiz continentalnormalmente encontra na lei é, neste sistema, representado pelas decisõesindividuais anteriores de um tribunal superior (House of Lords, Court ofAppeal), não só nos pontos em que a lei seja omissa, mas também quantoàqueles outros em que se trata de uma interpretação duvidosa da mesma lei.

Se o caso a ser decidido é igual a outro que já foi decidido por umtribunal, deve ser decidido de igual modo.

Sempre haverá o problema de saber se o novo caso é igual ao outro,sob os aspectos considerados essenciais.

Por outro lado, a regra jurídica expressa num precedente apenas évinculativa na medida em que foi necessária para a decisão do caso jurídicoanteriormente julgado; se ela foi concebida com maior amplitude doque a que teria sido necessária, não constitui essa parte uma razão dedecidir decisiva para o futuro, mas, antes um obter dictum, um “dito depassagem” irrelevante do juiz.

Retornando ao sistema continental voltado para a lei, sabe-se que estanão é uma grandeza apoiada sobre si mesma e absolutamente autônoma,mas é estratificação e expressão de pensamentos jurídicos aos quaiscumpre recorrer a cada passo sempre que se pretenda compreender alei corretamente, ou ainda restringi-la, completá-la ou corrigi-la.

Uma idéia apreensível deste direito nos dá a denominadajurisprudência dos interesses a qual domina a interpretação, opreenchimento de lacunas e a correção dos erros da lei.

A jurisprudência dos interesses tem como concepção fundamental ofato de a ordem jurídica ser constituída de comandos (imperativos) que

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devem apreender os interesses materiais e ideais dos homens e tutelá-losna medida em que eles se apresentem como dignos de proteção e tutela.

É certo que os interesses dos homens não se situam isoladamente unsao lado dos outros, mas se encontram, podendo colidirem entre si. Importaao Direito a colisão de interesses, o “conflito de interesses”.

Em toda parte, o Direito contrapõe certos interesses a outros. Ele dirimeesses conflitos através da ponderação de interesses em conflito e doestabelecimento de um equilíbrio entre eles (Teoria Conflitual). Todo comandojurídico dirime um conflito de interesses (quando são contrapostos).

A propósito de cada norma jurídica deve destacar-se o conflito deinteresses decisivo: cada análise exige a articulação dos interesses. Ojuiz no Estado legalista não os pondera segundo a sua fantasia, masvinculado às soluções dadas aos conflitos pelo legislador. Prevalece oprincípio da fidelidade à lei.

O juiz concretiza, caso a caso, as soluções gerais dadas aos conflitospela lei, ao verificar, por confronto, que o conflito concreto se configurada mesma forma que o intuído pelo legislador ao criar a norma.

Somente quando o Direito o autoriza excepcionalmente a assentar adecisão na sua própria apreciação dos interesses, e especialmente nasdelegações discricionárias, é que o juiz assume o papel de legislador.

A jurisprudência dos interesses coloca a lei num campo de forçassociais econômicas e culturais, cuja consideração é indispensável paratornar inteligível sua função juridicamente ordenadora.

Em verdade, ao considerarmos apenas os interesses ou também outrosfatores da vida como os elementos jurídico-causais determinantes e que,desse modo, têm também de ser tidos em conta para a interpretação, acompreensão, a integração e a complementação do Direito, sempre adecisão do legislador ou julgador do Direito deve traduzir a valoraçãodos interesses e desses outros fatores.

Os valores morais como a igualdade, a confiança e o respeito peladignidade da pessoa humana não são interesses quaisquer ao lado deoutros: eles são os elementos ordenadores do Direito Privado e do Direito

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Público; eles não se situam ao lado dos fatos a ordenar, no mesmo plano,mas por cima deles, em um plano superior. Por isso, o fundamento últimode toda aplicação do Direito há de ser a conscientização das valoraçõessobre as quais se assenta nossa ordem jurídica.

As valorações do legislador não podem ser isoladas. Elas têm de serrelacionadas com outras que estão por detrás da lei e imprimem o seucunho ao Direito.

O presente capítulo deixa entrever que a relação lei e Direito (lei/juristas – Direito/filósofos) em determinado ponto transforma-se em umproblema e em um tema fundamentalmente filosófico-jurídico.

Um tema que se localiza no limiar de tais temas é o desenvolvido porTheodor Viehweg: o conceito de Tópica.

A Tópica como “técnica do pensar por problemas” já aparecia no“Organon”, de Aristóteles, e era nessa obra aplicada a argumentos quenão se apóiam em premissas seguramente “verdadeiras”, mas, antes, empremissas simplesmente plausíveis, geralmente evidentes ou que pelomenos aparecem aos “sábios” como verdadeiras.

O processo tópico presta-se para a elaboração e colheita de pontos devista e argumentos relevantes, mas não para a apreciação do seu peso epara a descoberta de regras de preferência na ponderação a fazer – anão ser que tais regras de preferência sejam elas mesmas, por sua vez,colocadas entre os pontos de vista (Topoi).

A Tópica parece carecer de complementação por parte de uma teoriados valores, de um “sistema de valores”, tal como aquele que dispomosno catálogo dos direitos fundamentais (que não são simples Topoi).

De uma maneira mais geral, em um Estado de Direito, o princípio dalegalidade a reger a justiça e a administração, para a seleção, valoração eponderação dos topoi nos remete aos métodos de interpretação da lei,etc., pelo que a tópica e hermenêutica tradicional encontram-senovamente.

Nos casos em que ao juiz ou administrador são deixados “espaços”para aplicação de conceitos, preenchimento de lacunas, complementação

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do Direito, chega-se ao ponto em que entram em cena “pontos de vista”materiais que ultrapassam a lei e para cuja busca é competente a Tópica.

Importa saber onde os topoi relevantes encontram seu apoio jurídicoe assentam-se sua vinculação.

Todos os defensores da Tópica, quando não a referem logo como topoi,acentuam operações hermenêuticas como interpretação, analogia e argumentoa contrário, que são pontos de vista de justiça, equidade, oportunidade,razoabilidade, senso comum, lei moral, natureza das coisas, etc.

Com efeito: a questão, por exemplo, de saber se o Direito deve seguira moral (que moral?) ou erguer-se e suster-se apenas sobre os seuspróprios pés, se um “senso comum” (ou “consenso”) pode exigirrelevância, se um tal consenso pode sequer existir na moderna “sociedadepluralista”, assim como a questão de saber em que relação estão entre sia justiça e a oportunidade, a de saber se a justiça pela sua própria“natureza” deve, por uma via generalizadora, prestar o mais possívelatenção à igualdade de tratamento ou, por uma via individualizadora,atentar na adequação à particularidade das circunstâncias e àespecificidade das partes, o de saber o que pode significar “natureza dascoisas” (o que significa nesta combinação verbal “natureza” e o que éque se entende aqui por “coisa” – matéria, assunto?), de saber o que éque se entende em geral por “idéia de direito”, que tensões estão nelaimplícitas, se ela é “absoluta” ou apenas “relativamente válida”, comopode lançar-se a ponte sobre o abismo que vai entre a sua majestosageneralidade (basta pensar na idéia de “bem comum”) e os problemasjurídicos especiais ou singulares – todas estas são questões que se põemao jurista, as quais ele não pude fugir, mas que, do ponto de vistametodológico, só podem ser respondidas pela filosofia do Direito.

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DIVIDINDO O INDIVISÍVEL ERELATIVANDO O RELATIVISMO, EMMATÉRIA DE DIREITOS HUMANOS.

Regina Coeli Medeiros de Carvalho Peixoto - Juíza Federal

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho destina-se a trazer à colação a questão daindivisibilidade dos Direitos Humanos, sob o ponto de vista daquelesque entendem que estes são universais e indivisíveis e daqueles queentendem que devam ser relativados, tendo-se em conta o respeito àcultura e soberania dos povos.

Inicialmente, traremos os conceitos de indivisibilidade e relativismo,na visão dos estudiosos da questão, suas origens e destinos.

Em seguida, a opinião dos pensadores que não adotam qualquer dasduas posições, de forma radical, e propõem linhas intermediárias deabordagem na questão dos direitos humanos, através da regionalizaçãoem cortes intermediárias, fazendo respeitar as características individuaisde cada grupo.

Por fim, apresentamos a nossa conclusão com a analise do problema,sob o ponto de vista do princípio universal do respeito à dignidade humanae as diretrizes que entendemos devam ser tomadas, na renegociaçãovisando uma Corte Mundial.

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2. O CONCEITO DE INDIVISIBILIDADE E SUA ORIGEM.

Segundo Lindgren, in Cidadania, Direitos Humanos e Globalização (1),a origem da indivisibilidade dos Direitos Humanos repousa no fato deque, desde que os Direitos Humanos foram adotados pela ONU, estessempre padeceram de desequilíbrio quanto a sua priorização, tendendopara os de primeira geração.

Observa que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, nãopriorizou espécies de Direitos Humanos, mas nos dois pactos firmadospara os dois blocos de direitos, cada bloco divergia do outro, em termosde proteção.

O bloco de direitos civis e políticos, dispunha de um comitê deperitos, encarregados de monitorar a implantação, acolhendo inclusivequeixas individuais, enquanto o outro bloco de direitos sociais eeconômicos e culturais não foi agraciado com essa proteção, emboratenham tentado suprir a lacuna, criando comitês com essa finalidade,porém sem direito à acesso individual, como o primeiro.

Diante dessa disparidade, os países em desenvolvimentoestabeleceram esse mecanismo de proteção que é a indivisibilidade detodos os Direitos Humanos, reafirmado pela ONU inúmeras vezes.

Na verdade, segundo o referido autor, a indivisibilidade foi infirmadapela declaração de alguns países em desenvolvimento que violavamdireitos civis, sob a alegação da necessidade de priorizar odesenvolvimento, além dos direitos econômicos e sociais. Nesse sentido,o Prof. Lindgren, na mesma obra, entende que o desenvolvimento nãogarante o respeito aos demais Direitos Humanos.

Relata, ainda, que o término da guerra fria e a queda do muro deBerlim foram eventos que levaram a crença de que o processo dedemocratização era irreversível, gerando a convocação para a Conferênciade Viena em 1993.

(1) LINDGREN ALVES, José Augusto. Cidadania, Direitos Humanos e Globalização. In: PIOVESAN,Flávia. Direitos Humanos, Globalização Econômica e Integração Regional. Ed. Max Limonad, SãoPaulo, 2002, pg.77-98.

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Segundo ele, essa conferência estabeleceu conceitos importantes,como da universalidade, da legitimidade do monitoramento internacionalde violações, a inter-relação entre os Direitos Humanos, odesenvolvimento e a democracia, o direito ao desenvolvimento e ainterdependência entre todos os Direitos Humanos. Nesse sentido, reputaessa conferência como a mais importante no discurso contemporâneosobre Direitos Humanos.

Na sua obra, constata que o fenômeno mais importante após a guerrafria é a globalização. Se antes ocorria a bipolarização liberalismo Xcomunismo, com o Estado-Previdência nos países desenvolvidos,objetivando afastar a contaminação pela utopia antagônica, o que se vê,hoje, é a adoção do laissez faire absoluto, sob a alegação de que aliberdade de mercado leva à liberdade política e a democracia.

Com isso justificou-se o investimento em países de regime autoritário,aceitando neles o sacrifício das liberdades civis e políticas em favor dodesenvolvimento. Nos países de sistemas democráticos as proteçõesmercadológicas, trabalhistas e previdenciárias foram objetadas em nomeda modernidade, assim como o Estado-Previdência em razão da fatalidadedo desemprego. Entende o autor que essas são as premissas para odesenvolvimento vertiginoso da globalização.

Constata, também, que a indivisibilidade só tem guarida naquelesEstados-previdencia, pois , sem as prestações positivas ofertadas por essasinstituições, o que se vê é uma cidadania incompleta.

De outra banda, temos que Clarence Dias, no seu texto Indivisibilidade,In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Direitos Humanosno Século XXI,(2) preleciona que os conceitos de universalidade,indivisibilidade, interdependência e inter-relacionabilidade em matéria deDireitos Humanos estão completamente sedimentados. Porém, põe emdiscussão se há consenso universal quanto à indivisibilidade e qual seria oseu conceito e que passos deveriam ser tomados para a sua plena realização.

(2) DIAS, Clarence. Indivisibilidade. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pinheiro.Direitos Humanos no Século XXI. Brasília: Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais/Fundação Alexandre de Gusmão, 1998.

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Inicialmente, tenho que, de mister, uma perspectiva histórica da origemda indivisibilidade:

1. A Carta das Nações Unidas não menciona esse conceito;

2. A Declaração Universal dos Direitos do Homem também nadamenciona;

3. O Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pactosobre Direitos Civis e Políticos, mencionam a interdependência entretodos os direitos humanos. Por esse motivo, entende-se que o conceitode interdependência foi precursora da indivisibilidade.

4. A Proclamação de Teerã de 1968 faz menção explícita àindivisibilidade, embora não a justifique ou defina. Nessa carta, afirma-se ser impossível atingir-se plenamente os direitos civis e políticos sem ogozo dos direitos econômicos, sociais e culturais e vice-versa.

5. A Convenção Européia de 1950 trata de direitos civis e políticos,mas não fala da indivisibilidade. A Carta Social Européia de 1961, na atafinal de Helsinque conclama os Estados participantes a “promoverem eestimularem o exercício efetivo dos direitos e liberdades civis, políticos,econômicos , sociais, culturais e outros, que se originam em sua totalidade,da dignidade inerente ao ser humano e são essenciais para seu livre epleno desenvolvimento”(Seção VII, parágrafo segundo ).

6. O protocolo adicional à Convenção Americana sobre DireitosHumanos na área dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais(Protocolode San Salvador adotado em 1988) trata do conceito de indivisibilidadeno seu preâmbulo. Esse protocolo baseia a indivisibilidade noreconhecimento da dignidade humana, reafirmando o papel daindivisibilidade na plena realização de todos os direitos, negando a práticade compensações adotadas pela escola asiática.

7. A Carta Africana (Nairobi, 1981) propõe um conceito de indivisibilidadeque relaciona direitos econômicos, sociais e culturais aos direitos políticos,relacionando, assim, direitos individuais a coletivos e encarando odesenvolvimento como forma de consolidar a indivisibilidade.

8. A região Ásia-Pacífico é a única que não possui acordo regional

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sobre direitos humanos, mas a Sexta Oficina (Teerã, 1998) reafirma auniversalidade, indivisibilidade e interdependência dos Direitos Humanos.

Assim, a Professora Clairence Dias, na obra já referida, afirma que oconceito de indivisibilidade encontra-se introduzido de forma definitivanas normas internas e internacionais.

Nesse sentido, conclui que os direitos humanos e da pessoa humanasão indivisíveis, são inerentes e emanam da própria natureza humana. Aindivisibilidade é uma relação mútua, vez que o gozo dos direitoshumanos é que torna humana a vida das pessoas; eles existem para garantiro mais preciosos dos direitos: de ser e permanecer humano.

Segundo ela, o conceito de indivisibilidade confere aos gruposminoritários uma base sólida para que reafirmem o caráter inato dessesdireitos, apresentando cinco dimensões, infirmando esse conceito:

1- Todos os direitos humanos são iguais não cabendo alegação deprecedência de um sobre o outro. Portanto, não há gradação;

2- É dever dos Estados promover e proteger os direitos humanos e asliberdades fundamentais;

3- Não se permite qualquer tipo de concessão em matéria de direitoshumanos;

4- Não poderá haver concessões entre desenvolvimento e direitoshumanos, embora alguns governos asiáticos aleguem que odesenvolvimento econômico deve ter precedência sobre outros direitos;

5- Em razão da indivisibilidade não se realiza os direitos civis e políticossem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais. Todos os direitossão iguais.

Conclui, ressaltando que a indivisibilidade é chave para o avanço dauniversalidade, interdependência e inter-relacionamento dos DireitosHumanos, havendo mais violações em relação à indivisibilidade do queaos demais princípios.

No que concerne ao Programa de Direitos Humanos das NaçõesUnidas, verifica-se que começou com a criação da Comissão sobre Direitos

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Humanos e o Centro para Direitos Humanos e concentrou a sua ação nomonitoramento das violações de Direitos Humanos, especialmente osdireitos civis e políticos, não havendo sinais de inclusão do princípio daindivisibilidade nas atividades do programa.

Com relação aos Estados Membros, apesar de aceitarem o princípio,não o vêm aplicando. Organizados em grupos esses Estados persistemna prática da seletividade. Os EUA recusam-se a reconhecer os direitoseconômicos, sociais e culturais. O Vaticano junto com as religiões islâmicasrecusam-se a reconhecer diversos direitos da mulher, os da reproduçãoespecialmente, sem contar o grupo asiático que relativiza a importânciados direitos civis e políticos.

A ratificação do Pacto sobre direitos econômicos, sociais e culturaisnão aconteceu e os avanços têm sido lentos.

No que concerne a indivisibilidade há uma grande distância entre aretórica e a realidade, ocorrendo crescente falta de credibilidade.

3. O RELATIVISMO E SUA ORIGEM.

Nesse estado de indefinição e falta de credibilidade quanto aimplantação definitiva do princípio da indivisibilidade, instalou-se orelativismo, que originou-se com o desafio dos valores asiáticos.

A questão se introduziu com a tese de Lee Kuan Yew sobre os valoresasiáticos, tendo sido seus comentários considerados simplistas,pretensiosos e fechados em interesses próprios.

A escola do pensamento de Cingapura tem as seguintes convicções:

1- os valores asiáticos são diferentes dos ocidentais. Os asiáticos dãoênfase aos laços familiares, a prioridade da comunidade sobre o individuo,a estabilidade social e a ordem pública acima da democracia.

2- as mudanças sociais e econômicas da modernização trazeminstabilidade, a menos que haja um governo autoritário, pois a democraciagera indisciplina e desordem que são inimigas do desenvolvimento.

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3- os líderes asiáticos estão corretos ao estabelecer que as necessidadesmateriais do povo estão acima das liberdades pessoais e direitos individuais.

4- as políticas participativas não devem ser impingidas às sociedadesasiáticas pelo ocidente.

5- os valores asiáticos e os impulsos culturais favorecem mais osdeveres que os direitos, as responsabilidades mais que as liberdades, odesenvolvimento mais que a democracia liberal e a estabilidade socialmais que o pluralismo político e cultural.

Quando esses princípios foram anunciados, também seguidos porMahatir Mohamed, houve um grande apoio aos problemas enfrentadospor eles, especialmente os problemas multirraciais.

Os dois pensadores têm sido críticos severos do imperialismo ocidentale vem sendo amplamente apoiados pela imprensa chinesa e demais. Ogoverno chinês, em 1991, no White Paper, adotou a tese da concessãoentre direitos humanos e desenvolvimento, declarando que comer e seagasalhar são as demandas básicas do povo chinês que por muito temposofreu com fome e frio e, ainda, acrescentou que a questão dos direitoshumanos está circunscrita à soberania de cada estado.

Posteriormente insurgiram-se quanto a tentativa da imposição depadrões pessoais a outras culturas, sob o manto dos Direitos Humanos,havendo proposta, por parte de Mahatir, no sentido de ser revista aDeclaração Universal dos Direitos do Homem, uma vez que suas origense natureza são ocidentais.

Segundo a Profa. Clairence, na obra supracitada, os valores asiáticosque até então eram mera divergência, agora ameaçam romper a correnteglobal dos Direitos Humanos, que são a maior conquista do século.

4 - A ANALISE DESCOMPROMISSADA.

Norberto Bobbio, in “A Era dos Direitos”,(3) fala-nos que, na verdade, o pósguerra propiciou dois fenômenos: o da multiplicação e o da universalização.

(3) BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, Ed. CAMPUS, Rio de Janeiro, 1992, pgs. 49-83.

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Nesse sentido, constata que o fenômeno da multiplicação dos direitosse deu por três motivos:

1- maior quantidade de bens merecedores de tutela;

2- Extensão de alguns direitos do homem a outros titulares;

3-Porque o próprio homem não é mais visto individualmente, masnum contexto: velho, mulheres,criança, etc.

Portanto, em substância: mais bens, sujeitos e status. Os três processospossuem interdependência e revelam a necessidade de fazer referênciaa um contexto social.

Menciona, no primeiro caso, a passagem dos direitos de liberdadesnegativas (religião, opinião de imprensa), para direitos políticos e sociais,com intervenção direta do Estado.

No segundo, a passagem do indivíduo singular, titular dos direitosnaturais, para sujeitos diferentes do individuo: família, minorias étnicase religiosas e até mesmo para animais e a natureza onde respeito eexploração passam do individuo para esses novos atores.

No terceiro processo, sai o homem genérico para o homemespecífico(sexo, idade, condições físicas), bastando examinar as cartasde direito nos últimos quarenta anos.

Assim, segundo Bobbio, os direitos de liberdade negativa valem parao homem abstrato. A liberdade religiosa foi se estendendo a todos e omesmo processo se estendeu para os direitos a liberdade: “todos oshomens são iguais” (art.1º da Declaração Universal).

Essa universalidade, segundo ele, não vale para os direitos sociais epolíticos, nos quais os indivíduos só são iguais genericamente, mas nãoespecificamente, nestes existem diferenças de grupos para grupos (Ex:direito ao voto, que era exclusivo masculino). Hoje os menores não votam,concluindo-se que no reconhecimento dos direitos políticos há que selevar em conta as diferenças, justificando um tratamento não igual.

Constata que a doutrina dos direitos do homem nasceu da filosofiajusnaturalista, que parte do princípio de que os direitos do homem são

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poucos e naturais (vida, sobrevivência etc.) e que, segundo Kant, o únicodireito do homem é o direito à liberdade em face de todo oconstrangimento imposto pela vontade do outro, sendo que todos os outrosdireitos estão incluídos nela.

Ressalta, ainda, que o estado de natureza era uma tentativa deracionalizar determinadas exigências que iam se ampliando cada vez mais,inicialmente nas guerras de religião, a necessidade de liberdade deconsciência contra toda forma de imposição de uma crença e, num segundomomento, na época das revoluções inglesa, americana e francesa, quandohouve a demanda de liberdades civis contra todo nepotismo.

A passagem da hipótese racional para a análise da sociedade real e desua história vale com maior razão hoje que as exigências de proteção aindivíduos e grupos que vieram de baixo, aumentaram e continuam aaumentar, sendo certo que a ampliação dos direitos demonstra que oponto de partida hipotético do estado de natureza perdeu toda aplausibilidade, mas nos fazem refletir que o mundo das relações sociaisque dela derivam é muito mais complexo, não bastando os direitosfundamentais como a vida, a liberdade e a propriedade.

Assim, a conclusão do autor é de que a analise dos direitos humanosnão pode ser dissociada da analise do desenvolvimento da sociedade eressalta que não há uma carta de direitos atuais que não inclua, porexemplo, o direito a educação, primeiro elementar e depois secundária,pouco a pouco chegando à universitária. O estado de natureza não dánotícias de menção ao direito à instrução. As principais exigências dizemrespeito a liberdade face às Igrejas e ao Estado.

Reafirma que as novas exigências de direito de liberdades civis eramfundadas na existência de direitos naturais, prova disso é que as exigênciassociais tornaram-se mais numerosas, quanto mais rápida e profunda foi atransformação da sociedade.

A proteção dada aos idosos é decorrente do aumento da populaçãoidosa e da expectativa de vida, decorrente das mudanças nas relaçõessociais e progressos da medicina. Constata, assim, que a conexão entre amudança social e mudança na teoria e na prática dos direitos fundamentaissempre existiu, os direitos sociais é que a tornaram mais evidentes.

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A Profa. Flávia Piovesan, in “Direitos Humanos e JurisdiçãoConstitucional Internacional”(4), menciona que, na verdade, ainternacionalização dos Direitos Humanos é recente, tendo surgido comouma resposta, da humanidade, ao nazismo.

Na sua analise constata que a guerra foi a destruição e o pós-guerra areconstrução, fortalecendo a idéia de que essa proteção não pode se restringira competência nacional, prenunciando-se, assim, o fim da era em que oEstado tratava seus nacionais como um problema de jurisdição interna.

Analisando os tratados internacionais, constata que estes enfocamquatro dimensões:

1- um consenso internacional para adotar parâmetros mínimos para adignidade humana;

2- a imposição de deveres jurídicos aos Estados, positivos ou negativos;

3- instituem órgãos de proteção aos direitos;

4- criam mecanismos de monitoramento, objetivando a implementaçãodesses direitos.

Enfim, estabelece o conceito do “mínimo ético universal”, como umfator de relativização da noção de que vivemos um relativismo culturalque inviabiliza a construção de valores universais capazes de se tornarembalizadores da humanidade, a despeito das diferenças culturais existentesna sociedade internacional.

Nesse sentido, aponta o aparecimento das Cortes Regionais, como aEuropéia, Sul-americana e Africana, além de um incipiente sistema árabee asiático, ao lado do sistema global, consolidando os dois sistemas (ONUe Regionais). Ressalta, nesse giro, que embora dicotômicos, os doissistemas são complementares e interagem em benefício dos protegidos.

5- CONCLUSÃO.

No que concerne ao principio da indivisibilidade, tenho que este é o

(4) PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Jurisdição Constitucional Internacional. Mimeo, 2004.

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ideal da humanidade: que todos os direitos humanos sejam implantadosna sua totalidade, sem seletividade e priorização.

Não há dúvida de que devamos lutar por isso, sendo inadmissível queainda não se tenha avançado para a sua aproximação, pois sequer estamostangenciando o mínimo ético universal.

O Prof. Andrei Koerner in “ O papel dos direitos humanos na políticademocrática: uma analise preliminar”(5) e in “ Ordem política e sujeito dedireito no debate sobre direitos humanos”(6) , adota uma posição deespera, pois após os ataques de 11 de setembro, ocorreram muitasmudanças e houve um retrocesso na negociação dos direitos humanos,sendo necessário um lapso de tempo para que se retome os caminhos jápercorridos.

Os ataques terroristas têm sido um “jato de água fria” no princípio dauniversalidade. Há ódios seculares, rancores que parecem invencíveis emáguas ainda muito recentes. A ferida está, ainda, aberta e exposta.

A reação dos países asiáticos às propostas ocidentais é muitocontundente e não pode deixar de ser apreciada. Estamos lidando comcivilizações milenares, que guardam convicções de que seus princípiossão os corretos e não aceitam adotar princípios ocidentais em substituiçãoàs suas culturas e tradições.

Um exemplo típico desse espírito, de não se curvar aos valoresocidentais, é o que vem acontecendo com o surgimento dos homens-bomba e os ataques suicidas, demonstrando claramente que preferemmorrer a ter que sepultar suas convicções morais e religiosas.

A tentativa de forçar uma negociação para a adoção do princípio daindivisibilidade dos direitos humanos, significa sepultar de uma vez portodas a possibilidade de algum dia atingirmos a cidadania universalpregada por Kant ou seja, o princípio da universalidade.

(5) KOERNER, Andrei. O papel dos direitos humanos na política democrática: uma análise preliminar.In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.18, no.53, São Paulo, 2003.(6) KOERNER, Andrei. Ordem política e sujeito de direito no debate sobre direitos humanos . In:Revista Lua Nova no. 57 São Paulo 2002.

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Vejo com reservas a adoção radical do princípio da indivisibilidade pelaONU, pois um posicionamento nesse sentido somente irá afastá-la do gruporelativista, composto especialmente pelo bloco asiático e por outras naçõesque acabam por assinar tratados, aceitando conceitos semelhantes, apenaspor medo de retaliações e isolacionismo. Nesse sentido, as Nações Unidasdevem se abster de tais posicionamentos, prevenindo-se da possibilidadede acabar por falar sozinha e restar sem interlocutores.

Constata-se, facilmente, esta tendência quando se houve o grupo asiáticopropor a reformulação da Declaração Universal, considerando que a mesmafoi erigida com base em conceitos e valores ocidentais. A questão tomaproporções visíveis, quando os Estados Unidos, considerado um dos modelosde capitalismo e de democracia universais, vem violando reiteradamenteos direitos econômicos, recusando-se a ratificá-los em relação aos demaisEstados, por evidente medida de protecionismo aos seus interesses.

Entendo que devamos retomar as negociações, quando possível, pelomínimo básico à dignidade humana que é o direito à vida, abolindo-se apena de morte no mundo inteiro. Se os responsáveis pela implantação emonitoramento das violações de direitos humanos não se mobilizarem,inicialmente, pelo supremo direito à vida, tudo restará na retórica e osagentes responsáveis pela implementação dos direitos humanos emonitoramento das violações terminarão por cair no descrédito.

Concomitantemente, à evidência da dificuldade da internacionalizaçãodas constituições, vê-se, claramente, o florescimento dos direitosregionais, como o Tribunal Europeu e a Corte Interamericana que, com aúltima reforma passou a ser dotada de maior jurisdicionalização.

Importante destacar que o Prof. Cançado Trindade, in “Consolidaçãoda Capacidade Processual dos Indivíduos na Evolução da ProteçãoInternacional do Direitos Humanos”(7), dá conta da regionalização emrelação aos países árabes e africanos, restando, tão somente, ao blocoasiático aderir ao movimento. Creio que, com isso, avançou-se bastante.

(7) CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Consolidação da Capacidade Processual dos Indivíduosna Evolução da Proteção Internacional dos Direitos Humanos. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio;GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Direitos Humanos no Século XXI. Brasília: Instituto de Pesquisasde Relações Internacionais / Fundação Alexandre de Gusmão, 1998.

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Sobre esta questão, insta ressaltar a contribuição trazida pelo Prof.Blanke , da Universidade de Direito Internacional de Erfurt, no primeiroSeminário “A tutela judicial no sistema multinível”, promovido peloConselho da Justiça Federal, em setembro de 2004, quando nos trouxe aexperiência da Alemanha em relação ao Tribunal de Estrasburgo. Segundoele, a jurisprudência emanada da Corte Regional, em nada vemcontribuindo para o Poder Judiciário alemão, uma vez que as garantiasindividuais previstas na Constituição da Alemanha são mais abrangentesque aquelas oferecidas pelo estatuto daquela Corte. Esse, na minhamodesta opinião, deve ser o nosso ideal e é, já que a nossa ConstituiçãoCidadã inspirou-se, em parte, no texto “tedesco” e, também, no modeloespanhol, considerados os textos com maior amplitude de garantia aosdireitos fundamentais.

A direção a ser tomada é essa, sem sombra de dúvidas, uma grandeamplitude de direitos previstos na legislação interna, a integração dasCortes Regionais até a total sistematização numa Corte Mundial, seguindoo ideal kantiano, da Constituição Universal.

Por esse motivo, entendo, que aqueles autores que defendemradicalmente a adoção do princípio da indivisibilidade, ressalvados o quenão adentram a questão, encontram-se na contra-mão da história, aotentarem impor ao mundo, um pacote de direitos humanos que entendemuniversais e indivisíveis.

O relativismo não é nenhum pecado mortal, se procurarmos entenderas peculiaridades culturais de cada um. A indivisibilidade é um ideal quedevemos buscar e não um óbice a adoção de um mínimo básico: ou tudoou nada é um jogo desvalorado quando estamos lidando com pessoas.

Como exigir direitos políticos, econômicos e culturais para pessoasque vivem abaixo do nível de pobreza; a miséria humana, a total perdada dignidade. O trabalho há que começar pelas bases sim, obtendo detodos os Estados um mínimo essencial para que seus nacionais tenhamdignidade e só assim, os organismos internacionais poderão agir e exigiro cumprimento do ratificado.

Destarte, conclui-se que a relativação do relativismo e a divisão daindivisibilidade vem sendo, aos poucos, implementadas, com a criação

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das Cortes Regionais, que detêm as peculiaridades de cada grupointermediário, sem deixar de atender aos princípios básicos devidos àdignidade da pessoa humana.

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RESERVA DO POSSÍVEL PARA QUEM?Américo Bedê Freire Júnior - Juiz Federal Substituto em Vitória/ES.

Mestre em Direitos Fundamentais FDV. Professor da FDV

Nada mais perigoso do que fazer-se Constituição sem o propósito decumpri-la. Ou de só se cumprir nos princípios de que se precisa, ouse entende devam ser cumpridos – o que é pior [...]. No momento,sob a Constituição que, bem ou mal, está feita, o que nos incumbe, anós, dirigentes, juízes e intérpretes, é cumpri-la. Só assim saberemosa que serviu e a que não serviu, nem serve. Se a nada serviu emalguns pontos, que se emende, se reveja. Se em algum ponto a nadaserve – que se corte nesse pedaço inútil. Se a algum bem públicodesserve, que pronto se elimine. Mas, sem a cumprir, nada saberemos.Nada sabendo, nada poderemos fazer que mereça crédito. Não acumprir é estrangulá-la ao nascer.

Pontes de Miranda

É argumento reiterado na discussão sobre a implementação depolíticas públicas através do Poder Judiciário a reserva do possível, quenormalmente é dividida em seu aspecto fático e jurídico e, em algumassituações, envolve tanto o aspecto fático quanto jurídico.

Ana Paula de Barcellos1 sintetiza a reserva do possível numa visãofática ao ponderar que:

A expressão reserva do possível procura identificar o fenômenoeconômico da limitação dos recursos disponíveis diante dasnecessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas. No

1 BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. Rio de Janeiro:Renovar, 2002. p. 236.

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que importa ao estudo aqui empreendido, a reserva do possívelsignifica que, para além das discussões jurídicas sobre o que se podeexigir judicialmente do Estado – e em última análise da sociedade, jáque é esta que o sustenta –, é importante lembrar que há um limitede possibilidades materiais para esses direitos.

No aspecto jurídico, é alegada a necessidade de prévia dotaçãoorçamentária como limite ao cumprimento imediato de decisão judicialrelativa a políticas públicas. Mas, inicialmente, há de se ressaltar que alegaçõesgenéricas de falta de recursos não podem passar de meras alegações2.

É claro que a Constituição não é só norma e de nada adiantaria a normaconstitucional ou o juiz decidir sem que houvesse elementos fáticos parao cumprimento da decisão. Todavia, antes de se reconhecer singelamentea falta ou escassez de recursos, é preciso investigar, no caso concreto,essa escassez e os motivos que levaram a ela.

Será que é possível falar em falta de recursos para a saúde quandoexistem, no mesmo orçamento, recursos com propaganda do governo?Antes de os finitos recursos do Estado se esgotarem para os direitosfundamentais, precisam estar esgotados em áreas não prioritárias do pontode vista constitucional e não do detentor do poder.

Por outro lado, é preciso observar que se os recursos não são suficientespara cumprir integralmente a política pública, não significa per si quesão insuficientes para iniciar a política pública.

Nada impede que se inicie a materialização dos direitos fundamentaise, posteriormente, se verifique como podem ser alocados novos recursos.O que não é razoável é simplesmente o Executivo ou Legislativodescumprir a Constituição e a decisão judicial, alegando simplesmenteque não tem recursos para tal.

2 George Marmelstein pondera que “ Há que ser feita, contudo, uma advertência: as alegações denegativa de efetivação de um direito social com base no argumento da reserva do possível deve sersempre analisada com desconfiança. Não basta simplesmente alegar que não há possibilidadesfinanceiras de se cumprir a ordem judicial; é preciso demonstrá-la. O que não se pode é deixar quea evocação da reserva do possível converta-se “em verdadeira razão de Estado econômica, num AI-5 econômico que opera, na verdade, como uma anti-Constituição, contra tudo o que a Cartaconsagra em matéria de direitos sociais”. LIMA, George Marmelstein. Crítica a teoria degerações (ou mesmo dimensões) dos direitos fundamentais: doutrina jurídica brasileira.Caxias do Sul: Plenum, 2004. 1 CD-ROM. ISBN 85-88512-01-7 9

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Krell3 aponta que a reserva do possível é uma falácia, fruto de umdireito constitucional comparado equivocado. Afinal, como importarlimites de uma sociedade tão diferente, especialmente quanto à garantiamínima de direitos4?

Cabe ainda lembrar, em relação ao argumento fático da reserva dopossível, que tal teoria, sob os auspícios de modernidade, nada mais é doque a provecta fórmula romana que previa “Ad impossibilia nemo tenetur”.

Efetivamente, um juiz não pode determinar que o Estado cure umdoente de AIDS se ainda hoje a doença não tem cura, não há nada denovo nessa construção.

Cabe frisar ainda que, na elaboração da Constituição, discutindo-se oproblema das omissões no cumprimento da Constituição, chegou a seraprovado em Subcomissões5 (embrião do artigo 103 da CF) um parágrafoque previa:

Parágrafo único. Na hipótese de inconstitucionalidade por inexistênciaou omissão de ato de administração, se o Estado demonstrarcomprovadamente a impossibilidade de prestação por falta ouinsuficiência de recursos financeiros, bem como pela inexistência deplanejamento em execução para a erradicação da impossibilidade, oTribunal Constitucional a declarará, só para o efeito de firmar a prioridadee fixar prazos limites da etapa de execução.

Veja-se que há vários modos de analisar a reserva do possível: há omodo que vem prevalecendo como cláusula supra-legal dedescumprimento da Constituição e há o modo como enfrentar comseriedade o problema e iniciar uma postura diversa que busca o diálogo

3 KRELL, Andréas. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: SAFE, 2002. p. 51.4 Não desconhece o autor a problemática relativa ao mínimo existencial como parâmetro definidorde justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais, entretanto, por não ser adepto de talposicionamento, não haverá maiores considerações ao longo do trabalho sobre tal posturahermenêutica. Como todo paradigma, o mínimo existencial vem sendo reconhecido sem maiorescontestações como parâmetro a definir a necessidade de atuação do legislador, todavia prefere-seacreditar que não será a solução para os diversos problemas de efetividade vincularmosaprioristicamente a responsabilidade do legislador ao mínimo, mas deve-se cobrar e procurarefetivar ao máximo as normas constitucionais.5 Conforme registra SOUZA, Luciane Moessa. Normas constitucionais não-regulamentadas:instrumentos processuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 57.

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entre as funções estatais em prol do respeito aos direitos fundamentais.

Já em 1987, discutiam-se alternativas à comprovada (não meramentealegada) escassez de recursos, não sendo razoável continuarmos ainviabilizar o processo de materialização de direitos sem que hajatentativas sérias de criar as condições necessárias para a resolução daomissão constitucional.

Em relação ao aspecto jurídico da reserva do possível analisadaisoladamente, é preciso distinguir o tipo de política pública decidido peloJudiciário.

A depender da urgência do caso concreto, nada impede que haja,pelo magistrado, a determinação de inclusão no orçamento para o anoseguinte de verba específica para colmatar a lacuna existente.

Exemplo dessa situação pode ser a decisão judicial que determinaque seja realizada a construção de uma escola. Ora, dependendo dascircunstâncias fáticas, o início da construção da escola pode sermaterializada no próximo ano, evitando-se o conflito com a falta deprevisão orçamentária.

Por outro lado, quando for necessário o cumprimento imediato dadecisão, como, por exemplo, a concessão de remédio ou cirurgia, haveráuma colisão de regra constitucional do orçamento com o princípio ououtra regra que serviu de suporte para o magistrado determinar aimplementação da política6.

Nesses casos, haverá a prevalência da decisão, pois a ponderaçãonecessária para o encontro do núcleo essencial de direitos à regra daprévia dotação orçamentária não é absoluta.

Ademais, quando há vontade política do Executivo e Legislativo,cotidianamente, vê-se a abertura de créditos extraordinários ou suplementares,do que se conclui que a reserva do possível jurídico somente é óbice paraaquele que não quer se submeter à decisão judicial (Constituição).

A reserva do possível não pode ser, então, subjetiva de quem não

6 Frise-se que é possível a colisão entre regras e princípios e colisão entre princípios.

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concorda com a decisão e não pretende cumpri-la7, utilizando retórica eargumentos construídos para uma realidade completamente diferenteda brasileira.

Há outras questões interessantes relacionadas ao problema da reservado possível no seu aspecto jurídico, como, por exemplo8: a) políticapública prevista no plano plurianual, mas não prevista na lei orçamentária;b) política pública prevista no plano plurianual, com dotação orçamentáriana lei orçamentária anual, porém não realizada a despesa até o fim doexercício em curso; c) política pública prevista no plano plurianual, comdotação orçamentária na lei orçamentária anual, porém realizada apenasem parte no exercício próprio; d) possibilidade de o juiz determinar ainclusão de política pública no próprio plano plurianual; e) problema deque a previsão na lei orçamentária anual não gera direitos subjetivosnem obriga o administrador a realizar a despesa prevista9; f) políticapública prevista no plano plurianual, com dotação orçamentária na leiorçamentária anual, mas ainda não efetivada.

7 Aliás, nessa lógica perversa, se já existe o descumprimento da Constituição, qual o problema dedescumprir ordem do judiciário?8 Cabe, para melhor análise das questões, trazer à baila a lição de Uadi Lammêgo Bulos para definirplano plurianual : “O plano plurianual é o plano relativo às despesas de capital nos programas deduração continuada, que excedam o orçamento anual em que tais despesas foram iniciadas. Valelembrar que o plano plurianual é um plano de investimentos, devendo compatibilizar-se com todosos planos e programas nacionais, regionais e setoriais”. BULOS, Uadi Lammêgo. ConstituiçãoFederal anotada. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 1075.Augusto Zimmermann define a lei de diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual do seguintemodo: “Quanto à Lei de Diretrizes Orçamentárias, nesta devem estar contidas metas e prioridadesda administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeirosubseqüente. Além disso, ela orienta a elaboração da lei orçamentária anual, dispõe sobre as alteraçõesna legislação tributária e estabelece a política de aplicação das agências financeiras oficiais defomento (CF, art. 165, § 2º). A lei orçamentária anual, como se deduz, é válida para o exercíciofinanceiro que tem duração de um ano. Autoriza, outrossim, as despesas e faz uma previsão estimativadas despesas da União. A lei orçamentária anual compreende três peças distintas: a) o orçamentofiscal, que é a peça mais importante, prevendo as receitas fiscais da União, seus fundos, órgãos eentidades da administração direta e indireta; b) o orçamento de investimento das empresas em quea União detenha a maioria do capital social com direito a voto; c) o orçamento da seguridade, queabrange todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem comoos fundos e fundações instiuídos e mantidos pelo Poder Público (CF, art. 165, § 5º, I, II, III).ZIMMERMANN, Augusto. Curso de Direito Constitucional. 3. Ed. Rio de Janeiro: LúmenJúris, 2004. p. 673.9 Insta observar que a Constituição gera direitos subjetivos e que, apesar de não existir umaobrigatoriedade da realização da despesa prevista na lei orçamentária anual, tal regra não pode serutilizada para justificar o não atendimento de direitos fundamentais. Talvez seja possível falar que,

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Analisados os questionamentos de um modo global10, encontramos oconflito entre a regra do orçamento público e a materialização dos direitosfundamentais. Entende-se que deve prevalecer o direito fundamental àprestação de políticas públicas, seja para inclusão no plano plurianual,seja para determinar a realização de uma despesa sem previsão na leiorçamentária anual.

Não se pretende, com essa postura, menosprezar a importância doorçamento e do direito financeiro, todavia há que se verificar até que pontoos empecilhos formais podem impedir a materialização da essência daConstituição. Cabe lembrar que a prévia previsão da despesa no orçamentonão é um fim em si mesmo e que as normas constitucionais devem serinterpretadas em prol da máxima efetividade dos direitos fundamentais.

Ademais, o Brasil é signatário do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,Sociais e Culturais11 que prevê expressamente no seu artigo 2°-1:

Cada Estado-parte no presente pacto compromete-se a adotar medidas,tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperaçãointernacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até omáximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar,progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercíciodos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular,a adoção de medidas legislativas.

Ora, verifica-se a mudança de paradigma de simplesmente atender areserva do possível para a aplicação dos recursos disponíveis ao máximo,ou seja, efetivamente deve-se procurar transformar em realidade asconquistas formais dos direitos fundamentais.

É claro que deverá haver um controle contínuo da efetivação dessadespesa, bem como um acompanhamento pelo Poder Judiciário do corretocumprimento das normas constitucionais, além da necessária participação

nesses casos, comprovada a necessidade fática, há uma obrigatoriedade de realização da despesa,não existindo qualquer discricionariedade ao administrador público.10 As eventuais peculiaridades a serem observadas para uma solução adequada em face de cadaquestionamento levantado não impede o estabelecimento de uma regra geral de prevalência dodireito material sobre o orçamento, razão pela qual é viável o estabelecimento da premissa de todasas soluções aventadas.11 Por não ser objeto do presente trabalho, não será efetuada a discussão se o pacto foi incorporadoao status de norma constitucional ou de lei ordinária.

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do Tribunal de Contas no controle de políticas públicas. Todavia asdificuldades inerentes à materialização não são suficientes para obnubilaro direito fundamental.

Enfim, a reserva do possível é um argumento que deve ser analisadoe sopesado na hora da decisão judicial. Não para impedir a fixação daresponsabilidade estatal, mas para que seja construída uma forma deviabilização de uma Constituição compromissada com a dignidade dapessoa humana e com os direitos fundamentais.

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ACOISA JULGADA NO DIREITO PROCESSO

PENAL.Rodolfo Kronemberg Hartmann1 - Juiz Federal Substituto na Seção

Judiciária do Rio de Janeiro

É inegável que “sentença” e “coisa julgada” são institutos que precisamser estudados conjuntamente, eis que a segunda usualmente surge quandoa primeira é proferida,2 sendo que esta, obviamente, necessariamenteprescinde da existência de um processo3 anterior.

O próprio processo, em sua essência, decorre do princípio do devidoprocesso legal, cuja origem remota é a cláusula 39 da Magna Carta assinadapelo Rei John Lackland, em 15 de junho de 1215, que dispõe: “nenhumhomem livre será detido ou preso, nem privado de seus bens, banido ouexilado, ou de algum modo, prejudicado, nem agiremos ou mandaremos

1 Juiz Federal Substituto na Seção Judiciária do Rio de Janeiro. Professor da EMERJ, da AMPERJ, daPós-graduação da UNESA e da UCP (Universidade Católica de Petrópolis). Mestre pela UGF(Universidade Gama Filho), na área de concentração “Direito, Estado e Cidadania”.2 No decorrer deste estudo serão fornecidos exemplos em que uma decisão interlocutória poderiagerar o surgimento de coisa julgada material.3 É extremamente controvertida a natureza jurídica do processo. A doutrina processual, de um modogeral, adota o entendimento capitaneado por Oskar von Bulow, que enxerga no processo umconjunto de atos coordenados que adquire uma dupla noção: externamente se revelando peloprocedimento e, internamente, por se constituir em uma relação de direitos e obrigações quevincula mutuamente as partes e o juiz, dando ensejo ao surgimento da relação jurídica processual.Vale dizer que, de acordo com Bulow, esta relação jurídica processual se formaria independementeda existência ou não da relação jurídica de direito material. James Goldschmidt, porém, deu novosentido ao termo “processo”, ao apresentar a teoria da situação jurídica. Segundo esta outraconcepção, antes de ser instaurado o processo qualquer relação jurídica eventualmente existente éestática, somente surgindo uma situação dinâmica no momento em que se inicia o processo. Emconsequência, seria correto afirmar que eventuais vínculos existentes entre as partes somente

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agir contra ele, se não mediante um juízo legal de seus pares ou segundoa lei da terra”4. Sob esta ótica, portanto, o processo se constitui em ummeio de composição de conflitos e de pacificação social5, tornando-seum instrumento de garantia quando houver a necessidade de afastamentode algum direito natural.

Muito se questiona qual seria o objeto do processo penal. Para GiuseppeBettiol, por exemplo, o objeto seria uma hipotética pretensão punitiva doEstado, que somente poderia ser exercitada quando comprovado o fatocriminoso e a responsabilidade do agente, verbis: “E´ necessário, quindi,concludere che oggeto del processo penale no è il diritto soggettivo dipunire, ma uma pretensa punitiva ipotetica, una representazioneunilaterale del diritto soggetivo che il giudice può ritenere non fondatodei fatti allegari dall´organo dell´acusa”.6

Contudo, este não é o entendimento majoritário sobre o tema, quepossui grande divergência até mesmo nos dias atuais7, embora se percebaque, modernamente, vem prevalecendo o entendimento de que o seuobjeto seria a pretensão processual8, que consiste na pretensão externadapor meio do direito de ação, veiculada por meio da imputação9, é que é

criariam expectativas de decisões favoráveis, razão pela qual o processo deve ser visualizado comouma situação jurídica, que seria o estado em que as partes se encontram no processo enquantoaguardam a sentença, com vistas à obtenção da coisa julgada. Sobre este tema recomenda-se aleitura de MARQUES, Allana Campos. A relação jurídica processual como retórica: uma crítica apartir de James Goldschmidt. Críticas à teoria geral do direito processual penal. Coord. JacintoNelson de Miranda Coutinho. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 171-189.4 COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 2ª Ed. São Paulo:Saraiva, 2001, pp. 78 e 81.5 JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 59,ressalva ainda que “embora tenhamos sustentado que a categoria essencial ao processo é apretensão, não negamos, jamais, que o processo seja uma forma de composição de conflitos deinteresse quando exista lide, que lhe é acidental”.6 BETTIOL, Giuseppe. La correlazione fra acusa e sentenza nel processo penale. Milano: Dott. A.Giuffré, 1936, p. 16.7 Sobre o tema, é obrigatória a consulta a obra de BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy.Correlação entre acusação e sentença. Coleção de Estudos de Processo Penal Prof. JoaquimCanuto Mendes de Almeida, v. 3. São Paulo: RT, 2000, p. 42, onde também consta a advertênciaque: “a noção de objeto do processo aparece como denominador comum de um grupo de quatroproblemas: modificação da demanda, litispendência e limites objetivos da coisa julgada ecumulação de demandas”.8 JARDIM, Afrânio Silva. Op. cit. p. 34, adverte que: “no processo penal a pretensão punitiva(processual) é sempre insatisfeita... pois a pena não pode ser aplicada senão através do processo,em decorrência do interesse do próprio Estado de tutelar a liberdade do réu”.9 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação... , pp. 82-83: “A imputação é a afirmação

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dirigida ao Estado com o objetivo de viabilizar a condenação dodenunciado.10 Vale dizer que esta pretensão processual não se confundecom a chamada pretensão material11, consoante escólio de GustavoHenrique Righi Ivahy Badaró:

Pode-se falar, portanto, em duas pretensões distintas. Inicialmente,em face de um conflito de interesses, surge a pretensão. Dessapretensão podem decorrer duas situações: ou ela é voluntariamentesatisfeita pelo sujeito contra quem foi formulada, que a ela não opõeresistência, subordinando seu interesse ao interesse alheio; ou essesujeito resiste àquela pretensão, que restará contestada ou insatisfeita.Até aqui estamos analisando a pretensão carneluttiana, que é apretensão material. Ocorrendo a segunda hipótese, a satisfação dapretensão material terá que se dar através do processo. No processo,formula-se uma nova pretensão, agora dirigida ao Estado e não maiscontra o sujeito que satisfez a pretensão material... assim, se não hárazões para confundi-las, não há porque designá-las pelo mesmo nome.A distinção pode ser feita, e deve ser feita, acrescentando-se aosubstantivo pretensão o adjetivo material ou processual.12

Além disso, deve ser observado que, como o pedido na ação penalcondenatória é sempre genérico, será a imputação que irá fixar o themadecidendum, ou seja, a própria extensão da prestação jurisdicional13 e,consequentemente, os próprios limites objetivos da coisa julgada noprocesso penal.

Sob um aspecto funcional, porém, o processo corresponde a uma sériede atos que busca um determinado fim. Vale dizer que estes atos que ocompõe são chamados de “atos processuais”, constituindo-se em umadas espécies dos atos jurídicos, podendo ser praticados no processo tantopelas partes, como também pelos auxiliares da justiça, pelos magistrados

do fato que se atribui ao sujeito, a afirmação de um tipo penal e a afirmação da conformidade dofato com o tipo penal. Em síntese, trata-se da afirmação de três elementos: o fato, a norma e aadequação ou subsunção do fato à norma”.10 MALAN, Diogo Rudge. Op. cit., p. 104.11 FONTES, André. A pretensão como situação jurídica subjetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 2002,p. 175, assevera, em relação a pretensão material que: “constitui o conteúdo da pretensão, porexcelência, a exigibilidade, não obstante seja ele assaz abrangente, por conter as faculdades derenúncia, de transmissão e até do seu próprio exercício, como se deduz analogicamente do direitosubjetivo. O que se exige com a pretensão é a realização da prestação, que constitui, de ordinário,o seu objeto”.12 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação... , pp. 72-75.13 JARDIM, Afrânio Silva. Op. cit. p. 150.

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e, inclusive, por terceiros14. Em consequência, é correto afiançar que oEstado-juiz, quando provocado a prestar jurisdição por meio da demanda,deve exercê-la em um processo que, ao final, deverá ser encerrado coma prolação de um ato decisório. Esta decisão final, que é denominadasimplesmente de “sentença”, não se encontra definida nos artigos 381/393 do CPP, que tratam desta matéria razão pela qual se costuma empregara mesma definição utilizada no CPC, que se encontra no art. 162, parágrafo1º CPC e que prevê que: “sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo aoprocesso, decidindo ou não o mérito da causa”.15

A sentença é um ato de inteligência do magistrado16, já que é proferidadiante da análise dos meios de provas carreados aos autos, muito emborapossa ser perfeitamente possível que o seu conteúdo não correspondaao que tenha efetivamente ocorrido. Com efeito, o juiz analisa fatos epode concluir pela existência de um que, ao contrário do que as provasindiquem, pode não ter naturalísticamente acontecido17. Tal circunstância,porém, não é suficiente para anular a sentença proferida, uma vez que areconstituição de fatos pretéritos passa ao largo da perfeição desejada,razão pela qual hoje já não se pode mais falar em busca pela “verdadereal”, mas sim em busca de uma verdade “processualmente válida”, que

14 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, Vol. 3. 11ª ed. São Paulo: Saraiva,1989, p. 106.15 Para Diogo Rudge Malan, este conceito não é suficientemente correto, em virtude das seguintesponderações: “a sentença só potencialmente põe termo ao processo porque, uma vez impugnada,a relação processual se prolonga no procedimento recursal subsequente, que só será efetivamenteencerrado por um acórdão” in MALAN, Diogo Rudge. Op. cit., p. 119. É o mesmo entendimentode Alexandre Freitas Câmara, para quem: “esta definição, porém, parece inadequada, uma vezque o procedimento em primeira instância não se encerra necessariamente com a sentença, sejaporque o juiz ainda poderá vir a praticar atos no procedimento do recurso (como, por exemplo,receber a apelação)... por esta razão, parece-nos preferível definir sentença como o provimentojudicial que põe termo ao ofício de julgar do magistrado, resolvendo ou não o objeto do processo”.CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,1999. pp. 369-370. v. 1. Destaca-se que o entendimento deste último doutrinador é francamenteinspirado nos ensinamentos de Giuseppe Chiovenda, para quem: “la sentenza definitiva è l´attocom cui il giudice adempie l´obbligo che gli deriva dalla demanda giudiziale: mediante lasentenza egli há finito il suo ufficio (functus officio)” in CHIOVENDA, Giuseppe. Instituzioni diDiritto Processuale Civile, Vol. II, Sez. 1. Napoli: Dott. Eugenio Jovene, s/d, p. 490.16 BETTIOL, Giuseppe. Op. cit. p. 81, pondera que: “la sentenza risulta di ter operazioni:l´accertamento del fatto, la qualificazione di esso, la determinazione delle conseguenze penali”.17 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação... , p. 113: “o fato processual penal é umacontecimento histórico, concreto, um fato naturalístico. Diversamente, o fato na concepção dodireito penal é uma entidade extraída de uma situação hipotética, de um tipo penal, e não umfato concreto que foi realizado pelo autor e que foi introduzido no processo através da imputação.

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deveria ser a menos imperfeita possível18. Desta forma, o essencial paraa validade da sentença é que o juiz analise os fatos imputados na petiçãoinicial, em respeito ao princípio da correlação, uma vez que o Estado-juiz, quando provocado a prestar a jurisdição, somente pode fazê-lo nosestreitos limites desta provocação, sob pena de invalidade deste atodecisório.19 De resto, também deverá ser observado o que dispõe o art.381 do CPP no momento em que for proferida a sentença, que enumerarequisitos próprios para a validade desta.

Um outro aspecto importante que deve ser ressalvado é que, no DireitoProcessual Penal, a regra de correlação entre o que foi pedido e o quefoi apreciado deve ser analisada com ainda mais rigor, especialmentenos países em que for adotado o sistema acusatório20. O Brasil, porexemplo, é um dos países que adota este sistema, onde ocorre uma nítidaseparação das funções de julgar, acusar e defender, já que não serialícito ao magistrado condenar o réu por fato diverso do que lhe foiimputado na exordial.21 Não é por outra razão que Gustavo HenriqueRighi Ivahy Badaró conclui que:

Com isso, não se quer dizer, contudo, que o fato imputado, necessariamente existiu ou ocorreu. Ofato está sendo imputado a alguém, mas não se sabe, ainda, se ele existiu ou não. Tal certezasomente será alcançada no momento da sentença”.18 MALAN, Diogo Rudge. Op. cit p. 72. “A chamada verdade real é, na verdade, um mito, pois sócaberia falar-se dela na hipótese de o juiz testemunhar os fatos que irá julgar. Ainda assim, estariaele impedido de oficiar nos autos, justamente por ostentar a qualidade de testemunha”. Damesma forma, sustenta Ada Pellegrini Grinover que: “a exaltação do valor lógico da sentença,concebida como expressão de um silogismo, levou a ver no julgado – como escreve De Luca – ummilagroso maquinismo dotado da virtude taumatúrgica de fazer nascer a verdade no mundo dodireito” in GRINOVER, Ada Pellegrini, Op. cit. p. 9.19 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Op. cit., p. 17, pondera que a sentença pode servisualizada como a síntese de um processo dialético, em que a acusação será a tese e a defesa aantítese, devendo o juiz julgar apenas o que foi imputado ao réu. Da mesma forma, também sustentaDiogo Rudge Malan que: “a garantia chamada de congruência, correlação ou de vinculaçãotemática do juiz é relacionada pela vasta maioria da doutrina como sendo um consectário lógicodas garantias do contraditório e da ampla defesa, na medida em que o réu não pode se defenderde fatos que não foram expressamente imputados a ele ab initio, nem levados a seu conhecimento”in MALAN, Diogo Rudge. Op. cit, pp. 121/122.20 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório, a conformidade constitucional das leis processuais penais.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, pp. 125/126, esclarece que: “por sistema acusatóriocompreendem-se normas e princípios fundamentais, ordenamente dispostos e orientados a partirdo principal princípio, tal seja, aquele do qual herda o nome: acusatório... falamos, pois, aoaludirmos ao princípio acusatório, de um processo de partes, visto, querdo ponto de vista estático,por meio da análise das funções significamente designadas aos três principais sujeitos, quer doponto de vista dinâmico, ou seja, pela observação do modo como relacionam-se juridicamenteautor, réu, e seu defensor, e juiz, no exercício das mencionadas funcões”.21 O princípio do ne procedat iudex ex officio reconhece que uma das caractéristicas do Poder

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a regra da correlação entre acusação e sentença só tem razão de serem um sistema acusatório. Os dispositivos legais que disciplinam oprincípio da correlação entre acusação e sentença representammecanismos que dão efetividade e concretizam, na dinâmicaprocessual, o princípio constitucional do contraditório, que só podeestar presente no sistema acusatório, sendo impensável sua aplicaçãonum sistema em que o réu é mero objeto do processo e não umsujeito de direitos que participe da relação jurídica processual.22

De todo modo, deve ser frisado que a correlação que se opera entre oque foi imputado e o que deve constar na sentença somente diz respeitoaos fatos, razão pela qual é lícito ao magistrado alterar a qualificação jurídicaque eventualmente conste na petição inicial. Esta possibilidade, por sinal,inclusive se encontra consagrada no art. 383 do CPP.23

Assim, uma vez estabelecidas estas premissas, de que a sentença éum ato praticado pelo juiz ao término do processo instaurado, ondesomente são analisados os fatos imputados e discutidos em seu ínterim,torna-se necessário analisar de que forma o comando emergente dasentença pode se impor e vincular as pessoas, bem como conceituar oque vem a ser a “coisa julgada”.

No início, vigorava a regra bis de eadem re ne sit actio, que impediaque sobre mesma relação jurídica de Direito Material existissem dois oumais processos. Acredita-se que tal vedação, segundo Celso Neves, “tenhasido objeto de uma lei anterior às Doze Tábuas, mantidaconsuetidinàriamente”.24

Judiciário é a sua inércia, o que é indicativo de que não se pode iniciar um processo judicial sem aprovocação da parte interessada. Por outro lado, é deste princípio que se origina o princípio dacongruência, também chamado de princípio da correlação ou da adstrição, pois em ambos surge avedação do juiz proferir decisões sobre matérias que não foram discutidas no processo. É o quepondera Diogo Rudge Malan: “é lícito concluir que a sentença incongruente afronta, a bem daverdade, o princípio da ação, consagrado pela Constituição da República em seu artigo 129, I”.22 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy.Correlação..., p. 27.23 BETTIOL, Giuseppe. Op. cit. pp. 82-83: “se tra la sentenza e l´accusa deve intercorrere unrapporto di correlativitá questo deve unicamente mantenersi e limitarsi al fatto, non al diritto: perquanto riguarda la qualificazione giuridica ci può essere invece tra accusa e sentenza umacompleta divergenza. La qualificazione giuridica che il fato assume negli atti di accusa può nonriflettersi nella sentenza trattandosi di due provvementi che hanno natura giuridica profundamentediversa: basti per ora avvertire il carattere del tutto provvisorio della definizione giuridica del fattonell´atto di accusa, definizione che representa um puto e semplice orientamento per il giudice eper l´imputato”.24 NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. p. 10.

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Mas, com o desenvolvimento dos estudos sobre o tema, Enrico TullioLiebman chegou a elaborar a sua teoria sobre o assunto, de grandeaceitação no Brasil, que via na coisa julgada uma qualidade especial dasentença e não apenas um efeito autônomo, como era o entendimentomajoritário até então existente. Segundo as palavras de Liebman:

na opinião e linguagens comuns, a coisa julgada é considerada, maisou menos clara e explicitamente, como um dos efeitos da sentença,ou como a sua eficácia específica, entendida ela, quer como complexode consequências que a lei faz derivar da sentença, quer comoconjunto dos requisitos exigidos, para que possa valer-se plenamentee considerar-se perfeita...

... considerar a coisa julgada como efeito da sentença e ao mesmoadmitir que a sentença, ora produz simples declaração, ora efeitoconstitutivo, assim de direito substantivo, como de direito processual,significa colocar a frente elementos inconciliáveis, grandezasincongruentes e entre si incomensuráveis. Seria, pois, a coisa julgadaum efeito que se põe ao lado deles e no mesmo nível ou se sobrepõea eles e os abrange? 25

Ainda de acordo com Liebman:

esta expressão (‘coisa julgada’), assaz abstrata, não pode não é dereferir-se a um efeito autônomo que possa estar de qualquer modosozinho; indica pelo contrário à força, a maneira com que certos efeitosse produzem, isto é, uma qualidade ou modo de ser deles... alinguagem induziu-nos, portanto, inconscientemente, à descobertadesta verdade: que a autoridade da coisa julgada não é o efeito dasentença, mas uma qualidade, um modo de ser e de manifestar-sedos seus efeitos.26

Assim, entende Liebman que a coisa julgada nada mais é do que aforma como certos efeitos da sentença se produzem e que, em dadomomento, devem ser perpetuados.

Em relação aos limites objetivos da coisa julgada, insta ressaltar que, paraSavigny, todos os fundamentos objetivos da relação jurídica de Direito Material

25 LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisajulgada. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores a 1945 enotas relativas ao direito brasileiro vigente de Ada Pellegrini Grinover. 13ª Ed. Rio de Janeiro:Forense, 1984pp. 2-5.26 LIEBMAN, Enrico Tullio. Op. cit. p. 5-6.

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integravam a coisa julgada, o que, em conseqüência, alargava sobremaneiraos seus limites objetivos. Nas palavras de Moacyr Amaral Santos:

Conforme a doutrina de Savigny, integravam a coisa julgada não todosos motivos da sentença, mas os fundamentos objetivos, ou elementosobjetivos. Por fundamentos objetivos – dizia o insigne jurista – euentendo os elementos constitutivos da relação jurídica. Por exemplo,na ação de reivindicação, o autor tem de alegar sua propriedadesobre a coisa e a posse do réu. Tais são os elementos constitutivos daação de reivindicação. Declarando procedente a ação e condenandoo réu a devolver a coisa ao autor, a sentença reconheceu,evidentemente, a existência da propriedade do autor e a posse doréu, pois de outro modo não poderia haver julgado procedente aação. A propriedade do autor e a posse do réu – elementosconstitutivos da relação jurídica decidida e elementos objetivos dadecisão – se integram na coisa julgada. Mas são abrangidos pela coisajulgada tão-somente os elementos objetivos, assim chamados para sedistinguirem dos motivos subjetivos que levam o juiz à formação desua convicção.27

Vale dizer, porém, que, mesmo até o presente momento, esteposicionamento ainda encontra muita resistência na doutrina alienígenae nas mais diversas legislações processuais. Com efeito, o CódigoProcessual Alemão (Zivilprozessrecht) é expresso em afirmar que ésomente o dispositivo da sentença que é abrangido pela coisa julgada.Neste sentido, esclarece Adolf Wach que:

A ZPO adota uma posição clara frente à doutrina da coisa julgada.Não conhecer coisa julgada alguma que se refira a declaração defatos. Só as decisões sobre pretensões são capazes de passar emautoridade de coisa julgada... não há coisa julgada nos fundamentosda sentença. Não chegam a ter autoridade de coisa julgada as decisõessobre relações jurídicas condicionantes, sobre pontos prejudiciais, amenos que seja haja formulado, a respeito deles, uma pretensãoindependente de declaração ou reconvenção.28

Em Portugal, também se entende que os limites objetivos da coisajulgada se circunscrevem apenas ao dispositivo da sentença. É que,

27 SANTOS, Moacyr Amaral, op. cit. p. 63.28 WACH, Adolf apud PIMENTEL, Wellington Moreira. Estudos de direito processual emhomenagem a José Frederico Marques no seu 70º aniversário. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 338.

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conforme leciona Wellington Moreira Pimentel: “ao indicar o alcance docaso julgado, o art. 673 estabelece que a sentença constitui caso julgadonos precisos limites e termos em que julga. Isto significa que somente odispositivo da sentença, o decisum, que julga a lida, faz coisa julgada.Não os pressupostos ou as conseqüências necessárias”.29

Este mesmo raciocínio, aliás, também é o dominantecontemporaneamente na França, conforme esclarece Moacyr AmaralSantos,30 e, também, na própria Itália, com fundamento nas seguinteslições de Giuseppe Chiovenda: “oggeto del giudicato è la conclusioneultima del ragionamento del giudice, e no le sue premesse; l´ultimo edimmediato risultato della decisione e no la serie di fatti, di rapporti o distati giuridici che nella mente del giudice constituirono i presupposti diquei resultati”.31

Fixada a premissa, portanto, que, no Direito Processual Civil, apenas odispositivo é que faz coisa julgada material, sendo este o seu “limiteobjetivo”, cumpre destacar que, em relação ao Processo Penal, dispõe oart. 110, parágrafo 2º, CPP, que “a exceção de coisa julgada somentepoderá ser oposta em relação ao fato principal, que tiver sido objeto dasentença”, o que permite aquilatar que, na seara criminal, também osfatos julgados são acobertados pelo manto da coisa julgada,independentemente da qualificação jurídica que lhes tiver sido dada.32

29 Ibidem, p. 347.30 SANTOS, Moacyr Amaral, op. cit. p. 63.31 CHIOVENDA, Giuseppe. Intitutizioni... Volume I, p. 374.32 Em sentido contrário ao texto, Ada Pellegrini Grinover sustenta que: “o que se estabelece,através do processo penal, é, normalmente, se o indivíduo deve ser condenado ou absolvido, enão se uma determinada infração penal ocorreu ou não: a declaração do fato constitui pressupostonecessário para a produção do efeito jurídico, mas não pode exaurir o conteúdo da sentença.Essa declaração positiva ou negativa, não é, portanto, idônea para caracterizar o objeto doprocesso e, consequentemente, para formar o objeto da coisa julgada: resolvendo-se, simplesmente,em um momento do iter lógico da decisão, a declaração da infração penal poderia passar emjulgado somente na hipótese da coisa julgada extender-se a motivação. Em outras palavras,mesmo aqueles que identificam a eficácia do julgado com o seu efeito declaratório, atribuindo-lhe natureza substancial, circunscrevem o âmbito da coisa julgada ao efeito jurídico e não aosfatos que produziram” in GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. cit. pp. 21-22. Contudo, este não pareceser o melhor entendimento, uma vez que o manto da coisa julgada, no processo penal, tambéminclui os fatos discutidos, tando que o réu condenado criminalmente não pode voltar a discutí-los noâmbito cível. Percebe-se, portanto, que os limites objetivos da coisa julgada, no processo penal,também se estendem aos motivos e fatos, tal como previsto no art. 63 e no art. 65, ambos do CPP,o que, certamente, decorre do princípio da unidade da jurisdição.

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Neste aspecto, aliás, percebe-se o silogismo perfeito entre o objeto doprocesso e a coisa julgada.33 Com efeito, já foi mencionado anteriormenteneste estudo que o objeto do processo é a pretensão processual, que éveiculada por meio da imputação, que consiste em se atribuir a alguém aprática de um fato criminoso, a qualificação jurídica, e, também, asubsunção deste fato a norma.34 Assim, ao se estabelecer o objeto doprocesso, faltamente também se estará fixando o seu thema decidendum,que será acobertado pelo manto da coisa julgada.

Tendo-se, assim, a exata compreensão do alcance objetivo da coisajulgada no processo penal, torna-se agora necessário o enfrentamentodos seus limites subjetivos. Embora o CPP seja omisso, destaca-se que,de acordo com o disposto no art. 472 do CPC “a sentença faz coisa julgadaàs partes entre as quais é dada, não beneficiando nem prejudicandoterceiros” 35, o que é indicativo de que, em primeira análise, apenas aspartes da relação processual (autor/réu) é que poderão ser atingidos pelacoisa julgada, em conformidade com antiga regra res inter alios iudicata,aliis non praeiudicare, conhecida pelo Direito Romano. Neste sentido,aliás, se posicionam Alexandre Freitas Câmara,36 Celso Neves,37 MoacyrAmaral Santos,38 Ovídio A. Baptista da Silva,39 dentre outros mais.

Contudo, é importante mencionar que, em hipóteses excepcionais,poderá um terceiro ser atingido pela coisa julgada oriunda de umdeterminado processo. É o que ocorre na substituição processual, nolitisconsórcio facultativo unitário e, por fim, nas ações coletivas, valendodestacar que, no Direito Processual Penal, apenas a primeira destashipóteses é que ocorre com alguma freqüência.

33 Registre-se, mais uma vez, a importância da delimitação do objeto do processo, pois, conformesustenta Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró, este tema aparece como denominador dos limitesobjetivos da coisa julgada. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação..., p. 42.34 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação..., pp. 83-84.35 SILVA, Ovídio A Baptista da; GOMES, Fábio, op. cit., p. 332, esclarecem que: “A oraçãoseguinte, constante desse artigo – segundo a qual ‘nas ações relativas ao estado de pessoa, sehouverem sido citados no processo, todos os interessados´ - na verdade não abre nenhumaexceção à regra quanto aos limites subjetivos da coisa julgada e seu alcance exclusivamente àspartes”.36 CÂMARA, Alexandre Freitas, op. cit., p. 407.37 NEVES, Celso, op. cit., p. 498.38 SANTOS, Moacyr Amaral, op. cit., p. 74.39 SILVA, Ovídio A Baptista da; GOMES, Fábio, op. cit., p. 332.

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De todo modo, deve ser frisado que o litisconsórcio eventualmentepode gerar sérios questionamentos no estudo da eficácia subjetiva dacoisa julgada no processo penal, quando um dos co-réus, no concurso deagentes, não tiver sido incluído no pólo passivo da relação processual.Explica-se: o art. 580 do CPP estabelece que: “no caso de concurso deagentes (Código Penal, art. 25), a decisão do recurso interposto por umdos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamentepessoal, aproveitará aos outros”40.

Este dispositivo, constante no CPP, trata de um litisconsórcio unitário,daí porque a sentença não transitará em julgado para nenhum dos réus,enquanto não se decidir o recurso interposto por qualquer um deles.41

Contudo, pode ocorrer que um dos agentes não tenha sido incluído dadenúncia, o que gera a dúvida se este, mesmo sem ter participado doprocesso penal, pode ser atingido ou não pela coisa julgada material quese formou.

Ao abordar esta questão, Ada Pellegrini Grinover se posicionou deforma negativa, com base nos seguintes argumentos:

A extensão a terceiros, virtuais litisconsortes unitários, da coisa julgadaproferida inter alios justificar-se-ia, portanto, em virtude de perfeitaunidade da res in iudicium deducta, que tornaria impossível a formaçãode regras jurídicas concretas diversas com relação àqueles quedeveriam ter participado do mesmo juízo, obtendo sentençasuniformes... Mas, no Brasil e na Itália, não existe regra legislativa queautorize a extensão do julgado a terceiros, virtuais litisconsortesunitários... Sem norma expressa, no sentido da extensão da coisajulgada aos possíveis litisconsortes unitários; e havendo, ao contrário,regra limitadora explícita em nosso ordenamento, não há como seabranger na autoridade da coisa julgada terceiros, ainda que eventuaislitisconsortes unitários, se do juízo não participaram. O art. 580 doCPP e o seu correspondente no ordenamento italiano (art. 203) nãosão suficientes, como já se disse, para autorizar a extensão subjetivado julgado a pessoas estranhas ao processo.42

40 Semelhante regra também se encontra no art. 509 do CPC.41 GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. cit. p. 29.42 Idem pp. 31-32.

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43 GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. cit. p. 32-35: “perante o ordenamento vigente, não há qualquerfundamento para estender aos terceiros, possíveis litisconsortes, a autoridade da coisa julgada, sedo processo eles não participaram. Ademais, a ampliação da coisa julgada ao co-agente, secundumeventum litis, não eliminaria o eventual conflito lógico de julgados contraditórios quando a primeirasentença fosse de condenação e a segunda de absolvição... desse modo, a exclusiva extensão dasentença absolutória não seria de molde a eliminar os conflitos lógicos, além de favorecer o terceirocom uma injustificada impunidade, incompatível com o caráter relativo do julgado”.

Inteira razão assiste a doutrinadora acima, uma vez que não se podeimpor que a coisa julgada, advinda de um determinado processo penal,atinja terceiro que não tenha integrado a relação processual, seja paracondená-lo ou mesmo para absolvê-lo, pois ocorreria flagrante ofensaaos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampladefesa, todos de sede constitucional, só para citar alguns. Isto significa,em outras palavras, que é imprescindível a existência de um processojudicial, promovido em face de determinado indivíduo, para que o mesmopossa ser considerado culpado ou inocente, sendo terminantementevedado que este aproveite ou até mesmo seja prejudicado por sentençasproferidas em outros processos em que não tenha atuado como parte.

Igualmente, o mesmo raciocínio também deve ser empregado naquelashipóteses em que ocorrer desmembramento ou separação de processos,com a prolação de sentenças distintas e contraditórias para cada um dosréus, malgrado os fatos imputados sejam os mesmos. È que, nesta segundasituação, os réus passaram a ser demandados em processos distintos, cominstrução e sentenças próprias. Logo, “as sentenças serão distintas e a coisajulgada – como qualidade dos efeitos de cada qual dessas sentenças – sópoderá alcançar a parte perante a qual a decisão foi proferida”.43

Desta forma, muito embora possam existir sentenças aparentementecontraditórias entre si, v.g., uma condenando um acusado e a outraabsolvendo o outro réu pelos mesmos fatos, forçoso é reconhecer queesta contradição na realidade não existe, já que, conforme visto acima,se trataram de dois processos distintos, com imputações e instruçõesdiversas, onde em cada um deles foi apurada a prática de um fato emrelação a cada um dos denunciados. Não houve análise, portanto, apenasdo mesmo “fato”, mas sim deste mesmo “fato” em relação a cada um dosacusados processados autonomamente, o que evidencia que o objeto decada processo não foi idêntico, permitindo a prolação de sentenças apenasaparentemente contraditórias entre si.

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Com estas palavras se encerra o presente estudo, que, muito emboraseja extremamente sucinto, tem o escopo de tentar contribuir para odebate sobre estas intrincadas questões do Direito Processual Penal.