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Revista de Estudos Culturais e da Contemporaneidade N.° 3 - março/setembro-2009 ISSN: 1980-3060. UPE/Faceteg - Garanhuns - PE - Brasil

Revista de Estudos Culturais e da Contemporaneidade · José Garanhuns—Pe Secretaria da faculdade: ... Com o artigo deve ser enviado resumo, com até dez ... de Juan José Saer

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Revista de Estudos Culturais e da Contemporaneidade N.° 3 - março/setembro-2009 ISSN: 1980-3060.

UPE/Faceteg - Garanhuns - PE - Brasil

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DIÁLOGOS –

Expediente Revista Diálogos

Revista Impressa e On-Line Rua Capitão Pedro Rodrigues, 105 – Vila São

José Garanhuns—Pe

Secretaria da faculdade: Fone: 87-3761-1343

E-mail: [email protected] [email protected]

AOS COLABORADORES: A Revista Diálogos aceita proposta de artigos, mas todas as colaborações não encomendadas são submetidas ao conselho editorial, a quem cabe a decisão final sobre sua publicação. O Conselho editorial reserva o direito de sugerir ao autor modificações de forma, com o objetivo de adequar os artigos às dimensões da revista ou ao seu padrão editorial e gráfico. A publicação de um artigo não exprime endosso do Conselho e todas as afirmações feitas pelo autor. INSTRUÇÕES AOS COLABORADORES para o envio de artigos para publicação na Revista Diálogos: 1. Os artigos devem ser apresentados em laudas de vinte linhas de 70 toques, os textos devem ser acompanhados de cópia em disquete flexível (3,5”) de computador padrão IBM PC ou compatível, utilizando um programa de edição de textos compatível com o formato extensão “.doc” ou “.rtf” ou ainda “.txt” 2. O texto deve ser digitado em fonte Arial 10 em espaço duplo; 3. Gráficos, tabelas e figuras devem ser compatíveis com formato “.xls” para gráficos e tabelas e formato “.pps” ou “.jpg” para figuras. 3. As referências bibliográficas devem ser incluídas em notas de rodapé ou em notas de final de texto e redigidas conforme padrão das normas da ABNT. 4. Com o artigo deve ser enviado resumo, com até dez linhas, relação de palavras-chave para efeito de classificação bibliográfica e breve informação curricular do autor 5. Os Artigos podem ser enviados por e-mail ou para o endereço da eletrônico da revista.

EDITORIA Revista Diálogos

Universidade de Pernambuco FACETEG

Faculdade de Ciências, Educação e Tecnologia de Garanhuns

ISSN: 1980-3060 Editor Chefe

Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra Comissão Editorial

Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna Prof. Ms. Adjair Alves

Prof. Ms. Helba Carvalho- Prof. Ms. Pedro Henrique Falcão - Prof. Ms.

Manoel Barros Pereira- Conselho Consultivo

Prof.Dr. Biaggio D'Angelo, Univ. Católica do Peru,

Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna, UPE - São Paulo - Prof. Dr. José Amalio de Pinheiro Branco, PUC, São Paulo - Prof. Dr.a Irene

Machado, PUC, São Paulo - Prof. Dr. Pablo Gasparini, FASB, São Paulo - Prof. Dr.

Raul Püschel, UNIFIEO, São Paulo - Prof. Dr. Ricardo Baptista Madeira, FASB, São Paulo - Prof.a Dr.a Sonia Melchiori Galvão

Gatto, FASB, São Paulo Projeto gráfico

Prof. Jayro Luna, UPE, Garanhuns – PE - [email protected]

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DIÁLOGOS –

Sumário

1. Editorial: Apresentação. Prof. Dr. Adjair Alves – UPE/Faceteg 4

Literatura 2.Gente de Saia: O Léxico da Mulher em O Coronel e o Lobisomem. Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra – UPE/Faceteg 6 3. A Construção da Memória no Romance El Entenado, de Juan José Saer. Prof.ª Ms. Deolinda Gomes Freire, UFTM 17 4. Memória e metalinguagem nas crônicas de Rubem Braga. Prof.ª Ms. Eliana Nagamini - Unicsul 26 5. A Simbologia Estelar e o Conceito de Signo em Macunaíma. Prof. Dr. Jayro Luna (Jairo Nogueira Luna) – UPE/Faceteg 38 Antropologia 6. Teorias de “poder” na relação entre indivíduos e/ou instituições no processo de organização social: um diálogo entre Foucault, Balandier e Bourdieu. Prof Dr. Adjair Alves _ UPE/Faceteg 49 7. A Febre que Nunca Passa: O Funk, a Sensualidade e o “Baile do Prazer”. Prof.ª Dr.ª Rosilene Alvim – UFRJ & Prof.ª Dr.ª Eugênia Paim – UFRJ 69 Educação 8. Educação Infantil: uma reflexão sobre a formação inicial dos professores. Prof.ª Andréa Libério 84 Lingüística 9. Acerca do uso de expressões e palavras latinas no Direito em Língua Portuguesa Prof.ª Dr.ª Cristina de Fátima Lourenço Marques – UNIP 100 Hidrologia e Meio Ambiente 10. Determinação dos Parâmetros Hídricos do Solo por Meio da Simulação

Computacional do Processo de Infiltração

Prof. Dr. Willames de Albuquerque Soares – UPE/Faceteg 106

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DIÁLOGOS –

Apresentação

O presente volume de “DIÁLOGOS” significa a retomada de uma

atividade fundamental no âmbito do conhecimento. Como um periódico dedicado

a produção científica, busca a interdisciplinaridade referenciada tanto pela

formação dos autores dos diferentes artigos publicados, como também nas

diferentes temáticas abordadas no campo da literatura, da educação e da

pesquisa social.

“DIÁLOGOS” busca preencher uma lacuna no campo da produção

acadêmico científica, mas também campo do imaginário social ao propor aos

leitores uma atividade de diálogo com a realidade. Seus autores são

pesquisadores (professores e estudantes) interessados na divulgação de suas

produções científicas. Para os mesmos, o objetivo é ampliar o debate sobre os

diferentes temas, porque escrever nesta perspectiva é como escrever a duas, três,

quatro mãos. Trata-se, portanto de um desafio possibilitado pela dedicação e

pesquisa.

O presente volume constitui, por assim dizer uma parceria entre seus

autores e os leitores, sendo estes, analistas, pois sem eles não teria sentido

publicar. Assim o conhecimento forma redes de subjetividades. A visão e a prática

do escrever aqui, como são vividas pelos diferentes autores dos textos publicados,

no presente volume, seguem o preceito Espinosista; a explicitação de que é

preciso também aprender, aqui, com os leitores pelo exercício da crítica, onde se

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DIÁLOGOS –

consubstancia o “diálogo” ou, num dito bourdieusiano: “Não deplorar, não rir, não

detestar, mas compreender.”

De nada adiantaria se ao escritor se fizesse seu preceito, se não fosse

capaz de fornecer também meios de o leitor o compreender. Ou, como fornecer

meios de compreender, isto é, de tomar as pessoas como elas são, senão

oferecendo-lhes instrumentos necessários para apreendê-los como necessários,

por deles necessitar, relacionando-os metodicamente às causas e às razões que

elas têm de ser como são? Mas, como tornar isso possível se não os inquietar pela

reflexão? Como evitar, por exemplo, de dar à transcrição da conversa, com seu

preâmbulo analítico, o procedimento de um caso clínico precedido de um

diagnóstico classificatório? A intervenção do analista é tão difícil quanto

necessário: ela deve ao mesmo tempo declarar-se sem a menor dissimulação e

trabalhar sem cessar para fazer-se esquecer.

Assim desejamos a todos boa leitura.

Prof. Adjair Alves

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DIÁLOGOS – Benedito Gomes Bezerra – O Léxico da mulher em O Coronel e o Lobisomem

GENTE DE SAIA: O LÉXICO DA MULHER EM O CORONEL E O LOBISOMEM

Benedito Gomes Bezerra (UPE)

Quando vejo um recurvado de moça bonita, eu só tenho um desejo: afundar nele de nunca

mais ser visto. Nunca mais! (Coronel Ponciano de Azeredo Furtado)

Introdução As disciplinas acadêmicas relacionadas com o léxico têm recebido grande ênfase por parte dos pesquisadores nos últimos anos. Disciplinas como Terminologia e Lexicologia têm sido integradas aos currículos de cursos de graduação em Letras nas universidades brasileiras. Pontes (1997) ressalta a importância crescente de tais disciplinas em todos os níveis da pesquisa lingüística, da graduação aos cursos de doutorado. Neste trabalho, busco uma aplicação dos princípios da Lexicologia ao estudo de aspectos vocabulares de uma obra da literatura brasileira, o romance O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho. Enfoco, especificamente, vocábulos e expressões designativas da mulher, entendida como sexo oposto ao masculino, sujeito e objeto de atração sensual. Meu objetivo é fazer um levantamento desse tipo de vocabulário, de forma a contribuir para o estudo lingüístico-literário da obra e, ao mesmo tempo, possibilitar uma reflexão que aponta para uma concepção da mulher refletida no romance, especialmente através da personagem central, o Coronel Ponciano de Azeredo Furtado. Por não se tratar da produção de um glossário ou vocabulário, embora uma lista de vocábulos e expressões resulte do trabalho, procuro restringir o tratamento dos dados ao domínio da Lexicologia. A abordagem lexicográfica, portanto, não é o interesse deste trabalho. Os procedimentos metodológicos incluem o levantamento exaustivo das ocorrências de vocábulos designativos da mulher, dentre os quais são eleitos aqueles que se empregam juntamente com um modificador qualquer. Desta forma, desprezei as ocorrências isoladas de vocábulos como “moça”, “menina” ou “dama”, detendo-me em ocorrências geralmente compostas de nome + modificador, atentando ainda para expressões mais complexas e longas. Os nomes ou expressões colhidas através da análise do romance estarão incluídos em três categorias: (a) os vocábulos e expressões designativos da mulher; (b) vocábulos e expressões referentes a atributos físicos, partes do corpo

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e outras alusões à mulher; e (c) vocábulos e expressões referentes às mulheres das paixões do Coronel Ponciano de Azeredo Furtado. A presente pesquisa poderá, assim, contribuir para uma maior aproximação entre as áreas da literatura e da lingüística, enriquecendo significativamente a análise de O coronel e o lobisomem, romance merecidamente tido como uma das obras-primas da produção literária brasileira. Este tipo de análise poderá corroborar o significativo potencial elucidativo de um estudo literário alicerçado nos aportes da ciência lingüística. A partir do trabalho ora empreendido no domínio lexicológico, o tratamento lexicográfico à obra do autor José Cândido de Carvalho se tornará possível em pesquisas futuras. A perspectiva de tais tipos de estudos aponta para a possibilidade de um melhor conhecimento da língua portuguesa tanto em sua variedade literária, escrita, como na fala, pois verificamos que muitos vocábulos e expressões utilizadas na literatura originam-se ou sobrevivem na linguagem cotidiana. 1. As ciências do léxico

Dado que as disciplinas relacionadas com o estudo da linguagem mantêm um processo de “cooperação recíproca” (BARBOSA, 1992), ao mesmo tempo em que conservam sua identidade e especificidade, faz-se necessário delinear os espaços de atuação de cada uma. Para Barbosa (1992), a distinção entre Lexicologia e Lexicografia, por um lado, e entre Terminologia e Terminografia, por outro, se dá em termos da dicotomia aristotélica entre επιστημη (ciência) e τεχνη (arte). Deste modo, Lexicologia e Terminologia se apresentam como saberes, ou seja, designam o processo de construção de uma forma de conhecimento, enquanto Lexicografia e Terminografia são técnicas e, portanto, referem-se à aplicação prática da ciência, “aplicação de um saber a um fazer” (BARBOSA, 1992, p. 152).

É muito freqüente a confusão entre Terminologia e Lexicologia, dado que ambas elegem como objeto de análise a palavra. Pontes (1997, p. 46) ressalta que “Terminologia e Lexicologia, apesar de trabalharem com a palavra, lançam mão de métodos, técnicas e objetos distintos, apresentando-se como disciplinas diferentes”.

A Terminologia tem se configurado como disciplina voltada para as áreas técnicas, motivada pelo desenvolvimento das ciências, tecnologias, meios de comunicação, comércio e relações internacionais e pela presença cada vez maior das multinacionais, freqüentemente introduzindo novos termos calcados em empréstimos da língua inglesa, espécie de “língua franca” das ciências, da academia, das relações internacionais e do mundo dos negócios. Neste sentido, a Terminologia pode ser vista como uma especialização surgida a partir da Lexicologia, ciência do léxico em geral.

Por Terminografia se entende a prática, a técnica de construção de dicionários especializados ou glossários de termos relativos a línguas de especialidade. A prática terminográfica alicerça-se na ciência terminológica e busca atender às demandas de um mundo em constante desenvolvimento científico e cada vez mais voltado para a troca de conhecimentos e técnicas em nível internacional.

A partir das considerações de Pontes (1997, p. 46), construímos o seguinte quadro, enfatizando as distinções entre Lexicologia e Terminologia no que diz

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DIÁLOGOS – Benedito Gomes Bezerra – O Léxico da mulher em O Coronel e o Lobisomem

respeito a objeto de estudo, perspectivas, metodologia, métodos de recolhimento de dados, objetivos, tarefas e domínio:

LEXICOLOGIA TERMINOLOGIA

Objeto de estudo as unidades lexicais o termo Perspectiva descritiva normativa Metodologia semasiológica onomasiológia

Métodos de coleta palavras selecionadas pelo valor semântico

termos selecionados por área de estudo

Objetivo “prática dicionarística”; nomenclatura da língua

comum

disponibilização de resultados ao usuário;

dicionários terminológicos

Tarefa definir – decodificação nomear – codificação Domínio língua geral línguas de

especialidade Figura 1: Lexicologia e Terminologia

A Lexicologia se apresenta, portanto, como o ramo da Lingüística dedicado ao estudo científico do léxico. Entre as inúmeras tarefas da Lexicologia, Barbosa (1992, p. 154) aponta para a possibilidade do estudo de um “conjunto de palavras de determinado sistema, ou de um grupo de indivíduos, como universo léxico ou conjunto vocabulário”. Tal estudo pode ser empreendido a partir de uma perspectiva diacrônica, sincrônica ou pancrônica, através de um tratamento qualitativo ou quantitativo, descritivo ou aplicado. No caso deste trabalho, privilegio uma abordagem sincrônica aplicada à obra literária já referida, destacando, nos dados, seu aspecto qualitativo, mais que o quantitativo. A Lexicografia, por sua vez, também toma como objeto de análise a palavra, mas a enfoca como técnica de sistematização, processamento e ordenação em forma de dicionários, vocabulários e glossários, especializados ou não. Lexicografia, então, se distinguirá da Lexicologia por ser “técnica de dicionários”, enquanto esta é “estudo científico do léxico”. Embora mantenhamos este trabalho predominantemente no domínio da Lexicologia, sabemos que as fronteiras das disciplinas são, na prática, de difícil delimitação. Seguindo-se Barbosa (1992, p. 155), o estudo de aspectos do vocabulário de um autor insere-se dentro da noção de Universo de Discurso, que compreende “um conjunto de discursos manifestados e manifestáveis, caracterizados por constantes e coerções, suscetíveis de configurarem uma norma discursiva” (ênfase no original). O estudo do vocabulário de um autor, “passível de tratamento lexicográfico” (BARBOSA, 1992, p. 155) possibilita, após a efetivação deste tipo de tratamento, o surgimento de dicionários como Aragão (1990) e Aragão et al. (1992). Como afirmei anteriormente, esse tratamento especializado não é o objetivo deste trabalho. 2. O Coronel e o Lobisomem Tido como “obra-prima” por figuras como Raquel de Queiroz e Ariano Suassuna, e colocado por Érico Veríssimo “entre os melhores romances da

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literatura brasileira de todos os tempos”, O Coronel e o Lobisomem mereceu de Bosi (1992, p. 484) apenas um curto parágrafo, em que o historiador da literatura destaca em seu autor, José Cândido de Carvalho, “os pendores do ficcionista para explorar o ridículo das suas criaturas” e a “justeza expressiva da sua linguagem verdadeiramente clássica sem deixar de ser moderna”. Na verdade, a obra de José Cândido de Carvalho merece bem mais que essas simples menções. Romancista e jornalista, José Cândido de Carvalho nasceu em Campos dos Goitacases em 5 de agosto de 1914. Escreveu apenas dois romances, com um lapso de 25 anos entre eles: o primeiro, Olha para o Céu, Frederico!, data de 1939; O Coronel e o Lobisomem foi publicado em 1964, tendo sido traduzido para o francês, o espanhol e o alemão, sendo publicado também em Portugal. Além dos romances, publicou seleções de “contados, astuciados, sucedidos e acontecidos do povinho do Brasil”: Porque Lulu Bergantim não Atravessou o Rubicon (1971), Um Ninho De Mafagafes Cheio de Mafagafinhos (1972) e Os Mágicos Municipais (1984), além de Manequinho e o Anjo da Procissão (1974) e Ninguém Mata o Arco-Íris (1972). Em 1974, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira antes pertencente ao poeta Cassiano Ricardo. Em nota apensa ao livro (p. xii), Raquel de Queiroz revela que, quando da leitura de sua primeira edição, fora vítima daquilo que considera ser o maior triunfo do romancista em relação ao leitor:

Fazer com que o dito leitor se esquecesse completamente de que havia um autor de permeio e tratasse o protagonista como figura de vivente, como homem, como gente, apaixonante e de carne, tal como nós. No artiguinho me desmancho em louvores e amores para com o coronel, inteiramente esquecida de que o herói Ponciano de Azeredo Furtado não passava de invenção pura desse mestre inventador que é José Cândido de Carvalho. Me derramo em louvaminhas...

Em nova leitura da obra, para outra edição, a escritora reafirma a

qualidade do romance e, desta vez, do romancista. A avaliação surpreende pela ênfase e pelo entusiasmo, mais surpreendentes ainda por serem provenientes de uma igualmente grande figura de nossa literatura.

Me curvo na maior reverência; não fosse eu a velha senhora e ele para mim um menino, até lhe tomava a bênção, de tanto o admirar. Dá vontade de arranjar um alto-falante e sair por essas ruas proclamando as excelências incomparáveis do importantíssimo romancista brasileiro, José Cândido de Carvalho. E solenemente ratifico o registo expedido em 1964: Com O coronel e o lobisomem José Cândido de Carvalho deu vida nova ao regionalismo brasileiro (p. xiv).

A importância do estudo do vocabulário de José Cândido de Carvalho é mais que corroborada pelos comentários de Raquel de Queiroz sobre sua linguagem:

Não sei de ninguém, no momento, que renove o idioma como o renova ele. Vira e revira a língua, arrevesa as palavras, bota-lhes rabo e chifre de sufixos e prefixos, todos funcionando para uma complementação especial de sentido, sendo, porém, que nenhum provém de fonte

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erudita, ou não falada; nenhum é pedante ou difícil, tudo correntio, tudo gostos, nascido de parto natural, diferente só para maior boniteza ou acuidade específica. No léxico de Zé Cândido não aparece uma palavra que não seja possível; se ela não havia até aqui, estava fazendo falta... Falar verdade, é o gênio da língua que baixa nesse moço... O que estava por fazer, nestes seiscentos ou mais anos de língua portuguesa, o que o povo não inventou ou os autores não codificaram, esse brasileiro inventa por conta própria e depois oferece à gente de graça. Agora é só imitar – quem tiver competência! (p. xiv).

É precisamente isso o que José Cândido de Carvalho faz: usar palavras velhas com sentido novo, imprevisto ou pouco freqüente. No que diz respeito às designações da mulher, verificamos exatamente essas características do léxico desse autor lamentavelmente tão pouco conhecido. 3. O léxico da mulher em O Coronel e o Lobisomem Conforme estabeleci acima, classificarei os nomes e expressões colhidas através da análise do romance em três categorias: (a) os vocábulos e expressões designativos da mulher como pessoa; (b) vocábulos e expressões referentes a atributos físicos, partes do corpo e outras alusões à mulher; e (c) vocábulos e expressões referentes às mulheres das paixões do Coronel Ponciano de Azeredo Furtado. a) Vocábulos e expressões designativos da mulher

Por vocábulos e expressões designativas da mulher, refiro-me aqui àquelas

palavras ou locuções dirigidas à mulher, de forma genérica, ou a uma mulher em especial. Na maioria das vezes, essas designações mais individualizadas são aplicáveis genericamente. Por ordem de freqüência, essas formas de designar se verificam como segue:

moça(s) moça aparelhada de todos os comprovantes

moça arrumadeira moça bonita moça calhada para cativar moça competente moça da Rua dos Frades moça das águas moça das arrumagens moça das tranças moça de bacia larga moça de casa montada moça de fora dos pastos moça de largas prendas moça de quarto e livro moça de sala e salão moça de vira-e-mexe moça do chalé moça do Coliseu dos Recreios

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moça do mar moça do meu bem-querer moça do Rio moça donzela moça dos cravos moça dos Moulin-Rouge moça educada moça em tarefa de manceba moça facilitada moça militante moça nova moça pretendida moça professora moça roubada moça sereia moça solteira moça teúda e manteúda moça vaga moça vistosa moças da ribalta moças das ribaltas moças desencaminhadas moças desonestadas

Figura 2: O vocábulo moça O vocábulo moça é de longe o mais freqüente designação atribuída à mulher no romance. Considere-se ainda que não listo aqui suas ocorrências isoladas, mas apenas as compostas, modificadas por um adjetivo ou locução. Merecem destaque especial as expressões referentes a moças prostituídas ou amasiadas. A lista é extensa e bastante colorida:

moça de casa montada moça de vira-e-mexe moça em tarefa de manceba moça facilitada moça militante moça teúda e manteúda moça vaga moças das ribaltas moças desencaminhadas moças desonestadas

Por outro lado, as moças “de família” podem ser referidas de forma

respeitosa e cerimoniosa, ou de modo bastante sensual:

moça aparelhada de todos os comprovantes moça bonita moça calhada para cativar moça competente moça das tranças

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moça de bacia larga moça de fora dos pastos moça de largas prendas moça de quarto e livro moça de sala e salão moça do meu bem-querer moça donzela moça educada moça nova moça pretendida moça professora moça solteira moça vistosa mocinha de tranças

Em seguida, e sempre por ordem de freqüência, aparece o vocábulo

menina, também utilizado para nomear tanto as mulheres “respeitáveis” como as mulheres prostitutas ou prostituídas. Uma moça respeitável é uma “menina de muitas prendas”, “menina donzela”, “menina professora” ou “menina devocioneira”. A prostituta é “menina de palco” “menina da ribalta” ou “menina Zizi”, numa referência às antigas casas de prostituição de moças estrangeiras, os Moulin-Rouge. As prostitutas também são “meninas de vira-e-mexe”.

menina menina arrumadeira

menina de muitas prendas menina de palco menina de suas paixões menina do Rio menina donzela menina nova menina professora menina Zizi meninas das ribaltas meninas de vira-e-mexe meninas devocioneiras meninas do Colégio

Figura 3: O vocábulo menina Numa referência à questão da virgindade, as designações pelo vocábulo donzela revelam os valores patriarcais e machistas da sociedade brasileira na época dos coronéis (Figura 4). A moça “honesta” é “donzela de primeira mão” ou “donzela a olho nu”, sendo, portanto, “donzela de sofá e casamento”, enquanto a moça “desonestada” pode ser reconhecida pelo olho experiente como “despossuída de seu etecétera e tal de nascença”.

donzela donzela a olho nu donzela das águas donzela de primeira mão

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donzela de sofá e casamento donzela garantida moça donzela

Figura 4: O vocábulo donzela Verifica-se ainda um grande volume de expressões menos recorrentes, mas nem por isso menos significativas. Essas expressões abrangem desde a designação de moças de família e prostitutas a referências à sereia de uma das aventuras do coronel ou a senhoras casadas ou amasiadas com pessoas conhecidas do herói Ponciano. A mais freqüente dessas ocorrências é “rabo-de-saia”, com as variantes “rabão-de-saia”, “rabo-de-saia mal intencionado”, “bicho de saia”, “gente de saia” e “povo de saia” (mais de trinta vezes na obra). Uma ocorrência também muito freqüente é “teúda e manteúda”. Vejamos a lista:

rabo-de-saia rabão-de-saia rabo-de-saia mal intencionado bicho de saia gente de saia povo de saia

teúda e manteúda dama

dama de muita dificuldade em conceder benefícios dama de procissão dama de respeito dama educada

dona dona de casa-de-porta-aberta dona do meu bem-querer dona dos meus quebrantos

madama madama madama de grande valimento madamas

mulata nova mulatas de fina escolha peça bem acabada peças avultadas povo das ribaltas povo de diploma senhora de família senhora de respeito sereia das águas sereia do mar obrigação cabrita nova encantada do mar francesada francesada supimpa

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gente da ribalta mestra de letras mulher sucumbida

Figura 5: Outros vocábulos e expressões

b) Expressões designativas de partes do corpo, atributos físicos e similares

Ao lado das palavras e expressões designativas da mulher em geral ou de uma mulher específica, encontramos referências dotadas de expressiva sensualidade e que dizem respeito a partes específicas do corpo feminino ou a designações metonímicas da mulher ou de seu corpo. Entre as expressões designativas de partes do corpo, destaco:

amassador de sofá bojudo assento compartimento crescidos do debaixo das blusas despidos encontrados frentes e partes subalternas guarnição de pernas de fina nascença guarnição traseira par de estofados par de platibandas par de popas par de tranças partes partes altas particulares por-baixos da moça possuídos protocolos repartição repartição dos fundos

Figura 6: Partes sensuais do corpo As partes privilegiadas são os quadris, designados, com uma dose de bom

humor, como “amassador de sofá”, “repartição dos fundos” ou “guarnição traseira”, ou voluptuosamente como um “bojudo assento” ou “par de popas”. Os seios, igualmente bem apreciados, são referidos como os “crescidos do debaixo das blusas”, os “por-baixos”, as “partes altas” ou “par de estofados”. Uma designação mais genérica é “frentes e partes subalternas”.

Além dessas designações alusivas a partes sensuais do corpo e atributos físicos, o corpus inclui referências à mulher de caráter metonímico. Assim, de acordo com o coronel Ponciano de Azeredo Furtado, é possível referir-se à mulher, ou à circunstância de estar com uma mulher, como gozar de “perna de moça”, “perna ou anca”, “cara bonita”, “costela de moça”, “pernas ou caras” ou “braço de moça”. Estar com prostitutas, moças das ribaltas, é desfrutar das “pernonas das

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Zazás”. Disvirginar uma moça, do ponto de vista do macho, é privá-la de seus “protocolos” ou “etecétera e tal de nascença”.

c) As mulheres das paixões do coronel

O coronel, dado às farras desde a meninice, jamais se casa, embora tente

várias vezes “tomar estado”, especialmente em sua idade madura. Variadas são as suas paixões, por vezes bem passageiras. No entanto, há três casos em que a paixão durou mais, de modo que a pretendida foi designada de muitas formas. Em dois desses casos, a frustração dos desejos do coronel o leva a encerrar suas referências a essas mulheres de forma bem enfática. O coronel se despede de D. Isabel Pimenta e D. Esmeraldina Nogueira, a quem antes dedicava todo o seu afeto, chamando-as de “cachorra” e “vaca”, respectivamente.

D. Branca dos Anjos é a paixão da juventude de Ponciano. Essa paixão é frustrada pelos cuidados do pai de Branca, que trata de guardar sua “donzelice” em sítio seguro, ao suspeitar das intenções de Ponciano de roubar a moça. Por essa razão, as tranças da moça sempre serão lembradas pelo coronel com muita saudade. Branca é a paixão pura, mas inatingível, a quem Ponciano se refere sempre com muita melancolia. Ela é a “moça das tranças”, de “andar de cobra” e possuidora de muitas “prendas e esmerada guarnição traseira”. Ponciano se refere a ela como a “dona (ou moça) do meu bem-querer”: ela é a “menina Branca dos Anjos”.

D. Isabel Pimenta é uma professora que chega à fazenda em busca de saúde para seus pulmões. Moça educada, impressiona o coronel, que a chama de “moça vistosa”, “moça professora”, “menina Isabel” ou “menina professora”. Decepcionado por Isabel recusar “tomar estado” com ele, preferindo um primo do seu tempo de infância, o coronel passa a suspeitar de sua donzelice. Não pode ser “donzela de primeira mão” uma moça que brincou com primo quando criança; sem dúvida, a “mestra de letras” é uma “cachorra”, uma “sem-vergonha”.

D. Esmeraldina Nogueira é a maior paixão de Ponciano, sempre frustrada e adiada. Ela é casada, por isso é designada como a “mulher de Nogueira” (treze vezes no romance). Sempre enganando o coronel em proveito de si e do marido, Esmeraldina, com suas covinhas no rosto, faz crer a Ponciano que é “dama quase submetida”, ou mesmo “mulher sucumbida” diante de seus dois metros de altura, em “feitio de palmeira”. Ponciano devota verdadeira adoração a Esmeraldina, a quem se refere respeitosamente como a “dona da casa”, “dama da Rua dos Frades”, “moça do chalé” e, melancolicamente, “dona dos meus quebrantos”. Com tantas esperanças frustradas, o coronel conclui que D. Esmeraldina é “dama de muita dificuldade em conceder benefícios”. Somente quando se percebe arruinado financeiramente, explorado e abandonado por Nogueira e sua “corja”, o coronel reconhece que Esmeraldina não passa de uma “vaca”. Conclusão Os resultados deste trabalho mostram a produtividade de uma abordagem lingüística, lexicológica, ao domínio da literatura. Por outro lado, os vocábulos e expressões levantadas no corpus demonstram a riqueza e a relevância do estudo do vocabulário de José Cândido de Carvalho e de seu romance O Coronel e o Lobisomem.

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DIÁLOGOS – Benedito Gomes Bezerra – O Léxico da mulher em O Coronel e o Lobisomem

O tratamento lexicográfico ao corpus seria o passo desejável após essa pesquisa inicial. A elucidação do vocabulário apontado pelo presente trabalho sem dúvida contribuirá para o enriquecimento dos estudos do léxico da língua portuguesa falada e escrita no Brasil. Numa época em que tanto se fala e se persegue o ideal da interdisciplinaridade, estudos que procuram aproximar dois domínios teóricos tão afins como a Lingüística e a Literatura deveriam ser enfatizados e encorajados. A realização deste trabalho mostra que a Lexicologia, bem como a Lexicografia, são disciplinas que podem contribuir para esse processo de aproximação e enriquecimento mútuo. Referências ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. A linguagem regional popular na obra de José Lins do Rego. João Pessoa: FUNESC, 1990.

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DIÁLOGOS – Eliana Nagamini – Memória e metalinguagem nas crônicas de Rubem Braga

A construção da memória no romance

El entenado de Juan José Saer

Ms. Deolinda de Jesus Freire

Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) [email protected]

A memória é um tema essencial e caro a dois campos de produção textual:

a história e a literatura. No campo da literatura, é um recurso de tessitura da

narrativa. A memória nunca significa apenas conteúdo de discussão, é também

mecanismo de elaboração textual, base de constituição de representações

comprometidas em maior ou menor grau com o verossímil (PINTO, 1998: 22).

Apesar de ser gerada por uma percepção individualizada, a memória busca

contornos coletivos, pois a literatura é uma das possibilidades de assentamento

de uma memória coletiva, ainda que a forma de narrar seja individual.

Para Walter Benjamin (1993: 198), os camponeses e os marujos foram os

primeiros mestres na arte de narrar. Os primeiros são herdeiros das histórias de

suas terras, bem como de suas tradições, e responsabilizam-se pelo saber do

passado. Já os marujos narram sobre as terras distantes, pois, como diz o povo,

“quem viaja tem muito que contar”. O romance El Entenado, do argentino Juan

José Saer, publicado em 1982, apresenta um narrador que, claramente, pertence

ao grupo dos marujos, pois quem nos conta a história é um grumete que

embarcou rumo às ilhas Molucas por volta do ano de 1516. Em poucas linhas o

narrador nos dá notícia de sua vida, nos confidencia que é órfão de pai e mãe e

se criou nos portos ao lado das putas, dos marinheiros e viajantes. Por esse

motivo, tem uma ligação afetiva com os portos, afinal estes foram sua casa, e

possibilitaram que ele conseguisse alistar-se como grumete na expedição rumo

às Índias para fugir da miséria em que vivia.

A travessia rumo às novas aventuras dura longos três meses, os quais são

qualificados de extremamente tediosos, afinal nenhum monstro daqueles tão

famosos nas fábulas surgiu para quebrar a monotonia. Assim que avistaram terra

e desceram da embarcação, o grumete nos apresenta a primeira impressão,

pareciam ter chegado ao paraíso: uma terra excessiva e generosa, com toda

variedade animal, vegetal e mineral. Uma região mansa e terrena, parecia

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DIÁLOGOS – Eliana Nagamini – Memória e metalinguagem nas crônicas de Rubem Braga

benévola e, sobretudo, real. Eles retornam à embarcação e continuam remando

em direção ao sul. Nessa paisagem paradisíaca, faltam apenas os homens. Essa

ausência cria a ilusão de que a vida ali acabava de nascer. O próprio narrador

nos diz que aquela terra tinha um cheiro de origem, como se estivesse nascendo.

Com a sensação de estar fundando uma nova terra, o grumete é convocado

para fazer parte do grupo que descerá da embarcação junto com o capitão para o

reconhecimento daquela região. No silêncio total, em que o narrador observa

todos os movimentos do capitão, parece que este se dá conta de um erro terrível,

o qual o leitor nunca saberá qual é, pois é nesse momento de perplexidade do

capitão que o grupo sofre uma emboscada dos indígenas. O grumete, e também o

leitor, se assustam ao perceber que todos os companheiros deste estavam caídos

no chão atingidos por uma flecha na garganta. O narrador percebe ser o único

sobrevivente. É nesse ponto da narrativa, que o leitor se dá conta de que a

expedição da qual participou este grumete refere-se à América Hispânica. Dessa

forma, o grumete imprime à sua história individual uma forte carga coletiva ao

acessar a memória das crônicas da conquista, com as quais mantém intensa

intertextualidade ao longo de toda a narrativa.

O fato histórico tecido nas entrelinhas da narrativa refere-se à expedição de

Juan Díaz de Solís, que, em 1516, acompanhado de dez tripulantes,

desembarcou nas imediações da ilha Martín García na região do Rio da Prata.

Solís e seus companheiros foram mortos em uma emboscada pelos indígenas,

provavelmente guaranis ou charruas; os tripulantes das embarcações, que

presenciaram a cena, voltaram para a Península Ibérica. Após dez anos, a coroa

castelhana empreendeu uma nova exploração na mesma região a cargo do Piloto

Mor do Reino, Sebastián Gaboto. Segundo algumas crônicas da época, Gaboto

teria resgatado um sobrevivente da expedição de Solís: o grumete Francisco del

Puerto, que teria convivido com os indígenas durante estes dez anos e que, após

ser recolhido, foi levado de volta à sua terra. Esta é a única notícia que se tem

sobre este sobrevivente, pois não há nenhuma outra referência sobre sua vida na

tribo indígena ou após seu retorno à Península (ROMANO THUESEN, 1995: 43).

Assim, esta personagem histórica sem grande importância para a expedição e da

qual não há muita informação será o elo com o narrador do romance El entenado.

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DIÁLOGOS – Eliana Nagamini – Memória e metalinguagem nas crônicas de Rubem Braga

Apesar de estar baseada em um fato histórico, afinal há documentos que

comprovam que houve realmente um sobrevivente dessa expedição encarregada

de explorar a região, a narrativa não traz nenhuma informação de tal

acontecimento: nenhum nome, nenhuma data, nenhuma referência geográfica. A

ausência de dados e nomes impede a identificação do leitor com um ambiente ou

indivíduo determinado, o que converte o narrador em uma problemática

universal. Tal problemática está relacionada à chegada dos conquistadores e

colonizadores castelhanos ao Novo Mundo e às teorias que se criaram ao longo

dos séculos sobre os habitantes dessa região. Essas teorias tentaram criar um

determinado desenho e uma determinada memória sobre a conquista e

colonização castelhana, as quais são resgatadas no romance a partir das

memórias desse narrador, que decide contar sua história no momento final de

sua vida, ou seja, na velhice quando já está com mais de 70 anos. É nesse

momento de sua vida que ele parece ter a experiência da revelação e, finalmente,

desvendar uma dúvida que lhe acompanhou durante toda sua vida e que se torna

o eixo da narrativa: o porquê de sua sobrevivência e permanência naquelas

inóspitas terras do Novo Mundo e quais as conseqüências dessa experiência em

sua vida no Velho Mundo.

A narrativa d’El entenado move-se entre duas dimensões temporais: o

presente e o passado. O presente é marcado pela velhice do narrador, como já

apontado, que decide viver na cidade, porque aí a vida é horizontal, ou seja, ideal

para um velho. Esta velhice se contrapõe à juventude vivida em contato com a

natureza do Novo Mundo: rios, céu, estrelas, árvores. Nas primeiras linhas do

romance, nos é apontada a contraposição entre o ‘aqui’, a cidade que dissimula e

oculta o céu, e o ‘allá’, em que as estrelas eram tantas que se tinha a impressão de

poder tocá-las ou ser ‘aplastados’ por elas. Dessa forma, essa memória de um ‘allá’

é resgatada para marcar a contraposição entre o velho e o novo, entre o conhecido

e o desconhecido, entre a velhice e a juventude, entre o que se vive e o que se

viveu. No lado desconhecido de sua vida, representado pelo Novo Mundo, está a

razão de seu viver e o porquê da escritura de sua história. É necessário lembrar e

escrever sobre esse passado como uma forma de compreender sua própria

existência no presente.

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DIÁLOGOS – Eliana Nagamini – Memória e metalinguagem nas crônicas de Rubem Braga

Entretanto, o narrador, que nunca é nomeado, revisita o passado com o

olhar do presente. A memória é o recurso para a recuperação de seu passado e o

da tribo, pois ambos são rememorados por um único ponto de vista: o do

narrador em primeira pessoa, ou seja, também personagem. Assim como ocorre

em Proust, não é uma vida contada como de fato ela foi, mas sim lembrada por

quem a viveu (BENJAMIN, 1993: 37). Porém, diferentemente de Proust, a

manifestação da memória aqui não é involuntária, mas sim um ato consciente de

recuperar e explicar um passado individual com uma forte carga coletiva, afinal

aquela tribo indígena depende de sua escritura para não ser esquecida. O recurso

da memória é essencial na construção da narrativa porque um acontecimento

vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o

acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o

que veio antes e depois. Num outro sentido é a reminiscência que prescreve, com

rigor, o modo da textura (BENJAMIN, 1993: 37). A memória atribui importância a

tudo que evoca o passado, essa evocação assegura sua manifestação no presente,

além de permitir e guiar uma interpretação ou ressignificação no futuro.

No caso d’El entenado, o que parece importar de forma insistente ao narrador

é um momento específico de sua reminiscência, um momento que pode levá-lo a

desvendar o porquê de sua sobrevivência e permanência naquela tribo, sem que

fosse devorado em um ritual canibal, como aconteceu com seus companheiros, os

quais foram mortos no momento de sua captura. O canibalismo, e a discussão em

torno desse tema, é um dos momentos cruciais da narrativa. Esse resgate marca

um importante elo da narrativa com as crônicas da conquista, bem como com o

homem do século XVI, pois o interesse europeu por esse tema tornou-se uma

obsessão nos anos que se seguiram à chegada dos castelhanos ao Novo Mundo

(PAGDEN, 1988: 118). Francisco de Vitoria, mestre da Escola de Salamanca, atesta

em sua obra De Indis que a razão central de que os homens civilizados não se

comem uns aos outros operava em um nível mais profundo do que acreditavam

alguns filósofos da época. Os indígenas, além de estarem cometendo o pecado da

ferocidade ao comerem-se uns aos outros, transgrediam a lei natural que impedia o

assassinato de homens inocentes, além de violarem as divisões hierárquicas da

criação. Afinal, na natureza, nenhum homem possui outro tão absolutamente que

possa usá-lo como alimento (PAGDEN, 1988: 125).

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DIÁLOGOS – Eliana Nagamini – Memória e metalinguagem nas crônicas de Rubem Braga

Entretanto, o narrador d’El entenado sugere que o canibalismo operava em

uma dimensão ainda mais complexa do que a defendida por Vitoria, dimensão esta

que, provavelmente, nenhum homem do século XVI poderia alcançar. Para ele, a

tribo não comia carne humana para se alimentar, como acreditaram muitos dos

cronistas e filósofos da época, tampouco havia nesse ritual a busca pelo prazer. O

que ele pôde perceber em sua longa convivência com os ‘colastiné’ é que aquele

gesto coletivo era simplesmente necessário para a sobrevivência da tribo. Tal teoria

revela extremo anacronismo com o pensamento do homem do século XVI, pois não

seria plausível de ser elaborada por estudiosos e cronistas da época. Afinal, exigiria

destes uma aceitação do outro e de uma cultura tão diferente da do europeu.

Para chegar à sua teoria sobre o canibalismo, o narrador se muniu da

observação minuciosa dos passos de tal prática ao longo dos anos que conviveu

com aqueles indígenas. A repetição do ritual antropofágico permitiu que o

grumete chegasse à conclusão de que este sempre acontecia no verão. Era na

chegada desta estação que a disciplina espontânea da tribo se deteriorava e a

atitude dos índios mudava, pois estes deixavam de ser corteses e distantes para

tornarem-se totalmente indiferentes, andando pela tribo como se fossem

sonâmbulos. Segundo o narrador, parecia que os indígenas pressentiam a falta

de algo, como se procurassem sem saber o quê, nem mesmo sabiam se haviam

perdido algo. Este estado prenunciava o preparo das flechas e a saída em canoas

para realizar a busca necessária para o ritual. Retornavam, ao anoitecer, com

alguns corpos e com um prisioneiro. Começava aí a repetição do ritual, o qual o

narrador tinha presenciado pela primeira vez com os corpos de seus

companheiros. Porém, havia uma diferença, que para o narrador era sua própria

razão de viver, afinal os prisioneiros sabiam o que ele nunca soube: o porquê

estavam ali naquela tribo e qual era o seu papel. Esse foi o objeto de reflexão de

toda a vida do narrador e a terrível dúvida que o acompanha até o momento em

que tece a narrativa, momento este em que ele ainda não tem certeza de ter

compreendido o seu papel:

“(...) y hoy todavía, sesenta años más tarde, mientras escribo, ....

no estoy seguro de haber entendido, aun cuando ese hecho haya

sido, a lo largo de mi vida, mi único objeto de reflexión, el sentido

exacto de esa esperanza.” (SAER, 1988: 101)

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Depois de dois ou três meses do ritual, um fato atormentava ainda mais o

narrador, pois, diferentemente do que acontecera com ele, o prisioneiro era

colocado em uma canoa e partia com ar de superioridade. Essa partida o

desconcertava ainda mais, afinal todos os prisioneiros partiam, com exceção dele.

Com o ritual, os índios saíam de um tipo de buraco negro, como se pudessem ter

recuperado o sentido da vida. Apesar das inúmeras tentativas, o grumete não

conseguiu saber nem entender completamente o porquê do ritual, pois os índios

não se lembravam, ou não queriam lembrar, do que acontecia durante a

comilança. O esquecimento é uma das partes mais obscuras da memória e das

mais férteis, é o lugar incerto da peregrinação e da busca. Segundo Le Goff (1984:

13), o que se esquece é tão importante quanto o que se lembra, pois o que você

lembra se transforma em um ato de dominação. Dessa forma, os esquecimentos e

os silêncios da história são reveladores dos mecanismos de manipulação da

memória coletiva.

Depois de muitos anos de convivência com aqueles indígenas e

presenciando, verão após verão, o ritual do canibalismo, o narrador é colocado

em uma canoa e mandado embora. Após remar por um dia inteiro, é encontrado

na beira de um rio por homens barbudos com armas de fogo; imediatamente os

reconheceu, pois já os havia visto durante a infância nos portos da Península. A

primeira característica que distinguiu o narrador dos índios e fez com que não

fosse morto por aqueles homens foi sua barba. A partir dessa cena, inicia-se a

terceira etapa de sua vida: o retorno à Península. Porém, a dúvida sobre sua

permanência na tribo o acompanhou por toda sua vida, de alguma forma esta

dúvida transfere-se para o sentido de sua própria existência no mundo e o motivo

da escrita sobre sua história e também a da tribo.

É essa dúvida, desvendada pelo narrador apenas no final da narrativa e

também de sua vida, que envolve o leitor para que este participe da revelação

tanto do sentido da reminiscência como do porquê de escrever sobre os Colastiné.

Já na Península, o narrador adquire as ferramentas necessárias para o que

acredita ser sua missão: aprende a ler e a escrever. No momento em que escreve

suas memórias, reconhece a importância desse aprendizado, pois é a escrita que

justifica sua existência. Assim, a construção da narrativa é a busca de um

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DIÁLOGOS – Eliana Nagamini – Memória e metalinguagem nas crônicas de Rubem Braga

sentido, o desdobramento de uma pergunta que se encaminha para uma resposta

reveladora, retida no momento simbólico, ou seja, numa parte privilegiada por

encarnar a história como um todo. As muitas histórias que se constroem na

narrativa a partir de um mesmo ponto se articulam e são legatárias da dúvida de

origem, que é a dúvida sobre sua própria existência.

Para responder, em parte, a essa dúvida, o narrador volta a uma imagem

gravada em sua memória: o momento em que foi colocado em uma canoa e

mandado embora da tribo. Ao resgatar essa imagem, o narrador percebe e nos

revela que, para realizar os rituais canibais, a tribo precisava eleger um

expectador para ser, como ele, “Def-ghi”. Nome que sempre era atribuído ao

prisioneiro e que foi atribuído a ele no momento do ataque à expedição da qual

fazia parte. Este espectador, depois de dois ou três meses, já no início do outono,

era devolvido à sua tribo de origem. Ele, o grumete, havia permanecido na tribo,

simplesmente porque os índios não sabiam para onde deviam enviá-lo. Quando

viram homens parecidos com ele pelas redondezas, mandaram-no de volta.

O nome dado aos prisioneiros expectadores, “Def-ghi”, significava, entre

outras coisas, aquele que se coloca em lugar de um ausente e também aquele que

se separa do grupo. Ao fim e ao cabo, “Def-ghi” era o encarregado de perpetuar a

tribo com sua memória além das fronteiras do mundo. A tribo trazia um

sobrevivente para assistir ao ritual para que depois este se tornasse o narrador

além das fronteiras tanto geográficas como memorialística da tribo. Dessa forma,

parece que a vida do narrador é preservada para que ele possa contar a história

da tribo, mesmo porque esta foi, depois da sua partida, dizimada pelos

conquistadores. Essa era a razão e o porquê de sua existência: narrar a história

daquela tribo para que esta não fosse esquecida, o recurso utilizado, obviamente,

é a memória. O narrador usa da memória como recurso para tentar compreender

os indígenas e seus rituais como também a sua própria existência. Afinal, não se

pode esquecer o passado, pois o presente não tem sentido sem o parentesco com

ele. A função do passado aqui é tentar responder aos incômodos do presente,

principalmente de um momento crucial para a América: a chegada do outro.

O autor do romance, Juan José Saer, ao citar a obra Zama de Antonio

Benedetto, afirma que “no se reconstruye ningún pasado sino que simplemente

se construye una visión del pasado (...) Al hacer más evidente este pasado, al

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convertirlo en pasado crudo, nítidamente alejado de la experiencia narrativa, el

narrador no quiere sino sugerir la persistencia histórica de ciertos problemas”.

Um dos problemas que Saer propõe ao construir a narrativa d’El Entenado, e que

persiste até os nossos dias, é a chegada dos espanhóis ao continente americano,

nomeado como ‘Novo Mundo’, e a problemática que envolveu os debates sobre o

homem que vivia aqui e seu próprio reconhecimento, assim como sua destruição.

Problemas que já afloravam no diário e nas cartas de Colombo e que alcançaram

um grau de seriedade científica nos textos de Oviedo (GERBI, 1996: 13).

Para discutir a persistência histórica de certos problemas, cuja origem data

da fundação de uma região, a do Rio da Prata, Saer apresenta uma narrativa cujo

narrador, praticamente sem origem por se tratar de um órfão criado nos portos

da Península, recorre à sua memória para dar sentido à persistência desses

problemas e à sua própria existência, intrinsecamente relacionada à chegada dos

espanhóis no Novo Mundo. Assim, a memória é um recurso que aponta para uma

problemática coletiva. O narrador opera uma leitura individual de um passado

possível ou de uma representação possível de um momento de fundação do que

futuramente viria a ser uma nação.

O passado é o substrato tanto da memória como da história, porém a

dissonância entre os dois fazeres é grande: a memória tecida sobre um

determinado evento dificulta a percepção histórica que se pode ter desses

episódios, refaz o itinerário de atribuição de sentidos, constrói um fato oferecendo

explicação coerente a episódios, na origem, desconexos. Mais do que pura

representação, a memória afirma-se, diferentemente da história, pela capacidade

de assegurar permanências, manifestações sobreviventes de um passado, muitas

vezes, sepultado, sempre isolado do presente pelas muitas transformações, pelos

cortes que fragmentam o tempo. A memória como lugar de persistência, de

continuidade de capacidade de viver o hoje inexistente. Mais aparentada à ficção

do que à história, a memória atribui importância a tudo que evoca o passado e

assegura sua manifestação no presente. A memória recupera a história vivida,

enquanto experiência humana de uma temporalidade, tornando-se espaço de

problematização e de crítica. A memória é sempre suspeita para a história, cuja

verdadeira missão é destruí-la e reprimi-la, seu lugar de sobrevivência permanece

no discurso literário.

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DIÁLOGOS – Eliana Nagamini – Memória e metalinguagem nas crônicas de Rubem Braga

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DIÁLOGOS – Eliana Nagamini – Memória e metalinguagem nas crônicas de Rubem Braga

Título: Memória e metalinguagem nas crônicas de Rubem Braga

Autor: Eliana Nagamini1

Uma questão de estilo

“Chegou meu dia. Todo cronista tem seu dia em que, não tendo nada a

escrever, fala da falta de assunto.Chegou meu dia. Que bela tarde para não se

escrever!” . Assim começa a crônica Ao respeitável público (apud FRANCHETTI e

PECORA, 1980: 13), de Rubem Braga. O cronista apresenta uma visão crítica

sobre a crônica, gênero considerado menor por não trazer nada de interesse

prático para o cotidiano como as notícias veiculadas pelo jornal (“O jornal é

grande, senhorita, é imenso, cavalheiro, tem crimes, tem esporte, tem política,

tem cinema, tem uma infinidade de coisas”), e por não ter, em tese, a intenção

literária. Ou seja, está longe de se caracterizar como documento informativo, e

não constrói ficção como os textos literários.

As ofensas lançadas contra o leitor têm a intenção de provocar uma

mudança no status desse elemento fundamental para a sobrevivência da crônica,

pois o leitor é aquele que acompanha o cronista diariamente, em que o jogo de

sedução depende muito do trabalho de linguagem realizado pelo cronista. O que

nos causa estranhamento, nesta crônica, é o fato de o leitor ser tratado com

desprezo. Ironicamente, Rubem Braga revê a posição do leitor e a importância da

interação com o público.

Com marcas temporais muito bem definidas, fevereiro de 1934, na ocasião

do Carnaval, Rubem Braga discute o universo da crônica a partir do próprio

carnaval: o mundo às avessas no sentido atribuído por Bakthin (1999), de

transgressão à ordem. Para Bakhtin, “o carnaval era o triunfo de uma espécie de

liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição

provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus”(1999: 8),

que acabava por se constituir um “reino utópico da universalidade, liberdade,

igualdade e abundância” (1999: 6). A forma carnavalesca aproximava-se do

1 Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP), Doutoranda em Ciências da Comunicação (USP), Docente na Universidade Cruzeiro do Sul

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DIÁLOGOS – Eliana Nagamini – Memória e metalinguagem nas crônicas de Rubem Braga

espetáculo, cuja vivência se realizava na própria vida cotidiana, ainda que

provisória, em que se rompia com o espaço convencional para viver-se o espaço

da liberdade.

O título Ao respeitável público já prepara o público para o espetáculo que

irá presenciar, criando novas relações entre a platéia e o cronista. No espetáculo

carnavalesco não há distinção entre espectadores e atores, também os limites do

palco ganham novos contornos. Nesse espetáculo, Rubem Braga cria outra ordem

na relação autor/leitor, tornando a figura do leitor ambígua, pois ao mesmo

tempo em que é ridicularizado, é também destacado visto que a crônica é dirigida

para esse leitor; ocorre, nesse sentido, um coroamento e um descoroamento do

leitor.

O cronista ridiculariza o leitor utilizando adjetivos desqualificadores, como

“teimosa”, “cabeçudo”, “irritantes”, “aborrecidas”, para revelar um sentimento de

desprezo (“Fiquem sabendo que eu secretamente os odeio a todos”, “porque vocês

não me agradam; porque eu os detesto”, “eu faço votos para que vocês todos

amanhecem amanhã atacados de febre amarela ou de tifo exantemático”). O

descoroamento do leitor provoca o riso festivo, carnavalesco, isto é, da libertação

do leitor por não ter a “obrigação” de ler a crônica, mas principalmente do

cronista por não ter a “obrigação” de seduzir o leitor e de se render ao leitor do

jornal.

O caráter metalingüístico dessa crônica se configura no afastamento das

características originais desse gênero, relacionado na sua origem apenas aos

relatos históricos, para alçar vôos maiores no universo literário. Essa postura

indica a própria trajetória das concepções sobre o gênero nos estudos literários,

como podemos destacar em A criação Literária, de Massaud Moisés:

“Do grego Chonokós, relativo a tempo (chrónos), pelo

latim chronica, o vocábulo ‘crônica’ designava, no início da

era cristã, uma lista ou relação de acontecimentos

ordenados segundo a marcha do tempo, isto é, em seqüência

cronológica. Situada entre os anais e a história, limitava-se a

registrar os eventos sem aprofundar-lhes as causas ou

tentar interpretá-los (...) A partir de Renascença, termo

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‘crônica’ cedeu vez a ‘história’, finalizando, por conseguinte,

o seu milenar sincretismo. (...) Na acepção moderna, porém

não a de crônica mundana (que se confunde com

reportagem de ocorrências sociais de alta roda), a crônica

entrou a ser empregada no século XIX: liberto de sua

conotação historicista, o vocábulo passou a revestir sentindo

estritamente literário.” (1998: 101, 102)

E também em Teoria do texto, de Salvatore D’Onofre:

“Do grego Krónos, que significa “tempo”, a crônica é o

registro de acontecimento num tempo e num espaço

determinados. Em primeiro lugar, é preciso distinguir a

crônica científica da crônica literária. No primeiro caso ela

não pode ser considerada uma obra de arte. Pertencem a

essa categoria a crônica histórica, que é uma lista de fatos

arranjados conforme uma ordem linear do tempo; a crônica

policial, que registra a ocorrência de atos criminosos; a

crônica social, que põe em evidência a vida das pessoas

ilustres; a crônica esportiva, que comenta as disputas de

tênis, de futebol, de corridas automobilísticas, etc.; a crônica

de arte, que apresenta a crítica de eventos culturais (cinema,

pintura, música, teatro, etc.). Tais cronistas, geralmente

formados por faculdades de história, de jornalismo ou de

comunicação, são profissionais que possuem um saber

específico e usam uma metodologia científica em seu

trabalho cotidiano. (2004: 123)

Ainda segundo Salvatore D’Onofre, a produção da crônica está relacionada

à intencionalidade artística, distanciando-se do seu caráter jornalístico

principalmente pelo fato de serem escritos por poetas ou escritores:

Diferentemente, a crônica literária é produzida por poetas

e ficcionistas que, embora possam apoiar-se em fatos

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acontecidos, transformam a realidade do dia-a-dia pela força

criadora da fantasia. Daí decorre que suas crônicas são ou

poemas em prosa ou pequenos contos, dependendo do

pendor do autor para o gênero lírico ou narrativo. De um

modo geral, a crônica pode ser considerada como a mais

curta forma de narrativa literária” (2004: 123)

Como podemos notar, historicamente, a crônica se apresenta como um

registro histórico, e depois como relato do circunstancial, ou seja, do cotidiano

levado a público, organizado de forma linear e temporal. Na sua origem, a crônica

relaciona-se com o presente e enquanto registro resgata o passado, ao resgatar

cenas cotidianas. A gratuidade temática acaba determinando sua existência

transitória, na concepção moderna, por estar vinculada ao jornal.

É o tempo que devora os acontecimentos. Na mitologia grega, segundo

Brandão (1986), Cronos engolia os filhos que teve com Réia para não ser

destronado por eles, conforme as previsões de Geia e Urano. Somente a Memória,

representada por Mnenosine (MÉRNARD, 1997), que gerou as nove Musas para

lembrar os feitos dos heróis, pode restituir os acontecimentos quando estes são

relatados como poesia. Segundo Lê Goff (1984), para os gregos, a linguagem

poética relaciona-se com a memória; assim, a fonte da memória é a fonte de

imortalidade.

As crônicas de Rubem Braga vencem o tempo e ganham imortalidade por

seu trabalho de linguagem. O cotidiano é construído através de um olhar poético,

pois a memória individual processa um mecanismo de releitura dos

acontecimentos marcado pela subjetividade do autor. O cronista transforma a

realidade em fantasia, em criação.

Na passagem da crônica histórica para a literária, permanece a temática do

cotidiano, a diferença é a grande transformação que ocorre no trabalho da

linguagem. O processo de elaboração da crônica aproxima-se do processo de

criação literária, ou seja, do uso peculiar da palavra, em seu potencial simbólico e

polissêmico. Destaque-se, a partir dessas observações, que nem toda crônica

adquire o status de literária, pois depende da maneira como o cronista torna a

visão do mundo cotidiano em um mundo ficcional; além disso, o sentido atribuído

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DIÁLOGOS – Eliana Nagamini – Memória e metalinguagem nas crônicas de Rubem Braga

ao tempo e aos acontecimentos não é neutro, pois revela uma determinada

ideologia na construção do discurso.

É preciso considerar que o gênero teve seu desenvolvimento no meio

jornalístico, a partir do século XIX, e algumas de suas características estão

sujeitas às características do próprio jornal, ou seja, a efemeridade, a diversidade

de leitores apressados, as relações com a lógica do consumo, o limite de espaço, o

pouco tempo de elaboração, e ainda ter de operar com uma espécie de censura,

pois segundo Jorge de Sá, “a ideologia do veículo corresponde ao interesse dos

seus consumidores, direcionados pelos proprietários do periódico e/ou pelos

editores-chefes de redação” (2002: 8).

De que maneira, então, ela deixa de ser uma crônica jornalística para se

tornar literária? Quando ela deixa de ser um mero relato para construir um

universo mágico e ultrapassar o tempo presente? É justamente o uso que o

cronista faz da palavra, na ênfase da função poética da linguagem.

Rubem Braga ultrapassa os limites do jornal ao tratar de temas

corriqueiros com um olhar crítico, transformando o relato casual em um trabalho

de linguagem através da palavra, cujo significado simbólico permite que o texto

seja considerado literário, e de acordo com Manuel Bandeira (apud FRANCHETTI

e PECORA), “Braga na crônica é sempre bom, e quando não tem assunto então é

que tripula no melhor: mestre no puxa-puxa, espreme no palmo da coluna certa

inefável poesia que é só dele” (1980: 85), e desse modo, eleva sua crônica a uma

linguagem poética. É por isso que as crônicas de Rubem Braga perdem o caráter

efêmero atribuído ao gênero e ganham a posteridade, a permanência,

principalmente pela importância dada à palavra. Mas aquela palavra capaz de

provocar um efeito no leitor, capaz de transformar a vida cotidiana. A palavra que

constrói um sentido para a própria vida.

Na crônica A palavra (BRAGA, 2004: 183), também de caráter

metalingüístico, o cronista trata do ofício de “viver em voz alta” e dos efeitos

provocados pela palavra, que tanto pode resultar em mágoa ou em felicidade. A

analogia é feita a partir da narrativa de um episódio casual sobre um canário que

não queria cantar, mas que ao ouvir uma frase musical de Beethoven “começou a

cantar”. O som da melodia, pela sua natureza artística, teria permitido ao canário

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DIÁLOGOS – Eliana Nagamini – Memória e metalinguagem nas crônicas de Rubem Braga

encontrar um significado em seu próprio canto. Também a palavra do cronista

poderia despertar nas pessoas o mesmo encantamento do canário.

Não é dito qual é essa palavra (“Alguma coisa que eu disse distraído –

talvez palavras de algum poeta antigo”), apenas destaca-se que ela tem uma força

capaz de “despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém”. A palavra

mágica é aquela que não só abre as portas da imaginação, mas principalmente

reconstitui as lembranças de um passado inocente cheio de sonho e fantasia.

Nesse sentido, a intertextualidade com os contos de fada (“Foi como se a gente

soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste

tivesse sorrido”) é um aspecto fundamental para resgatar, a partir da memória, o

mundo encantado das histórias ouvidas na infância.

Se de um lado o alcance dessa palavra ultrapassa a referência meramente

individual, de outro, revela uma preocupação com a realidade social (“E isso

fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas

e as suas remotas esperanças”), deixando seu caráter particular para tornar-se

universal.

Qual é então essa palavra mágica? A idealização dessa palavra está

presente na crônica Meu ideal seria escrever... (BRAGA, 2009). Já no título

temos a presença da subjetividade expresso no pronome “meu” para apontar uma

postura muito particular quanto ao ato de escrever, como um desejo do cronista

colocado no plano da possibilidade, na medida em que o tempo verbal, futuro do

pretérito simples do indicativo, projeta essa escritura para um futuro com relação

a um fato passado. Além disso, as reticências acrescentam uma lacuna quanto ao

assunto e ao próprio gênero, enfatizando o ato de escrever.

Todos os elementos da crônica Meu ideal seria escrever... apontam para o

desejo do cronista em construir uma história que modifique a vida das pessoas,

que de alguma forma provoque um efeito no leitor, uma transformação: “Meu

ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente

naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto

que chegasse a chorar”

As palavras compõem dois estados subjetivos do espírito: um da tristeza

(“doente”, “cinzenta”) e outro da alegria (“engraçada”, “risse”), concentrados na

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ambigüidade da palavra “chorar”, pois o choro não é de dor nem de tristeza, mas

de alegria e o riso, nesse caso, é o riso que liberta a moça.

Os estudos de Propp tratam de uma diversidade de risos e um deles é o

que ele chamou de “riso alegre”, isto é, aquele que revela satisfação, que não é

provocado pela zombaria ou o engano. O riso alegre não tem uma origem precisa,

pois “pode originar-se dos pretextos mais insignificantes” (1992: 162) , da vida

cotidiana; é um riso que “elimina qualquer emoção negativa e a torna impossível,

ele apaga a cólera e a ira, vence a perturbação e eleva as forças vitais, o desejo de

viver e de tomar parte na vida” (1992: 163). Assim, essa história – “insignificante”

- é caracterizada pelo adjetivo “engraçada” que, por sua vez, é intensificado pelo

advérbio “tão”, como indicativo da força desse riso, pois ele anula as tensões e

permite a satisfação, a alegria.

A ausência da identidade da moça e o distanciamento marcado pelo

pronome demonstrativo universalizam a representação da moça, cujo momento

presente – negativo – pode sofrer uma transformação, expresso pelos verbos no

subjuntivo (“lesse”, “risse”, “chegasse”).

A história rompe com a prisão do tempo e do espaço do gênero. Sai do espaço

da casa da moça e chega ao “casal mal-humorado” resgatando o sentimento

amoroso que os uniu e que o cotidiano muitas vezes se encarrega de apagar da

memória. Reconstituem, desse modo, as lembranças perdidas dos momentos de

ternura que os unira (“se lembrasse do alegre tempo de namoro, e

reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos”). O riso libertador os

afasta do tédio cotidiano para dar novo significado à convivência.

O ambiente conjugal abre as portas para a história atingir as ruas, isto é,

o espaço público (“Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a

minha história chegasse”), mas sempre aquele caracterizado pela dor e pela

tristeza. Por isso, ganha maior intensidade com o advérbio “tão”, exaltando suas

qualidades: “fascinante”, “irresistível”, “colorida” e “pura”. A tonalidade do

ambiente construído pela “casa cinzenta” perde sua força para dar lugar ao

colorido, à vibração que chega à antítese das “lágrimas de alegria” para limpar o

coração, ou seja, a purificação da alma, a libertação.

A universalização da história ultrapassa as fronteiras das línguas, das

diferenças étnicas, surpreendendo até um “chinês muito pobre, muito sábio e

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muito velho”, ou seja, a credibilidade da história seria incontestável devido ao

comentário de alguém que tem sua origem numa cultura milenar, considerado

sábio e por ter vivido o suficiente para adquirir parâmetros de comparação com

essa história e, portanto, ela de fato seria “divina”, saindo do plano terreno e

ganhando uma força transcendental.

A história tal como a melodia de Bethoven ouvida pelo canário fora inspirada

num momento circunstancial da vida, acionada pela visão da “tristeza daquela

moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha

naquela pequena casa cinzenta”. Não sabemos exatamente qual é o conteúdo

dessa história, mas sabemos o seu efeito: a alegria da descoberta do mundo

encantado, do sonhar acordado. Embora a narrativa esteja no plano da

possibilidade de realização do desejo, esse desejo se efetiva, na medida em que o

texto provoca uma reflexão sobre a própria vida ao dar um novo sentido para o

cotidiano.

Em O padeiro (BRAGA, 2004: 43), Braga aproxima o trabalho do cronista

com o do padeiro. O pão e crônica são produtos que fazem parte do cotidiano. O

fazer desses profissionais é tão corriqueiro que passa despercebido, quase sem

importância. É assim que o padeiro descobre sua identidade: “Explicou que

aprendera de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma

casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma

voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o

atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não, senhora, é o padeiro”. Assim

ficara sabendo que não era ninguém...”. O termo que estabelece a similaridade

entre o cronista e o padeiro é “ninguém”, isto é, uma alguém menor no cotidiano,

mas significativo na rotina diária.

A rotina do cronista e do padeiro também são semelhantes: “Naquele tempo

eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que

deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina –

e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o

jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno”.

O caráter dos jornais, com ênfase na notícia, nos fatos reais, coloca a crônica

num espaço reduzido e sem o destaque das grandes manchetes. De acordo com

Sá,

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“os próprios jornais conferem ao cronista a missão de

colocar a vida no exíguo espaço dessa narrativa curta, que

corre o risco de ser sufocada pelas grande manchetes, ou

confundir-se com o contexto da página em que ela é

publicada” (2002: 18).

A crônica ganha destaque quando é publicada em livro que, ao distanciar-se

de seu meio de origem, conquista sua permanência.

A memória da vida cotidiana

Encontramos o sentido de memória no tema do guarda-chuva, na crônica

Coisas antigas (BRAGA, 2004: 75). A permanência desse objeto, na sua forma e

função, serve de analogia para suas reminiscências da infância. O objeto tão

singular como o guarda-chuva constrói um novo sentido às lembranças do

cronista. A imprecisão do vocábulo “coisas” atribui um caráter universal ao

assunto a ser tratado, além de registrar as lembranças do passado através do

vocábulo “antigas”.

A caracterização do objeto passa pela metáfora da “barraca ambulante”

para ganhar vida: “abandonou-me no primeiro bar em que entramos; não era

coisa para mim”. Com a personificação do objeto, ocorre uma troca nas relações

entre objeto e usuário . O guarda-chuva deixa seu dono quando este não é aquele

fiel, quando seu dono é um “freguês vulgar e ocasional”, então “ele se aproveita

da primeira distração para sumir”. O usuário passa, dessa maneira, a um mero

elemento passivo diante do objeto.

A descrição do guarda-chuva, lembrado somente naqueles dias de chuva,

ou seja, ocasionalmente, mostram as poucas modificações sofridas por ele que,

apesar do avanço tecnológico, permanece “de junco fino ou pinho vulgar, de

algodão ou de seda animal pobre ou rico”. A idéia da permanência é muito

importante na medida em que se estabelece uma relação paralela com as

reminiscências do cronista.

A visão do objeto gera no cronista “um estranho carinho”, cuja origem o

cronista se propõe a desvendar. O objeto se relaciona à infância que o leva a

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relembrar a figura paterna: “Não sei há quantos anos existe a Casa Loubet, na

Rua 7 de Setembro. Também não sei se seus guarda-chuvas são melhores ou

piores que os outros; são bons; meu pai os comprava lá, sempre que vinha ao

Rio, e herdei esse hábito.

Há um certo conforto íntimo em seguir um hábito paterno; uma certa

segurança e uma certa doçura.”

Assim, esse objeto ganha destaque porque traz à lembrança momentos

vividos com seu pai e a permanência de gestos iniciados com essa convivência.

Comprar o guarda-chuva no mesmo lugar que o pai é uma forma de manter vivo

o sentimento do amor paterno e da infância.

As descrições do guarda-chuva apontam sua natureza (“tem ao mesmo

tempo algo de ridículo e algo de fúnebre”) e funcionalidade (“ser muito usado em

enterros”, “grande acompanhador de defuntos”), relacionado às imagens da

morte, porém é amenizado pela sua personificação pois “sempre teve, apesar de

seu feitio grave, o costume leviano de se perder, de sumir, de mudar de dono”.

O guarda-chuva, assim como a cadeira de balanço austríaca, serve para

guardar e proteger os pensamentos e a “doçura familiar dos sonhos” e das

reminiscências.

Como Bandeira (apud FRANCHETTI e PECORA, 1980) afirma, Braga é

muito mais poético quando não tem um grande acontecimento, quando o valor da

crônica reside na forma poética concebida através da linguagem. Em Viúva na

praia (BRAGA, 2004: 119), há um jogo entre vivo/morto, com ênfase no estar

vivo, presente na aliteração do fonema /v/ que atribui ao texto a sua graça, pois

se inicia com uma brincadeira entre com a palavra viúva: “Ivo viu a uva; eu vi a

viúva”, e o verbo “ver”, cujo sentido percorre toda a narrativa, filtrada pelo olhar

do cronista; conjugado na sua forma nominal, o gerúndio, indica o processo

contínuo de deslumbramento diante do corpo feminino, terminando na última

frase com o presente do indicativo, ou seja, torna imortal o momento presente.

Essa visibilidade também ocorre com a tonalidade das cores estabelecendo

a fronteira entre o estar vivo e o estar morto, como a cara “vermelha” do homem

que morreu “muito magro e sem cor”, porém o maiô preto da mulher

paradoxalmente não representa o luto, mas o cotidiano moderado e “decente” da

viúva; a cor preta do maiô e dos cabelos “bem negros” contrasta com a

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DIÁLOGOS – Eliana Nagamini – Memória e metalinguagem nas crônicas de Rubem Braga

luminosidade do corpo “brilhando de sol”, vestido de “água e de luz”.

A mesma luminosidade invade o espaço: “Ondas espoucam ao sol. O sol

brilha nos cabelos e na curva do ombro da viúva. Ela está sentada, quieta, séria,

uma perna estendida, outra em ângulo. O sol brilha também em seu joelho. O sol

ama a viúva. Eu vejo a viúva.”. O grande espetáculo é a visão do corpo feminino

iluminado pelos raios do sol. O estranhamento é causado pela contradição da

viúva estar no espaço da praia – de alegria e divertimento – e não no espaço da

reclusão, como seria o esperado em período de luto.

Algumas considerações

O olhar de Rubem Braga registra, desse modo, as lembranças da realidade

cotidiana transformada em poesia. As reminiscências da infância, a visão do

corpo feminino e, principalmente, a concepção sobre o gênero são ricas fontes de

inspiração para o cronista e pretexto para construir um universo ficcional ,

fazendo da crônica um gênero literário.

O cronista toca o leitor pela simplicidade, pela identificação com cotidiano,

pois o leitor “aprende a ler na história “inventada” a sua própria história” (SÁ,

2002: 12). E, como destaca Sá,

“a pressa de viver desenvolve no cronista uma sensibilidade especial, que predispõe a captar com maior intensidade os sinais da vida que diariamente deixamos escapar. Sua tarefa, então, consiste em ser o nosso porta-voz, o intérprete aparelhado para nos devolver aquilo que a realidade não-gratificante sufocou: a consciência de que o lirismo no mundo de hoje não pode ser simples expressão de uma dor-de-cotovelo, mas acima de tudo um repensar constante pelas vias da emoção aliada à razão. Esse papel se resume no que chamamos de lirismo reflexivo” (2002: 12,13).

Braga nos apresenta esse lirismo reflexivo a todo momento, no olhos cheio

de poesia da Corretora do mar, ou no grande álamo da rua santiaguina, ou

mesmo na casa, onde escondemos nossos segredos.

Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. “Apresentação do problema”. In: A cultura popular na

Idade Média e no Renascimento. 4ª ed. Trad. Yara Frateschi. São Paulo/Brasília:

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DIÁLOGOS – Eliana Nagamini – Memória e metalinguagem nas crônicas de Rubem Braga

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BRAGA, Rubem. Ai de ti, Copacabana. Rio de Janeiro: Record, 2004.

______________. “Meu ideal seria escrever”, disponível em

http://www.releituras.com/rubembraga_meuideal.asp , acesso em 16 de março

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SÁ, Jorge de. A crônica. 6ª ed.São Paulo: Ática, 2002.

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DIÁLOGOS – Jayro Luna – A Simbologia Estelar e o Conceito de Signo em Macunaíma

A Simbologia Estelar e o Conceito de Signo em Macunaíma

Prof. Dr. Jayro Luna (Jairo Nogueira Luna) UPE/FACETEG

O livro Macunaíma de Mário de Andrade tem sido desde a sua publicação obra das mais acaloradas polêmicas e das criativas teses. O “herói sem nenhum caráter” tem levantando as mais intensas discussões acerca do conceito de cultura e de identidade nacional. Não é nosso objetivo aqui fazer um recenseamento dessas idéias colocadas já em livros e artigos, mas antes apresentar uma interpretação nova, original sob vários aspectos, cometendo o pecado da rapsódia num texto que se propõe de roupagem acadêmica, mas que no fundo é mais de natureza poética imaginativa e para alguns, mais céticos, pode parecer até ilusionista e delirante. Tal pecha se nos pode ser colocada, reconhecemos pelo modo como trataremos alguns elementos presentes nessa obra de Mário de Andrade, mas acreditamos que o que fazemos aqui é antes revitalizar uma discussão acerca da obra em questão, que acreditamos está presa já há alguns anos a alguns chavões metodológicos e analíticos acerca do entendimento da obra. De certa forma, propomos uma leitura de Macunaíma que se orienta por um princípio antropológico estrutural, mas cujo resultado final é a inserção do antropólogo na tribo dos tapanhumas de Mário de Andrade, participando iniciaticamente de um ritual, de conhecimento da cultura, ou melhor, da visão de cultura e de identidade nacional que ali se pretende mostrar, não mais como tese, mas como ritual. Nosso ponto de partida não será o nascimento de Macunaíma, objeto já de análises acerca dos aspectos simbólicos que seu estranho nascimento pode significar, mas da morte de sua mãe. Se partimos do pressuposto que a obra representa uma visão modernista da busca da identidade nacional, a mãe de Macunaíma é sua origem, filho de uma índia tapanhumas da Amazônia. Ao morrer, pelas mãos do próprio Macunaíma que a flecha confundindo-a com uma “viada. Tinha sido uma peça do Anhangá”. (C. II). Local de tal acontecimento está definindo no romance como depois que “atravessou o reino encantado da Pedra Bonita em Pernambuco e quando estava chegando na cidade de Santarém” (C.II). A mãe de Macunaíma não tem nome no romance, é só “mãe”, e não tem pai, uma vez que era “preto retinto e filho do medo da noite”. Assim, o nascimento

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do herói já é mitificado, nascido de mãe mortal e sem caráter de realeza ou de nobreza e de um pai misterioso, desconhecido e de caráter sobrenatural (assim, analogamente é o nascimento de Cristo, p.ex., e de várias entidades sagradas de crenças antigas e indígenas). Após ser morta num modo semelhante à morte de Lindóia em Uraguai de Basílio da Gama, a índia mãe é enterrada após um ritual em que se bebeu muita oloniti e se comeu bastante carimã com peixe, numa descrição mais ou menos fiel de um funeral indígena. “Madrugadinha pousaram o corpo da velha numa rede e foram enterrá-la por debaixo duma pedra no lugar chamado Pai da Tocandeira”. Oloniti é uma bebida alcoólica à base de milho, carimã e um produto resultante de raízes de mandiocas frescas colocadas par fermentar sob água, depois secadas ao fogo, dessas raízes pode-se produzir uma farinha que é chamada beiju. O lugar do sepultamento, depois da Pedra Bonita em Pernambuco é um lugar simbólico, mítico, criado por Mário de Andrade. A Pedra Bonita em Pernambuco é lembrada como referência ao culto sebastianista promovido por João Ferreira entre 1836 e 1838, de natureza fanático-religiosa que culminou no sacrifício de fiéis, cujo sangue serviu para “lavar” as pedras para purificação dos pecados, depois, o próprio João Ferreira foi sacrificado. Tal culto serviu de motivo histórico para que Ariano Suassuna desenvolve-se o seu Romance da Pedra do Reino. Também em Pernambuco, Pedra Bonita é o nome traduzido da praia de Itapoama, nome tupi. No Rio de Janeiro, Pedra Bonita se refere ao morro de quase 700 metros, próximo à Pedra da Gávea. Na Pedra Bonita é conhecida a inscrição de sete círculos quase concêntricos cuja origem ainda é discutida. A própria Pedra da Gávea é motivo de acalorada discussão acerca das inscrições que ao lado dela se encontram. Sustentam alguns mais visionários talvez, que na Pedra da Gávea estejam os restos de uma esfinge fenícia ou viking, devido às semelhanças antropomórficas e zoomórficas que ela sugere2. Assim, o termo “Pedra Bonita” se relaciona a um conjunto de elementos míticos e lendários acerca do passado do Brasil. O túmulo ainda fica, por outra referência, antes de se chegar à Santarém. Nesse caso não podemos deixar de citar as Sete Cidades, no Piauí, conhecido sítio por suas formações rochosas do Devoniano, com sugestões antropomórficas e zoomórficas, segundo estudos geológicos, naturais, bem como por um conjunto de inscrições rupestres com cerca de 6000 anos ou mais. Também no Piauí temos as inscrições rupestres no sítio de São Raimundo Nonato cuja interpretação tem desafiado algumas das teses científicas que buscam a datação da chegada do homem ao continente sulamericano. Na própria Amazônia, ainda podemos citar o caso da “Pedra Pintada de Roraima”, distante 140 km de Boa Vista em que também se encontram inscrições rupestres. Por fim, Santarém (PA) é um rico sítio arqueológico fonte de muitas peças de cerâmica no estilo Marajó e Cunani. Mas o mais significativo exemplo, creio, sejam os túmulos de Miracanguera, próximo ao sítio de Santarém. Em 1870, Barbosa Rodrigues descobriu, nesse local, urnas funerárias antropomórficas. Desse modo, o túmulo da mãe de Macunaíma, simbolicamente evoca um passado pré-histórico e desconhecido, causador ainda de polêmicas científicas e

2 Sobre essa questão sugiro os livros de CHAVES, Eduardo B. Mensagem dos Deuses: Para uma revisão da história do Brasil. Portugal, Amadora, Bertrand, 1977. Ou ainda, MAHIEU, Jacques de. Os Vikings no Brasil. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976.

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pseudo-científicas acerca da chegada e da origem do homem ao território brasileiro. Vejamos agora com mais atenção a inscrição desenhada por Maanape:

No lado direito da inscrição temos um desenho de algo semelhante a um inseto. Na astronomia dos índios taulipangue, Camaiuá, Alfa de Centauro é uma vespa. Ci, após subir aos céus, se transforma na estrela Beta de Centauro, que Mário de Andrade apresenta como os dois vaga-lumes que levaram Pauí-Pódole (Cruzeiro do Sul), o Pai do Mutum, aos céus. Observa o astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão3 que na mesma mitologia taulipangue, Cunavá, Beta de Centauro é uma planta trepadeira. Portanto, estrelas podem ser vistas pelos índios como insetos ou como flores, frutos ou plantas, além de animais mamíferos, aves e seres antropomorfos como faziam os gregos. De fato, comenta Ronaldo Rogério de Freitas Mourão que costumeiramente os índios viam a Via-Láctea como um espelho celeste das coisas da floresta e do Rio Amazonas. Em Macunaíma é Ci quem sobe aos céus e se transforma na Beta de Centauro, a mãe do herói, continua na terra, “A barriga da morta foi inchando foi inchando e no fim das chuvas tinha virado num cerro macio.”(C.II). A formiga tocandeira é utilizada pelos índios amazônicos numa cerimônia de passagem, de final da adolescência, em que o jovem deve resistir às picadas sem chorar. A morte da mãe do herói e seu assento ao pé do Pai da Tocandeira tem assim um significado de emancipação do herói, confirmado pelo final do capítulo, quando “Então Macunaíma deu a mão para Iriqui, Iriqui deu a mão pra Maanape, Maanape deu a mão pra Jiguê e os quatro partiram por esse mundo.”(C.II). A inscrição no epitáfio feita por Maanape tem, ao nosso ver, um sentido arqueoastronômico. Desenhos inscritos na pedra de Itaquatiara do Ingá (PB) foram estudados pelo arqueólogo Francisco de Faria, que identificou nas inscrições representações de constelações. A semelhança entre aqueles desenhos e o feito por Mário é convincente:

3 MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. Astronomia do Macunaíma. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1984.

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Constelações de Áries e Peixes (acima) e desenho respectivo na pedra de Itaquatiara do Ingá (PB), ao lado, constelação e desenho da constelação de Escorpião, também no Ingá. (Fonte: Francisco de Faria)

Comparativamente, o desenho de Mário sugere uma constelação. Mas qual? Se a Mãe de Macunaíma representa a floresta amazônica, o paraíso intocado pela civilização, o passado esquecido da chegada do homem ao continente, então podemos relacionar o epitáfio com a constelação de Cão Menor, que na bandeira do Brasil, que atualmente representa os estados de Mato Grosso, Amapá, Rondônia, Roraima e Tocantins (ao tempo de Mário, o estado de Tocantins ainda não existia). O Amazonas é representado pela estrela Prócion de Cão Menor e o Pará pela Spica, de Virgem. O Acre é representado por uma estrela de Hydra. Goiás, pela estrela Canopus de Carina. Quando Mário escreve Macunaíma muitos desses estados não existiam, ou eram territórios ou sequer configuravam uma divisão territorial (caso de Tocantis e Mato Grosso do Sul). Era representado na bandeira apenas os estados. Assim, estados da região Norte, Meio-Norte e Centro-Oeste, representando o conjunto da região Amazônica eram Pará (Spica, de Virgem), Amazonas (Procyon, de Cão Menor), Mato Grosso (Sírius, de Cão Maior), Goiás (Canopus, de Carina), Maranhão (Graffias, de Escorpião). Se ligarmos essas estrelas numa supra-constelação teremos o desenho de um arco que pode ser figurado pela parte inferior do glifo de Maanape, sendo o Amazonas a vespa / besouro acima do arco. Ao cento do arco, ergue-se uma estilização do Cruzeiro do Sul e ao lado direito, uma pedra com uma inscrição ao modo rúnico sugere um passado de visitas desconhecidas ao nosso território. No capítulo III (Ci, Mãe do Mato) temos o desenvolvimento do amor de Macunaíma por Ci, o nascimento do filho, a morte deste, e a subida (morte) de Ci aos céus, além do recebimento da muiraquitã dada por Ci a Macunaíma. A perda e a busca da Muiraquitã constituíram o principal tópico narrativo da obra. É de se observar que se Mário teve o cuidado em desenhar a inscrição (glifo) que Maanape fez no túmulo da mãe, não desenhou, porém, a muiraquitã,

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objeto, ao que parece, mais importante para a narrativa. Talvez, porque o objeto tem uma forma mais conhecida (a de uma rã) embora possa também ser confeccionado em outras formas. A morte do filho de Ci e a da mãe do herói têm em comum o fato de que eles não sobem ao céu, não existe a ascensão celestial, mas se a mãe do herói se transforma num cerro macio, o filho de Ci é a plantinha do guaraná. Nesse ponto Mário se utilizou da lenda amazônica acerca do surgimento do guaraná (os olhinhos do menino). Assim, podemos representar a morte da mãe do herói e do filho de Ci (ambos não têm nome próprio no livro) por um triângulo para baixo, cujos vértices representam o nascimento, a morte e a terra que os transforma: Nascimento Morte Nascimento Morte Terra Terra (cerro macio) (guaraná) Diferente é a situação da morte de Ci, mãe do Mato. Notemos ainda o sentido de “mãe” como epíteto de Ci. Após perder a mãe (genitora), Macunaíma numa espécie de solução edipiana, encontra o amor em outra “mãe”, a do mato, da Natureza virgem, exuberante e desnorteante:

“Quando ficou bem imóvel, Macunaíma se aproximou e brincou com a Mãe do Mato. Vieram então muitas jandaias, muitas araras vermelhas tuins coricas periquitos, muitos papagaios saudar Macunaíma, o novo imperador do Mato-Virgem” (C.III).

O romance entre o herói e Ci é marcado pela abundância de comida e bebida, pelos excessos da Natureza e pelo sexo intenso e prazeroso:

“E os dois brincavam que mais brincavam num deboche de ardor prodigioso” “E agora despertados inteiramente pelo gozo inventavam novas artes de brincar” “O herói vivia sossegado. Passava os dias marupiara na rede matando formigas taiocas, chupitando golinhos estalados de pajuari” “Porém nos dias de muito pajuari bebido, Ci encontrava o Imperador do Mato-Virgem largado por aí num porre mãe.”

A morte de Ci é apresentada por sua subida aos céus em que se transforma na estrela beta de Centauro.

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Céu (Beta, Centauro) Bebida Sexo A muiraquitã dada por Ci passa a ter um aspecto altamente simbólico do amor vivido entre os dois personagens. Uma muiraquitã típica é a representação de uma rã, em cor esverdeada, de jade.

Segundo a lenda, eram amuletos da sorte que as Amazonas entregavam aos amantes. Assim, uma muiraquitã é um símbolo no sentido semiótico do termo. Tomaremos por base a figura da muiraquitã ao lado para propor uma ressignificação deste símbolo. Notemos como as patas e o ventre/dorso da rã são geometrizados sugerindo formações triangulares: Tomaremos por base essas formações triangulares para

compor um conjunto de relações que dizem respeito ao modo como interpretaremos a participação da personagem Ci, Mãe do Mato em Macunaíma. Consideramos já duas formações triangulares já propostas, a do filho de Ci que relacionaremos ao triângulo central da muiraquitã,e o da própria Ci que corresponde ao conjunto formado dos quatro triângulos:

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Na figura acima, representamos de um lado a bebida que na relação amorosa dos dois personagens tem o efeito de causar prazer pela embriaguez. Supera-se o sentido natural de servir para saciar a sede ou como alimento e se destina efetivamente ao prazer que ela pode causar. Quanto ao sexo, deixa de ter uma função meramente reprodutiva e passa a ter um sentido prazeroso (“brincar”). Diferentemente de outras personagens femininas com quem Macunaíma brinca no livro (Sofará, a filha de Vei, a portuguesinha, etc.) aqui a relação se transforma em sentimento amoroso. O filho de Ci tem o sentido inverso dos triângulos da bebida e do sexo, apontando para a terra e para a reprodução. Com sua morte, o Ci não encontra mais prazer, mas o equilíbrio no sentido ascendente é restaurado com a transformação de Ci em estrela, indicando a sublimação do sentimento prazeroso e amoroso. Nossas triangulações devem ao leitor mais atento, fazê-lo lembrar dos triângulos do estruturalismo de Levi-Straus, se lembrarmos que o filho de Ci dá origem ao guaraná, fruta e bebida natural, que Macunaíma bebia muito pajuari, espécie de vinho de mandioca fermentada, e se relacionarmos isso ao modo como se conta na lenda das Amazonas de como o muiraquitã é feito: “Dizia-se que as Icamiabas realizavam uma festa anual dedicada à lua e durante a qual recebiam os índios Guacaris, com os quais se acasalavam. Depois do acasalamento, mergulhavam em um lago chamado Iaci-uaruá (Espelho da Lua) e iam buscar, no fundo, a matéria- prima com que moldavam os muiraquitãs, os quais, ao saírem da água, endureciam.” Temos uma situação que se justapõe ao triângulo do cru e do cozido de Levi-Straus: CRU (guaraná fruta / muiraquitã - pedra) COZIDO PODRE

(muiraquitã (pajuari / barro da / guaraná bebida) muiraquitã) O barro retirado do lado seria cozido semelhante à cerâmica? Algumas versões da lenda atestam essa possibilidade. Nesse caso teríamos a bebida (o pajuari) fruto da fermentação, o guaraná (bebida resultante do cozimento da

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massa da fruta e a fruta em seu estado natural)4 e a muiraquitã, que não é alimento, mas seu processo de produção englobaria a ação cultural de cozimento do barro. Macunaíma no final do capítulo XIV (Muiraquitã) recupera o amuleto, logo após a morte de Venceslau Pietro Pietra (Piaimã) e diz a seguinte frase: “Muiraquitã, muiraquitã de minha bela, vejo você mas não vejo ela!” Nessa frase de Macuaníma temos a própria definição simbólica do muiraquitã. O amuleto representa o amor que o herói tinha pela Ci, mas efetivamente não tem nenhuma semelhança com a heroína (o que lhe conferiria o status de ícone), nem indica ou aponta para ela (o que lhe garantiria a condição de índice), mas se liga à “mãe do mato” pelos acontecimentos do passado, não tendo nenhuma outra relação que essa, histórica, e tudo o mais, fruto de uma situação circunstancial e de convenção (de que, p.ex., ele traria sorte), daí ser um símbolo. A morte do gigante Piaimã merece um comentário nesse nosso trabalho. Ao contrário da mãe do herói e do filho da Ci, que são enterrados, voltam à terra, e dão origem a um cerro macio e ao guaraná, respectivamente, e ainda ao contrário da Ci e do próprio herói, como mais adiante comentaremos, que ascendem ao céu e se transformam em estrela; o gigante morre e é “enterrado” num tacho de macarronada, não sem antes tragicomicamente dizer que faltava queijo ao macarrão. O gigante Piaimã é apresentado como comedor de gente e que come a caça ainda crua:

“Maanape jogou um macuco morto. Piaimã engoliu o macuco e falou: -Foi gente. Me mostra quem era. Maanape jogou um macaco morto. Piaimã engoliu-o e continuou: -Foi gente. Me mostra quem era. (...) Maanape atirou guaribas jaós mutuns mutum-de-vargem mutum-de-fava mutuporanga urus urumutum, todas essas caças porém Piaimã engolia e tornava a pedir a gente que ele flechara.” (C.V).

Mas quando o Gigante e a Velha Ceiuci, sua companheira decidem cozinhar o corpo do herói “picado em vinte vezes trinta torresminhos [que] bubuiava na polenta fervendo” não o conseguem graças às artimanhas de “catimbozeiro” de Maanape. Após embriagar o casal de vilões com “cauim famoso chamado quiânti”, Maanape recolhe os pedacinhos, acrescenta o sangue que a sarará Cambgique havia sugado e “embrulhou todos os pedacinhos sangrando em folhas de bananeira, jogou o embrulho num sapiquá”. No cesto Maanape assoprou fumo e milagrosamente de dentro veio surgindo Macunaíma “meio pamonha, meio desmerecido, do meio das folhas”. Por fim, Maanape deu guaraná “pro mano e ele ficou taludo de vez”. Essa primeira morte de Macunaíma e seu renascimento por feitiço do irmão Maanape inverte a relação cru / cozido entre o herói e o vilão. Piaimã morre cozido na macarronada e Macunaíma renasce de um tacho como uma pamonha. Ambos foram transformados em comida, porém, o herói ressuscita com

4 As primeiras notícias sobre o Guaraná vieram de viajantes que, em séculos passados, percorrendo o interior do Brasil, tomaram conhecimento de uma pasta, endurecida em bastões pelo calor e pela fumaça, que os habitantes da região dissolviam em água para fazer uma bebida.

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a aspersão do fumo e o gigante morre “O gigante caiu na macarronada fervendo e subiu no ar um cheiro tão forte de couro cozido”. A companheira do gigante, a velha caipora Ceiuci em seu capítulo próprio (C. XI) empreende ao herói uma das mais fantásticas perseguições, atravessando estados, acidentes geográficos, lugares lendários e arqueológicos (“Passando no Ceará decifrou os letreiros indígenas do Aratanha; no Rio Grande do Norte, indo de Manguape pra Bacamartem passou na Pedra-Lavrada com tanta inscrição que dava um romance.”), encontrando figuras fantásticas, montando em cavalos mais fantásticos ainda. Macunaíma conseguira fugir das mãos de Ceiuci com a ajuda da filha mais nova do casal de vilões, como castigo ela foi deserdada e subiu aos céus se transformando num cometa: “A filha expulsa corre no céu, batendo pernas de deu em deu. É um cometa.” A velha Ceiuci foi deportada do país após queixa do herói à Polícia, mas ele acaba voltando numa “companhia lírica” graças à influência (política?) do gigante Piaimã. Outra personagem secundária que se transforma em astro celeste é a “piolhenta do Jiguê”, Suzi. Iriqui, no final do capítulo XV (A Pacuera do Oibé) se transforma em estrela, assim como as “canindés amarelinhas também viraram estrelas. É o setestrelo.” Pauí-Podole se contrapõe ao “símbolo” do Cruzeiro do Sul. Macunaíma narra uma história que se contrapõe ao que um mulato da maior mulataria [que] trepou numa estátua e principiou um discurso entusiasmado explicando para Macunaíma o que o dia do Cruzeiro”. Uma lenda indígena tem para o herói significado mais verdadeiro que o símbolo astronômico da cultura branca (a ironia do episódio é que quem defende esse símbolo é um mulato). Esses e outros elementos dão a Macunaíma uma riqueza de aspectos astronômicos que permitem uma leitura abordando apenas esses elementos. A mitologia celeste indígena vai se contrapondo aos conceitos astronômicos da ciência, conferindo sentido a um saber original, mas desprestigiado da cultura indígena. O herói sem nenhum caráter, o é também pela ausência de características culturalizadas do europeu, antes, Macunaíma vai se contrapondo, ou quando não, se adaptando ao meio urbano, utilizando as máquinas da cidade, suas ruas, estátuas e monumentos, construções com o mesmo desembaraço com que vivia e utilizava os recursos da floresta. O desaparecimento dos irmãos de Macunaíma se dá no capítulo XVI (Uraricoera). Jiguê, ferido por picada de sucuri, que Macunaíma havia transformado num falso anzol, morre da ferida que crescia como uma lepra: “Veneno virou numa ferida leprosa e principiou comendo Jiguê.” Transformado numa espécie de fantasma leproso, Jiguê passa a assombrar o herói, este consegue se livrar da lepra após passar “a lepra em sete outras pessoas e ficou são”. A sombra leprosa do Jiguê não conseguindo voltar de onde viera, por causa da escuridão da noite, pede “foguinho” para a princesa, depois para Maanape. Ambos são engolidos pela sombra e desaparecem, quando então surge Capei, a lua, aparece, salvando o herói da sombra fantasmagórica. Notemos que Jiguê e Maanape desaparecem numa “sombra”, na escuridão. Nem foram enterrados, nem subiram aos céus, mas foram engolidos pela sombra. Lembremos que os três irmãos se banharam na marca do pezão do Sumé. Macunaíma que era negro, ao banhar-se inteiro na poça d’água, ficou “branco louro de olhos azuizinhos” (C. V); Jiguê também lá se banhou, mas como a água já estava suja da “negrura do herói” e por isso ficou “da cor do bronze novo”.

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Maanape que foi por último e só conseguiu molhar as palmas dos pés e das mãos, ficando “negro bom filho da tribo dos Tapanhumas.” Assim, Jiguê é moreno, mestiço, ao passo que Maanape era negro. Ao desaparecerem no capítulo XVI (Uraricoera) na sombra temos uma alegoria. Mário de Andrade nos mostra que a cultura afro-brasileira tem sido uma sombra na cultura brasileira, que tem desde o Neoclássico, passando pelo Romantismo, trabalhado o índio como herói, mas o negro - salvo algumas exceções - tem sido marginalizado na conceituação heróica da literatura. Evidentemente causas ideológicas, políticas e econômicas explicam essa situação. O índio, quase exterminado, martirizado, excluído da linha produtiva econômica, era a figura que melhor se prestava a heroicização romântica, tendo em vista ainda sua origem nativa, ao passo que o negro - estrangeiro como o colonizador - mas inserido como mão de obra fundamental da economia dos séculos XVIII e XIX - só podia ser também alijado no imaginário literário como forma de garantia de manutenção do sistema, em que pese os trabalhos da geração abolicionista do final do período romântico como Castro Alves, Tobias Barreto, ou eventuais destaques de escritores negros como Luiz Gama ou Cruz e Sousa. Machado de Assis, Lima Barreto e Mário de Andrade - este, posteriormente - mulatos, já representaram um momento inicial de fundação e reconhecimento do negro na cultura nacional.

Se a muiraquitã é uma pedra que é um símbolo, Macunaíma se recusa a se tornar também um símbolo em pedra: “Não Vim ao Mundo Para Ser Pedra” escreve Macunaíma numa laje “que já fora jaboti num tempo muito dantes”.

Macunaíma foi transformado pelo Pauí-Pódole em uma constelação, na Ursa Maior. Para ser transformado numa constelação ele subiu aos céus com uma gaiola, galo, galinha, revólver e relógio, capenga, sem uma perna e sem a muiraquitã.

A Ursa Maior é uma constelação que pertence ao hemisfério Norte e é muito grande, um conjunto com várias estrelas e como fica grande parte da noite, próxima à linha do horizonte, no geral, não é vista inteira, mas sim, com mais destaque a parte chamada “Arado”, que num certo sentido, pode parecer mesmo uma figura sem uma perna.

Também o fato de ser uma constelação do hemisfério Norte sugere que Macunaíma após sua subida aos céus devesse ser visto pela Europa, pela América do Norte e pela Ásia, seria o simbolicamente o reconhecimento da identidade nacional pelos outros. Nesse aspecto, se Macunaíma / Ursa Maior é a imagem do Brasil no exterior, para Mário, o Brasil é como um herói manco, sem uma perna, e uma gaiola cheia de badulaques, embora imensa a constelação, uma das maiores do céu, ainda se lhe cabe a pecha de gigante adormecido, uma ursa hibernando. Acrescente-se que o sentido da frase (“não vim ao mundo para ser pedra”) de Macunaíma, tem uma inversão. O fato de dizer que não quer ser pedra, também indica que o herói ainda não é um símbolo, ou não era até a publicação do romance (sua subida aos céus). As constelações no céu têm em primeiro aspecto um sentido icônico, uma vez que é na base da semelhança com elementos da terra que são denominadas: peixes, áries, escorpião, vela, ursa, cão, etc... O muiraquitã, por sua vez, tinha um aspecto simbólico, é como se faltasse algo ainda a Macunaíma para ser pedra, e isso é com a cultura do Brasil.

Por fim, observemos “Vei, a Sol”, que salva o herói que estava ilhado com um urubu jogando fezes sobre sua cabeça e oferece uma das três filhas para casamento, desde que se mostrasse fiel: “O dote que dou pra ti é Oropa França e

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Bahia. Mas porém você tem de ser fiel e não andar assim brincando com as outras cunhãs por aí” (C.VIII).

O dote oferecido pode ser interpretado como um caminho histórico que o Brasil podia seguir, aproximando-se da cultura francesa e valorizando também a cultura afro-brasileira bahiana, ou até, a cultura sertaneja. Porém, quando as três filhas e Vei saíram a passear e deixaram Macunaíma só na jangada de Vei, este acabou se “brincando” com uma portuguesa bonita que passava por ali. As filhas de Vei se zangaram e Vei expulsou o herói da jangada. Assim, o Brasil se voltava para a influência histórica de Portugal, recusando as ligações com outras nações (no capítulo também se faz referência ao período de dominação holandesa, quando o herói na ilha não encontrou “a correntinha encantada de prata que indica pro escolhido, tesouro de holandês”).

Notemos que Vei é uma figura feminina a representar o Sol, assim como Capei, a lua. A feminilidade do Sol tem fundamentação nas personagens míticas tupis Guaraci e Jaci. Porém, é de se observar que Macunaíma não é simplesmente uma rapsódia de lendas indígenas e caboclas. Antes, o “herói sem nenhum caráter” se refere a uma imagem conceitual de Brasil visto pela ótica modernista marioandradina. Assim, na nossa cultura o Sol é símbolo de masculinidade, de vigor, de força. Essa inversão da sexualidade do Sol na obra deve ser vista paralelamente a outros dois aspectos, ao menos, um é formado pelas referências ao planeta Vênus. Este, enquanto designado Caiuanogue ou Papaceia é feminino, mas enquanto Tainá-Cã é masculino também: “Relumeava lá no campo vasto do céu e a filha mais velha do morubixaba Zozoiaça da tribo carajá, solteirona chamada Imaerô falou assim: - Pai, Tainá-Cã relumeia tão bonito que eu quero me amulherar com ele” (C. XVII). No capítulo VI ( A Francesa e o Gigante), agora é o herói que se traveste de francesa e deixa o gigante apaixonado: “numa francesa tão linda” (...) “A francesa sentou numa rede e fazendo gestos tão graciosos” (...) “O gigante estava mas era querendo brincar com a francesa”.

A inversão da sexualidade das personagens ainda se completa com a forma expansiva e dominadora com que Ci, a mãe do mato se relaciona (brinca) com Macunaíma: “Então para animá-lo Ci empregava o estratagema sublime. Buscava no mato a folhagem do fogo da urtiga e sapecava com ela uma coça coçadeira no chuí do herói e na malachítchi dela.” Ou “Então a Mãe do Mato pegava na txara e cotucava o companheiro.” A sexualidade é tratada com grande liberdade tanto pelo herói como por Ci, e na busca do prazer “inventavam artes novas de brincar”. Se Macunaíma é o “herói da nossa gente”, a sexualidade do brasileiro era para Mário de Andrade uma característica que parecia marcada por um comportamento mais livre ou libertino (conforme o ponto de vista), associado ainda à exuberância da Natureza e do clima. Isso reforça o modo como representamos as triangulações na ressignificação do símbolo muiraquitã, que tem como um dos triângulos, o sexo, um outro é o prazer da bebida e da comida, completando-se assim de forma dionisíaca a imagem desse “herói da nossa gente”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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DIÁLOGOS – Jayro Luna – A Simbologia estelar e o conceito de signo em Macunaíma

ANDRADE, Mário de. Macunaíma. São Paulo, Vila Rica, 2004. FARIA, Francisco Carlos Pessoa. Os Astrônomos Pré-Históricos do Ingá. Funasa, 1987. LEVI-STRAUSS. O Cruz e o Cozido – Mitológicas 1. São Paulo, Cosac & Naify, 2005.

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DIÁLOGOS – Adjair Alves - Teorias de “poder” na relação entre indivíduos e/ou instituições

Teorias de “poder” na relação entre indivíduos e/ou instituições no processo de organização social: um diálogo entre Foucault, Balandier e Bourdieu.

Adjair Alves 5

Resumo Compreender as relações de poder na contemporaneidade constitui para as ciências sociais uma exigência, num mundo em que as relações são multifacetadas, se dando nos mais diferentes níveis da organização social. O que pretendemos fazer no presente texto é discutir como estas realidades se organizam e se relacionam seguindo a trajetória teórica de três nomes significativos das ciências sociais: Foucault, Balandier e Bourdieu. Analisar como estas realidades se apresenta na construção teórica destes autores possibilitará uma aproximação, diga-se, não muito fácil de se estabelecer, com o entendimento da forma como as relações de poder na contemporaneidade são efetivadas. Evidentemente que, levando em consideração a complexidade da questão, o que pretendemos aqui é apenas um ensaio, digamos; inconcluso, visto que não temos a última palavra sobre a questão. Palavras-chave: poder, arqueologia, genealogia, habitus, dinâmica social.

Introdução

Os conceitos de cultura, organização e estrutura são caros, as

Ciências Sociais, pela importância que os mesmo possuem como possibilidade de

interpretação e/ou compreensão das sociedades humanas, objeto de estudo

destas ciências. É da forma como entendemos a relação entre estas instâncias,

que podemos compreender ou formular as teorias de “poder” na relação entre

indivíduos e/ou instituições no processo de organização social. Na tradição das

Ciências Sociais, o poder tem sido analisado, não apenas como uma instância

macro, mas também nos micro processos. E, é aí que se tem erigido explicações

5 Filósofo e Antropólogo – Mestre e Doutorando do PPGA/UFPE. Professor de Filosofia e Antropologia da Universidade de Pernambuco – FACETEG (Faculdade de Ciências, Educação e Tecnologia de Garanhuns).

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razoáveis, para se entender como essa instância social te alcançado patamares de

sua reprodução social. Foucault, Balandier e Bourdieu oferecem três

possibilidades de interpretação do poder que poderão ser útil ao seu

entendimento.

1. Michel Foucault, e o papel da arqueologia como instância desmistificadora

dos saberes e instituições.

Três obras são significativas para se compreender o trajeto metodológico e

os objetivos da arqueologia dos saberes construída por Michel Foucault. São elas:

História da loucura, Nascimento da clinica e, As palavras e as coisas.

Alguns instrumentos demarcam a unidade de pensamento, tais como:

o conceito de saber, o estabelecimento das descontinuidades, os critérios para

datação de períodos e suas regras de transformação, o projeto de inter-relações

conceituais, a articulação dos saberes com a estrutura social, a crítica da idéia de

progresso em história das ciências. Para nós a forma como Foucault compreende

a “articulação entre saberes e a estrutura social” é uma peça chave, porque ela

assinala para sua compreensão do poder.

A “arqueologia” busca estabelecer a constituição dos saberes

privilegiando as inter-relações discursivas e suas articulações com as

instituições. Objetivava responder como os saberes apareciam e se

transformavam. Essa análise dos saberes tem como finalidade situá-los como

peça de relações de poder ou incluindo-o em um dispositivo político, chamada de

genealogia.

Numa perspectiva genealógica – o termo é nietzschiano – o homem

aparece como sujeito e objeto do conhecimento, mas este se constitui como tal à

medida que vai se articulando como instância de poder. Não é assim qualquer

conhecimento que se articula. O propósito da arqueologia dos saberes é construir

as estruturas deste saber, de como ele vai se constituindo como tal. Assim em

Foucault, não há propriamente uma “teoria geral do poder”. Ou seja, suas

análises não consideram o poder como uma realidade que possua uma natureza,

uma essência que ele procuraria definir por suas características universais

(MACHADO. Apud, FOUCAULT, 1979: x). O poder não é uma coisa, mas uma

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prática social constituída historicamente. É uma prática múltipla, dispersa e

descontínua, não subordinada a um conceito universal.

O que é uma teoria na perspectiva foucaultiana? Primeiramente, toda

teoria é provisória, acidental, dependente de um estado de desenvolvimento da

pesquisa que aceita seus limites, seu estado inacabado, sua parcialidade,

formulando conceitos que clarificam os dados. Não é objetivo da arqueologia, nem

da genealogia fundar conceitos, teorias ou sistemas, mas realizar análises

fragmentárias e transformáveis. Para Foucault, o Estado não é sinônimo de

Poder, embora ele se situe, enquanto instituição, como o centro do poder. O poder

é uma instância que se articula nas micro-relações locais, ele está circunscrito a

uma pequena área. “O que aparece como evidente é a existência de formas de

exercício do poder diferentes do Estado, a ele articuladas de maneiras variadas,

mas indispensáveis inclusive à sua sustentação e atuação eficaz” (id. p. x).

O poder intervem materialmente, atingindo a realidade mais concreta

dos indivíduos, o seu corpo, se caracterizando como um micro-poder. A micro-

física significa um deslocamento do espaço de análise, quanto do nível em que

esta se efetua (p. xii). “Realidade distintas, mecanismos heterogêneos, esses dois

tipos específicos de poder se articulam e obedecem a um sistema de subordinação

que não pode ser traçado sem que se leve em consideração a situação concreta e o

tipo singular de intervenção” (p. xii). Mas os poderes periféricos e moleculares não

foram confiscados pelo Estado. Não são necessariamente criados pelo Estado,

nem são reduzidos a uma manifestação do Estado. Eles se exercem em pontos

diferentes da rede social, integrados ou não ao Estado. Os poderes não estão

localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Eles funcionam

como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa.

O Poder, a rigor, não existe, o que há são práticas ou relações de

poder. Como onde há poder, há resistências, o que existe são pontos móveis de

resistência, espalhados na estrutura social e não propriamente lugar de

resistência. O Poder não é constituído como instância apenas repressiva,

negativa, mas também e principalmente como ação produtiva, transformadora.

Assim as Ciências são vistas como frutos de uma relação de poder. Todo saber é

político. É aí que se sustenta a idéia de que saber é poder.

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O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa somente como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considera-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir. (FOUCAULT, 1979: 8).

O Poder está relacionado à produção de saberes e por extensão, à verdade.

Mas esta, não é o conjunto das coisas verdadeiras a ser descobertas ou aceitas,

mas o conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e

se atribuem ao verdadeiro, efeitos específicos de poder (p. 13).

Foucault não assinala uma defesa da verdade, mas um “combate” em

torno do estatuto da verdade e do seu papel político e econômico. A verdade

possui um “regime”, um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a

lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados. Assim ela está

vinculada a sistema de poder. Trata-se então de desvincular o Poder, da Verdade,

das formas de hegemonias (sociais, econômicas e culturais), no interior das quais

ela funciona, e não de tornar as pessoas conscientes. A questão não é a

consciência, a ideologia, a alienação, mas a própria verdade.

Daí a necessidade de se construir a genealogia da verdade. A

genealogia é histórica, marca a singularidade dos acontecimentos, espreita-os lá

onde menos se esperava e naquilo que é tido como não possuindo história. Ela

exige a minúcia do saber, paciência, um grande número de materiais

acumulados. Ela deve construir seus “monumentos ciclópicos”.

Para Foucault, o saber do intelectual constitui um sistema de poder. “A

idéia de que eles são agentes da ‘consciência’ e do ‘discurso’, que ‘barra’, ‘proíbe’ e

invalida o discurso e o saber das massas.” Aí está a necessidade de se fazer o que

Deleuze chama de ‘revezamento’, que é ouvir o que os pesquisandos têm a dizer

sobre eles. No estudo dos asilos psiquiátricos Foucault sentiu necessidade de

ouvir os reclusos falarem de si próprios.

É isto que Deleuze chamou de revezamento (p.70). Para Foucault, a

teoria não é mais a expressão de uma prática. O papel do teórico é lutar contra a

tirania das representações impostas pelo sistema de poder, o regime de verdade

(p. 71). Segundo Deleuze (In. FOUCAULT, 1979: 71) “uma teoria é como uma

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caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... é preciso que sirva, é

preciso que funcione.” A teoria é um instrumento de combate.

2. Pierre Bourdieu, o conceito de “habitus” e a reprodução das estruturas

sociais.

Um conceito valioso para se entender a teoria bourdieusiana do poder é o

conceito de “hábitus”. Para Bourdieu, as práticas sociais, assim como as

representações, são geradas por um sistema de disposições duráveis construídas

em acordo com o meio social dos sujeitos e são predispostas a funcionar como

suas estruturas estruturantes (BOURDIEU, 1983: 60 - 81).

Segundo Bourdieu, a estrutura das práticas sociais não é um processo

que se faz mecanicamente, de fora para dentro, de acordo com as condições

objetivas presentes em determinado espaço ou situação social. Não seria, por

outro lado, um processo conduzido de forma autônoma, consciente e deliberado

pelos sujeitos individuais.

É preciso abandonar todas as teorias que tornam explicita ou implicitamente a prática como uma reação mecânica, diretamente determinada pelas condições antecedente redutível ao funcionamento mecânico de esquemas preestabelecidos, ‘modelos’, ‘normas’ ou ‘papéis’, que deveríamos, aliás, supor que são em número infinito, como o são as configurações fortuitas dos estímulos capazes de desencadeá-los.6

As práticas sociais apresentam propriedades típicas de posição social

de quem às produz, porque a própria subjetividade dos indivíduos, sua forma de

perceber e apreciar o mundo, suas preferências, seus gostos, suas aspirações,

estariam previamente estruturadas em relações ao momento da ação. Mas esta

subjetividade é estruturada internamente pelas experiências vivenciadas pelos

sujeitos em função de sua posição nas estruturas sociais. Estas constituem uma

espécie de “matriz de percepções e apreciações”, habitus, cuja função é orientar as

ações dos sujeitos nas situações a serem vivenciadas. O hábitus é formado por

um sistema de disposições gerais que precisariam ser adaptadas pelo sujeito a

6 Id. p.64.

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cada conjuntura específica de ação. Esta dimensão flexível do hábitus, realçado

por Bourdieu, impede que este venha ter uma espécie de recaída no objetivismo,

ou no determinismo objetivista. Sendo assim, fruto da incorporação da estrutura

e posição, sociais de origem, no interior do próprio sujeito, esta estrutura, uma

vez incorporada e posta em ação, tornando-se estruturadora das novas ações e

representações dos sujeitos, em situações que diferem, em alguma medida, das

situações nas quais o hábitus foi formado.

O conceito de hábitus desempenha o papel de elo articulador entre três

dimensões fundamentais de análise: a estruturas das posições objetivas, a

subjetividade dos indivíduos e as situações concretas de ação. E ainda, a posição

que cada sujeito ocupa na estrutura das relações objetivas propicia um conjunto

de vivências típicas que se consolidaria na forma de hábitus adequada a sua

posição social. o sujeito agirá na sociedade em função deste hábitus, como um

membro típico de um grupo social ocupando a posição que lhe compete na

estrutura social, colaborando para reproduzir as propriedades do seu grupo

social de origem e as estruturas na qual foi formado.

É deste modo que a estrutura de poder e a dominação econômica e,

sobretudo, simbólica é reproduzida sem que o indivíduo tenha consciência. As

marcas de sua posição social, os símbolos que a distinguem e que a situam nas

hierarquias das posições sociais, as estratégias de ação e de reprodução que lhes

são típicas, as crenças, os gostos, as preferências que a caracterizam, em resumo,

as propriedades correspondentes a uma posição social específica são

incorporadas pelos sujeitos tornando-se parte da sua própria natureza.

... só podemos, portanto, explicar essas práticas se colocarmos

em relação a estrutura objetiva que define as condições sociais de

produção do hábitus (que engendrou essa prática) com as

condições do exercício desse habitus, isto é, com a conjuntura

que, salvo transformação radical, representa um estado particular

dessa estrutura. Se o hábitus pode funcionar enquanto operador

que efetua praticamente a ação de colocar em relação esses dois

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sistemas de relação na e pela produção da prática, é porque ele é

história feita natureza, isto é, negada enquanto tal porque

realizada numa segunda natureza.

A subjetividade dos indivíduos, na perspectiva bourdieusiana, é algo

socialmente estruturada, isto é, se configura em consonância com sua posição na

estrutura social. por sua vez, o objetivismo é também superado visto que as

estruturas sociais não produzem comportamento mecanicamente, dado que o

sujeito incorpora um conjunto de disposições que o orientaria a agir nas mais

diversas situações sociais.

‘... Em cada um de nós, em proporções variáveis, há o homem de ontem; é o mesmo homem de ontem que, pela força das coisas, está predominante em nós, posto que o presente não é senão pouca coisa comparado a esse longo passado no curso do qual nos formamos e de onde resultamos. Somente que, esse homem do passado, nós não o sentimos, porque ele está arraigado em nós; ele forma a parte inconsciente de nós mesmos. Em conseqüência, somos levados a não tê-lo em conta, tampouco as suas exigências legítimas. Ao contrário, as aquisições mais recentes da civilização, temos delas um vivo sentimento porque, sendo recentes, não tiveram ainda tempo de se organizar no inconsciente.’ 7

A análise da realidade social em Bourdieu está relacionada ao papel

atribuído por ele à dimensão simbólica ou cultural na produção ou reprodução da

vida social. neste ponto é preciso verificar como no pensamento bourdieusiano,

três sócio-filosofias, são “conciliadas”.

A primeira, está associada a Durkheim e a noção de sistemas

simbólicos como estruturas estruturantes, como elementos que organizam o

conhecimento ou percepção que os indivíduos têm da realidade. A segunda, se

refere ao estruturalismo defendido por Lèvi-Strauss, para o qual os sistemas

simbólicos são estruturas estruturadas, isto é, realidades organizadas em função

de uma estrutura subjacente que o cientista social deve identificar. E a terceira,

tradição, representada pelo marxismo, que compreende os sistemas simbólicos,

7 DURKHEIM, E. L’évolution pédagogique en France. Apud. BOURDIEU. Pierre. Op. Cit. p. 66.

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como instrumentos de dominação ideológica, cuja função é a legitimação do

poder da classe dominante socialmente.

A síntese bourdieusiana busca articular estas três tradições

sustentando a idéia de que os sistemas simbólicos são estruturas estruturantes,

porque são primeiramente estruturadas. Ou seja, a organização lógica, interna,

das produções simbólicas, as capacita a organizar a percepção dos indivíduos,

propiciando a comunicação entre eles. E é por esta razão que elas (as produções

simbólicas) estruturam as ações dos atores sociais na direção da reprodução das

estruturas de poder e dominação social, isto é, as diferenciações e hierarquias

presentes na sociedade. Mas esta característica das produções simbólicas, não

reduz seu papel a um mero instrumento de manipulação e dominação política

(ideologia). A síntese bourdieusiana salienta as funções de “comunicação e de

conhecimento” dessas produções. Os sistemas simbólicos são sistemas de

percepção, pensamento e comunicação, e não uma ilusão idealista “totalidades

auto-suficientes e autogeradas, passiveis de uma análise pura e puramente

interna.” (BOURDIEU, 1999:13). Para Bourdieu, as produções simbólicas

caracterizam-se por sua relação com os “interesses de classes ou das frações de

classe que elas exprimem”, mas também, aos “interesses específicos daqueles que

as produzem e à lógica específica do campo de produção.” (Idem).

Bourdieu, portanto, situa-se entre as perspectivas conspiratórias, que

concebem as produções simbólicas como artefatos intencionalmente criados com

vistas à dominação ideológica, e as perspectivas idealistas, que negam ou

desconhecem o papel das construções simbólicas na manutenção e legitimação

das estruturas de dominação. A perspectiva bourdieusiana sinaliza para a

compreensão de que as produções simbólicas participam da reprodução das

estruturas de dominação social, porém, fazem-no de uma forma indireta e à

primeira vista, irreconhecível.

Os sistemas simbólicos, segundo Bourdieu, podem ser “produzidos e,

ao mesmo tempo, apropriados pelo conjunto do grupo ou, ao contrário, produzido

por um corpo de especialistas e, mais precisamente, por um campo de produção e

circulação relativamente autônomo”. (id. p.12.)

A noção de campo, diz respeito aos espaços de posições sociais nos

quais são produzidos, consumidos e classificados, determinados bens sociais.

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DIÁLOGOS – Adjair Alves - Teorias de “poder” na relação entre indivíduos e/ou instituições

(BOURDIEU, 1983: 89). Na medida em que a divisão social do trabalho vai se

complexificando, certos domínios de atividade se tornam relativamente

autônomos. No interior desses setores ou campos da realidade social, os

indivíduos envolvidos passam, então, a lutar pelo controle da produção e,

sobretudo, pelo direito de legitimamente classificarem e hierarquizarem os bens

produzidos.

Cada campo de produção simbólica, segundo Bourdieu, constitui palco

de disputa, entre dominantes e pretendentes, relativas aos critérios de

classificação e hierarquização dos bens simbólicos produzidos e, indiretamente,

das pessoas e instituições que a produzem. Esta luta estende-se aos critérios de

classificação cultural. Assim se considera, os padrões superiores e/ou inferiores

da cultura, distingue-se entre alta e baixa cultura, entre religiosidade e

superstições, conhecimento científico e crenças populares, entre língua culta e

fala popular.

Os indivíduos e instituições que representam as formas dominantes da

cultura buscam manter sua posição privilegiada, apresentando seus bens

culturais como superiores aos demais. É o que Bourdieu chama de “violência

simbólica”. Aos dominados sobra a alternativa de reconhecer o status da

dominação ou reagir. Esta posição é, no entanto, um ponto crítico no pensamento

bourdieusiano, que se mostra cético em virtude de que as crenças, valores e

tradições de cultura popular não constituem um sistema simbólico autônomo

coerente, capaz de contrapor a cultura dominante, de forma efetiva.

O arbitrário cultural prevaleceria em virtude de que os indivíduos não

perceberiam que os bens culturais tidos como superiores ocupam esta posição

por terem sido impostos historicamente pelos grupos dominantes. Esta

percepção, “natural” da dominação ocorre entre dominados e dominantes, em

função da forma como se estrutura a dominação.

O capital cultural constitui-se do poder que o indivíduo adquire ao

tomar posse da produção e apreciação ou consumo de bens culturais socialmente

dominante. Assim se diz que o individuo que dominar um padrão de formação

escolar dominante, adquire um capital cultural dominante.

A hierarquia entre bens simbólicos seria, segundo Bourdieu, uma base

importante para a hierarquização dos indivíduos e grupos sociais. assim os

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indivíduos capazes de produzir, reconhecer, apreciar e consumir bens culturais

tidos como superiores teriam maiores facilidades para alcançar ou se manter nas

posições mais altas da estrutura social. as hierarquias acabam por reforçar a

estrutura de dominação social na medida em que restringe a mobilidade social

dos indivíduos.

A legitimação das estruturas de dominação social atribuído aos

sistemas simbólicos tem papel fundamental no processo de reprodução, que se dá

de forma eufemizada e dissimulada, das hierarquias e diferenças entre as classes

e frações de classe. Para Bourdieu, os indivíduos tenderiam à naturalização do

padrão hierárquico da cultura por reconhecê-la como superior, não percebendo a

relação de dominação de classe. É um processo de transfiguração das hierarquias

sociais em hierarquias simbólicas que permite a legitimação ou justificação das

diferenças e hierarquias sociais.

Há uma correspondência, segundo Bourdieu, entre formas culturais e

classes sociais que não são percebidas pelos agentes sociais, que tenderiam a ver

como hierarquias culturais, o que são, de fato, relações de dominações. (Na fala

de Black-out sobre a “ostentação da periferia” está presente tanto a percepção

desta relação de dominação cultural estabelecida através do sistema simbólico,

como a dissimulação do jovem que reproduz a estrutura por não perceber esta

relação de dominação. Assim o jovem da periferia quer ter, possuir o mesmo status,

e vai buscar no crime esta possibilidade.)

Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são produto da dominação ou, em outros termos, seus pensamentos e suas percepções estão estruturados em conformidade com as estruturas mesmas da relação da dominação que lhes é imposta, seus atos de conhecimento são inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão. Porém, por mais exata que seja a correspondência entre as realidades, ou os processos de mundo natural, e os princípios de visão e de divisão que lhes são aplicados, há sempre lugar para uma luta cognitiva a propósito do sentido das coisas do mundo... A indeterminação parcial de certos objetos autoriza, de fato, interpretações antagônicas, oferecendo aos dominados uma possibilidade de resistência contra o efeito de imposição simbólica. (BOURDIEU. 2005:22)

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Os atores sociais ao se verem inferiorizados pela dominação simbólica,

sustentada pela estrutura social que a perpetua, estruturam reações à violência

do sistema e seus agentes, isto é, àqueles que dão sustentação à dominação.

Estas reações são, muitas vezes reproduções das ações do sistema canalizadas

em práticas delituosas contra o próprio sistema e seus agentes. Práticas que nem

sempre são racionalizadas, isto é, elas não dependem do controle da consciência

para serem superadas.

O capital simbólico advindo desta relação de poder, concentra-se em

favor das forças de dominação, que o reproduz, de modo a perpetuá-lo em seu

poder. As relações de exploração e exclusão por que passam são ratificadas e

ampliadas de tal modo, pelo sistema mítico-ritual, a ponto de torná-lo o princípio

de divisão de todo o universo não sendo mais, para citar BOURDIEU, (2005:55),

que a dessimetria fundamental, a do sujeito e do objeto, do agente e do

instrumento, instaurada na relação que estes jovens têm com o sistema, a

sociedade em geral, no terreno das trocas simbólicas, das relações de produção e

reprodução do capital simbólico, cujo dispositivo central é o mercado da violência,

que está na base de toda ordem social.

Segundo BOURDIEU (2003:17, 8), a experiência apreende o mundo

social e suas arbitrárias divisões como naturais, evidentes, e adquire, assim todo

reconhecimento de legitimação. É por não perceber os mecanismos profundos,

tais como os que fundamentam a concordância entre as estruturas cognitivas e

as estruturas sociais, e como tal, a experiência dóxica do mundo social, que os

efeitos simbólicos de legitimação são imputados a fatores que decorrem da ordem

da representação mais ou menos consciente e intencional “ideologia”, “discurso”,

etc.

Libertar-se desse julgo de dominação, não é apenas uma questão de

consciência, uma vez que este depende, em muito, das estruturas objetivas da

realidade. Portanto, reproduzir a estrutura torna-se quase um imperativo a estes

jovens (BOURDIEU, 2003: 52, 3). A consciência não é um dado meramente

descrito pó um ‘viés’ intelectualista e escolástico, que nos leva a imaginar que a

libertação ou transformação se dê por um “efeito automático” de uma tomada de

consciência. É preciso considerar as estruturas do campo. “As disposições

‘hábitus’ são inseparáveis das estruturas que as produzem e as reproduzem e, em

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particular, de toda a estrutura das atividades técnico-rituais, que encontra seu

fundamento último na estrutura de bens simbólicos” (id. 55).

O capital simbólico ao (re)produzir os agentes (re)produz as categorias

que organizam o mundo social. (re)produz o jogo e seus lances, (re)produz as

condições de acesso à reprodução social. “As disposições (hábitus) são

inseparáveis das estruturas que as produzem e as reproduzem, tanto nos

dominadores como nos dominados, e em particular de toda a estrutura das

atividades técnico-rituais, que encontra seu fundamento último na estrutura do

mercado de bens simbólicos.” (p.55).

Tanto dominados como dominadores contribuem para reproduzir a

estrutura de dominação. Ambos são “prisioneiros, sem se aperceberem, vítimas

da representação dominante.” (p. 63) “A estrutura impõe suas pressões aos dois

termos da relação de dominação, portanto aos próprios dominantes, que podem

disto se beneficiar, por serem, como diz Marx ‘dominados por sua dominação’.”

(p. 85). A dominação não é, no entanto, algo que exige no mínimo que se

justifique ou se defenda, ou algo de que é preciso se defender ou se justificar. (P.

106).

3. Georges Balandier e a naturalização das relações de poder.

Em seu livro, “Antro-pológicas”, BALANDIER (1976: 12) estabelecendo uma

crítica quanto à forma como as Ciências Sociais construíram seus objetos de

estudos, ou o conhecimento sobre eles. Afirma que, estas ciências, oscilam entre;

“limitar o empreendimento científico à esfera das técnicas sociais, à atividade dos

‘engenheiros sociais’ que operam sob comando a fim de remediar os malogros e os

desarranjos da sociedade.” E, à prática de um ‘esoterismo’, afastando-se da

“ordem das realidades, substituindo-a por uma construção lógica, um edifício

complexo de categorias, princípios, noções e conceitos ao qual só se pode ter acesso

pela iniciação.”

Atender solicitações de poderes e ‘contrapoderes’, que se acomodam mal

aos seus resultados quando não reforçam, necessariamente, sua posição e suas

opções. “essa solicitação, nas sociedades em que as Ciências Humanas estão

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estabelecidas, pode traduzir-se em termos de ‘mercado’ o que, inevitavelmente,

implica em competição, imposição de rótulos de Escolas e nalguma concessão aos

consumidores do saber e, portanto, às ‘modas’.”

Este pesquisador vai afirmar que, voluntária ou involuntariamente, os

cientistas sociais tornam-se produtores de sentidos, fabricam as visões do mundo

atual. Assim acabam por propor uma “imagem transformada do homem e da

sociedade”, não designando mais o homem no singular, porém, no plural, para

dar conta de sua diversidade. Este tipo de ciência, além de fixar, alarga as

fronteiras entre natureza e cultura. “Torna-se cada vez mais difícil negligenciar o

que concerne à natureza do homem e ao fato de sua presença na natureza e,

portanto, satisfazer-se com uma Sociologia e Antropologia d’alguma forma a-

naturadas. A atualidade coage a essa revisão.” É então a isto que se propõe este

pesquisador; estabelecer a redução das fronteiras entre Natureza e Cultura, que

segundo ele está presente nas Ciências Sociais.

Para Balandier, as sociedades ‘expressam-se’ não apenas “através de

suas produções simbólicas e ideais (sua cultura) e de suas produções materiais

(sua tecno-economia), mas, também através da maneira pela qual condicionam a

reprodução dos homens.” Esta seria uma primeira ruptura a ser feita. A segunda

seria desfazer a oposição posta entre sociedades consideradas fora da história e

as outras (as nossas). “Não existe sociedade que não se revele problemática em

algum grau. “É por seus problemas, pela ameaça que torna improvável sua simples

reprodução, que as sociedades mostram sua ‘verdadeira realidade’.” A Sociologia e

a Antropologia têm cedido a um sócio-centrismo. Assim os conhecimentos

produzidos pela Antropologia podem então tornar a Sociologia mais ‘operatória’ no

estudo de nossa própria sociedade. Balandier vai procurar mostrar isto em dois

capítulos da obra citada.

Dois aspectos são considerados fundamentais na obra de Balandier: a

questão da ‘unidade’ da sociedade e a da ‘continuidade’ ou da reprodução das

formas sociais e culturais. Este pesquisador vai considerar em sua obra três

rupturas principais que delimitam as sociedades, designadas como ‘classes’, e

que coexistem no seio de toda formação social: as fronteiras traçadas segundo os

sexos, a idade e o sistema dominante de desigualdade. “Dessa maneira,

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consideram-se também, o jogo dos poderes desiguais e o sistema de poder que se

impõe como instrumento da coesão global.”

Há, deste modo uma evocação à necessidade de estabelecer um maior

embricamento entre cultura e natureza, que é defendido por Balandier. “Não se

pode mais encontrar satisfação numa Sociologia e numa Antropologia de certo

modo a-naturais.” Segundo ele, este embricamento “obriga a que se leve em conta

a natureza do homem e a presença do homem na natureza. A fronteira erigida

entre natureza e cultura está, atualmente, arruinada.” (Id. p 82).

O que nos parece a estas considerações propostas por Balandier, é que

ele quer fundamentar uma teoria natural da dinâmica social. A se guiar pelos

argumentos que se sucedem no transcorrer do texto citado, podemos perceber

como este pesquisador se encaminha na idéia de que os antagonismos sociais de

classes, as estruturas de poder possuem sua base, em última instância, numa

estrutura natural. Balandier parece evocar uma imagem universal de Homem

explicitando uma dualidade sexual possuída de rivalidades, que se apresenta

naturalizadas, e nesta estrutura parece está fundamentado os antagonismos que

justificam, segundo ele, as relações entre estrutura, poder e cultura. Aí, a

dominação social, encontra seu fundamento, sendo ele, primeiramente, sexual,

geracional mas, também de classe.

Segundo Balandier (Id. p. 21), as narrativas mitológicas atribuem lugar

privilegiado à relação homens/mulheres. Esta, por sua vez, se apresenta em três

momentos: nas narrativas da criação, como relação primordial (ligação de

engendramento); nos modelos simbólicos sexualizados como explicação da ordem

do mundo, a constituição da pessoa e da civilização; e no reconhecimento do

caráter problemático de toda formação social.

Em todos os relatos míticos apresentados em seu texto, ressalta-se a

bipolarização sexual, sempre conflituosa e antagônica. Esse dualismo é

apresentado como constituindo um modo de explicação da realidade, um modelo

que rege toda forma de convívio, uma relação sempre marcada por ambivalência:

“ordem” e “desordem”.

O dado geral e básico, segundo Balandier, é que o sistema simbólico,

ao afirmar este antagonismo sexualizado ratifica as relações sociais como

relações de incertezas, uma vez que a relação homem/mulher é reproduzida na

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DIÁLOGOS – Adjair Alves - Teorias de “poder” na relação entre indivíduos e/ou instituições

relação exogâmica, visto que na rede de trocas matrimoniais a mulher é dada a

membro de um grupo rival. Aí encontra-se a origem do sistema social, nas

relações que a sexualidade estabelece como portadora de tenções e oposições,

segundo aquele pesquisador. Ao expor os modelos que exprimem as possíveis

ligações dos sexos, as narrativas míticas, segundo Balandier, revelam também, as

possibilidades que orientam as interpretações e as realizações da unidade social.

Os modelos são: (1) fusão, representada pela figura do andrógino; (2)

de complementaridade por origem comum, representado no casal de gêmeos de

sexos opostos; e (3) de aliança das diferenças, representado pelo casal mítico

unindo ‘homem e mulher’. O primeiro anula a diferença, o segundo afiram a

unidade inicial, e o terceiro designa a unidade como criação e ordem vulnerável.

Este último é efetivamente o que rege a sociedade deixando a nostalgia dos

modelos anteriores, menos problemáticos, utópicos ou ideais. Este é o modelo

pelo qual Balandier busca justificar as relações de poder, cultura e estrutura.

Conclusão.

Como pode ser visto, não é uma tarefa fácil estabelecer um diálogo

entre estes três teóricos, sobretudo pelo antagonismo evidente em suas análises.

Tomando o Balandier como ponto de partida, poderíamos dizer que sua tentativa

de “romper” com as fronteiras, que segundo ele, foram fixadas pelas pesquisas

sociais, entre cultura e natureza, é uma perspectiva que nos parece, a primeira

vista, fatalista; uma vez que não oferece alternativas à superação dos

antagonismos das relações de poder presentes na estrutura social.

Parecendo assim, uma visão equivocada na medida em que sob o

invólucro da crítica, procura desconstruir aquelas posições que busca nas

construções simbólicas e na cultura a chave para o entendimento das sociedades.

Afirma Balandier, que estas realidades não diz tudo de uma sociedade, ao mesmo

tempo, reivindica o “mito”, uma construção simbólica, como fundamento para a

visão “naturalista” que pretende fundar, não deixando claro o seu

reconhecimento dos mitos como uma construção simbólica, possuidora de base

histórica e que, até certo ponto pode-se afirmar, sem correr o risco de “forçar a

barra”, com um fundamento concreto, na medida em que os mitos procuram

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DIÁLOGOS – Adjair Alves - Teorias de “poder” na relação entre indivíduos e/ou instituições

explicar um fato social concreto. Não diria que os mitos sejam ideologias, talvez

abstrações com base concreta. Uma construção simbólica, portanto cultural, não

destituído de uma “historicidade”, esta subjetivada. Os antagonismos

sexualizados presentes nos relatos mitológicos, não seriam, deste modo, naturais.

Mas culturais, portanto histórico e social.

Em sua elaboração teórica, Balandier, ao tratar da estratificação

social, apresenta uma contestação às teorias que tentam uma concepção

unitarista e universalista das classes. A teoria do conflito, por exemplo, cujo pano

de fundo é a revolução industrial, mas foi apreendida como uma teoria unitária

da estratificação.

Toda interpretação unitária, no estado atual do saber sociológico, corre o risco de conferir ampla validade a uma elaboração de aplicação restrita. Foi o que aconteceu desde o momento em que se admitiu o uso universal da noção de classe, quando essa noção procede essencialmente de uma interrogação da sociedade industrial e de suas recentes transformações. Nesse terreno, a atitude relativista – portanto, pluralista – permanece a única capaz de ser cientificamente fundamentada (Balandier, Op. Cit. p. 131).

Neste ponto, nossos autores não parecem estar tão distantes, embora

diferenciem-se em alguns pontos. Bourdieu, por exemplo, ao defender a

necessidade e legitimidade de se introduzir no léxico da sociologia as noções de

espaço social e de campo de poder, vai dizer que isto se justifica pela necessidade

de se romper com a tendência de se pensar o mundo social de maneira

substancialista. “A noção de espaço contém, em si, o princípio de uma apreensão

relacional do mundo social. ela afirma, de fato, que toda a ‘realidade’ que designa

reside na exterioridade mútua dos elementos que a compões.” (BOURDIEU. 1996:

48).

A substancialização das categorias sociológicas, como as ‘classes

sociais’ supõem uma postura teórica onde se descarta a relativização do saber

construído. Para Bourdieu, não é papel das ciências sociais, por exemplo, criar

classes sociais.

O problema da classificação, que toda a ciência enfrenta, só se coloca de modo tão dramático para as ciências do mundo social porque se trata de um problema político que, na prática, surge na lógica da luta política todas as vezes que se quer construir grupos

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reais, por meio da mobilização, cujo paradigma é a ambição marxista de construir pó proletariado como força histórica.” (Id. p. 49).

Segundo Bourdieu, a existência das classes sociais pode ser negada

sem, contudo, se negar o elemento essencial do discurso que é “a diferenciação

social”, que pode gerar antagonismos individuais e, às vezes, enfrentamentos

coletivos entre os agentes situados em posições diferentes no espaço social.

As Ciências Sociais ao construir “espaços sociais” devem, em cada

caso, “construir e descobrir o princípio de diferenciação que permite reengendrar

teoricamente o espaço social empiricamente observado.” Bourdieu chama a

atenção para o fato de que o “princípio da diferenciação” não possui

características genéricas ou universais. “Nada permite supor que esse princípio de

diferenciação seja o mesmo em todas as épocas e em todos os lugares.” Segundo

Bourdieu, com exceção das sociedades menos diferenciadas, todas as sociedades

se apresentam como espaços sociais, isto é, “estrutura de diferenças”, que não

podemos compreender verdadeiramente a não ser construindo o princípio gerador

que funda essas diferenças na objetividade. Princípio que é o da “estrutura da

distribuição das formas de poder ou dos tipos de capitais eficientes no universo

sociais considerado – e que variam, portanto, de acordo com os lugares e os

momentos.”

Para Bourdieu, essa estrutura não é imutável e ainda,

a topologia que descreve um estado de posições sociais permite

fundar uma análise dinâmica de conservação e da transformação

da estrutura da distribuição das propriedades ativas e, assim, do

espaço social global como um campo, isto é, ao mesmo tempo,

como um campo de forças, cuja necessidade se impõe aos agentes

que nele se encontram envolvidos, e como um campo de lutas, no

interior do qual os agentes se enfrentam, com meios e fins

diferenciados conforme sua posição na estrutura do campo de

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forças, construindo assim para a conservação ou a transformação

de sua estrutura. (Id. p. 50).

A noção de “campo de poder” é criada por Bourdieu para dar conta de

efeitos estruturais, isto é, certas propriedades práticas, assim como

representações, como a dupla ambivalência em relação ao “povo” e ao “burguês”

encontrado, segundo este autor, entre escritores e artistas com posições

diferentes no campo.

O “campo de poder” é o espaço de relações de forças entre diferentes

tipos de capitais para poderem dominar o campo correspondente e cujas lutas se

intensificam sempre que o valor relativo dos diferentes tipos de capitais é posto

em questão. O campo de poder, por sua vez, não pode ser confundido, como

afirma Bourdieu, com campo político.

Segundo ele, a dominação não é o efeito direto e simples da ação

exercida por um conjunto de agentes “a classe dominante” investida de poderes

de coerção, mas o efeito indireto de um conjunto complexo de ações que se

engendram na rede cruzada de limitações que cada um dos dominantes,

dominados assim pela estrutura do campo através do qual se exerce a

dominação, sofre de parte de todos os outros.

Sem, contudo rotularmos, Foucault, parece-nos querer fugir a tradição

estruturalista buscando na arqueologia e na genealogia dos conceitos a

desmistificação dos saberes e das instituições como referências dos saberes, que

no dizer de Deleuze, constitui o muro que todo saber provindo das massas

necessitam romper. Para Foucault (1990: 71), os intelectuais descobriram que as

massas não necessitam deles para saber;

elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade.

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DIÁLOGOS – Adjair Alves - Teorias de “poder” na relação entre indivíduos e/ou instituições

A cultura assim como o poder, parece dês(referenciados) e

fragmentados. Eles acontecem ou são gerados nas micro-relações. O poder não é

uma instância localizada nos domínios do Estado. Não está centrado aí. Estas

realidades, o saber e o poder, se afirmam como acordo tácito nas relações sociais.

Sobre o papel da teoria, Foucault afirma ser ela “um instrumento de

combate”. Uma espécie de discurso, ou contra-discurso, expresso contra o poder,

por aqueles que são chamados delinqüentes, não sendo uma teoria da

delinqüência. O discurso nesta abordagem se constitui um espaço de inversão de

valores, contra toda teoria. É a possibilidade de saída aos oprimidos pela

racionalidade técnica.

Referências Bibliográficas.

BALANDIER, Georges. (1976) Antropo-lógicas. Tradução de Oswaldo Elias Xidieh.

São Paulo: Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo.

BOURDIEU, Pierre. (1994) Esboço de uma teoria da prática. In. ORTIZ, Renato

(org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática. (coleção: Grandes Cientistas

Sociais).

________________ . (1996) Razões práticas: sobre a teoria da ação. 3. ed. Tradução

de Mariza Corrêa. Campinas; São Paulo: Papirus.

________________. (1999) A economia das trocas simbólicas. 5. ed. Introdução e

organização e seleção de Sérgio Miceli. São Paulo: Editora Perspectiva. (coleção

Estudos).

________________ . (2003) A dominação masculina. 3. ed. Tradução de Maria

Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

FOUCAULT, Michel.(1989) História da loucura. 2. ed. Tradução de José Teixeira

Coelho Netto. São Paulo: Editora Perspectiva. (coleção Estudos).

__________________. (1992) As palavras e as coisas. 6.ed. Tradução de Selma

Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes. (coleção Ensino Superior).

________________. (1979) Microfísica do Poder. 9. ed. Organização, introdução e

revisão técnica de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal.

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DIÁLOGOS – Rosilene Alvim & Eugênia Paim – A Febre que nunca Passa

A Febre que nunca Passa 1 O Funk, a Sensualidade e o “Baile do Prazer”

Rosilene Alvim 8

Eugênia Paim 9

É som de preto, de favelado,

mas quando toca ninguém fica parado.10

Resumo Nos anos de 1980, o funk representava um universo cultural suburbano que agregava um público formado principalmente por jovens, rapazes e moças de baixa renda, moradores das favelas, de maioria negra e que desciam o morro para ir aos clubes se divertir. O fervor embutido nesse divertimento era o mesmo daquele que está presente entre outros grupos musicais jovens de outros segmentos sociais, mas que nem por isso sofriam os intensos ataques que, de antemão, criminalizavam o funk. No presente artigo pretendo discutir o baile, como ele tem se apresentado num outro formato de baile conhecido como “LadoA/LadoB” ou “baile de corredor” com suas brigas ritualizadas e a ascensão do formato chamado de “baile do prazer”, marcadamente feminino, de cunho sensual, e que conta com maior adesão da classe média. Palavras-chave: Cultura, funk, juventude, repressão, violência Introdução

O funk chegou ao Rio de Janeiro há mais de trinta anos e tornou-se o ritmo dominante dos subúrbios da cidade. Surgiu na cidade com um estofo musical saído de um ritmo que apareceu na Flórida, Estados Unidos, em 1980, o Miami Bass, um som de batida pesada e letras curtas que, no Brasil, caiu rapidamente no gosto popular.11 (Macedo, 2003, p. 47).

8 Doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil(1985). Pós-Doutorado pelo École des Hautes Études en Sciences Sociales, França(1990). Professor Adjunto IV da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 | Orientador de Doutorado. 9 Doutora em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil(2000). Pós-Doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil(2008) Pesquisadora do NEPI / IFCS da Universidade Federal do Rio de Janeiro , Brasil

10 Som de Preto. Amílcar/Chocolate. 11 Para o DJ Marlboro isso pode ser explicado pela semelhança que a batida grave do Miami Bass tem com o surdo do samba, o que teria permitido a identificação popular com ele e a possibilidade da costura com ritmos nacionais. (Macedo, 2003, p. 47)

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DIÁLOGOS – Rosilene Alvim & Eugênia Paim – A Febre que nunca Passa

Assim, desde a década de 1980 ele se constituiu em uma das formas de expressão cultural mais importante das juventudes das classes populares que chegou das favelas até permear os jovens da classe média da Zona Sul.

Foi esse ritmo festivo que chamou a atenção do pesquisador Hermano Vianna que percebeu que ele era um movimento musical tão popular quanto reprimido pela sociedade. Debruçando-se sobre o tema, Vianna (1987) fez uma pesquisa pioneira sobre o “mundo funk carioca” estranhando o fato dele existir na cidade e ser ignorado pelos outros grupos sociais. Sua análise privilegiava o aspecto do funk como movimento musical e como festa, desmistificando o fenômeno ao não reduzi-lo ao plano da violência. Como festa, o funk trazia consigo a efervescência que ela provoca com o poder de produzir, como ele disse, desde transe até transgressões coletivas de normas sociais.

O trabalho de Vianna mostrou que o funk representava um universo cultural suburbano que agregava um público formado principalmente por jovens, rapazes e moças de baixa renda, moradores das favelas, de maioria negra e que desciam o morro para ir aos clubes se divertir. O fervor embutido nesse divertimento era o mesmo daquele que está presente entre outros grupos musicais jovens de outros segmentos sociais, mas que nem por isso sofriam os intensos ataques que, de antemão, criminalizavam o funk.

O combate reservado ao funk e o que ele obscurece, é então o ponto de partida desse artigo. Para tanto o trabalho tem com objetivo analisar o cenário recente do funk que apresenta como novidade o declínio do modelo de baile conhecido como “LadoA/LadoB” ou “baile de corredor” com suas brigas ritualizadas e a ascensão do formato chamado de “baile do prazer”, marcadamente feminino, de cunho sensual, e que conta com maior adesão da classe média.

Na atualidade, apesar das transformações que o funk vem apresentando, as representações negativas sobre ele pouco mudaram, ao contrário, elas se reatualizaram tendo como base um discurso moral que agora o condena por trazer a “sensualidade” para o meio do salão.

Ao cantarem letras de músicas taxadas de “pornográficas” e criarem coreografias tidas como “obscenas”, imediatamente o comportamento dessas mulheres jovens do funk foi tomado como um “insulto moral”, uma “violência simbólica” que fazia da mulher uma vítima, um discurso feminista que acabou por justificar a repressão que se veria a seguir contra o funk.

Sendo assim, o texto se propõe a especular em breves notas sobre esse formato do “baile do prazer” através dos seus dois aspectos principais, a música e a dança que tocam em questões como sensualidade, corpo e sexualidade, inserindo o debate nessa pauta que vem provocando polêmica. Ainda condenado, esse baile é o novo fundamento que alimenta a antiga discriminação, uma verdadeira cadeia de combate que faz com que o funk continue a ser reprimido nos dias de hoje com a mesma severidade de outrora.

1. A Repressão ao Funk e o Combate aos Bailes O combate ao funk desde seu início foi muito estimulado pela mídia e se

materializou em acusações, perseguições e repressão policial. Essas ações tiveram seu auge nos anos 90 quando ainda predominavam os bailes do tipo “LadoA/LadoB”, ou “baile de corredor”. Neles, pontificavam confrontos entre

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DIÁLOGOS – Rosilene Alvim & Eugênia Paim – A Febre que nunca Passa

galeras rivais que se enfrentavam, combinando lazer com momentos de briga ritualizada.

Foram essas brigas tomadas nos seus momentos de efervescência que se tornaram as provas irrefutáveis da propalada “violência sangrenta” dos bailes e apareceram como justificativa para que se desenvolvesse um grande esquema de controle sobre eles, exercidos em nome da segurança social.

Na modalidade de baile “LadoA/LadoB” o público era dividido em dois lados para que os enfrentamentos entre as galeras de jovens do sexo masculino se dessem como um embate ritual somente entre os freqüentadores que estivessem dispostos a brigar.

Por esses enfrentamentos caracterizarem um “gosto pelo desafio”, uma “disposição para brigar” aliada a um “clima de jocosidade e agressão” que estavam caracterizando essa forma de interação juvenil, Cecchetto (1998, p. 145) entendeu que o que aparecia nesse formato de baile era um tipo de confronto que afirmava elementos centrais de um “estilo masculino violento na esfera do lazer” que misturava o lúdico com um “ethos guerreiro”. Era na dinâmica desse tipo de baile, ela continua, que os homens se afirmavam pela “rixa” através de um “estilo masculino que dependia de atributos corporais que os deixassem preparados para a luta naquele clima ao mesmo tempo violento e lúdico.”

Mas, as autoridades policiais entenderam isso de modo diferente e os “corredores de briga” foram batizados por elas de “corredores da morte” generalizando e amplificando unicamente os momentos dos confrontos quando elas deixavam de ser um jogo e extrapolavam os limites delimitados pelos organizadores. Esse foco transformou esse jogo na prova irrefutável da violência e serviu de munição para a mídia detonar sua campanha de repúdio aos bailes, ressaltando que eles “deveriam ser combatidos em nome da paz social.” (Jornal do Brasil, 1995)

A ênfase nesse viés conflituoso produziu uma visão unilateral dos bailes funk como sendo “festivais de violência que espalham mais terror do que alegria” (Jornal do Brasil, 1995), lugares de “interseção com o tráfico” o que concorreu cada vez mais para reprimi-lo.

Apesar disso o funk se firma como uma expressão cultural dos jovens da periferia, continuando a pontificar pelo baile que muda pouco a pouco seu formato e vai abandonando aquele do Lado A/Lado B. A novidade é que ao entrar no século XXI os grupos masculinos do baile funk se tornam menos agressivos e há o aumento da participação feminina cuja presença a mídia salienta para, em seguida, recriminar.

Isso se dá quando começa a se delinear no funk um novo contexto, um período de retomada do movimento pós-arrastão12 que se faz acompanhar, imediatamente, da retomada dos ataques da mídia. Tal como já havia sucedido antes, o noticiário o mantém na mira debaixo de severa vigilância, perseguindo-o pela associação que a repressão faz entre a divulgação da imagem de sensualidade e erotismo das jovens funkeiras e o perigo que elas poderiam representar.

12 “Arrastão” foi o nome dado pela imprensa a uma série de fenômenos que aconteceram nas praias cariocas durante o verão de 1992 quando galeras rivais, vindas dos subúrbios, se enfrentaram nas areias da Zona Sul e foram, precipitadamente, relacionadas às galeras do funk. Para maiores detalhes ver Vianna (1996), Alvim e Paim (2000) e Herschmann (2000a; 2000b).

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O estopim desse processo foi o sucesso feito pelo Bonde do Tigrão, um dos primeiros grupos a interpretar o funk considerado de conteúdo “ofensivo à mulher”, com letras que, dizia-se, tratavam a mulher como “objeto-sexual”. Isso rendeu acusações ao grupo de fazer a apologia da “mulher-objeto”.

Eis que o movimento novamente conseguiu destaque na mídia, com o sucesso do Bonde do Tigrão, que abandonava as letras sobre justiça social para abusar de letras explícitas sobre sexualidade e uso da mulher como simples objeto sexual – e que eu não me atrevo a transcrever. (Malafaya , 2005)

As letras das músicas e as coreografias do funk tornaram-se sinônimo daquilo que a imprensa classificava como uma “inaceitável vulgaridade” e, nesse tom, foi se construindo a atual base de ataque a esse lazer popular.

A vulgaridade estava na moda, a promiscuidade passou a ser sinônimo de moderno e adjetivos como “tchuchuca”, “popozuda” e – pasmem! – “cachorra,” se referiam a meninas adolescentes, em um país que tem um dos maiores índices de violência contra a mulher. (Malafaya , 2005)

O baile agora era apontado como espaço de orgias e de perigo pela prática do sexo desenfreado, pela corrupção de menores e pela transmissão de doenças, todos itens constitutivos dos fantasmas que assombram a cultura sexual moderna.

Essas preocupações agudas com o exercício da sexualidade tornam-se um substrato para a mídia que começa a dar destaque as notas de repúdio ao funk mostrando que elas partiam até de órgãos oficias. Isso deu uma base científica para a condenação e potencializou o medo da instituição da sensualidade no baile funk.

Relembrando esse momento, percebe-se que algumas notícias foram bastante eloqüentes ao enfatizar as reprovações. A matéria “jovens fazem sexo nos bailes e aumenta a incidência da AIDS”,13 originalmente publicada no jornal O Dia, de 8/03/2001, denunciava que “os bailes estavam surpreendendo o governo do Rio de Janeiro, não mais pelas brigas e strip-tease, mas sim pelo “sexo no meio dos salões.” Segundo a matéria, esse caso veio à tona depois que uma primeira menina procurou o posto de saúde contando sobre as relações sexuais durante os bailes onde ela teria engravidado e contraído AIDS.

Sérgio Arouca, à época secretário municipal de Saúde, deu crédito imediato à informação e alertou que com isso “o número de jovens grávidas e contaminadas com o vírus HIV estaria aumentando.”

Essa surpreendente gravidez seria fruto de uma “brincadeira” que acontecia durante o baile chamado de “dança das cadeiras” relatado pela mídia como um momento em que DJ parava a música e as meninas que dançavam em volta dos garotos, supostamente sem calcinha, “transariam com os rapazes” que calhassem estar sentados em cadeiras bem a sua frente.

13 Jovens fazem sexo nos bailes e aumentam a incidência da AIDS. Disponível na INTERNET via http://www.ruralnet.com.br/meioambiente/. Arquivo consultado em 16.01.2006.

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DIÁLOGOS – Rosilene Alvim & Eugênia Paim – A Febre que nunca Passa

“O secretário diz que elas procuram os postos de saúde contando a mesma história: vão aos bailes de saia, sem calcinha, e mantêm relações sexuais com os meninos enquanto dançam em fila indiana, formando um trenzinho, ou sentadas no colo dos rapazes, fazendo a chamada dança das cadeiras.14

Esse aparecimento providencial da “grávida do funk”, como chamou

atenção Araújo (2006), tinha um enredo clássico dos filmes em que há sempre uma correspondência entre a “vítima perfeita que sucumbiu diante do vilão perfeito”, confirmando que o funk agora era atacado como o “vilão moral da vez.”

A decisão foi motivada pela reportagem do mesmo jornal de ontem. A matéria diz que meninas e rapazes fazem sexo durante os bailes e, segundo o secretário municipal de Saúde, Sérgio Arouca, algumas jovens estão engravidando e contraindo doenças sexualmente transmissíveis, como a Aids, porque não usam camisinha.15

Outro exemplo dessa marcação contínua aparece na matéria “Polícia e

juizado fiscalizarão a partir de hoje os bailes do Rio”,16 do dia 9 de março de 2001. Logo que a mídia noticiou haver denúncias de que atos sexuais ocorriam durante os bailes, decidiu-se que eles passariam a sofrer blitz feitas por “Comissários da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente e pelo Juizado de Menores.” Motivado por essas acusações de violência contra a mulher e corrupção de menores, o então juiz da 1ª Vara da Infância e da Juventude, Siro Darlan, adiantou que se “menores” estivem realmente envolvidos, “poderia ser considerado estupro.”

A mesma notícia informava que uma das então diretoras da Organização Não-Governamental (ONG) “Centro de Projetos da Mulher” (Cemina), Denise Viola, disse que a organização já havia recebido três denúncias desse tipo de relação sexual em bailes. O “Conselho Nacional dos Direitos da Mulher” (CNDM), através de Solange Bentes Jurema, à época sua presidente, também veio a público e manifestou sua indignação e seu repúdio em relação a certos temas musicais veiculados atualmente na mídia brasileira que faziam a apologia da violência contra as mulheres.17

Acreditamos que a música, enquanto uma das

manifestações artísticas mais sensíveis da

experiência humana, deva ser um instrumento de 14 Jovens fazem sexo nos bailes e aumentam a incidência da AIDS. Disponível na INTERNET via http://www.ruralnet.com.br/meioambiente/. Arquivo consultado em 16.01.2006.

15 Polícia e juizado fiscalizarão a partir de hoje os bailes do Rio. Disponível na INTERNET via http://www.ruralnet.com.br/meioambiente/. Arquivo consultado em 16.01.2006.

16 Polícia e juizado fiscalizarão a partir de hoje os bailes do Rio. Disponível na INTERNET via http://www.ruralnet.com.br/meioambiente/ . Arquivo consultado em 16.01.2006.

17 “Em relação a certos temas musicais veiculados atualmente na mídia brasileira que apologizam a violência contra as mulheres.” Disponível na INTERNET via http://www.mj.gov.br/sedh/cndm. Arquivo consultado em 16.01.2006.

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DIÁLOGOS – Rosilene Alvim & Eugênia Paim – A Febre que nunca Passa

libertação da humanidade e não um veículo por

meio do qual se constroem e repõem violências

morais sobre aqueles e aquelas que a ela dão

forma, conteúdo e sentido. Vemo-nos, pois,

diante de um dilema: como defender a não violação

do direito à liberdade de expressão, sabendo que,

em alguns casos, certas músicas são instrumentos

de opressão na medida em que trivializam e

banalizam uma das manifestações mais cruéis da

violência contra as mulheres: a agressão física.

É isso que desejamos fazer com esta nota: chamar a atenção de todos para o duplo insulto moral que tem atingido milhares de mulheres brasileiras. Além de serem vitimizadas por inúmeros tipos de agressões - físicas e simbólicas – as mulheres, ao escutarem tais canções, são obrigadas a conviver com um discurso moral que legitima socialmente as agressões das quais são vítimas.

Com essas considerações, esse grupo de feministas contribuiu para a o aumento da prevenção ao ritmo agora sob a capa de uma “guerra dos sexos” que estaria sendo perpetrada pelas tais letras de “conteúdo ofensivo” a mulher.

A conseqüência disso é que, em 29 de maio de 2000, a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro decretou a Lei nº 3410 que dispunha sobre a realização de “bailes tipo funk” no território do Estado do Rio de Janeiro. Um exemplo é o tom abusivo do art. 5º onde se pode ler que “a Força Policial poderá interditar o clube e/ou local em que ocorrer atos de violência incentivada, erotismo e de pornografia, bem como onde se constatar o chamado corredor da morte”, além de exigir, ainda, a permissão das autoridades policiais para o baile acontecer.18

Essa lei representou o ponto final dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) a qual o funk havia sido submetido desde outubro de 1999 quando começaram os trabalhos de investigação da Assembléia Legislativa do Rio, sobre as denúncias de ocorrências de violência, sexo e drogas pelos bailes cariocas. Por fim, a CPI interditou 30 bailes, encampando a idéia de que os lugares de festa popular, de bailes e de dança ainda devem ser olhados com desconfiança. 19

Tomado a partir da constatação do quanto o funk é bombardeado, pode-se dizer que se repete com ele outras posições de ataque referentes às expressões populares, como o samba, sendo um revelador das relações que a sociedade brasileira trava entre classes sociais distintas através de suas, rejeições,

18 Em dezembro de 1996, o vereador Antônio Pitanga aprovou a sua lei que regulamentou o baile como atividade cultural de caráter popular. Com a CPI seu esforço foi reduzido a estaca zero. 19 A CPI foi presidida pelo deputado estadual Alberto Brizola e presidia a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro o deputado Sérgio Cabral.

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prevenções, repressões, interdições, mesmo não descartando as possíveis e prováveis aproximações e misturas culturais.20

2. O Baile do Prazer: O A Sensualidade do Funk no Meio do Salão Não há nada hoje mais propagado do que a existência de uma sensualidade feminina como inerente ao formato do baile funk moderno. Fala-se dela de um modo já suficientemente naturalizado e, portanto, torna-se necessário dar-lhe alguma precisão. Certamente, por ser um termo arbitrário e plural, não se pode falar de sensualidade sem entender, primeiro, o que ele significa já que seu sentido precisa ser construído e delimitado.

Sendo assim a sensualidade será considerada aqui, inspirada na análise de Duarte (1999, p.25), como um fenômeno ligado ao sexo, que tem uma “base física” com ênfase na dimensão da “corporalidade” e na “otimização do corpo” como fonte de excitação e de prazer. Isso vai permitir que sejam examinadas algumas questões que o “baile do prazer” levanta, de modo que o seu sentido possa ser compreendido no encontro da sexual moderna e das representações ligadas a mulher jovem das classes populares.

O “baile do prazer” se constituiu como a vertente feminina do funk carioca. Nesse formato são as jovens que comandam os bailes como MCs e coreógrafas trazendo pela dança e pelo microfone, a sensualidade para o meio do salão. Com isso, as jovens imprimiram um novo rumo ao funk, contrapondo aquele “ethos guerreiro”, já visto anteriormente, com outro, uma espécie de “ethos erótico”, cujos elementos centrais são o corpo produzido, a ginga da dança requebrada, das “ancas balançantes”,21 e a música que fala do desejo, do corpo e da própria sexualidade com uma linguagem jocosa.

Considerando a dinâmica apresentada pela cultura urbana das mulheres jovens das classes populares isso evidenciava pelo menos que elas estavam decididas a ampliar o restrito espaço que tinham no funk, reafirmando-se cada vez mais como sujeitos nesse universo indiferentes ao fato da sociedade se horrorizar com isso.22

Mas, por outro lado, esse despontar das mulheres tendo no corpo e no vocabulário sexualizado seus referenciais, logo foram associadas à vulgaridade, a 20 Recentemente Hermano Vianna chamou atenção como o funk pode revelar isso. Ao não ser considerado “cultura” e, sim “problema policial”, ser atacado pela mídia e ignorado radicalmente pelo poder público, o funk se viu isolado e correu cada vez mais para dentro das favelas acabando por associar-se ao tráfico. A exclusão social do funk vencido pela hipocrisia da sociedade que nunca o apoiou e nem ouviu seus “pedidos de socorro” jogou o funk nos braços dos bandidos (Vianna, 2005, p. 20) 21 O movimento corporal das “ancas balançantes” lembra o que Mauss (1974, p. 215) cita em seu texto sobre as técnicas corporais através de um documento encontrado no livro de Elsdon Best que descreve a maneira de andar das mulheres Maori da Nova Zelândia. Elas adotam um “gait”, diz ele, ou seja, “um balanceamento destacado e, não obstante, articulado das ancas que nos parecem desgracioso, mas que é extremamente admirado pelos Maoris.” As mães adestram as filhas nesta maneira de fazer o que se chama “onioi”, dizendo “tu não fazes o onioi”, quando uma menina esquecia de fazer esse balanceamento. Esse movimento corporal adquirido pela imitação de balançar o corpo, comenta Mauss, era de aprendizado obrigatório por ser considerado sedutor e prestigioso, ao invés de vulgar. 22 O papel das mulheres no funk serviu de inspiração para o documentário “Sou feia, mas tô na moda”, da diretora Denise Garcia (2004), que retrata, a partir da Cidade de Deus, aspectos do mundo funk carioca com um título tomado emprestado de uma música de Tati Quebra-Barraco. Outros documentários que abordaram o universo funk e precederam este foram “Febre de funk”, de Gustavo Caldas (2002), e “Funk Rio”, de Sérgio Goldenberg (1994).

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promiscuidade, e o foco do combate ao funk voltou-se contra elas. O mal se fazia, agora, pela rixa ou pelo confronto direto, mas através da palavra e dos movimentos do corpo feminino.

Essa ultrapassagem das jovens do conjunto de valores morais bem demarcados pela sociedade, provocou reações rápidas, dividiu opiniões e deflagrou uma campanha baseada no fato de que as funkeiras estariam ferindo o código moral. Esse entendimento passou a ser recorrente e serviu para alimentar as considerações alarmistas da mídia que pode, então, continuar com suas campanhas contra o funk.

Nem tudo é tão recomendável nesse bailão. Jovens

a partir de 14 anos podem entrar e ficar no baile

das 21 horas até as 4 da madrugada. No entanto,

burla-se a regra e meninas entre 10 e 12 anos

entram acompanhadas por algum adulto

responsável. Elas dançam lascivamente, sem que

haja nenhum tipo de fiscalização do Juizado de

Menores que, ultimamente, se mostra sempre

enérgico nesta cidade. (Rocha, 2005)

No repertório, basicamente o funk "sensual", capaz de manter a babilônia

de popozudas e pixadores pela noite inteira. Dançarinas no palco não eram necessárias, pois todo mundo sabe como proceder. A escolha do figurino é fundamental no ritual funk, que parece as preliminares do ato sexual e do ato em si: mulheres de calça ou saia muito justa e os seios vestido por tops ou biquínis e homens sem camisa, exibindo o físico malhado. (Rocha, 2005)

A coreografia, digamos assim, lasciva dos freqüentadores dos bailes é outro

atrativo para análise. Uma conjunção apimentada de trajes sumários e jovens mexendo o popozão. No entanto, a onda musical do momento, como tantas outras sustentadas pela indústria, traz consigo o estigma do erro. A começar pela terminologia. O funk carioca que se celebra atualmente nada tem a ver com o verdadeiro funk, criado nos Estados Unidos no fim dos anos 60. (Carneiro, 2005)

A barreira moral erguida contra o funk exerceu forte pressão, mas não

alcançou as implicações esperadas com suas considerações pejorativas. Como contrapartida, o funk criou um canal de comunicação com outros segmentos sociais ampliando sua influência e demonstrando grande vitalidade. Assim, o baile se consolidou com todo seu erotismo, sua dança insinuante e suas músicas autodefinidas como de “duplo sentido” tornando a “sensualidade” determinante nessa forma musical.

As estrelas do funk são muito jovens, quase todas nascidas e criadas na Cidade de Deus (CDD), bairro da periferia do Rio de Janeiro considerado o celeiro

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do funk carioca, lugar por onde os “bondes” 23 e as MCs se multiplicaram, como chamou atenção Essinger (2005).

Nessa vertente elabora-se um novo padrão de sensualidade minuciosamente produzido para o baile que vai além daquela dos primórdios do movimento, detectada por Vianna (1988, p.93), quando as dançarinas somente evoluíam pelo salão, ainda que as danças já fossem definidas como sendo “altamente eróticas”.

Mas não havia, naquele começo de milênio, celeiro mais fértil para o funk do que a Cidade de Deus. Depois de Cidinho & Doca, Tati Quebra Barraco e do Bonde do Tigrão, os MCs e bondes se multiplicaram nos apês e vielas da região e muitos deles conquistaram a sua parcela de atenção. Em 2004, o nome mais cotado - muito pelo em-purrão dado por Caetano Veloso - era o do Bonde Faz Gostoso, formado por Priscila (a cantora), Rafaella, Michele e Jaqueline (as dançarinas). Todas morenas bonitas, então por volta dos 20 anos de idade, com o melhor estilo popozuda - calças da Gang apertadas, barrigas inexistentes (malhadas nas academias da CDD), cabelos compridos, ondulados e com mechas louras. Gestado nas gincanas do baile do Coroado, esse vulcão de sensualidade tinha como sucessos as músicas "Cavalo de pau" ("cavalo de pau, mexendo a bundinha no berimbau"), "Conspirador" ("eu tô com tudo, subo e desço/ faço essa cobra subir/ posso ser mulher pra tu / mas tu não é homem pra mim") e "Pantera", todas à espera de registro em disco - e de uma nova mãozinha de Caetano. Mas a vida seguiu normal para as meninas do bonde. Durante a semana, quando não estavam no palco, elas ainda defendiam um troco longe do mundo artístico: Michele e Jaqueline num salão de cabeleireiro, Rafaella no bar da família e Priscila como revendedora de empresa de cosméticos. (Essinger, 2005 p. 272)

A tônica dessa descrição de Essinger ilumina como essa “sensualidade” é construída e deixa ver que elementos estéticos se aglutinam em torno do estilo “popozuda”24, a mulher jovem de corpo escultural, cheia de glamour, um “vulcão de sensualidade” que quando se ativa determina o clímax da festa.

A sensualidade das dançarinas se caracteriza, então, pelo cuidado com o corpo e a indumentária, já que ambos passam a ser também instrumentos de trabalho. Exige-se que as jovens integrantes de um grupo de coreografia cultivem seu gosto estético já que o “visual” de cada uma terá que ter, no final, o poder de causar impacto no show. Isso envolve uma produção cuidadosa da imagem, uma preocupação constante com aparência num trabalho que começa pela escolha rigorosa das roupas – calças da gang ou do tipo segunda pele são imprescindíveis 23 “Bonde” é a gíria que se utiliza no funk para designar galeras amigas, grupos que vão junto ao baile. 24 A “popozuda”, na gíria funk, designa a mulher com bumbum empinado e grande, a condição essencial para que seu corpo considerado escultural.

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–, pela escolha dos sapatos de salto muito alto e pela seleção dos complementos chamativos como colares, brincos, cordões, piercings, para que o corpo enfeitado se transforme e seduza refletindo o quanto as funkeiras dominam aquilo que Mauss (1974, p.217) chamou da “arte de utilizar-se de seus corpos”.25

Paralelamente a destreza exibida na dança, as jovens funkeiras passaram a se destacar na música e é ainda da Cidade de Deus que vem um dos primeiros sucessos da linha sensual ou erótica, a música “Descontroladas”, do Bonde das Panteras: “Ah, que isso, elas estão descontroladas!/elas sobem/elas descem/elas dão uma rodada, elas estão descontroladas!”

Essa linha tem seu ápice com as MCs Deize Tigrona, autora de “Injeção” e Tati Quebra-Barraco, de “Cartão Magnético.”

Ambas da Cidade de Deus, as duas têm muitos pontos em comum em suas trajetórias de vida, como o fato de terem trabalhado como empregadas domésticas, serem casadas, terem marido e filhos e chegarem a ser MC de modo semelhante, se surpreendendo ainda com o fato de suas vidas terem sido viradas pelo avesso.

Deize Tigrona conta em entrevista a Adriana Silva e Laura Mattos (2006), para o jornal Folha de São Paulo, que até 1998 não conseguiu emplacar nada com os DJs embora já fizesse disputa de rima com suas colegas desde a época do Bonde do Fervo (babadão, história "quente"), das moradoras dos “apês” (apartamentos), que competia com o Bonde das Bad Girls, das meninas que moravam em casas. Com o inicío das provocações, Tigrona lançou "De quatro, de lado" para desafiar as rivais. Mas o sucesso foi tanto que até as "sacaneadas" cantavam, o que espantou Deize:

"Juro que fiquei com vergonha dessa música, mas foi eu cantar e virou sucesso. Aí pensei: 'O que eu fiz?!'. Da janela do apartamento da minha mãe, via as meninas de quatro."

A trajetória de Deize não difere muito da Tati que começou quando ela tinha 18 anos e ficou três meses sem “quebrar o barraco” (namorar), como explicou a Claudia Barcellos (2006) em entrevista a revista Marie Claire:

Então tive a idéia de cantar para arrumar

namorado. Comecei a cantar aqui na comunidade,

zoava [brincava] na favela, dizia para os caras:

"Vem ver minhas coxas, meus peitinhos". Fui

colocando isso nas letras, até que deu certo,

25 Para Mauss (1974) há uma educação corporal própria de cada sociedade ligada a natureza social do habitus. Assim, pode-se pensar que o corpo e um “corpo de classe” e seus movimentos, adquiridos pela aprendizam, revelam isso quando as maneiras de agir demonstram que uns são mais prestigiados do que outros.

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estourou. Agora tenho que continuar com esse tipo

de música. O público não vai aceitar se eu decidir

cantar uma coisa romântica.

Tidas como ícones do “baile do prazer”, essas MCs com suas “montagens”26

romperam as últimas barreiras que confinavam o funk a periferia e o inseriram em lugares como o Tim Festival, São Paulo Fashion Week, boates da elite paulistana como A Loca e Lov.E, além do circuito internacional.

Ai.../Ai.../Quando eu vou ao médico/Sinto uma dor/Quer

me dar injeção/Olha o papo do Dr./Injeção dói quando

fura,/Arranha quando entra/Doutor, assim não dá,/Minha

poupança não agüenta!/Tá ardendo, mas tô

agüentando,/Arranhando, mas tô agüentando/Tá ardendo,

eu tô agüentando!/Arranhando, eu tô agüentando!/ Ai,

doutor, que dor!/Ai, médico, que dor... (Injeção)

Abre as pernas mexe e gira/Abre as pernas mexe e gira, já

viu como é que faz/o mane bateu com o carro,/quis me levar

pro mato/é na suíte do mirante que eu quebro meu

barraco/lugar luxuoso não entra mane/só sobe de carro,

quero ver subir a pé/se liga na Tati, o ritmo é frenético,/pra

você abrir a porta só com cartão magnético/Abre as pernas

mexe e gira, já viu como é que faz. (Cartão Magnético)

Tanta audácia rendeu muitas represálias as funkeiras que passaram a aparecer na mídia como mulheres “vulgares” que cantam músicas com letras “toscas” em meio a coreografias “obscenas, o que motivou o DJ Marlboro a

26 As composições no funk são chamadas de “montagens” quando as letras encaixam-se nas bases pré-gravadas.

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retrucar considerando que elas são, de fato, “feministas sem cartilha”, mulheres que aprenderam na vida tudo que sabem sobre a situação delas próprias.27

Essas críticas ignoraram o fato de que as músicas, dentro da linha erótica, divertida e desinibida do funk, poderiam significar outras coisas, como um processo que põe em cheque a própria dominação masculina.28

Parece que Ana Cristina dos Anjos, vocalista do Bonde das Tchutchucas, sublinha isso muito bem.

Nós gostamos é de catucar. E catucar quer dizer

namorar. Gostamos de esculachar os homens, de

deixá-los malucos até pedirem arrego.29

Essa visão dela da relação homem/mulher rebate a crítica das feministas

que vê nas letras do funk apenas “insulto moral” contra a mulher, o que o cotidiano comum de cada uma delas pode desmentir.

Meu marido às vezes tem ciúme, não entende. Mas até vai

comigo nos bailes (...). Hoje tenho meu dinheiro e ajudo

minha mãe a comprar as coisas. Ela nunca trabalhou. Eu

me orgulho de ter a minha vida e de poder ir aonde eu

quero.30 (Ana Cristina dos Anjos)

Ana, 19, que divide a autoria das letras das canções que interpreta com Elaine das Graças, de 24, também dançarina do grupo. Casada, mãe de um filho pequeno, ela diz que a “tchutchuca pegadora, sensual, vendida à exaustão pelas letras, é muito mais um personagem do que a realidade.”31

Considerações Finais

Em 1778 quando o Capitão Cook aportou em uma das ilhas do Havaí viu que era inútil manter a interdição de relações sexuais entre seus homens

27 Essa observação do DJ Marlboro aparece no documentário “Sou feia mas tô na moda” (2004). 28 Deize Tigrona, em entrevista a Noemi Jaffe (2006), disse que considera, sim, suas letras como feministas, e, depois, ponderou: “toda mulher quer dominar". 29 Release do documentário “Sou feia mas to na moda”. Disponível na INTERNET via http://www2.uol.com.br/allansieber/tosco/filmes.htm. Arquivo consultado em 30.010206. 30 Release do documentário “Sou feia mas to na moda”. Disponível na INTERNET via http://www2.uol.com.br/allansieber/tosco/filmes.htm. Arquivo consultado em 30.010206. 31 Release do documentário “Sou feia mas to na moda”. Disponível na INTERNET via http://www2.uol.com.br/allansieber/tosco/filmes.htm. Arquivo consultado em 30.010206.

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em nome da proteção contra a contaminação com o “Mal Venério”. O comportamento “escandaloso” das nativas era um convite a prova de qualquer ordem que contrariasse as exigências delas de serem amadas. (Sahlins, 1990)

Inserida na complexa teogonia polinésia a insistência erótica das havaianas era um “obséquio” aos europeus que não tardaram a interpretar esse oferecimento como prostituição, já que estavam distantes de compreender o “cálculo transcedental” do amor das mulheres havaianas embutido aí de sexo ou classe já que “envolvia homens e mulheres, chefes e gente do povo”. As preocupações com o sexo eram expressas tanto pela imposição a certos jovens de abdicarem dele, quanto pela permissão acentuada recebida por outros e, por fim, todos acabavam sendo socializados na “arte do amor”.

Essa socialização na “arte de amar”, esse interesse erótico da sociedade havaiana desconhecia limites, inclusive no que diz respeito ao comportamento das mulheres que era o que realmente perturbava os puritanos ingleses aferrados a seus rígidos códigos morais.

O comportamento provocante das jovens mulheres do funk abalou a estrutura da representação política da mulher, na qual as feministas detêm o poder da fala. Falando por si elas dão voz aos seus desejos e revelam o quanto à sociedade ainda está abarcada pela lógica da dominação masculina.

Não é à toa que, durante séculos o sexo esteve associado a valores morais e éticos, cercado pelo pudor, pela inibição e pelo confinamento da mulher. Certamente por isso, quando mulheres jovens das classes populares falam de sexo de forma direta, essa postura apareça como transgressão sociocultural.

Em entrevista a revista Marie Claire, Martha Barcellos (2006) perguntou a Tati se ela achava que “sexo tem que ser todo dia”. Como se seguisse à lógica dos antigos havaianos, ela respondeu sem nenhum acanhamento:

Todo dia quando tem vontade. O sexo também não é tudo na vida. Mas é uma boa coisa. Se Deus inventou coisa melhor, não deixou avisado.

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DIÁLOGOS – Rosilene Alvim & Eugênia Paim – A Febre que nunca Passa

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DIÁLOGOS – Andréa Libério – Educação Infantil: uma reflexão sobre a formação inicial dos professores

Educação Infantil: uma reflexão sobre a formação inicial de professores

Andréa Libério 32

“Para ensinar há uma formalidadezinha a cumprir – saber”.

Eça de Queirós

Resumo

A problematização da especificidade da educação infantil e sua inalienável e intrínseca relação com a formação inicial dos professores, que atuam nesse nível de ensino, chamaram-nos a atenção no momento em que, nacionalmente, eram lançados dois estudos produzidos por pesquisadores de renome onde esboçar-se um quadro negativo da educação brasileira no que versa o processo da formação profissional dos educadores da educação básica. O que pretendemos, com o presente artigo, é suscitar a discussão respaldada nos estudos de diversos especialistas que tratam do tema e, neste sentido faremos um trabalho interdisciplinar que vai da Pedagogia à Psicanálise, passando pelas Ciências do Direito. Nesta pluralidade dialógica consideramos autores como: Kramer; Didonet; Haddad, entre outros, além da análise de alguns textos legais que abordam a temática em foco.

Palavras-chave: Pedagogia da infância, desenvolvimento infantil, educação

infantil, formação de professores.

1. As especificidades da educação infantil

Principiamos esta discussão na busca por esclarecer as

potencialidades referentes à primeira infância respaldando-nos em diversos 32 Psicopedagoga e Pedagoga pela UPE/Universidade de Pernambuco. Pesquisadora e professora de educação infantil. Membro efetivo do Conselho municipal dos direitos da criança e do adolescente no Município de Garanhuns/PE.

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DIÁLOGOS – Andréa Libério – Educação Infantil: uma reflexão sobre a formação inicial dos professores

estudos que aclaram nosso entendimento sobre a educação infantil enquanto

processo de mediação para a aprendizagem e o desenvolvimento de crianças

pequenas. Dieuzeid, citado por Fonseca (2004, p.160) já dizia em 1978,

Do ponto de vista do desenvolvimento intelectual, as pesquisas mais recentes parecem indicar que, em relação ao nível de inteligência geral possuído aos 17 anos, cerca de 50 por cento do acervo intelectual acumulado já estão fixados aos 4 anos, enquanto os 30 por cento seguintes são adquiridos entre os 4 e 8 anos. A maior parte do tempo passado na escola entre 8 e 17 anos é portanto dedicada à aquisição dos 20 por cento restantes, o que sugere que a atual distribuição dos recursos pelos diferentes níveis de escolaridade merece ser revista. Alguns economistas chegam a pensar que se as autoridades educacionais investissem de forma sistemática e adequada na educação pré-escolar, poder-se-ia economizar substancialmente nos investimentos escolares subseqüentes.

Legitimando as afirmativas deste autor, constatamos que,

Pesquisas sobre desenvolvimento humano, formação da personalidade, construção da inteligência e aprendizagem nos primeiros anos de vida apontam para a importância e a necessidade do trabalho educacional nesta faixa etária. Da mesma forma, as pesquisas sobre produção das culturas infantis, história da infância brasileira e pedagogia da infância, realizadas nos últimos anos, demonstram a amplitude e a complexidade desse conhecimento. Novas temáticas provenientes do convívio da criança, sujeito de direitos, com seus pares, com crianças de outras idades e com adultos, profissionais distintos da família, apontam para outras áreas de investigação. Neste contexto, são reconhecidos a identidade e o papel dos profissionais da Educação Infantil, cuja ação complementa o papel da família. A prática dos profissionais da Educação Infantil, aliada à pesquisa, vem construindo um conjunto de experiências capazes de sustentar um projeto pedagógico que atenda à especificidade da formação humana nessa fase da vida (BRASIL, 2006, p. 7).

É em consonância com esses pressupostos que o binômio cuidar e

educar constitui-se como a base indissociável de sustentação da educação

infantil. O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil - RECNEI,

documento criado pelo Ministério da Educação para nortear as ações de

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educação e cuidado nas instituições de educação de crianças pequenas postula

que,

Contemplar o cuidado na esfera da instituição da educação infantil significa compreendê-lo como parte integrante da educação, embora possa exigir conhecimentos, habilidades e instrumentos que extrapolam a dimensão pedagógica. Ou seja, cuidar de uma criança em um contexto educativo demanda a integração de vários campos de conhecimentos e a cooperação de profissionais de diferentes áreas. A base do cuidado humano é compreender como ajudar o outro a se desenvolver como ser humano. Cuidar significa valorizar e ajudar a desenvolver capacidades. O cuidado é um ato em relação ao outro e a si próprio que possui uma dimensão expressiva e implica em procedimentos específicos (BRASIL, 2001, p. 24).

Em contribuição ao disposto em tela, CAMARGO (2005, p. 12) advoga

que,

Na instituição de ensino o cuidado é essencial, embora não baste a operacionalização de ações voltadas à satisfação mecânica das necessidades básicas de alimentação, repouso ou higiene. Embora indispensáveis em si mesmas, essas situações são também, ou sobretudo, momentos privilegiados de contato social nos quais as crianças são chamadas a compor os enredos de práticas que, além de as organizarem em sua rotina individual, as solicitam em suas possibilidades potenciais de aprendizagem.

Já o ato de educar surge, portanto, no RCNEI como a possibilidade de,

[...] propiciar situações de cuidados, brincadeiras e aprendizagens orientadas de forma integrada e que possam contribuir para o desenvolvimento das capacidades infantis de relação interpessoal, de ser e estar com os outros em uma atitude básica de aceitação, respeito e confiança, e o acesso, pelas crianças, aos conhecimentos mais amplos da realidade social e cultural. Neste processo, a educação poderá auxiliar o desenvolvimento das capacidades de apropriação e conhecimento das potencialidades corporais, afetivas, emocionais, estéticas e éticas, na perspectiva de contribuir para a formação de crianças felizes e saudáveis (BRASIL, 2001, p, 23).

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Contudo, embora no processo de construção do conhecimento

educação e cuidado sejam indissociáveis, contrariando o que é posto no campo

teórico, na prática existe uma cisão entre o cuidar e o educar visto que,

Tradicionalmente, na educação de crianças de 0 a 3 anos predominam os cuidados em relação à saúde, à higiene e à alimentação, enquanto a educação das crianças de 4 a 6 anos tem sido concebida e tratada como antecipadora/preparatória para o Ensino Fundamental. Esses fatos, somados ao modelo de “educação escolar”, explicam, em parte, algumas das dificuldades atuais em lidar com a Educação Infantil na perspectiva da integração de cuidados e educação em instituições de Educação Infantil e também na continuidade com os anos iniciais do Ensino Fundamental (BRASIL, 2006,p. 9).

Podemos deduzir daí que a dicotomia educação/cuidado acaba por

assumir uma amplitude ameaçadora e danosa na proporção que de maneira

equivocada e preconceituosa sugere a divisão classificatória de que na creche

cuida-se, enquanto na pré-escola educa-se. Legitimando assim a prática do

cuidado apartado do processo educativo e a prática de educar em detrimento do

cuidar. Nesse sentido Didonet, apud, Costa (2008:98) esclarece:

Não há um conteúdo “educativo” na creche desvinculado dos

gestos de cuidar. Não há um “ensino”, seja um conhecimento ou

um hábito, que utilize uma via diferente da atenção afetuosa,

alegre, disponível e promotora da progressiva autonomia da

criança.

Colaborando com este olhar julgamos pertinente ressaltar que a

prática de dicotomizar e sectorizar na educação de crianças pequenas não pode

ser dissociada do contexto histórico, social e cultural de onde demanda e onde

está inserida. Sendo necessário não esquecer, sobretudo, os aspectos da

educação compensatória e da privação cultural (KRAMER, 1982; HADDAD,

2002), desenvolvida a partir da década de 1970 na política brasileira de educação

pré-escolar que marcou a história dessas instituições, como é o caso especifico da

assistência prestada pelas creches em benefício das crianças pobres objetivando

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imunizá-las da condição de miséria, privação cultural e negligência parental na

qual estavam inseridas, conforme ratifica Haddad (2002:25-6):

É nesse contexto que entendemos a fase inicial das creches, caracterizada pelo prevalecimento da iniciativa privada, de caráter assistencial-filantrópico, ocupando o lugar da falta econômica e moral da família. [...] Sua marca de instituição emergencial se evidencia na precariedade e insuficiência de recursos; má-qualidade do atendimento; nos quadros profissionais deficitários sem formação específica e muitas vezes composto por voluntariado; na baixa razão adulto-criança; na ausência de legislação específica e normas básicas de funcionamento.

Consideramos importante frisar que desde seus primórdios a educação

infantil traz em seu encalço o perverso ranço da divisão de classes, esse fato

histórico é confirmado no documento legal que institui a Política Nacional de

Educação Infantil (BRASIL, 2006, p. 8-9):

Desde suas origens, as modalidades de educação das crianças eram criadas e organizadas para atender a objetivos e a camadas sociais diferenciadas: as creches concentravam-se predominantemente na educação da população de baixo poder econômico, enquanto as pré-escolas eram organizadas, principalmente, para os filhos das classes média e alta. Embora as creches não atendessem exclusivamente a crianças de 0 a 3 anos e as pré-escolas não fossem apenas para as crianças de 4 a 6 anos, é importante ressaltar que, historicamente, essas duas faixas etárias foram também tratadas de modo distinto.

Voltando a tratar da especificidade da infância, podemos afirmar que

esta clama por um olhar e uma prática que atinem para essa singularidade

respondendo aos seus inerentes anseios, e é, desta maneira que chamamos a

atenção para a inalienável asseveração de que,

A qualidade do trabalho que pode vir a ser encaminhado nesse segmento de ensino estará sujeita a qualificação do educador que a ele se dedique, o que inclui a sua leitura atenta sobre o seu espaço de atuação profissional, bem como o seu investimento no

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estudo e na busca de fundamentação teórica sobre a infância, o cuidado, o ensino e a aprendizagem (CAMARGO, 2005, p. 14).

Podemos concluir que é essa peculiaridade das crianças pequenas que

termina por determinar a especificidade própria que caracteriza ou deve

caracterizar os professores da educação infantil. Nesse sentido, entende-se que:

De facto, o educador da criança pequena necessita de um saber fazer que, por um lado, reconheça essa “vulnerabilidade” social das crianças, e, por outro lado, reconheça as suas competências sociopsicológicas que se manifestam desde a mais tenra idade, por exemplo, nas suas formas precoces de comunicação. (David, apud, Oliveira-Formosinho, 2008:136).

É sobre este imperativo que trataremos no tópico a seguir.

2. A formação inicial de professores da educação infantil

No que concerne à habilitação para o exercício da docência na

educação básica a LDBEN em seu artigo 62 esclarece que a formação de

professores para atuar na educação infantil, no ensino fundamental e no ensino

médio dar-se-á em cursos superiores de licenciatura e graduação plena. O artigo

em tela assegura ainda a legitimidade da formação mínima realizada nos cursos

em nível médio na modalidade normal para atuação em turmas de creche, pré-

escola e nos anos iniciais do ensino fundamental.

Todavia, a despeito da legitimação legal e do reconhecimento da

titulação em nível superior e médio para atuar na educação básica a qualidade da

formação desses profissionais têm deixado a desejar. Pesquisa recente

encomendada pela Revista Nova Escola e realizada pela Fundação Carlos Chagas

(GURGEL, 2008, p. 48-53) traz alarmantes dados que dão conta do descompasso

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entre o curso de Pedagogia, a formação e a escola onde esses futuros pedagogos

irão atuar.

Segundo a pesquisa a educação infantil destaca-se como um

“segmento desvalorizado” à proporção que a pouca importância dada a mesma no

currículo, enquanto disciplina obrigatória, reflete-se no fato de que dos 11% de

disciplinas que tratam dos níveis e das modalidades de ensino em média apenas

duas preparam para o trabalho com crianças pequenas. Sendo necessário

ressaltar que na maioria das vezes, em se tratando da educação de crianças de

creche e pré-escola, a organização dos currículos em campos disciplinares

conforme assinala Kishimoto (2008:108-9) “tem efeitos catastróficos”, pois,

desconsidera que “a criança pequena aprende em contato com o amplo ambiente

educativo que a cerca, que não pode ser organizado de forma disciplinar”. Neste

sentido cabe questionarmos “como levar o profissional a compreender que a

criança pequena aprende de modo integrado, se ofereço conteúdos que não tratam

da epistemologia desses conhecimentos?

Esse olhar holístico sobre a criança é instituído pelo artigo 29, da Lei

9394/96, que preconiza caber à educação infantil o desenvolvimento integral das

crianças em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, de forma

complementar a ação da família e da comunidade. A importância de uma ação

educativa que preserve essa integralidade infantil é defendido por Zabalza, citado

por Oliveira-Formosinho (2008:135):

O aluno da escola infantil é um sujeito não sectorizável. É toda criança que se vai desenvolvendo o afectivo, o social, o cognitivo, é um todo integrado com uma dinâmica intensa em que o eixo fundamental de vertebração das sucessivas experiências, é o Eu e as relações que, numa relação bipolar de ida e de volta, de influenciar e ser influenciado, a partir dele se estabelecem com a realidade ambiental.

Advogamos, portanto, a pertinência de uma reflexão que nos leve a

compreender a estreita ligação entre a qualidade da formação do egresso,

sobretudo dos cursos de Pedagogia com a qualidade da escola e da conseqüente

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aprendizagem do educando, conforme ratificam Christine Pascal e Anthony

Bertron citados por Sanches (2003, p. 57),

Há clara evidência de que a qualidade do professor é um determinante central na qualidade e eficiência dos programas de Educação Infantil [...] se quisermos melhorar a qualidade da educação de crianças pequenas devemos nos preocupar com a qualidade de seus professores. Em toda Europa os países estão reconhecendo isso e tomando medidas para melhorar os cursos de formação de professor de Educação Infantil.

Voltando a tratar na formação dos professores, outra pesquisa,

realizada dessa vez pelo Fórum em Defesa da Educação Infantil em Pernambuco,

tendo como campo empírico o olhar das próprias professoras que atuam na

educação das crianças pequenas, prioriza a formação dos professores em nível

médio como alvo, e afirma que:

Todas foram unânimes em considerar que, para elas, os cursos de magistério vivenciados não atendem às necessidades de formação de professoras, mostrando-se deficitários em relação aos conhecimentos e teorias mais atuais sobre o desenvolvimento da criança e, principalmente, desconsiderando a modalidade de educação infantil [...]. A principal conclusão sobre a visão das professoras com relação às suas experiências com os cursos de magistério é de que o mesmo não foi capaz de responder às questões fundamentais evidenciadas pela prática, ou seja, “o que ensinar” e “como ensinar” (BANDEIRA, 2002, p. 66-67).

Voltando aos cursos de Pedagogia, esses, também, foram objetos da

análise da antropóloga Eunice Durham, 33 que contundentemente denuncia e

assegura que,

As faculdades de pedagogia formam professores incapazes de fazer o básico, entrar na sala de aula e ensinar a matéria. Mais grave ainda, muito desses profissionais revelam limitações elementares: não conseguem escrever sem cometer erros de ortografia simples nem expor conceitos científicos de média complexidade. Chegam aos cursos de pedagogia com deficiências pedestres e saem de lá sem ter se livrado delas.

33 Disponível em: http://veja.abril.com.br/261108/entrevista.shtml acessado em 22/11/2008.

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As referidas pesquisas acabam por convergir 34 na constatação de que

a universidade parece considerar menos importante preparar o estudante para a

prática docente. A preocupação maior redunda em dar vazão ao repasse de um

elenco de teorias sociológicas, antropológicas, psicológicas, filosóficas, etc., com

mais um agravante, esses cursos de formação não atentam para a pertinente e

inalienável relação teoria e prática.

A preocupação com dicotomia teoria-prática no processo de formação

docente encontra eco no próprio Plano Nacional de Educação, Lei Federal 10.

172/2001, que ao tratar da formação inicial dos professores aponta em suas

diretrizes o desafio de romper com o divórcio teoria e prática.

Em meio a este turbilhão de indefinição e pouca clareza sobre como de

fato se forma um professor, a educação infantil termina por carregar o estigma de

ser esquecida ou relegada pelos cursos de pedagogia à posição de menor valor

tanto no trato teórico quanto no campo da prática.

Podemos inferir daí, duas verdades: primeiramente, que há fraturas

nessa formação inicial, na forma como ela está sendo concebida, nos cursos de

formação de professores, mais especificamente os cursos de Pedagogia e, em

segundo lugar, essas fraturas comprometem em muito o processo educativo. A já

citada pesquisa da Fundação Carlos Chagas, constata de forma desanimadora

que:

O curso de Pedagogia, que deveria garantir a competência de quem leciona na Educação Infantil e nas primeiras séries do Ensino Fundamental, forma profissionais despreparados para planejar, ensinar e avaliar. O resultado é a péssima qualidade da Educação no país (GURGEL, 2008, p. 50).

34 Evidentemente trata-se aqui de conjecturas visto que não foi possível no universo do presente trabalho, investigar tal afirmação aqui apresentada. Trata-se portanto de uma inferência elaborada a partir dos resultados advindo de minha própria formação universitária em curso de pedagogia.

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Então como falar de uma especificidade de professores para atuar na

educação infantil se a própria instituição formadora negligencia este aspecto da

formação? Se a legislação (BRASIL, 2001) reconhece a educação infantil como

primeira etapa da educação básica, afirmando inclusive que o objetivo maior

deste nível de ensino é promover o desenvolvimento psicológico, cognitivo, afetivo

e social de crianças de 0 a 6 anos35, como podem os cursos de pedagogia

manterem-se alheios a pertinência de uma formação de qualidade àqueles

profissionais que carregam ou deviam carregar consigo o compromisso de dar

conta do desenvolvimento integral das crianças pequenas?

Convém ressaltar, ainda, os questionamentos propostos por

Nascimento (In FARIA e PALHARES (Orgs.), 2003, p. 108) para os casos nos quais

essa formação acontece. Para esta pesquisadora,

[...] é possível contemplar com qualidade a formação de pessoas que estarão em contato com crianças em estágio de desenvolvimento físico-motor-emocional, de interação com o outro e com o mundo significativamente diferentes? Em um curso médio com duração de três anos, é possível dar conta das especificidades da cada um destes níveis de ensino – a saber; educação infantil e níveis fundamental e médio – bem como da necessária integração entre eles? Uma qualificação que privilegia um perfil de professor é apropriada para a especificidade da educação infantil que pressupõe o educar e o cuidar?

Leite (2008:192), traz a baila outros dados a respeito dessa formação

que merece ponderação:

De um modo geral, nessas instituições, a educação infantil aparece sob a forma de habilitação, no último ano, desvinculada do curso como um todo, e restrita a conteúdos relativos às crianças de 4 a 6 anos (o pré-escolar); ou como formação conjunta para a educação infantil e para as séries iniciais, situação na qual a primeira perde espaço para a segunda. A prática de se formar, ao mesmo tempo, profissionais para a educação infantil e para séries iniciais, utilizada desde a época

35 Com a promulgação da Lei Federal 11.114/2005 que amplia o ensino fundamental para nove anos, as crianças atendidas pela educação infantil passam a ser aqueles na faixa etária de 0 a 5 anos.

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das escolas normais, necessita ser imediatamente revista. Os profissionais acabam conhecendo muito pouco do desenvolvimento da criança entre 0 a 6 anos, o que leva à propositura de trabalhos ineficazes, quando forem lidar com crianças pequenas. Portanto, esse modelo acaba não sendo muito adequado para a formação do profissional da educação infantil.

A LDBEN de 1996 ao definir a educação infantil como um nível de

ensino termina por trazer em seu encalço uma série de normatizações para este

setor que a partir deste documento legal passa a ter suas instituições reguladas

como quaisquer outras instituições escolares. Este processo também acarreta

aspectos que devem ser considerados com certa cautela,

A criança, alvo do atendimento multifacetado que deveria ser capaz de dar conta das questões afeitas ao cuidado e à educação, passa a ser vista como uma aluna mesmo que tenha três meses de idade. O profissional que passa a ser privilegiado é aquele com perfil de professor; o cotidiano das instituições é recodificado em conteúdos curriculares que devem observar diretrizes que enfatizam a “difusão de valores sociais, direitos e deveres da cidadania, respeito à ordem e ao bem comum [...] à orientação para o trabalho” (art. 27) (NASCIMENTO In FARIA e PALHARES (Orgs.), 2003, p. 107).

A observação levantada por Vital Didonet (In LIMA, (Coord.), 2005,

p. 25), a respeito da concepção da educação infantil como primeira etapa da

educação básica, reflete um problema conjuntural maior e nos fornece algumas

pistas para começarmos a desvendar o problema da valorização/não-valorização

deste seguimento. Segundo este autor,

[...] essa concepção ainda esta longe de moldar um processo educacional seqüenciado e integrado do nascimento até os 17 anos. O que temos, efetivamente, são três diferentes segmentos, senão quatro: a educação infantil, com uma divisória ainda bastante marcada entre a creche e a pré-escola, o ensino fundamental e o ensino médio. Dos três, o fundamental é o rei. O médio, o príncipe. E a educação infantil, o vassalo.

Nascimento (Op. Cit. p, 108) faz ainda outro alerta,

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DIÁLOGOS – Andréa Libério – Educação Infantil: uma reflexão sobre a formação inicial dos professores

O que se quer enfatizar com isto é que, se há tempos não muito remotos o caráter assistencialista, especialmente da creche, dava a tônica educativa do atendimento, o assentado na LDB corre o risco de desconsiderar as ações de assistência e cuidado pelo fato de privilegiar o educativo por meio do viés da escolarização.

Diante dos argumentos até aqui apresentados, que dão conta da

incontestável importância da infância no processo de desenvolvimento humano;

como é possível descuidar da formação do profissional responsável por mediar a

socialização e aprendizagem das crianças na primeira infância? E no que

concerne a realidade dos professores de educação infantil, que já se encontram

atuando nas instituições de educação infantil, resta-nos reforçar as indagações

apresentadas por Fonseca, (In MENEZES, 2004, p. 162),

Que filosofia fundamenta a prática dos profissionais que atuam nessas instituições? A partir dessa filosofia, que expectativas se pode ter em relação às creches e pré-escolas? Quais os seus objetivos? Como deve ser o cotidiano de educadores e educandos nessas instituições? Quais os seus limites e as suas possibilidades?

A legislação brasileira ratifica a pertinência de uma formação que de

fato contemple as reais necessidades das crianças pequenas e a Política Nacional

de Educação - PNE em suas diretrizes para a educação infantil conclui que,

A formação dos profissionais da educação infantil merecerá uma atenção especial, dada a relevância de sua atenção como mediadores no processo de desenvolvimento e aprendizagem. A qualificação específica para atuar na faixa de zero a seis anos inclui o conhecimento das bases científicas do desenvolvimento da criança, da produção de aprendizagens e a habilidade de reflexão sobre a prática, de sorte que esta se torne,cada vez mais, forte de novos conhecimentos e habilidades na educação das crianças. Além da formação acadêmica prévia, requer-se a formação permanente, inserida no trabalho pedagógico, nutrido-se dele e renovando-o constantemente (BRASIL,2002,p. 27).

A PNE objetiva a definição de um Programa Nacional de Formação dos

Profissionais de Educação Infantil, através da cooperação entre todos os níveis

administrativos. Estabelecendo como metas (BRASIL, 2002,p. 30),

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DIÁLOGOS – Andréa Libério – Educação Infantil: uma reflexão sobre a formação inicial dos professores

a) Que, em cinco anos, todos os dirigentes de instituições de educação infantil possuam formação apropriada em nível médio (modalidade Normal) e, em dez anos, formação de nível superior;

b) Que, em cinco anos, todos os professores tenham habilitação específica de nível médio e, em dez anos, 70% tenham formação específica de nível superior.

A Política enfatiza ainda que,

A partir da vigência deste plano, somente admitir novos profissionais na educação infantil que possuam a titulação mínima em nível médio modalidade normal, dando-se preferência à admissão de profissionais graduados em curso especifico de nível superior (Idem).

Objetivando contribuir, a partir de um olhar sobre a especificidade

da educação de crianças de pequenas e perfil da formação dos educadores

infantis é que este estudo buscou analisar e a formação desses profissionais,

atentando para o fato de que estes carregam consigo a inquestionável

responsabilidade pelo desenvolvimento integral das crianças de 0 a 5 anos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo surgiu no momento em que em nível nacional eram

lançados dois estudos produzidos sobre o processo da formação inicial dos

professores da educação básica. A primeira pesquisa desenvolvida pela Fundação

Carlos Chagas, 36 chama a atenção para a pouca importância dada à educação

infantil na grande maioria dos cursos de Pedagogia. Por sua vez estudos

realizados pela antropóloga Eunice Durhan, 37 dão conta da ausência do dialogo

36 Ver referência bibliografica. 37 Ver citação anterior.

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DIÁLOGOS – Andréa Libério – Educação Infantil: uma reflexão sobre a formação inicial dos professores

entre teoria e prática no processo da formação de professores nos cursos de

Pedagogia, o que segundo essa pesquisadora tem contribuído para agravar, ainda

mais, o quadro da educação brasileira.

No que se refere ao universo da educação infantil, a prática

compreende ao binômio cuidar-educar. Isso significa dizer que perceber a ação do

educador infantil é estar atento ao fato de que nenhuma ação educativa é neutra

e desta forma traz implícita uma concepção de infância, educação e ação

institucional. De maneira breve buscamos historiar a educação de crianças

pequenas percebendo que no que diz respeito a educação infantil no Brasil esta

assenta-se em bases assistencialistas visando uma ação compensatória dirigida

as crianças das classes populares. A especificidade do educador da infância e os

aspectos teórico-prático de sua atuação também foi por nós refletida e aponta

para a necessidade de uma formação inicial que dê conta dessas particularidades

favorecendo a dialógica e a dialética entre teoria e prática.

Este estudo não encontra aqui sua conclusão, ao contrário, aponta-nos

o percurso a ser trilhado onde finalmente poderemos através do campo empírico

traçar o perfil do educador infantil através de sua própria fala, de nossa escuta

sensível, de um olhar diagnóstico e de uma consistente fundamentação teórica.

Entretanto, primamos por findar, esta primeira etapa, com a rogeriana

consciência da incompletude, a freiriana curiosidade epistemológica.

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DIÁLOGOS – Andréa Libério – Educação Infantil: uma reflexão sobre a formação inicial dos professores

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SP: Cortez, 2008. 3 ed., p. 133-167.

SANCHES, Emilia Cipriano. Creche: realidade e ambigüidades. Petrópolis, RJ:

Vozes, 2003.

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DIÁLOGOS – Cristina de Fátima Lourenço Marques – Acerca do Uso de Expressões e Palavras Latinas

Acerca do Uso de Expressões e Palavras Latinas no Direito em Língua Portuguesa Prof.ª Dr.ª Cristina de Fátima Lourenço Marques – UNIP O uso corrente de expressões latinas no Direito tem sido uma tradição que ao correr dos séculos tem se mantido sob diversos aspectos. A tradição se liga ao fato de o Direito enquanto parte das ciências humanas e tendo como origem o Direito Romano. Acresce a isso o fato de que a Língua Portuguesa é uma Língua Latina. Desse modo, os estudos de Direito Romano se fortalece em nossa tradição lingüística. A própria Retórica e a Oratória tem sua fundamentação teórica no Latim e no Grego. Oswaldo Antônio Furlan observa que: “Ademais foi em Latim que os romanos elaboraram o magistral código jurídico, cujas categorias fundamentam o Direito Moderno, que ainda exprime em Latim inúmeros conceitos, normas e princípios jurídicos” (FURLAN, 2006, p. 16)

O uso das expressões latinas serve entre outras coisas para demonstrar erudição e conhecimento acerca do tema num sentido histórico. É claro que seu uso descontextualizado, inserindo-se aqui e ali expressões gratuitas no discurso vem demonstrar também a pomposidade, a necessidade de se tornar incompreensível como forma de se sobrepor ao que não o compreende. O palavrório. Neste sentido é razoável que houvesse o uso do bom senso, de modo a inserir no discurso as expressões latinas que definem conceitos históricos e tradicionais do Direito, de modo que a sua citação provocasse um amálgama de referências intertextuais e enriquecedoras que de outra forma não teriam o mesmo efeito ou significado. É mais ou menos o que acontece em Filosofia ao se citar expressões e palavras em Latim, Alemão ou Grego.

A tradição dos usos no Direito é uma de suas características constitutivas e ritualísticas. A própria configuração espacial do tribunal, o malhete, a toga, são alguns dos elementos característicos desse processo de construção da tradição no Direito. Nesse âmbito o uso de expressões latinas confere ao Direito uma característica que lhe é própria. Seu uso com bom senso confere ao discurso do Direito um conjunto de relações intertextuais de caráter histórico, mas em sentido sincrônico. Uma expressão como “Ad Referendum” ou “Data Venia” não poderiam simplesmente ser traduzidas para o vernáculo sem a perda de um conjunto de significações que lhes são próprias. A primeira, por exemplo, significa “para apreciação”, é uma expressão muito usada em atos de autoridades públicas, quando tomam decisões que precisam ser levadas ao conhecimento de algum órgão colegiado. Significa ainda "para submeter à deliberação de". O verbo vem na forma do gerundivo ("referendum"), que é o mesmo "referre" na forma infinitiva. "Referre" significa "trazer de volta, restituir", ou seja, a decisão tomada "ad referendum" precisa ser levada de volta, restituída a algum órgão para ser tornada definitiva. O particípio passado de "referre" é "relatum", de onde vem a palavra "relato" e também "relatório", significando também algo que é trazido para a consideração de alguém. Já a segunda é correlata à expressão “Concessa Vênia”. A palavra "venia" significa "permissão", "licença", sendo um substantivo. As palavras "data" e "concessa" são formas verbais, sendo "data" originada do

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verbo "dare" (= dar) e "concessa" oriunda do verbo "concedere" (=conceder). Literalmente, a tradução poderia ser "sendo dada permissão" ou "sendo concedida permissão" para dizer ou fazer algo. Conforme se pode deduzir, estas palavras não admitem variação de grafia quando se quer fazer realce. Por exemplo, para se pedir permissão num sentido superlativo, querendo assim dar ênfase ao pedido, deve-se utilizar "data maxima venia" ou "concessa maxima venia", jamais "datissima venia", que é um erro gramatical e serve apenas para demonstrar falta de conhecimento da gramática latina.

Como observa Zélia de Almeida Cardoso acerca da questão da tradução de textos latinos para o Português:

“(...) há uma rica literatura deixada pelo mundo romano, que não só nos permite o desfrute de autênticas obras de arte como estende seu alcance por outras áreas do conhecimento: pela historiografia, pela filosofia, pela antropologia, pela teoria literária em todos os seus matizes, pela ciência, pelo teatro. As obras literárias podem ser traduzidas, é certo, mas a tradução, como sabemos, compromete muitas vezes o que existe de genuíno em uma obra.”(CARDOSO, 2000. p.10)

Consideremos então que a tradução de expressões latinas (os brocardos) para a Língua Portuguesa compromete todo um processo histórico de referências e contextualizações que lhes definem como um campo semântico rico de significações.

Segue uma lista de expressões latinas correntemente usadas no Direito:

Ab initio - Desde o princípio.

A contrario sensu - Em sentido contrário, pela razão contrária.

A posteriori - Pelo que segue, depois de um fato. Diz-se do raciocínio que se remonta do efeito à causa.

A priori - Segundo um princípio anterior, admitido como evidente; antes de argumentar, sem prévio conhecimento.

Apud - Em, junto a, junto em. Emprega-se em citações indiretas, isto é, citações colhidas numa obra.

Carpe Diem - "Aproveita o dia". (Aviso para que não desperdicemos o tempo). Horácio dirigia este conselho aos epicuristas e gozadores.

Curriculum Vitae - Conjuntos de dados relativos ao estado civil, ao preparo profissional e às atividades anteriores de quem se candidata a um emprego.

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Data venia - Concedida a licença, com a devida vênia. É uma expressão respeitosa com que se inicia uma argumentação discordante da de outrem.

Dura lex, sed lex - "A lei é dura, mas é lei.". Prega o princípio de que mesmo as leis mais draconianas precisam ser seguidas e cumpridas; se a parte não concorda com a lei, deve então procurar alterá-la, mas não descumpri-la.

Et cetera (ou Et caetera) (abrev.: etc.) - E as outras coisas, e os outros, e assim por diante. Apesar de seu sentido etimológico (= e outras coisas), emprega-se, atualmente, não somente após nomes de coisas, mas também de pessoas, como expressão continuativa.

Exempli gratia (abrev. e.g.) - Por Exemplo. É expressão sinônima de verbi gratia (abrev.: v.g.).

Habeas Corpus - "Que tenhas o corpo". Meio extraordinário de garantir e proteger todo aquele que sofre viloência ou ameaça de constrangimento ilegal na sua liberdade de locomoção, por parte de qualquer autoridade legítima.

Habeas Data - "Que tenha os dados", "Que conheça os dados". Trata-se de garantia ativa dos direitos fundamentais, que se destina a assegurar: a) o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público; b) a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo.

Homo sapiens - Homem sábio; nome da espécie humana na nomenclatura de Lineu.

Id est - Isto é, quer dizer. Às vezes, aparece abreviadamente (i.e.).

Ignorantia juris non excusat - "A ignorância da lei não é desculpa.", ou seja, não saber que certa ação ou omissão é proibida pela lei não é desculpa para ninguém. No Direito brasileiro, esse brocardo está positivado na Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo 3º, e no Código Penal, em seu artigo 21, caput, 1ª parte. In claris non fit interpretatio - "No que é claro não cabe interpretação." Quando a regra é claramente inteligível, não há necessidade de que seja interpretada.

In memoriam - Em comemoração, para memória, para lembrança.

In posterum - No futuro.

In terminis - No fim. Decisão final que encerra o processo.

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In verbis - Nestes termos, nestas palavras. Emprega-se para exprimir as citações ou as referências feitas com as palavras da pessoa que se citou ou do texto a que se alude.

Ipsis Verbis - Pelas próprias palavras, exatamente, sem tirar nem pôr.

Iura novit curia - "O juiz conhece a lei.", ou seja, tecnicamente não há necessidade que se explique a lei ou sistema legal a um juiz ou tribunal em qualquer processo ou petição.

Lato sensu - Em sentido amplo, em sentido geral.

Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege poenali - "O crime é nulo, a pena é nula sem prévia lei que o defina." No Código Penal Brasileiro, esse brocardo é positivado pelos princípios da Anterioridade da Lei e da Reserva Legal ou Legalidade em seu artigo 1º, que prega: "Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal." Pacta sunt servanda - "Os pactos devem ser observados", ou "Os contratos devem ser cumpridos" é um dos princípios mais utilizados no Direito, sendo inclusive consagrado no artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que reza: "Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé."

Per capita - Por cabeça, para cada indivíduo.

Quorum - Número mínimo de membros presentes que se faz necessário para que uma assembléia possa funcionar ou deliberar regularmente.

Sic - Assim, assim mesmo, exatamente. Pospõe-se a uma citação, ou nela se intercala, entre parênteses ou entre colchetes, para indicar que o texto original é da forma que aparece.

Statu quo - "No estado em que". Emprega-se, na linguagem jurídica, para indicar a forma, a situação ou a posição em que se encontra certa questão ou coisa em determinado momento.

Stricto sensu - Em sentido restrito, em sentido literal.

Verbi gratia (abrev.: v.g.) - Por exemplo.

Verbum ad verbum - Palavra por palavra, textualmente, literalmente.

Vide - Vê, veja, veja-se, veja em. Usa-se quando se quer que o leitor consulte outra palavra, expressão ou trecho.

Costuma-se chama de Brocardo as expressões ou palavras latinas utilizadas no Direito. Um brocardo (em latim: brocardus) é um princípio ou axioma jurídico, particularmente escrito em latim, e que expressa concisamente

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um conceito ou regra maior. A origem da palavra vem da latinização de Burckard, ou Burchard , o bispo de Worms, Alemanha, entre os anos de 1000 a 1025, e autor de uma compilação de vinte volumes de direito canônico chamada Regulae Ecclesiasticae (regras eclesiásticas), que incluíam diversas máximas e axiomas. Por exemplo, a sentença Inadimplenti non est adimplendum ("A parte não precisa respeitar sua obrigação se a contra-parte não respeitar a que lhe cabe."), é usada no Direito Civil para resumidamente indicar um princípio (adotado em alguns sistemas jurídicos) concernente aos contratos sinalagmáticos (bilaterais).

Um aspecto a se considerar no uso das expressões latinas é sua inserção de forma pertinente ao discurso. Um exemplo literário de seu bom uso está nos Sermões do Padre Antônio Vieira, que se utilizando da Vulgata, inseria versículos em Latim nos seus sermões de forma a torná-lo compreensível ao público de fiéis, muitos dos quais não tinham conhecimento do Latim, mas a correta inserção dos versículos no Sermão fazia com que ele se ligasse ao conjunto semântico de tal forma que não se perdesse seu significado. Muitas vezes, a frase (oração ou período) antecedente ou posterior ao uso do versículo era uma tradução adaptada ao contexto do versículo latino:

“Este sermão, que hoje se prega na Misericórdia de Lisboa, e não se prega na Capela Real, parecia-me a mim que lá se havia de pregar, e não aqui. Daquela pauta havia de ser, e não desta. E por quê? Porque o texto em que se funda o mesmo sermão, todo pertence à majestade daquele lugar, e nada à piedade deste. Uma das coisas que diz o texto é que foram sentenciados em Jerusalém dois ladrões, e ambos condenados, ambos executados, ambos crucificados e mortos, sem lhes valer procurador nem embargos. Permite isto a misericórdia de Lisboa? Não. A primeira diligência que faz é eleger por procurador das cadeias um irmão de grande autoridade, poder e indústria, e o primeiro timbre deste procurador é fazer honra de que nenhum malfeitor seja justiçado em seu tempo. Logo esta parte da história não pertence à Misericórdia de Lisboa. A outra parte — que é a que tomei por tema — toda pertence ao Paço e à Capela Real. Nela se fala com o rei: Domine; nela se trata do seu reino: cum veneris in regnum tuum; nela se lhe presentam memoriais: memento mei; e nela os despacha o mesmo rei logo, e sem remissão, a outros tribunais: Hodie mecum eris in Paradiso. O que me podia retrair de pregar sobre esta matéria, era não dizer a doutrina com o lugar. Mas deste escrúpulo, em que muitos pregadores não reparam, me livrou a pregação de Jonas. Não pregou Jonas no paço, senão pelas ruas de Nínive, cidade de mais longes que esta nossa, e diz o texto sagrado que logo a sua pregação chegou aos ouvidos do rei: Pervenit verbum ad regem (Jon. 3,6). Bem quisera eu que o que hoje determino pregar chegara a todos os reis, e mais ainda aos estrangeiros que aos nossos. Todos devem imitar ao Rei dos reis, e todos têm muito que aprender nesta última ação de sua vida. Pediu o Bom Ladrão a Cristo que se lembrasse dele no seu reino: Domine, memento mei, cum veneris in regnum tuum. E a lembrança que o Senhor teve dele foi que ambos se vissem juntos no Paraíso: Hodie mecum eris in Paradiso. Esta é a lembrança que devem ter todos os reis, e a que eu quisera lhes persuadissem os que são ouvidos de mais perto. Que se lembrem não só de levar os ladrões ao Paraíso, senão de os levar consigo: Mecum. Nem os reis

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podem ir ao paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os reis. Isto é o que hei de pregar. Ave Maria.” (VIEIRA, Sermão do Bom Ladrão, I)

Enfim, podemos concluir que o uso de expressões latinas no Direito deve ter como diretriz a intenção da criação de um bom texto, em que nada lhe soe como faustoso ou como estranho ao conjunto, afinal uma das regras fundamentais do texto que vem desde a tradição aristotélica é a regra da Unidade. Neste aspecto o todo deve ser tal que nenhuma de suas partes pareça desnecessária ou desarmoniosa. Hoje, neste nosso século XXI, o abandono ao bom uso da Língua Materna está correlato também ao desconhecimento dos aspectos etimológicos e históricos de sua formação e desenvolvimento. Claro que devemos estar atentos à novidade, ao acréscimo de novos termos, modificações necessárias às regras de ortografia e acentuação, mas também, de igual modo, o conhecimento lingüístico necessita também do conhecimento histórico da formação cultural e social da Língua. O uso de expressões latinas no Direito em Língua Portuguesa vem fortalecer a Ciência do Direito se vem acompanhada da intenção de amplificação do significado, de aprofundamento do sentido numa aproximação com as categorias estéticas e filosóficas do texto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARDOSO, Zélia de Almeida. Iniciação ao Latim. São Paulo, Ática, 2000.

FURLAN, Oswaldo Antônio. Latim Para o Português.: Gramática, Língua e Literatura. Florianópolis, UFSC, 2006.

RÓNAI, Paulo. Não Perca o Seu Latim. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986.

VIEIRA, Antônio. Sermões. Lisboa, Lello & Irmãos, 1959.

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DETERMINAÇÃO DOS PARÂMETROS HÍDRICOS DO SOLO POR MEIO DA

SIMULAÇÃO COMPUTACIONAL DO PROCESSO DE INFILTRAÇÃO

Willames de Albuquerque Soares

Resumo: A simulação do processo de infiltração da água no solo é uma poderosa

ferramenta em muitas áreas de pesquisa, como agronomia, engenharia civil,

hidrologia e as ciências ambientais em geral. As características de absorção e

condução de água pelo solo, a sorvidade S e condutividade hidráulica saturada do

solo Ks, respectivamente, são as que mais influenciam nesse processo dinâmico,

tornando-se de fundamental importância determiná-las. No presente trabalho

realizaram-se ensaios de infiltração de água no solo por meio de infiltrômetros a

simples anel. Para a modelagem, utilizou-se a equação de Haverkamp, para

tempos longos, otimizada por meio de um algoritmo de busca, na obtenção dos

parâmetros S e Ks de um Neossolo Flúvico, respeitando os tempos de estabilização,

gravitacional e geométrico. A análise da modelagem foi baseada na eficiência da

modelagem EM, no erro quadrado médio EQM e na razão dos desvios RD, além do

coeficiente de determinação R² e do valor da função objeto φ. A modelagem

descreveu com precisão os ensaios de infiltração, apresentando EQM inferiores a

4%. Os resultados também mostram que não ocorreram espalhamentos

significativos (RD ≈ 1.0), estando a EM muito próxima de 1, R² superior a 98 % e φ

inferior a 4.

Palavras-chave: Modelagem, Infiltração, Otimização.

INTRODUÇÃO

O conhecimento dos mecanismos do movimento da água nas camadas

superiores do solo é um importante fator em muitas áreas de pesquisa, como a

agronomia, a engenharia civil, a hidrologia, e as ciências ambientais,

principalmente nas regiões não saturada. Esse movimento é geralmente agrupado

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em três diferentes estágios: infiltração, redistribuição e drenagem (ou percolação

profunda).

A infiltração é definida como o processo inicial da entrada de água no solo,

resultante da aplicação na superfície do solo, quer por chuvas ou por irrigação,

onde a capilaridade é dominante nessa fase. É desejável que os métodos e as

técnicas utilizadas para quantificar a Ks e S não provoquem perturbações no solo

e que forneçam valores representativos com precisão e exatidão adequados

(Borges e Libardi, 2000).

Muitos métodos baseados na infiltração da água no solo foram

desenvolvidos para determinar a S e a Ks, empregando um pequeno volume de

água e vem sendo utilizado por diversos autores devido a sua simplicidade.

Dentre os vários tipos de infiltrômetros surgidos, o modelo a simples anel vem se

tornando bastante atrativo, por seu fácil manuseio, e vem sendo utilizado por

diversos pesquisadores (Antonino et al., 2001; Barreto et al., 2004, Bagarello et

al., 2004).

O infiltrômetro a simples anel permite realizações de ensaios de

infiltrabilidade no campo em função do tempo. Ele consiste de um cilindro

metálico, sem as bases, de raio conhecido (Figura 2).

Figura 1 - Infiltrômetro a simples anel

Para a sua utilização. Ele é cravado no solo a um centímetro de

profundidade e em seu interior é adicionado uniformemente um pequeno volume

de água, suficiente apenas para formar uma lâmina d’água na superfície do solo

interior ao infiltrômetro. Este volume de água é novamente adicionado sempre

que o solo dentro do infiltrômetro começa a ficar descoberto. Os tempos

decorridos entre as adições de água são cronometrados. Este procedimento

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continua até que a relação entre o volume de água infiltrado e o tempo se torne

constante.

Uma outra grande vantagem deste método sobre as de laboratório é a sua

aplicação diretamente no campo, explorando a dependência das propriedades

hidráulicas, a estrutura do solo, a presença de raízes ou macro poros e as

práticas agrícolas .

De posse dos valores dos volumes de água infiltrada e dos tempos

decorridos, pode-se determinar a S e a Ks, utilizando-se uma das inúmeras

equações que já foram propostas na literatura, e que podem ser agrupadas em

três categorias: a) modelos empíricos, b) modelos de Green-Ampt e c) modelos da

equação de Richards.

Os métodos empíricos utilizam equações de forma simples, onde os seus

parâmetros são determinados por ajuste dos dados medidos a equação. Essas

equações também providenciam estimativas da infiltração acumulada e da taxa

de infiltração, entretanto não providenciam informações relativas a distribuição

da umidade.

O conceito de sorvidade S foi proposto por Philip (1969), para descrever a

capacidade de um solo homogêneo absorver água na ausência dos efeitos

gravitacionais. A determinação de S é realizada no estágio inicial da infiltração,

justamente quando o efeito da capilaridade é o efeito dominante e o efeito da

gravidade pode ser desprezado.

O objetivo deste trabalho é determinar a S e a Ks de um Neossolo Flúvico,

por meio da modelagem da curva de infiltração acumulada em função do tempo,

utilizando a equação proposta por Haverkamp, para tempos longos.

MATERIAIS E MÉTODOS

Utilizaram-se para os ensaios de infiltração, numa parcela com solo sem

vegetação, na profundidade de cinco centímetros, infiltrômetros de anel de quinze

centímetros de diâmetro e aproximadamente oito centímetros de altura que foram

encravados a um centímetro de profundidade, a fim de se minimizar a

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perturbação estrutural e garantir um fluxo vertical na superfície do solo,

dispostos em forma de um triângulo isósceles (Figura 2).

Figura 2 - Ensaio de infiltração de água no solo

Conforme a metodologia aplicada, foram retiradas amostras indeformadas

do solo para o cálculo da umidade volumétrica inicial e final e da densidade do

solo.

Foi utilizada a equação analítica para tempos longos da infiltração

transitória tridimensional de um solo não saturado proposta por Haverkamp et

al., (1994), a fim de obter a Ks e a S. A expressão simplificada dessa equação é

definida por:

( ) ( )2 2

31ln

2 1Dsd f i

S SI K tKr

⎛ ⎞ ⎛ ⎞⋅⎜ ⎟= + + ⋅ ⎜⎜ ⎟ ⋅ ⋅ −⋅ − ⎝ ⎠⎝ ⎠

γ⎟β βθ θ (1)

sendo rd o raio do disco, Ks a condutividade hidráulica saturada, θf e θi umidade

volumétrica final e inicial, respectivamente, β uma constante no intervalo (0< β

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<1) e γ um parâmetro que traduz os efeito da gravidade numa geometria

tridimensional da infiltração, dentro do intervalo (0,6 e 0,8). Segundo Smettem et

al., (1994), o valor de 0,75 é apropriado para γ.

Os fatores que afetam o processo de infiltração tridimensional, durante a

entrada do fluxo de água são: a geometria da fonte de água, a capilaridade e a

força da gravidade. Duas escalas características de tempo e duas escalas de

comprimento estão associadas a estes fatores e são classicamente usados. O

primeiro é relativo à gravidade e indica o tempo necessário para a gravidade

dominar a infiltração vertical, sendo definido por Thony et al., (1991):

2

0

0grav

StK

⎛ ⎞= ⎜ ⎟

⎝ ⎠ (2)

Para tempos inferiores ao tempo gravitacional (tgrav) a maior parte da

infiltração é dominada pelas forças capilares. E está associado à escala do

comprimento capilar, que é definida como:

( )2

cf i s

bSK

=−

λθ θ

(3)

A escala de comprimento capilar λc foi determinada por White e Sully

(1987), e representa a magnitude relativa das forças de capilaridade em relação a

gravidade.

Da teoria da capilaridade de Laplace, Philip (1969) definiu um raio

característico de poros λm por:

( )2

f im

w

Kp g bS

θ θσλ−

= s (4)

onde σ é tensão superficial (73nN/m), ρw a densidade da água e g a aceleração da

gravidade. Essa escala de comprimento define a dimensão média do tamanho dos

poros que são hidraulicamente funcionais, quando são submetidos a pressão

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aplicada h. Quanto maior for o raio característico, maior será o efeito da

gravidade em comparação ao da capilaridade.

A segunda escala característica de tempo é relativa ao impacto da

geometria do recurso fornecedor de água. Para fontes circulares, Philip (1969)

considerou o tempo tgeom, posterior ao efeito da geometria da fonte, quando as

forças capilares do solo governam o caminho descrito pela água. É definido como:

( ) 2

d f igeom

rt

S

⎛ ⎞−⎜=⎜⎝ ⎠

θ θγ

⎟⎟

)

(5)

O tempo geométrico tgeom representa o intervalo de tempo durante o qual o

caráter unidimensional do processo de infiltração não é alterado.

As determinações dos funcionais S e Ks, por meio de um algoritmo de

busca, otimizaram uma função objeto φ, minimizando a soma dos quadrados das

diferenças entre os valores medidos (Mi) e os estimados (Ti), dos volumes de água

acumulado em função do tempo. A função objeto utilizada possui a seguinte

forma:

( 2

1

N

i ii

M T=

= −∑ϕ (6)

sendo N o número de valores medidos e estimados pelo modelo.

Para avaliar a concordância entre os valores calculados e os observados,

foram avaliados diferentes critérios estatísticos: i) O Erro quadrático Médio (EQM),

que indica o grau de desvio entre as determinações experimentais e os valores

calculados pelo modelo teórico correspondente. É expresso em porcentagem, e

tende para zero quando os valores estimados e teóricos tendem a ser iguais. Este

teste fornece informações de fácil entendimento no desempenho dos modelos,

além de permitir uma comparação termo a termo do desvio real entre o valor

calculado e o valor medido; ii) A razão dos desvios (RD) que descreve a razão entre

o espalhamento das determinações experimentais e o espalhamento dos valores

calculados pelo modelo teórico correspondente, tendendo para 1 (um) quando os

valores estimados e aqueles do modelo teórico são consistentes; iii) A eficiência da

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modelagem (EM) que indica se o modelo teórico fornece uma estimativa melhor

das determinações experimentais que o valor médio dessas determinações.

( )2

1 100*

N

i ii

T MEQM

N M=

⎡ ⎤−⎢ ⎥

⎢ ⎥=⎢ ⎥⎢ ⎥⎣ ⎦

∑ (7)

( )

( )

2

1

2

1

N

ii

N

ii

M MRD

T M

=

=

−=

∑ (8)

( ) ( )

( )

2 2

1 1

2

1

N N

i ii i

N

ii

M M T MEM

M M

= =

=

− − −=

∑ ∑

∑ (9)

sendo Ti os valores calculados pelo modelo, Mi os valores experimentais e M a

média dos valores experimentais, e N o número de determinações.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A infiltração acumulada determinada experimentalmente em função do

tempo, para os três ensaios de infiltração A1, A2 e A3, está apresentada na

Figura 3. As diferenças observadas para cada ponto foram provocadas pala

variabilidade espacial, em pequena escala, dado que cada ensaio ocupa locais

diferentes, embora próximos.

Os valores da variação de umidade, condutividade hidráulica saturada,

sorvidade, tempos de estabilização, gravitacional, geométrico modificado e o raio

característico de poros estão apresentados na Tabela 1.

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Na comparação dos valores da infiltração medida e dos valores da

infiltração modelada, utilizando os parâmetros determinados por um algoritmo de

busca, observa-se que em todos os três pontos, a modelagem apresentou um

ótimo desempenho, com valores de R2 superiores a 98 %. As diferenças entre as

umidades iniciais e finais nos pontos A1, A2 e A3 não apresentaram grandes

desvios em relação à média (0,003). Os valores obtidos da condutividade

hidráulica saturada se enquadram numa faixa de variação entre 0,410 e 0,239

cm.h-1 e média de 0,319 cm.h-1. Esses valores estão dentro da faixa de

condutividade hidráulica saturada, reportadas no catálogo de solos GRIZZY por

Haverkamp et al., (1997).

Figura 3 - Infiltração acumulada de água no solo medida nos pontos A1, A2 e A3

em função do tempo, em segundos.

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Tabela 1 - Valores da variação de umidade (Δθ),

condutividade hidráulica saturada (Ks), sorvidade (S),

tempos gravitacional (tgrav) e geométrico (tgeom) e o raio

característico de poros (λm).

Δθ Ks S tgrav tgeom λm

cm3/cm3 cm/h1 cm/h0.5 s mm

A1 0,286 0,410 1,469 46275 13620 0,072

A2 0,281 0,307 1,488 84366 12792 0,052

A3 0,280 0,239 1,376 119262 14938 0,047

Médias 0,282 0,319 1,445 83301 13783 0,057

Os resultados da análise estatística apresentada na Tabela 2 demonstram

uma excelente concordância entre a as curvas ajustadas pela equação 1 e os

dados experimentais.

Tabela 2 – Análise estatística referente a

infiltração de água no solo franco (estação

experimental)

EQM(%) RD EM φ R²

A1 2,07 1.00 1.00 1.97 99,68

A2 2,80 1,01 0,99 2.65 98,77

A3 3,94 1,01 0,99 3.74 98,74

Os valores apresentados pelo erro quadrático médio são menores que

4,0%, sendo o ponto A1 o que apresentou o menor EQM. A razão dos desvios RD

aproximou-se bastante da unidade em todos os casos. Com relação aos valores

da eficiência da modelagem (EM), nota-se que ocorreu uma excelente estimativa

dos parâmetros hídricos pela modelagem, uma vez que os valores tendem para

1,0. O coeficiente de massa residual (CRM), indica que ocorreu uma pequena

sub-estimativa na modelagem.

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CONCLUSÃO

Neste trabalho, modelou-se a infiltração acumulada da água num solo, em

função do tempo, com o objetivo de se determinar a sua condutividade hidráulica

saturada e a sua sorvidade, por meio de um algoritmo de busca.

A infiltração determinada pela infiltrometria a simples anel e modelada,

utilizando os valores que minimizaram a função objeto empregada, globalmente,

como mostra os resultados da análise estatística, não demonstraram grandes

diferenças.

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