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Revista Escambanáutica - Editora Escambau

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Revista EscambanáuticaEscambau - Coletivo Editorial

Edição: Moacir Fio & Wilson Júnior

Comissão editorial: Michel Euclides, Moacir Fio, Wil-son Júnior

Editora de arte: Nathália Pimentel

Revisão: Mariana Paixão

Diagramação: Raoni Kachille

Ilustração: Bruno Romão

Contos: Ana Luiza Silva, R. R. Portela, GabiOZ

Copyright © 2021 Escambau Coletivo Editorial.

Todos os direitos reservados.

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Esta é uma publicação independente, possível graças ao apoio de escambanautas. Graças a es-sas pessoas incríveis, conseguimos produzir uma

Escambanáutica profissional e independente. Se você quiser e puder, considere nos apoiar com qualquer va-lor acessando catarse.me/escamabanáutica.

Nosso agradecimento eterno a:

Adams Pinto | Ana Luiza Ferreira Gomes Silva | Auryo Jotha Mesquita da Rocha | Bianca Berdine Martins Men-des | Bruna Pereira de Sousa | Bruno de Oliveira Batis-ta | Cançado | Carlos Diego Rodrigues | Carlos Renato Gondim de Oliveira | Conrado Junior | Daniel Grimoni Alfarella | Daniel Pirraça | Daniela Atalla | Danilo Reis | Di Toledo | Diego Sampaio | Dmitri Gadelha | Duanne Ribeiro | Eduardo Maia Teller | Elisa Do Vale Fonseca | Elizabeth de Jesus Santos | Elves Cunha | Eniara Mo-cellin | Fabiano Sorbara | Felipe Henrique | Fernando Stumpf | Fransmagno do Nascimento Matos | GabiOZ | Gabriel Leir Gandra | Gustavo Claude | Haussíria Maria | Hermes Veras | Ícaro Lima de Carvalho | Ícaro Medei-ros de França | Italo Duarte | Jana Bianchi | João Nilo de Souza Nobre | João Vicente Menescal de Oliveira | José Genilton | Jota Oliveira | JP_Schimidt | Juliana Henri-que | Júlio Ardaia | Kael Angeli | Kelvin Lima | Leandro Leal Chaves | Leo Silva | Lourenço Moura | Lucas Cade-te | Luccas Bach | Lucirene Façanha | Lygia Carneiro de Sousa Amador | Marcio Rosa | Maria Clara Martho Betti | Maria Lucimar Vieira Bezerra | Mile Cantuária | Misael Pulhes | Naiara Frota Teixeira | Natalia Sousa Barros | Nayara de Castro Chaves | Nicole Sigaud | Noah Malta | Otávio Definski | Oziel Herbert de Araújo Pereira | Ra-phael Carmesin Gomes | Raphael PH Santos | Renan da Silva Santos | Renan Gomes Barcellos | Renata de Lima Martins | Ridson de Araújo | Rita Zuim Lavoyer | Ro-drigo Domit | Talles Azigon | Tennyelle Belisario Clo-

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ves Pereira | Thay Petit | Thiago Guimarães Pantaleão | Thiago Monte | Thyago Silva da Costa | Vitor Luis de Andrade Rosa | e Vitor Paixão.

Navegar é preciso!

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Índice

Editorial | 6

Monstros do mar têm mães | 9

Três danças | 31

Frutífero | 45

Entrevista: Ana Luiza Silva | 63

Entrevista: R. R. Portela | 67

Entrevista: GabiOZ | 71

Classificados | 75

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Editorial

Tudo poderia ter surgido do acaso.

Em 2015, a maior tristeza do brasileiro era relembrar os sete gols alemães do ano anterior. O 7x1 foi o in-suspeito começo de uma era sombria, anunciada pela mudança nas cores usadas por manifestantes (saía o preto dos black blocs, entrava o amarelo dos panelei-ros) e consolidada no golpe de outubro de 2016.

Para mim, tudo seguia sem maiores sustos nem alegrias. Eu trabalhava em escritório, absolutamente frustrado, e tinha acabado de abandonar minha última tentativa em uma banda de rock. Meio por curiosida-de, meio por tédio, resolvi voltar a escrever umas coi-sinhas e entrei em grupos de escrita nas redes sociais.

Foi num desses grupos que encontrei uma força da natureza chamada Wilson Júnior. Cearense como eu, decidido a se tornar escritor profissional e a criar uma cena literária independente, abrangente e gregária, Wilson me contaminou com essa estranha vontade de fazer as coisas acontecerem. Criamos um grupo de es-tudos de escrita. Quando Michel Euclides surgiu com o nome “Escambau”, sabíamos, os três, que aquilo segui-ria rumos inesperados.

Logo, o Escambau se tornou um dos maiores grupos de literatura do Facebook, com direito a portal na inter-net e prêmios literários. Vieram as bienais, os jornais, as colunas, mas eu sabia que algo estava faltando. Pre-cisávamos de um novo canal, um meio que fosse mais durável que o website. Comecei a traçar os planos para uma revista literária, tomando como exemplo, claro, a magnífica Revista Trasgo.

Porém, a vida acontece. Em 2017, sofri uma depres-são severa. Afastei-me do Escambau e deixei em sus-penso todos os meus sonhos. Meu foco era sobreviver.

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Anos se passariam até eu conseguir voltar. Wilson e Michel tomaram conta da casa e, se por um lado o nos-so portal na web estava morto, por outro, uma nova e enérgica comunidade havia se formado. Em meio ao dis-tanciamento social imposto pela pandemia de Covid-19, pessoas de todo o Brasil passaram a se reunir em nossas lives malucas sobre edição e produção de textos.

Era um Escambau menor e melhor.

A ideia da revista, então, brotou naturalmente, agora em terreno fértil. Outras revistas literárias já tinham fei-to história, caso da Mafagafo, um grande exemplo para nós, ou a Perpétua, que nos presenteou com grandes amigos e parceiros. Era hora de lançar a Escambanáu-tica, uma revista que reunisse tudo o que sempre pen-samos sobre literatura: a união entre o pop e o clássico.

Como sempre no Escambau, a criação foi coletiva. Desde a ideia de uma revista pulp com linguagem la-tino-americana até a paleta de cores, absolutamente tudo foi discutido com um grupo de pessoas incríveis, as primeiras escambanautas. Até mesmo o nosso eso-térico manifesto, “Por um fantástico pós-colonial”, em que lançamos a ideia de “pulpa mágica”, até mesmo ele foi debatido à exaustão.

A força desse trabalho tomou forma em nosso proje-to de financiamento coletivo, que torna possível o so-nho de pagar ilustradores e autores. Afinal, como can-tou Raul, sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade.

Claro que isso só poderia mesmo resultar em algo tão lindo quanto esta primeira edição da Escambanáu-tica. Além da impressionante capa de Bruno Romão e Nathália Pimentel, temos um sinistro conto sobre ma-ternidade e culpa em “Monstros do mar têm mães”, de Ana Luiza Silva; uma história sobre política e amor en-volvendo estranhas criaturas carnavalescas em “Três danças”, de R. R. Portela; e uma onírica jornada de auto-

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descoberta e recomeço em “Frutífero”, de GabiOZ. Três trabalhos magníficos que temos a honra de apresentar.

Quando penso em todos os acontecimentos até esta publicação, é fácil supor que tudo poderia ter surgido do acaso, da sorte, do destino, de um alinhamento de astros. Mas não. Tudo surgiu da vontade de fazer lite-ratura mesmo contra todos os prognósticos, da von-tade de respirar arte em um país que insiste na morte, da vontade de fazer junto em um mundo que valoriza o individualismo. Jamais é mérito de alguém; sempre é mérito de todos.

Pois navegamos contra a maré e não tememos pe-dra alguma.

O nosso farol é o movimento.

Obrigado, Escambanautas. Naveguemos.

Moacir Fio

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Monstros do mar têm mãesAna Luiza Silva

Antes da tempestade, Dona Maria tinha um filho.

Antes do filho, fui apenas Maria. Sentava na areia da praia olhando o barco de papai seguir o feixe branco do farol de volta para a vila, para mim.

— De dia, você obedece o sol, e, de noite, as estrelas — ele dizia. Em outra vida, teria ensinado essas coisas para um filho homem. Nesta, havia apenas eu. Para um casal de idade como meus pais, eu fui um milagre.

— E, por isso, ainda há de ver muitos milagres — ele piscava o olho. Me contava tudo. O sol do meio dia não faz sombra, aquele é o Cruzeiro do Sul. Lua minguante faz maré morta e o bijupirá gosta de barco afundado.

O certo teria sido ficar em casa com minha mãe, lim-pando peixe, cozinhando, lavando roupa. O certo teria sido não olhar demais para as águas e os navios sumin-do, ou, se olhasse, olhar pensando em algum amado que se foi, rezando para que os marinheiros voltassem.

Só um pouco não tem problema, papai dizia para mi-nha mãe, e me ensinava a nadar direito. O bom nada-dor respira para os dois lados e não espera a onda que-brar pra passar. Só um pouco, dizia. Deixava eu subir no barco, trançar redes. Com carinho, senão rasgam. Só um pouco.

— Você sabe, Maria, o que tem do outro lado da li-nha do mar? — ele sorria-sem-sorrir. Mas, quando eu imaginava, não era só um pouco.

Eu gostava da paz de lavar o chão da casa com minha mãe, limpar o peixe na cozinha e até lavar as roupas, cantando com as mulheres da vila – mas, quando che-gava o fim de tarde e o céu refletia no espelho d’água salgada, meu peito apertava. De repente, os cantos eram

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altos demais, cansados demais. Nessas horas, eu fecha-va os olhos e tentava ouvir a música do resto do mundo que o vento trazia. Pensava que, um dia, cantaria junto.

Na nossa ilha, as pessoas não eram muito diferentes dos pedregulhos cinzentos, fincados na terra. Acostu-mados com a violência das águas e dos temporais, esse também era o jeito de agir, de rir, de amar. Se as ondas destruíssem casa por casa, na tarde seguinte, as pare-des de pau a pique já estariam reerguidas, exatamente iguais, sem espaço para lágrima ou frustração.

Era um pedaço de terra para se nascer e morrer, para ter filhos o quanto antes, que ali também fizessem ou-tros – até que a vila durasse para sempre. Jovens ou ve-lhos, ninguém gostava de mim. Falavam comigo e riam das minhas conversas, mas, no fundo, estavam sempre desconfortáveis sozinhos comigo, olhavam para o lado quando eu falava demais. A filha amalucada de um pes-cador, a moça que só falava sobre deixar a ilha. Querer tanto ir embora era traição, indelicadeza imperdoável, e lá estava eu entrando de pés sujos em suas casas.

Foi assim com minha mãe, que tratava meus sonhos como infantilidade que a idade havia de curar. Foi as-sim com ele também, o meu marido. Mesmo antes de ser meu marido. O conheci a vida toda, um menino meio bruto, que não me olhava duas vezes, tornado homem de poucas palavras, que me olhava demais. Um dia, o vi na areia, os braços fortes puxando a rede contra o sol, e o quis.

Era apenas isso, algo do mundo que eu queria co-nhecer.

Conheci. Ele me segurou com força demais, porque era o que conhecia. Depois, não conseguia me olhar muito. Queria ser gentil, eu conseguia ver, queria, tal-vez, que eu fosse gentil com ele. Sem sabermos o que fazer um com o outro, o momento terminou. Era para ter sido só um momento.

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Mas a criança veio. Veio o casamento e a casa no pé do penhasco.

Vesti véu branco e virei Dona Maria no mesmo mês. Meu pai não viveu para ver a vergonha da barriga re-donda sob o vestido.

— Você tem sorte — minha mãe disse. — Às vezes, eles pegam o barco e fogem pra longe — sorriu na di-reção do meu marido. — Ele ficou.

E ninguém lamentou que eu também teria que ficar.

O menino veio ao mundo com o mar dentro dele, os olhos parados como os de um peixe morto. Nasceu com o cabelo fino e negro do pai. Foi a primeira coisa que vi quando o segurei, ainda sujo. Chegou num par-to de noite inteira, rasgando o caminho para o mundo contra meu corpo. Não parecia caber nas minhas mãos. Vai chorar, pensei.

Não chorou. Dizem que é saudável o bebê gritar, abrir os pulmões – mas ele veio quieto, senão pelas batidas do pequeno coração. Lembro que alguém o tirou de mim, talvez o pai, ou a parteira. Esperei a perda. Veio um sono de alívio.

Mesmo quando acordei de novo, ele permaneceu assim, torto nos meus braços. Esperavam que eu o ali-mentasse, então o fiz. Limpei, penteei os cabelos de lado e conferi de madrugada se respirava durante o sono. Os olhos, eu evitava.

Sua característica mais marcante era o silêncio. Cho-rava pouco e demorou a sorrir. Um ano, dois anos, cin-co. As respostas não vinham, as palavras não saíam. Com o passar do tempo, deixaram também de pergun-tar. Quando as palavras finalmente brotaram de sua boca, vieram frouxas, sussurradas. Ele cresceu magro e curvado para dentro de si.

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O pai tentou corrigir. No começo, num quase-afeto de ter filho homem, que seguiria seu ofício no mar. Mas logo as juntas de seus punhos se sujaram de sangue. O som abafado das pancadas acompanhava o vento. Em noites paradas, em que as ondas guardavam silêncio, eu ligava o rádio. O olhar não levantava da comida fer-vendo no forno.

Desse tempo, as minhas maiores lembranças são de tarefas, uma após a outra, chão para lavar, cenouras a cortar, roupas para esfregar e quanto menos tempo para pensar, melhor. Depois do parto, não sobrou muito som em mim também. Doía e não doía olhar para o menino.

Tinha mar demais nele. Havia algo de mim mesma nas írises enormes, na pequena boca que não gritava. Toda vez que ele sentava na beira das pedras, em noite de lua, dava pra ver os olhos repletos de água e sal.

As outras crianças não falavam com ele. Nunca hou-ve xingamentos, mas também nunca houve visitas e, quando corriam, passavam por ele. Se eu fechasse os olhos, conseguia escutar os passos leves do meu filho atrás dos outros garotos.

Ele passava muito tempo sentado sozinho num ban-co, sempre o último a terminar de trançar as redes de pesca. Quando manejava os fios, as pontas dos dedos giravam devagar, tão leves, quase alisando as linhas. Era só nessas horas, olhando os dedos pequenos fa-zendo os trançados delicados, que eu tinha vontade de chorar.

Pouco a pouco, todo o som que existia no menino se arrastou para dentro. E então, no dia da tempestade, a maré veio levar o resto.

Fazia nove anos que ele tinha nascido quando caiu tanta água do céu que o vento o confundiu com o mar. Quando as portas fecharam e a luz do farol sumiu na paisagem. Quando as outras crianças correram para o abrigo e ele não veio.

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Começou com um brilho branco no horizonte, por-que eu ousei olhar.

— Relâmpago — disse a vizinha, esfregando a roupa na bacia com tanta força que espirrou água no meu ros-to. Ou já teria sido a chuva? Estou certa de que as gotas só vieram depois que me levantei, largando o trabalho com as mãos ainda sujas de sabão. Sim, com certeza a chuva caiu depois do vento arrancar o varal, das nu-vens se levantarem como gigantes no céu.

A correria foi tamanha que só vi meu filho perto de-mais da praia porque a vizinha me puxou, a voz estri-dente cortando o caos:

— Cuidado!

Ele pareceu tão pequeno diante da pedra onde sen-tava, mesmo com as costas retas. Menor ainda diante da água puxando, da onda que se erguia feito monta-nha, uma enorme garra d’água. Houve um momento suspenso em que a crista da onda pareceu tocar as nu-vens escuras e parar. Vai quebrar, pensei.

Uma vez, quando ainda era bem pequena, teimei de esperar meu pai dentro d’água. Acabei pisando num buraco e desci tão fundo que achei que não subiria de volta. A água entrou pela minha boca e meus olhos ar-deram, muito abertos, vendo o sol turvo lá em cima, a garganta queimando do sal – até que senti os braços da minha mãe me puxando, sua voz gritando em de-sespero. Um quase abraço que me salvou da morte.

Talvez por isso, quando a onda cobriu o menino, senti os braços formigarem. Num minuto, havia o meu filho, no outro, apenas água. Quando o mar veio, não houve abraços.

Meu corpo tremia, os cabelos grudados nos ombros, cheios de chuva. Pus as mãos no rosto. Tinham cheiro de sabão.

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A onda foi rápida demais, disse a mim mesma. Al-guém me puxou e segui, como se visse tudo de cima. Fui enrolada em algo macio. Uma toalha?

— Ela está em choque — ouvi uma mulher dizer, lon-ge. — Algum sinal do menino?

O menino. O menino se foi. Ficou olhando a água chegar e não correu. Mas ele sempre foi tão quieto, tão distante que nunca houve o que conversar. Eu o tinha alimentado, tinha lavado suas roupas. Porém, nunca o ensinara a limpar os peixes, ou lera para ele histórias de dormir. Jamais lhe contara sobre o horizonte. Jamais lhe falara sobre o oceano. Agora, era tarde, o menino não teve chance.

Como uma pequena presa diante de um monstro.

Naquela noite, deitada ao lado do meu marido no abrigo, eu esperei a dor chegar, mas o que veio foi um sono de alívio.

De manhã, contra todas as probabilidades, a casa ainda estava lá. Meio torta, porém de pé. As roupas es-tavam todas jogadas no chão, a cerca caída, a palha fora do lugar. Depois de tudo, parecia errado que aquelas paredes tivessem resistido, de porta trancada.

Pus a mão na maçaneta e empurrei. Não abriu.

De repente, o silêncio sem vento foi demais.

— Ontem à noite — comentei, surpresa em ouvir mi-nha própria voz. — Eu sonhei que me afogava.

Meu marido levantou a mão devagar, como um gesto incerto se me consolava ou não. Talvez só quisesse ten-tar abrir a porta também, fugir dessa conversa. De todo modo, não fiquei sabendo, a mão voltou para o bolso.

— Vamos ter que procurar o corpo — ele disse em tom baixo, olhando a casa, depois a praia. O encarei: as linhas na testa, os cabelos ficando brancos. Parecia não saber onde pisar fora de um barco. Era para onde costumava fugir. Olhei para a porta. Para ele. Para a maçaneta.

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— O quê?— ele disse. Só suspirei e empurrei a porta de novo.

Dessa vez, abriu, mas por dentro. Rangeu um pouco e, por um momento, achei que tivesse aberto sozinha, até olhar para baixo.

Lá estava ele, o cabelo preto fino, o corpo pequeno e franzino. Os olhos de peixe me fitaram.

— Mãe — disse, e eu soube imediatamente que não era o meu filho.

Pensei ainda estar no pesadelo da noite passada. A qualquer momento, a água viria, destruiria tudo. Abri a boca, como que para dizer algo. Impostor. Mas o me-nino tinha dito “mãe”, e eu ouvi a palavra pelo que ela era. Impostora.

Meu corpo tremeu, os ombros de novo pesados, como se os cabelos molhados de chuva ainda os pu-sesse para baixo. Vi tudo de longe de novo, pai e não--filho se encarando. Toquei meus cabelos, estavam se-cos e presos no alto da cabeça.

Meu marido levantou um dos pequenos braços do menino, virou seu rosto de um lado para o outro. Ba-lançou a cabeça em gesto positivo curto, perdido em pensamento.

— Vai pro quarto — disse, até suave, e o menino foi.

Virou pra mim, súbito. Então, entendi: ele não per-cebeu. Eu não sabia, ainda, que ninguém mais perce-beria.

— Você não pode inventar essas coisas!

— Não inventei — retruquei, impassível. Sentei numa cadeira porque, se a voz tinha de estar firme, eu não podia estar de pé.

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— Como diabos ele poderia ter sobrevivido, então?

Não sobreviveu, pensei em responder, mas não es-tava preparada para parecer louca, mesmo diante de alguém como ele.

Meu marido bateu os punhos na mesa, fazendo-a sacudir. Seus olhos estavam vermelhos, mas nós dois sabíamos que aquela violência se encerrava ali. Era o tipo de homem que usava a força para resolver os pro-blemas, se achava que tinham solução. Não era o caso do nosso casamento.

Nesse dia, me chamou de tudo o que não tinha tido coragem antes. Não doeu. Ele não me conhecia o sufi-ciente para me machucar.

Nada como mãe naquela voz.

O menino ficou no quarto um tempo, depois saiu para comer junto conosco. Não disse mais palavra alguma naquela manhã. Sem dúvida, estavam lá os mesmos olhos, nariz, queixo. Ele andava com as mesmas per-nas finas e segurava os talheres com as mesmas mãos ossudas. Os olhos de peixe, porém, encaravam de vol-ta – a maré baixa que morava neles tinha subido. 

Não eram a única diferença e, dia após dia, elas foram ficando mais claras. Agora, quando andava, os passos dele não saíam arrastados e leves. Pisavam com força. Tap, tap, tap. Eu conseguia ouvir se fechasse os olhos.

O corpo, fechado em si, pareceu se abrir, pouco a pouco, e assim também vieram as palavras, firmes, uma por uma. Quando corria, agora, os outros meninos cor-riam junto.

De início, o pai encarava, desconfiado, a mudança. Agora lhe sorria, bagunçando seu cabelo. O menino o ganhara. Sentava perto no almoço, perguntava do barco, da pesca. Um dia, pôs a mão de leve em seu rosto e disse:

— Me ensina a jogar a rede, pai?

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O afeto no olhar do meu marido me fez pensar se al-guém jamais tocara seu rosto daquele modo. Vi a espe-rança nascer devagar no homem bruto, que criava um sorriso-sem-sorriso para esse novo filho. Finalmente, o filho que queria.

Enquanto o nosso está morto e ninguém procura o corpo. Ninguém sequer nota a sua ausência.

O menino estava sempre cercado de gente, agora. Não passava mais horas sozinho num banco trançan-do fios. E as redes, que antes eram tão preciosas, fica-vam com grandes buracos, mal-acabadas.

— Depois pega o jeito disso — dizia o pai.

Pela primeira vez, parecia uma criança da sua idade. Mas eu o via pelo que ele era. Somente eu enxergava os sinais.

À noite, escutava o estrondo dos pés dele no chão – tap, tap, tap – e o barulho da porta batendo. Sempre vol-tava antes do pai chegar da pesca. Eu fingia dormir. Uma vez, só uma vez, eu o segui. Vi a sombra dele no penhas-co, curvado sobre algo, comendo. Voltei rápido pra casa.

No café da manhã, reparei em como ele só mexia as coisas no prato, fingindo levar à boca. Ele me viu olhando. Sabia.

— Me ensina a limpar os peixes, mãe? — tocou meu rosto, como fizera com meu marido. Consegui não recuar.

— Claro — eu disse. Dois atores numa peça, mãe e filho. — Senta aqui perto de mim.

Dei-lhe a faca boa, de cabo de madeira escura, como minha mãe teria feito. Fiquei com a ruim, antiga, mas igualmente amolada. Você sempre deixa o mais inexpe-riente com a melhor ferramenta, ela diria. Mas eu não sabia o que ele era e nem que experiência tinha.

— Muito cuidado para não se cortar — adverti. Por favor não me corte, por favor não me mate. Ele não es-

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tava prestando atenção em mim, parecia curioso com a faca. Segurou o cabo de uma forma engraçada, e eu ri, meio histérica.

— Não, não, mais de lado, assim — segurei a mão gela-da dele, pondo no lugar. Depois, fui mostrando como fa-zer no meu peixe, devagar. Ele ia me seguindo, imitando num menor. Foi mais fácil quando ficou mais maquinal.

— Assim não, tem que ir com calma, paciência. Mais em pé a faca pra tirar a escama. Agora, um corte no meio.

Ele melhorou depois de um tempo e sorriu, irradiando alegria. Era uma expressão estranha no rosto do meu filho.

— Está bem, já, deixa que eu faço o resto — disse no tom mais doce que pude, ainda baixo demais — Vai brincar.

À noite, ele voltou pra mim pedindo:

— Me conta uma história pra dormir?

E eu contei, tentando trazer da memória alguma da minha própria mãe. Era uma vez uma vila linda, sob a lua cheia. A falta de prática me fez misturar duas his-tórias e contar o final de uma terceira. Ele não mencio-nou as incongruências ou a minha voz engasgando de vez em quando, as minhas mãos tremendo na cadeira. Não disse nada, só me olhou, assentindo nos momen-tos certos. No fim, ele disse:

— Boa noite, mãe.

Dei boa noite e saí. No quarto, já debaixo das cobertas, ainda estava tremendo. Tap, tap, tap, ouvi. E o barulho da porta. Cada um sabia que o outro estava fingindo. Eu faria o possível para que ele não parasse de fingir.

Me vi revirando baús antigos na Igrejinha. Procu-rava os livros de criança. Não conseguia encontrar os que lembrava da minha infância no meio dos objetos

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velhos das doações – roupas, pedaços de brinquedos. Como se chamada, minha vizinha apareceu na porta, vassoura na mão. Uma desculpa para vir espiar.

— O que você está fazendo?

— Você sabe onde estão os livros de criança? — eu perguntei, tentando não fechar os olhos, não suspirar, não demonstrar de modo algum a irritação.

— Ah — algo nas linhas do rosto dela suavizou. — Se perderam. Alguns foram doados.

Ela se aproximou, largando a vassoura perto de um banco, para se agachar perto do baú ao meu lado. O ca-belo dela estava a bagunça de quem lavou roupa ainda há pouco, o que eu deveria estar fazendo. Esperei al-gum comentário cortante.

— Se quiser, posso te ajudar a procurar — disse, e foi a conversa mais pessoal e mais longa que tivemos, todos esses anos morando uma do lado da outra. Essa mulher não me odeia, pensei, surpresa.

Talvez tenha sido o leve quê de arrependimento, ou a expressão de carinho no rosto redondo – tão rara di-recionada para mim. Abri a boca, a história inteira na ponta da língua, mas ela interveio primeiro.

— Ele está bem melhor, fico feliz — disse, e era bem claro que estava falando do menino. — Sabe, Maria, vendo você procurar esses livros, penso que está mais em paz com a maternidade.

Ela sorriu e se aproximou, colocando um braço sobre os meus ombros, e toda a minha vontade de falar algo morreu. Pensei nos seus três filhos, agora brincando com o menino-monstro. Meu filho se foi e todos esta-vam gratos, felizes por mim. Mexi mais um pouco no baú para não ter que responder.

Meus dedos se prenderam em algo fino. Uma rede de pesca antiga, os fios ainda inteiros, bem trançados. Apertei.

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Um dia, logo que o fim de tarde caiu e os peixes pa-raram de se esconder, meu marido disse:

— Hoje vou levar nosso filho no barco.

O menino só sorria, e eu me perguntei se ele quem havia pedido. Como limpar os peixes. Como as histó-rias. De costas pra mim, andando juntos na direção do barco, pareciam mesmo pai e filho. Vestidos com as mesmas camisas de algodão azulado, tinham as mes-mas chinelas marrons e pisavam no chão em sincro-nia, suas sombras idênticas se misturando às pegadas na areia.

Foi só quando voltei para a cozinha, as mãos inquie-tas limpando poeira imaginária do avental, que notei. A faca de cabo de madeira escura não estava mais na pia. Talvez tenha guardado na gaveta, pensei. Também não estava lá.

Esperei, à noite, com somente a companhia do ven-to batendo na janela. A manhã trouxe o menino sozi-nho no barco. Cedo demais, antes de todos os outros pescadores voltarem.

Ele entrou em casa de súbito, com as mãos nos olhos, o corpo curvado. Mau presságio. Parecia dividido. Eu sabia que, por baixo dos dedos, os olhos, antes de água e sal, deviam estar secos.

— O que foi? — eu disse, sem pensar melhor.

Como se posto em movimento pela minha voz, o menino segurou minha mão, parecendo procurar al-gum consolo, sem levantar o olhar. Só me deixou mais nervosa, mas não tive coragem de dizer palavra algu-ma. Antes de se esgueirar para o quarto, ele deixou, entre os meus dedos, um pedaço de pano azulado. Eu mesma tinha costurado aquela camisa em uma época em que ainda me importava com presentes.

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Entendi o aviso.

Esperei uns momentos o clique na porta do quarto do menino. Até o silêncio cair de verdade na sala. Só então corri para o pedaço de praia mais perto de casa, onde meu marido guardava o barco.

Você está louca, Maria. Ele vai estar lá, só ajeitando os materiais para voltar. Ele sempre volta. Às vezes, eles pegam o barco e fogem pra longe. Ele não. Ele ficou.

Ele ficou, mas não estava lá. Mal se podia ver a embar-cação de madeira debaixo de tanto sangue. Nenhum sinal do corpo, nenhum sinal do homem que dormira do meu lado por todos esses anos. Mas muito, muito sangue.

Nem sabia que tinha tanto sangue dentro dele.

A aceitação veio imediata. Não tremi. Antes mesmo de saber o que estava fazendo, trouxe o balde d’água, os panos, os produtos de limpeza. Me joguei no barco e esfreguei, esfreguei até meus panos de chão cinzen-tos ficarem da cor de vinho tinto e meus dedos gros-sos de inchados. Deixei tudo impecável, a madeira, os objetos do ofício do meu marido, a faca, que escondi no avental. Até a areia suja ao redor tirei e joguei sal do mar naquilo tudo – como se banhasse o barco do mau presságio. Não tinha muito tempo antes da praia en-cher. Depois que tinha começado essa tarefa, não ha-veria um argumento convincente. Não podia ser vista. Ninguém acreditaria em minha inocência. Esse pensa-mento me fez rir. Eu, inocente. Já fui um dia?

Fui rápida. Logo o barco estava amarrado como devi-do, nenhum sinal do que se passara. Carreguei as ferra-mentas do meu crime, ainda imundas. Entrei em casa e primeiro me banhei esfregando a pele inteira com bu-cha. Depois, lavei a roupa que usara, assim como cada um dos panos. Joguei a água suja fora e, na mesma bacia, continuei lavando as roupas normais de casa. As cami-

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sas sujas do homem que nunca voltaria a usá-las. Nin-guém haveria de notar a diferença de um dia comum.

O menino permaneceu no quarto, sem abrir a porta. Quando finalmente pude respirar, me percebi exausta.

Pus a mão no rosto. Mesmo depois de tanta limpe-za, o cheiro ferroso do sangue ainda cobria o sabão.

Estava já mais calma, quase terminando de lavar roupa, a bacia no quintal, quando minha vizinha apa-receu. O rosto redondo dela surgiu vermelho da corre-ria ou do sol.

— Oi, Maria — disse como quem não quer nada. Sua sombra pairou sobre mim. Soube logo que queria sim algo. Perguntou do paradeiro do meu marido, algo so-bre o marido dela mesma precisar dar-lhe uma palavra.

— Não sei — respondi olhando para baixo, levantan-do uma manga do vestido que escorregou para que não tocasse na água. Estranho que a resposta era sincera. Em algum lugar do mar, do fundo. Na barriga de um monstro. — Ele sempre passa bastante tempo fora.

— No barco? — ela perguntou, trocando o peso de um pé para o outro. Mulher inquieta. Dei de ombros.

— Dona Maria — ela disse num tom que nunca ouvi antes, pesado. — Ninguém o viu hoje de manhã.

Era uma acusação, percebi quando levantei o ros-to e a vi me fitando de cima. Onde achava que perten-cia, pensei, maldosa, mesmo naquele momento. Abri a boca, pronta para fingir surpresa. Não pensara ainda numa boa desculpa. Ele se foi, ele fugiu, foi realizar to-dos os sonhos que eu tinha e ele não.

— Eu vi você hoje de manhã — ela continuou, baixi-nho, em tom de fofoca que nunca compartilhávamos. Os olhos dela me procuravam de cima a baixo.

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— Eu? — repeti mais para ganhar tempo. O turbilhão de pensamentos se misturava com as batidas do meu coração. Eu só conseguia ver sangue, sangue, sangue. Talvez agora o meu.

— Vi sua sombra cedinho, limpando o barco — com-pletou e, sentando mais perto, falou ainda mais baixo. — Não pensei nada de mais, sabe? Achei só que ele ti-nha te pedido, que algum peixe podre tinha deixado o barco insuportável ou algo assim.

Uma boa desculpa, eu tenho que pensar em alguma.

— Mas, depois, meu homem veio perguntar. Seu ma-rido nunca volta cedo. Sempre aparece a essa hora lá pelo bar — ela me olhou de lado. — Onde ele está, Maria?

Meus olhos arderam, engoli a bile que subiu do es-tômago.

— Você está tremendo muito — minha vizinha dis-se, assustada.

Ela apertou os braços ao meu redor, e essa foi a dei-xa para o pânico vir com mais força no meu corpo. Não me preparei para isso. Não me preparei. A minha vida acaba aqui.

Ficamos bastante tempo desse jeito, paradas as duas, enquanto eu tremia e via o mundo girar ao meu redor. Cada batida forte do meu coração acelerado parecia ti-rar mais o ar, até eu quase sufocar. Vou morrer aqui an-tes que me matem, pensei.

Quando finalmente dei por mim, estava me segu-rando com as mãos cravadas na terra do quintal, minha vizinha apoiando o meu corpo sentado. Suor pingava da minha testa para o meu rosto e nada havia muda-do. Exceto que essa mulher agora me olhava não mais como criminosa, mas como vítima.

— Você pode me contar o que aconteceu — ela disse, como se tivéssemos sido amigas e guardado segredos uma da outra. Talvez poderíamos ter sido, numa vida

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diferente. Talvez a vida diferente pudesse ser agora, sem meu marido, sem o menino. Eu tinha provas do que ele tinha feito e todos o tinham visto entrar no barco com o pai. A vila se viraria contra o pequeno monstro. Eu estaria livre para ser qualquer pessoa e ir aonde qui-sesse. Ninguém nem iria me culpar por querer ir em-bora depois disso.

— Hoje de manhã, o menino chegou em casa sozinho — me ouvi falando, a voz de outra pessoa. Senti a mão da vizinha apertar meu ombro, mas ela me deu um tempo antes de continuar a falar. Aquilo me fez imaginar aque-la mão, todas as mãos da vila, destruindo o menino, a única imagem que restava do meu filho nesse mundo. Já o odiavam mesmo antes de ser monstro, como um dia me odiaram. Seria fácil odiarem de novo. Estariam felizes de dar um fim nele. De certo modo, mesmo o pai tinha tentado, ou chegado perto. E eu consegui.

— E-ele não parecia bem — continuei, respirei fun-do. — Não quis me dizer o que era. Então, corri para o barco, pensei que talvez meu marido estivesse lá. Mas o barco estava cheio de... cheio de... — engasguei.

Sangue, cheio de sangue.

— Cheio de vômito — eu disse.

— Vômito?! — a vizinha praticamente gritou, surpre-sa. Tapou a própria boca.

Contei uma mentira fraca. Meu marido estava do-ente há vários dias, vomitava muito e desmaiava. Eu implorei para ele não ir, para não levar o menino, para pedir ajuda. Não quis, era teimoso. Não queria parecer fraco perto dos outros homens. Essa parte era fácil de acreditar. Tinha passado mal e caído no mar, o que já quase aconteceu muitas vezes antes. O menino pro-vavelmente tentou salvá-lo e não conseguiu, mal sei como conseguiu arrastar o barco de volta pra casa, tão novo. Não queria dizer nada porque tinha esperanças dele voltar.

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Foi tão fácil, muito mais fácil do que imaginei. Ela queria uma história e completou logo as lacunas que eu não poderia ter suprido. Que pena ele ter visto isso. Não podia nem imaginar a dor que eu sentia. Se delei-tava com a minha história ruim. Pior do que a de um monstro em corpo de criança?

Toda a mentira seria arruinada se aparecesse um cor-po. De qualquer jeito, eu tinha a impressão de que ne-nhum pedacinho daquele homem apareceria de novo.

A vizinha me ofereceu palavras de consolo ainda por muito tempo, numa conversa exaustiva. Ficamos tal-vez uma hora sentadas no quintal, eu uma atriz trágica e ela no papel de boa amiga, tentando esconder a leve empolgação de presenciar um grande acontecimento. Ouvimos um baque.

— Ah, não — a vizinha disse, de repente. — Acho que ele ouviu.

Só então vi o menino nos olhando da janela de casa. O que eu tinha feito?

O menino passou a viver trancado no quarto. Eu o ouvia andar lá dentro. Tap, tap, tap. A sombra por de-baixo da porta. Às vezes, ouvia também o barulho de móveis sendo arrastados.

Eu nunca dizia nada quando ele saía durante a noite ou quando me pedia para contar histórias; nunca men-cionei a janela quebrada, nem as estantes fora do lugar. Não fazia careta para o cheiro de peixe morto. Os olhos redondos estavam sempre atentos.

Uma noite, assim que sentamos à mesa, ele tirou algo do bolso.

— Feliz dia das mães — disse, com um sorriso que seria suave no rosto de qualquer outro menino.

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Peguei o papel, abri-o devagar. Um desenho. Giz de cera, traço de criança, uma mulher e um menino na praia, de frente para o mar. Uma onda em formato de garra sobre os dois.

— Somos eu e você? — Engasguei.

Ele olhou para o desenho, o sorriso cresceu.

— Não.

Fechei os olhos, passando as mãos sobre o céu do desenho. Nuvens escuras me borraram os dedos.

— Talvez seja uma boa hora pra uma história, mãe — ele disse, juntando as palmas, em pedido ou empol-gação. Pensei na faca de cabo escuro.

— Tudo bem.

Era uma vez, pensei. Era uma vez uma mulher e um menino, e ele se afogou na praia. Não, era uma vez uma mulher e um menino, e ela o deixou se afogar. Era uma vez uma mãe e um filho.

O rosto dele, a mesa, as mãos juntas, ficou tudo tur-vo de repente. Quando o choro escorreu pelo meu ros-to, pensei em chuva. Tive olhos secos por tantos anos que não entendi.

— Não consigo pensar numa história — minha voz quase não saiu.

Os olhos dele estreitaram.

— Posso contar uma — o sorriso dele pareceu en-tortar. Qualquer um que o visse agora teria entendido o que eu sabia. — Era uma vez um menino muito tris-te, que falava sempre muito baixo, quase sussurrando. Mas os monstros do mar o ouviram.

Levantei a cabeça, ele assentiu.

— Ele queria morrer, mas o monstro teve pena. Ofe-receu uma troca. Então, o monstro pôde pisar na terra com os pés do menino, e o menino pôde viver como monstro.

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Abri a boca, sem palavras. Segurei a mesa com força.

— Não é só isso — ele suspirou. — O monstro fez uma promessa ao menino.

— Qual?

O sorriso desentortou, entortou de volta.

— Destruir tudo o que deixava o menino triste.

Se houvesse uma hora para correr, teria sido aquela. Mas permaneci bem quieta, de juntas brancas de tanto apertar a mesa, me segurando ao milhão de perguntas em minha mente. Meu filho estava vivo? Estava bem? Me odiava? Voltaria?

Onde ele está agora, há alguém que lhe conta histó-rias?

De olhos fechados, ouvi os dedos do menino-mons-tro batendo na madeira, e lembrei de quando lhe ensinei a limpar os peixes. Pensei nos olhos atentos esperando a minha reação, como quando lhe contara histórias. Vi meu próprio filho, cujo único abraço foi o do mar.

— Monstros do mar têm mães? — perguntei.

O menino-monstro me fitou por um longo momen-to. Dessa vez, quando o choro veio, eu já esperava.

Naquela noite, quando fechei a porta para dormir, sa-bia que não teria um só minuto de sono. Penteei os ca-belos, desenganchando os nós que o dia fizera. Na fren-te do espelho, analisei os espessos fios brancos que não davam mais para disfarçar. As linhas de rugas já come-çavam a surgir perto dos meus olhos. Talvez não abram pela manhã. Procurei medo neles e só encontrei a mes-ma maré baixa, tão familiar. Hereditária. Talvez não fos-sem olhos para ver o outro lado do horizonte. Talvez não fosse culpa do meu marido, nem da criança silenciosa.

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Em outra vida, as rugas morariam onde estiveram os meus sorrisos.

A menina Maria que deitava debaixo do Cruzeiro do Sul queria o mundo e ela o conheceu. Só não o mun-do que ela esperava. Limpei muitos peixes e tinha as mãos lisas de tantas roupas que esfreguei. Conheci as dores do parto, um casamento sem amor e, dia após dia, alimentei, limpei e vesti uma criança. Então, o dei-xei morrer como vivera a vida toda, sem abraços.

Ele mesmo pediu aos monstros do mar. Na sua boca pequena de poucas palavras, quero morrer. Nem eu, nem ninguém, havia ensinado outro desejo.

Ouvi um estrondo lá fora e não tremi dessa vez. A qualquer momento. Fechei os olhos.

Tinha dado à criança-monstro tudo o que não dera a meu filho. Contei histórias da minha infância, corrigi seus movimentos ao limpar o peixe e o protegi da vila. Tive medo dele, mas, entendia agora, jamais o odiara. Numa vila de pessoas, os monstros do mar foram os únicos gentis com a criança.

Meu rosto no espelho me lembrava o de Maria, a me-nina que tinha sonhado sair desse lugar onde as pesso-as eram como pedras. Ela tinha olhos grandes de maré, como o menino que trançava as redes devagar. Talvez essa Maria eu pudesse perdoar.

Deitei na cama. Senti o corpo pesado.

Logo ouvi o tap, tap, tap dos passos, que pararam na frente da porta. A meia luz de fora fez a sombra dos pés pequenos pelas frestas.

Se eu gritasse, será que ele ligaria o rádio?

Pensei no sangue no chão do barco. Que parte de mim sobraria? Esperei. O que viesse, eu estava pronta. Esperei. O que viesse, eu aceitaria.

A porta permaneceu fechada.

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A manhã veio e, com ela, o som do vento forte con-tra as casas, das ondas furiosas no cais. Tempestade. A chuva batendo no telhado, mesmo sem me tocar, la-vou a tensão do meu corpo. Não há mais nada a temer, eu soube.

Levantei da cama e abri a porta. Quem saiu do ou-tro lado não foi Maria-menina, nem Dona Maria e nem aquela que ali se recolhera à noite penteando os cabelos brancos. Eu estava agora finalmente pronta para acei-tar o que não pude naquele dia de dor, há tantos anos.

A casa, porém, estava vazia. Não havia sinal de me-nino algum, monstro ou humano, esperando o café, na cozinha. Nem na sala, manchada de sangue. O único som era o das janelas batendo. Tap, tap, tap. A tem-pestade soando como passos de menino-monstro.

Saí então para a praia, como num sonho. Déjá vu, pensei, enquanto andava em vez de correr. As pessoas da vila faziam caos ao redor, correndo em direção ao abrigo e carregando o que podiam. Ouvi a vizinha gri-tar para alguém.

— Cuidado!

Encontrei-o onde imaginava, na praia, os braços do mar já abertos, esperando.

Pisei na areia, a água agitada por cima dos pés, de-pois cobrindo a cintura, encharcando a camisola, mo-lhando o meu rosto. O vento jogava meus cabelos com força para trás, para longe dos ombros. Quando segu-rei o pequeno corpo gelado, ele coube bem nos meus braços. Percebi que eu também sentia falta de abraços. A cabeça de cabelos pretos e finos se virou para mim.

— Mãe — disse baixinho, quase num sussurro, e eu soube imediatamente que era meu filho, antes do mar abraçar a nós dois.

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Ana Luiza Silva

Pesquisadora em história do direito, cursa agora seu PhD e, às vezes, nos raros momentos livres, escreve fic-ção.

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Três dançasR. R. Portela

A Euforia invadia minhas narinas, aquele cheiro de calor corporal, de pele suada, de felicidade instantânea. Dançavam os foliões, os perfumes

comprados em lojas já não existem mais, dando lugar a um milhão de odores, confundindo os olfatos, mas eu só prestava atenção ao aroma de Euforia. Quando as pessoas passavam ao meu lado, eu farejava a alegria e sorvia um pouco dela; minha existência dependia des-se néctar, desse êxtase momentâneo, assim como a sua. O carnaval pode ser uma festa para eles, mas para nós, Carnavalis, é sobrevivência. Nós somos Clóvis e a euforia dos povos é o nosso alimento.

Respirei a folia.

No primeiro dia de carnaval do ano em que conheci você, vi muitos dos nossos escondendo-se na multidão, cautelosos, como se pudessem pressentir a futura mu-dança que estava por vir. Eu era uma Leque-e-sombri-nha, com camadas de pele dourada e branca me trans-formando em bujão. Abri o leque, que estalou como uma bombinha, e chamei a atenção de todos. Então, pratiquei a Primeira Dança. A Dança do Encantamento.

Eu rodopiei, abrindo e fechando o leque, minhas pe-les, idênticas a panos, erguendo-se para o alto, abrindo, desfraldando, bebendo a alegria. Retirei a sombrinha do ombro, girei-a sobre minha cabeça também num gesto sincopado, mostrando a beleza dos meus movi-mentos. Não tinha perfeição na Primeira Dança, mas meus professores foram bons.

E, mesmo assim, a Euforia se esvaiu. Parei de rodo-piar aos poucos, procurando à minha volta o motivo do repentino desinteresse pela minha pessoa. Um ou-tro Clóvis fazia sua Primeira Dança, alimentando-se do que era meu, com movimentos muito diferentes.

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Era você, dos belicosos e temidos Bola-e-bandeira. O clã mais conhecido dos Clóvis.

Sua dança era uma sucessão de barulhos, com cho-ques potentes da bexiga no chão, estourando tímpa-nos, criando risadas e medo. Vocês afastam crianças, criam confusões com outros Clóvis e até mesmo com humanos se vestindo da gente. Mas todos querem ser como vocês.

Você não tinha tantas peles como eu e sua girada era um pouco mais tímida por esse motivo. Ganhava, porém, no movimento com a bexiga, com o som do choque no chão, sempre capturando atenções. Sentia o cheiro da sua Euforia no som quase musical da bexi-ga, como tambores estabelecendo um campo de bata-lha. Vi essa Euforia servir de alimento para as pessoas, que devolviam uma quantidade absurda de volta para ti. As crianças olhavam, hipnotizadas, e os adultos dan-çavam, seguindo movimentos parecidos. Alguns grita-vam. Outros batiam palmas no ritmo da sua dança. E assim você ficava cheio. E eu perdia meu espaço.

Quando terminou sua dança, me aproximei. Lembra como chamamos atenção, nós dois juntos? A anima-ção dos que encaravam nos alimentou, mas era pouca euforia para dois Clóvis famintos.

— Você invade meu espaço! — falei, sem me impor-tar em quebrar regras informais. Eu não tinha medo de você. Nem de qualquer Bola-e-bandeira.

— Não há regras específicas na Doutrina sobre inva-são de espaços, ou tem?

— Não há, você tem razão. Mas não falo de Doutrina, falo de bom senso.

Você riu. O riso foi interrompido com o choque da bexiga no chão. Foi para me intimidar? Me aproximei. Minha saia tocou as suas e, mesmo assim, ainda está-vamos a uma boa distância um do outro.

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— Se pensa que vai me espantar com uma bolinha no chão, está errado. Não tenho medo de bate-bolas.

Voltou a rir. Me encarou. Jogou a bola sobre o om-bro. Ela girou no ar demonstrando o peso; é um objeto para se alimentar e uma arma perigosa.

— Não quero lutar. É esse espaço que você quer? Óti-mo. Vou me retirar. Procurar outro. Deve haver algum sem dono, não é?

Eu não sabia dos seus problemas, apenas dei de om-bros e mandei você ir. Então foi. Fiz a Primeira Dança a noite inteira te achando babaca. Contei para alguns co-legas sobre suas atitudes, eles concordaram que você era um idiota. Hoje, eles pensam diferente.

Não te vi até o carnaval seguinte. Você me viu, não é? No dia do julgamento de Boluá. Vi apenas o grupo de Bola-e-bandeira exigindo a cabeça dele por ter se alimentado de Euforia demais, deixando uma criança infeliz para todo o sempre. Eu conhecia Boluá desde a infância. Não tinha adoração, pouco me importava seu sangue real. Nutria uma amizade verdadeira, do tipo que, creio, você nunca viveu. Quando crianças, brincá-vamos de sugar Euforia uma da outra apenas para cair na risada. Boluá tinha mais controle do que eu. Como poderia ter sugado tanto? Achei esquisita a forma vo-raz com que os Bola-e-bandeira queriam sua cabeça. A decapitação de Boluá não foi justa. Estive em todas as manifestações contra as divisões de áreas no carnaval. Segregar não era o caminho.

No ano seguinte, eu te vi. No mesmo lugar, agora proibido para os seus, fazendo a mesma dança. Como se não se importasse com a possível hostilidade que pudesse receber pelos defensores de Boluá. Ou por ou-tros Bola-e-bandeiras.

— Por que está aqui de novo? — perguntei. Se eu fos-se alguém com mais impulsividade, teria te desafiado para um duelo. Mas você riu e disse:

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— Quero beber Euforia.

Uma resposta simples que me desarmou. Esperava uma afronta. Uma reprimenda por ter defendido Boluá com veemência. Por meus gritos contra o chefe dos Bola-e-bandeiras.

Mas não, lá estava você, praticando a Primeira Dan-ça, rodando e rodando e rodando, e se alimentando da Euforia, alheio à politicagem do nosso povo. Se te des-cobrissem naquele dia, se tivesse te denunciado, seria preso e julgado. Quem sabe uma guerra ia se formar. Mas optei por dividir o lugar com você. Por todos os dias do carnaval.

E, apenas no último, você chegou perto de mim.

— Obrigado — você disse.

E eu respondi:

— Não há de quê.

Então, foi embora. E eu passei o ano inteiro pensan-do em ti.

Sempre lembro de quando praticamos a Quinta Dança. Foi no nosso terceiro carnaval. Quando os sen-timentos e ressentimentos pelo julgamento de Boluá chegaram a um limite intransponível. Seu povo não queria mais fazer negócio com os Sombrinha-e-bone-cos, que já mantinham uma figura de mártir para Bo-luá. As áreas, antes divididas apenas pelo bom-senso, se tornaram perigosas. Conflitos eram comuns. Os ares da guerra voltavam devagar. E mesmo assim estáva-mos nós dois lá, você não se importando com as atitu-des do seu clã e eu agindo como se não me importasse com toda a mudança efervescente do nosso povo.

Naquela noite, na segunda de carnaval, você me dis-se que não se importava com a guerra sendo formada. Achava idiota. Não se interessava pelo assunto de Bo-luá. Te falei que era importante, de como foi um julga-mento com viés político, apenas para satisfazer a von-tade dos Bola-e-bandeiras. E você disse:

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— Eu não me importo com Bola-e-bandeiras e nem com Sombrinha-e-bonecos.

Me calei. Não era possível existir alguém tão alheio a política, principalmente quando nos expõe a riscos. Mas você realmente não parecia se importar. Foi quando me chamou para a Quinta Dança. A Dança do Conhecimento.

Fizemos numa praça vazia. Em cima de nós, o céu fechado da noite prometendo chuva, a lua cheia escon-dida. Você começou primeiro, me convidando. Avan-çou, erguendo sua bexiga acima da cabeça, ela caída diante do seu rosto. Então a soltou, deixando-a bater de leve no chão. Eu me aproximei, tirando a sombrinha do ombro, abrindo-a diante de ti e girando-a, apoian-do a haste no meu ombro.

Então dançamos. Rodamos à volta um do outro, trocando energias. Nossas saias se tocaram, eu dança-va perto de ti para sentir tuas peles se chocarem com as minhas. A bexiga rodava sobre a sombrinha em um movimento repetitivo, mas sincronizado. Nunca vi essa dança antes e, claro, nunca dancei. A Quinta Dança é tratada de maneira tão subestimada. Mas se bem feita, é linda. Você se ofereceu com tanta vontade, sem nada a esconder, que não pude recusar.

Então dançamos embaixo das luzes amareladas dos postes, a noite muito escura, e observamos o movimen-to dos nossos músculos, das nossas saias, dos nossos itens. Lembro do verde fluorescente e rosa choque, suas cores, que rodopiando se transformavam em duas ser-pentes dançando uma com a outra, um reflexo de nós.

Eu te conheci. Compreendi por que não queria sa-ber de toda essa política. E por que não estava com os Bola-e-bandeiras.

Vi como você foi deixado de lado pelo seu povo. Ig-norado por ser franzino, com poucas saias para desfral-dar, por não ser um exímio combatente, o esperado do clã. Do seu desinteresse na guerra. Como adorava pin-

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tar suas saias, moldar suas cores. Sua beleza mostrava--se na Primeira Dança, nos rodopios felizes, nas cores serpenteando pelo seu corpo. Não há vermelho em ti. No seu rosto, uma máscara cinza e azul marinho. Você odiava o sangue, não é? Tinha a impressão de que, se eu lhe cortasse, veria fluir pelas suas veias algo próxi-mo do rosa choque nas suas saias.

Naquele dia percebi como um Bola-e-bandeira po-dia ser belo. A dança prosseguiu e vi como se afastou do seu povo após o julgamento de Boluá. A voracidade do seu clã em querer a cabeça foi a gota d’água para ti.

Escapou. Se antes já não havia lugar para você no clã, agora menos ainda. Deixou eles fecharem as pró-prias zonas. Não mentiu quando disse que nunca se importou com Boluá, só não queria a violência. Estava lá apenas tentando se alimentar do jeito que achava melhor, pensando em como prosseguir o resto da sua vida útil como Clóvis.

E você me viu dançando, minhas saias desfraldando, belíssimas, e sei o que achou de mim naquele dia. Viu alguém que nunca teve tantos problemas; sempre res-pondeu muito bem as expectativas esperadas. Cresceu para ser alguém da corte de Boluá quando se tornasse o Clóvis-Rei. Mas Boluá morreu, e continuou manten-do os estudos, tentando crescer e alcançar o melhor. Não sonhava mais com a corte; eram sonhos juvenis, de criança acreditando em contos de fadas.

Depois olhamos um para o outro, poucos segundos antes da chuva cair. Encharcar nossas peles. Molhar nossas almas. Ali, de espíritos nus, eu me apaixonei. Olhei para ti e senti uma paz no coração que nenhum outro Clóvis jamais me ofereceu.

Não fizemos nada. Esperava que você demonstras-se algo, qualquer coisa, e para isso me entreguei com o máximo de intensidade que pude. Mas não havia no seu olhar nem uma centelha de sentimento, apenas in-diferença. Eu conheci você, mas não o seu sentimento.

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Como pôde demonstrar indiferença? Como pôde ver os mais profundos segredos de alguém e não sentir nada? Era impossível demonstrar só isso após a Quinta Dança. Quando aquele carnaval chegou ao fim, busquei você nas ruas na quarta-feira de cinzas. Fiquei na terra deles até o último momento permitido pela Doutrina, mas não te vi.

Era duro ter que viver um ano inteiro sem poder ver quem amamos. E eu achei que assim seria meu ano. Mas você aproximou-se como um ladrão, surpreendendo--me. Dizendo que precisava me ver de uma maneira tão voraz, que fiquei sem resposta. Depois daquela indife-rença no seu olhar, como eu saberia se falava a verda-de? Mas a urgência na sua voz me deixou como pedra.

— Queria dizer que você foi a única pessoa que me aju-dou quando precisei. Em todos os lugares onde eu para-va para me alimentar era expulso. E quando a hostilida-de foi crescendo entre os Bola-e-bandeira e os demais clãs, você não tentou me rechaçar. Se eu fosse a outras paragens, estaria condenado. Mas não. Você me aceitou. Dividiu sua alimentação comigo. Dividiu sua alma.

— Eu… não podia deixar ninguém morrer de fome. E nem ser perseguido sem motivos concretos. Vai contra o que eu acredito. Todo esse conflito também.

— Então eu peço uma última vez para você me aju-dar. Prometo: depois de hoje, nunca mais me verá. Não haverá problema na sua área de alimentação. Não terá que dividir a Euforia. Não precisará me esconder. Juro.

Eu queria te pedir: não vá embora. Queria você comi-go e paz entre os povos. Mas a decisão não cabia a mim e nem a você. Se tivéssemos algum controle, Boluá não teria morrido e você poderia ser como é, sensível.

Não quis te ajudar, mas não consegui te dizer não. Eu precisava de você, precisava te ver todo carnaval, durante quatro dias, e remoer o resto do ano a sua fal-ta. Sinto que estou me alimentando de minha própria Euforia, algo impossível de acontecer.

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As palavras saíam da tua boca, mas eu não conse-guia acreditar no crime dos Bola-e-bandeiras. Nunca confiei neles, principalmente após Boluá, mas é muito grave o que fizeram, ainda mais para supostos defen-sores da justiça. Um portal deles ligado ao mundo para sugar Euforia fora do carnaval contrariava tudo o que era mais sagrado na Doutrina. Eu questionei:

— Há quanto tempo?

E você respondeu:

— Pelo menos a minha vida toda.

Podíamos entregá-los e fazer uma guerra, mas você não quis.

— Faça o que achar melhor depois. Desmascare a hi-pocrisia dos Bola-e-bandeiras como Boluá tentou fa-zer. Mas faça depois que eu me for.

— Como Boluá tentou fazer?

— Boluá morreu por entrar no caminho dos Bola-e--Bandeiras. Não tenho detalhes, mas já ouvi conversas do tipo dentro do clã. Lá, eles escarram na sua memória.

Era demais para conseguir absorver de uma vez. Cer-rei os punhos para conseguir minar minha raiva. De re-pente, tudo fazia sentido. Boluá era líder político, não havia feito nada para os Bola-e-Bandeiras justificarem essa perseguição.

Ficaria em minhas mãos. O futuro do meu povo. O legado de Boluá. Uma guerra que eu nunca imaginei ver em vida.

— Ainda vai me ajudar?

— Vou. Eu prometi.

— Só podia confiar em você. Obrigado. — Calou-se por um tempo. — Eu te amo.

Essas palavras vieram de você com a suavidade de uma brisa, atingindo-me como a mais potente das tem-

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pestades. Arrancou-me de meu eixo e dos meus pensa-mentos, fez meu coração rodopiar no peito. Um furacão de desespero mesclado com uma felicidade intensa.

Trancados na minha casa, sozinhos, como despedi-da, demos início à Terceira Dança.

Você segurou minha mão direita com delicadeza e eu segurei a sua com brutalidade, mas foi por conta do nervosismo. Foi minha primeira Dança do Amor. Você, em contrapartida, parecia ter familiaridade.

Rodopiamos pela sala, dois corpos em um, as saias se desfraldando na mesma intensidade, uma sincroni-zação perfeita. Os pés tocando o chão de maneira de-licada, dando passos de um lado ao outro. No próxi-mo passo, retirei da sua cintura a bexiga, que caiu no chão com um leve estrondo. Você desembainhou mi-nha sombrinha, e ela rolou pelo chão. Nossas másca-ras se tocaram na testa, e continuamos assim, olhando nos olhos um do outro, sentindo o amor florescer, de-saguar pelas nossas almas. Sentimentos eternizados como uma jacarandá-da-baía.

A dança se tornou mais intensa. Roçamos nossos corpos um pouco, mas o importante são as saias. Ali-mentei-me de sua Euforia e você fez o mesmo com a minha. Senti o suor brotar na testa, que já não conse-guia mais ficar grudada com a sua. Não via mais nada à minha volta, era apenas dança, o mundo um borrão, e a sensação que isso me trouxe vai muito além da Eu-foria, alcança o êxtase. Naquele exato instante, suas mãos tocaram meus ombros, indicando o fim da Ter-ceira Dança. Fiz o mesmo. Sugamos pela última vez o resto da Euforia um do outro, daquela vez muito mais grossa, como a seiva de uma seringueira. Sorri. Você também. Por nós, ficaríamos assim a noite toda.

— Quando for carnaval, vou te procurar — você dis-se. — Em todos os carnavais. Peço para que se mante-nha na mesma área. Não posso me perder de você.

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— Não vai ser perigoso?

— Vai. Mas você vale o risco.

Sorri. Dito isso, recuperamos nossos itens. Tínhamos um trabalho a fazer.

Invadimos o clã dos Bola-e-bandeiras como se fôsse-mos gatos, saltando sobre os telhados e nos esconden-do nas sombras. A escuridão da madrugada nos ajudou, e não havia qualquer guarda que pudesse nos perceber.

Não trocamos uma palavra. Não foi preciso. O suor do toque de nossas mãos aveludadas já era o suficien-te. Vivíamos dilemas. Palavras não faziam jus aos pen-samentos.

Para onde eu voltaria? De volta para minha casa, fingindo que não sabia de nada e deixando as coisas acontecerem, observando a panela de pressão que é essa nossa sociedade finalmente explodir. Essa nunca foi uma opção para mim.

Seguiria para a sede dos Sombrinha-e-bonecos. Re-velaria tudo para eles. Revelaria a verdade sobre Boluá, se acreditassem em mim. E os Bola-e-bandeira seriam levados a julgamento. Se recusassem, guerra. Não era vingança, mas justiça por Boluá.

Hoje não.

Apertei a sua mão com mais força, mostrando o pe-sar do meu coração para ti. Revelando-me, como fiz na Quinta Dança. O meu dilema tem muito menos a ver com querer trazer ou não justiça sobre Boluá, e sim so-bre o que você sente. Como eu podia trazer guerra sa-bendo que isso te machucaria? Mas também, como eu poderia não fazer nada depois do que fizeram a Boluá?

Você odeia o vermelho do sangue. Mas a minha his-tória pintará o futuro dessa cor.

Suas mãos aveludadas apertaram as minhas de leve, dando-me sensação de segurança, mesmo que tenha

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acontecido quando atravessamos uma rua, com guar-das de todos os lados. Aproveitamos a escuridão entre dois postes acesos. O seu aperto de mão me disse que tudo ia ficar bem. Não importava a escolha.

Entramos em um prédio largo, corremos através da escuridão do local. Poucos guardas, mas eles ainda es-tavam por lá. Os Bola-e-bandeiras, em meio à toda sua arrogância, jamais imaginaram que pudessem ser in-vadidos dessa maneira. E essa é a nossa vantagem.

Por que precisava de mim? Eu queria muito te per-guntar. Mas não podíamos exprimir qualquer som.

E alcançamos escadas. E descemos e descemos. Suas mãos suavam e seu toque já não era mais tão firme. Estava inseguro. Preocupado, com certeza. Depois de um tempo, podíamos caminhar com mais segurança. Um ambiente embebido na escuridão, sem qualquer movimento de Clóvis. Andamos devagar, a única coisa que nos guiava era sua memória.

Então paramos. Você ergueu sua bexiga e a acertou em algo que eu não vi, mas pelo barulho pude reconhe-cer como uma porta. Para cair, precisou de dois golpes. Você buscou um disjuntor e acendeu as luzes.

Era um ambiente amplo, com lâmpadas amarelas espalhadas. No centro, um círculo e um triângulo caí-dos. Ouvir da sua boca essa realidade é muito diferente de presenciar o Portal.

— Chegamos — você disse, mais para si mesmo que para mim. Pareceu aliviado. Soltou minha mão e an-dou até o canto do salão, onde se encontravam mesas. — Eu vou precisar de sua ajuda aqui. Por favor, se apro-xime.

Eu caminhei. Vi mesas com botões sem quaisquer dizeres. Você me mostrou uma manivela.

— Você vai girar isto e a energia vai ser liberada para o Portal. Ele vai se abrir. E eu vou embora.

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O que você pensou? Estava de olho na mesa, depois desviou ao portal. Evitou trocar olhares comigo. Mes-mo assim eu pude ver, por baixo das suas belas pin-turas, a tristeza. As lágrimas queriam vir, mas você foi forte. Segurou-as até o último momento.

— Desculpa — você disse. Foi quando as lágrimas es-correram, manchando seu rosto com a tinta.

— Não precisa pedir desculpas — eu corri para dizer. Abracei você. — Daremos um jeito. Um jeito de ficar juntos.

— Não. Eu peço desculpas por ter enfiado você nes-sa. Usar esse Portal, libertar um Clóvis no mundo para viver por lá, além do carnaval. É violação grave da Dou-trina. Se descobrem, você também vai para execução.

Abri um sorriso. De todas as coisas, essa violação foi a única que não pensei. Você realmente me conhecia.

— Não importa — respondi. — O que importa é vê-lo bem. Longe da guerra.

— Será que vamos poder nos ver no próximo carnaval?

— Não sei. Quando contar da existência do Portal, do que fizeram a Boluá, as coisas vão se tornar problemá-ticas e eu estarei no centro de tudo. Pode nem haver carnaval para nós ano que vem. Sabe-se lá quando até tudo ter um fim.

— Eu vou te esperar. Vou estar em fuga e espero que nunca me procurem. Que nunca descubram o Bola--e-bandeira desaparecido. Mas todos os anos, estarei lá, onde nos conhecemos. Esperando você. Só guarde meu segredo, é a última coisa que lhe peço.

— Jamais saberão.

— Certo. Chegou a hora.

Você ficou por cima do Portal, esperando ele ter ener-gia o suficiente para mandá-lo embora. Enquanto eu girava a manivela devagar, ergueu sua bola acima da

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cabeça. Tracejou sobre o chão uma leve linha com o pé direito. Um convite para uma dança. Uma última dança.

Enquanto eu sorria por baixo das lágrimas, o círculo e o triângulo giraram e você desapareceu. Jogado para o mundo. Uma violação de regras e eu fui cúmplice. Mas nada disso importava. Sua felicidade vinha em primei-ro lugar no meu coração. Acima da justiça Carnavali. E seria a última vez que algo estaria acima dela.

Minha cabeça rodava, pensando em Boluá também. Era como você, no fundo. Preferiu guardar o segredo em prol da paz.

Desculpe, Boluá, e também peço desculpas a ti. Mas o caminho que eu sigo é o inverso do de vocês. Não guardarei esse segredo.

Chorei por um longo período até ter forças o suficien-te para voltar. Desapareci do seu clã da mesma maneira que entrei: invisível. Caminhei pelos becos da cidade, pensando em como tudo estava prestes a mudar.

Eu serei um arauto da destruição.

Você não veria nada disso. Seu coração estaria em paz. E isso me deu alegria.

Não sei se nos encontraremos, mas algo poderia sur-gir de nossa Dança do Amor. Pequeninos Clóvis, se eu engravidar, nascidos em meio a um turbilhão político. Mergulhados na Doutrina, entenderão de justiça, tal-vez mais que eu. Ou Clóvis fugitivos, se você engra-vidar. Conhecedores da Euforia e da arte. Mestres no disfarce. A primeira geração a viver sua vida no mundo humano, alheias à Doutrina, assim como você.

Espero por dias melhores, sem uma Doutrina tão rí-gida, ou sem conflitos. Um período pacífico, onde nos-sos corações possam estar juntos e, finalmente, possa-mos dançar o quanto quisermos.

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R. R. Portela

Estudante de letras, não-monogâmico e pai de uma criança com pilhas recarregáveis, R. R. Portela é cria do RJ, lugar mais surreal que a ficção fantástica, e é de onde tira suas mais profundas inspirações. Com contos publicados em alguns outros lugares pelo país, espera finalmente conseguir publicar seus livros, mesmo que para isso precise escrevê-los antes.

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FrutíferoGabiOZ

Ouvi que lá no limite onde nenhum município al-cança existe uma Clareira em que brota qual-quer planta. De norte ou sul, costa, morro, bar-

raceiro. Folhagens nascidas da imaginação, de lugar que nem desse mundo é. Raízes de morte e de vida, doença, cura, riqueza, mutação.

Bastava a Clareira, o calor do sol, a umidade do ar. Mas a terra exige nutrição à muda e raiz e seiva e folha, exige uma parte, exige o seu quinhão. O quê, exata-mente, ninguém sabe ou, se sabe, não conta.

Ouvi que eles vieram de longe, cruzando uma a uma as linhas invisíveis que separam as cidades. Um dos dois soube da Clareira em reuniões talvez suspeitas. Ouviu a história da boca de um homem de contatos, e a his-tória o levou a uma mulher escorregadia, a um senhor caduco, a um jovem neto de outro senhor, este morto, que cobrou caro pelo endereço da Velha das Cobras, o X no mapa do tesouro, como diziam.

— Imagina só! Uma aventura grandiosa. Mas não é uma história. Estamos vivendo, aqui, agora.

Vinícius observou de canto de olho os cabelos do na-morado, voando descoordenados com o vento da janela aberta do carro. Estava lindo, gritando de empolgação. Bruno ficava ainda mais bonito quando agarrado a uma novidade. Ele sempre chamava atenção por onde anda-vam, sempre no centro de alguma roda de conversas, contando da última festa na sua casa, ou daquele modelo de carro novo que a mãe ia lhe dar, ou das suas viagens, ou das suas manias. Via a si mesmo como um cavaleiro.

Para Vinícius, a tal emoção da liberdade do vento só in-comodava, enchia os olhos de areia. Podia se distrair um tanto para limpar o rosto, não seria um problema, a estra-da tranquila, sentido único, nenhum carro no retrovisor.

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Não era como tinha pensado as férias, mas não es-tava achando ruim, não. Apesar do cansaço por dirigir tantos dias seguidos, pelo menos conheceria um lu-gar novo. E vez ou outra vinha a lembrança de Bruno o abraçando pela cintura na frente dos amigos e da mãe, contando que teria companhia na sua aventura. Não é bonita a dedicação do meu homem? Meu homem. O estômago de Vinícius ainda dava pontadas toda vez. Meu namorado, meu Vini, meu amor. Irreal. Bruno era como um centro de massa, puxando pra si asteroides, planetas, meteoros, estrelas, cometas. Não sabia como tinha parado lá, capturado em algum lugar da órbita de atenção dos seus olhos.

Encostaram em uma faixa de areia ao lado da pista. Bruno precisava descer do carro pra pensar. Virava o mapa de baixo pra cima, de cima pra baixo, andando de um lado pro outro e chutando as pequenas pedras pra longe. Vinícius tinha achado um exagero o mapa, como se estivessem num filme ruim de piratas. Olhan-do pro celular na mão, sem sinal, percebia que, no fi-nal das contas, era mesmo necessário. Foi se aproxi-mando para tentar espiar o mapa por cima do ombro de Bruno, mas ele estava agitado demais. De repente, amassou o mapa e o jogou longe, até o morrinho que descia numa ponta do pasto.

— Essa cidade não existe — disse Bruno, os olhos fais-cantes fixos no campo, a mandíbula tensa. — Ok, foda-se o mapa. Fodam-se as direções. Eu descubro o caminho.

Vinícius olhava para onde devia estar o mapa, cal-culando a altura da cerca, o risco de o dono do terreno achar ruim. Estariam ainda mais perdidos agora. Viu uma vaca, estranhamente sozinha, mesmo com o tem-po de chuva. Parecia encarar, mastigando mato, len-ta, lenta, a boca grande e os olhos cansados, cansados e fixos, encarando enquanto remexia o chão pouco a pouco com os dentes.

— Vinícius, porra, vamos.

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Vinícius entrou no carro, segurou firme o volante. Olhou para Bruno, ele ainda furioso, tirando as peles do canto da unha, como sempre fazia quando estava assim. Esperou. Pensou em falar de buscar o mapa. De-sistiu. Olhou para frente, sem se mover, mas apertan-do discretamente os dedos com mais força. Um bando de pássaros passou no horizonte. Tantos, tantos. Dava pra ouvir o barulho que faziam. Talvez estivessem fa-mintos. Talvez estivessem cansados. Talvez não vis-sem mais sentido no imenso das nuvens.

— Vamos — disse Bruno.

— Pra onde?

— Pra frente.

Não discutiu. Ligou o motor. Seguiu.

A estrada começou a ficar tortuosa, o carro zigue-zagueando nas curvas. Seguiam. Os pastos sumindo. Árvores, cada vez mais árvores. Os pássaros também pareciam inquietos, dava pra perceber, breve instan-te, canto de olho, quando passavam de lá pra cá entre as matas da pista. Vinícius tentava buscar o estável do chão de asfalto, fugir de pupilas selvagens. Se afundar no movimento das faixas, fundo, fundo, fundo, para além de terra por baixo do empoeirado da pista.

A chuva veio forte. Bruno dormia, pés esticados so-bre o painel, rosto coberto pelo capuz do moletom. Há pouco, tinha colocado a música num volume absurdo, medo de trovão. Vinícius pensou em encostar de novo, confortá-lo. A chuva martelava o para-brisa, parecia até mais sensato parar. Não conseguiu. Talvez os raios incendiassem uma árvore no meio da mata. Talvez os pássaros fugissem. Para longe, longe dali.

Chegou num ponto onde os caminhos se bifurca-vam. Abriu a boca. Melhor chamar Bruno. Fechou. Ele estava dormindo. Olhou para os caminhos. A chuva ba-tia em ritmo acelerado, impaciente, abundante. Abriu a boca. Fechou. Sentiu as mãos suando, o volante mo-lhado. Duas opções.

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Escolheu. Seguiu o caminho onde a estrada ia quieta e longa. A mata crescia nos cantos da estrada, as árvores entortando-se como se estivessem prontas para tocar o carro. Vinícius seguia, a chuva borrando tudo. A tempes-tade escurecia o céu, a luz dos faróis se perdia no horizon-te. Sentiu sono, muito sono. Mas não tinha onde parar.

Acordou com Bruno sacudindo seu ombro.

— Vini, chegamos, chegamos!

Sua voz era doce, preenchida de empolgação. Viní-cius despertou aos poucos, a luz do sol esquentando suas bochechas. Arregalou os olhos, pulou no assento. Olhou pros lados. Estavam num recuo da estrada. Ár-vores, árvores, árvores. Raios de sol se esgueirando por entre uma folha e outra.

— Eu disse que ia achar o caminho eu mesmo. Eu crio os meus caminhos!

Vinícius tirou o cinto muito lentamente. Cabeça ain-da girando. Vasculhou o carro por fora. Sem batidas, sem arranhões. Ainda bem, era de Bruno.

— Devia ter me chamado, Vini, em vez de simples-mente estacionar e dormir. Você sabe como estou em-polgado com esse lugar.

Vinícius tentou cavar suas lembranças. Não sabia como nem quando tinha estacionado. Não sabia o cami-nho até ali. Lembrava apenas da chuva, da estrada cada vez mais escura. Prestou atenção nos traços do namo-rado. A bronca era sincera, mas leve. Qualquer braveza se dissolvia na excitação de terem achado. Achado o quê? Não havia qualquer placa, sinal ou marcação. So-mente as árvores, o caminho de terra, mais nada. Sus-pirou. Ligou o alarme, colocou a chave no bolso. Bruno já estava lá na frente.

A trilha era estreita. Chão pisado, embarreado e es-corregadio. Algumas gotas pingavam dos galhos que se abraçavam acima em um labirinto de folhagem. Al-cançou Bruno. A sua empolgação era tanta que pare-

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cia esquecer de segurar os galhos para não ricochete-ar no rosto dele.

Pouco a pouco, o sol foi achando caminho até eles. Céu azul, nuvens grandes, almofadadas, brancas. E um grande arco-íris arqueando o resto de caminho desci-do, estranhamente definido. Contornos de água e luz contrastadas.

Lá na frente, uma pequena casa de madeira.

— A Velha das Cobras!

Bruno não bateu pra entrar.

Vinícius travou nos degraus da entrada. Por um mo-mento, arrependeu-se de ter saído do carro, mas logo pensou se Bruno, sem querer, estivesse ofendendo quem morava na casa. Estava empolgado, distrações acontecem. Entrou.

A casa cheirava a sabão em pedra e alecrim. Bem iluminada, pequena. Uma senhora estava encostada no sofá, pernas esticadas. Tinha rugas marcadas, rosto calmo. Não parecia surpresa.

— … e então nos mandaram para cá — Bruno já fala-va diante dela. — Queremos saber onde fica a Clareira.

Vinícius sentiu um choque gelado subindo a colu-na. Estavam fazendo papel de loucos com toda certe-za. Estudou os traços da mulher. Sua expressão seguiu sem alteração, mesmo depois de Bruno repetir mais de uma vez sua exigência. Por um instante, canto de olho, pupilas penetrantes, ela pareceu ter encontrado seus olhos nervosos, cruzando os braços inquietos de Bru-no, manobrando sua voz alta, que quicava nas paredes todas e preenchia todo o espaço da casa.

A velha se levantou.

— Café?

Seguiu até a cozinha. Bruno atrás, batendo com for-ça no chão de madeira. Ele se virou para Vinícius.

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— Que bruxa! Tão banal.

Vinícius sentiu o rosto queimar. Levantou os olhos dos desenhos da madeira do chão até o rosto da mulher. Seguia igual, inalcançável, intocada, com suas roupas desbotadas e leves.

Comeram pão com manteiga e beberam café quente, apesar do calor. Bruno remexia a perna esquerda, apoiada sobre a direita. A mulher começou a falar sobre pessoas com nomes que Vinícius não absorvia. Falou de animais e plantas das redondezas, cada um com seu nome. Falou de bordado, diferentes nomes de pontos. Voltou às pes-soas, ou talvez fossem os animais, talvez fossem as ár-vores. Falou de casais. Brigas de pai e filho. Desentendi-mentos de vizinhas. Muitas vezes, era difícil ouvir. Bruno tinha uma voz mais alta. A voz dela era baixa e tranquila.

— Seu endereço não foi barato nem fácil. Não me importo com seus amigos, suas brincadeiras de linha. Quero saber onde está a Clareira.

Não esperou pra ver se daquela vez teria resposta. Levantou, puxou Vinícius, que buscou o rosto da velha. Nada, nada. Nem surpresa nem ofensa. Seguiu o na-morado, mas olhando sempre para a cozinha. Quando estavam já na porta, ouviram a voz da mulher.

— Sabe, meu filho, a semente não escolhe ninho, mas nasce mesmo assim.

Vinícius sentiu o estômago revirar. Não sabia o que existia lá, nas luzes que se refletiam na mulher. Não sabia o que significava aquela expressão gentil. Ele ti-nha medo. Aqueles olhos carregavam uma profunde-za... Sentiu um puxão forte em seu braço. Quando viu, estavam debaixo do sol.

Bruno espatifou as poças, rápido e beiçudo, cami-nhando de um lado pro outro. Vinícius esperou que ele deixasse a raiva sair. Viu que lá pra frente as nuvens estavam escuras. Outra tempestade. Mas ali não. O ar-co-íris seguia definido contra o azul do céu.

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Bruno parou. Ficou encarando a trilha, braços cruza-dos e músculos tensos. Vinícius se aproximou. Pensou em encostar a mão no ombro dele, tentar reconfortar, mas segurou o próprio cotovelo e respirou fundo.

— E agora?

— E agora que ficamos.

— Ficamos?

— Ficamos.

Bruno descruzou os braços e voltou para a casa, ba-tendo forte o pé em cada degrau.

— Quer se hospedar aqui?

A velha estava perto da porta de entrada, como que esperando eles voltarem. Surpreendeu até Bruno. Vi-nícius sentiu suas canelas tremendo. Queria sair dali, voltar pra cidade, cancelar as férias, aquelas férias, re-tornar para o seu emprego entediante e seguro.

— Sim. Queremos.

Vinícius foi buscar as malas no carro. Seus ombros estavam enrijecidos. As batatas da perna doíam cada vez mais conforme subia até o começo da trilha. A se-mente não escolhe ninho, mas nasce mesmo assim. Por que ela tinha dito isso? Não gostava de ninhos. Por que falar em ninhos, olhando-o daquele jeito? Se sen-tia invadido, como se a mulher tivesse revirado os pe-daços da sua alma, levantado poeira e deixado ele lá, olhos vermelhos e nariz escorrendo.

Poderia entrar no carro, dar partida. Não olhar pra trás. Não queria olhar pra trás. Mas não poderia deixar Bruno sozinho, no meio do nada. Jamais. Nem sabia como ti-nham chegado ali. E o namorado não ia desistir. Sim, Vi-nícius queria fugir, mas logo estava descendo o barreiro, equilibrando as malas e seu próprio peso pra não cair.

Quando voltou, o quartinho estava pronto. Bruno correu para o banho. Demorou. Depois estendeu a to-

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alha e deitou, sem nada. Vinícius foi finalmente para o chuveiro. Deixou a água gelada esfriar os cabelos sua-dos de sol e poeira terrenta. Deixar a poeira ir. Desace-lerar a pulsação do peito.

Empurrou a toalha de Bruno e se deitou do lado, o colchão um tanto úmido. Fechou os olhos. Sua cabeça doía.

— Não é tão ruim — disse Bruno, — não ter respostas no primeiro dia. Histórias de magia levam seu tempo. Cada herói paga seu preço pela aventura.

Vinícius abriu os olhos. Mexeu a cabeça concordan-do. Sua cabeça doía.

— Essa velha não me responder. Ridícula. E você, hein? Parece que ela tinha algo contigo.

— Preferia que não tivesse.

— Logo ela vê que tem que me dar atenção. Não vai te perturbar mais.

— Espero, mesmo.

O teto era de madeira. Vinícius foi seguindo os con-tornos arredondados e disformes, procurando o come-ço e o fim daquele emaranhado de riscos.

— Está escondendo algo de mim?

— Eu?

— Sim. Pra essa velha ficar tão fixada em você.

Vinícius ficou quieto. Escondendo algo?

— Vinícius.

— Não que eu saiba, amor. Não entendo o que ela viu em mim. E sinceramente? Não quero entender.

Bruno dormiu logo. Vinícius continuou a encarar as vigas do teto, buscar lá um ritmo que harmonizasse com os piados de coruja e chiados de cigarra que ras-gavam os ventos da noite.

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No café da manhã, Vinícius encontrou, por trás de chaleira, pão e toalha, uma garota, uns sete anos. Estava sentada, balançando as pernas no ar, olhando concen-trada pra dentro da sua caneca de leite. Não fez nenhum movimento quando o viu, nem quando ele sentou, um tanto pra fora da cadeira, alerta, meio na cozinha, meio já fugindo. Ficou quieto, procurou a velha, aguardou. Discretamente, os olhos da garota o procuraram. Os pelos do antebraço subiram todos. Ele desviou o olhar.

— Vó, onde estão as fôrmas?

A menina tinha levantado e remexia nos armários. Então era neta da velha?

— Tio, você vai ajudar a fazer bolachas?

Ela agora o encarava de frente, firme, direta e fixada, moldes de diferentes formas nas mãos. Ele concordou com a cabeça, ela espalhou os plásticos na mesa.

Começou a falar dos desenhos, de quais mais gos-tava e por quê. A estrela, porque meu pai disse que as estrelas são bolas de fogo. O cavalo, porque era rápi-do. Do peixe não gostava, achava um bicho meio bobo. Aos poucos, Vinícius foi se sentindo confortável, poxa, os peixes tinham um mundo lá no fundo pra explorar, devia ser bonito.

— Você não tem medo?

— Medo? Do quê?

— Do fundo, ué.

— Lógico. Mas não sou peixe.

— Não é mesmo.

A velha finalmente apareceu, sorriu para os dois e começou a jogar farinha e água em uma grande bacia.

— Minha mãe mandou essa flor aqui, também.

A velha lavou a flor, espalhou as pétalas na massa. Depois, passou a amassar com as mãos, estender com

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o rolo. Vinícius acompanhava as mãos enrugadas. Ela devia ter mãos fortes.

Estavam começando a furar os moldes quando Bru-no entrou na cozinha, ainda descabelado e arrastando os pés.

— Quem é você?

A garota não respondeu. Nem com a voz. Nem com um gesto. Com um olhar rápido que fosse. Continuou concentrada nos moldes, falando do porquê gostar desse e daquele e aquele outro.

— Ei, menina.

Bruno tinha apoiado as duas mãos na mesa, fazen-do, por acaso, um tanto de barulho. Nada. A garota con-tinuou indiferente, como se Bruno fosse uma espécie de assombração incômoda. Chata, mas invisível. Gos-tava do raio, porque ele era forte. Gostava do coelho e do cachorro, mas preferia o gato. Achava a tartaruga lenta e a lua chorosa. Preferia o sol. Vinícius não falou mais nada, e como se um entendimento silencioso e discreto tivesse se enraizado entre eles, a garota não se mostrou esperando resposta. Seguiu falando das for-minhas e delineando uma por uma as bolachas, sua voz cortada apenas pelas intromissões de Bruno.

E foi assim até ela ir embora levando um tanto de bo-lacha num pote. Mas perto do começo da trilha olhou pra trás, fixou Vinícius. Sorriso largo. Como se ele fosse um novo amigo que fez na escola. Partiu.

— Por que ela sorriu pra gente? Criança besta, nem conversar sabe.

Vinícius não disse nada. Voltou para a mesa e Bruno retomou suas tentativas de descobrir algo sobre a Cla-reira. A velha molhava as bolachas no leite com café, lentamente, mastigando com gosto.

— Por que te chamam de Velha das Cobras?

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A resposta foi três horas de atualizações sobre no-mes que eles não conheciam. Pessoas, animais, plan-tas. Namoros, problemas na horta, cabeça de água que preocupava uma tal família. Vinícius buscava naqueles nomes quem era a menina. Não encontrou. Novamen-te, não soube absorver os nomes e a natureza de cada personalidade que vinha junto dos nomes.

A voz da velha envolvia como um cobertor, uma né-voa, e Vinícius só foi desperto pelos berros de Bruno.

— Ela está indo pros fundos!

Bruno pulou da cadeira e quase correu atrás da mu-lher.

— Você vai plantar algo? É aqui a Clareira? Me res-ponde, velha.

Vinícius encostou o rosto no batente da porta e ficou observando conforme ela mexia a terra, tirava folhas e recolhia temperos. Ar com cheiro de manjericão. Forte, vibrante. Passou a babosa segurando a saia, recolheu alguns limões. O processo foi regado pelas perguntas de Bruno, mais insistentes, a voz mais alta.

Em algum momento, ele escancarou as portas do quartinho no fim do terreno, que servia de despensa e depósito de bagunças. Deixou no chão caixa de agulha e panela e regador. Segurou firme um punhado de se-mentes que tirou de uma lata e arremessou-as longe. As sementes caíram, espalhadas por sobre o quintal de terra.

— Pronto. Agora é só eu desejar que planta vai nas-cer.

Bruno ficou boquiaberto, a expressão tensa, em meio de dizer algo. Então, bateu o pé, levantou poeira.

— Você está escondendo coisa, velha. A Clareira não é o seu quintal. Me responde. Como eu chego na Cla-reira? Agora.

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Mas suas palavras ficaram voando sem rumo como as pequenas sementes que o vento espalharia pelo concreto de alguma estrada.

A mulher entrou na casa, foi à cozinha. Puxou uma cadeira, convidou Vinícius a se sentar. Olhou-o numa profundeza que ele não sabia ler. Pegou sua mão, co-locou uma forminha, fechou seus dedos, segurou.

— Sabe, meu filho, nossas raízes nos moldam e o rio carrega nas águas as terras do caminho por onde pas-sou, mas, se fica, vira barro.

E se levantou, ligou a televisão. Vinícius abriu a mão, uma fôrma de pássaro. Foi para o quarto. Bruno veio atrás.

— Cara, o que tá acontecendo?

— Vamos embora daqui, Bruno, por favor.

— Você tá louco? Não vou abrir mão da minha Cla-reira. Essa é minha aventura. Minha. O que você faz nas minhas costas pra essa velha caduca te dar atenção? É isso que você queria, né? Atenção. Bom, parabéns.

— Eu quero sair desse lugar.

— Não sairemos.

E bateu a porta. Provavelmente, foi gritar mais com a mulher. Vinícius não queria pensar naquilo agora, se pre-ocupar se a outra sairia ofendida, se preocupar se o namo-rado ficaria mal pelo estresse. Abriu as gavetas da mesa pequena que ficava no canto do quarto. Jogou o molde no fundo. Fechou. Deitou, com a roupa que estava mes-mo. Se revirou na cama, desde aquela hora até quando Bruno chegou e depois que ele já tinha até dormido.

Os dias seguiram. E, depois deles, outros e outros. Aquela vida ilhada da rotina de cidade grande foi se tornando um novo cotidiano para eles. Vinícius sentia que cada dia tinha gosto de amargo. Talvez todo sabor estranho, engolido pouco a pouco, pílulas prescritas diariamente, se tornasse parte do costume.

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A verdade é que a vida lá era movimentada ao seu modo, e isso o distraía um pouco dos seus embrulhos de estômago e arrepios de nuca. Sempre vinha alguma vi-sita diferente. Não eram como as pessoas com quem ele estava acostumado a conviver no escritório ou os ami-gos de Bruno. Cada um tinha a sua forma única de ser in-comum. Traziam bolo, repolho ou um vestido pra levar ponto. Alguns vinham só conversar com a Vó das Cobras, como todos que entravam pela porta a chamavam.

Nesses momentos, ela soltava suas frases enigmá-ticas. A carcaça do boi vira casa pro filhote de quero--quero. A onça come o cavalo, mas a ela come o uru-bu. A tábua da cerca vira cabaça de violão, mas não sem antes levar umas marteladas. Vinícius se enco-lhia, olhava pra baixo, lembrava a agonia de desviar dos tiros no campo de paintball que foi uma vez, só para agradar Bruno.

Vinícius desconfiava que aquelas frases poderiam ser uma espécie de jogo para irritar Bruno. De fato, ele ficava furioso. Gritava que a velha era desmiolada. Per-guntava, incansável, pela Clareira. Mas, se ele era insis-tente, ela não era menos. Respondia cada interrupção como se não ouvisse interrupção nenhuma, trazia uma enxurralhada de novos causos e estes se entroncavam ao longo da tarde.

Era o cercadinho de repolho de alguém que mur-chou, a vaca do outro que secou de leite porque não fizeram bem as rezas, o muro da escolinha que preci-sava ser pintado, o poço que vez ou outra dava suco de goiaba em vez de água.

Aos poucos, Vinícius começou a reconhecer os no-mes nas histórias, a sentir simpatia pelos visitantes que iam e voltavam e pareciam se conhecer entre si. Aos poucos, começou a gostar da Vó das Cobras, a conhe-cendo pelos olhos deles.

Ela foi perdendo um pouco do contorno sobrenatu-ral e assustador. Poderia estar nas memórias de mui-

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tas pessoas, a avó fofoqueira que gostava de assistir a missa das seis, a novela das sete, o jornal das oito e a novela das nove. Gostava de suco de limão e de fazer arroz com cenoura. Gostava, acima de tudo, de rece-ber suas visitas e de ter companhia para conversar. E ele foi se sentindo seguro para conversar com ela. So-bre o prato que tinha uma cor diferente, a música de abertura da novela, o bordado pra presente que estava bonito. Tinha cada vez menos medo de que uma frase enigmática o atingiria.

Bruno, por outro lado, estava cada vez mais furioso. Gritava perguntas, fazia birra, entrava na frente da TV, arremessava canecas no chão. Como tinha sinal de TV naquele fim de mundo? Onde estava a Clareira? Por que chamavam de Clareira se deveria ser mais parecido com um jardim? Por que ela era a Velha das Cobras se na-quela porra de sítio não tinha aparecido nunca a porra de uma cobra? Quem pensavam que eram, o tratando como um pernilongo que não participa da conversa?

Realmente, Vinícius se sentia cada vez mais distante do namorado. Naquele dia, ficou admirando o arco-íris que nunca sumia, céu azul de nuvens felpudas, até o sol se pôr. O que aquele lugar estava fazendo com ele? Ouviu os pássaros cantando. Vozes das mais diversas. Ritmos desencontrados. E ainda assim, de alguma for-ma, massa coesa e coerente em seus desencaixes. Se-gurou a própria mão. Acompanhou as linhas da palma, as linhas marcando os ossos dos dedos, as veias que surgiam no punho e sumiam braço acima.

Entrou. Os gritos de Bruno para a mulher ecoavam pela casa. Abriu a porta do quarto. Sentou na cama. Acompanhou as linhas das madeiras das paredes, se-guiu pelas linhas do chão. Encontrou as linhas da ma-deira da mesa de canto. Se aproximou. O ar parecia raro. Ele sentia seus movimentos lentos, como se o quarto fosse uma piscina de areia.

Alcançou o molde de pássaro. Sentiu o plástico na palma da mão. Contornou sua forma com a ponta dos

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dedos. Segurou apertado. Fechou os olhos e tentou respirar. Saiu.

Se sentou no sofá em frente à Vó das Cobras. Ela des-ligou a TV, arrumou a postura. Bruno olhou para o visor preto nas suas costas, depois para o namorado. Apertou os dentes, a mandíbula marcada em seu rosto magro.

Vinícius abriu a mão e mostrou o pequeno contorno de pássaro de plástico. Ela segurou na ponta dos dedos dele. O filtro antigo pingava na cozinha. De novo e de novo e de novo e de novo. Grilos cantavam no mato em volta. Ele puxou o ar. Se preparou para afundar, reco-lher no profundo das águas do rio as terras do caminho.

— Quando eu era criança, meus pais fizeram um vi-veiro. Muitos pássaros, bonitos. Era um viveiro grande, grande. Eram muitos pássaros. Eu gostava muito deles. Meus pais viajaram a trabalho. Eu fiquei, mas…

A lembrança se desenhava, vibrante.

— Mas eu esqueci de dar comida pra eles. Por dias. Muitos dias. Eles pararam de cantar e não percebi. Quando meus pais chegaram, os pássaros estavam mortos. Todos. Mais de vinte. Encolhidos. Tortos. Caí-dos. Imóveis.

Ele podia sentir o cheiro daquele dia. Como se o cor-po dele estivesse se decompondo bem ali. Cheirando a abandono. Cheirando a morte.

— Sabe, meu filho, uma árvore é suas raízes, mas é também o caminho que escolhem suas folhas. E da morte se nutrem raiz e tronco e folha e fruto. Você quer conhecer a metamorfose da terra?

Ele sentiu um puxão violento e viu os móveis pas-sando pela sua frente sem entender bem. Sentiu um baque nas costas. Viu Bruno na sua frente e atrás de Bruno o caminho barrento por onde vieram. A noite era fria.

— A Clareira era a minha história.

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— Talvez não dê pra desejar um desejo.

Suas mãos arderam. Sentiu os dedos de Bruno em volta de seus pulsos. Cada vez mais apertado. Unhas entrando na pele.

— Você é um personagem secundário nessa história. Namorado. Motorista. Só.

— Isso não é uma história.

— Você não sabe nada, não é nada. Nada. Eu que vim atrás da Clareira. O que você poderia querer plantar?

— Pode ser uma castanheira.

— Ridículo. Castanha tem no mercado.

— Tem sim.

— Dá pra plantar sucesso. Reconhecimento. Dinhei-ro. Fama.

— Você não precisa disso.

— Nem você de castanhas.

Vinícius não abaixou a cabeça para seguir os traços da madeira do chão. Não dessa vez. Acompanhou o ódio no rosto de Bruno. Sustentou seu olhar. Aguar-dou. Mas ele soltou seus braços e voltou para dentro.

Vinícius também entrou. Bruno caminhou rápido, bufando, cada passo uma porrada seca no chão. En-trou na cozinha. Abriu a gaveta. Saiu para os fundos da casa. Foi até o limite do quintal. Olhou para trás. Mos-trou uma caixinha na mão.

— Ninguém planta mais nada.

Correu pro meio da mata fechada.

Vinícius o seguiu, gritando seu nome, chamando. Si-lêncio.

Cada risco de fósforo era um eco.

O ar começou a esquentar. Pouco a pouco, o silêncio foi preenchido por estalos de galho seco. Fumaça cir-

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culando, um corpo crescente e denso. Seu nariz ardia, como se incendiado por dentro. Os troncos pareciam se descamar. Caíam, poeirentos. Ficavam. Tingiam o mato de carvão. Imaginou se as raízes escapavam ou se eram um fluir de lava perfurando a terra.

Não encontrava Bruno. Não sabia mais onde estava a casa. A estrada. As pernas doíam. Logo não saberia distinguir o chão e o céu. Tudo se tornava um círculo regular de luzes confusas que dançavam. Se mistura-vam. Se sobrepunham. Não restava espaço entre o que já foi árvore e o que já foi outra.

Tossiu. A fumaça arranhava a garganta como as unhas de Bruno.

Tossiu, e sentiu o peso do corpo cair devagar. Os jo-elhos afundaram na fuligem. Tossiu. Puxava o ar com força. Enchia os pulmões de fumaça.

Caiu. Procurou as estrelas. As estrelas são bolas de fogo, ela disse. Não sobrou nenhuma. Desceram todas. As folhas vibrantes ao seu redor eram estrelas cadentes que choravam fuligem. Apesar da luz do fogo, o mun-do escurecia.

Viu caírem penas, inúmeras penas. Todas as cores. Todos os formatos. Todos os tamanhos.

Sentiu algo gelado nas costas, mas os olhos pare-ciam colados de solda.

Tossiu. Teve a sensação que o mexiam. A cabeça es-tava zonza. Braços pesando pra trás.

Abriu os olhos.

Céu claro. Azul, nuvens almofadadas. Arco-íris de cores intensas. Vários dos visitantes da casa da Vó das Cobras, em círculo, o encaravam. Foi só lento, lento, que reconheceu o céu, as nuvens, o rosto de cada um. Dedos formigando. A garota se aproximou e o ajudou a levantar.

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A casa estava intacta, mas tudo em volta era desvi-vificado de cor. Um grande círculo de cinzeiro.

Viu a Vó das Cobras vindo do quartinho, passos len-tos. Encostou a mão na cabeça de Vinícius e sorriu, ma-ternal. Abriu a mão dele e deixou uma semente. Fechou seus dedos e apertou, firme e gentil.

GabiOZ

Poeta, escritora de literatura fantástica e estudante de Letras. Produz conteúdo nas redes sociais a respeito de seus textos e de crítica literária. Vive entre Araraqua-ra, no interior de São Paulo, e a capital desse estado.

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Entrevista: Ana Luiza Silva

Escambanáutica: Você é pesquisadora em história do direito e mora fora do Brasil. Como você tem conse-guido conciliar essa rotina com a produção literária?

Ana Luiza Silva: Tem sido bastante difícil, na verdade. O doutorado demanda muito e teve toda a adaptação da vida aqui. Até fazer compras no supermercado é dife-rente! É legal, mas deixa a gente exausta no final do dia. Parece que você é criança, tem que aprender a se comu-nicar numa nova língua, preencher documentos, tudo de novo, do jeito daqui. Apenas agora que estou um pouco mais acostumada com a rotina que consigo colocar horá-rios para escrever com mais leveza. É mais fácil quando é escrita para um desafio, ou um projeto com data marca-da. E, nossa, os amigos e grupos de escrita ajudam muito a manter a produção e a se sentir pertinho do Brasil.

E: Recentemente, você publicou um conto muito elo-giado na PULPA, “Humanomorfose”, uma releitura de “A Metamorfose” de Franz Kafka. Apesar da morbi-dez do enredo, há humor em “Humanomorfose”. Por outro lado, “Monstros do mar têm mães” é um tex-to absolutamente sombrio. Esse livre trânsito entre tons e gêneros é uma característica da sua escrita?

A: De fato, gosto muito de transitar nos dois gêneros. Penso que os dois têm algo diferente a oferecer, apesar

“Gosto muito da ideia de explorar nas histórias o sobrenatural como ferramenta para colocar o humano em evidência.”

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de ambos serem ótimos para lidar com temas comple-xos e até pesados. O humor pode fazer uma crítica social mais leve, pôr as coisas em perspectiva sem deprimir. Alguns temas, porém, como o de “Monstros...”, são tão pesados que fazer graça destruiria a magia e a intros-pecção da narrativa. Então, cada um tem o seu momen-to. Mas, confesso, com humor me divirto muito mais.

E: Maria, a protagonista de “Monstros…” tem a ânsia de conhecer o mundo, de ultrapassar as fronteiras do que se espera para a sua vida. Existem paralelos entre os sentimentos iniciais de Maria e os senti-mentos de alguém disposta a atravessar o atlântico para estudar?

A: Engraçado que não muito. Escrevi o esboço inicial desse conto já há bastante tempo, quando nem imagi-nava que viria para a Bélgica. Lógico que a vontade de conhecer e aprender sempre foi algo que me motivou, e acabo passando um pouco disso para os personagens, mesmo sem querer. Mas, para Maria, pensava mais num fascínio pelo mar bem clássico, como o de “O mar”, de Fernando Pessoa. O foco da história acaba sendo no res-sentimento dela por não realizar o sonho e não no sonho em si. Queria que o desejo dela fosse algo praticamente universal, um desejo de liberdade e conhecimento que, todo mundo, pelo menos alguma vez, teve, para que nos sentíssemos também parte do arco dela.

E: “Monstros…” apresenta uma reflexão sobre mater-nidade que está bastante em voga na literatura con-temporânea, uma maternidade menos idealizada e representada até mesmo com aspectos de monstru-osidade. Esse zeitgeist influenciou de algum modo na produção do seu conto?

A: Sim, creio que influenciou sim, mesmo que não tanto inicialmente. Em geral, gosto muito da ideia de explo-rar nas histórias o sobrenatural como ferramenta para colocar o humano em evidência. Se há algo que estu-dar História me ensinou, foi como as pessoas são com-

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plexas. Falar sobre monstros nos ajuda a brincar com esses maniqueísmos que nem sabíamos que tínhamos, principalmente quando várias atitudes monstruosas são protagonizadas pelas pessoas em si. Eu queria es-crever um conto sobre um sentimento e que fosse nar-rada por uma mulher. O sentimento escolhido foi “cul-pa”. E o que é um arquétipo de culpa maior, na nossa sociedade, do que uma mãe que tem dificuldade em amar o filho? Foi um desafio lidar com a Maria. Ela é muito diferente de mim, de propósito. Nem filhos eu tenho e adoro crianças. O desafio aqui foi criar empatia por ela e tentar compreender sua dor, no meio da dor também da criança. Pessoalmente, nem sei se a per-doo pela sua postura no enredo, mas esse nunca foi o propósito. Não importa se eu a perdoo ou se o leitor a perdoa. Esse é o arco de culpa e perdão dela e de seu filho. Só estamos aqui como espectadores.

E: Por falar nisso, há no arco de Maria uma intenção de valorizar outros aspectos da vida que não os so-nhos juvenis? Podemos dizer que “Monstros…” ce-lebra também a maturidade?

A: Sim, há uma simbologia de aceitação e uma matu-ridade no que a vida oferece e nos papéis que se aca-ba tendo de exercer. Isso não quer dizer que a jorna-da foi fácil. Aqui, literalmente monstros garantem que não seja. Mas, de novo, mesmo que vários elementos e símbolos sejam sobrenaturais, a catarse é muito hu-mana. Se no começo, o foco é todo na Maria que po-deria ter sido, no final temos a Maria que é, o que traz, sim, maturidade e uma certa libertação.

E: Conta pra gente um pouquinho da tua história com a literatura.

A: Nossa, nem sei por onde começar. Queria dizer que era porque minha avó escrevia, mas só descobri isso muito mais tarde. Quando era pequena, não gostava de ler. Minha experiência com leitura eram os livros que o colégio me obrigava a ler, e eu odiava isso por-

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que odiava ser obrigada. Com uns dez anos, me vi com acesso liberado à biblioteca e aí começou a paixão. Lia de tudo, mistério, fantasia, drama. Sério, eu pegava um livro por dia praticamente. Um negócio bizarro. Hoje, não consigo mais. Tive uma fase Harry Potter e escre-vi muita fanfic, que foi muito bom pra mim. Aprendi muito sobre narrativa numa comunidade receptiva e com paciência para ensinar. Escrevi muito com pes-soas queridas e conheci o Escambau nos desafios de microcontos. Participei de desafios, concursos, todo o pacote. Aprendi tanto com tanta gente que não dá nem pra começar a falar. O que mais importou foi o carinho, amigos que mandavam pelo celular trechos de histórias para eu continuar, gente com paciência para revisar de verdade os meus textos. Por muito tempo, fiquei sem escrever nem ler muito. Uma ansiedade doida de não conseguir produzir algo bom o suficiente me sufocou. Quando se aprende, é fácil demais ver tudo de errado nos seus textos, o julgamento triplica e a diversão di-minui. Porém, o carinho pela escrita e as pessoas en-volvidas nela me fizeram voltar. Espero continuar me divertindo por bastante tempo.

E: Como está a sua produção atual? Tem algo em an-damento ou planos para o futuro próximo?

A: estou escrevendo duas histórias agora. Engraçado que uma de humor e uma mais sombria. A primeira se chama “Espaçonave para o seu coração.mp20”, uma sátira futurística do nosso Brasil de COVID. A segunda se chama “O poço do desmilagre” e, como “Monstros...”, é um drama familiar marcado pelo sobrenatural. Des-sa vez, porém, o sentimento é o luto. Espero conseguir anunciar a publicação dessas histórias por algum canal ainda esse ano.

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Entrevista: R. R. Portela

Escambanáutica: “Três danças” é uma explosão de criatividade já nos primeiros parágrafos. Conta pra gente como foi o teu processo para chegar nesse mundo habitado por criaturas carnavalescas?

R. R. Portela: Eu adoro carnaval, é a minha festa anu-al favorita. Inclusive, estou muito triste porque não ti-vemos carnaval esse ano por conta da pandemia. Eu tenho até um romance já escrito sobre carnaval. Não é uma fantasia, é um terror, mas mostra que a minha mente está sempre trabalhando com alguma coisa re-lacionada a carnaval. Quando eu vi o edital da Escam-banáutica e a ideia de construir um texto pós-colonial, eu quis fazer algo muito brasileiro. E o nosso carnaval é muito único. Então, pensei “putz, eu preciso escrever sobre o carnaval”. Aí, já me veio o Clóvis, que é a mi-nha figura carnavalesca favorita, e depois disso eu só fui desenvolvendo. Tudo surgiu de forma muito natu-ral, ainda mais porque é uma história de amor.

E: É uma história de amor, mas também tem muito de política no texto. Aliás, é muito brasileiro misturar amor, política e carnaval. A tua leitura do momen-to político te influenciou diretamente nas questões abordadas no conto?

R: Um dos meus empurrões para desenvolver essa par-te de política na história é a polarização em que a gen-

“Eu comecei a escrever e de repente foi me surgindo esse contexto político. Tem muito a ver com o que a gente vive todos os dias.”

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te vive hoje. Essa parte foi bem natural, também, eu comecei a escrever e de repente foi me surgindo esse contexto político. Tem muito a ver com o que a gente vive todos os dias. Eu consumo muita coisa sobre polí-tica, leio muitos textos, acompanho, tô sempre antena-do com o que está acontecendo. É algo que eu absorvi e veio naturalmente na hora de escrever. Tanto que eu construí esses dois clãs de Clóvis como algo da nossa polarização atual. Inclusive, depois que escrevi, perce-bi que uma das personagens, que é julgada e morta na história, talvez seja inspirada na situação da Marielle (N. do E.: Marielle Franco, socióloga e política assassi-nada em 2018). Só depois de escrever tudo que eu fui percebendo aos poucos de onde tinha vindo toda essa parte política na minha história.

E: O processo então foi muito instintivo.

R: Exatamente. Não foi algo que eu planejei. Eu tinha na cabeça a ideia de escrever uma história de amor so-bre essas criaturas carnavalescas. Durante a feitura do texto, decidi colocar um contexto político porque ca-bia. A minha personagem principal, a narradora, é uma pessoa muito antenada, uma pessoa muito ligada em questões políticas, então decidi usar isso pra desen-volver alguma coisa a mais. Aí, acabou surgindo todo o resto que completou o texto.

E: Você falou que foi tudo surgindo espontaneamen-te e eu fico me perguntando se houve ao menos um esboço prévio, pois essa mitologia é muito rica. Dá a entender que existe mais coisa por trás do que é apresentado. Esse universo foi todo desenvolvido durante a escrita?

R: Eu já havia pensado antes nesse universo, mais ou menos no final de 2020. Na época, eu já estava chate-ado porque a pandemia não ia acabar a tempo de eu curtir o carnaval, então eu pensei “vou precisar escre-ver alguma coisa sobre carnaval”. Surgiu esse universo, mas eu não desenvolvi nada dele. Eu pensei apenas “eu

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gostaria que tivesse isso e aquilo, gostaria que tivesse essa questão das danças, gostaria que eles fossem divi-didos por clãs através dos tipos de bate-bola etc”. E foi isso. Depois, na reescrita, fui arrumando alguns pontos, fui cortando alguns outros que achei que não cabiam, fui resolvendo alguns furos na história. Mas estruturar mesmo o universo desses Clóvis foi só no conto.

E: A gente pode esperar coisa nova com os Clóvis?

R: Espero que sim. Não planejei nada, mas eu gostaria. Eu adorei escrever nesse universo e, se eu conseguir pensar em alguma coisa que eu possa levar pra frente, quero sim trabalhar mais nele.

E: Agora falando um pouco mais sobre você. Você está cursando letras. Quais são as suas pretensões de carreira no futuro?

R: Eu gosto da ideia de seguir uma carreira acadêmica ou tentar algo na área editorial. Mesmo que seja bas-tante difícil no Brasil, é algo com que eu me vejo traba-lhando, sabe? Mas não sei, acho que decidir isso é algo que eu vou deixar mesmo um pouco mais pra frente, se eu quero seguir na academia ou no caminho editorial.

E: E a carreira na escrita?

R: Eu sempre escrevi, mas geralmente mais para mim. Escrevia fantasia, comecei a escrever ficção científica há pouco tempo. Geralmente para mim, apesar de ter algumas trocas com amigos. Há um ano atrás, mais ou menos, comecei a tentar publicar. Foi quando inclusi-ve publiquei na Faísca, da Mafagafo (N. do E.: Faísca, newsletter nacional de ficção relâmpago), um conto que é parte de um projeto que eu tenho. Achei muito legal e fui tentando. Recebi muitas rejeições, mas tam-bém algumas aprovações. Já tô calejado.

E: Você citou um romance já pronto. Está planejando publicar? Tem algum outro trabalho em andamento?

R: Preciso passar esse romance ainda a limpo. Tem al-gumas coisas nele que ainda não gosto. Já reescrevi vá-

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rias vezes, mas tem umas coisas que eu quero mudar. E pretendo sim publicá-lo. Não sei ainda se vou tentar uma editora ou publicar logo pela Amazon. Também te-nho trabalhado em contos, alguns contos curtos, e em um novo romance. Parei um pouco porque não estava fluindo tão bem, mas é um romance que eu acho que se encaixa em ficção científica.

E: Aproveitando a deixa, onde a gente encaixa “Três danças”?

R: Aí você me pegou. Acho que é fantasia, talvez fanta-sia urbana, talvez fantasia de imersão. Talvez um pou-co dos dois.

Você pode acompanhar o trabalho de R. R. Portela em:Twitter: @PortelaRoger Instagram: R_R_Portela

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Entrevista: GabiOZ

Escambanáutica: Você sempre teve o objetivo de se tornar escritora ou o seu interesse pela literatura é mais recente?

GabiOz: Eu costumo falar que quero ser escritora desde sempre. Eu falava isso desde antes de saber escrever, até. Eu ditava histórias para minha mãe, desenhava e a gente fazia livrinhos. Sempre tentei criar histórias. Daí teve uma época em que parei de escrever. Principal-mente, poesia. Foi coisa de sala de aula. Eu não conse-guia entender a poesia que era ensinada, fiquei muito perturbada com isso e pensei que não deveria escrever. Afinal, se não entendia, não podia escrever. Fiquei um bom tempo parada e fui voltar só no segundo colegial. Já em relação a prosa, comecei a me dedicar mesmo a partir de 2019.

E: Uma característica forte em “Frutífero” é a aten-ção dedicada à linguagem. A escrita não parece fo-cada apenas em contar uma história, mas também em como essa história é transmitida. Dá pra notar isso no uso de neologismos, nas construções frasais, nas figuras de linguagem inesperadas. De onde vem tanto cuidado?

G: Acho que vem da minha experiência com poesia. Como eu disse, quando eu voltei a escrever, voltei fa-

“Tenho essa relação meio que de religiosidade com a natureza que eu nem sei explicar tão bem.”

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zendo poesia e, quando fui construir narrativas, acabei experimentando muito para encontrar a minha voz, sabe? Então, sempre pego muita coisa da poesia, que é a minha experiência. Poesia também foi um processo de descobrir minha voz, o que fazia sentido pra mim, então acho que eu bebo um pouco desse processo.

E: Quando você migrou para a prosa, você estudou escrita criativa, estrutura, modelos de contação de história?

G: Na verdade, o processo de editar “Frutífero” me aju-dou até a pensar um pouco nisso. Na vida, eu sou uma pessoa que gosta muito de programar as coisas, te-nho muito calendário, gosto de me organizar. Quando eu comecei a fazer poesia, eu queria contar as sílabas, planejar os versos, mas percebi que não funcionava, que meu processo era mais intuitivo. Então, quando cheguei na prosa, eu tinha muito medo de planejar as coisas porque eu achei que isso ia me bloquear. Tentei levar as coisas sempre mais pelo instinto, consciente-mente não estudando pra evitar qualquer tipo de blo-queio. Mas eu percebi que talvez sejam coisas diferen-tes, que eu posso ter um planejamento narrativo e ter um processo mais intuitivo na hora de lidar com a lin-guagem, na hora de sentar e fazer.

E: “Frutífero” bagunça as fronteiras da realidade com uma premissa que em si é muito curiosa. Como sur-giu a ideia do conto e da clareira mística?

G: Bom, esse conto teve umas quatro versões diferentes e, quando escrevi a primeira versão, eu quis fazer um exercício de escrita. Eu disse pra mim mesma: “que-ro escrever alguma coisa mágica”. Então, escrevi sobre essa clareira e saiu uma prosa poética meio fechada nela mesma. Eu não sabia muito o que fazer com a his-tória no começo porque era basicamente: “existe uma clareira e os personagens vão lá para dançar a melodia das raízes”. Acabava assim. Fiquei um bom tempo nis-so, mas aí eu fui desenvolvendo a história, escrevendo

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em partes. Em cada parte que eu escrevia, eu estava com uma coisa diferente na cabeça, e a história foi para várias direções. Só nessa última versão, depois da edi-ção, o conto ficou mais fechadinho. Mas no começo foi quase como escrever poesia, mesmo.

E: Você consegue rastrear as influências para a es-crita desse conto?

G: Olha, não sei se tenho algo tão consciente assim. No geral, eu sempre gostei de contos de fadas, tanto que, se eu for mesmo seguir carreira acadêmica, vou estudar poesia oral e coisas ligadas a culturas tradicionais e po-pulares. Com certeza, é uma influência importante pra mim. Pensando em autores, Saramago é um dos que eu mais gosto, tem muito dele no jeito como eu quero es-crever. Cortázar, também. Acho que, quando comecei a escrever “Frutífero”, eu tinha acabado de ler “Bestiário” (livro de contos de Julio Cortázar, 1951). Então, talvez eu estivesse no clima dele.

E: Outro ponto que chama atenção em “Frutífero” é o simbolismo de uma ligação com a floresta, uma flo-resta que não é idílica, que parece até assustadora de início. Mas à medida que o protagonista se envolve com essa natureza que o cerca, ele também mergu-lha em sua própria natureza. Isso vem de algo seu? Você tem contato com terra, com planta, ou você é mais uma pessoa de cidade grande, de asfalto?

G: É meio engraçado isso porque na verdade eu sou uma pessoa de cidade. Apesar de eu vir do interior de São Paulo, é de uma cidade de médio porte. Depois eu vim pra capital, e eu me identifico muito com o am-biente urbano. Mas eu tenho mesmo uma relação com a natureza. Eu não me considero uma pessoa religio-sa, mas se eu for falar de alguma crença que eu tenho, provavelmente é em relação a achar que o mundo é uma coisa muito maior que o ser humano. Enfim, que a natureza tem muito que não compreendemos. Acho que tenho essa relação meio que de religiosidade com

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a natureza que eu nem sei explicar tão bem. Ao mesmo tempo, a natureza faz parte do que a gente é, né? Por-que a gente não é um negócio abstrato, mas também nosso corpo. Então isso do protagonista se conectar com a própria natureza pode ter a ver com isso.

E: E os seus projetos, como estão?

G: Eu estou com um projeto de escrever uma história maior, a Saga da Viajante Dourada, que já vem de mui-to tempo, na verdade. É uma história de dez anos atrás que estou tentando retomar, mas ainda a passos len-tos. Falo bastante sobre ela nas minhas redes sociais, só preciso escrevê-la. Estou gostando muito da experi-ência de escrever contos, então talvez eu tenha alguns projetos relacionados, mas fico no dilema de ter que me dedicar à escrita da saga.

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