Revista Finaças Públicas Ano 4 - nº2

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REVISTA DEFINANAS PBLICAS EDIREITO FISCALAno 4 Nmero 2 vero

ARTIGOS COMENTRIOS DE JURISPRUDNCIA RECENSES NA WEB CRNICA DA ACTUALIDADE

NDICEEditorial Eduardo Paz Ferreira ......................................................... O MEMORANDO DA TROIKA EM ANLISE Apreciao geral, por Nuno Cunha Rodrigues ...................................... Finanas Pblicas e Concorrncia e Regulao, por Miguel Moura e Silva ...................................................................................................... Administrao Fiscal e Segurana Social; Administrao Pblica por Nazar da Costa Cabral ..................................................................... Poltica Fiscal, por Rogrio M. Fernandes Ferreira ................................ 15 19 25 37 9

Regulao e Superviso do Sector Financeiro e Sistema Judicial, por Lus Mximo dos Santos .................................................................. 47/55 Sector Empresarial Portugus, por Joo Pateira Ferreira .................... ARTIGOS Renato Gonalves E depois do resgate (da Grcia, da Irlanda e de Portugal)? Outro resgate? ..................................................................... Tiiu Albin Commission Proposes a Directive on Common Consolidated Tax Base (CCCTB) ................................................................................. Antnio Martins Environmental damage and corporate tax policy .... Rogrio M. Fernandes Ferreira, Francisco Carvalho de Furtado, Marta Machado de Almeida e Lus Castilho Do Regime dos vouchers no IVA ..................................................................................................... Carlos Alberto Loureno Morais Antunes O Julgamento da Responsa bilidade Financeira no Tribunal de Contas ............................................. 71 91 113 59

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Betina Treiger Grupenmacher Responsabilidade Fiscal, Renncia de Receitas e Guerra Fiscal ..................................................................... JURISPRUDNCIA Clotilde Celorico Palma Caso Salix A Reforma da Directiva IVA pelo Tribunal de Justia da Unio Europeia (Comentrio ao Acrdo do Tribunal de Justia da Unio Europeia de 4 de Junho de 2009, Caso Salix, Processo C102/08) ....................................................................... Rogrio M. Fernandes Ferreira, Francisco Carvalho Furtado, Ana Moutinho Nascimento, Pedro Saraiva Nrcio e Nuno Barata Reverses de Coimas para Administradores e Gerentes: desenvolvi mentos recentes (Comentrio aos Acrdos do Tribunal Constitucional n.os 24/2011, 26/2011 e 35/2011) ............................................................ Paula Rosado Pereira O Princpio da No Retroactividade da Lei Fiscal no campo da tributao autnoma de encargos (Comentrio ao Acrdo n 18/2011 do Tribunal Constitucional de 12/01/2011 Pro cesso n 204/2010) .................................................................................. Pedro Patrcio Amorim Anotao primeira deciso de um tribunal superior sobre a aplicao da clusula geral antiabuso (Comentrio ao Acrdo do Tribunal Central Administrativo Sul de 15 de Fevereiro de 2011 Processo n. 04255/10) ........................................................... Nuno Oliveira Garcia e Jos Almeida Fernandes Clusula Geral anti abuso Opus I (Comentrio ao Acrdo do Tribunal Central Adminis trativo Sul de 15 de Fevereiro de 2011 Processo n. 04255/10) .......... Sntese de acrdos do Tribunal de Justia da Unio Europeia em matria fiscal do Trimestre ...................................................................... Sntese de acrdos do Tribunal Constitucional do Trimestre ............. Sntese de acrdos do Supremo Tribunal Administrativo do Tri mestre ...................................................................................................... Sntese de acrdos do Tribunal de Contas do Trimestre .....................

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ndice

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RECENSES O Princpio Inquisitrio no Procedimento Tributrio de Pedro Vidal Matos, por Antnio Carlos dos Santos .................................................... Leais, Imparciais & Liberais de Jos Manuel Moreira, por Joo Ricardo Catarino ................................................................................................... Sobre a Responsabilidade Civil da Administrao Tributria por Actos Ilegais Notas Prticas de Jorge Lopes de Sousa, por Rogrio Fernandes Ferreira .................................................................................. Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro de Carlos Moreno, por Miguel Moura e Silva .......................................................................................... O Liberalismo em Questo Justia, Valores e Distribuio Social, de Joo Ricardo Catarino por Carlos Baptista Lobo ............................... Cdigo dos Impostos Especiais de Consumo Anotado e Actualizado de A. Brigas Afonso e Manuel T. Fernandes, por Rogrio Fernandes Ferreira .................................................................................................... Publicaes Recentes Por Marta Caldas ..................................................................................... Na WEB Visita ao Site Internacional Institute for New Economic Thinking (INET), por Nuno Cunha Rodrigues .................................................................... CRNICA DE ACTUALIDADE Cerimnia Comemorativa do Terceiro Aniversrio da Revista de Finanas Pblicas e Direito Fiscal ....................................................... 1. Aniversrio da Revista C&R, por Joo Miguel Ascenso ................ Livro Verde sobre o futuro do IVA (documento 17491/10, fisc 151, de 3 de Dezembro de 2010, da Comisso Europeia) resposta do IDEFF consulta pblica da Comisso, por Alexandra Martins, Cidlia Lana, Clotilde Celorico Palma, Rui Laires e Miguel Silva Pinto ..................... 307 313 303 277 281

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Ponto de situao dos trabalhos na Unio Europeia e na OCDE Principais iniciativas entre Maro e Maio de 2011, por Brigas Afonso, Clotilde Palma e Manuel Faustino ............................................ 1. Fiscalidade Directa ............................................................................. 2. Imposto sobre o Valor Acrescentado .................................................. 3. Impostos especiais de consumo harmonizados, imposto sobre veculos e unio aduaneira ............................................................................... Conferncia Internacional Conselho Europeu de 24 e 25 de Maro: As Novas Vestes da Unio Europeia, por Eduardo Paz Ferreira .......... Workshop Advogar no Tribunal de Justia da Unio Europeia, por Nuno Cunha Rodrigues .................................................................... Viagem ao Luxemburgo e a Estrasburgo no mbito da Psgra duao em Jurisprudncia da Unio Europeia, por Nuno Cunha Rodrigues ................................................................................................ 100 anos da Universidade de Lisboa, por Joo Miguel Ascenso .........

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EDITORIAL

Eduardo Paz Ferreira

1. Esta edio da Revista fecha num momento em que as nuvens que se acumularam sobre a Unio Europeia e, em particular, sobre a Grcia, Irlanda e Portugal, no param de se adensar, em larga medida por efeito da inaco dos dirigentes europeus e das suas declaraes contraditrias que no param de incendiar os mercados. A evoluo da Grcia torna evidente a impossibilidade de resolver a situao destes pases apenas pela aplicao de programas de austeridade, desenhados pelo Fundo Monetrio Internacional, a Comisso e o Banco Central Europeu, que no parecem, sequer, assegurar a sustentabilidade das finanas pblicas e, ainda menos, a possibilidade de crescimento econmico desses pases. A descida do rating de Portugal pela agncia Moodys originou um inesperado consenso em Portugal quanto aos malefcios destas agncias que, alguns meses atrs, foram objecto de uma participao crime por parte de um grupo de economistas, com relevo para Jos Reis e Manuela Silva. A deciso de descida do rating da Repblica, a que se seguiu idntica medida quanto aos mais importantes bancos portugueses, reflecte, acima de tudo, a descrena das agncias nas virtualidades e potencialidades dos programas impostos aos pases em maiores dificuldades. 2. Quaisquer que sejam as dvidas quanto eficcia do plano de ajuda, no parece possvel afastlo sem que tal se revelasse profundamente negativo, mas tornase imperativo lutar porque ele seja acompanhado de medidas, que apenas ao nvel europeu podem ser adoptadas, no sentido de aliviar a presso dos juros sobre as finanas pblicas portuguesas.

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A circunstncia do efeito de contgio, que os lderes europeus sem pre pensaram evitar, se ter feito sentir em Itlia e Espanha veio tornar totalmente claro que aquilo que est em jogo o prprio futuro do euro e que a ausncia de um plano alternativo para a austeridade far surgir um verdadeiro plano D de Death, como afirmou Wolfgang Munchau no Financial Times. Chegados a este ponto no podemos deixar de nos interrogar porque que os dirigentes dos pases at agora atingidos pela crise e at aqueles que, aparentemente, se lhes seguiro no optaram por uma frente comum forte, em vez de apenas procurarem distanciarse entre si. 3. Da mesma forma, h que assegurar uma maior flexibilidade em questes como a dos calendrios das privatizaes que, a manteremse, traro srios prejuzos para o Estado portugus, obrigado a encontrar compradores (estrangeiros) que iro beneficiar da necessidade de venda rpida. A forma como se destruiriam as golden shares, sem que ao Estado aproveitasse a maisvalia significativa dai resultante para as empresas e os seus accionistas, causa a maior perplexidade quanto a este processo, ao mesmo tempo que pode criar uma sensao de menor empenhamento na equidade na distribuio dos sacrifcios. 4. Uma opo por ir mais alm do que aquilo que foi negociado com a troika, consubstanciada j no imposto extraordinrio que vai recair praticamente apenas sobre os rendimentos do trabalho, significar forosamente uma eroso da base social de apoio a medidas de conteno que iro piorar o quotidiano dos portugueses que disporo de cada vez menos rendimento e sero confrontados com uma reduo substancial das prestaes do Estado. A extrema desigualdade na distribuio da riqueza indicador em que Portugal apenas fica frente da Letnia torna especialmente difcil um programa deste tipo, que agravar sensivelmente a pobreza, o que no pode deixar de nos envergonhar a todos ns, ao mesmo tempo que cria condies para convulses sociais do tipo j experimentado na Grcia. 5. O imposto extraordinrio parece indicar fiscalidade e, mais genericamente, s finanas pblicas portuguesas, um caminho em que as

Editorial

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preocupaes de justia cedem a meros critrios de eficincia econmica, tornando a Constituio Financeira Portuguesa de resto, j bastante desconsiderada letra morta. Na medida em que consideramos que a eficincia tem de ser sempre conjugada com a equidade, no deixaremos de acompanhar as decises que forem surgindo e que no assentem numa adequada ponderao daqueles dois objectivos. Naturalmente que este tipo de anlise no implicar menor ateno ao rigor tcnico das medidas. 6. Este nmero da Revista inclui, assim, uma primeira aproximao aos aspectos centrais do memorando em que colaboram Nuno Cunha Rodrigues, Miguel Moura e Silva, Nazar da Costa Cabral, Lus Mximo dos Santos, Rogrio Fernandes Ferreira e Joo Pateira Ferreira. Iremos continuar esse trabalho no prximo nmero, que nos permitir levar j em considerao os primeiros meses de governao e a primeira apreciao da execuo do memorando por parte da troika.

O mEmORANDO DA TROIkA Em ANLISE

1.

APRECIAO GERALNuno Cunha Rodrigues

O acordo em anlise, designado por Memorando de Entendimento sobre as condicionalidades de poltica econmica, foi assinado, no dia 17 de Maio, pelo Ministro de Estado e das Finanas, pelo Governador do Banco de Portugal e pela chamada troika (constituda pela Comisso Europeia, pelo Banco Central Europeu e pelo Fundo Monetrio Interna cional) envolvendo ainda os trs maiores partidos polticos.1 Na mesma data, foi assinado o Memorando de Polticas Econmicas e Financeiras que enquadra o acordo estabelecido com o Fundo Monetrio Internacional (FMI) e que se baseia nos mesmos pressupostos do acordo com a Unio Europeia.2 Em ambos os documentos so definidos os pressupostos que devem ser observados no mbito do financiamento concedido pela Unio Europeia e pelo Fundo Monetrio Internacional ao Estado Portugus sendo ambos aqui designados por Memorando. Tratase de um verdadeiro programa de governo para os prximos trs anos, desenhando um roteiro de medidas mais ou menos concretas que devem ser executadas, durante aquele perodo. Num ou noutro ponto, surgem pormenores que parecem inspirados em programas eleitorais dos partidos intervenientes.1 A traduo em Portugus do acordo encontrase disponvel em http://www.min financas.pt/informacaoeconomica/informacaoeconomicadiversa/memorandode entendimentosobreascondicionalidadesdepoliticaeconomica 2 Este acordo est disponvel, na verso em Portugus, em http://www.minfinancas. pt/informacaoeconomica/informacaoeconomicadiversa/memorandodepoliticas economicasefinanceirasfmi

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O pano de fundo de ambos os acordos reside no problema actual da dvida soberana pretendendose, atravs dos objectivos fixados, libertar fluxos financeiros do Estado para o pagamento do servio da dvida agora contrada junto da chamada troika e assegurar que, a longo prazo, as debi lidades estruturais da economia portuguesa sejam superadas, prevenindo crises econmicas no futuro. As medidas previstas so ambiciosas e permitem concretizar refor mas estruturais essenciais que ficam, a priori, politicamente justificadas. A este ttulo, no deixa de ser criticvel a circunstncia de, em alguns casos, assentarem em pressupostos numricos ou em medidas program ticas, tpicas das polticas financeiras determinadas pelo FMI na esteira do chamado consenso de Washington, que ter, aparentemente, contaminado a Unio Europeia de tal forma que alguns falam agora no consenso de Bruxelas sem que, em alguns casos, se compreendam os mecanismos ou medidas concretas com que se atingiro os objectivos. Referimonos, por exemplo, ao anncio de uma estratgia de aperfeioamento das decises relativas s despesas de capital ou aos valores previstos para a reduo do dfice oramental. A receita postulada pelo Memorando , aparentemente, simples: reduo do deficit oramental por via do aumento das receitas pblicas e diminuio das despesas, tudo isto associado reestruturao da economia, tendo em vista o necessrio crescimento econmico, o qual deve ultra passar o valor do dfice por forma a evitar o aumento da dvida pblica. As medidas preconizadas no Memorando que secunda outros cele brados com a Grcia e a Irlanda representam, na verdade, uma limitao ao poder oramental Portugus, incorporando vinculaes oramentais plurianuais que condicionam o legislador oramental independentemente da natureza do memorando podendo discutirse se estamos perante um acordo internacional ou um contrato de direito privado entre um Estado e organizaes internacionais. Nessa medida, a Unio Europeia enquanto parte do memorando consegue limitar o poder oramental em aspectos especficos que, at aqui, ainda constituam resqucios de soberania nacional no contexto europeu, tais como a poltica fiscal, a poltica da sade ou at a dimenso e estru tura do sector empresarial do Estado o qual, como sabido, se subordina, a nvel europeu, ao princpio da neutralidade relativamente formas de propriedade dos Estadosmembros (cfr. artigo 295. do TFUE).

O memorando da troika em anlise

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Em todas estas reas assistese, com a aprovao do memorando, a uma interveno directa porquanto limitadora da Unio Europeia. A aprovao do memorando ter inclusive contribudo para ultrapas sar o debate surgido no ano passado em torno do chamado visto prvio europeu e do semestre europeu uma vez que, com a aprovao dos memorandos em vigor num conjunto de pases at ao momento Por tugal, Grcia e Irlanda a Unio Europeia passou no apenas a apreciar previamente polticas oramentais a serem aprovadas internamente pelos parlamentos nacionais como se pretende com o visto prvio europeu mas tambm a impor orientaes e polticas oramentais especficas em diversas reas que, at aqui, ainda repousavam no mbito da soberania oramental ainda ao dispor dos Estadosmembros. Conseguiuse, desta forma, fazer entrar pela janela aquilo que apa rentemente, ainda se encontrava vedado pelos Tratados europeus. O Memorando assenta na obteno, pelo Estado Portugus, de ajuda financeira sendo a aplicao do termo ajuda dificilmente compreensvel, num cenrio em que a taxa de juro aplicvel ao Estado Portugus muito superior taxa de juro a que os credores se financiam. Ora justamente na taxa de juro que encontramos o n grdio do Memorando. Se, por um lado, o Memorando visa, a longo prazo, promover o crescimento da economia, sem o qual os sucessivos dfices oramentais implicaro o agravamento da dvida pblica, a verdade que, a curto e mdio prazo, a taxa de juro a que Portugal se financiar inferior que obteria junto dos mercados mas superior taxa de juro que a Unio Europeia consegue obter ter implicaes oramentais directas. Em rigor, foi o valor da taxa de juro associado ao financiamento que determinou a interveno da troika e o consequente Memorando. Podia ter sido equacionado um mecanismo que determinasse uma oscilao da taxa de juro em ralao com a verificao concomitante do cumprimento ou incumprimento das medidas previstas no Memorando. Proporcionarseia, dessa forma, um estmulo para a implementao das medidas. Sempre se pode, no entanto, afirmar que a (pretensa) solidariedade da Unio Europeia, assente na unio entre povos europeus, aponta para que a taxa de juro aplicada pela troika seja a melhor possvel e que qualquer mecanismo que determinasse a oscilao das taxas de juro face ao eventual

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cumprimento ou incumprimento das medidas seria contraditrio com essa solidariedade. porm certo que a taxa de juro aplicada ao Estado Portugus pela troika, sendo favorvel comparativamente com a praticada pelos merca dos, no difere muito da que seria alcanada num cenrio de interveno singular do FMI sendo legtima a interrogao sobre onde pra, neste contexto, a solidariedade ou a ajuda europeia. De toda a forma, o Memorando repousa em pressupostos ambiciosos alguns dificilmente atingveis quando, por exemplo, se prev um objec tivo para o dfice pblico de 3% para 2013 e procura, de forma sria e consistente, de harmonia com a agenda tpica das instituies que integram a troika, dar um impulso estrutural economia portuguesa, promovendo o crescimento econmico. O Memorando representa, a final, uma espcie de documento de paz entre David e Golias. Pode discutirse se era necessrio esse documento de paz ou se a Europa no podia ter evitado o surgimento deste tipo de situaes atravs da criao de mecanismos que assegurassem a coeso econmica e social e a efectiva solidariedade entre Estados, tambm no domnio das finanas pblicas, nomeadamente por via da aprovao de propostas recentemente difundidas de criao de obrigaes europeias (eurobonds), como expres so da solidariedade europeia apregoada no passado basta ver o que se passou com a reunificao alem que conduziu consagrao expressa, no Tratado de Roma, de um regime de excepo no tocante aos auxlios de Estado mas rapidamente esquecida aos primeiros sinais de derrocada do processo de construo europeia alegadamente provocada por pases mais afastados do centro da Europa. Releguemos esse debate para outra ocasio, concentrandonos agora na anlise detalhada dos aspectos mais relevantes do Memorando.

2.

FINANAS PBLICAS E CONCORRNCIA E REGULAOMiguel Moura e Silva

Finanas Pblicas No mbito da ajuda financeira solicitada pelo Governo portugus, foi acordado com a chamada Troika um conjunto de memorandos, sendo o mais divulgado o Memorando de entendimento relativo condicionalidade da ajuda a certas medidas de poltica econmica. A falta de previso de mecanismos de ajuda a pases membros da zona Euro com dificuldades financeiras levou criao de um mecanismo interino, o Fundo Europeu de Estabilizao Financeira, e sua articulao com os mecanismos do Fundo Monetrio Internacional (FMI) o verdadeiro lender of last resort da ordem econmica instituda ainda no final da Segunda Grande Guerra. O Memorando segue o modelo desenvolvido ao abrigo da poltica de condicionalidade no acesso aos fundos disponibilizados pelo FMI, o que explica a peculiar construo jurdica do mesmo como uma troca de instrumentos que no constitui um acordo em sentido prprio. Assim, o Memorando traduz as condies a que fica sujeita a continuao da ajuda financeira a Portugal, enquanto a Carta de Intenes do Governo portugus exprime o compromisso deste de cumprir um conjunto de medidas que mais no so do que a traduo das condies constantes do Memorando, mas agora como uma promessa unilateral. Como no poderia deixar de ser, as medidas elencadas no Memo rando tm sobretudo incidncia nas polticas financeiras. O objectivo em matria de dfice das administraes pblicas ajustado no Memorando face ao que tinha sido o compromisso anterior do Governo portugus, fixandose em 5,9% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2011, 4,5% do PIB em 2012 e 3,0% do PIB em 2013. Registase, pois, um substancial

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abrandamento do ritmo de consolidao fiscal (notese que o Oramento de Estado para 2011 previa um dfice neste ano de 4,6% do PIB, nvel que apenas ser atingido em 2012), sem dvida fruto de previses mais realistas quanto evoluo da economia portuguesa mas tambm da reviso em alta do valor do dfice de anos anteriores, incluindo o de 2010. No presente texto iremos tratar sobretudo dos aspectos ligados despesa, uma vez que as receitas, sobretudo as fiscais e as receitas prove nientes das privatizaes sero tratadas noutros comentrios publicados no presente nmero da Revista de Finanas Pblicas e Direito Fiscal. No lado da despesa, o Memorando traa uma estratgia orientada para a contraco da despesa social, de educao e de sade, acompanhada de objectivos agregados de reduo do aparelho da administrao pblica. Quanto s medidas relativas administrao pblica, prevse a realizao, j em 2012 de poupanas anuais no inferiores a 500 milhes de euros, a que se somam poupanas de 195 milhes na educao, 550 milhes na sade, 445 milhes pela reduo de penses, 150 milhes com a reforma das prestaes de desemprego, uma reduo de custos com trans ferncias para as administraes local e regional de 175 milhes de euros, uma diminuio dos custos do subsector Fundos e Servios Autnomos de 110 milhes e a poupana de 515 milhes de euros atravs de reduo de custos no Sector Empresarial do Estado. O investimento pblico sofre tambm uma substancial reduo, contribuindo com poupanas de 500 milhes de euros. Agregadas, estas diferentes rubricas representam um total de 3.140 milhes de euros (ainda que se contabilizem poupanas que podem ter um efeito meramente indirecto no Oramento das Administra es Pblicas caso das entidades integradas no Sector Empresarial do Estado que no devam ser requalificadas como Administrao Pblica de acordo com as regras de contabilidade nacional). No ano de 2013, alm da continuao dos objectivos anuais de poupana fixados j em 2012, so ainda previstos cortes adicionais de 100 milhes de euros nos sistemas de sade para trabalhadores em funes pblicas, de 375 milhes no sector da sade, nova reduo das transferncias para as administraes local e regional de 175 milhes de euros, reduo dos custos com o subsector Fundos e Servios Aut nomos de 175 milhes de euros e contraco das despesas de capital em 350 milhes de euros, bem como a reduo das despesas sociais em 350 milhes de euros.

O memorando da troika em anlise

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Olhando apenas para o lado da despesa, afigurase que a to propalada preocupao em minimizar o impacto da consolidao oramental nos grupos vulnerveis mais lipservice do que uma real orientao das polticas financeiras acordadas entre o Governo portugus e a Troika. Que no restem dvidas: como dizia alguma imprensa estrangeira, estes so mesmo cortes selvticos! Por outro lado, difcil divisar neste Memorando uma verdadeira linha de orientao quanto reforma do Estado (rectius, da Administrao Pblica). Naturalmente, no sendo este um programa de governo, podemos compreender a relativa generalidade dos termos em que so avanadas as medidas. No entanto, dados os curtos prazos para a execuo das medidas (e as pesadas consequncias financeiras de um incumprimento o que quer que venha a ser definido como tal pela burocracia das entidades que compem a Troika) teria sido til uma indicao pelo menos do sentido das reformas em questo (a nica excepo, talvez por j constar dos planos do Governo portugus, a fuso dos servios da DirecoGeral das Contribuies e Impostos com a DirecoGeral das Alfndegas). Assim sendo, o novo governo ter pouco tempo para antecipar o impacto dos cortes assumidos no Memorando, devendo para o efeito retomar o trabalho j desenvolvido no incio deste sculo quanto definio das funes do Estado. Ser um exerccio sem dvida arriscado, pois sem uma rpida redefinio daquelas funes e consequente adaptao da estrutura existente, arriscamonos total imobilizao da administrao pblica. Concorrncia e Regulao As polticas financeiras acordadas no Memorando da Troika con tribuem para a consolidao fiscal e reduo do peso da dvida pblica sobretudo por uma poltica de cortes brutais na despesa e de um aumento da j elevada carga tributria. Pr os traves a fundo na economia pblica no nos garante, todavia, que consigamos evitar o agravamento da situao da economia portuguesa; s o crescimento econmico pode resolver a crise em que nos encontramos. Todavia, como j o PEC III reconhecia, o crescimento no depende do Estado, pelo menos no em medida relevante numa pequena economia aberta como a nossa. Assim, de saudar que o enfoque do Memorando nesta matria seja dado interveno do Estado

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para desbloquear alguns dos ns grdios (como lhes chama Vtor Bento em obra recente) da nossa economia. O objectivo dificilmente poder ser o de estabelecer um nexo directo entre as medidas acordadas e um aumento quantificvel do Produto Interno Bruto portugus. No entanto, mesmo que nunca se tenha feito o estudo que em tempos propusemos sobre os custos da no concorrncia, inegvel a existncia de transferncia de rendas do sector transaccionvel para o sector no transaccionvel (como sublinham, entre outros economistas, Vtor Bento). Para que esse lastro seja reduzido e as empresas exportadoras sejam correspondentemente desoneradas do seu peso, ser necessrio levar a cabo uma poltica agressiva de desregulao (no sentido de eliminao de entraves que operam como barreiras entrada ou expanso) e de regulao ex ante e interveno no sentido da defesa da concorrncia ex post para combater as ineficincias que caracterizam ainda alguns sectores da economia nacional que esto, por vrias razes, protegidos da presso concorrencial. A promoo da concorrncia e da liberalizao (efectiva) do mer cado nos sectores da energia (gs e electricidade), transportes, comu nicaes (telecomunicaes e comunicaes postais) e outros servios (incluindo as profisses liberais), so autonomizados pelo Memorando, com especial destaque para o transporte ferrovirio, uma das reas onde Portugal chegou a estar na vanguarda da regulao a nvel europeu, apenas para ver anos de esforo e de empenhamento pblico invertidos nos ltimos anos. importante registar que a introduo de uma cultura de con corrncia e o reforo da regulao jurdicoeconmica de monoplios naturais e de monoplios histricos enfrentam em Portugal uma forte resistncia poltica, econmica e mesmo cultural. A isto acresce uma tendncia nacional para reinventar a roda a cada passo ou o equiva lente ao mito grego de Ssifo revertendo as experincias de regulao e introduzindo novos modelos sem permitir explorar plenamente as virtualidades e defeitos dos modelos existentes (e impedindo que se aprenda com os erros cometidos antes preferindo novos erros, numa acumulao de insucessos que desespera mesmo o mais fiel cultor da regulao e da concorrncia). O reforo da independncia das autoridades reguladoras e da Autori dade da Concorrncia so, por isso, objectivos essenciais do Memorando, sendo de salientar o papel atribudo entidade reguladora dos caminhos

O memorando da troika em anlise

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deferro rea onde, como vimos, Portugal chegou a estar na vanguarda a nvel europeu, com o trabalho desenvolvido pelo Instituto Nacional do Transporte Ferrovirio, entretanto extinto e tendo sido integrada a funo de regulao ferroviria numa unidade funcionalmente autnoma do novo Instituto da Mobilidade e Transportes Terrestres, a Unidade de Regulao Ferroviria (v. 5.3.i.). Todavia, manifesta a falta de confiana na capa cidade de os rgos constitucionalmente competentes para essa reforma a levarem a cabo com sucesso. Parecenos que seria evitvel o embarao de termos de recorrer a especialistas reconhecidos internacionalmente, para elaborar um relat rio que fundamentar a tomada de medidas para implementar as melhores prticas internacionais identificadas, a fim de reforar a independncia dos reguladores onde necessrio e em plena observncia da legislao comunitria ( 7.21.). Com efeito, alm do menosprezo que assim se manifesta por quem entre ns tem procurado defender a independncia dos reguladores (face aos sectores regulados e face ao governo), correm se dois riscos: o primeiro o de construir solues sem adequao ao nosso ordenamento (ainda que, perante o atropelo manifestado pela nossa Constituio certamente desfasada das actuais realidades, mas ainda assim a nossa Lei Fundamental tal parea quase de importncia menor); o segundo o de deslegitimar partida os organismos que venham a beneficiar de tais reformas passando a ser vistos como braos locais de uma burocracia distante e omnipotente (pelo menos enquanto durar o nosso estado de necessidade oramental). Curiosamente, apesar de serem apontados elementos muito concretos quanto reforma da Lei da Concorrncia apontando a uma harmoni zao processual e substantiva com as regras europeias nada se diz no Memorando quanto ao que, at hoje e na opinio deste autor mais minou a independncia da Autoridade da Concorrncia: a possibilidade de um recurso extraordinrio das decises de proibio de concentraes para o Ministro que tutela a rea da economia. Este recurso, tendo sido usado apenas uma vez desde 2003, permite a regovernamentalizao de decises de natureza tcnica e um ponto obrigatrio em qualquer futura reviso do regime jurdico da concorrncia. Concluindo, embora sejam de saudar os propsitos das medidas avanadas no domnio da regulao sectorial e da defesa da concorrncia, parecenos que a sua imposio e sobretudo os termos em que as mesmas

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sero definidas e aplicadas num registo prximo da romanizao dos brbaros Lusitanos podem impedir a sua sedimentao, sobretudo quando temos em conta que os pases que integram a zona Euro que no recorreram ajuda da Troika podem manter estruturas regulatrias (quando existem) que no respeitam os mesmos princpios deste Memorando.

3.

ADMINISTRAO FISCAL E SEGURANA SOCIAL; ADMINISTRAO PBLICANazar da Costa Cabral

Administrao Fiscal e Segurana Social 3.33. O Governo ir fundir os servios da administrao fiscal (DGCI), da administrao aduaneira (DGAIEC) e de tecnologias de informao (DGITA) numa nica entidade. (definio completa da nova estrutura no T4 2011 e implementado no T4 2012) e estudar os custos e benefcios de incluir na fuso as unidades de cobrana de receita da segurana social [T3 2011]. Prosseguir com a fuso mais abrangente se a avaliao for favorvel. [T1 2012] (bold nosso). Muito se falou, nomeadamente na recente campanha eleitoral, da diminuio da taxa contributiva global (taxa social nica) e do sentido mais ou menos evidente dessa diminuio. Em favor de uma reduo mais acentuada, apontouse o seu efeito catalisador junto das empresas, desoneradas assim de uma parte dos seus custos e as vantagens daqui resultantes sobre a economia e sobre o emprego. Em favor de uma reduo mais suave e cautelosa, apontouse o impacto negativo que uma tal medida teria sobre o equilbrio financeiro da segurana social, obrigada quotidianamente aos seus compromissos de despesa e que assim, desfalcada de uma parte importante da sua receita, seria incapaz de assegurar. De todo o modo, a compensao desta farseia por conta do reforo da consignao da receita fiscal, designadamente do acrscimo da receita do IVA, cujo agravamento, para que aponta de resto tambm o Memorando, encontra assim uma ponderosa justificao. O IVA aparece, alis, agora, com uma nova ou renovada funo extrafiscal: ao refrear o mpeto consumista dos portugueses e, nomeadamente, o consumo diri gido a bens importados, ele apontado como instrumento fundamental

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da poltica macroeconmica externa do pas, de reequilbrio da nossa balana corrente. A leitura do Memorando trouxenos todavia evidncia uma outra proposta, esta totalmente ignorada pela discusso poltica e meditica recente. Embora se aponte para a mera realizao de estudos e no para uma concretizao certa, abrese a porta, agora, pela primeira vez no nosso pas, integrao do sistema de cobrana fiscal e do sistema de cobrana da segurana social. Num estudo recente, analismos esta questo com algum detalhe1. Recente, a este propsito, tambm o rela trio preparado por Bakirtzi et aliud (2010)2. Vejamos ento, de forma muito sumria, alguns aspectos relevantes. A) Em termos puros, podemos considerar a existncia de dois modelos opostos, ainda que depois possam, em cada caso, verificarse nuances ou mitigaes. O primeiro modelo, que podemos denominar de modelo dualista ou de separao (tambm chamado modelo continen tal) marcado pela existncia de dois sistemas paralelos de cobrana de receitas: por um lado, o sistema de cobrana na segurana social, por outro lado, o sistema de cobrana fiscal. Este modelo aplicado em Frana, na Alemanha e como sabemos tambm aqui em Portugal. O segundo modelo, que denominamos modelo unitrio ou de integrao (ou ainda denominado modelo anglosaxnico), caracterizado pela integrao dos dois sistemas de cobrana, num nico sistema. Em certos pases, como os Estados Unidos e a Austrlia, tal modelo prevaleceu desde sempre. Outros pases historicamente marcados pelo modelo dualista tm vindo a transitar, por razes de maior racionalizao e eficincia, para solues integradoras: o caso, por exemplo, da Itlia, da Irlanda e sobretudo do Reino Unido, dos Pases Baixos e da Sucia. De igual modo, algumas das chamadas economias de transio parecem caminhar, nos anos mais recentes, para a consagrao do modelo unitrio: o caso da Estnia, da Hungria, da Letnia e da Eslovnia.Assim, CABRAL, Nazar da Costa (2010). Contribuies para a Segurana Social Natureza, Aspectos de Regime e de Tcnica e Perspectivas de Evoluo num Contexto de Incerteza, Cadernos do IDEFF, n. 12. Almedina, Coimbra, p. 187 ss. 2 BAKIRTZI, Effrosyni et aliud (2010). Case Studies in Merging the Administra tions of Social Security Contribution and Taxation, IBM for the Business of Government.1

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B) Podemos depois equacionar solues diferentes, algumas mitiga doras, dentro de cada modelo. Assim, o modelo dualista oscila entre uma soluo de dualismo puro herana da tradio previdencial, mas tambm paritria, de gesto do sistema de segurana social (o caso francs, ainda hoje) e solues mitigadoras no seio dos processos duais de cobrana fiscal e da segurana social. Assim, por exemplo: a) Logo na fase inicial do processo de cobrana, utilizao de elementos comuns, designadamente no plano da identificao tributria: por exemplo, um mesmo nmero de identificao dos contribuintes e da respectiva situao ou estatuto sciolaboral (trabalhador por conta de outrem, independente ou outro); por exemplo tambm, no tocante s empresas, utilizao da mesma identificao tributria e da respectiva situao (constituio, alteraes ou modificaes relevantes, extino e encerramento de actividade); b) Mantendose embora elementos de identificao prprios e distintos em cada sistema de colecta, reforo da cooperao entre as administraes fiscal e da segurana social e da troca de dados e de outras informaes relevantes (aproveitando designadamente bases de dados constantes dos respectivos suportes informticos). Esta troca de informaes servir, de resto tambm, para propsitos de fiscalizao e de eventual aplicao de sanes; c) J na fase final do processo de cobrana, utilizao de um pro cesso de execuo tributrio nico e comum, quer no que diz respeito aplicao das mesmas normas processuais, quer quanto utilizao de um s aparelho executivo, administrativo ou judicirio (seces de processo nicas). d) De igual modo, o domnio contraordenacional e criminal pode ser integrado e regulado por uma s legislao e as sanes aplicadas pelas mesmas entidades (designadamente, pelos tribunais fiscais). C) Por sua vez, no modelo unitrio, podemos encontrar algumas variantes soluo pura de integrao. A distino fundamental que podemos identificar neste mesmo modelo a que separa: a) Em primeiro lugar, os sistemas de integrao que mantm uma ciso clara entre o domnio tributrio/contributivo e o domnio presta cional: aqui, a integrao ocorre estritamente no plano contributivo, mas a atribuio dos benefcios ou prestaes continua a ser feita por insti

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tuies prprias da Segurana Social, ao mesmo tempo que se mantm autnomas as regras de definio e atribuio de direitos e de clculo das prestaes; b) Em segundo lugar, os sistemas de integrao que, alm de pro cederem integrao no plano contributivo/tributrio estrito, acabam por integrar no esquema fiscal tambm a atribuio dos benefcios ou prestaes sociais: aqui, ao mesmo tempo que as instituies gestoras da segurana social ficam esvaziadas das suas funes tradicionais no domnio das prestaes, so as prprias regras de atribuio de direitos e de clculo das prestaes que se diluem na legislao fiscal, maxime na legislao sobre a tributao do rendimento pessoal. Estas solues que normalmente assentam no mecanismo do crdito de imposto constituem claramente as solues mais extremas de integrao (do sistema de cobrana) da segurana social no sistema fiscal. O Imposto sobre o Rendimento Negativo constitui o exemplo estremado desta opo. D) Quando falamos de integrao, importante atender s princi pais funes associadas aos sistemas de cobrana (fiscal e da segurana social). So elas: Funo de registo, eventualmente com o recurso a um nmero de identificao de contribuinte nico; Funo de contabilidade e de reporte; Funo de cobrana propriamente dita; Funo de manuteno dos registos individuais; Funo de controlo sobre o processo de cobrana; Funo de recebimento de reclamaes; Funo de transferncia das receitas com as contribuies de segurana social para as entidades competentes no pagamento de prestaes (se for caso disso). Tendo em conta estes parmetros, o Relatrio supra aponta as impli caes da opo pela integrao (tendo em conta as experincias concretas levadas a cabo nos pases que aderiram a este modelo).

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Deste modo:Funes administrativas do sistema de cobrana Algumas prticas seguidas nas solues de integrao Benefcios da opo pela integrao

Registo de contribuintes Criao de um nmero Simplificao e facilitao nico de identificao de do processo de cobrana; contribuintes Limitao das prticas de evaso Contabilidade e reporte Declaraes fiscais unifi cadas; Harmonizao do conceito de remunerao para efei tos fiscais e da segurana social; Generalizao do uso de sistemas de informao e tecnologia (IT) e do recurso ao egovernment Eliminao de operaes duplicadas; Supresso de erros; Minimizao dos custos administrativos a suportar pelos contribuintes; Acompanhamento instan tneo das declaraes con tributivas; Controlo mais eficiente dos pagamentos; Criao de bases de dados apropriadas para controlo e garantia de acesso aos benefcios sociais.

Cobrana propriamente Forma unificada de paga Simplificao dos processos dita mento de pagamento; Eliminao das operaes de duplicao de pagamen tos; Melhor controlo; Distribuio mais rpida e segura das receitas assim colectadas. Controlo Cruzamento dos dados para verificao de consistncia; Incorporao de dados nas bases electrnicas; Utilizao de sistemas de IT apropriados; Poderes de enforcement concedidos aos servios de cobrana Facilitao na identificao dos erros; Processos mais efectivos de cumprimento (enfor cement); Aumento das receitas; Combate fraude segu rana social

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Funes administrativas do sistema de cobrana

Algumas prticas seguidas nas solues de integrao

Benefcios da opo pela integrao

Transferncia das receitas cobradas

Transferncias peridicas Aumento da rapidez nos de receitas; pagamentos das prestaes Transferncias atravs dos por parte da segurana so bancos ou de tesouros p cial; blicos; Transferncia atempada de Pagamentos de compensa fundos. o em caso de atrasos por parte dos empregadores, bancos ou servios de co brana

Fonte: Bakirtzi et aliud (2010), p. 14.

E) De um modo geral, apontase portanto como rationale para a uni ficao dos sistemas de cobrana fiscal e da segurana social o objectivo de uma maior performance na cobrana de receitas pblicas de natureza tribu tria (Barrand et aliud, 20043). Concretizando, e ainda segundo estes auto res, constituem vantagens principais dessa integrao: i) o aproveitamento cabal das sinergias que existem entre os dois tipos de organizaes e das suas funes nucleares, ii) a reduo esperada dos custos administrativos e de controlo. Quanto a este ltimo ponto, esperase, na verdade, que a integra o dos sistemas elimine a duplicao das funes nucleares associadas ao processo de cobrana, poupandose assim nos gastos com pessoal e dirigen tes dos servios, nos equipamentos e espaos utilizados pelos funcionrios e tambm nos custos de desenvolvimento de tecnologias e sua manuteno. A efectivao desta integrao no deixa, no entanto, de colocar diversos problemas importantes que nem todos os pases tero condies para resolver. O primeiro problema, de ordem conceituallegislativa, prendese com a necessidade proceder uniformizao dos conceitos justributrios relevantes. Esta matria foi especialmente tratada por Williams (1997)4.3 BARRAND, Peter et aliud (2004). Integrating a Unified Revenue Administration for Tax and Social Contribution Collections: Experiences of Central and Eastern Euro pean Countries, IMF Working Paper, WP/04/237. Disponvel em: http://info.worldbank. org/etools/docs/library/238290/IMF_UnifiedCollection.pdf [ltimo acesso: 03.07.2010]. 4 WILLIAMS, David (1997). Legal and institutional aspects of social security and taxations reforms, Interactions of social security and tax systems, ISSA, OECD, Social Security Documentation, European Series, n. 25, Geneva, pp. 2951.

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Para o autor, os conceitos que devero ser aproximados, como condio prvia da uniformizao, so sobretudo os conceitos de empregador, de trabalhador, de trabalhador por conta de outrem, de trabalhador independente e de rendimentos do trabalho5. Outras questes, ligadas a esta, devero tambm ser resolvidas: por exemplo, a da identificao clara dos sujeitos passivos, principais e acessrios (tendo em vista, designa damente, a existncia de mecanismos de reteno na fonte) e dos tipos de contribuintes em presena. O segundo tipo de problemas de ordem administrativa. E colocam se, ainda segundo Barrand et aliud, nas seguintes quatro reas: i) O mbito de actividade de cobrana que deve ser transferido da segurana social para o fisco; ii) a importncia da utilizao de um nico nmero de iden tificao tributria; iii) o grau de integrao dos processos de cobrana; iv) as solues de controlo e registo que devem ser postas em prtica. Tendo por base o objectivo estratgico de melhoria da performance no sistema de cobrana, impese, para uma efectiva integrao, a imple mentao de alguns princpios fundamentais. Tais como: a) Eliminao de tarefas duplicadas e atribuio selectiva de funes e competncias a cada entidade envolvida; b) Promoo, desde logo a nvel legislativo, da troca permanente de informaes relevantes entre as entidades; c) Delimitao da informao a obter, sendo que s deve ser obtida e processada a informao estritamente necessria; d) Escolha de um nico perodo de tributao relevante e de um s mtodo de preenchimento de declaraes de rendimentos, em princpio a cargo das entidades empregadoras; e) Ligao eventual entre as contribuies pagas e as prestaes percebidas, ligao que considerada a forma mais correcta de assegurar a simplificao administrativa de todo o processo tributrio subjacente. F) Esta alterao traduziria uma importante ruptura com a nossa tradio que tem at hoje apontado para a autonomia (praticamente inte gral) do sistema contributivo da segurana social relativamente ao sistema5 Entre ns, temse caminhado para uma aproximao, ainda que com recuos pon tuais, do conceito de rendimento de trabalho relevante para efeitos fiscais e para efeitos de tributao para a segurana social.

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fiscal. Como dissemos antes, no texto atrs citado (p. 227), as solues concretas dadas por cada ordenamento jurdico dependem das diferenas verificadas a nvel de quatro parmetros ou nveis principais: i) Estrutura e financiamento dos sistemas de segurana social subjacentes; ii) Planos conceitual e operativo; iii) Planos institucional e administrativo; iv) Planos mental e cultural. Chammos ento a ateno para o facto de que, no caso portugus, embora possamos ter, designadamente nos dois primeiros nveis, alguns embries dessa integrao, a verdade que as diferenas nos planos institucional e administrativo e tambm nos planos mental e cultural, tendem a dificultar essa integrao. E este aspecto, a tradio autonmica da segurana social portuguesa, enquanto eventual elemento de resistncia, deve ser fortemente considerada, aquando da realizao do estudo a que refere o Memorando. Administrao Pblica O Governo tomar as seguintes medidas para aumentar a eficincia e a eficcia na Administrao Pblica: Administrao central, regional e local Reorganizar a estrutura da administrao local. Existem actualmente 308 municpios e 4.259 freguesias. At Julho 2012, o Governo desenvol ver um plano de consolidao para reorganizar e reduzir significati vamente o nmero destas entidades. O Governo implementar estes pla nos baseado num acordo com a CE e o FMI. Estas alteraes, que devero entrar em vigor no prximo ciclo eleitoral local, reforaro a prestao do servio pblico, aumentaro a eficincia e reduziro custos. (bold nosso). Tambm aqui se prope uma reforma de fundo na organizao administrativa do Estado portugus a fazer recordar a reforma iniciada por Mouzinho da Silveira, h quase duzentos anos atrs6. A necessidade6 Como refere SILVEIRA (1997, pp.6870), o primeiro esforo neste sentido (da reorganizao do espao) foi levado a cabo por Mouzinho da Silveira, atravs do decreto de 16 de Maio de 1832, que preconizava um sistema baseado em provncias, comarcas e concelhos. O decreto que estabelecia o desenho das novas circunscries, datado de 28 de Junho de 1833, quando Mouzinho j havia abandonado o governo, introduzia alteraes importantes nas provncias at ento existentes () e nas comarcas. Ao mesmo tempo,

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para a reduo de municpios e de freguesias que agora, segundo o Memorando, dever ser concretizada at 2012, aparece justificada luz fundamentalmente de critrios de eficincia microeconmica. Verificase que o actual desenho administrativo do territrio marcado pela existn cia de circunscries que se apartam cada vez mais do figurino ptimo de circunscrio e que segundo as propostas tradicionais, normativas, da Teoria do Federalismo Financeiro, devem corresponder a circunscries de dimenso e densidade populacionais ptimas, o mesmo dizer de popula o intermdia7. Na verdade, como nos dizem PEREIRA et aliud (p. 312), se certo que, por um lado, qualquer dimenso e densidade populacional deve ser suficientemente elevada para aproveitar as economias de escala para um nmero significativo de bens pblicos locais, no menos verdade que, por outro lado, tal dimenso no pode ser demasiadamente grande que provoque nveis de congestionamento elevados, com a consequente perda de capacidade e/ou de qualidade no acesso e no gozo desses bens8. No caso portugus, encontramos justamente autarquias que ora so subdimensionadas (ou seja, tm uma populao pouco densa e pouco numerosa), que por isso desaproveitam as economias de escala associa das proviso de diversos bens pblicos locais, ora so, pelo contrrio, sobredimensionadas (com densidade populacional excessiva), conduzindo a fenmenos de congestionamento ou de sobrelotao no gozo de diversos bens pblicos locais, tenham eles a forma de equipamentos sociais ou de servios pblicos. Este desajuste o reflexo do desequilbrio da organi zao do espao em Portugal (embora no seja fenmeno exclusivo do nosso pas): a fraca densidade populacional o espelho da desertificaodeterminava o incio dos trabalhos de redefinio dos territrios concelhios. A contestao gerada por estas medidas () levou o parlamento a aprovar a lei de 25 de Abril de 1835 que d origem ao sistema administrativo contemporneo, baseado em distritos, concelhos e freguesias, estas ltimas correspondendo s parquias religiosas. O passo seguinte consis tiu na dramtica reduo do nmero de concelhos, de 816 para 315, operada pelo decreto de 6 de Novembro de 1836 (sublinhado nosso). Assim, SILVEIRA, Lus Nuno Espinha da (1997), Estado liberal e centralizao. Reexame de um tema, Lus Nuno Espinha da Silveira (Coord.), Poder Central, Poder Regional, Poder Local, uma perspectiva hist rica, Edies Cosmos, Lisboa, pp. 6284. 7 Para uma introduo ao tema, leiase PEREIRA et aliud (2005). Economia e Finanas Pblicas, Escolar Editora, Lisboa, pp. 306312. 8 Dadas as restries ao uso de factores produtivos que impedem a proviso de mais bens pblicos locais a custos mdios constantes.

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de uma parte do territrio e acontece sobretudo nas zonas do interior; a elevada densidade populacional reflecte a macrocefalia em certos plos urbanos e acontece primacialmente junto ao litoral. O Memorando no avana com propostas que pudessem contrariar esse desequilbrio; antes pelo contrrio, aceitao como inevitabilidade. Vem assim, por razes de eficincia microeconmica estrita, propor, designadamente para as autarquias de menor populao, de populao abaixo do ptimo, que as mesmas sejam objecto de fuso/eliminao. Esta ideia foi, desde logo, rejeitada pelas associaes representativas das autar quias, a Associao Nacional dos Municpios Portugueses e Associao Nacional de Freguesias, tendo a primeira assumido a seguinte posio: Portugal j um dos pases da Unio Europeia que tem Municpios com maior dimenso mdia, qualquer que seja o factor de anlise, como por exemplo a sua demografia ou a sua rea. A reduo cega do nmero de Municpios algo que no faz, por isso, qualquer sentido9. Dirse, primeira vista, que tal oposio radica sobretudo em razes de ordem polticopartidria: as autarquias sempre so um microcosmos de exerccio de poder, de influncia e de presso poltica (lobbying). Alis, as novas correntes do Federalismo Financeiro, identificadas pela expresso Econo mia Poltica do Federalismo Financeiro, contestando a herana normativa das primeiras geraes do Fiscal Federalism, tm chamado a ateno para o facto de que a organizao administrativa e financeira de um pas, a sua organizao espacial, no depende s de argumentos econmicos (neste sentido, Dafflon, 2006, p. 272)10. As organizaes estaduais de nveis mltiplos constituem, isso sim, o epicentro das relaes polticas e sociais existentes num dado Estado. De todo o modo, afigurasenos que as razes daquele descontenta mento vo muito para l de um mesquinho interesse de preservao do status quo polticopartidrio. Tratase de razes mais fundas que a Eco nomia no apreende: a Histria de cada pas, a sua situao geogrfica, a cultura e as tradies, as relaes sociais, as diferenas e as eventuaisDisponvel em: http://www.cmbenavente.pt/benavente/NoticiasEventos/Noticias/ anmp.htm [ltimo acesso: 11.06.03]. 10 DAFFLON, Bernard, (2006). The assignment of functions to decentralized government: from theory to practice, Ehtisham Ahmad e Giorgio Brosio (ed.), Handbook of Fiscal Federalism, Edward Elgar.9

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tenses existentes entre grupos sociais, regies ou naes de um pas. Por isto, a tentativa de aplicar os conceitos da economia do bemestar s experincias de descentralizao territorial acaba por dar uma explicao muito insuficiente das solues constitucionais encontradas. No caso portugus, pesa uma tradio concelhia antiga; em certos casos, ela remonta ao perodo medieval, quando as primeiras cartas de foral granjearam aos concelhos a sua autonomia. A fuso de concelhos, implicando a diluio de uns em outros, com a consequente perda da sua identidade o seu nome, os seus smbolos e a sua afirmao contribuir certamente, como j se fez notar, para o surgimento de tenses sociais dispensveis e indesejveis, at mesmo do ponto de vista econmico. A identidade factor de atractividade econmica, por exemplo, no sector do turismo e da agricultura. A construo do espao territorial ptimo, luz dos mencionados critrios de eficincia (de um lado a proximidade do benefcio, do outro, a existncia de rendimentos crescentes escala), pode fazerse sem implicar necessariamente essa perturbao nas rela es entre as pessoas, pondo em risco a coeso nacional. Os contributos e propostas mais recentes (tambm elas sadas da Economia Poltica do Federalismo Financeiro) apontam para outras solues que implicam, de um modo geral, a via da contratualizao (Contract Federalism)11 entre nveis de deciso do mesmo grau com vista a uma proviso mais eficiente dos bens pblicos locais (permitindo um up grading na escala de proviso), se e quando necessrio e nos termos contratualizados. Os exemplos de associaes de municpios e a prpria criao de entidades metropolitanas, para proviso de bens que beneficiam de importantes economias de escala (v.g. gesto de guas e tratamento de resduos, trans portes colectivos, etc.), so exemplos, entre ns, deste tipo de solues e que podem ser desenvolvidos. Outras alternativas, tambm elas pela via contratual, consistem em atribuir a proviso de um bem a um dos governos locais, mas que sirva tambm as populaes das circunscries vizinhas, mediante compensaes pagas quele por estas. Estas vias alternativas conducentes a um desenho diferenciado do territrio, a uma assimetria interna na proviso de bens pblicos locais, em funo das necessidades, da populao abrangida e da sua dimenso, permitem, por outro lado, manter11 SPAHN, Paul Bernd, (2006). Contract federalism, Ehtisham Ahmad e Giorgio Brosio (ed.), Handbook of Fiscal Federalism, Edward Elgar, 182197.

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a autonomia identitria de cada unidade administrativa, sem criar tenses entre governos locais vizinhos e destes em relao ao governo central. Em suma, tambm aqui, a tradio autonmica, desta feita das autarquias locais portuguesas, maxime dos municpios, deve ser fortemente considerada, aquando da aprovao do plano de consolidao e de reduo para que aponta o Memorando.

4.

POLTICA FISCAL

Rogrio M. Fernandes Ferreira (*)

Introduo O Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Poltica Econmica, documento que contm as polticas econmicas acor dadas com a Unio Europeia e que muitos apelidaram j de Programa de Governo para este e os prximos trs anos, foi assinado em 17 de Maio, pelo Ministro de Estado e das Finanas, pelo Governador do Banco de Por tugal e pela Comisso Europeia. Nele foram estabelecidas medidas bastante ambiciosas, no s do ponto de vista da arrecadao de receita e reduo da despesa do Estado, sem descurar o reforo da competitividade e as refor mas estruturais do Estado e nos diversos sectores econmicos que, embora nalguns casos j estivessem previstas, no foram, ainda, contempladas. No mesmo dia 17 de Maio, foi tambm assinado o Memorando de Polticas Econmicas e Financeiras, documento que delimita o objecto do acordo estabelecido com o Fundo Monetrio Internacional (FMI), o qual se fixa, naturalmente, nos mesmos parmetros do acordo com a Unio Europeia. 1 Neste documento estabelecese uma reduo substancial da Taxa Social nica j em finais de Julho de 2011, tendo sido, ainda, inclu das as medidas consideradas crticas pelo FMI (structural benchmarks) e, bem assim, prazos para a respectiva concretizao.(*) Com a colaborao de Francisco de Carvalho Furtado, Mnica Respcio Gonalves, Marta Machado de Almeida e Maria de Atade Cordeiro. 1 Em anexo a este Memorando, encontrase um Memorando de Entendimento Tcnico, o qual contm as definies dos termos utilizados no Memorando de Polticas Econmicas e Financeiras.

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Cumpre reconhecer que a ausncia de uma poltica fiscal concreta, declarada e consensual, e, sobretudo, a ausncia de um entendimento (partidrio) bem mais alargado quanto s finalidades e aos objectivos da(s) poltica(s) fiscal(ais) portuguesa(s) tornaram o sistema fiscal portugus refm da opacidade decorrente de uma proliferao desajustada de regimes especiais e de excepo, tornando muito difcil a previsibilidade e a sua interpretao e aplicao, mas tambm de nele poder ser lido um sentido de justia mnimo. A preocupao central deve, pois, residir, de ora em diante, nesta incapacidade de alinhamento no sistema fiscal portugus de instrues precisas, claras e transparentes. Neste ponto, as medidas apresentadas nos Memorandos e pelo Governo portugus e o ajustamento que as mesmas exigem e poten ciam no mbito fiscal v.g. as medidas relativas reduo estrutural de benefcios fiscais, incluindo a eliminao de isenes e os cortes que sero efectuados nas dedues oferecemnos uma clara oportunidade para parar e para reduzir e eliminar regimes especiais e excepcionais que proliferaram sem real justificao econmica e social, fomentando, por esta via, a transparncia e, principalmente, a estabilidade das leis e dos rditos fiscais. O prximo Governo tem alis, neste mbito, j ao seu dispor uma cartilha inmera de recomendaes algumas tambm, agora, obriga es , mais no mbito, at, dos procedimentos do que das alteraes estruturais, no recente relatrio do Grupo de Trabalho sobre a Poltica Fiscal (Competitividade, Eficincia e Justia no Sistema Fiscal, 2009 2) e que podero permitir um salto qualitativo nos prximos anos anos em que, certamente, a receita fiscal se manter no cerne da poltica oramental. Na verdade, encontramos nas recomendaes do referido relatrio de 2009 a afirmao de que o Grupo de Trabalho no prope uma nova reforma fiscal, mas uma reestruturao de certos diplomas, a reviso de certas normas e a adopo de boas prticas que podero aperfeioar o funcionamento do sistema fiscal, tornandoo mais eficaz, mais competitivo e menos injusto. As principais medidas que integram o pacote de ajuda internacional a Portugal incidiro, sobretudo, na reduo da despesa, correspondendo2

Cfr. http://www.minfinancas.pt/inf_fiscal/GPFRelatorioGlobal_VFinal.pdf.

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apenas tero ao aumento de receita3 e iro ser concretizadas gradualmente no nosso ordenamento, designadamente na legislao fiscal. Foi, entre tanto, j publicado no stio do Ministrio das Finanas um documento4 no qual esto sistematizadas as medidas do Programa de Apoio Econmico e Financeiro a Portugal at final de 2011 e constantes daquele Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Poltica Econmica e do Memorando de Polticas Econmicas e Financeiras (especificando, designadamente, os prazos, as entidades envolvidas, as medidas que so benchmark estruturais e, ainda, o pargrafo correspondente dos Memo randos em causa). No obstante a existncia de calendarizao para concretizao das medidas aprovadas, pode dizerse que as mesmas intensificarseo, em regra, j no prximo semestre, designadamente com a aprovao da Lei do Oramento do Estado para 2012, o qual deve integrar j algumas dessas medidas, tambm previstas para 2013 e 2014. Resta saber se um Governo de coligao ter a unidade e a coern cia necessria, que todos desejamos, para concretizar as medidas que se impem e que a seguir se descrevem, pois se a margem de negociao maior tambm o consenso interno ter de ser mais alargado5. A tributao das empresas O agravamento dos encargos fiscais, que se prev permita a obten o de receita adicional de Eur. 150 Milhes em cada ano de 2012 e 2013, farse sentir, desde logo, atravs da eliminao das taxas reduzidas de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), o que, na prtica, dever implicar no s a extino da taxa reduzida de IRC de 12,5%, aplicvel parcela da matria colectvel at Eur. 12.500, mas, tambm, a eliminao de todas as taxas reduzidas previstas em regimes3 Cfr. FRANCO, Francesco Economia e Poltica, in Memorandum of Economic and Financial Policies 11 Perspectives, Nova School of Business & Economics, Maio de 2011, pg. 4. 4 Vd. http://www.minfinancas.pt/inf_geral/SI_Medidas_PT.pdf 5 Cfr. TAVARES, Jos Economia e Poltica, in Memorandum of Economic and Financial Policies 11 Perspective, Nova School of Business & Economics, Maio de 2011, pg. 19.

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especiais de tributao, tais como as taxas de 15%, ou 10%, aplicveis no mbito do regime de benefcios fiscais relativos interioridade. extino das taxas reduzidas acresce, em sede de IRC, a reduo do perodo de reporte de prejuzos fiscais de quatro anos (seis anos para os prejuzos fiscais verificados anteriormente a 2010) para trs anos. Esta uma medida que poder, nomeadamente, dificultar a realizao de investimentos de mdio e longo prazo, nos quais o chamado payback period seja superior aos trs anos 6. Prevse, ainda, a diminuio das dedues fiscais permitidas e a revogao de isenes fiscais subjectivas, tais como as relativas a pessoas colectivas de utilidade pblica e de solidariedade social. Por outro lado, devero ser eliminados os benefcios fiscais sujeitos ao prazo de caducidade geral de cinco anos, previsto no Estatuto dos Benefcios Fiscais (EBF), j que o Memorando de Entendimento se refere, em particular, aos benefcios fiscais abrangidos pela sunset clause prevista no EBF. Estar em causa, finalmente, a reavaliao dos benefcios fiscais, nomeadamente dos que caducam em virtude da referida clusula de caducidade legal, como os relativos criao de emprego e, bem assim, dos benefcios fiscais ao sistema financeiro e mercado de capitais, onde se incluiro os atribudos s sociedades gestoras de participaes sociais (SGPS), sociedades de capital de risco (SCR) e investidores de capital de risco (ICR). De fora, por preverem um prazo especfico de aplicao, ao abrigo de ressalva constante da prpria sunset clause, podero estar os atribudos s empresas que operam na Zona Franca da Madeira, assim como os benefcios expressamente excludos, ou seja, os aplicveis a fundos de penses e equiparveis, ou no mbito do regime pblico de capitalizao, s contribuies das entidades patronais para regimes de segurana social, a fundos de poupanareforma e planos de poupana reforma, a fundos de investimento, fundos de capital de risco e fundos de investimento imobilirio em recursos florestais e, bem assim, as isenes aplicveis a bens imveis.

6 Sobre a aplicao da lei no tempo em situao paralela decorrente da Lei do Ora mento do Estado para 2011 (Lei n. 55A/2010, de 31 de Dezembro, artigo 99.), vd. Des pacho n. 735/2010XVIII, de 12 de Agosto, do Secretrio de Estado dos Assuntos Fiscais.

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Ainda em sede de IRC, dever ser alterada a lei das finanas regio nais de modo a permitir o agravamento das taxas aplicveis nas Regies Autnomas, com o limite mximo de reduo de 20%, relativamente s taxas aplicveis no Continente, de onde resulta que a taxa de IRC actual mente aplicvel na Regio Autnoma dos Aores de 17,5%, dever sofrer um aumento para, pelo menos, 20%, que j a taxa de IRC aplicvel na Regio Autnoma da Madeira. Merece referncia, por ltimo, a alterao prevista ao nvel da tributao das viaturas em sede de IRC, prevendose um novo aumento das taxas de tributao autnoma relativas aos gastos das empresas com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas. Salientamos, contudo, que se prevem incentivos ao aumento da competitividade das empresas portuguesas atravs da diminuio dos seus encargos sociais e da diminuio da taxa social nica a cargo das entidades empregadoras, desde que tal diminuio seja compensada com o aumento dos impostos sobre o consumo, conforme expressamente previsto no Memorando de Polticas Econmicas e Financeiras. A tributao de particulares Embora no se preveja um aumento geral das taxas de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), vale aqui o que dis semos j relativamente ao agravamento das taxas aplicveis nas Regies Autnomas. As principais medidas que afectaro os agregados familiares e que se prev permitam a obteno de receita de Eur. 150 Milhes, em 2012, e de Eur. 175 Milhes, em 2013, devero reflectirse na diminuio das dedues colecta, desde logo, atravs da reduo das categorias respec tivas e do estabelecimento de limites mximos, em funo dos escales de imposto, prevendose a sua reduo nos escales mais elevados e a eliminao no mais elevado, o que corresponde, na prtica, ao alargamento do mbito de aplicao de uma medida que j existe actualmente, embora apenas relativamente a algumas dedues colecta. Ser tambm introdu zido um limite mximo deduo de despesas de sade, que assumimos trataremse das despesas isentas de IVA ou sujeitas taxa reduzida de 6% de IVA e que, actualmente, no tm qualquer limite na deduo.

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Prevse, tambm, contnua e progressiva convergncia do regime de tributao das penses e dos rendimentos de trabalho, o que poder ser alcanado atravs da alterao das regras de deduo especfica dos rendimentos da categoria H (penses) de IRS. Ainda quanto aos rendi mentos do trabalho, prevse a reviso da tributao dos rendimentos em espcie, do que resultar, provavelmente, um agravamento da mesma ou um alargamento do seu mbito. Por fim, realase que, apesar de aparente mente se prever que os benefcios sociais, como subsdios de desemprego, abono de famlia, maternidade e rendimento social de insero, entre outros, passem a ser tributados em sede de IRS, foi j esclarecido pelo (anterior) Governo que os mesmos devero, apenas, ser englobados para efeitos da determinao da taxa aplicvel ao conjunto dos rendimentos, tal como sucede com outros rendimentos isentos. A concretizao de ambas as medidas permitir ao Estado arrecadar Eur. 150 Milhes, em cada ano de 2012 e 2013. No que respeita habitao, o objectivo estimular o mercado de arrendamento. Assim, devero ser eliminadas as dedues colecta dos montantes incorridos na amortizao do emprstimo habitao, j em 2012, mesmo para contratos de emprstimo habitao j em vigor, prevendose, tambm, a eliminao gradual da deduo colecta dos juros relativos a estes contratos. No caso dos novos contratos de emprstimo habitao, os agregados familiares ficaro impedidos de deduzir colecta, quer os montantes amortizados, quer os juros incorridos. E tambm a deduo colecta das rendas pagas pelos arrendatrios ser gradualmente eliminada. Assim se pretender diminuir o endividamento excessivo das famlias portuguesas e, simultaneamente, fomentar o mercado do arren damento e, em ltima anlise, a prpria mobilidade laboral, que muito reduzida em Portugal. Com impacto nos encargos da habitao, prevse, tambm, a reava liao do valor patrimonial tributrio dos imveis, de modo a permitir um aumento da receita de, pelo menos, Eur. 150 Milhes, em 2013, e por forma a que fique o mais prximo possvel do valor de mercado. Para alm do mais, prevse o aumento das taxas de Imposto Municipal sobre Imveis (IMI), o que ter como consequncia um duplo agravamento da carga fiscal, neste sector, uma vez que o IMI incide sobre o valor patrimonial tributrio. O aumento do IMI, a incidir de modo mais penalizador sobre imveis devolutos visar tambm promover o mercado do arrendamento,

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j que os arrendatrios devero poder continuar a deduzir, em sede de IRS, o IMI incorrido anualmente nas rendas auferidas. Neste sentido, tambm a iseno temporria de IMI prevista para imveis adquiridos para habitao prpria dever ser revista no sentido da reduo dos actuais prazos de quatro e oito anos, em funo do valor do imvel, medida da qual dever resultar uma receita adicional de Eur. 250 Milhes, em 2012. Prevse, por ltimo, uma reduo do Imposto Municipal sobre as Transaces Onerosas de Imveis (IMT), o qual, certamente, incrementar as transmisses de imveis, incentivando a compra e despromovendo a fraude decorrente da subavaliao do preo. Estes objectivos poderiam, porm, ser potenciados, de forma ainda mais adequada, atravs da rea valiao das isenes fiscais de IMT aquisio de imveis com destino habitao que hoje j no tm justificao razovel perante o ratio de casas por cada agregado familiar (pela existncia de um rcio, absoluta mente excessivo, de cerca de 4.500.000/5.000.000 de agregados familiares para cerca de 6.000.000/6.500.000 de prdios urbanos), o que permitiria, provavelmente, a diminuio da taxa do IMT para valores bem inferiores e a sua transformao em mera contribuio de registo. A tributao do consumo Nos impostos especiais do consumo, prevse a indexao dos seus aumentos taxa de inflao e que as medidas sejam adoptadas j em 2012 e aprofundadas em 2013 e 2014, assim permitindo a obteno de receita adicional de Eur. 250 Milhes, em 2012, e de Eur. 150 Milhes, em 2013. Para o prximo ano de 2012 prevse, ainda, o aumento da carga fiscal na venda de veculos, atravs do aumento do Imposto sobre Veculos (ISV), bem como a eliminao de isenes aplicveis em sede de Imposto nico de Circulao (IUC). Acresce que os impostos especiais sobre o tabaco sofrero um agravamento, sendo introduzidos novos impostos sobre consumos especficos como a electricidade, em conformidade com o que prev a Directiva Europeia n. 2003/96, transposta j em diversos pases. Para permitir o aumento das receitas de IVA, no valor de Eur. 410 Milhes anuais, o Memorando de Entendimento prev que algumas categorias de produtos e de servios, actualmente inseridas nas Listas I e II da tabela anexa ao Cdigo do IVA aos quais so aplicveis as taxas

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reduzidas e intermdias, respectivamente sejam alteradas. Prevse ainda que alguns dos produtos e servios actualmente inseridos na Lista I como o caso da electricidade e do gs passem a estar sujeitos a taxas mais elevadas, isto , taxa intermdia ou taxa normal, e que alguns dos produtos e servios actualmente constantes na Lista II passem a estar sujeitos taxa normal. Neste sentido, tais produtos sofrero um aumento da taxa do IVA que hoje lhes aplicvel. Para alm do caso concreto da electricidade e do gs medidas que afectaro sobretudo os particulares o Memorando de Entendimento nada antecipa quanto aos bens e servios cuja tributao ser agravada. Recordase que, actualmente, a Lista I contempla, no seu elenco, produtos alimentares, bens de produo agrcola, prestaes de servios silvcolas, jornais, revistas, livros, produtos farmacuticos, servios de empreitadas, entre outros e que, por sua vez, a Lista II prev a aplicao da taxa inter mdia a produtos para alimentao humana, prestaes de servios de alimentao e bebidas e, bem assim, outros bens, tais como o petrleo, gasleo e utenslios agrcolas. Salientase, para alm disso, a reduo de isenes vrias previstas no Cdigo do IVA. vasto o elenco de isenes previsto no Cdigo, no qual se inclui, entre outras, as operaes imobilirias, as operaes financeiras, os servios mdicos, as prestaes de servio que tm por objecto o ensino, ou as efectuadas por organismos sem finalidade lucrativa. Ainda no que diz respeito s isenes, prevse a iseno em sede de IVA no mbito do servio postal universal, medida que dever ser concretizada j a partir de Setembro de 2011, referindose que esta era matria j discutida pela Autoridade da Concorrncia e no Parlamento Europeu. De resto, no se antecipa quais as isenes que sero eliminadas, sendo, por isso, necessrio aguardar para saber se a reduo desses bene fcios fiscais passar por onerar, tambm nesta sede, as operaes imobi lirias ou se, ao invs, estaro em causa outras isenes, tais como, por exemplo, a transmisso de direitos de autor ou as prestaes de servios efectuadas aos promotores por actores e desportistas. Por ltimo, a alterao Lei das finanas regionais j acima referida resultar, tambm, num agravamento das taxas do IVA aplicveis nas Regies Autnomas.

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A Administrao fiscal e o procedimento tributrio prevista a fuso da DirecoGeral dos Impostos (DGCI), da DirecoGeral das Alfandegas e Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC) e da DirecoGeral de Informtica e Apoio aos Servios Tributrios e Aduaneiros (DGITA), e pretendese igualmente analisar os custos e benefcios de incluir as funes de cobrana da Segurana social, na referida fuso. Ambas as medidas sero objecto de estudo a efectuar j em Setembro de 2011. Os recursos humanos afectos s aces de inspeco da Administra o tributria sero aumentados, devendo passar a corresponder a, pelo menos, 30% do valor total dos funcionrios, atravs, fundamentalmente, de realocao de outros sectores da Administrao pblica e tributria. Iro tambm ser reforados os poderes de inspeco da Administrao tributria e, bem assim, no que respeita emisso de regras interpreta tivas, para garantir maior uniformidade na interpretao e na aplicao das normas tributrias. Ser, ainda, realizado um relatrio de avaliao do estado actual dos sistemas de informao e controlo existentes na Administrao tributria, em funo do qual devero ser apresentadas novas propostas de reforma. Por ltimo, mas de extrema importncia e representando um aumento da receita anual de um mnimo de Eur. 175 Milhes, a Administrao tributria dever preparar um plano estratgico, at finais de Outubro de 2011, a aplicar entre 2012 e 2014, e que versar essencialmente sobre combate evaso, fraude fiscal e informalidade, reforo da inspeco tributria e aumento da receita atravs de mecanismos de gesto do risco. Os tribunais fiscais e o processo tributrio Sero criadas seces especializadas nos Tribunais tributrios, para analisar as questes fiscais mais complexas e para os processos de valor mais elevado, e prevse que os juzes possam ser coadjuvados por equipas tcnicas especializadas. Em concreto, est prevista a criao de um grupo especial de juzes, j a partir do segundo semestre deste ano de 2011, afecto resoluo de litgios de valor superior a um milho de euros que se encontrem pendentes nos Tribunais tributrios, para que

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estejam findos em finais de 2012. Neste sentido, a nova lei da arbitragem tributria tambm uma prioridade, prevendose j a sua concretizao para o ms de Julho de 2011 no documento que sintetiza as medidas do Programa de Apoio Econmico e Financeiro a Portugal a concretizar at ao final de 2011. No mbito do processo tributrio, prevse que passem a ser aplica dos juros especiais, com taxas superiores s que se praticam no mercado, que incidiro sobre o valor da dvida em contencioso tributrio, medida que traduz um incentivo ao pagamento pelos contribuintes, ao invs da prestao de garantia, quando a respectiva legalidade esteja a ser discutida em tribunal. Para alm disso, perante o no cumprimento de uma sentena, prev se a aplicao de juros legais especiais, medida que julgamos atingir a Administrao tributria, j que os sujeitos passivos, em caso de no cumprimento de uma deciso judicial, sempre tero prestado garantia para suspenso do processo de execuo. Atendendo a que esta medida, no sendo clara, est inserida no captulo dedicado ao incremento da celeridade da resoluo de litgios, julgamos que tais juros especiais devero estar sujeitos a uma taxa superior taxa normalmente aplicvel, por forma a obrigar a Administrao tributria a cumprir com as decises judiciais, evitando, assim, custos adicionais. No entanto, poder, tambm, questionarse a sujeio destes juros especiais a uma taxa mais baixa, desonerando, assim, afinal, o Estado dos custos pelo incumprimento das decises judiciais que lhes sejam desfavorveis.

5.

REGULAO E SUPERVISO DO SECTOR FINANCEIROLus Mximo dos Santos

Imediatamente aps as medidas sobre poltica oramental, o Memo rando ocupase das medidas na rea da regulao e superviso do sector financeiro. S por si esse facto diz bem da importncia destas medidas na estratgia do programa de ajustamento econmico e financeiro incorporado no Memorando. Nem outra coisa seria de esperar. Independentemente das causas nacionais da crise que motivou o pedido de ajuda internacional por parte de Portugal, inegvel que o furaco que atingiu a economia mundial a partir do Vero de 2007, em especial nos pases desenvolvidos, teve no sistema financeiro o seu epicentro e isso no poderia deixar de se repercutir neste programa de ajustamento. Aps um perodo inicial, em que alguns supuseram que o sistema financeiro portugus pudesse passar relativamente inclume, cedo se desvaneceu essa miragem com a inca pacidade de obter financiamentos no mercado internacional e a ecloso, a partir de meados de 2010, com a situao da Grcia, da crise das dvidas soberanas, que a partir da no parou de se agravar. O Memorando fixa os seguintes objectivos quanto ao sector finan ceiro: preservar a sua estabilidade, manter a liquidez e apoiar uma desala vancagem equilibrada e ordenada do sector bancrio; concluir o processo relacionado com o Banco Portugus de Negcios e racionalizar a estrutura do banco pblico Caixa Geral de Depsitos; reforar o enquadramento legal da reestruturao, saneamento e liquidao das instituies de cr dito, bem como do Fundo de Garantia de Depsitos (FGD) e do Fundo de Garantia de Crdito Agrcola Mtuo (FGCAM); reforar o enquadramento legal de insolvncia de empresas e de particulares. Uma primeira nota se impe: o Memorando, embora se refira a medidas relativas ao sector financeiro, dirigese quase exclusivamente

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ao sector bancrio. Com efeito, nada h em matria de seguros1 ou de mercado de capitais. Tratase, por outro lado, de um enunciado bastante heterogneo. Define objectivos de carcter geral, aplicveis a todo o sistema bancrio, a par de outros centrados em instituies especficas, como sucede nos casos do Banco Portugus de Negcios (BPN) e da Caixa Geral de Depsitos (CGD); prev medidas de natureza operacional (por exemplo, na parte relativa s aces de monitorizao) e outras de natureza legislativa (por exemplo, quanto reviso da legislao que regula o FGD e o FGCAM e ao Cdigo da Insolvncia e da Recuperao de Empresas CIRE). No obstante o relevo de todas as demais, as medidas mais importan tes so as referentes manuteno da liquidez afinal a causa imediata da interveno externa e desalavancagem do sector bancrio, bem como ao reforo dos rcios de capital. No que se refere manuteno da liquidez no sector bancrio, o Memorando estabelece que, com sujeio a aprovao ao abrigo das regras de concorrncia da Unio Europeia, as autoridades comprometemse a facilitar a emisso de obrigaes bancrias garantidas pelo Estado at ao montante de 35 mil milhes de euros, incluindo o previsto no pacote existente de medidas de apoio, ou seja, comprometemse a reforar o limite mximo para concesso de garantias pessoais do Estado ao sector financeiro dos actuais 20 para 35 mil milhes de euros. A medida mais dolorosa para o sector bancrio e que no fundo tem de se verificar na generalidade do sector empresarial portugus, pri vado e pblico a da desalavancagem. Os erros de gesto acumulados em anos vo agora ter de ser corrigidos sob imposio e tutela externa. notrio que no debate pblico e no discurso meditico a gravidade da dvida externa privada tem sido em larga medida omitida ou, pelo menos, subalternizada face dvida pblica. O Memorando estabelece que o Banco de Portugal e o BCE, em consulta com a Comisso Europeia e o FMI, estabelecero objectivos peridicos claros de rcios de alavancagem e solicitaro aos bancos que apresentem, at final de Junho de 2011, planos de financiamento a mdio prazo especficos para cada instituio alcanar uma posio de financia1 Excepto nas referncias privatizao do sector dos seguros da Caixa Geral de Depsitos (cf. pontos 2.5. e 3.3.).

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mento estvel com base no mercado (marketbased funding position). Sero realizadas revises em conjunto com a Comisso e o FMI, e ser examinada a viabilidade dos planos individuais dos bancos e as respectivas implicaes quanto a rcios de alavancagem, bem como o impacto nos agregados de crdito e na economia como um todo, podendo o Banco de Portugal solicitar, quando necessrio, ajustamentos aos planos. Quanto aos requisitos de capital, o Memorando estabelece que o Banco de Portugal dar instrues a todos os grupos bancrios, sob sua superviso, para atingirem um rcio de capital core Tier 1 de 9% at ao fim de 2011 e de 10% at ao fim de 2012, e para o manterem no futuro. Os bancos tero de apresentar ao Banco de Portugal, at ao fim de Junho de 2011, planos que descrevam como tencionam atingir os novos requisitos de capital atravs de solues de mercado. Na eventualidade de os bancos no conseguirem atingir atempada mente os novos requisitos de capital, a necessidade de assegurar nveis de capital mais elevados poder, temporariamente, requerer a utilizao de fundos pblicos no aumento dos nveis de capital dos bancos priva dos. Para este feito, as autoridades reforaro o mecanismo de apoio solvabilidade bancria, de acordo com as regras dos auxlios de Estado da Unio Europeia. Este mecanismo ser concebido de forma a preservar, durante uma fase inicial, o controlo da gesto dos bancos pelos accionistas privados e a permitirlhes a opo de recompra da participao do Estado. Os bancos que beneficiem de injeces de capital pblico sero sujeitos a regras e restries especficas de gesto e a um processo de reestruturao, de acordo com os requisitos de concorrncia e de auxlios de Estado da Unio Europeia, que incentivem solues baseadas no mercado. No fica claro quais os poderes que decorrem para o Estado de injectarem fundos pblicos em bancos privados, tendo em conta que, como acima se referiu, numa fase inicial, o mecanismo ser concebido de forma a preservar o controlo da gesto dos bancos pelos accionistas privados. previsvel que a necessidade de reforo dos requisitos de capital, mesmo que se verifique sem a utilizao capitais pblicos (cenrio que, apesar de tudo, temos como o mais provvel), conduza a uma profunda recomposio accionista dos principais bancos portugueses, desse modo se gerando novos equilbrios de poder na economia portuguesa. Os pontos 2.6. a 2.9. do Memorando tm como destinatrio o Banco de Portugal. Versam essencialmente sobre questes operacionais relativas

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monitorizao da solvabilidade e da liquidez bancria. Como aspecto digno de realce, refirase o objectivo de se melhorar a informao dispo nibilizada pelo Banco de Portugal sobre emprstimos em incumprimento, atravs da criao de um novo rcio que no substitui, mas antes se adi ciona, ao j existente. A referncia de que o Banco de Portugal afectar novos recursos para o recrutamento de mais especialistas em superviso bancria de um detalhe que nos parece algo deslocado num Memorando com estas caractersticas, embora possa ter o efeito til de deixar claro que no se lhe aplicam as medidas de congelamento de admisses previstas para a funo pblica. No plano relativo reestruturao, saneamento e liquidao das ins tituies, o Memorando impe a alterao da legislao sobre instituies de crdito em consulta com a Comisso, o BCE e o FMI, at ao final de Novembro de 2011, para, entre outras, impor obrigaes de reporte pr vias baseadas em requisitos e penalizaes claras. Ou seja, o Memorando aposta num reforo das medidas de carcter preventivo. Por outro lado, o Banco de Portugal ser autorizado a aplicar medidas correctivas para promover a implementao de um plano de recuperao. As instituies de crdito com riscos sistmicos tero de preparar planos de contingncia de reestruturao, saneamento e liquidao sujeitos a reviso peridica. As alteraes devero introduzir um regime de reestru turao e saneamento das instituies de crdito em dificuldades que lhes permita, sob controlo oficial, manter o exerccio da actividade, para pro mover a estabilidade financeira e a proteco dos depositantes. O regime estabelecer requisitos claros para a sua aplicao e os instrumentos de reestruturao ao dispor das autoridades devero incluir a recapitalizao sem direitos de preferncia dos accionistas, de acordo com o enquadra mento europeu relevante, a transferncia de activos e passivos para outras instituies de crdito e um bridgebank. O regime do saneamento das instituies de crdito encontrase actualmente previsto no Ttulo VIII do Regime Geral das Instituies de Crdito e Sociedades Financeiras (RGICSF), composto pelos artigos 139. a 153.. Desde a sua entrada em vigor, em 1 de Janeiro de 1993, sofreu apenas ligeiras alteraes. Ora, independentemente do Memorando, cre mos que j h algum tempo que se justificava a reviso do regime relativo ao saneamento das instituies de crdito. Desde logo, tendo em conta o tempo decorrido desde a sua criao, que coincidiu com um perodo de

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profundas alteraes, a todos os nveis, na actividade bancria, algumas das suas solues tornaramse insuficientes; alm disso, a sua aplicao no caso do Banco Privado Portugus revelou que h ensinamentos a extrair susceptveis de conduzir a alteraes legislativas. O Memorando veio agora tornar essa alterao imperativa, sendo mesmo um domnio em que, a nosso ver, se poder efectuar uma reviso que v alm dos aspectos nele mencionados. J quanto matria da liquidao das instituies de crdito, enten demos que o Memorando no foi muito feliz. De facto, o Memorando nesta matria centrase na previso de algumas medidas de alterao ao CIRE que em si mesmas reputamos acertadas2 quando, quanto a ns, a verdadeira questo a de saber at que ponto no deve existir um diploma legal que regule o mais exaustivamente possvel a liquidao de instituies de crdito, desse modo reflectindo as suas profundas especifi cidades face s empresas comuns, aplicandose o CIRE, subsidiariamente, de forma muito mais pontual e no como regra, como actualmente sucede. De facto, o regime de liquidao das instituies de crdito, actualmente contido no DecretoLei n. 199/2006, de 25 de Outubro, regula apenas aspectos muito pontuais da liquidao, remetendo em tudo o que nele no est regulado para o CIRE com as necessrias adaptaes (cf. artigo 9., n. 3, do DecretoLei n. 199/2006, de 25 de Outubro), o que, se fcil de escrever numa disposio legal, levanta inevitavelmente complexos problemas na sua aplicao. Claro que o facto de no constar do Memorando em nada impede que o legislador nacional faa essa opo, necessariamente em prazo mais alargado do que aquele que est previsto no Memorando para a reviso do CIRE (final de Novembro de 2011), dada a complexidade da matria. Uma ltima nota quanto a este ponto, para sublinhar que nos parece excessivo o facto de o Memorando ir ao detalhe de prever a reviso da legislao relativa insolvncia das pessoas singulares, fenmeno que no se nos2 o caso das alteraes ao CIRE que visam: (i) introduzir uma maior rapidez nos procedimentos judiciais de aprovao de reestruturaes; (ii) assegurar que os depositan tes garantidos e/ou os Fundos (tanto directamente como atravs de subrogao) gozem de prioridade sobre os credores no garantidos numa situao de insolvncia de uma ins tituio de crdito e (iii) definir princpios gerais de reestruturao voluntria extrajudi cial em conformidade com as boas prticas internacionais.

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afigura ter uma dimenso que justifique ser objecto de um documento com estas caractersticas. Quanto ao FGD e ao FGCAM o Memorando prev o reforo da sua legislao, em consulta com a Comisso, o BCE e o FMI, at ao final de 2011. Visase reforar a proteco dos depositantes garantidos, mas os Fundos em causa devero manter a possibilidade de financiar o saneamento de instituies de crdito em dificuldades e, em particular, de transferir os depsitos garantidos para outra instituio de crdito, mas no para as recapitalizar. Essa assistncia financeira ter como limite o montante dos depsitos garantidos que teriam de ser reembolsados em situao de liquidao, mas isso s ser permitido no caso de no prejudicar a capacidade dos Fund