363
 Ano VIII - n. 12 2010 ISSN 1806-0420

Revista Opiniao Juridica 12 Edt

  • Upload
    ryanny

  • View
    103

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • Ano VIII - n. 12

    2010

    ISSN 1806-0420

  • RevistaOpinio Jurdica

  • Ficha Catalogrfica

    Opinio Jurdica Revista do Curso de Direito da Faculdade Christus - n. 12, ano VIII, 2010

    Faculdade Christus, 2010

    Opinio Jurdica- [n. 12] Fortaleza: Faculdade Christus.[2010]-v.I. Direito

    CDD : 340Dados internacionais de catalogao na publicao (CIP).

  • REVISTAOPINIO JURDICA

    Fortaleza, 2010

    FACULDADE CHRISTUS

  • Opinio JurdicaRevista do Curso de Direito da Faculdade Christus

    n. 12, ano 08, 2010

    DiretorProf. M. Sc. Roberto de Carvalho Rocha

    MantenedorEstevo de Carvalho Rocha

    Coordenadora-Geral do Curso de DireitoProfa. M. Sc. Gabrielle Bezerra Sales

    Coordenadora de Pesquisa e Monografia do Curso de DireitoProfa. M. Sc. Gretha Leite

    Editora-Responsvel pela Revista Opinio JurdicaProfa. Dra. Fayga Silveira Bed

    Comisso EditorialProf. M. Sc. Roberto de Carvalho Rocha

    Profa. M. Sc. Gabrielle Bezerra SalesProfa. Dra. Fayga Silveira Bed

    Profa. Dra. Cludia Sousa LeitoProfa. M. Sc. Gretha Leite Maia

    Prof. Dr. Etienne Picard (Paris I - Sorbonne)Prof. Dr. Joo Maurcio Adeodato (UFPE)

    Prof. Dr. Friedrich Mller (Universidade de Heidelberg - Alemanha)Prof. Dr. Paulo Bonavides (UFC)

    Prof. Dr. Willis Santiago Guerra Filho (UNIRIO)Prof. Dr. Horcio Wanderlei Rodrigues (UFSC)Prof. Dr. Roberto da Silva Fragale Filho (UFF)

    Prof. Dr. Joo Lus Nogueira Matias (UFC)

    BibliotecriaTusnelda Maria Barbosa

    CapaIvina Lima Verde

    Coordenao de DesignJonatas Barros (John)

    Programao Visual / DiagramaoDaniel Veras / Juscelino Guilherme

    CorrespondnciaFaculdade Christus

    Coordenao-Geral do Curso de DireitoAvenida Dom Lus, 911 5 andar

    Aldeota CEP 60.160-230Fortaleza Cear

    Telefone: (0**85) 3461.2020e-mail: [email protected]

    ImpressoGrfica e Editora LCR Ltda.

    Rua Israel Bezerra, 633 - Dionsio TorresCEP 60.135-460 - Fortaleza Cear

    Telefone: (0**85) 3272.7844 - Fax: (0**85) 3272.6069Site: www.graficalcr.com.br e-mail: [email protected]

    Tiragem mnima400 exemplares

  • APRESENTAO

    A Revista Opinio Jurdica chega ao seu dcimo segundo nmero, cumprindo rigorosamente os critrios do Programa Qualis, da CAPES. Para essa edio, primeira do trinio 2010/2012, reservamos 18 artigos, cujos temas de indiscutvel relevncia esto abraados por nossas linhas de pesquisa. Contamos com 6 trabalhos oriundos de outros Estados ou Pases, o que contabiliza 1/3 de exogenia da produo. Nesse sentido, destacamos as contribuies de Fredie Didier Jr. (BA) e Trsis Cerqueira (BA), na dou-trina nacional. No mbito da doutrina estrangeira, destaques para os artigos portugueses de Paulo Ferreira da Cunha, Carla Amado Gomes e Luis Carlos Batista, bem como para o artigo de Fabrice Bin (Frana).

    Nesse sentido, o sistema de dplice avaliao cega foi amplamente adotado. exceo de 16,66% de autores convidados, 15 trabalhos foram submetidos ao crivo de 30 pareceristas cegos, sendo 14 do Cear e 16 de outros seis Estados da Federao (SC/ PR/RS/SP/MA/BA). Desse modo, atingimos o patamar de mais de 50% de exogenia, no contexto de um amplo quadro de colaboradores. Quando o mesmo artigo foi avaliado por mais de dois pareceristas, acolhemos a posio predominante.

    Como estvamos com o peridico ainda em atraso, os pilotis dessa edi-ficante tarefa de atualizao da Opinio Jurdica foram, indene de dvidas: a pontualidade, a diligncia, a eficcia e o esprito de colaborao acadmica de nosso quadro de avaliadores. Pedra angular dessa vitria: a eles devemos a con-quista da tempestividade, nesse maro de 2011, to prenhe de promessas, em que nos colocamos, novamente, no caminho da requalificao junto CAPES.

    Agradecemos imensamente a todos os professores da casa, que per-manecem sonhando e dividindo conosco o brilho de sua expertise. So eles: Christianny Digenes Maia, Clovis Renato Costa Farias, Jnio Pereira da Cunha, Juraci Mouro Lopes Filho, Nagibe de Melo Jorge Neto e Trcio Arago Brilhante. Registramos, ainda, as preciosas contribuies de: Daniel Viana Teixeira; Elisianne Campos de Melo Soares e Geovana Maria Cartaxo de Arruda Freire; e Nathalie Carvalho Cndido.

    Nossos agradecimentos aos estudantes e professores que se lanaram na desafiadora tarefa de construir conhecimento de forma democrtica e coope-rativa. So eles: Fayga Silveira Bed, Carla Marques Digenes, Valria Alves de Lima, Rebeca Guerreiro e Juliane Pires Morais; Germana Parente Neiva Belchior e Mirna Jacinto Moura; Gretha Leite Maia e Victor Menezes Barros. So co-autores em artigos suscitados pelos programas de iniciao cientfica, monitoria e grupos de estudo promovidos pela Faculdade Christus. A Revista

  • Opinio Jurdica tm a honra de constituir um dos espaos de divulgao dos resultados desses projetos. Culminando esse cardpio de possibilidades intelecti-vas e imaginativas, temos a charmosa entrevista com o jurista cearense Martnio MontAlverne Barreto Lima, prestada a Trcio Arago Brilhante.

    Como no poderia deixar de ser, registramos nossa gratido pelo apoio incondicional de Paulo Henrique Portela (elaborao e reviso de abstracts), Stela Mrcia Vasconcellos (formatao); Daniel Veras (diagramao) e pelo apoio institucional de Estevo de Carvalho Rocha, Vnia Costa e Tusnelda Barbosa.

    Por fim, agradecimentos especiais a Trcio Arago Brilhante, Germana Parente Neiva Belchior e Rodrigo Saraiva Marinho, pelo auxlio luxuoso que prestaram, renovadamente, ao sucesso da Opinio Jurdica.

    E so tantos e tanto, a agradecermos, que seria necessria outra revista para bem faz-lo.

    Finalmente, estamos em dia. Na ordem do dia.Divirtam-se.

    GABRIELLE BEZERRA SALESCoordenadora-Geral do Curso de Direito da Faculdade Christus

    FAYGA SILVEIRA BED

    Editora-Responsvel pela Revista Opinio Jurdica

  • SUMRIO

    APRESENTAO

    PRIMEIRA PARTE DOUTRINA NACIONAL

    Assessoria jurdica popular e acesso justia .....................................................9Christianny Digenes Maia

    O papel dos movimentos sociais como ferramenta de justia e emancipao social: um dilogo entre Boaventura de Sousa Santos e Zygmunt Bauman ..................28Clovis Renato Costa Farias

    Democracia sob a tica capitalista ....................................................................49Daniel Viana Teixeira Transformaes dos direitos autorais face s novas tecnologias ........................79Elisianne Campos de Melo Soares e Geovana Maria Cartaxo de Arruda Freire

    Disciplinas propeduticas no contexto de um ensino jurdico ps-moderno: desafios e solues ....................................................................................98Fayga Silveira Bed, Carla Marques Digenes, Valria Alves de Lima, Rebeca Guerreiro e Juliane Pires Morais

    Clusulas gerais processuais ...........................................................................118Fredie Didier Jr.

    Os desafios do magistrado no ps-positivismo a partir dos fundamentos filosficos da hermenutica .............................................................................................131Germana Parente Neiva Belchior e Mirna Jacinto Moura

    A experincia do oramento participativo no municpio de Fortaleza .............156Gretha Leite Maia e Victor Menezes Barros

    As smulas de jurisprudncia e o prazo da priso cautelar: uma questo de (in)constitucionalidade ................................................................................170Jnio Pereira da Cunha

    A democracia na administrao pblica e no Direito Administrativo brasileiro ...190Juraci Mouro Lopes Filho

  • Estado e direito no pensamento de Hans Kelsen ............................................210Nagibe de Melo Jorge Neto

    O direito ao conhecimento da origem gentica e as tcnicas de reproduo medicamente assistida heterloga .......................................................................................... 220Nathalie Carvalho Cndido

    Acesso justia. Novssima reflexo luz dos processos repetitivos ...............242Trsis Silva de Cerqueira

    O preenchimento dos conceitos indeterminados nos tipos disciplinares: consideraes sobre uniformizao, regime de sujeio especial e discricionariedade .............. 259Trcio Arago Brilhante

    SEGUNDA PARTE DOUTRINA ESTRANGEIRA

    The (green) heart of the matter: a vertente procedimental da tutela do ambiente e a reviso da lei de bases do ambiente ..............................................................273Carla Amado Gomes

    La charte constitutionnelle de lenvironnement devant les juges constitutionnels et administratifs franais ................................................................................287Fabrice Bin

    O direito subjectivo ao ambiente: um artifcio legislativo e jurisdicional ........308Luis Carlos Batista

    O avesso dos direitos humanos para uma histria pensada da escravatura ......330Paulo Ferreira da Cunha

    TERCEIRA PARTE ENTREVISTA

    Com Martnio MontAlverne Barreto Lima ................................................346Por Trcio Arago Brilhante

    NORMAS DE PUBLICAO .......................................................................355

  • R E V I S T A O P I N I O J U R D I C A 9

    ASSESSORIA JURDICA POPULAR E ACESSO JUSTIA

    Christianny Digenes Maia*

    RESUMOAtualmente, a idia de acesso justia significa mais do que o acesso formal ao Judicirio, compreendendo o direito a um processo jurisdicional justo e efetivo, que garanta a todos a tu-tela de seus direitos. No Brasil, a Constituio Federal de 1988 acolheu esse novo conceito de acesso justia, demonstrando uma preocupao com a criao de um acesso igualitrio e efi-ciente para todos, atravs de um sistema jurdico mais moderno, prevendo um conjunto de direitos e garantias que completam esse amplo significado do acesso justia. No entanto, apesar das preocupaes e inovaes previstas na Constituio Federal e em leis infraconstitucionais, o que se percebe na realidade que esse direito ainda carece de efetividade. Nesse contexto, surge a Assessoria Jurdica Popular - AJP, um movimento jurdico recente, que se coloca a servio da luta das classes oprimidas por uma vida digna para todos, compreendendo o Direito como um instrumento de transformao social e emancipao humana que possui dentre seus pressupostos uma concepo democratizante de acesso justia, entendendo este direito fundamental como o prprio direito a ter justia, ou seja, pode-se alcanar a justia em outros espaos sociais, ou de poder, alm do Judicirio.

    Palavras-chave: Acesso justia. Assessoria Jurdica Popular. Poder Judicirio.

    1 INTRODUOEm uma sociedade marcada por desigualdades econmicas, sociais, po-

    lticas e culturais, bem como por constantes violaes dignidade da pessoa humana e ineficcia dos direitos fundamentais, percebemos a necessidade de uma maior organizao popular para a luta por garantia de direitos e por uma sociedade mais justa e igual para todos.

    Nesse contexto, inquestionvel a responsabilidade social dos profissio-nais do Direito na transformao da realidade por meio de aes organizadas em conjunto com os novos sujeitos coletivos de direito.

    * Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Cear. Professora de Direito Constitucional e de Direitos Humanos e Fundamentais da Faculdade Christus, colaboradora do Escritrio de Direitos Humanos EDH da mesma Faculdade.

  • n. 12 - 201010

    Christianny Digenes Maia

    A atuao jurdica tradicional, de cunho positivista e formalista, mostra-se incapaz de oferecer solues satisfatrias e eficientes s atuais necessidades de-correntes dos novos tipos de conflitos sociais, especialmente demandas coletivas que envolvem direitos sociais. Com efeito, essas necessidades tambm geram novas prticas e saberes que, consequentemente, exigem profissionais jurdicos com outro padro tico, poltico e ideolgico, o que refora a necessidade de construo de uma prtica inovadora. Diante de tal realidade, surge a Assessoria Jurdica Popular AJP, movimento jurdico recente, que se coloca a servio da luta das classes oprimidas por uma vida digna.

    Destacamos como novidade atribuda a essa prtica, o papel das assessorias jurdicas populares universitrias, citadas por Santos (2007), como exemplos de experincias necessrias para uma revoluo democrtica da Justia, que, nos l-timos anos, tm contribudo para uma formao de profissionais jurdicos com um perfil diferenciado, mais humano, mais poltico e social, mais engajado com as lutas populares por efetivao de direitos. So advogados populares, professores, juzes, promotores, procuradores, etc., que possuem uma tica profissional comprometida com a defesa e a promoo dos direitos fundamentais e com uma sociedade mais justa e fraterna, bem diferente do profissional tradicional dos cursos de Direito, que possui, em boa parte, um perfil elitista, individualista, capitalista e positivista.

    Ao lado das assessorias jurdicas universitrias, encontra-se a advocacia popular, prticas que compreendem a Assessoria Jurdica Popular e que, segun-do Santos (2007) representam importantes iniciativas para a materializao do direito fundamental de acesso justia, direito este que representa o mais bsico dos direitos humanos, em um sistema jurdico moderno e igualitrio que pretenda garantir, e no apenas proclamar os direitos de todos.1

    Percebemos, portanto, o desafio que se impe ao Estado e Sociedade em materializar esta garantia fundamental. Nesse sentido, elaboramos o presente artigo, fruto das pesquisas desenvolvidas para nossa dissertao de mestrado.

    O objetivo de nosso trabalho apresentar a Assessoria Jurdica Popular, destacando um dos seus pressupostos, qual seja: a concepo ampla e democr-tica que o movimento possui acerca do direito fundamental de acesso justia. Assim, o artigo discorre, inicialmente, sobre a AJP, em seguida aborda algumas consideraes sobre o acesso justia, considerando a realidade brasileira, em uma perspectiva crtica, sob o prisma da Sociologia do Direito. Por fim, ressaltamos a relao entre a Assessoria Jurdica Popular e o acesso justia.

    2 ASSESSORIA JURDICA POPULAR Tendo como referenciais tericos as Teorias Crticas Jurdicas e o Direito

    Alternativo, surge a Assessoria Jurdica Popular AJP, um movimento jurdico recente, de estudantes e operadores do Direito, que h poucos anos, vem se con-solidando como uma alternativa prtica jurdica tradicional, demonstrando que possvel operar o Direito em uma perspectiva emancipatria2 e transformadora.

  • R E V I S T A O P I N I O J U R D I C A 11

    Assessoria jurdica popular e acesso justia

    Ao entender o Direito como um instrumento de transformao so-cial3, a Assessoria Jurdica Popular assume o compromisso com um projeto emancipatrio das classes populares. Pois, se o Direito pode ser opressor quando a servio dos interesses das elites, tambm pode ser libertrio, se utilizado pelos setores excludos em suas lutas por conquistas e efetivao de direitos. Dessa forma, paulatinamente, a sociedade vai se transformando em um ambiente mais justo e democrtico.

    Ora, o Direito constitui-se como um espao de disputa de interesses sociais, estando sempre a servio de uma classe, ou de um grupo e, na maioria das vezes, a servio dos setores dominantes. No entanto, embora se parta de uma anlise marxista da sociedade4 e da crtica ao Direito, como um instru-mento opressor, compreende-se que o Direito pode ser libertrio, medida que as classes populares organizadas possam conquistar direitos, atravs das suas lutas. Afinal, como afirma Santanna5: A prxis scio-poltica revela que o Direito nasce das lutas sociais, do desejo permanente de libertao. Manifesta-se, pois, ao longo da histria, como liberdade conquistada em permanente transformao.

    Nesse sentido, destacamos o inestimvel significado atribudo por Lyra Filho6 ao Direito:

    Direito processo, dentro do processo histrico, no coisa feita, perfeita e acabada: aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertao das classes e grupos ascendentes e que definha nas exploraes e opresses que o contradizem, mas de cujas prprias contradies brotaro as novas conquistas.

    Coube, ento, ao advogado do movimento popular: utilizar o regramento estatal at os limites mximos de suas contradies e romper a prpria rigidez do dogmatismo positivista e formalista7 para alcanar uma atuao jurdica que atendesse aos interesses dos novos atores sociais, delimitando a noo de assessoria jurdica popular.

    Nesse contexto, a Assessoria Jurdica Popular vem sendo construda, sobretudo, na prtica das entidades que defendem e promovem os direitos humanos e fundamentais dos novos sujeitos coletivos de direito.

    A expresso novos sujeitos coletivos de Direito, por sua vez, surge da necessidade de identificar os atores sociais que, sobretudo a partir do processo de redemocratizao do Estado brasileiro, impulsionaram as mudanas sociais e as lutas pelo reconhecimento e efetividade dos direitos fundamentais.

    A promoo e o reconhecimento dos direitos humanos, bem como a efe-tividade dos direitos fundamentais, constituem alguns dos principais objetivos da Assessoria Jurdica Popular8, que compreende os direitos humanos como direito em construo, direito insurgente9, oriundo das lutas populares. Nesse sentido, os novos sujeitos coletivos de direito, representados, na maioria das vezes, pelos mo-

  • n. 12 - 201012

    Christianny Digenes Maia

    vimentos populares organizados, assumem um papel fundamental na consolidao de tais direitos. , dessa forma, que a AJP se apresenta como forte instrumento na luta dos setores populares por uma sociedade mais justa e igual.

    notria a relao entre o movimento de Assessoria Jurdica Popular e a defesa e promoo dos Direitos Humanos e Fundamentais. Pois, exatamente nesses espaos de luta que atuam os servios legais inovadores, assessorando os movimentos e as camadas populares na busca pela efetivao de seus direitos. Sobre isso, Luz10ressalta que:

    A ampliao do cardpio de direitos e de garantias fundamen-tais, como exposto na descrio do marco constitucional, no final da dcada de 80, a nova legitimao processual coletiva, a crescente institucionalizao dos Novos Movimentos Sociais, na dcada de 80, ao lado do surgimento de correntes crticas na magistratura e na academia, podem ser destacados como fatores que contriburam fortemente para a abertura de alguns canais de atuao de entidades especificamente voltadas questo do apoio jurdico popular.

    A Assessoria Jurdica Popular AJP se desenvolve no meio acadmico (nas universidades) atravs de projetos de extenso universitria e na sociedade atravs da assessoria a movimentos populares, sindicatos ou organizaes no governamentais, sempre ligada temtica dos direitos humanos e fundamentais. Entretanto, importante esclarecermos que no se trata de uma teoria ou escola, mas de um movimento que h poucos anos vem se consolidando como uma alternativa prtica jurdica tradicional, demonstrando que possvel operar o Direito em uma perspectiva emancipatria e transformadora.

    Compreendemos, portanto, a AJP como um movimento, devido ao grau de organizao, mobilizao e articulao das entidades que desenvolvem essa prtica jurdica inovadora. Tais entidades ou grupos se organizam em redes, seguindo uma tendncia caracterizadora dos novos movimentos sociais, como afirma Scherer-Warren.11 Trata-se, no entanto, de um movimento jurdico, que no deve ser confundido com os movimentos populares assessorados.

    Para uma melhor compreenso da Assessoria Jurdica Popular, so neces-srias algumas explicaes sobre as terminologias ou tipologias que esto relacio-nadas ao tema em estudo. Inicialmente, lembramos que comum encontrarmos na literatura jurdica, especialmente na estrangeira, o termo servios legais para designar as prticas de auxlio jurdico gratuito, englobando as entidades pblicas (como os servios prestados pela Defensoria Pblica) ou privadas, originrios de contextos e locais distintos e, no raro, com prticas e objetivos polticos diversos e contraditrios entre si.12

    O Instituto Latino Americano de Servios Legales Alternativos ILSA, da Colmbia, utiliza-se do termo servios legais alternativos para se referir ao que aqui chamamos de Assessoria Jurdica Popular. Ressaltamos a contri-

  • R E V I S T A O P I N I O J U R D I C A 13

    Assessoria jurdica popular e acesso justia

    buio do ILSA, sobretudo, atravs da revista El Otro Derecho, importante veculo de divulgao das idias crticas do Direito e das prticas jurdicas alternativas. Encontra-se, em tal revista, a definio que o Instituto atribui aos servios legais alternativos, como sendo: aqueles grupos de apoio jurdico popular que buscam defender interesses coletivos mediante a or-ganizao comunitria e a capacitao legal orientada at a mobilizao e a auto-organizao.13

    O professor Campilongo14, em texto clssico para a Assessoria Jurdica Popular, apresentado em umas das excelentes publicaes do j extinto Instituto Apoio Jurdico Popular AJUP, intitulado: Assistncia Jurdica e realidade social: apontamentos para uma tipologia dos servios legais, expe as caractersticas e as diferenas entre os servios legais tradicionais e os servios legais inovadores, que podem ser identificados, respectivamente, com a Assistncia Judiciria Gratuita e a Assessoria Jurdica Popular, cujas peculiaridades sero desenvol-vidas em um tpico mais adiante. O eminente professor, portanto, refere-se Assessoria Jurdica Popular como sendo uma espcie do gnero servios legais. Mas, conforme lembra LUZ:15

    At mesmo a gratuidade de tais servios, elemento aparentemente unificador das diversas entidades identificadas por essa denomi-nao, no se apresenta, por si s, como fator capaz de definir um modelo paradigmtico, a partir do qual o fenmeno da Assessoria Jurdica Popular possa ser identificado. Outrossim, sendo aderido expresso genrica servio legal o qualitativo popular, cresce ainda mais a indeterminao do fenmeno que, aparentemente, estaria apenas circunscrito numa ampla rea de atuao forense pro bono, voltada para a ajuda altrusta e desinteressada de litigantes necessitados.

    Da a necessidade de consolidarmos na literatura jurdica o termo Asses-soria Jurdica Popular, j que a referida expresso possui um significado prprio, ao passo que a terminologia dos servios legais bem genrica e est longe de esgotar todo o contedo da AJP.

    Ademais, a dogmtica jurdica tradicional analisa o tema dos servios legais em uma perspectiva mais processual, ligada a uma discusso do acesso formal Justia, concentrando-se apenas no estudo dos meios jurdicos de postulao, em sentido estrito, operando no campo estrito da exegese do Direito Positivo, na maioria das vezes sob a tica monista.16 Tais estudos se referem, muitas vezes, somente aos servios de assistncia judiciria que prestam seu auxlio populao sem condies de pagar um advogado particular, dessa forma, no adentram no campo da Sociologia Jurdica Cr-tica, na qual se insere o mbito de atuao da Assessoria Jurdica Popular, tampouco investigam o movimento em outros ramos das cincias, como a Educao Popular, a Cincia Poltica ou a prpria Filosofia do Direito, estudos necessrios para a compreenso da AJP.

  • n. 12 - 201014

    Christianny Digenes Maia

    Apesar de incipiente a bibliografia sobre o movimento de Assessoria Ju-rdica Popular, possvel identificarmos algumas de suas caractersticas, dentre as quais destacamos: a) a opo por atuar em demandas coletivas, ou que pos-suam uma repercusso social; b) a desmistificao do Direito e a perspectiva emancipatria e participativa com que o litgio trabalhado, envolvendo os sujeitos de Direito no processo; e, c) a interdisciplinaridade.

    Podemos tambm estabelecer alguns pressupostos desta prtica jurdica inovadora, tais como: a) a compreenso do Direito como um instrumen-to de transformao social; b) um amplo acesso justia, encarado no apenas como o acesso ao Judicirio, mas sim abrangendo todos os meios legtimos para se alcanar a Justia; c) um pluralismo jurdico comunitrio-participativo17, como projeto emancipatrio dos novos sujeitos coletivos de Direito, baseado nos valores de legitimidade, democracia, descentralizao, participao, justia, satisfao das necessidades, entre outros; e, d) a edu-cao jurdica popular em direitos humanos, como abordagem pedaggica para um processo libertador de conscientizao.

    Certamente, para um melhor entendimento sobre a AJP, fundamental conhecermos os seus fundamentos, as suas justificativas e os seus pressupostos18, no entanto, para o presente trabalho impossvel abranger tantos aspectos, de modo que, o nosso objetivo, com este artigo, destacar o pressuposto do acesso justia, em uma perspectiva ampla e democrtica, conforme passaremos a analisar.

    3 ACESSO JUSTIA No mbito do Estado Democrtico de Direito, o acesso justia se revela

    como um dos mais importantes direitos fundamentais, sendo desafio dos sistemas jurdicos modernos a criao de mecanismos que diminuam os obstculos que dificul-tam ou impossibilitam a sua efetivao. Conforme ensina Cappelletti e Garth:19

    O acesso justia pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental o mais bsico dos direitos humanos de um sistema jurdico moderno e igualitrio que pretenda garantir, e no apenas proclamar os direitos de todos.

    Nos sculos XVIII e XIX, nos estados liberais burgueses, o direito de acesso justia era compreendido apenas em seu aspecto formal, correspondendo a uma igualdade tambm apenas formal, mas no efetiva.20

    Atualmente, a idia de acesso justia significa mais do que o acesso formal ao Judicirio, ou seja, mais do que o direito de peticionar, compreendendo o direito a um processo jurisdicional justo e efetivo, que garanta a todos a tutela dos direitos. Nesse sentido, Cappelletti e Garth21 lecionam que:

    A expresso acesso Justia reconhecidamente de difcil definio, mas serve para determinar duas finalidades bsicas do sistema jurdico o sistema pelo qual as pessoas podem rei-

  • R E V I S T A O P I N I O J U R D I C A 15

    Assessoria jurdica popular e acesso justia

    vindicar seus direitos e/ou resolver seus litgios sob os auspcios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessvel a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos.

    Nessa mesma linha de raciocnio, Rodrigues22 destaca que so atribudos dois sentidos fundamentais ao termo acesso justia:

    O primeiro, atribuindo ao significante justia o mesmo sentido e contedo que o de Poder Judicirio, torna sinnimas as expresses acesso justia e acesso ao Judicirio; o segundo, partindo de uma viso axiolgica da expresso justia, compreende o acesso a ela como o acesso a uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano.

    Por sua vez, Watanabe23 prope que: a problemtica do acesso justia no pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos rgos judiciais j existentes. No se trata apenas de possibilitar o acesso justia enquanto ins-tituio estatal, e sim de viabilizar o acesso ordem jurdica justa.

    Os estudos de Cappelletti e Garth24 identificam algumas propostas que contriburam (ou deveriam contribuir) para a materializao do acesso Justia, por meio de um movimento nesse sentido, que ocorreu de forma crescente em diversos Estados contemporneos. Tal movimento dividido em trs ondas pelos autores.

    A assistncia judiciria para os pobres apontada por Cappelleti e Garth25 como sendo a primeira onda desse movimento novo por um efe-tivo acesso justia, ao passo que a segunda onda diz respeito s formas de representao jurdica para os interesses difusos. J a terceira onda de reformas, segundo os referidos autores:

    Inclui a advocacia, judicial ou extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou pblicos, mas vai alm. Ela centra sua ateno no conjunto geral de instituies e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir dispu-tas nas sociedades modernas. Ns o denominamos o enfoque do acesso Justia por sua abrangncia. Seu mtodo no consiste em abandonar as tcnicas das duas primeiras ondas de reforma, mas em trat-las como apenas algumas de uma srie de possibilidades para melhorar o acesso.26

    Essa terceira onda de reformas previstas por Cappelletti e Garth para melhorar o acesso justia compreende, por exemplo, eliminao das custas judiciais, conciliao judicial, soluo de litgios fora do Judicirio, a exemplo da Arbitragem e Conciliao, criao de tribunais especializados, como os jui-zados especiais de pequenas causas, tribunais de vizinhanas27 para solucionar divergncias na comunidade.

  • n. 12 - 201016

    Christianny Digenes Maia

    No Brasil, a Constituio Federal de 1988 acolheu esse novo conceito de acesso justia, demonstrando uma preocupao com a criao de um acesso igualitrio e eficiente para todos, atravs de um sistema jurdico mais moder-no, prevendo um conjunto de direitos e garantias que completam esse amplo significado do acesso justia.

    Entre esses direitos e garantias constitucionais relacionados ao acesso justia, registra-se a criao das Defensorias Pblicas, que prestam uma assis-tncia jurdica gratuita aos mais necessitados e a previso dos juizados especiais cveis e criminais, posteriormente institudos pelas leis no 9.099/95 (no mbito da Justia Comum) e n 10.259/01 (no mbito da Justia Federal), aos quais compete conciliar e julgar as causas civis de menor complexidade e as penais de menor potencial ofensivo, estabelecendo um rito simplificado, em apreo celeridade, oralidade e economia processuais, adotando o princpio da gratui-dade processual no primeiro grau de jurisdio. Alm dos j citados, ressalta-se o prprio direito de peticionar, previsto na Carta Magna, em seu artigo 5, inciso XXXV, objetivando assegurar s pessoas o acesso ao Poder Judicirio.

    A institucionalizao da Defensoria Pblica pela atual Constituio (art. 134, CF/88) revela a inteno do Constituinte Originrio em efetivar a promes-sa da assistncia judiciria aos necessitados, reforando o direito fundamental de acesso justia. Ressaltamos que a Constituio Federal de 1988 amplia a atuao da Defensoria ao se referir a uma assistncia judiciria, integral e gratuita aos que comprovarem insuficincia de recursos (art. 5, inciso LXXIV, CF/88), incumbindo-lhe a orientao jurdica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados (art. 134, caput, CF/88). Evidenciando-se, assim, a Defen-soria Pblica como uma instituio essencial funo jurisdicional do Estado (art. 134, caput, CF/88) e ao efetivo acesso justia. Destacamos, tambm, as recentes reformas no sentido de fortalecer a atuao da Defensoria Pblica, por meio da EC 45/2005, com a insero do 2 no art. 134, que assegurou s Defensorias Pblicas Estaduais, a autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta oramentria dentro dos limites estabelecidos por estas leis e, ainda, a Lei 11.448/2007 que legitima a Defensoria Pblica para a propositura da Ao Civil Pblica.

    Outro aspecto constitucional inovador e progressista, que contribui para o efetivo acesso justia, diz respeito aos instrumentos de proteo dos direitos difusos, coletivos e individuais homogneos28, tais como o mandado de segurana coletivo, a ao popular e ao civil pblica. A Constituio Federal de 1988 avanou nesse sentido, tambm, ao reconhecer a legitimidade das entidades de classe e associaes para defender os interesses dos seus membros, enfatizando a tendncia da coletivizao dos conflitos apresentados ao Judicirio.

    No entanto, apesar das preocupaes e inovaes previstas na Consti-tuio Federal e em leis infraconstitucionais, o que se percebe na realidade que esse direito ainda carece de efetividade.

  • R E V I S T A O P I N I O J U R D I C A 17

    Assessoria jurdica popular e acesso justia

    A falta de acesso justia no pode ser compreendida dissociada da re-alidade social. As pesquisas realizadas pela Sociologia do Direito29 constatam a presena de barreiras econmicas, sociais, pessoais e jurdicas que prejudicam a concretizao desse direito. Portanto, mesmo com as inovaes legais, na prtica, essas barreiras contribuem para que no haja esse acesso justia, e havendo, no se verifique de forma igual a todos.

    As barreiras econmicas encontram-se nos altos custos do processo, intimidando, sobretudo, as classes de baixa renda, que desistem da proteo judiciria por no poderem pagar as despesas ou porque no satisfatria a relao entre o custo do processo e o benefcio esperado30.

    Nessa mesma esteira de raciocnio, Santos31 afirma o seguinte:

    Quanto aos obstculos econmicos, verificou-se que nas socieda-des capitalistas em geral os custos da litigao eram muito elevados e que a relao entre o valor da causa e o custo da sua litigao aumentava medida que baixava o valor da causa. Estudos revelam que a justia civil cara para os cidados em geral mas revelam sobretudo que a justia civil proporcionalmente mais cara para os cidados economicamente mais dbeis. que so eles fundamentalmente os protagonistas e os interessados nas aes de menor valor e nessas aes que a justia pro-porcionalmente mais cara, o que configura um fenmeno da dupla vitimizao das classes populares face administrao da justia. (grifo nosso)

    Sabadell32 ressalta que, enquanto 70% da populao dos Estados de So Paulo e Rio de Janeiro no tm acesso justia civil, a populao carente constitui a principal clientela do sistema penal33. Ainda segundo a autora, tal situao, condicionada pela forte desigualdade social, frequentemente analisada como negao da cidadania.

    Alm disso, a lentido processual outro fator que onera o processo, sendo, proporcionalmente, mais gravoso para os cidados de menos recursos, havendo, portanto, uma tripla vitimizao desses sujeitos.34

    Quanto aos obstculos pessoais, destaca-se a falta de informao acerca dos direitos e os seus mecanismos de proteo, inclusive sobre a existncia de uma assistncia judiciria gratuita. Mais uma vez, tais barreiras atingem prin-cipalmente os setores populares, como lembra o socilogo portugus:

    Os cidados de menores recursos tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer um problema que os afeta como sendo problema jurdico. Po-dem ignorar os direitos em jogo ou ignorar as possibilidades de reparao jurdica.35

  • n. 12 - 201018

    Christianny Digenes Maia

    Por outro lado, as barreiras sociais consistem nas desconfianas do sistema judicirio, afinal, no so raros os casos de corrupo envolvendo ope-radores do Direito, de modo que, cada vez mais, percebe-se a insegurana por parte dos jurisdicionados em relao a uma possvel conquista judicial.

    Esses obstculos sociais so tambm agravados para as classes baixas, conforme ressalta Santos:36

    Estudos revelam que a distncia dos cidados em relao admi-nistrao da justia tanto maior quanto mais baixo o estado social a que pertencem e que essa distncia tem como causas pr-ximas no apenas fatores econmicos, mas tambm fatores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades econmicas.

    O medo de romper relaes e sofrer represlias, quando o processo impe-trado contra algum conhecido ou algum poderoso, representa outro aspecto social que dificulta o acesso justia.37 Embora reconheam a violao de um direi-to, os indivduos das classes baixas hesitam muito mais que os outros em recorrer aos tribunais mesmo quando percebem estar perante um problema legal.38

    As barreiras jurdicas esto relacionadas s regras de organizao do processo e de funcionamento do Poder Judicirio, tais como a excessiva du-rao do processo; a distncia geogrfica do tribunal39; o nmero limitado de juzes, promotores e serventurios da justia.40 Citamos tambm, a estrutura burocratizada do servio pblico, a linguagem, as vestimentas e a postura dos operadores jurdicos que transitam nos fruns, como fatores que contribuem para o quadro de isolamento scio-cultural do homem comum que busca a devida tutela jurisdicional, drama este to bem retratado por Franz Kafka, em O Processo.

    Poderamos destacar, ainda, como barreiras ao acesso justia, questes ideolgicas, como a concepo elitista, privatista e positivista que predomina na mentalidade do Judicirio e obstculos polticos, percebidos na prtica, em algumas situaes, como a no-independncia do Judicirio em relao aos outros Poderes ou aos setores econmicos fortes.

    Arrematando o tema, Rodrigues41 conclui que:

    O Poder Judicirio possui alguns problemas estruturais e histricos que interferem diretamente na questo do acesso justia. Entre eles se pode destacar: a morosidade existente na prestao jurisdicional; a carncia de recursos materiais e humanos; a ausncia de autonomia efetiva em relao ao Executivo e ao Legislativo; a centralizao geogrfica de suas instalaes, dificultando o acesso de quem mora nas periferias; o corporativismo de seus membros; e a inexistncia de instrumentos de controle externo por parte da sociedade.

    Desde os anos 1950, a Sociologia Jurdica realiza pesquisas de opinio

  • R E V I S T A O P I N I O J U R D I C A 19

    Assessoria jurdica popular e acesso justia

    pblica sobre o sentimento da populao em relao ao sistema jurdico, con-forme Sabadell (2002, p. 208), a maior parte dessas pesquisas chega s seguintes concluses: a populao no possui um bom conhecimento do sistema jurdico, no confia no mesmo e tem uma imagem muito negativa de seus atores.

    Por essa razo, boa parte dos conflitos sociais no levada ao Judicirio. Muitos so resolvidos entre as prprias partes, atravs de negociaes diretas, outros so solucionados com a ajuda de terceiros, atravs da conciliao42, mediao43 ou arbitragem44.

    Tais formas de resoluo de conflitos so mais cleres, menos onerosas e menos traumticas para os litigantes. Porm, preciso atentar para a igualdade material das partes, pois, a ausncia deste requisito pode pressionar a parte em situao inferior a ceder e aceitar forosamente um acordo. Observado esse pressuposto, pensamos que os citados meios extra-judiciais de soluo dos con-flitos so importantes na busca por efetivo acesso justia, j que vivemos em um contexto pluralista45, em que o acesso justia no deve se limitar tutela de direitos no mbito do Poder Judicirio ou dos rgos institucionais.

    O conjunto desses fatores que obstaculariza o acesso justia revela o quanto complexa a discriminao jurdico-social, que vai alm das con-dicionantes econmicas, envolvendo tambm, como vimos, aspectos sociais, pessoais e culturais, resultantes de processos de socializao e de interiorizao dos valores dominantes.46

    No entanto, a maior parte das medidas adotadas pelo Estado para minimizar o problema do acesso justia de cunho eminentemente econmico, no ata-cando os obstculos sociais e pessoais. A prpria assistncia judiciria apresenta limitaes que, segundo Santos,47 consistem na ausncia de uma educao jurdica dos cidados sobre os novos direitos sociais dos trabalhadores, consumidores, jovens, mulheres etc. e na concepo individualista, que separa os problemas dos cidados dos problemas coletivos das classes sociais subordinadas. E mesmo com as mudanas constitucionais e infraconstitucionais, citadas anteriormente, que fortaleceram o papel da assistncia jurdica prestada pela Defensoria Pblica, na prtica, o que percebemos uma enorme carncia de infra-estrutura, que vai desde o nmero insuficiente de defensores pblicos falta de pessoal para assessor-los48. Portanto, as Defensorias devem ser estimuladas, como tambm devem ser valorizadas outras iniciativas sociais, que segundo Santos49 so essenciais ao acesso justia, tais como as assessorias jurdicas universitrias e a advocacia popular, prticas que compreendem a Assessoria Jurdica Popular.

    4 ASSESSORIA JURDICA POPULAR E ACESSO JUSTIAA Assessoria Jurdica Popular tambm entende que o Poder Judicirio

    no a nica instncia de resoluo dos conflitos. Alm de valorizar os citados meios informais, especialmente a negociao direta ou a mediao, nos casos que envolvem pequenos conflitos, a Assessoria Jurdica Popular considera im-

  • n. 12 - 201020

    Christianny Digenes Maia

    portantes as esferas do Poder Executivo e do Poder Legislativo, para a expanso e conquista de novos direitos, bem como para efetivao dos j existentes, uma vez que as polticas pblicas garantidoras de alguns direitos fundamentais passam necessariamente por esses poderes.

    Como conquista de direitos atravs do Poder Executivo e a partir de um trabalho de Assessoria Jurdica Popular, podemos citar, por exemplo, uma par-ceria entre o FEPRAF Frum em Defesa da Educao da Praia do Futuro, o CEDECA Centro de Defesa da Criana e do Adolescente do Cear, o CAJU Centro de Assessoria Jurdica Universitria e demais movimentos sociais e entidades da sociedade civil, que, na luta pelo direito educao, conseguiram junto ao Poder Municipal um transporte escolar para conduzir os estudantes da Praia do Futuro s suas escolas, como medida emergencial, enquanto no construda a escola daquela regio, demanda que j foi, inclusive, includa no Oramento Participativo50.

    Junto ao Poder Legislativo, tambm, podem-se obter importantes con-quistas para a concretizao de alguns direitos. As leis promulgadas a partir de reivindicaes populares so bons exemplos da organizao social nesse sentido. A incluso do direito moradia no rol constitucional dos direitos sociais funda-mentais (art. 6), atravs da Emenda Constitucional n26/2000 e a promulgao do Estatuto da Cidade, em 2001, so frutos da organizao e das presses do Movimento Nacional pela Reforma Urbana. A Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a violncia domstica e familiar contra a mulher, tambm um bom exemplo de reivindicao social, por parte do movimento de direitos humanos.

    importante esclarecer que, mesmo considerando outras instncias como espaos de luta para a conquista de direitos, o Poder Judicirio continua sendo a esfera preferencial para as demandas da Assessoria Jurdica Popular, que tratam essencialmente de direitos pblicos, muitas vezes negados pelo prprio Estado.

    Ademais, o acesso ao Judicirio consiste em uma estratgia de luta da AJP, ao provocar o referido poder a se posicionar diante das novas demandas apresenta-das pelos movimentos sociais, instigando-o a reconhecer novos direitos, gerando, assim, possibilidades de mudana na sociedade atravs e a partir do Direito.

    Tal estratgia corresponde atuao dentro do campo da legalidade relida51, que se destina construo, por dentro do sistema, de uma hermenutica capaz de denunciar o modelo legal tradicional.52

    Esse trabalho mais diretamente ligado ao Poder Judicirio tem instigado os juzes a refletirem diante de novas demandas populares, provocando o sur-gimento de uma cultura jurdica crtica a partir dessas aes, contribuindo, assim, de forma indireta, para a consolidao da Nova Hermenutica Cons-titucional. Com efeito, tais litgios tm alcanado alguns resultados positivos, a exemplo da unio de homossexuais, cuja posio adotada por alguns juzes e tribunais tem sido de reconhecer que a referida ligao gera direitos para os

  • R E V I S T A O P I N I O J U R D I C A 21

    Assessoria jurdica popular e acesso justia

    companheiros, da mesma maneira que uma unio estvel entre heterossexuais53. Alm desse caso, muitos outros poderiam ser citados, como algumas vitrias no mbito do Direito Agrrio registradas por Strozake.54

    Desse modo, o Judicirio ocupa um locus fundamental nessa luta por direitos, em grande parte legitimada no texto constitucional de 1988. Nesse sentido, Andrade:55

    Simultaneamente, a sociedade civil comeou a organizar-se e a trazer ao Poder Judicirio reivindicaes no resolvidas pelos outros Poderes; todas, at ento, consideradas polticas, econmicas ou sociais, no jurdicas. So exemplos, as questes de terra (ocupaes polticas), dos salrios (grandes conflitos coletivos e greves siste-ma econmico) e, inclusive, pedidos de indenizaes por mortes ocasionadas pelo regime anterior (poltica). A populao politizou o judicirio, transformando as lides jurdicas de demandas s interindividuais em conflitos coletivos classistas. (grifo nosso)

    Diante dessas perspectivas, a cidadania - verdadeiro pressuposto de um efetivo acesso justia - passa a ser compreendida como algo a ser conquistado continuamente, no dia-a-dia, a partir da ao coletiva organizada, e no mais como uma utopia ou retrica.

    O acesso justia consiste em um pressuposto da Assessoria Jurdica Popular, que, por sua vez, assume um papel importante da efetivao daquele. O principal objetivo da AJP a efetividade e a garantia dos direitos fundamentais. Dessa forma, para que possamos viver em uma sociedade verdadeiramente justa, o acesso justia essencial nesse processo de luta por direitos.

    No entanto, para a concretizao do acesso justia necessrio, ainda, um bom conhecimento das normas jurdicas que protegem e garantem esse direito, atravs de um processo de conscientizao e organizao popular, pois, como vimos, um dos obstculos ao acesso justia consiste na barreira pessoal, conseqncia da falta de informao acerca dos direitos e seus mecanismos de proteo.

    Sob esse prisma, Assessoria Jurdica Popular assume um importante papel na efetividade do acesso justia, visto que, diferentemente da assistncia judiciria criticada acima por Santos,56 a AJP pauta suas aes em uma educao popular em direitos humanos, o que tambm constitui um dos pressuposto desse movimento.

    Ressaltamos, tambm, o papel das assessorias jurdicas universitrias na formao de um profissional jurdico com um perfil mais humanista, mais sensvel s demandas populares e mais engajado com a luta pela efetivao dos direitos fundamentais, contribuindo, assim, ainda que indiretamente, para uma sensvel mudana na postura do profissional jurdico que tradicionalmente possui uma viso elitista, individualista e positivista, fato que constitui uma barreira ideolgica ao acesso justia, conforme j dito.

    Alm disso, a Assessoria Jurdica Popular trabalha com aes coletivas,

  • n. 12 - 201022

    Christianny Digenes Maia

    em uma perspectiva emancipatria dos novos sujeitos de direito, comprometida com a satisfao dos anseios da sociedade e com a concretizao dos direitos fun-damentais, sustentculo da frmula poltica do Estado Democrtico de Direito. Parte dessas aes compreende as defesas desses sujeitos, que, constantemente, so criminalizados pela mdia e pela elite, sobretudo, quando o direito em ques-to um bem patrimonial57, como a propriedade rural ou urbana. Outras aes judiciais comumente impetradas so as que protegem os direitos sociais, como o direito moradia (atravs da usucapio coletiva), o direito educao, ao meio ambiente etc. (atravs, por exemplo, de aes civis pblicas).

    Nesse contexto, que entendemos o acesso justia de forma ampla e democrtica. De modo que, para a Assessoria Jurdica Popular, a Justia no se confunde com o Judicirio; o direito de acesso Justia compreende o prprio direito a ter Justia, que pode (e deve) ser buscada em outros espaos, alm do Poder Judicirio.

    5 CONCLUSONo mbito do Estado Democrtico de Direito, o acesso justia que

    teve seu conceito redimensionado para uma noo mais ampla, que implica no s o acesso ao judicirio, mas sim o acesso a um processo justo e efetivo revela-se como um dos mais importantes direitos fundamentais, sendo um dos maiores desafios dos sistemas jurdicos modernos a concretizao deste direito.

    Nesse sentido, percebemos um movimento crescente de estratgias para facilitar o acesso justia, denominadas de ondas por Cappelletti e Garth.58 No entanto, apesar de vrios pases criarem mecanismos com o intuito de minimizar a ineficcia do acesso justia, como no caso do Brasil, ainda percebemos que muito ainda h que ser feito para que se diminuam as barreiras econmicas, sociais, pessoais, jurdicas e polticas que inviabilizam uma verdadeira aplicao do acesso justia.

    Nesse contexto, destacamos a Assessoria Jurdica Popular, uma prtica jurdica alternativa, cuja essncia encontra-se na abordagem emancipatria em que baseia suas aes e no fundamento do Direito entendido como instrumento de transformao social, bem como no compromisso do assessor jurdico popular com a luta das classes populares em defesa e promoo dos direitos humanos e fundamentais, por uma sociedade mais justa, mais igual e mais humana.

    Possuindo, como um de seus pressupostos, a compreenso ampla de acesso justia, encarado no apenas como o acesso ao Judicirio, mas sim abrangendo todos os meios legtimos e democrticos para se alcanar a Justia, a Assessoria Jurdica Popular consolida-se como uma importante estratgia de acesso justia, sobretudo daqueles mais necessitados, que so as principais vtimas da negao desse direito.

  • R E V I S T A O P I N I O J U R D I C A 23

    Assessoria jurdica popular e acesso justia

    REFERNCIAS

    ANDRADE, Ldio Rosa de. O que Direito Alternativo. Florianpolis: Habitus, 2001.

    ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de. Direito Moderno e mudana social: ensaios de sociologia jurdica. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 1997.

    BRAGA NETO, Adolfo. Alguns aspectos relevantes sobre a mediao de con-flitos. In: SALES, Llia Maia de Morais. Estudo sobre mediao e arbitragem. Fortaleza: ABC, 2003.

    BRASIL. Superior Tribunal de Justia. Recurso Especial n. 395904/RS. Rela-tor Min. Hlio Quaglia Barbosa, 6.T. DJ de 06.02.2006, p. 365. Disponvel em: . Acesso em: 24 mai. 2006.

    CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistncia jurdica e realidade social: apontamentos para uma tipologia dos servios legais. In: AJUP - Instituto de Apoio Jurdico Popular. Discutindo a assessoria popular. Rio de Janeiro: FASE, 1991.

    CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. In: NORTHFEET, Ellen Gracie (Trad.). Acesso justia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988.

    KAFKA, Franz. O processo. So Paulo: Editora Crculo do Livro, 1963.

    LOPES, Ana Maria Dvila. Os direitos fundamentais como limites ao poder de legislar. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001.

    LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria jurdica popular no Brasil. Dissertao de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, 2005.

    LYRA FILHO, Roberto. O que direito. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1982.

    MAIA, Christianny Digenes. Assessoria Jurdica Popular: teoria e prtica emancipatria. Dissertao de Mestrado. Universidade Federal do Cear UFC, 2007.

    PRESSBURGER, Miguel. A construo do estado de direito e as assessorias jurdicas populares. Discutindo a assessoria popular. Rio de Janeiro: AJUP - Instituto de Apoio Jurdico Popular/FASE, 1991.

    ROCHA, Jos de Albuquerque. Instituies arbitrais. In: SALES, Llia Maia de Moraes (Org.). Estudos sobre mediao e arbitragem. Fortaleza: ABC Editora, 2003.

    RODRIGUES, Horcio Wanderley. Acesso justia no direito procesual brasileiro. So Paulo: Acadmica, 1994.

    SABADELL, Ana Lcia. Manual de sociologia jurdica: introduo a uma leitura externa do direito. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

    SALES. Llia Maia de Moraes. A mediao de conflitos e a pacificao social.

  • n. 12 - 201024

    Christianny Digenes Maia

    In: Estudos sobre mediao e arbitragem. Fortaleza: ABC Editora, 2003.

    SANTANNA, Alayde. Por uma teoria jurdica da libertao. In: SOUSA, Jos Geraldo (Org.). Introduo crtica ao direito. 4. ed. Braslia: Universidade de Braslia, 1993, v. 1.

    SANTOS, Boaventura de Souza. Notas sobre a histria jurdico-social de Pasrgada. In: SOUSA JUNIOR, Jos Geraldo. (Org.) Introduo crtica ao direito. 4. ed., Braslia: Universidade de Braslia, 1993, v. 1.

    _______. Introduo sociologia da administrao da justia. In: FARIA, Jos Eduardo (Org.). Direito e Justia: a funo social do judicirio. 3. ed. So Paulo: tica, 1997.

    _______. Para uma revoluo democrtica da Justia. So Paulo: Cortez, 2007.

    SCHERER-WARREN, Ilse. Rede de movimentos sociais. 3. ed. So Paulo: Edies Loyola, 2005.

    STROZAKE, Juvelino Jos (Org.). A questo agrria e a justia. So Paulo: RT, 2000.

    _______. Questes agrrias: julgados comentados e pareceres. So Paulo: Editora Mtodo, 2002.

    WATANABE, Kazuo. Acesso justia e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et. al. (coord.). Participao e processo. So Paulo: RT, 1988, p. 128-135.

    WOLKMER, Antnio Carlos. Introduo ao pensamento jurdico crtico. So Paulo: Saraiva, 2001a._______. Pluralismo Jurdico: fundamentos de uma nova cultura no direito. So Paulo: Alfa Omega, 2001b.

    1 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. In: NORTHFEET, Ellen Gracie (Trad.). Acesso justia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988, p. 12.

    2 A palavra emancipao ou emancipatria utilizada neste artigo caracteriza a abordagem desenvolida pela AJP ao trabalhar o Direito, valendo-se da Educao Popular como mtodo pedaggico para uma Educao Jurdica em Direitos Humanos junto aos movimentos assessorados. Neste sentido, significa que a AJP atua envolvendo as pessoas assessoradas como os verdadeiros protagonistas da luta por direitos, e no como clientes ou assistidos, propiciando um empoderamento desses sujeitos.

    3 Historicamente, o Direito reflete um carter conservador, mantenedor do status quo. Na realidade, porm, o Direito se relaciona de forma dialgica com a sociedade, ou seja, ao mesmo tempo em que produto de um contexto scio-cultural, tambm influi na situao social, exercendo, assim, um duplo papel dentro da sociedade: ativo e passivo. Assume, dessa maneira, uma funo reformadora, podendo agir como um instrumento de mudanas sociais.

    4 Quanto anlise marxista da sociedade, referimos-nos ao mtodo dialtico marxista, a histria da luta de classes, bem como seus estudos sobre a sociedade capitalista, que opressora, e a idia que Marx tem do Direito como um instrumento de manuteno do status quo da classe burguesa.

    5 SANTANNA, Alayde. Por uma teoria jurdica da libertao. In: SOUSA, Jos Geraldo (Org.). Introduo crtica ao direito. 4. ed. Braslia: Universidade de Braslia, 1993, v. 1, p. 27.

    6 LYRA FILHO, Roberto. O que direito. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1982, p. 86)7 PRESSBURGER, Miguel. A construo do estado de direito e as assessorias jurdicas populares. Discutindo

  • R E V I S T A O P I N I O J U R D I C A 25

    Assessoria jurdica popular e acesso justia

    a assessoria popular. Rio de Janeiro: AJUP - Instituto de Apoio Jurdico Popular/FASE, 1991, p. 36).

    8 Quanto definio de direitos humanos, tomamos a lio de Ana Maria Dvila Lopes (LOPES, Ana Maria Dvila. Os direitos fundamentais como limites ao poder de legislar. Porto Alegre: Sergio An-tonio Fabris, 2001, p. 41.) ao ensinar que so princpios que resumem a concepo de uma convivncia digna, livre e igual de todos os seres humanos, vlidos para todos os povos e em todos os tempos, por outro lado a autora afirma que os direitos fundamentais podem ser definidos como os princpios jurdica e positivamente vigentes em uma ordem constitucional que traduzem a concepo de dignidade humana de uma sociedade e legitimam o sistema jurdico estatal (Ibid., p. 35).

    9 A expresso direito insurgente, utilizada por Wolkmer refere-se ao direito em surgimento, em cons-truo, oriundo das lutas populares. WOLKMER, Antnio Carlos. Pluralismo Jurdico: fundamentos de uma nova cultura no direito. So Paulo: Alfa Omega, 2001b.

    10 LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria jurdica popular no Brasil. Dissertao de Mestrado. Univer-sidade Federal de Santa Catarina - UFSC, 2005, p. 134.

    11 SCHERER-WARREN, Ilse. Rede de movimentos sociais. 3. ed. So Paulo: Edies Loyola, 2005, p. 119.12 LUZ, op. cit., p. 22.13 (ROJAS HURTADO, 1989 apud WOLKMER, Antnio Carlos. Introduo ao pensamento jurdico

    crtico. So Paulo: Saraiva, 2001a, p. 69.14 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistncia jurdica e realidade social: apontamentos para uma ti-

    pologia dos servios legais. In: AJUP - Instituto de Apoio Jurdico Popular. Discutindo a assessoria popular. Rio de Janeiro: FASE, 1991.

    15 LUZ, op. cit., p. 22.16 Ibid., p. 25.17 Pluralismo Jurdico Comunitrio Participativo aquele que se encontra necessariamente comprometido

    com a atuao de novos sujeitos coletivos (legitimidade dos atores), com a satisfao das necessidades humanas essenciais (fundamentos materiais) e com o processo poltico democrtico de descentralizao, participao e controle comunitrio (estratgias). Soma-se ainda a insero do pluralismo jurdico com certos fundamentos formais como a materializao de uma tica concreta da alteridade e a construo de processos atinentes a uma racionalidade emancipatria, ambos capazes de traduzir a diversidade e a diferena das formas de vida cotidianas, a identidade, informalidade e autonomia dos agentes legitimadores. (WOLKMER, 2001b, op. cit., p. 230-231).

    18 Os fundamentos, referenciais tericos, caractersticas e pressupostos da AJP, encontram-se desenvolvi-dos em: MAIA, Christianny Digenes. Assessoria Jurdica Popular: teoria e prtica emancipatria. Dissertao de Mestrado. Universidade Federal do Cear - UFC, 2007.

    19 CAPPELLETTI; GARTH, op. cit., p. 12.20 Ibid., p. 9.21 Ibid., p. 822 RODRIGUES, Horcio Wanderley. Acesso justia no direito procesual brasileiro. So Paulo: Aca-

    dmica, 1994, p. 28.23 WATANABE, Kazuo. Acesso justia e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et. al.

    (coord.). Participao e processo. So Paulo: RT, 1988, p. 128-135, p. 128.24 CAPPELLETTI; GARTH, op. cit.25 Ibid., p. 31.26 Ibid., p. 67-68.27 A tnica dessas instituies, segundo os referidos autores, est no envolvimento da comunidade, na facili-

    tao de acordos sobre querelas locais e, de modo geral, na restaurao de relacionamentos permanentes e da harmonia na comunidade (Ibid., p. 114), cuja finalidade, alm de afastar dos tribunais questes menores, consiste em criar um rgo acolhedor para as pessoas comuns que no teriam condies de levar seus conflitos aos tribunais, esperando-se com essa forma descentralizada, participatria e informal, estimular a discusso na comunidade sobre situaes que as relaes comunitrias estejam em ponto de colapso, servindo, ainda para educar a vizinhana sobre a natureza, origem e solues para os conflitos que os assediam (Ibid., p. 115).

    28 O conceito de direitos difusos, coletivos e individuais homogneos consagrado no sistema jurdico brasileiro foi estabelecido pelo Cdigo de Defesa do Consumidor (8.078/90), em seu artigo 81, in verbis: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Cdigo, os transindividuais, de natureza indivisvel, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Cdigo, os transindividuais, de natureza indivisvel, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a

  • n. 12 - 201026

    Christianny Digenes Maia

    parte contrria por uma relao jurdica base; III - interesses ou direitos individuais homogneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

    29 Sobre esses obstculos ao acesso justia, utilizaremos as lies de Santos (1997) e de Sabadell (2002), alm dos ensinamentos de Cappelletti e Garth (1988).

    30 SABADELL, Ana Lcia. Manual de sociologia jurdica: introduo a uma leitura externa do direito. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 202.

    31 SANTOS, Boaventura de Souza. Introduo sociologia da administrao da justia. In: FARIA, Jos Eduardo (Org.). Direito e Justia: a funo social do judicirio. 3. ed. So Paulo: tica, 1997, p. 46.

    32 SABADELL, op. cit., p. 184.33 Nesse sentido, o censo penitencirio de 1993 indicou que 98% dos presos no tm condies econmicas

    para contratar um advogado (Ibid., p. 184). J passados 13 anos do censo, pensamos que pouca coisa mudou em relao a essa lamentvel situao.

    34 SANTOS, op. cit., p. 46.35 Ibid., p. 48.36 Ibid., p. 4837 (SABADELL, op. cit., p. 202.38 SANTOS , op. cit., p. 48.39 comum verificar-se, principalmente nas grandes cidades, o distanciamento entre a localizao dos

    tribunais e os bairros mais desfavorecidos, como, por exemplo, o Frum Clvis Bevilqua, que antes fun-cionava em um prdio simples no Centro de Fortaleza, portanto, mais acessvel populao de baixa renda e, atualmente, localiza-se em uma rea nobre da cidade, em uma estrutura imponente.

    40 SABADELL, op. cit., p. 202.41 RODRIGUES, op. cit., p. 46.42 Embora seja comum as expresses conciliao e mediao serem utilizadas como sinnimos, Braga

    Neto afirma que: A conciliao um procedimento mais clere. Na maioria dos casos se restringe a apenas uma reunio entre as partes e o conciliador. muito eficaz para conflitos onde no existe interrelao entre as partes. BRAGA NETO, Adolfo. Alguns aspectos relevantes sobre a mediao de conflitos. In: SALES, Llia Maia de Morais. Estudo sobre mediao e arbitragem. Fortaleza: ABC, 2003, p. 22.

    43 Mediao representa um meio consensual de soluo de conflitos no qual um terceiro imparcial e de confiana das partes mediador facilite o dilogo entre estas possibilitando uma soluo pacfica para a controvrsia. SALES. Llia Maia de Moraes. A mediao de conflitos e a pacificao social. In: Estudos sobre mediao e arbitragem. Fortaleza: ABC Editora, 2003, p. 131.

    44 A arbitragem pode ser definida como um meio de resolver litgios civis, atuais ou futuros, sobre direitos patrimoniais disponveis atravs de rbitro ou rbitros privados, escolhidos pelas partes, cujas decises produzem os mesmos efeitos jurdicos das sentenas proferidas pelos rgos do Poder Judicirio. ROCHA, Jos de Albuquerque. Instituies arbitrais. In: SALES, Llia Maia de Moraes (Org.). Estudos sobre mediao e arbitragem. Fortaleza: ABC Editora, 2003, p. 96-97.

    45 Nessa situao de pluralidade jurdica, comum encontrarmos nas prprias comunidades formas de soluo de conflitos, criadas pelos prprios moradores, como em Pasrgada, nome fictcio atribudo por Boaventura Santos a uma favela do Rio de Janeiro, onde o socilogo pesquisou obre o Pluralismo Jurdico. SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a histria jurdico-social de Pasrgada. In: SOUSA JUNIOR, Jos Geraldo. (Org.) Introduo crtica ao direito. 4. ed. Braslia: Universidade de Braslia, 1993, v. 1.

    46 SANTOS, 1997, op. cit., p. 49.47 Ibid., p. 50.48 A ttulo de ilustrao, destacamos os dados apresentados por Santos: A cobertura dos servios das De-

    fensorias Pblicas estaduais corresponde a 39,7% do total de comarcas existentes no pas. Apenas em 6 unidades da Federao todas as comarcas so cobertas pelos servios prestados pela Defensoria Pblica. Acresce que os servios da Defensoria so, em regra, menos abrangentes nas unidades da Federao com os piores indicadores sociais. Por fim, nas defensorias dos estados e do Distrito Federal, h em mdia um defensor pblico para cada 83.222 destinatrios potenciais de seus servios. SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revoluo democrtica da Justia. So Paulo: Cortez, 2007, p. 48.

    49 Santos, 1997, op. cit.50 Para maiores informaes, consultar o Relatrio de Acompanhamento da Matrcula em Fortaleza 2006,

    disponvel em: .51 Terminologia trabalhada pelo professor Arruda Junior ao propugnar uma nova tipologia das prticas

    jurdicas emancipatrias nos campos da legalidade relida, da legalidade sonegada e da legalidade negada.

  • R E V I S T A O P I N I O J U R D I C A 27

    Assessoria jurdica popular e acesso justia

    ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de. Direito Moderno e mudana social: ensaios de sociologia jurdica. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 1997.

    52 LUZ, op. cit., p. 35.53 BRASIL. Superior Tribunal de Justia. Recurso Especial n 395904/RS. Relator Min. HLIO QUAGLIA

    BARBOSA, 6.T. DJ de 06.02.2006 p. 365. Disponvel em: . Acesso em: 24 mai. 2006.

    54 STROZAKE, Juvelino Jos (Org.). Questes agrrias: julgados comentados e pareceres. So Paulo: Editora Mtodo, 2002.

    55 ANDRADE, Ldio Rosa de. O que Direito Alternativo. Florianpolis: Habitus, 2001, p. 23-2456 Santos , 1997, op. cit., p. 50.57 Bem patrimonial para o latifundirio ou para o especulador, mas, para os sem-terra ou os sem-teto, tais

    bens representam a prpria subsistncia, a prpria dignidade. 58 CAPPELLETTI; GARTH, op. cit.

    POPULAR JURIDICAL ADVISORY AND ACCESS TO JUSTICE ABSTRACT

    In present days, the notion of access to Justice comprises more that formal access to the Judiciary, also including the right to a fair and efficient judicial procedure, in order to assure the protection of the rights of everyone. In Brazil, the 1988 Constitution adopted this new conception of access to Justice, thus expressing a concern with the creation of more efficient and equitable possibilities of access to the Judiciary for every citizen, that would be possible through the availability of a more modern juridical system and by the offering of rights and guarantees, in order to completely shape this newer and broader meaning of access to Justice. Notwithstanding, the concerns and innovations brought into force by the Constitution and new Brazilian laws were not sufficient to grant real efficacy to the right of access to Justice. In this context, a new movement emerges, the Popular Juridical Advisory, aimed at contributing to promoting life with dignity for everyone, using Law as an instrument of social change and human emancipation and resorting to a democratic notion of the right of access to Justice, which is perceived by the author as the very right to justice, that is to say, the right to justice in other social spaces, besides the Judiciary.

    Keywords: Access to Justice. Popular Juridical Advisory. Judiciary.

  • n. 12 - 201028

    O PAPEL DOS MOVIMENTOS SOCIAIS COMO FERRAMENTA DE JUSTIA E EMANCIPAO SOCIAL:

    UM DILOGO ENTRE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS E ZYGMUNT BAUMAN

    Clovis Renato Costa Farias*

    RESUMOO presente trabalho pretende demonstrar a fora que tm os movimentos organizados nas pautas por melhorias sociais na efetivao do direito ao trabalho digno, como ferramenta de justia e emancipao social, o que se far apoiado em parte da produo de Boaventura de Sousa Santos e Zygmunt Bauman referentes principalmente modernidade, aos indivduos e emancipao social. Intenta-se, para tanto, difundir a impor-tncia de tais movimentos, os problemas na organizao e na formao de guerreiros para os embates sociais, bem como a possibilidade que tais movimentos tm de colaborar para a emancipao individual e social. O que se far com base em dados tericos e empricos ligados realidade contempornea dos trabalhadores em seu contexto social, que no se esgota no labor para a sobrevivncia ou na busca por ele, mas amplia-se e se enlaa a todas as relaes sociais de modo amplo.

    Palavras-chave: Movimentos sociais. Direito ao trabalho. Dig-nidade da pessoa humana. Emancipao. Justia social.

    INTRODUOAbordar as lutas oriundas e decorrentes das relaes de trabalho na

    contemporaneidade como ferramenta para a realizao da justia e emancipa-o individual e social um desafio diante das dificuldades ligadas s relaes laborais (decorrentes da supervalorizao do lucro em detrimento da dignidade dos trabalhadores), dos problemas da modernidade (instigadora do individua-lismo e do consumismo) e dos reveses pelos quais tem passado o sindicalismo (carente de recursos humanos e financeiros aptos a viabilizar plenamente suas atividades, especialmente nos setores da iniciativa privada).

    * Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Cear UFC, Especialista em Direito e Processo do Trabalho, Membro do GRUPE (Grupo de Estudos e Defesa do Direito do Trabalho e do Processo Trabalhista) e do Grupo de Estudos Boaventura no Cear. Professor de Sociologia Jurdica, Constitucional, Direito do Trabalho e Processo Trabalhista, Professor da Faculdade Christus.

  • R E V I S T A O P I N I O J U R D I C A 29

    O papel dos movimentos sociais como ferramenta de justia e emancipao social: um dilogo entre Boaventura de Sousa Santos e Zygmunt Bauman

    Provocao que se torna fundamental quando se intenta resgatar os valores que embasam a nao para a concretizao da justia e da emancipao na socieda-de, tomando-se como fundamento o trabalho digno em que se insere ou almeja se inserir o povo brasileiro, fonte de todo o poder da Repblica Federativa do Brasil, como postado na Carta Poltica de 1988 (art. 1, III, IV e 1). Algo realado pela importncia que o constituinte originrio conferiu ao labor, dedicando-lhe todo um ttulo nos disputados 250 artigos da Constituio (Ttulo VIII, Da Ordem Social, Captulo I), no qual se ressalta que a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justia sociais (art. 193).

    Dessa maneira, o papel dos movimentos para a conquista, manuteno e aprimoramento de melhorias relacionadas com o direito ao trabalho (direito fun-damental) e do trabalho (ramo do Direito), a ser desempenhado de forma digna, importantssimo diante da ebulio atual de problemas que tm envolvido toda a sociedade, ultrapassando o local da prestao laboral, enraizando-se na psiqu indi-vidual e coletiva, modificando hbitos e produzindo novos e nefastos fatos sociais.

    Movimentos antes entendidos somente como do operariado para defesa dos interesses polticos e econmicos ligados s relaes de trabalho, conhecido como trabalhismo, mas que necessitou ampliar e diversificar os aliados em razo da progres-siva desvantagem dos obreiros frente s exigncias do mercado e da grande desmobi-lizao operria, resultante da modernidade consumista. Assim, atualmente, as lutas de classe apoiam-se na organizao sindical (sindicatos, federaes, confederaes, centrais e associaes de trabalhadores); no sistema de proteo ao trabalhador, mantido para minimizar a desigualdade de foras na barganha pela melhoria das condies laborais, em grande parte, custeado e disciplinado pelo Estado, no qual se incluem a Justia do Trabalho, o Ministrio Pblico do Trabalho, o Ministrio do Trabalho e Emprego e os fundos prprios de custeio como o Fundo de Amparo ao Trabalhador; e na sociedade civil, em razo do intrincamento das pautas de luta, dado o carter hbrido que envolve tais movimentos, ao mesclar questes laborais, familiares, governamentais, dentre outras, de formas difusas e coletivas. Situao ampliada pelas necessidades dos intervenientes na defesa da dignidade humana, mas que ainda carece de fora para combater o mercado na modernidade.

    No contexto contemporneo, como assevera Bauman, h uma nova ordem fincada em termos econmicos, imune a quaisquer outros desafios hete-rnomos, tais como embaraos polticos, ticos e culturais. Para tanto, tal mo-dernidade tem-se ocupado de derreter os slidos, ou seja, eliminar as obrigaes irrelevantes que impediam a via do clculo racional dos efeitos1, e conclui:

    [...] como dizia Max Weber, libertar a empresa de negcios dos grilhes dos deveres para com a famlia e o lar e da densa trama das obrigaes ticas; ou, como preferiria Thomas Carlyle, dentre os vrios laos subjacentes s responasbilidades humanas mtuas, deixar restar somente o nexo dinheiro. Por isso mesmo, essa forma de derreter os slidos deixava toda a complexa rede de relaes sociais no ar nua, desprotegida, desarmada e exposta,

  • n. 12 - 201030

    Clovis Renato Costa Farias

    impotente para residir s regras de ao e aos critrios de racio-nalidade inspirados pelos negcios, quanto mais para competir efetivamente com eles.2

    Destarte, emergem as lutas dos trabalhadores como ferramentas aptas para a realizao da justia social, exatamente por se embasarem em valores slidos que englobam toda a sociedade, instigarem a atuao coletiva e primarem pela dignidade humana, que no se reduz a um ambiente de trabalho saudvel moral e fisicamente, mas adere ao patrimnio e materializa o bem estar das pessoas. Interferem em questes como o tempo de contato entre as famlias, o lazer, o consumo, a capacitao e a emancipao individual, viabilizadora da liberdade, da observao da importncia da convivncia em sociedade e do agir coletivo.

    REVALORIZAO E MAIOR ADESO SOCIAL S LUTAS COLE-TIVAS E A UTILIZAO DE INSTRUMENTOS HEGEMNICOS DE FORMA CONTRA-HEGEMNICA

    Os movimentos sobressaem-se como boas vias para solucionar grande parte dos problemas da contemporaneidade, engendrados diante da alienao dos participantes, uma vez que a tarefa de construir uma nova ordem e melhor para substituir a velha ordem defeituosa no est hoje na agenda3.

    Nas lutas dos trabalhadores, exige-se engajamento, embates por melho-rias sociais, e foge-se de tcnicas que permitem que o sistema e os agentes livres se mantenham desengajados e que se desencontrem em vez de encontrar-se4. So capazes de proporcionar a emancipao social no atual perodo de desregulamentao e flexibilizao em avano contnuo, verdadeira transio social, que tem revelado as falhas do Direito como ferramenta apta para tal emancipao, como destaca Santos:

    Nos ltimos vinte anos, este paradigma poltico entrou numa crise que teve impactos tanto sobre a estratgia reformista como sobre a estratgia revolucionria. A crise do reformismo, que, nos pases centrais, assumiu a forma de crise do Estado-providncia e, nos pases perifricos e semi-perifricos, tomou a forma de crise do Es-tado desenvolvimentista atravs de ajustamentos estruturais e de cortes drsticos nas j de si incipientes despesas especiais do Estado -, significou, em termos polticos, o ressurgimentos do conservado-rismo e o levantamento de uma mar ideolgica contra a agenda de incluso gradual e crescente no contrato social, a qual, embora de modos diversos, era comum ao demo-liberalismo e ao demo--socialismo. Deste modo, parecia (e parece) bloqueada a via legal para a emancipao social. Apesar de estruturalmente limitada, essa via uma promessa emancipatria regulada pelo Estado capitalista e, por conseguinte, concilivel com as necessidades incessantes e intrinsecamente polarizadoras de acumulao do capitalismo foi, nos pases centrais, a explicao, ao longo de muitas dcadas, para

  • R E V I S T A O P I N I O J U R D I C A 31

    O papel dos movimentos sociais como ferramenta de justia e emancipao social: um dilogo entre Boaventura de Sousa Santos e Zygmunt Bauman

    a compatibilidade existente entre o capitalismo sempre hostil redistribuio demo-liberais ou demo-socialistas. O colapso desta estratgia levou desintegrao da tenso, j muito atenuada, en-tre a regulao social e a emancipao social. Mas, uma vez que a tenso habitava o modelo poltico no seu todo, a desintegrao da emancipao social acarretou consigo a desintegrao da regulao social. Da a dupla crise de regulao e de emancipao em que nos encontramos hoje, uma crise em que o conservadorismo floresce sob o nome enganador de neoliberalismo.5

    Entrementes, diante do descompasso de foras entre o capital e o traba-lho e das crises prprias da modernidade, imprescindvel a adeso macia da sociedade, verdadeira fbrica de significados6, que comumente vem sendo convencida por instrumentos da globalizao hegemnica de que tudo est sob controle, que inexistem imbrglios laborais, ou que h impasses insolveis para todos e para sempre, disseminando o senso de impotncia nos indivduos, postados como responsveis. No mesmo sentido, Santos7 sinaliza que toda e qualquer discusso acerca da emancipao social se v suprimida pela globaliza-o neoliberal, uma vez que, segundo esta, a ordem e a sociedade boas j esto conosco, carecendo apenas de consolidao, o que impossvel e desperdia enormemente as experincias proporcionadas pela convivncia em sociedade.

    Tem-se tolhido a energia da transcendncia, como propalado por Bauman, que mantm a ordem social em movimento, diante da rotulao de determinados significados, nos quais se incluem as lutas de classe, como se pode destacar:

    [...] os significados da vida no podem ser separados em corretos e incorretos, verdadeiros ou fraudulentos. Eles trazem satisfaes que diferem em completude, profundidade e durao emocional, mas todos ficam aqum da genuna e necessria satisfao.8

    Para tanto, urge a divulgao dos reais significados das lutas que comeam nas relaes de trabalho mantidas ou pretendidas, no divulgados enfaticamente, mas intencionalmente produzidos como inexistentes por instrumento da globa-lizao hegemnica. Santos afirma que, em resumo, a globalizao hegemnica neoliberal atingiu um paradigma jurdico e poltico que tem um mbito global, inspirado numa viso altamente seletiva da tradio ocidental, de forma que tal paradigma est em vias de ser imposto em todo o sistema-mundo. Conclui que a questo da relao entre o direito e a emancipao social, no obstante ser, historicamente, uma questo ocidental, pode agora vir a se transformar numa questo global.9 Situao universalizante que reduz em muito a significao da emancipao social, desperdiando experincias contrrias ou que possam interagir com tal paradigma global.

    O mercado desvirtua propositalmente o foco dos movimentos para a sociedade, apregoando-os como inexistentes ou de fcil soluo, e rotula os reivindicantes como insufladores para deslegitimar as lideranas e fragilizar as lutas invitadas. Investe-se na mdia para bombardear a sociedade com a enfa-

  • n. 12 - 201032

    Clovis Renato Costa Farias

    tizao dos problemas que envolvem atualmente o sindicalismo, tais como a interferncia de interesses poltico-partidrios, aspiraes individuais por parte dos partcipes ativos, corrupo interna, dentre outros, encobrindo os entraves geradores dos conflitos e modificando o rumo dos debates.

    Postura que clama por um combate com igualdade de armas, robustecendo os movimentos sociais, utilizando-se dos instrumentos hegemnicos, tais como a mdia, de forma contra-hegemnica, para divulgar as pautas reivindicadas, arregimentar os trabalhadores e fortalecer o movimento na luta centrada na conquista das pautas propostas. Em decorrncia, legitima os movimentos, atrai mais associados e oxigena o comando das entidades, caminho mais eficaz para minimizar as feridas que depem contra o sindicalismo, uma vez que a falta de engajamento nos assuntos que envolvem a coletividade que tem permitido o florescimento de ervas daninhas no corao das instituies.

    inquestionvel a existncia de pautas ostensivas de luta que carecem de uma organizao social para o combate equnime, dentre as quais se encontram a efetivao de conquistas reivindicadas no passado e os novos desafios que os indivduos so obrigados a enfrentar, como destaca Bauman:

    Jean-Paul Sartre aconselhou seus discpulos em todo o mundo a ter um projeto de vida, a decidir o que queriam ser e, a partir da, implementar esse programa consistentemente, passo a passo, hora a hora. Ora, ter uma identidade fixa, como Sartre aconselhava, hoje, nesse mundo fluido, uma deciso de certo modo suicida. Se se toma, por exemplo, os dados levantados por Richard Sennett o tempo mdio de emprego em Silicon Valley, por exemplo, de oito meses , quem pode pensar num projet de la vie nessas circunstncias? Na poca da modernidade slida, quem entrasse como aprendiz nas fbricas da Renault ou da Ford iria com toda a probabilidade ter ali uma longa carreira e se aposentar aps 40 ou 45 anos. Hoje em dia, quem trabalha para Bill Gates por um salrio talvez cem vezes maior no tem idia do que poder lhe acontecer dali a meio ano! E isso faz uma diferena incrvel em todos os aspectos da vida humana.[...]A modernidade slida tinha um aspecto medonho: o espectro das botas dos soldados esmagando as faces humanas. Virtualmente todo mundo, quer da esquerda quer da direita, assumia que a democracia, quando existia, era para hoje ou para amanh, mas que uma ditadura estava sempre vista; no limite, o totalitarismo poderia sempre chegar e sacrificar a liberdade em nome da segu-rana e da estabilidade. Por outro lado, como Sennett mostrou, a antiga condio de emprego poderia destruir a criatividade e as habilidades humanas, mas construa, por assim dizer, a vida huma-na, que podia ser planejada. Tanto os trabalhadores como os donos de fbrica sabiam muito bem que iriam se encontrar novamente amanh, depois de amanh, no ano seguinte, pois os dois lados dependiam um do outro. Os operrios dependiam da Ford assim como esta dependia dos operrios, e porque todos sabiam disso

  • R E V I S T A O P I N I O J U R D I C A 33

    O papel dos movimentos sociais como ferramenta de justia e emancipao social: um dilogo entre Boaventura de Sousa Santos e Zygmunt Bauman

    podiam brigar uns com os outros, mas no final tendiam a concordar com um modus vivendi. Essa dependncia recproca mitigava, em certo sentido, o conflito de interesses e promovia algum esforo positivo de coexistncia, por menor que fosse. Bem, nada disso existe hoje. Os medos e as infelicidades de agora so de outra ordem. Dificilmente outro tipo de stalinismo voltar e o pesadelo de hoje no mais a bota dos soldados esmagando as faces humanas. Temos outros pesadelos. O cho em que piso pode, de repente, se abrir como num terremoto, sem que haja nada ao que me segurar. A maioria das pessoas no pode planejar seu futuro muito tempo adiante. Os acadmicos so umas das poucas pessoas que ainda tm essa possibilidade.10

    Os saneamentos para as mculas presentes nas entidades representativas so possveis com o maior envolvimento dos interessados, conseqente aumento no nmero de filiados (ampliao humana e financeira), fortalecimento da enti-dade, e emancipao de parcela considervel dos intervenientes que se inteiram do diagnstico real, tornam-se aptos a votar, serem votados, opinar nas diretivas da entidade para a melhoria das condies da categoria, participar das negociaes coletivas, nos fechamentos dos acordos e convenes coletivas de trabalho, assim como ajudar na fiscalizao dos dirigentes. Enfim, deve-se disseminar um novo senso comum, partindo do Sul11 trabalhista, com decises autnomas e respon-sveis pelos desafios do porvir, com grande intrincamento com toda a sociedade, na esteira de Bauman, os slidos que esto para ser lanados no cadinho e os que esto derretendo neste momento, o momento da modernidade fluida, so os elos que entrelaam as escolhas individuais em projetos e aes coletivas. 12

    O desrespeito constante dignidade dos trabalhadores - as incertezas sociais

    Argumentos no faltam ante a atualidade das lutas de classe. O vergaste aos direitos conquistados pelo trabalhismo tem sido ostensivo, ajudado pela atual apatia da maioria dos trabalhadores, que no mais costuma combater precisamente os desmandos do mercado, e pelas peculiaridades da nova eli-te global, aprimorada em sua atuao empresarial, mas mantendo o antigo desrespeito pela mo-de-obra em detrimento do lucro. Sobre a mudana de atuao da elite global, manifesta-se Bauman:

    A elite global contempornea formada no padro do velho estilo dos senhores ausentes. Ela pode dominar sem se ocupar com a administrao, gerenciamento, bem-estar, ou, ainda, com a misso de levar a luz, reformar os modos, elevar moralmente, civilizar e com cruzadas culturais. O engajamento ativo na vida das populaes subordinadas no mais necessrio (ao contrrio, fortemente evitado como desnecessariamente custoso e eficaz) e, portanto, o maior no s no mais melhor, mas carece de significado racional. Agora o menor, mais leve e mais porttil que significa melhoria e progresso. Mover-se leve, e no mais aferrar-se a coisas vistas como atraentes por sua confiabilidade

  • n. 12 - 201034

    Clovis Renato Costa Farias

    e solidez isto , por seu peso, substancialidade e capacidade de resistncia hoje recurso de poder.Fixar-se ao solo no to importante se o solo pode ser alcanado e abandonado vontade, imediatamente ou em pouqussimo tempo. Por outro lado, fixar-se muito fortemente, sobrecarregando os laos com compromissos mutuamente vinculantes, pode ser positiva-mente prejudicial, dadas as novas oportunidades que surgem em outros lugares. Rockefeller pode ter desejado construir suas fbri-cas, estradas de ferro e torres de petrleo altas e volumosas e ser o dono delas por um longo tempo (pela eternidade, se medirmos o tempo pela durao da prpria vida ou pela da famlia). Bill Gates, no entanto, no sente remorsos quando abandona posses de que se orgulhava ontem; a velocidade atordoante da circulao, da reciclagem, do envelhecimento, do entulho e da substituio que traz o lucro hoje no a durabilidade e confiabilidade do produ-to. Numa notvel reverso da tradio milenar, so os grandes e poderosos que evitam o durvel e desejam o transitrio, enquanto os da base da pirmide contra todas as chances lutam deses-peradamente para fazer suas frgeis, mesquinhas e transitrias posses durarem mais tempo. Os dois se encontram hoje em dia principalmente nos lados opostos dos balces das mega-liquidaes ou de vendas de carros usados.13

    H dispensa macia de trabalhadores com a mutao permanente dos qua-dros de obreiros, no raro, despedidos pela aparncia ou pela idade, registrando-se a existncia de empresas que somente pagam os salrios aps a pesagem dos empregados, que devem manter o peso aferido no incio do contrato de trabalho, sob pena de perderem seus empregos sem justa causa, como se pode notar:

    A companhia area Turkish Airlines deixou em terra 28 comis-srios de bordo que estavam acima do peso, dando a eles prazo de seis meses para que possam perder os quilos extras, informou o jornal Haber Turk neste sbado.Segundo o Haber Turk, que citou um comunicado da empresa, todos os funcionrios - 13 deles mulheres - esto de licena no remunerada.14

    Carece-se de proteo contra a automao, de forma efetiva, mesmo garantida pela constituio (art. 7, XXVII, CF/88), uma vez que sem que a sociedade percebesse as mquinas foram limpando quadros e categorias de trabalhadores em vrios setores. Como destacado por Jacob15, o Estado tem se mostrado ineficaz no que tange apresentao de mecanismos viveis ao combate da excluso social, aqui representado pelo elevado nmero de desempregados e demais problemas referentes classe operria. Situao tratada por Maior:

    A dispensa imotivada de trabalhadores, em um mundo marcado por altas taxas de desemprego, que favorece, portanto, o imprio da lei da oferta e da procura e que impe, certamente, aos tra-balhadores condies de trabalho subumanas e diminuio de suas

  • R E V I S T A O P I N I O J U R D I C A 35

    O papel dos movimentos sociais como ferramenta de justia e emancipao social: um dilogo entre Boaventura de Sousa Santos e Zygmunt Bauman

    garantias e salrios, agride a conscincia tica que se deve ter para com a dignidade do trabalhador e, por isso, deve ser, eficazmente, inibida pelo ordenamento jurdico. No possvel acomodar-se com uma situao reconhecidamente injusta, argumentando que infelizmente o direito no a reprime, ainda mais quando, como demonstrado, o prprio direito positivo (internacional e interno) possui normas eficazes para uma tal realizao, bastando que se queira aplic-las. Devemos aprender a utilizar as virtudes do direito no sentido da correo das injustias, at porque uma sociedade somente pode se constituir com base em uma normatividade ju-rdica se esta fornecer instrumentos eficazes para que as injustias no se legitimem. Do contrrio, no haveria do que se orgulhar ao dizer que vivemos em um Estado democrtico de direito.16

    Conforme dados do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Socioeconmicos), criado pelo movimento sindical brasileiro, em 1955, para desenvolver pesquisas que fundamentassem as reivindicaes dos trabalhadores, as taxas de rotatividade da mo de obra nos ltimos 10 anos se mantiveram em patamares elevados, acima de 40%, praticamente em todo o perodo, em 2007, 14,3 milhes de trabalhadores foram admitidos e 12,7 milhes foram desligados das empresas. Do total de empregados desligados, 59,4%, ou 7,6 milhes foram dispensados por meio de demisses sem justa causa ou imotivada.17 Situao que no tem sensibilizado os participantes do poder estatal, como se destacou em 14 de fevereiro de 2008, data em que a Conveno 158 da OIT, que trata da garantia de emprego contra a dispensa arbitrria ou sem justa causa, foi novamente encaminhada para ratificao, com forte apoio do movimento sindical, mas no obteve xito. Relega-se a importncia de organizaes como a Organizao Internacional do Trabalho (OIT), e sua inteno em universalizar condies mnimas de justia social, como assevera Sssekind:

    A OIT, desde sua criao em 1919, elegeu o ser humano, especial-mente o trabalhador, como o alvo da sua atividade normativa, visan-do a universalizar a justia social; e, nestes 80 anos de esplndidas realizaes, o homem foi, e continua a ser, o centro dos seus estudos, investigaes, cursos e programas de cooperao tcnica.18

    Tomando como base o Cear, em 2007, hove 8.241 acidentes de trabalho, o que representou um percentual de 38,1% superior s ocorrncias registradas no Estado em 2006, demarcan