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Revista de Formação Político-Pedagógica do SINTESE nº 03 - Sergipe - setembro - 2009 BOAL AUGUSTO Conheça o pai do teatro socialista que encantou o mundo e deu voz aos oprimidos.

Revista Paulo Freire

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1

Revista de Formação

Político-Pedagógica

do SINTESE

nº 03 - Sergipe - setembro - 2009

BOALAUGUSTO

Conheça o pai do teatro socialista que encantou o mundo e deu voz aos oprimidos.

Page 2: Revista Paulo Freire

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Page 3: Revista Paulo Freire

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xou para a educação, professores e

alunos. Vale a pena ler com cuidado

e atenção o texto da professora He-

len Sarapeck, além de uma entrevista

esclarecedora. Leia também o texto

“O lápis cor de rosa”, do arte-educa-

dor Cláudio Rocha.

A revista ainda traz dois textos

fundamentais do ator e psicólogo

Aldo Melo que apresenta as condi-

ções fundamentais para entender

a lógica do teatro do oprimido.

Aldo e Helen Fontes são os faci-

litadores de um projeto fantástico

do Sintese – o Palco na Luta, onde

filiados ao sindicato se aventuram

na mágica experiência do teatro do

oprimido.

Chamo atenção para a leitura

da árvore do teatro do oprimido

nas duas páginas centrais da revis-

ta e um texto escrito pelo próprio

Augusto Boal sobre “Aprendemos

a Aprender”, onde ele fez várias

referências ao método do profes-

sor Paulo Freire. “Paulo Freire

ajuda o cidadão a descobrir, por

si, o que traz dentro de si”, escreve

Boal.

Esta terceira edição só se tor-

nou possível pela compreensão

do seu papel da História do Sintese,

de sua direção, filiados e funcionários,

mas também da importante e vital co-

laboração dos integrantes do Centro

de Teatro do Oprimido, localizado no

Rio de Janeiro, que colaboraram

decisivamente para esta edição.

Vale registrar o apoio de Ney

Motta, da assessoria de Comuni-

cação do CTO, de Aldo Rezende

Melo e Helen Fontes, aqui de Ser-

gipe, e de Helen Sarapeck, Bár-

bara Santos, Geo Britto, Cláudio

Rocha, e tantos outros que foram

fundamentais nesse projeto.

Agora, reafirmo o convite à leitu-

ra, reflexão e ação.

José Cristian Góes

Editor da Revista Paulo Freire

A terceira edição da revista Paulo

Freire não é apenas para ser lida, mas

debatida, comentada, refeita sempre,

interpretada, como pedia o mestre

Augusto Boal, o maior dos maiores

do teatro do povo.

Na madrugada do dia 2 de maio

deste ano, Boal nos deixou, mas

certamente já está montando um

grande espetáculo no plano meta-

físico. Como aqui, lá ele deve estar

mexendo com as estruturas mais

profundas.

Nesta edição, os professores

conheceram um pouco da história

fantástica e intensa do engenheiro

químico que mudou a vida dele e de

milhares de pessoas e que continua,

mais firme do que nunca, transfor-

mando o Mundo através dos seus

inúmeros discípulos.

O carioca Boal tem uma impor-

tante tão grande que chegou a ser

reconhecido pela Unesco, este ano,

como embaixador Mundial do Te-

atro. No ano passado ele concorreu

ao Prêmio Nobel da Paz. Boal teve

reconhecimento nacional.

Como instrumento pedagógico

do Sintese, esta revista está focada na

contribuição que Augusto Boal dei-

Não só leia, interprete!primeiras palavras

Revista de Formação Político-Pedagógica do SINTESE

Rua Sílvio Teófilo Guimarães, 70, B. Pereira Lobo

Aracaju/SE Cep. 49052-410. Tel: (79) 2104-9800

José Cristian Góes - Editor (DRT/SE 633)

Diego Oliveira - Coordenação Gráfica(DRT/SE 1094)

Conselho Editorial: Hidelbrando Maia, Joel Almeida,

Neílton Diniz, Alexandrina Luz.

Apoio: Aldo Rezende de Melo, Helen Fontes, Ney

Motta, da assessoria de Comunicação do CTO-Rio

CENTRO DE TEATRO DO OPRIMIDO

Av. Mem de Sá, 31 - Lapa. Rio de Janeiro - RJ • Cep:

20230-150. Tel:(21) 2232-5826 / 2215-0503. site:

www.ctorio.org.br .

[email protected]

Direção Artística:

Augusto Boal

Coordenação Geral:

Helen Sarapeck

Curingas e Elenco: Bárbara Santos,Helen Sarapeck,

Geo Britto, Olivar Bendelak, Claudete Felix, Flávio

Sanctum, Cláudia Simone, Claudio Rocha.

Curingas Comunitários: Marilene Ribeiro, Janna

Salamandra, Alessandro Conceição.

Administração:

Graça Silva

Apoio Administrativo:

Lígia Martins, Walter Gonçalves.

Programação Visual:

Leila Braile

Colaboradores: Roni Valk, Christoph Leucht, Cacha-

lotte Mattos, Kelly Regis, Wellington Leão, Santa Clara.

O Centro de Teatro do Oprimido - CTO – Rio de

Janeiro - é um centro de pesquisa e difusão, que

desenvolve metodologia específica do Teatro

do Oprimido em Laboratórios e em Seminários,

ambos de caráter permanente, para revisão,

experimentação, análise e sistematização de

exercícios, jogos e técnicas teatrais. Nos labora-

tórios e seminários são elaborados e produzidos

projetos sócio-culturais, espetáculos teatrais e

produtos artísticos, tendo como alicerce a Estética

do Oprimido.

onde achar

Boal: vida do teatro ou teatro da vida 04Embaixador do teatro pelo mundo 05O Teatro do Oprimido e as tradições libertadoras I 06

O Teatro do Oprimido e as tradições libertadoras II 07Teatro do Oprimido: um aliado na Educação dos oprimidos 08

SINTESE cria o Palco na Luta 12O lápis de cor rosa 13Centro de Teatro do Oprimido ratifica sua força mundial 14

Teatro e a educação 16

Aprendemos a aprender 18A Árvore do Teatro do Oprimido 10

Esta revista está fo-

cada na contribuição

que Augusto Boal dei-

xou para a educação,

professores e alunos

Page 4: Revista Paulo Freire

4

don Council” - Londres, com

a participação de escritores

como: Lisa Jardine, Tarik Ali,

Paul Heller e advogados dos

Tribunais de Londres; em Bra-

dford, na Câmara Legislativa da

cidade, sobre questões relativas

aos portadores da Síndrome

de Down; na Sala da Comissão

de Justiça do Rathaus (Prefei-

tura) de Munique, com apoio

da Sociedade Paulo Freire.

Em 1999, transforma a

ópera “Carmem” de Bizet em

Sambópera, uma experiên-

cia inovadora que traduziu as

músicas originais para ritmos

genuinamente brasileiros. Car-

mem ficou em temporada no

Centro Cultural Banco do Bra-

sil, no Rio de Janeiro. Em julho

de 2000, estreou em Paris. Em

2001, “La Traviata” é montada

também como Sambópera e

faz circuito no Rio de Janeiro.

Uma de suas últimas pes-

quisas foi a Estética do Opri-

mido, programa de formação

estética que integra experiências

com o som, palavra, imagem e

ética. A Estética do Oprimido

tem por fundamento a crença

de que somos todos melhores

do que pensamos ser, e capa-

zes de fazer mais do que aquilo

que efetivamente realizamos:

todo ser humano é expansivo.

mentos do Teatro-Jornal, o em-

brião do Teatro do Oprimido.

Em fevereiro de 1971, Augusto

Boal é preso, torturado e exilado.

Passando a residir na Argen-

tina, de 1971-1976, dirige o gru-

po “El Machete” de Buenos Ai-

res e monta, de sua autoria, “O

Grande Acordo Internacional

do Tio Patinhas”, “Torquema-

da” (sobre a tortura no Brasil)

e “Revolução na América do

Sul”, iniciando intensas viagens

por toda a América Latina, onde

começa a desenvolver novas

técnicas do “Teatro do Opri-

mido?”: Teatro-Imagem, Tea-

tro-Invisível e Teatro-Fórum.

Em 1976 muda-se para Lis-

boa, onde dirige o grupo “A

Barraca”. Dois anos depois é

convidado para lecionar na Uni-

versité de la Sorbonne-Nouvel-

le. Em Paris, cria o Centre du

Théatre de l´Opprimé-Augusto

Boal, em 1979. Trabalha em

muitos países europeus e de-

senvolve as técnicas intros-

pectivas do Teatro do Opri-

mido: o Arco-Íris do Desejo.

VOLTA AO BRASIL - An-

tes de regressar definitivamen-

te ao Brasil, monta no Rio de

Janeiro “O Corsário do Rei”

(de sua autoria, letras de Chi-

co Buarque, música de Edu

Lobo) e “Fedra” de Racine,

com Fernanda Montenegro.

A convite do então secre-

tário de Educação do Estado

do Rio de Janeiro, professor

Darcy Ribeiro, Boal volta ao

Brasil em 1986 para dirigir a

Fábrica de Teatro Popular. O

Augusto Boal nasce

em 1931, no bairro

da Penha, Rio de

Janeiro. Desde criança escrevia,

ensaiava e montava suas próprias

peças nos encontros de família.

Sua formação em Engenha-

ria Química torna-se paralela

à pesquisa, à criação de tex-

tos teatrais lidos e comentados

por Nelson Rodrigues. Estu-

da na Columbia University

com John Gasner e assiste às

montagens do Actors Studio.

Em 1956, Boal volta ao Bra-

sil a convite de Sábato Magaldi

e Zé Renato para dirigir o Te-

atro de Arena de São Paulo. O

grupo provoca uma revolução

estética no teatro brasileiro nos

anos 50 e 60. Através do Semi-

nário de Dramaturgia, do Labo-

ratório de Interpretação e das

diversas montagens, o Teatro de

Arena contribui vigorosamente

para a criação de uma drama-

turgia genuinamente brasileira.

Prisão, tortura e exílio

A partir 1964, a Ditadura Mi-

litar inicia a perseguição a todos

os indivíduos e grupos de artis-

tas com preocupações sociais e

políticas. Em 1968, vem o AI-5

que aperta ainda mais o cerco.

Em 1970, O Núcleo Dois do

Arena inicia os primeiros experi-

objetivo era tornar a linguagem

teatral acessível a todos, como

estímulo ao diálogo e à trans-

formação da realidade social.

Ainda em 1986, junto com

artistas populares, cria o Centro

de Teatro do Oprimido, para

difundir o Teatro do Oprimido

no Brasil. No CTO, desenvolve

projetos com ONG’s, sindica-

tos, universidades e prefeituras.

AS INCURSÕES NA PO-LÍTICA - Em 1992, candidata-se

e é eleito vereador da cidade do

Rio de Janeiro pelo PT (Partido

dos Trabalhadores), para fazer

Teatro-Fórum e, a partir da

intervenção dos espectadores,

criar projetos de lei: é o Teatro

Legislativo. Após transformar o

espectador em ator com o Te-

atro do Oprimido, Boal trans-

forma o eleitor em legislador.

Utilizando o Teatro como

Política, em Sessões Solenes

Simbólicas, encaminha à Câma-

ra de Vereadores 33 projetos de

lei, dos quais 14 tornam-se leis

municipais, entre 1993 a 1996.

A partir de 1996, fora da Câ-

mara dos Vereadores, Boal e o

CTO seguem na consolidação

do Teatro Legislativo Em 1998,

conseguem o apoio da Fun-

dação Ford, para a criação de

grupos comunitários de Teatro

do Oprimido. Boal também re-

alizou diversas Sessões Solenes

Simbólicas, de Teatro Legislati-

vo, no exterior: no “Great Lon-

Como um engenheiro químico, que des-de criança escrevia e montava peças, tornou-se o maior dos maiores do teatro do povo

Boal: vida do teatro ou teatro da vida

Biografia

Boal no início da carreira

Page 5: Revista Paulo Freire

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2009: Nomeação como Embaixador Mundial do Teatro pela Unesco - 25 de março

2008: Concorreu ao Prêmio Nobel da Paz

2003: Proclamation “ City of New York” Theater of the Oppressed Day - 27 de maio

2003: Título de ECO-CIDADÃO, Prefeitura de Macaé

2001: Doctor Honoris Causa in Literature, University of London, Queen Mary, UK

2000: Montgomery Fellow, Dartmouth College, Hanover, USA

2000: Doctor Honoris Causa in Fine Arts, Worcester State College, USA

2000: Proclamation of the City of Bowling Green, Ohio. USA

1999: HONRA AO MÉRITO, União e Olho Vivo, 1999-12-07

1998: PREMI D´HONOR, Institutet de Teatre, Barcelona, Spain

1998: PREMIO DE HONOR, Instituto de Teatro, Ciudad de Puebla, México

1997: Prix du Mérite, Ministère de la Culture de l Egypt

1997: Lifetime Achievement Award of Americam - As of Theatre in Higher Education

1996: Cultural Medal - Götemborg University

1996: Doctor Honoris Causa - in Human Letters - Nebraska University

1995: The Best Special Presentation - Manchester News -UK

1995: Prix Culturel - Institut Fuer Jugendarbeit - Gauting - Baviera

1995: Outstanding Cultural Contribution, Queensland University of Technology

1994: Medalha Pablo Picasso da Unesco

1994: Prêmio Cultural Award da cidade de Gavle-Suécia

1981: Officier des Arts et des Letras- Condecoração - France

1971: Prêmio Obie Award -Feira Latino Americana de Opinião - Estados Unidos

1967: Prêmio Moliére pela criação do Sistema Coringa, Brasil

1965: Prêmio Moliére Para o espetáculo Mandragora de Maquiavel, Brasil

1962: Prêmio Padre Ventura, melhor diretor do ano, São Paulo, Brasil

lizou projetos exem-

plares: Teatro

do Oprimido

nas Prisões,

Teatro do

Oprimido nas

Escolas, Teatro

do Oprimido

de Ponto a Ponto,

Teatro do Oprimido na

Saúde Mental, Fábrica de Te-

atro Popular Nordeste etc, em todo

território nacional além de Moçambi-

que e Guiné-Bissau, países da África.

Augusto Boal foi autor de

diversas obras literárias

lançadas nos mais diversos

idiomas, além de colecionar um arsenal

extraordinário de prêmios e honrarias.

A principal criação de Augusto Boal, o

Teatro do Oprimido, é hoje uma rea-

lidade mundial, sendo a metodologia

teatral mais conhecida e praticada nos

cinco continentes. Com os sete curin-

gas do Centro de Teatro do Oprimido

(Claudete Félix, Helen Sarapeck, Bárba-

ra Santos, Geo Britto, Olivar Bendelack,

Cláudia Simone e Flávio Sanctum) rea-

Embaixador do teatro pelo mundo

Obras e prêmios

Augusto Boal teve

obras traduzidas para

o inglês, francês e

espanhol Foi nomeado

embaixador mundial

do teatro pela Unesco

e chegou a concorrer

ao Prêmio Nobel da

Paz

Prêmios

•“JaneStipfire” - edição revisada - Civilização

Brasileira - 2003

•“O Teatro como arte marcial” - Garamond

- 2003

•“Hamlet e o filho do padeiro” - Civilização

Brasileira - 2000

•Jogos para atores e não atores - Civiliza-

ção Brasileira - 1999

•Teatro Legislativo Rio de Janeiro: Civiliza-

ção Brasileira, 1996

•Aqui Ninguém é Burro! Rio de Janeiro:

Revan, 1996

•O Suicida com Medo da Morte Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1992

•Duzentos Exercícios e Jogos para Ator e

Não-Ator com Vontade de Dizer Algo atra-

vés do Teatro - Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1991

•O Arco-Iris do Desejo - Rio de Janerio:

Civilização Brasileira, 1990

•Teatro de Augusto Boal 2 São Paulo:

HUCITEC,1986

•Teatro de Augusto Boal 1 São Paulo:

HUCITEC,1986

•O Corsário do Rei Rio de Janeiro: Civiliza-

ção Brasileira, 1986

•Teatro do Oprimido e Outras Poéticas

Políticas- RJ: Civilização Brasileira, 1985

•Stop C’est Magique Rio de Janeiro: Civili-

zação Brasileira, 1980

•Milagre no Brasil Rio de Janeiro: Civiliza-

ção Brasileira, 1979

•Murro em Ponta de Faca São Paulo:

HUCITEC, 1978

•Jane Spitfire Rio de Janeiro: DECRI,1977

•Técnicas Latino-Americanas de Teatro

Popular, São Paulo:HUCITEC, 1975

•Crônicas de Nuestra América, São Paulo:

CODECRI, 1973

•Categorias de Teatro Popular Buenos

Aires:Ediciones CEPE,1972

•Arena conta Tiradentes São Paulo:

Sagarana,1967

Em espanhol

•Categorias de Teatro Popular. Buenos

Aires: Ediciones Cepe,1972.

Em francês

•Théâtre de l’opprimé. Éditions La Décou-

verte , 1996.

•Jeux pour acteurs et non-acteurs. Éditions

François Maspero, 1978.

•Pratique du théâtre de l’opprimé. Centre

d’étude et de diffusion des techniques

actives d’expression, 1983.

•Stop ! c’est magique. Éditions Hachette,

1980.

•Méthode Boal de théâtre et de thérapie.

Éditions Ramsay, 1990.

•L’Arc-en-ciel du désir. Éditions La Décou-

verte , 2002.

Em inglês

•Theatre of the Oppressed. Londres: Pluto

Press,1979.

•Games for Actors and Non-Actors.

London: Routledge, 1992.

•The Rainbow of Desire. London : Routled-

ge, 1995.

Obras

Page 6: Revista Paulo Freire

6

O teatro primordial

nasce da relação do

homem com a ter-

ra, de uma relação orgânica entre

a natureza humana e a biodiversi-

dade de seres que os circundavam.

As festas dionisíacas na Grécia

antiga, os rituais ao estranho deus da

fertilidade, do transe, dos campos, ti-

nham a função simbólica de fecundar

o chão e de celebrar mais um tempo

de colheita, mais um ciclo da terra. Os

ritos dionisíacos presentificavam a força

da transcendência humana, a libertação

da mediocridade e da mortalidade.

Nos complexos rituais de entor-

pecimento pela dança, pelo canto,

pelo vinho, pelo encontro dos cor-

pos em êxtase e entusiasmo, o ser

humano comum, mortal, escravo,

estrangeiro, mulher, rompia as amar-

ras sociais e se permitia a condição

de deus, de ser imortal, de criador.

As aristocracias helênicas alimen-

taram um ódio olímpico pelas festas

dionisíacas. Os deuses do Olím-

pio, representados pelos próprios

aristocratas, enciumavam-se pelo

culto excessivo a um deus campo-

nês, subversivo, obsessivo, anti-lei.

O caráter coletivizante e desper-

sonalizante das festas dionisíacas ofen-

As festas e rituais

dionisíacas da gré-

cia antiga como os

primórdios do teatro

do oprimido

mas teatrais tais como conhecemos

hoje. Nascem também os teatros, ar-

quiteturas destinadas a sacralizar essa

divisão, essa especialização. Nasce a

profissão de ator. (BOAL, 2002: 28).

Na platéia, os espectadores per-

maneciam imobilizados pelos dispo-

sitivos estético-ideológicos que eram

enfaticamente representados no pal-

co. Dentre todos os efeitos trágicos,

a catarse (kátharsis) era o princípio

purificador da vontade de ser divino,

transferido das religiões para os palcos

com o objetivo de neutralizar o entu-

siasmo e o êxtase dos antigos rituais.

Contudo, as tradições dionisíacas

resistiram na marginalidade dos povos

gregos até os nossos tempos. As for-

ças dionisíacas podem ser entendidas

como forças indomáveis, características

de uma subjetividade integrada à natu-

reza. Dos rituais shivaístas indianos, de

bruxaria da Escandinávia, das tribos afri-

canas, indígenas e aborígines, da cultura

popular brasileira, até os recônditos das

teologias libertadoras da igreja católica,

o arquétipo do deus dos campos cons-

pira, celebrando a horizontalidade, a

circularidade e a participação coletiva.

neutralizar as suas forças libertadoras.

Os rituais coletivos e circulares

de integração, cooperatividade e so-

lidariedade foram estrategicamente

atenuados quanto as suas forças ex-

traordinárias. Uma grande parte da

população de todas as categorias so-

ciais era seduzida pela grandiosidade

dos espetáculos apolíneos. O culto ao

deus dos campos tinha sido mascara-

do e revertido. O nome de Dioniso

raramente era lembrado nas peças

trágicas, e, quando lembrado, aparecia

como um deus passivo, enfraquecido,

harmônico aos interesses da cidade.

A circularização e a participação efe-

tiva de todos nos rituais dionisíacos, foi

substituída pela hierarquização e passi-

vidade. Foram construídos espaços ar-

quitetônicos destinados aos espetáculos,

onde se absolutizava a separação entre

palco e platéia: estava criado o abismo

histórico que inventou e separou os

participantes em atores e espectadores.

No inicio, Ator e Espectador co-

existem na mesma pessoa; quando

se separam, quando algumas pessoas

se especializam em atores e outras

em espectadores, aí nascem as for-

dia gravemente a atitude ordinária de

moderação moral, de controle social,

pregada pelas religiões apolíneas.

A Tragédia Grega, assim como o

rádio e a televisão para o homem mo-

derno, foi sem dúvida uma das maio-

res tecnologias de controle ideológico

já inventadas pelas elites dominantes.

As tragédias foram a concretização de

uma política aristocrática de anulação

das forças dionisíacas por meio da

sua cooptação e captura burocrática.

Funda-se o teatro competitivo, co-

ercitivo, financiado pelos benfeitores

da política, mensageiro da moral vi-

gente das elites atenienses. As tragédias

eram festas urbanas, que cultuavam

os deuses olímpicos, mas que se uti-

lizavam do nome do deus (Grandes

Dionisíacas) para atrair a população e

O Teatro do Oprimido e as tradições libertadoras

Para entender I

Por Aldo Rezende de Melo

Quem é quemAs peças de Teatro do Oprimido

podem ser expressas em vários for-

matos, considerando o foco que se

deseja atingir (cultural, pedagógico,

político, terapêutico e, preferencial-

mente, todos integrados):

•Teatro Imagem: são técnicas que permitem aos

integrantes debaterem um problema e pensar sem

o uso das palavras, através de imagens produzidas

pelos seus próprios corpos e/ou por objetos.

•Teatro Fórum: é um jogo dramático dialético no

qual o protagonista, em verdade “co-agonista”(por

sempre sofrer junto com o outros), tem um desejo

vital a ser realizado e não consegue pelas relações

de domínio que lhe são impostas. Nesse formato o

público é transformado em um coletivo que busca al-

ternativas para os problemas apontados, conduzindo

a ação dramática.

•Teatro Legislativo: é uma peça de Teatro-Fórum

na qual as alternativas sugeridas pelo coletivo são

formatadas em projetos de lei e apresentadas nas

câmaras ou assembléias legislativas. Posteriormente,

o coletivo deve acompanhar a tramitação do projeto,

pressionando a sua aprovação e, após aprovado,

fiscalizando a sua implementação.

•Arco-Íris do Desejo: é uma técnica dramática de

funções terapêuticas, desenvolvida para possibilitar

a expressão das opressões que foram introjetadas

pelas relações simbólicas de dominação a serem

trabalhadas.

Page 7: Revista Paulo Freire

7

A cultura dos oprimi-

dos (especialmente

dos ritos dionisíacos)

reproduz e repete a recordação de-

formada e atrofiada de um projeto

originário de liberação e de institu-

cionalização coletiva: na parte mais

secreta, mais codificada e simboliza-

da, os ritos de possessão e de transe,

´contam` um passado de luta contra

a opressão, falam de ´magia negra`

da revolta e do entusiasmo coletivo;

em suma, mediante um discurso in-

direto, indicam tudo aquilo que for-

ma o núcleo de qualquer experiência

revolucionária. (ALTOÉ, 2004: 74).

É dessa tradição revolucionária

que brota, do seio da cultura popu-

lar brasileira, o Teatro do Oprimido.

Criado na década de setenta pelo ati-

vista político-cultural Augusto Boal,

num contexto de resistência aos regi-

mes ditatoriais que violentavam os di-

reitos sociais e impunha uma ordem

bélica, oposta ao ritmo de libertação

e solidariedade dos povos latino-ame-

ricanos, essa modalidade de teatro

serviu de instrumento de luta contra

os aparelhos totalitários e as subjeti-

vidades opressoras que operavam

em todas as dimensões da existência.

Hoje um movimento cultural

ainda em expansão, atuando em

mais de setenta países do mun-

do, o Teatro do Oprimido vem

desapropriando os meios de pro-

dução de bens simbólicos, artísti-

cos, através da popularização des-

ses meios para as comunidades.

Enquanto na linguagem dramáti-

ca herdada da Grécia, o caminho da

perfeição e os valores aristocráticos

O Teatro do Oprimido e as tradições libertadoras

Para entender II No teatro o especta-

dor se transforma em

“espect-ator”. Nele, o

espectador se liberta,

pensa e atua sintonizado

com os anseios coletivos

de seu grupo, de sua

comunidadePor Aldo Rezende de Melosão impostos aos espectadores por

via catártica, na Estética do Opri-

mido o espectador rompe a catarse

e se transforma em “espect-ator”,

transgredindo as fronteiras da repre-

sentatividade dramática e atuando.

O espectador se liberta, pensa e atua

sintonizado com os anseios coletivos

de seu grupo, de sua comunidade.

A metodologia do Teatro do

Oprimido segue dois princípios

fundamentais: o primeiro é de

transformar todos os espectadores

em “espect-atores”, retomando as

origens primordias dos rituais dio-

nisíacos. O segundo princípio é o

de transformar toda “ficção” vivida

nos espaços cênicos, em um ensaio

para a transformação da realidade.

O Teatro do Oprimido é um sis-

tema de exercícios físicos, jogos estéti-

cos, técnicas de imagens e improvisa-

ções especiais, que tem por objetivo

resgatar, desenvolver e redimensio-

nar essa vocação humana, tornando

a atividade teatral um instrumento

eficaz na compreensão e na busca

de soluções para problemas sociais

e interpessoais. (BOAL, 2002:28).

A partir da reflexão sobre his-

tórias comuns vividas no cotidiano,

são descortinadas as relações de

poder e de repressão dos desejos

vitais dos envolvidos. A dramaturgia

é construída a partir desse compar-

tilhamento e constituída no senti-

do de denunciar as relações entre

opressores e oprimidos, propiciando

a libertação da lógica de opressão,

através da produção coletiva de alter-

nativas para os problemas apontados.

O teatro de elite, da burguesia, é

um teatro laico, assim como a pró-

pria classe dos proprietários. Classe

da qual os antigos deuses precisaram

se exilar para que se divinizasse o

Capital e todas as suas expressões

de exploração. Essa teatralidade é

uma obra de arte finalizada, pró-

pria de quem já cristalizou uma

visão de mundo e quer expressá-

la. O teatro burguês é um espetá-

culo asséptico onde a pureza da

arte final não pode se contaminar

pelo público, que deve estar silen-

cioso, domesticado, catártico, para

melhor acumular as mensagens

bancárias transmitidas do palco.

O teatro popular é um teatro

sagrado, de onde nunca foi preciso

alienar o divino. A transcendência,

é, por excelência, a expressão da

criatividade, de uma tradição ad-

vinda dos rituais ancestrais de culto

à terra. A teatralidade popular é

uma arte de infinitos ciclos, de quem

está sempre descobrindo um misté-

rio e celebrando uma nova criação.

Um teatro inacabado, aberto à

transformação, ao diálogo, um ensaio

coletivo, sem público, no qual todos

são criadores espontâneos, um tem-

plo circular onde todos são deuses.

BIBLIOGRAFIA

ALTOÉ, S. (org.). (2004). René Lourau: analista insti-

tucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec.

ARISTÓTELES (1988). A arte poética. Rio de Janeiro:

Ediouro Publicações.

BOAL, A. (2006). Jogos para atores e não-atores. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira.

___. (2002). O arco-íris do desejo: método Boal de

teatro e terapia. 2a Ed. Rio de Janeiro: Civilização

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___. (1991). Teatro do Oprimido e outras poéticas

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dia na Grécia Antiga. São Paulo: Ed. Perspectiva.

Page 8: Revista Paulo Freire

8

vez, são entregues à sorte e absorvem

o que o estômago vazio consegue.

A falta de estrutura somada a falta de

pedagogia e a falta de interesse político,

produzem uma escola falida. Uma esco-

la produtora de meros consumidores.

Meros receptores. Meros espectadores.

O massacre que impede a desco-

berta e o desenvolvimento de um ser

criativo e autoconfiante acontece em

exemplos diários que passam desper-

cebidos. Em minha vida existe um me-

nino chamado Pedro, que um dia me

convidou para pintar. No livro de pin-

turas havia duas silhuetas: uma menina

e um menino. Ele pinta a menina e su-

gere que eu pinte o menino. Ele pinta

a pele da menina, o cabelo, e, por fim,

pinta a roupa de rosa. Ele me entrega o

lápis azul e diz que o menino deve ser

pintado dessa cor. Eu dispenso o lápis

oferecido e pinto o menino com uma

roupa cheia de bolinhas roxas com

lilás e uma calça amarela. Ele me diz:

Educação é um fenômeno

que acontece em qualquer

sociedade humana e en-

volve os processos de ensinar e apren-

der. Ela é responsável pela manuten-

ção e perpetuação do aprendizado às

gerações futuras. A Educação é a trans-

missão e a recepção do saber existente.

Pedagogia é um processo media-

dor para que a educação seja eficaz.

Ela aponta como vou fazer, de que

forma vou educar, que instrumentos

didáticos devo usar, levando o sujeito

ao questionamento. A Pedagogia busca

a melhoria no processo de aprendi-

zagem, através da reflexão, sistemati-

zação e produção de conhecimento.

Descrições clássicas do enten-

dimento comum sobre a diferença

entre Educação e Pedagogia. Po-

rém, como dizia Boal e bem sabia

Paulo Freire, Educação e Pedago-

gia são complementares, são irmãs.

Portanto, usando da Pedagogia, o

Teatro do Oprimido (TO) deseja edu-

car, mas sem perder de vista o objetivo

maior que deve ser a transformação

social e a construção de uma socie-

dade justa, democrática e igualitária.

Para trabalhar com Educação, espe-

cialmente com a educação formal, foi

preciso primeiramente entender a práti-

ca que ocorre na grande maioria dos es-

paços escolarizados e levar em conside-

ração os problemas que o tema envolve.

Dentre os cinco maiores proble-

mas da educação, descritos por Michel

Aires de Souza em seu recente ensaio,

destaco alguns e acrescento outros,

que em minha opinião, atravancam

e desaceleram o processo educacio-

nal, tornando urgente e necessária a

investida do Teatro do Oprimido.

O primeiro é justamente um pro-

blema pedagógico. Infelizmente, no

geral, a educação que recebemos é au-

toritária. Eu ensino e você aprende. Eu

falo e você copia. Eu faço e você faz.

Não há uma pedagogia para entender

que outra forma de aprendizado po-

deria ser possível ou necessária. Não

há preocupação em desenvolver o in-

divíduo como um ser completo, que

se torne capaz de potencializar suas

próprias habilidades, mas sim embuti-

lo, quase que enlatá-lo em um padrão

pré-estabelecido de ensino, ensinando

o que há para ser ensinado, sem per-

guntas ou novidades. O estudante é

visto verdadeiramente como “aluno”

no seu significado etimológico: sem luz.

Essa realidade é aparente nas

escolas públicas e também parti-

culares. Da educação infantil ao

ensino médio. os bairros empobre-

cidos ou de maior poder aquisitivo.

É uma realidade dura e opressora.

NA POLÍTICA - O segundo,

e não menos importante, é um pro-

blema político. Muitas vezes não há

interesse pedagógico na mudança, na

transformação, na descoberta de uma

nova possibilidade de Educação. A pe-

quena quantidade de escolas e a grande

quantidade de escolas ruins que temos,

é reflexo de um mundo dominado pe-

los interesses das classes dominantes.

Se todo mundo fosse alfabetizado e

tivesse recebido educação formal, quem

seriam os trabalhadores braçais da his-

Teatro do Oprimido: um aliado na Educação dos oprimidos

Teatro e educação

A falta de estrutura so-

mada a falta de pedago-

gia e a falta de interesse

político, produzem uma

escola falida.

* Por Helen Sarapeck

tória da humanidade? Como mantería-

mos o trabalho escravo? Quem seriam

as domésticas, os pedreiros e lavradores

de mãos calejadas em todo o mundo?

A escola reproduz o modelo ca-

pitalista que assola o mundo. Não há

troca de ensinar e aprender ao mesmo

tempo. Há quem ensina o que quiser

e quem aprende o que é possível. O

professor e o estudante. Quem manda

e quem obedece. Na há diálogo. A es-

cola passa a ser uma mera reprodutora

de um sistema que marginaliza e exclui.

O terceiro e crucial problema é

social. Nossas escolas são pobres, os

professores mal pagos e os estudantes

estão famintos. Como manter com

dignidade uma educação pedagógica

em um ambiente assim? Onde, na

maioria dos casos, o objetivo é receber

o fraco salário ou a parca merenda?

A falta de estrutura básica da esco-

la aliada à desvalorização do professor

causa uma falta natural de interesse por

parte dos educadores. Sem espaço e

material didático adequado com um

salário que não garante sua sobrevi-

vência, os professores são obrigados

a acumular empregos e, em consequ-

ência, acumulam cansaço. Acabam

por desenvolver uma educação possí-

vel e não a necessária e devidamente

pedagógica. Os estudantes, por sua

Page 9: Revista Paulo Freire

9

dente de sua formação, tem a capa-

cidade de produzir arte. Todo ser

humano é capaz de escrever uma

poesia, fazer uma pintura, compor

uma música. Todos podemos mui-

to mais do que imaginamos. Essa é a

base da Estética do Oprimido (EO).

Desenvolver a estética dos opri-

midos com os quais trabalhamos era

uma de nossas missões, melhor, era a

maior delas. Além de trabalhar a esté-

tica na criação dos figurinos, cenários

e textos dramatúrgicos com estudan-

tes e professores, estimulamos que

os Multiplicadores desenvolvessem

atividades específicas, dentre as quais

destaco a criação da Bandeira Nacio-

nal na visão de cada participante; a

criação do Ser Humano representante

daquele grupo, a partir do lixo limpo;

a produção de poesias e a criação de

músicas inéditas e seus respectivos

instrumentos feitos de lata, latinha,

latão, balde, garrafa e sacola plástica.

Em um espaço curto de tem-

po, os participantes das oficinas, em

sua maioria crianças e adolescen-

tes, produziram 19 músicas, mais

de 60 poesias, 6 esculturas de seres

humanos e mais de 200 pinturas.

Parte dessa produção foi uma

excelente experiência de processo.

Mesmo quando por fim a arte pro-

duzida não chegava a ser um produ-

to, ou seja, uma obra de arte, que em

nada tem a ver com o artista que a

produz, mas com o efeito que ela - a

obra - produz em quem a vê, o que é

realizado durante o processo artístico

que o artista passa, é fenomenal. É no

processo que ele se revela, se desco-

bre criador e se transforma em artista.

Vimos o processo tão dedicado e

criativo de nossos artistas, crianças de

12, 8, 6 anos!, que chegavam na ofi-

cina muitas vezes sem vontade e sem

esperança, e que depois de 15 minu-

tos apenas, estavam imersos no mate-

rial, absortos com a escolha do papel,

mergulhando os pincéis nas tintas de

seus desejos. As tintas, panos, papéis,

pincéis, brochas, palhetas, sucatas e

crianças se misturavam em um grande

caos criativo. Estavam absortos na cria-

ção. A arte quando verdadeira, em seu

momento de criatividade, enquanto

desperta no ser seus desejos, emoções,

fazendo-o colocar tudo para fora em

cores e traços, não tem controle e não

pode tê-lo. Sem rédeas, cavalgavam

soltos. Chegavam próximo ao delírio

criativo e através dele se deixavam levar.

Os produtos surgidos neste pro-

cesso foram expostos nas escolas e

uma delicada seleção fez parte da ex-

posição do projeto na Casa do CTO,

encantando profissionais da Educa-

ção e, especialmente das Artes, pela

qualidade e sinceridade com que as

pinturas e esculturas transmitiam a

realidade das escolas e comunidades,

e faziam transparecer os desejos e an-

seios dos pequenos humanos artistas.

A Estética do Oprimido, além de

ser apropriada para a escola é urgen-

te. Atividades lúdicas, simples, que

podem ser desenvolvidas em salas

de aula, em curto espaço de tempo e

sem custo. Essas facilidades atraem

“Assim não pode!” Eu me assusto e

pergunto por quê. Rapidamente ele diz

mais uma vez que não pode. Eu retru-

co, e ele afirma “não pode porque não

pode” Eu insisto e cansado, ao mesmo

tempo curioso, ele reponde: “tá bom...

eu deixo” e em seguida começa a ex-

plorar as novas possibilidades de cores

e traços, que descobriu serem possíveis.

Repinta a menina, melhor, redesenha.

Muda as cores, sai do limite dos traços,

avança. Se liberta. Experimenta um

novo mundo possível através da arte.

As escolas ensinam nossas crian-

ças a seguirem regras. Regras de uma

educação moral e preconceituosa que

envolve traços, linhas, cores, movimen-

tos, que transformam nossos corpos

em corpos enrijecidos e nossas cabe-

ças em cabeças que pensam em uma

única direção. Crianças produzidas

para pintar o mundo da cor que lhes

foi ordenada. Mulheres usam rosa e

homens azul. Mulheres lavam roupa e

homens andam de carro. Perdemos a

voz e o desejo. Aprendemos a não ter

opinião. Perdemos a criatividade e a

liberdade. Crescemos seres frustrados.

Essas são razões que apontam

para a necessidade urgente do uso

do Teatro do Oprimido dentro das

escolas. O método precisa ser usado

como suporte pedagógico, instrumen-

to político de transformação e de luta

por melhores condições de ensino.

Aliado à Educação, o Teatro do

Oprimido pode ser usado por profes-

sores, gestores e estudantes, ajudando

a fomentar o diálogo no meio escolar.

O TO não aumenta os salários ou di-

minui a pobreza, mas contribui para

uma educação dialógica, minimizan-

do os efeitos dos problemas sociais,

pedagógicos e políticos na realidade

escolar, ajudando o indivíduo a se tor-

nar protagonista de sua própria vida.

De 2006 a 2007, Boal e o Centro

de Teatro do Oprimido (CTO) desen-

volveram o projeto Teatro do Opri-

mido nas Escolas, em sete municípios

do estado do Rio de Janeiro, usando

o método na promoção do diálogo

através da capacitação de jovens e pro-

fessores de escolas públicas como Mul-

tiplicadores da Estética do Oprimido.

Todo ser humano, indepen-

O Teatro do Oprimi-

do dentro da escola é

instrumento facilitador e

revolucionário que luta

pela verdadeira Educação

Pedagógica como prática

da liberdade.

* Coordenadora Geral, atriz e Curinga

do Centro de Teatro do Oprimido,

especialista e facilitadora do Método.

Trabalhou diretamente com Augusto

Boal desde 1990 até a sua morte, em

2009. [email protected]

professores, estudantes, gestores e co-

munidades, que passam a usar o mé-

todo dentro e fora de suas salas de aula.

A EO é mais que o despertar artísti-

co daquele ser humano. A EO é a forma

dele expressar seu ponto de vista sobre

o mundo. Quando a criança descobre

que a bandeira nacional não representa

o Brasil que temos hoje, e que ela tem

a possibilidade de recriar essa bandeira,

mostrando uma bandeira triste, sem

verde, sem mata, sem paz, ela está redes-

cobrindo a realidade em que vive. Está

refletindo sobre o presente para mudar

seu futuro. Para ampliar suas chances.

Para não ser um analfabeto estético.

O Teatro do Oprimido dentro da

escola é instrumento facilitador e re-

volucionário que luta pela verdadeira

Educação Pedagógica como prática

da liberdade, assim como acredita-

vam Paulo Freire e Augusto Boal.

BIBLIOGRAFIA

Ensaio sobre A Estética do Oprimido – Augusto Boal

Artigo Afinal, qual é o problema da Educação? -

Michel Aires de Souza

O que é Pedagogia? - Paulo Ghiraldelli Jr

A Estética do Oprimido,

além de ser apropriada

para a escola é urgente.

Page 10: Revista Paulo Freire

10

A Árvore do Teatro do OprimidoInfográfico

Depois de exilado pelo regime militar, Boal

se dedicou a pesquisar formas teatrais que

pudessem ser úteis para oprimidos e opri-

midas, criando condições para ultrapassarem o papel de

consumidores de bens culturais e assumirem a condição

de produtores de cultura e de conhecimento. Para tanto,

sistematizou o Teatro do Oprimido, que poderia ser cha-

mado de Teatro do Diálogo que, partindo da encenação

de uma situação real, estimula a troca de experiências en-

tre atores e espectadores, através da intervenção direta na

ação teatral, visando à análise e a compreensão da estrutu-

ra representada e a busca de meios concretos para ações

efetivas que levem à transformação daquela realidade.

Um Método teatral que se baseia no princípio de que o ato

de transformar é transformador. Como diria Boal, aquele

que transforma as palavras em versos transforma-se em po-

eta; aquele que transforma o barro em estátua transforma-se

em escultor; ao transformar as relações sociais e humanas

apresentadas em uma cena de teatro, transforma-se em ci-

dadão. Um Método que busca, através do Diálogo, restituir

aos oprimidos o seu direito à palavra e o seu direito de ser.

Boal sempre insistiu que as técnicas que compõem

o Método do Teatro do Oprimido não surgiram como

invenção individual e sim como consequência de des-

cobertas coletivas, a partir de experiências concretas

que revelaram necessidades objetivas. Cada uma das

técnicas do Teatro do Oprimido representa uma res-

posta encontrada por Boal e pelos colaboradores e co-

laboradoras que acumulou ao longo de sua carreira.

A Árvore foi símbolo escolhido pelo próprio Boal para

representar seu Método, por estar em constante transfor-

mação e ter a capacidade de Multiplicação. A Árvore do

Teatro do Oprimido representa a estrutura pedagógica do

Método que tem ramificações coerentes e interdependen-

tes. Cada técnica que integra o Método é fruto de uma desco-

berta, é uma resposta a uma demanda efetiva da realidade.

ÉTICA E SOLIDARIEDADE

Suas raízes fortes e saudáveis estão

fundadas na Ética e na Solidariedade

e se alimentam dos mais variados

conhecimentos humanos. O solo do

Teatro do Oprimido deve ser fértil,

oferecer o acesso a saberes e base

para criações.

ESTÉTICA DO OPRIMIDO

É a seiva que alimenta a Árvore, desde as

raízes passando pelo tronco, atravessando

galhos e folhas. A Estética do Oprimido tem

por fundamento a crença de que somos todos

melhores do que supomos ser, e capazes de

fazer mais do que aquilo que efetivamente

realizamos: todo ser humano é expansivo.

TEATRO IMAGEM

No Teatro-Imagem, a encenação

baseia-se nas linguagens não-verbais.

Esta técnica teatral transforma ques-

tões, problemas e sentimentos em

imagens concretas. A partir da leitura

da linguagem corporal, busca-se a

compreensão dos fatos representa-

dos na imagem, que é real enquanto

imagem. A imagem é uma realidade

existente sendo, ao mesmo tempo,

a representação de uma realidade

vivenciada.

TEATRO JORNAL

O Teatro-Jornal foi uma resposta estética à censura

imposta, no Brasil, no início dos anos 70, pelos mi-

litares, para escamotearem conteúdos, inventarem

verdades e iludirem. Nesta técnica, encena-se o que

se perdeu nas entrelinhas das notícias censuradas,

criando imagens que revelam silêncios. Criada em

1971, no Teatro de Arena de São Paulo, esta técnica

foi muito utilizada na época da ditadura militar

brasileira, para revelar informações distorcidas

pelos jornais da época, todos sob censura oficial.

Ainda hoje é usada para explicitar as manipulações

utilizadas pelos meios de comunicação.

TEATRO LEGISLATIVO

É o desdobramento do Teatro-Fórum, onde

os espectadores, além de entrarem em cena

e darem suas alternativas, encaminham

sugestões escritas para a criação de propostas

legislativas, as quais são analisadas, sistema-

tizadas, votadas pela platéia e encaminhadas

para os órgãos capazes de darem os devidos

encaminhamentos. A técnica é uma resposta

à necessidade de ir além da encenação teatral

e de provocar Ações Sociais Concretas e Conti-

nuadas na vida real.

Page 11: Revista Paulo Freire

11

A Árvore do Teatro do Oprimido

JOGOS

As centenas de Exercícios e Jogos do arse-

nal do Teatro do Oprimido estão na base

do tronco da Árvore, sendo fundamentais

para o desenvolvimento de todas as

técnicas. Esse vasto arsenal auxilia a des-

mecanização física e intelectual de seus

praticantes, estimulando-os a buscar suas

próprias formas de expressão.

TEATRO FÓRUM

É onde a barreira entre palco e platéia

é destruída e o Diálogo implementado.

Produz-se uma encenação baseada em fa-

tos reais, na qual personagens oprimidos

e opressores entram em conflito, de forma

clara e objetiva, na defesa de seus desejos

e interesses. O confronto incita a busca por

alternativas para o problema encenado.

AÇÕES SOCIAIS CONCRETAS CONTINUADAS

A técnica é uma resposta à necessidade de

ir além da encenação teatral e de provocar

essas ações na vida real. Na Árvore do

Teatro, a ética e a solidariedade são funda-

mentos e guias. A multiplicação, a estratégia.

E a promoção de ações sociais concretas e

continuadas, para a superação de realidades

opressivas, a meta.

TEATRO INVISÍVEL

Se baseia na encenação de uma ação do

cotidiano apresentada no local onde poderia

ter acontecido, sem que se identifique como

evento teatral. Desta forma, os espectadores

são reais participantes, reagindo e opinando

espontaneamente à discussão provocada pela

encenação.

ARCO-ÍRIS DO DESEJO

Também conhecido como Método Boal de

Teatro e Terapia, é um conjunto de técnicas

terapêuticas e teatrais utilizadas no estudo de

casos onde os opressores foram internaliza-

dos, habitando a cabeça de quem vive oprimi-

do pela repercussão dessas idéias e atitudes.

PALAVRA , SOM E IMAGEM

A Estética do Oprimido estimula a descoberta

das possibilidades produtivas e criativas, e da

capacidade de representar a realidade produ-

zindo Palavra, Som e Imagem – promover a

sinestesia artística que impulsiona o autoconhe-

cimento, a auto-estima e a autoconfiança.

Page 12: Revista Paulo Freire

12

serão multiplicadores e o mais interesse é que essa experiência é tão viva e rica que eles dizem que as boas repercus-sões do teatro já são sentidas em suas vidas pessoais, profissionais e política.

Essa formação capacita os professo-res a produzir uma cultura solidária e éti-ca, não só combatendo intelectual e verbal-mente a ideologia da “cachaça, mulher e galha”, mas criando alternativas concretas, lúdicas e culturais. A alternativa para a indús-tria cultural, que produz consumidores são os círculos de cultura, que produzem pro-tagonistas, seja no teatro ou na sala de aula.

Para Aldo, o Sintese é um dina-mizador do futuro e vem mostrando a importância dos formadores não se sedentarizarem nas salas de aula. “Um dia conquistaremos o direito legítimo do cuidado de si, do direito à cultura como processo intrínseco da educação. A arte nos aproxima da realidade dos estudantes e das suas famílias, permite meios mais eficazes de dialogicidade”, disse Aldo.

É isso aí. Boal disse que cidadão não é aquele que vive em sociedade, mas aquele que a transforma. O ser humano se tornará um cidadão íntegro quando contar sua própria história através do seu teatro, da sua rádio e TV comunitá-ria, da sua revista, do seu jornal, da sua fotografia, da sua música. Libertação e autonomia popular se tornam mais vi-áveis e palpáveis a partir dessa trajetória.

de produção teatral”, disse Aldo. São cerca de 35 participantes na turma “Au-gusto Boal”, além de outros tantos terem participado de cursos nas Oficinas Peda-gógicas da Resistência, nos mês de julho.

Como já são professores, muitos já se sentem motivados a aplicar a meto-dologia nas salas de aula, ou criar grupos de teatro na escola. É impressionante a dinâmica cotidiana deles. Muitas vezes trabalham em mais de uma escola para poder ter dignidade material, às vezes não almoçam e não têm tempo para o cuida-do de si, para uma caminhada por exem-plo. O teatro também acaba sendo um momento de cuidado desses cuidadores. Porque a violência que entra pelas portas do fundo da escola adoece o professor, e a violência da falta de políticas públicas que dignifiquem a classe, adoece mais ainda.

Além do ator e psicólogo Aldo, também atua no curso a Helen Fon-tes, multiplicadora que foi formada pelo Centro de Teatro do Oprimido – RJ e que dá oficinas com Aldo desde 2007. “Começamos a trabalhar juntos quando ministrei algumas oficinas em encontros do MST e para dependen-tes químicos e coordenamos juntos o Grupo Humaniza Cena”, lembra Aldo.

O grupo já começou a trabalhar com histórias de opressão realmente vividas pelos professores nas escolas ou nas co-munidades. Está sendo montada uma cena de teatro para debater com a socie-dade. A estréia está marcada para a confe-rência do Sintese em outubro deste ano.

Mudanças - Mas quem pensa que o trabalho do grupo ficará por aí, engana-se. Vários são os projetos. Os professores

força. Depois de uma apresentação da leitura dramática de textos do livro do professor poeta José dos Santos, pelo grupo Humaniza a Cena, coordenado pelo ator e psicólogo Aldo Rezende, resolveu enfrentar um de-safio. Surge assim o Projeto Palco na Luta, para os professores filiados ao Sintese.

A idéia não é fazer teatro pelo teatro. Boal sempre dizia que arte não é adorno, mas poderosa ferramenta de transforma-ção social. As subjetividades opressoras, a grande mídia, tentáculos invisíveis do capi-tal, tudo age através da expressão estética, aprisionando os sentidos com a criação sistemática de espectadores de tudo: da TV, do teatro, do professor, da política.

“O Teatro do Oprimido desenvolve o protagonismo, liberta os nossos sen-tidos, podemos perceber o mundo de forma autônoma, crítica e, principalmen-te, interagindo com ele e o reconstruin-do com inventividade”, garante Aldo.

Para Boal, a quarta parede do te-atro (parede imaginária que separa os artistas da platéia) é tão nociva quanto às paredes que separam as salas de aula da comunidade. “A nossa metodologia em-podera a platéia, que sobe ao palco para dar alternativas para conflitos reais que estejam acontecendo com aquele grupo e empodera a educação quando, através de meios estéticos, traz a família e a comuni-dade para dentro da escola para debater e transformar a sociedade”, justifica Aldo.

O GRUPO - Quinzenalmente o gru-po de professores filiados ao Sintese se reú-ne. O projeto é de um ano, mas certamen-te será renovado. A idéia revolucionária do sindicato é alcançar o maior número de professores com a metodologia. “Quanto mais pessoas puderem fazer teatro, mais pessoas gostarão de teatro. Devemos po-pularizar não peças prontas, mas os meios

Numa palestra em Araca-ju, o economia Márcio Pochmann questionava a

platéia: “quero saber se os sindicatos de hoje estão preocupados em conservar o passado ou assumir o protagonismo do futuro?”. Não dá para responder por todos os sindicatos, mas tem um para o qual essa pergunta fica até sem sentido: o Sintese, um sindicato do seu tempo e que vai muito além dele.

Não obstante a duras e amplas campanhas salariais, por condições de trabalho, de fiscalização e acompanha-mento das políticas públicas na área da educação, o Sintese investe muito em formação em larga escala, não apenas dos seus dirigentes, mas da base, isto é, para todos os seus filiados. Esta ação por si só já é revolucionária nos dias de hoje.

São cursos, seminários, oficinas, conferências, congressos, grupos de estudo, etc, etc, etc. tudo para que os professores possam compreender sua condição de agentes transformadores da realidade. Um dos exemplos mais vivos dessa compreensão estratégica do Sintese é a implantação do Projeto Pal-co de Luta, que vive a experiência de trabalhar o Teatro do Oprimido, criado pelo fantástico mestre Augusto Boal.

COMO COMEÇOU - O namo-ro entre Sintese e o teatro do oprimido vem de longas datas. Em muitas das manifestações públicas do sindicato a metodologia do teatro já se fazia presen-te. A participação ativa de professores, alunos, pais, da população era uma constante. Os calçadões das Laranjeiras e João Pessoa em Aracaju foram tes-temunhas de inúmeras apresentações.

Mas essa diálogo criativo com a so-ciedade ganhou mais corpo quando nas conferências e congressos do sindicato o teatro, nas mesmas perspectivas defendi-das por Augusto Boal, começa a ganhar

SINTESE cria o Palco na Luta

Formação

PALCO DA VIDA

Exercícios teatrais representam ações

cotidianas.

Page 13: Revista Paulo Freire

13

posto por Augusto Boal é uma tentativa de construção de espaços democráticos necessários à Educação e à Pedagogia. Na condução do trabalho de um Curinga (técnico artístico-pedagógico do TO), a pa-lavra democracia é uma palavra de ordem. Todos os procedimentos e processos de construção estética devem perpassar por esse conceito em busca da expressão sin-cera e autônoma do oprimido, que passa a ser produtor ativo e não mais consumi-dor passivo no processo de construção da Estética e do Teatro do Oprimido.

O curinga foi assim chamado por Boal por ser “uma carta que cabe em qualquer jogo do baralho”. Ele faz produção, minis-tra oficinas, dirige a cena de teatro, dialoga com a platéia na sessão do Fórum e deve estar pronto, ou ser capar de estar, para qualquer demanda que surja da sua ativi-dade de construir espetáculos de Teatro.

Boal pregava a necessidade de se democratizar os meios de produção ar-tística ao invés de democratizar a obra de arte. Pensando de maneira análoga na educação, seria então necessário de-mocratizar a Pedagogia, permitindo ao aluno, indicar os caminhos, participar do planejamento, determinar os métodos e procedimentos avaliativos e as metodo-logias utilizadas na busca pedagógica para que enfim, pudéssemos encontrar uma atividade que se aproxime do tão sonha-do conceito de democracia na educação.

Trazer para a sala de aula os princípios do TO é urgente e necessário, pois já não é mais possível continuarmos com o mo-

Sou um professor. Licenciado, a minha ocupação consiste em freqüentar salas de aula e lutar

diariamente contra todo um sistema auto-ritário e manipulador que encaminha as crianças, adolescentes e adultos que freqüen-tam a escola, a um metafórico moedor de carne como se fossem recheio de salsichas.

Atuando em escolas de públicas, onde a educação de crianças e a alfabeti-zação de adultos esta a cargo do pedagogo, a cada dia de trabalho, a cada reunião de equipe, fico cada vez mais preocupado e estarrecido com o que se faz nos cursos de formação de educadores neste país.

Tenho visto professores cometerem atos degradáveis contra os seus alunos, impotentes. O pedagogo, profissional formado nas universidades para o papel de alfabetizar crianças e adultos, tem uma representação simbólica gigantesca para a vida desses estudantes. A sua presença em sala de aula, as suas posturas, as suas falas e, principalmente, as suas escolhas são fun-damentais e decisivas na vida daqueles que estão sob a sua tutela no caminho da cons-trução da consciência política, a cidadania.

Entretanto, é comum verificar nes-tes uma completa falta de consciência política, de consciência do seu papel de cidadão, de formador de opiniões. Claro que não são todos, mas raras são as exceções onde vemos um educador, seja ele pedagogo ou arte-educador, que não traga em si idéias preconceituosas e, pior, que não as propague através dos ensinamentos aos seus alunos, que neces-sitados de uma referência, o segue mansa e pacificamente como bem exigem as normas de bom comportamento escolar.

Boal, abordando os conceitos de Educação e Pedagogia, nos dá uma fun-damental direção no sentido de encontrar-mos respostas, ou as boas perguntas, em relação ao papel do professor numa escola

O lápis de cor rosa

Boal e o papel do professor

* Por Claudio Rocha

* Arte-educador e Curinga

e numa sociedade. Boal, falando sobre a Educação, a Pedagogia e a Cultura diz:

Fica claro então que, ao professor, é ne-cessário, antes de qualquer coisa, ter a clare-za do significado de cada uma dessas duas palavras que substanciam o seu fazer pro-fissional, para que assim evite-se os comuns erros e desmandos que evidenciam o cur-rículo oculto que tem como objetivo maior normalizar os erros e violações aos Diretos Humanos já perpetrados na sociedade.

Conjugar esses sabres em busca de uma prática que seja o mais próximo possível do conceito de democracia (isto levando em conta que esta nunca existiu na história da humanidade) é a grande tarefa do professor.

O Teatro do Oprimido (TO), pro-

BIBLIOGRAFIA

BOAL,A. Educação, Pedagogia e Cultura. In. Metaxis

– Teatro do Oprimido nas Escolas. Centro de Teatro

do Oprimido. Rio de Janeiro, 2007

Certo dia o meu filho não queria ir para a aula, per-guntei o por que e ele me disse que os seus colegas o chamavam de veado na sala de aula. Quando lhe perguntei o motivo, ele me disse que era por que ele quis pintar um desenho com o lápis de cor rosa. Fui à escola, e pedi aos pedagogos que tomassem uma atitude.No dia seguinte, ele continuava sem querer ir à aula. Quando voltei à escola e questionei os pedagogos sobre que atitudes eles haviam tomado no dia anterior, a coordenadora foi enfáti-ca: “Eu mesma peguei o lápis rosa do estojo do seu filho e o quebrei”.

Depoimento de uma mãe so-

bre o seu filho de 5 anos.numa

escola de Salvador - BA.

“Educação significa a transmissão do saber existente. Pedagogia, a busca de novos sa-beres. Essas duas pa-lavras não podem ser dissociadas, porque não podemos aceitar um saber paralítico, imóvel, não-investi-gativo, nem descobri-remos jamais novos saberes sem conhecer os antigos”.

Augusto Boal

delo educacional que temos hoje em dia. Fazer do professor um Curinga, é mais que sobrecarregá-lo de atividades, é libertá-lo do pensamento estreito que o prende na condição de especialista e que coloca sob os seus olhos uma viseira tal qual a que se coloca em cavalos que puxam carroças, com a finalidade de evitar o desvio da aten-ção do seu trabalho para um mundo que o convida à novas experiências, pedagógicas.

Transformar o professor em Curinga seria assim, uma forma de superação da opressão à que é condenado esse profissio-nal que deixa de ver no lápis de cor rosa a possibilidade de abertura para um mundo democrático e que respeita as diferenças.

Page 14: Revista Paulo Freire

14

do grupo “Jana Sanskriti (cultura

popular em Indi) e um dos respon-

sáveis pela criação da Federação In-

diana de Teatro do Oprimido que

congrega cerca de dois milhões de

indianos; e Olivar Bendelak, curin-

ga do CTO, expondo sobre nossa

experiência do Teatro Legislativo.

O trabalho do multiplicador do

tação de diferentes mesas com dife-

rentes temáticas. Na abertura, uma

mesa mostrou a trajetória teatral de

Boal com depoimentos de Rosa

Luiza Marques (Porto Rico), que

pode trabalhar com Boal na Fran-

ça, onde ele criou a técnica Arco-

Íris do Desejo, até o Rio de Janeiro,

quando participou das primeiras

experiências de Boal nos CIEPS

e fechando com Bárbara Santos,

socióloga e curinga³ do CTO, que

chegou até nossa última pesquisa:

A Estética do Oprimido. Nos dias

de 21 a 23 o debate continuou.

Sempre tínhamos mesas intro-

dutórias às temáticas pensadas.

Abrindo com uma

questão fundamen-

tal sobre o que é a

opressão hoje e como

trabalhar com esta te-

mática, Julian Boal do

GTO-Paris (França) e

Carolina Echeverria (Ar-

gentina), expuseram suas

ideias e debateram com a

platéia. Assim, demos pros-

seguimento provocando com

a temática o “Teatro do Opri-

mido como Política”, onde fo-

ram incluídos nossos parceiros

de luta: Evelaine Martinez, do

MST; Sanjoy Ganguly, diretor

diferentes países ou diferentes regi-

ões culturalmente tão distintas con-

tinuem preservando os princípios

éticos, políticos e artísticos do TO?

Na Conferência Internacional

de Teatro do Oprimido realizada

de 20 a 26 de julho de 2009, no Rio

de Janeiro, tivemos a oportunidade

de ter a presença de representantes

de 26 países dos cinco continentes:

Palestina, Sudão, Moçambique,

Angola, Guiné-Bissau, Senegal,

Argentina, Uruguai, Índia, Paquis-

tão, Austrália, Espanha, Portugal,

Canadá, Estados Unidos, Alema-

nha, Holanda, Inglaterra, Escócia,

Irlanda, Israel, França, Itália, Filipi-

nas e Brasil, permitindo o encontro

de praticantes que não se viam há

anos e alguns que nunca se viram, a

troca de experiências entre diferen-

tes culturas e países sobre seus tra-

balhos e a linguagem que tem em

comum: o Teatro do Oprimido.

A ideia foi aprofundar o diálogo

e a sistematização de experiências.

Tivemos espetáculos de grupos

de Guiné-Bissau, Sergipe, Minas

Gerais, Goiás e Rio de Janeiro.

Além do recurso do vídeo que fa-

cilitou assistir trabalhos do Paquis-

tão, Alemanha, Canadá, Inglaterra,

Índia, Espanha e Moçambique.

Mas o foco maior foi à apresen-

O Teatro do Oprimi-

do que é uma meto-

dologia teatral criada

pelo teatrólogo Augusto Boal, dire-

tor do histórico Teatro de Arena

de São Paulo, na década de 60, e

que em 1971 iniciou esta nova for-

ma de ver e praticar a arte teatral.

Nestes mais de 38 anos de his-

tória, multiplicadores do mundo in-

teiro levaram os princípios éticos e

solidários do Teatro do Oprimido,

sempre tendo não o teatro com o

oprimido, mas do oprimido e para

o oprimido, para que juntos, apren-

dendo um com o outro, possamos

transformar o mundo. Como o di-

álogo é antídoto do conflito, o Te-

atro do Oprimido tem sido um im-

portante instrumento de Paz, que

precisa ser conquistada e exercitada

cotidianamente, através de ações

diretas e da superação da passivida-

de. Assim, hoje, no mundo, é difícil

encontrar um país onde não tenha

um grupo de Teatro do Oprimido

ou uma Universidade importante

que não tenha em seu currículo o

estudo de sua prática e teoria. In-

felizmente o Brasil é uma exceção.

Mas como garantir que o Teatro

do Oprimido (TO) aplicado nos

Centro de Teatro do Oprimido ratifica sua força mundial

Teatro do mundo

por Geo Britto*

Livro do Teatro do Oprimido foi

traduzido para vários idiomas

Page 15: Revista Paulo Freire

15

podemos discutir os conceitos

do TO, sua ação, nossas respon-

sabilidades e principalmente seu

futuro. Desses dias, conseguimos

trazer para o Rio de Janeiro um

pedaço de cada local do mundo.

Esse impressionante movimen-

to teatral, que se amplia cada vez

mais e repercute cultural, social e

politicamente, tem no Brasil uma

de suas principais referencias: o

Centro de Teatro do Oprimido

- CTO. A realização da primeira

Conferência Internacional de Tea-

tro do Oprimido, no Rio de Janei-

ro, foi um marco histórico no sen-

tido de lançar as bases estruturais

uma rede Internacional do Teatro

do Oprimido, a partir de um mé-

todo sistematizado pelo brasileiro,

cidadão do mundo, Augusto Boal.

professor da USC-California, fa-

lando sobre sua experiência em

Ruanda; e Geo Britto, coordena-

dor nacional do programa Teatro

do Oprimido na Saúde Mental,

realizado pelo CTO em três es-

tados brasileiros: RJ, SP e SE.

A temática dos Direitos Huma-

nos não poderia faltar, já que o TO

em muitos lugares é considerado

o Teatro dos Direitos Humanos.

Tivemos a mesa introdutória com

o Ministro Paulo Vannuchi, da

Secretaria Especial dos Direi-

tos Humanos e Cecília Coim-

bra, diretora do Grupo Tor-

tura Nunca Mais. Na mesa de

praticantes: Bárbara Santos,

socióloga e curinga do CTO,

falou sobre o projeto Teatro

do Oprimido nas Prisões, re-

alizado em nove estados bra-

sileiros: SP, PE, RS, RO, RN,

PI, ES, DF e MS; Till Bauman

(Alemanha), que trabalha com

jovens neonazistas encarcera-

dos; e Adrian Jackson (Ingla-

terra), do CardBoardCitizens,

grupo de moradores de rua.

A mesa final discutiu as possibi-

lidades de se realizar trabalhos em

áreas de conflito. Na introdutória ti-

vemos a fala de Sergio Andréa, che-

fe de gabinete da Secretaria Estadu-

al de Assistência Social e Direitos

Humanos do RJ, onde falou sobre

seus projetos e principalmente o

“Mulheres da Paz”. Na mesa de

praticantes, um debate muito ins-

tigante entre Edward Muallen (Pa-

lestina), do Grupo Ashtar, mos-

trando o trabalho de multiplicação

neste país tão massacrado; José

Carlos (Guiné-Bissau), com o

trabalho do GTO-Bissau en-

tre militares e a sociedade civil

no mesmo palco; Chen Alon

(Israel), mostrando que um is-

raelense pode e deve lutar ao

lado dos palestinos contra as

injustiças do Governo de Isra-

el; e Justin Billy (Sudão), sobre

o poder no TO num país divi-

dido. Nos dias 24 a 26 aconte-

ceu o Encontro de Praticantes.

Um momento privativo, onde

*¹ Sociólogo, ator e Curinga do

Centro de Teatro do Oprimido,

especialista e facilitador do Méto-

do. Trabalhou diretamente com

Augusto Boal desde 1990 até a

sua morte, em 2009. geobritto@

ctorio.org.br

² Criado por Augusto Boal em

1986, o Centro de Teatro do

Oprimido - CTO se dedica à

pesquisa e ao desenvolvimento

do Método, atuando em todo o

Brasil e apoiando grupos, espe-

cialmente, da América Latina

e da África. Av. Mem de Sá, 31

– Lapa, Rio de Janeiro (21) 2232-

5826 www.ctorio.org.br

³ Especialista e facilitador do

Método.

Teatro do Oprimido não deixa de

ser um trabalho de educador, por

isto a mesa sobre suas relações se

fez fundamental. Com uma mesa

introdutória onde tivemos a pre-

sença de Moacir Gadotti, presiden-

te do Instituto Paulo Freire, Dan

Baron (EUA), diretor do Instituto

Internacional de Teatro - IDEA

e Doug Paterson (EUA), respon-

sável pela organização da PTO-

Conference, que há 15 anos junta

centenas de educadores dos EUA

para debater a relação entre a Peda-

gogia do Oprimido e o Teatro do

Oprimido. Na mesa dos pratican-

tes: Alvim Cossa (Moçambique),

diretor do GTO-Maputo, que hoje

com mais de 180 grupos em todos

os estados deste país usa o TO

no combate a AIDS; Luc Opbe-

ck e Ronald Matheus, sobre suas

experiência na Holanda; e Helen

Sarapeck, coordenadora artística

do CTO fala sobre a experiência

do Centro de Teatro do Oprimido

em escolas da Baixada Fluminense.

No dia seguinte, a temática de

gênero, com uma mesa introdu-

tória com Andréia Rodrigues, da

“Marcha Mundial das Mulheres”

e Jurema Werneck, da entidade

“Criola”. Na mesa de pratican-

tes, um colorido de mulheres:

Muriel Naessens (França); Bir-

git Fritz (Áustria); Zaina Rajá

(Moçambique); Edilta da Silva

(Guiné-Bissau); e Claudete Fe-

lix, curinga do CTO, que falou

sobre a experiência de 10 anos

do grupo de empregadas do-

mésticas “Marias do Brasil”.

Na parte da tarde, na mesa da

saúde mental, tivemos: Geraldi-

ne Ling (Inglaterra), do The La-

wnmowers, grupo de portadores

de dificuldade de aprendizagem;

e Pedro Gabriel Delgado, da Co-

ordenação Nacional de Saúde

Mental do Ministério da Saúde,

falando sobre a implementa-

ção da Reforma Psiquiátrica no

Brasil. Na mesa de praticantes:

Tim Wheler (Inglaterra), dire-

tor do grupo Mind The Gap de

Bradford; Brent Blair (EUA),

Page 16: Revista Paulo Freire

16

de aula, geralmente o método é usado como suporte lúdico para a introdução de alguma atividade ou apoio peda-gógico na discussão de algum tema.

4 – Quais resultados se po-dem esperar da aplicação do Te-atro do Oprimido em salas de aula de escolas da rede pública?

A melhor forma de explicitar o que penso é descrevendo um exemplo ocor-rido durante o desenvolvimento do pro-jeto Teatro do Oprimido nas Escolas.

Lembro de uma cena criada por um multiplicador juntamente com seu grupo de crianças do 6º. Ano do município de Niterói que contava a história de um menino e seu professor.

Ele, assim como seu irmão, eram estudantes da mesma escola, do mes-mo ano e da mesma sala de aula. Ambos tinham em conseqüência, o mesmo professor. Acontece que um deles era dedicado e tímido. Estudava e sempre tirava boas notas. O outro era agitado e extrovertido. Sabia dan-çar, assobiar o canto dos pássaros e até sapatear, mas não conseguia se concentrar nos estudos e com isso era duramente reprimido pelo professor que o comparava sempre a seu irmão: Como podem irmãos tão diferentes? Um é inteligente e o outro mal sabe ler!

A cena era cruel e visivelmente

maior que deve ser a transformação social e a construção de uma socie-dade justa, democrática e igualitária.

2 - Como o Teatro do Oprimido pode ser traba-lhado nas escolas públicas?

De muitas formas distintas. O método pode ser usado pelos

gestores e professores, para facilitar o diálogo e o entendimento das neces-sidades referentes aos profissionais da Educação, bem como com os es-tudantes e comunidade do entorno daquela escola, para facilitar o diálogo e aproximar as partes, colaborando para que a escola seja parte integran-te da comunidade e não um prédio isolado e muitas vezes ocioso fora do horário escolar. A escola deve ser um espaço democrático que contribua com a comunidade onde está inserida.

O Teatro do Oprimido (TO) pode ser usado dentro e fora da sala de aula. No horário escolar ou além dele.

De forma extremamente lúdica, mas igualmente crítica, o TO pode ser um excelente dinamizador em reuniões, um colaborar no desenvol-vimento de qualquer disciplina, bem como um instigador e estimulador no debate de temas tabus, como homos-sexualidade e violência doméstica.

Por exemplo, de 2006 a 2007 o Centro de teatro do Oprimido desen-volveu um projeto Teatro do Opri-mido nas escolas em municípios flu-minenses. A proposta visava capacitar professores e lideranças comunitárias na metodologia para que pudessem usá-la na facilitação do diálogo dentre o corpo escolar e entre ele e a comu-nidade aonde a escola está inserida.

O projeto foi desenvolvido dentro de escolas públicas e os professores passaram a usar o Teatro do Opri-mido com crianças e adolescentes na discussão de temas como descrimina-ção dos professores, desleixo escolar, influência do tráfico na escola, falta de ética, preconceito e relação família/escola. Temas que raras vezes são discutidos dentro da educação formal.

3 – Como um (a) profes-sor (a), seja ele de que dis-ciplina for, pode utilizar o Teatro do Oprimido como ferra-menta pedagógica em sala de aula?

Praticamente todas as técnicas do Teatro do Oprimido podem ser usadas em sala de aula, mas devido a falta de conhecimento da metodologia, aliado ao curto tempo do professor em sala

A escola deve ser um

espaço democrático

que contribua com a

comunidade onde está

inserida.

1 - Que relação a se-nhora faz entre Teatro do Oprimido e educação?

O Teatro do Oprimido (TO) é uma metodologia teatral que se baseia no fato de que somos teatro e isso faz parte de nossa natureza huma-na. O ser humano é o único animal com a capacidade de se ver em ação. Agimos e nos observamos em ação ao mesmo tempo. Essa capacidade nos auxilia no entendimento da realidade e nos possibilita rever nossas ações, dialogar sobre elas e transformá-las.

O TO é um conjunto de jogos e técnicas teatrais que visam resgatar esse potencial humano, tornando-o cons-ciente, para que possamos usar o teatro para rever nossas vidas e opressões.

Quando o indivíduo representa a opressão que vive, além de expurgar um pouco do sofrimento, ele descobre que pode dialogar sobre ele com outras pessoas, na tentativa de descobrir sa-ídas para o problema que vive, e que talvez, muitos vivam assim como ele.

E a idéia dialógica do méto-do criado por Boal é essencial no meio educacional que se encontra massacrado por problemas de or-dem política, social e pedagógica.

O Teatro do Oprimido (TO) é um instrumento pedagógico que pode e deve ser usado na educação. Mais que isso: o TO é urgente na educação, es-pecialmente na educação escolar, que não deve perder de vista o objetivo

Teatro e a educaçãoEntrevista

Helen Sarapeck é coor-denadora geral, atriz e Curinga do Centro de Teatro do Oprimido, especialista e facilitadora do Método. Trabalhou diretamente com Augus-to Boal desde 1990 até a sua morte, em 2009.

Page 17: Revista Paulo Freire

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eu disse: a cena é de vocês. Vocês são quem devem dizer se gostariam que ele visse ou não. E ele, depois de uns breves segundos de reflexão disse: acho que vai ser bom ele ver como ele é.

Esse tipo de coação, opressão e humilhação, infelizmente, é reinci-dente entre pessoas que se julgam educadores. Felizmente, também temos muitos excelentes educadores em nossas escolas, assim como os multiplicadores desta escola em Ni-terói que souberam estimular a refle-xão em seu grupo, colaborando para a construção de uma escola melhor.

O mundo pode e será diferente. De passo em passo, construiremos a realidade utópica de um mundo per-feito, onde a educação tenha espaço privilegiado na vida de nossas crianças.

5 – Quais as mensagens Boal, diante de uma platéia apenas de professores, deixaria para eles?

Não sou capaz de adivinhar. Boal era homem de mui-

tas idéias e falas encantadoras. Prefiro deixar aqui um trecho de

uma texto seu escrito especialmente para os profissionais da educação.

Educar vem do latim Educare, que significa conduzir. Educar signi-fica a transmissão de conhecimentos inquestionáveis ou inquestionados. Significa ensinar o que existe, e que é dado como certo e necessário.

O Teatro do Oprimi-

do é um instrumento

pedagógico que pode

e deve ser usado na

educação.

Praticamente todas

as técnicas do Teatro

do Oprimido podem

ser usadas em sala de

aula.

causava desconforto em quem assistia, especialmente ao ver a menina que re-presentava o professor com uma veraci-dade e voracidade indescritível. A cada ensaio a cena crescia, os atores-estudan-tes ficavam mais fortes, mais seguros.

Então, em um dos ensaios que acompanhamos junto ao multiplicador, conversamos com as crianças sobre a cena, a importância do tema, a discri-minação dentro da escola, a diferença entre os professores. E então um dos meninos presentes, um garoto peque-no pra idade próxima aos 9 anos, levan-tou uma questão: essa cena se passou comigo e sábado agora, vamos apresen-tar na escola. E eu, ignorando a profun-didade da indagação, disse: ótimo. Vai ser muito bom. Todos vão poder ver o trabalho bonito de vocês! Então o me-nino retrucou: esse é que é o problema. O professor vai estar presente. E se ele se descobrir na cena? Se ele vir que o professor da cena é ele mesmo? E Pedagogia vem do grego paidagógós,

que era o escravo que caminhava com o aluno e o ajudava a encontrar o ca-minho da escola e do saber. Educação significa a transmissão do saber existen-te; Pedagogia, a busca de novos saberes.

Essas duas palavras não podem ser dissociadas, porque não podemos aceitar um saber paralítico, imóvel, nem descobriremos jamais novos saberes sem conhecer os antigos.

Educação e Pedagogia são duas irmãs, ao mesmo tempo, mães e filhas da Cultura. Filhas, porque a Cultura

existe e se manifesta através do saber que ensina, e do sa-

ber que busca. Mães, porque através delas nasce uma nova Cultu-ra, sempre em trânsito.

Trânsito para que fu-turo? Surgem então os concei-

tos de Ética e de Moral. Esta, vem do latim mores, que significa

costumes. Qualquer costume, mesmo os mais bárbaros

e odiosos, podem fa-zer parte da Moral de um lugar e de

uma época. A escravidão já foi Moral no Brasil, e os escravos que

lutavam por sua liberdade eram cha-mados de fujões e rebeldes – hoje, sa-bemos que foram heróis e eram sábios.

Nenhuma Moral social, quando anti-ética, pode ser aceita só porque faz parte dos costumes de um infeliz momento. Não podemos aceitar o lati-fúndio e a corrupção, nem a fartura que lida com a fome – estes são males da pátria contra os quais temos que lutar.

Moral refere-se ao passado que so-

brevive no presente. Ética, ao presente que se projeta no futuro: não queremos o Brasil como foi, nem como é, mas como queremos nós que seja? Qual a Ética que nos guia e justifica nossas vidas?

Queremos um Brasil em que todos os brasileiros sejam plenos cidadãos, e sabemos que não se pode ser pleno sem os fundamentos da Educação basilar, sem as audácias da Cultura livre, e sem o diálogo entre as duas.

Page 18: Revista Paulo Freire

18

que sua perna tendia a flutuar. Coisa

estranha! E, num lampejo, gritou -

“Eureka!” Havia descoberto o óbvio:

“Um corpo sólido mergulhado em

um líquido recebe um empuxo de

baixo para cima igual ao peso do vo-

lume de líquido deslocado”. Nada

mais elementar: não eram necessárias

nem a banheira nem a perna de Ar-

quimedes: qual-

massas e inversa do quadrado das dis-

tâncias”. É lógico, límpido e cristalino.

Porque, se assim não fosse, a maçã

não teria jamais caído na cabeça de

Newton: seriam a Terra e Newton que

teriam caído na maçã. Isso, hoje, é fácil

de entender. Mas foi preciso um gênio

para ver o que todos apenas olhavam.

Arquimedes, tomando banho de

banheira, percebeu

Na Babilônia, quase vinte

séculos antes de Jesus

Cristo, um homem

observou uma maçã caída de uma

macieira que rolava por um declive

na ribanceira, e viu o que todos ape-

nas olhavam: a maçã rodava tocando

o solo pela circunferência. Só uma

parte da sua superfície tocava o chão.

O homem se deu conta daquilo que

ninguém antes percebera: para rodar,

a maçã não necessitava ser esférica -

bastaria ser circular. E inventou a roda.

As rodas que vemos rodan-

do pelo mundo, pelos trilhos, pe-

las velozes pistas, pelos mercados,

em casa, na rua, foram inventadas

por um gênio: um homem que

viu o que todos apenas olhavam.

Outra maçã, séculos mais tarde,

caiu bem na cabeça de Newton quan-

do dormia embaixo da árvore. Qual-

quer um de nós teria dado um grito,

feito uma imprecação, dito um pala-

vrão do tamanho da nossa dor física e

do galo na cabeça, teria amaldiçoado

o reino vegetal. Newton, tranqüilo, viu

o óbvio: “A matéria atrai

matéria na razão

direta das

Aprendemos a aprenderAugusto Boal

por Augusto Boal *

Paulo Freire ajuda o cidadão a desco-

brir, por si, o que traz dentro de si.

quer sólido em qualquer línquido. Só

que, antes, ninguém tinha traduzido,

em teoria, a prática das pernas flu-

tuantes. Todos os usuários de todas

as banheiras, piscinas, lagoas, viam

pernas flutuando, cabeças e tron-

cos também, e achavam tudo muito

natural, mas só Arquimedes dedu-

ziu a lei que regia tais fenômenos.

Assim são os gênios: descobrem

ou inventam o óbvio que ninguém vê.

Assim aconteceu com Paulo Freire:

descobriu que o “vovô absolutamente

não viu o ovo”, nem a “vovó viu a ave”,

mas, ao contrário - com certeza certa!

- o pedreiro viu a pedra, a cozinheira o

feijão, e o lavrador a enxada. O operá-

rio e o camponês não viam o salário,

as férias, o direito à escolaridade dos fi-

lhos, à saúde. O trabalhador não via a

hora de descansar. O faminto, a hora

Page 19: Revista Paulo Freire

19

*Teatrólogo, ensaísta e diretor artísti-

co do Centro de Teatro do Oprimido

de 1986 até 2009.

O ato de aprender a ler

é aprender a pensar, e

pensar é uma forma de

ação.

de comer. O povo, a hora da redenção.

O ato de aprender a ler é apren-

der a pensar, e pensar é uma forma de

ação. Assim, apesar de vovôs e vovós

das antigas cartilhas serem dignos de

todo respeito, aves e ovos dignos de

todo cuidado, o camponês precisa

saber como se escreve o nome da foi-

ce com que lavra a terra, o pedreiro

o nome do tijolo com que constrói

a casa, a cozinheira os nomes com

que condimenta o feijão e a farinha.

Desenhando em letras e palavras

a dor que o pobre sentia na carne, -

mas sem esquecer os desenhos do

sonho e da esperança! - Paulo Freire

inventou um Método, o seu, o nosso,

o Método que ensina ao analfabeto

que ele é perfeitamente alfabetizado

nas linguagens da vida, do trabalho,

do sofrimento, da luta, e só lhe falta

aprender a traduzir em traços, no

papel, aquilo que já sabe e vive no

seu cotidiano. Maiêutico, socrático,

Paulo Freire ajuda o cidadão a des-

cobrir, por si, o que traz dentro de si.

E, neste processo, aprendem o

professor e o aluno: “A um campo-

nês ensinei como se escreve a palavra

arado; e ele me ensinou como usá-lo!”

- disse um professor rural. Só é pos-

sível ensinar alguma coisa a alguém

quando esse alguém, a nós, alguma

coisa ensina. O ensino é um proces-

so transitivo - diz o nosso Mestre – é

um diálogo, como deveriam ser diá-

logos todas as relações humanas: ho-

mens e mulheres, negros e brancos,

classes e classes, países e países. Mas

sabemos que esses diálogos - se não

forem carinhosamente cuidados ou

energicamente exigidos - bem cedo

se transformam em monólogos, onde

apenas um dos interlocutores tem di-

reito a palavra: um gênero, uma clas-

se, uma raça, um país. Os outros são

reduzidos ao silêncio, à obediência:

são os Oprimidos. Esse é o conceito

Paulo-Freiriano de opressão: o diálo-

go que se transforma em monólogo.

O Rei Afonso VI da Espanha teria

dito certa vez: “Se Deus tivesse pedido

a minha opinião antes de criar o mun-

do, eu teria aconselhado alguma coisa

bem mais simples, descomplicada”.

Paulo Freire, de certa forma, descom-

plicou o ensino. Embora Deus nada

lhe tenha perguntado - isto, é o que

consta oficialmente, mas no íntimo

estou convencido de que perguntou

sim, porque eles conversavam muito! -

Paulo criou alguma coisa mais simples,

mais humana do que as complicadas

formas autoritárias de ensino que

obstaculizavam o aprendizado.

Com Paulo Freire aprendemos a

aprender. Com o seu Método, além

de se aprender a ler e a escrever,

aprende-se mais: aprende-se a conhe-

cer e respeitar a alteridade, o outro, o

diferente. Meu semelhante a mim se

assemelha, mas não sou eu; a mim se

assemelha: com ele me pareço. Dialo-

gando aprendemos, ganhamos os dois,

o professor e o aluno, pois que alunos

somos todos, e professores também.

Existo porque existem. Minha iden-

tidade sou eu e são os outros. Para

que se escreva em uma página branca

é necessário um lápis negro; para

que se escreva em um quadro negro

é necessário que o giz tenha outra cor.

Para que eu seja, é preciso que sejam.

Para que eu exista é preciso que

Paulo Freire exista. Esta homenagem

nos mostra que, em cada um de nós,

um pouco dele existe - existe e cresce.

Onze anos atrás, em Omaha,

Nebraska, nos Estados Unidos, lá foi

a primeira e única vez em que eu e

Paulo Freire nos encontramos lado a

lado na mesma mesa, em um grande

teatro local, respondendo às mesmas

perguntas de mais de mil professores

e especialistas que lá estavam parti-

cipando da Conferência anual que

desde 1993 se realiza naquele país:

Pedagogia e Teatro do Oprimido.

Depois de duas horas de conversa,

estava com a palavra Paulo Freire

quando a desajeitada coordenadora

da mesa anunciou, vacilante e buro-

crática, que o seu tempo estava esgo-

tado. Paulo respondeu: “O meu tem-

po pode estar esgotado, mas o meu

pensamento não: eu vou continuar”.

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