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RAÍZES JURÍDICAS V.6 N.2 Revista do Curso de Direito e da Pós-Graduação Revista do curso de Direito e da Pós-Graduação HOMENAGEM AO CENTENÁRIO DE MIGUEL REALE VOLUME 6 NÚMERO 2 JULHO-DEZEMBRO 2010 JURÍDICAS Raízes

Revista Raízes Jurídicas

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Revista do Curso de Direito e da Pós-Graduação - Universidade Positivo

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VOLUME 6

NÚMERO 2

JULHO-DEZEMBRO 2010

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Revista do curso de Direito e da Pós-Graduação

HOMENAGEM

AO CENTENÁRIO

DE MIGUEL REALE

VOLUME 6

NÚMERO 2

JULHO-DEZEMBRO 2010

JURÍDICASRaízes

9 7 7 1 8 0 9 5 1 1 0 0 4

ISSN 1809-5119

• Direito Internacional sob a perspectiva do poder social e da coação jurídica em Miguel Reale

• Poder e Direito para Miguel Reale: o Estado Totalitário e o Estado Pluralista

• Diálogo de superação:Kelsen e Reale

• O Estamento Burocrático Brasileiro à luz da Filosofia de Miguel Reale

• Considerações sobre a teoria das fontes do direito em Miguel Reale e Herbert L. A. Hart

• Poder e nomogênese jurídica: bases para uma reflexão do campo jornalístico

• Direito, poder e interpretação: notas críticas sobreMiguel Reale e a função social do contrato no Código Civil

• A relação do abuso do poder econômico e a corrupção à luz do pensamento de Miguel Reale

• Sobre verdade e conjetura e o papel da linguagem na ontognoseologia de Miguel Reale

• O Poder no Positivismo Jurídico e em Reale

• Poder social e coação jurídica:o tridimensionalismo de Reale

• Breves pensamentos sobre Miguel Reale, o tempo e a Física contemporânea

• O poder da mídia e a ambiguidade do Direito Penal: limitação e justificação

Abrão Miguel Árabe Neto

Ana Paula Zavarize Carvalhal

Bruno Garrote Marques

Daniel de Andrade Lévy

Leonardo Passinato e Silva

Lucas Mastellaro Baruzzi

Luís Gustavo Haddad

Marcelo Karam Delbim

Priscila Sissi Lima

Renata Moura Gonçalves

Roberto Biava Júnior

Rui Carlo Dissenha

Victor Nóbrega Luccas

• O método jusfilosófico conjetural: as bases para o progresso da ciência e da filosofia

Guilherme Roman Borges

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010 1

ISSN 1809-5119

Raízes

JURÍDICAS

Revista do curso de Direito da Universidade Positivo

e da Pós-Graduação v. 6, n. 2, jul./dez. 2010

2 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

Rua Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 5.300 Campo Comprido – Curitiba – PR

(41) 3317-3000

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Oriovisto Guimarães

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Coordenação do Curso de Direito

Marcos Alves da Silva (Coordenador) Eros Belin de Moura Cordeiro (Coordenador Adjunto)

Dados internacionais de catalogação na Publicação (CIP)

Biblioteca da Universidade Positivo – Curitiba

IMPRESSO NO BRASIL – PRINTED IN BRAZIL

Raízes Jurídicas/Universidade Positivo. Núcleo de Ciências Humanas e Sociais

Aplicadas. Curso de Direito. – v. 6, n. 2 (jul./dez. 2010) - .– Curitiba, Univer-

sidade Positivo, 2011 –

Periodicidade semestral

ISSN 1809-5119

1. Ciências Humanas – Periódicos. 2. Direito - Periódicos I. Universidade

Positivo. Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Curso de Direito.

CDU 3

34

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010 3

Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas

Curso de Direito

Raízes

JURÍDICAS

Raízes Jurídicas. Curitiba. v. 6, n. 2, jul./dez. 2010

4 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas Curso de Direito

Raízes

JURÍDICAS

Editor Responsável

Guilherme Roman Borges

Conselho Executivo

Alexandre Hellender de Quadros

Érica de Oliveira Hartmann

Guilherme Roman Borges

Marcos Alves da Silva

Rui Dissenha

Silvana Maria Carbonera

Conselho Editorial

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Luiz Edson Fachin (UFPR)

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Raúl Cervini (Uruguai)

René Ariel Dotti (UFPR)

Roberto Wu (UP)

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Silvana Maria Carbonera (UFPR)

Tercio Sampaio Ferraz Júnior (USP)

Projeto Gráfico e Diagramação

Yvana Savedra de Andrade Barreiros

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010 5

Raízes

JURÍDICAS

6 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

ntre os dias 5 e 8 de abril de 2010, teve lugar na Faculdade de Direito

da Universidade de São Paulo o “Seminário Internacional em Homena-

gem ao Centenário de Miguel Reale”, sob organização da Professora

Doutora Elza Antonia Pereira Cunha Boiteux e dos Professores Titulares Ter-

cio Sampaio Ferraz Júnior e Celso Lafer. O evento contou a participação de

ilustres que nesta ordem se apresentaram: Professora Mônica Herman S.

Caggiano (USP), Professor João Grandino Rodas (USP), Professor Antonio Car-

los Magalhães (USP), Professor Tercio Sampaio Jr (USP), Professor Celso Lafer

(USP), Professor Mário Losano (Itália), Professor Ruy Martins Altenfelder Silva

(Presidente da Fundação Nuce e Miguel Reale), Professor Miguel Reale Jr.

(USP), Professor António Braz Teixeira (Lisboa- membro da academia portu-

guesa de Letras), Professora Alaôr Caffé Alves (USP), Professora Maria Cristi-

na e Cicco (Scuola di specializzazzione in Diritto Civile -Camerino Italia),

Professora Judith Martins-Costa (UFRS), Professor Fábio Nusdeo (USP/SP),

Professor Joaquim Carlos Salgado (UFMG), Professor Paulo Ferreira da Cunha

(Portugal), Professor Antonio Anselmo Martino (Argentina/ Itália), Professor

João Maurício Adeodato (UFPE), Professor Newton Carneiro Affonso da Costa

(Usp/Unicamp), Professora Rosangela Lunardelli Cavallazzi (UFRJ/CNPq) e

Professora Marcela Varejão (UEMG).

Este evento corroborou os estudos que estavam sendo desenvolvi-

dos na disciplina de temática homônima desenvolvida no primeiro semes-

tre de 2010 na Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de

São Paulo, também sob organização dos mesmos e ilustres professores.

Neste curso paralelo, intitulado “Direito e Poder: Homenagem ao Centená-

rio de Miguel Reale”, os mestrandos e doutorandos aprofundaram seus

estudos sobre diversos aspectos da obra do Professor Reale, apresentan-

do os seus resultados uns aos outros, sob a forma de debate e sob a for-

ma de um artigo.

E

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010 7

Enquanto o livro era organizado, a professora Elza Boiteux obteve o tí-

tulo de livre-docente, ante banca composta pelos renomada professores

Tércio Sampaio Ferraz Junior (FDUSP), Celso Lafer (FDUSP), Raffaele Degiorgi

(Itália), Joaquim Carlos Salgado (UFMG) e Milton Meira Nascimento (FFLCH-

USP), tornando-se assim, em 13 de maio de 2011, professora associada na

Universidade de São Paulo.

Assim, compilando parte destes artigos, esta coletânea que se segue,

sob coordenação da Professora Associada Elza Antonia Pereira Cunha Boi-

teux (USP) e do Professor Guilherme Roman Borges (UP) representa uma for-

ma de homenagear o renomado Professor Reale, personalidade distinta, que

marcou a jusfilosofia brasileira durante muitos anos, que certamente gravará

o imaginário acadêmico por outros tantos, e que não pode jamais deixar de

ser lido por quem deseja se aprofundar nos fundamentos da teoria do direito

e do pensamento jurídico nacional.

Elza Antonia Pereira Cunha Boiteux Professora Doutora no Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito. Doutora em

Filosofia do Direito pela USP. Mestre em Direito do Estado pela UFSC. Pesquisadora do CNPq

Guilherme Roman Borges Advogado, doutorando e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP; mestre em Sociologia do Direito e bacharel na UFPR, foi bolsista doutoral anual na Sholé Anthropísti-kon kai Koinonikon Epistémon–Tméma Philosophías–Panepstímio Pátron–Elleniké Demokra-

tía (Faculdade de Filosofia da Universidade de Patras-Grécia); professor de Economia e Direito Econômico na Universidade Positivo

Rui Carlo Dissenha Professor de Direitos Humanos e Direito Penal do Curso de Direito da Universidade Positivo

e Coordenador do Grupo de Estudos sobre Tribunais Internacionais, Jurisdições Internacionais e Direito Internacional Criminal

8 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

Direito Internacional sob a perspectiva do poder social e da coação jurídica

em Miguel Reale

Abrão Miguel Árabe Neto ........................................................................ 11

Poder e Direito para Miguel Reale: o Estado Totalitário e o Estado Pluralista

Ana Paula Zavarize Carvalhal .................................................................... 23

Diálogo de superação:Kelsen e Reale

Bruno Garrote Marques ............................................................................ 35

O Estamento Burocrático Brasileiro à luz da Filosofia de Miguel Reale

Daniel de Andrade Lévy ........................................................................... 55

O método jusfilosófico conjetural: as bases para o progresso da ciência e da

filosofia

Guilherme Roman Borges ......................................................................... 69

Considerações sobre a teoria das fontes do direito em Miguel Reale e Herbert

L. A. Hart

Leonardo Passinato e Silva ....................................................................... 79

Poder e nomogênese jurídica: bases para uma reflexão do campo jornalístico

Lucas Mastellaro Baruzzi .......................................................................... 95

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010 9

Direito, poder e interpretação: notas críticas sobreMiguel Reale e a função

social do contrato no Código Civil

Luís Gustavo Haddad ............................................................................. 105

A relação do abuso do poder econômico e a corrupção à luz do pensamento

de Miguel Reale

Marcelo Karam Delbim ........................................................................... 121

Sobre verdade e conjetura e o papel da linguagem na ontognoseologia de

Miguel Reale

Priscila Sissi Lima ................................................................................... 131

O Poder no Positivismo Jurídico e em Reale

Renata Moura Gonçalves ........................................................................ 141

Poder social e coação jurídica:o tridimensionalismo de Reale

Roberto Biava Júnior ............................................................................... 165

Breves pensamentos sobre Miguel Reale, o tempo e a Física contemporânea

Rui Carlo Dissenha ................................................................................. 168

O poder da mídia e a ambiguidade do Direito Penal: limitação e justificação

Victor Nóbrega Luccas............................................................................ 199

10 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010 11

Abrão Miguel Árabe Neto Doutorando em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo

e Mestre em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

O presente trabalho tenciona analisar a concepção de Miguel Reale so-

bre os conceitos de poder social e de coação jurídica, aplicando-os ao con-

texto do Direito Internacional. Em um primeiro momento, procura-se esta-

belecer as bases que permeiam o pensamento realeano sobre o fenômeno da

interação entre direito e poder e sobre a noção de coercibilidade da ordem

jurídica. Em seguida, promove-se uma tentativa de atualizar referidos co-

nhecimentos em face do sistema multilateral de comércio e do mecanismo

de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio. Neste

esforço, busca-se avaliar em que medida as conclusões alcançadas por Reale

são válidas para o Direito Internacional.

Palavras-chave: Miguel Reale - Poder - Sanção - Coação - Coerção -

Direito Internacional - Organização Mundial do Comércio

O complexo relacionamento entre direito e poder aparece como tema

recorrente na obra de Reale, que o examina, sobretudo, sob o ângulo da

estrutura e da função do poder na esfera jurídica. Em uma abordagem estáti-

ca, Reale observa que o fenômeno da nomogênese jurídica resulta da tensão

12 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

dialética entre conjuntos de fatos e valores, culminando com a intervenção

decisória do poder1. Em remissão a sua teoria tridimensional, o filósofo ilus-

tra tal relação a partir da conhecida figura do feixe de valores que, ao incidir

sobre o prisma fático, reflete-se em proposições normativas diversas, uma

das quais é capturada pelo poder para se revestir de validade objetiva e de

força constitutiva de direito novo. Assim sendo, conclui Reale, o poder se

afirma como elemento essencial para a definição do direito, na medida em

que influencia seu conteúdo2.

Importa mencionar que referido processo normativo não resulta de um

ato decisório de pura racionalidade, podendo abranger elementos ilógicos.

Reale Jr. demonstra concretamente como o tratamento enviesado da violên-

cia pela mídia, especialmente em momentos pré-eleitorais, pode influenciar

o conteúdo de leis penais (ex: crimes hediondos), tal como no seqüestro do

empresário Medina, no assassinato da atriz Daniela Perez e no escândalo dos

anticoncepcionais de farinha3. Sem embargo desses motivos pouco razoá-

veis, a norma em si reponta como entidade racional, inclusive porque inseri-

da em um ordenamento jurídico lógico-coerente4.

Na perspectiva realeana, ademais de essencial, a correlação entre direi-

to e poder caracteriza-se por um processo dialético de implicação e polari-

dade5. O direito não pode ser compreendido sem o poder, que lhe assegura

realizabilidade (por meio de ameaça, sanção e coação)6. Por outro lado, o

poder reclama necessariamente o direito, que lhe confere medida e previne

arbitrariedades (violência “razoável”)7. Não à toa, após sua participação deci-

sória, o poder é encapsulado pelo direito, que passa a delimitá-lo.

Por outro lado, a correlação entre direito e poder em sua acepção di-

nâmica é apresentada por Reale como a tendência do poder cada vez mais:

(i) concretizar-se na expressão de uma noção jurídica; (ii) tornar-se objetivo,

despersonalizado e transpessoal; (iii) refletir a integração de círculos sociais

e garantir campos de atuação para indivíduos e grupos; e (iv) assentar-se no

consentimento dos governados. Trata-se, em síntese, da idéia de institucio-

nalização progressiva do poder, que gradualmente se aproximaria do direito,

sendo por ele circunscrito8.

1 REALE, Miguel. O poder na democracia (direito e poder e sua correlação). In: Pluralismo e liberdade. Rio

de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, p. 220-223. 2 Idem, p. 228-229.

3 REALE JR., Miguel. Mundo circundante, mídia e construção do direito. Seminário internacional: homena-

gem ao centenário de Miguel Reale. Universidade de São Paulo, 05/04/2010. 4 REALE, Miguel. O poder na democracia (direito e poder e sua correlação). In: Pluralismo e liberdade. Rio,

p. 228-229. 5 Idem, p. 229-230.

6 FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça

e o direito. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. xiv. 7 Idem, p. 81-83.

8 REALE, Miguel. O poder na democracia (direito e poder e sua correlação). In: Pluralismo e liberdade, cit.,

p. 242.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010 13

As bases teóricas da concepção coercitiva do direito remontam à Tho-

masius (1655 - 1728), que defendeu a separação entre o direito (justum) e a

moral (honestum e decorum). Escorando-se no conceito de jus perfectum, o

pensador alemão restringiu o campo do direito às ações exteriores e inter-

subjetivas que podem se fazer valer pela coação. As normas que não podem

ser afirmadas coercitivamente, fundadas no jus imperfectum, caberiam ao

plano ético ou da consciência. Por conseguinte, o direito se caracterizaria

pela exterioridade e pela possibilidade de coação.

A definição coercitiva do direito foi posteriormente aprofundada por

Kant, que vislumbrou na coação o objetivo de restabelecer a liberdade trans-

gredida pelo ato ilícito. Kant alude à noção de que forças magnéticas do

mesmo pólo se anulam: a não-liberdade (-) do ato ilícito seria neutralizada

pela não-liberdade (-) da coação, reafirmando a liberdade (+) perturbada. O

filósofo afirma a heteronomia do direito, que se satisfaz com a conformidade

exterior da conduta perante a norma jurídica (legalidade extrínseca), sem

perquirir sobre a íntima motivação do sujeito. Em contraposição, a autono-

mia da moral exige absoluta coincidência entre a vontade do indivíduo e o

enunciado da norma ética (conformidade interior). A coação, portanto, está

em sintonia com o direito, mas é incompatível com a moral, posto que vicia

o elemento anímico.

Jhering também contribuiu para o desenvolvimento dessa corrente ao

teorizar sobre a ligação indissociável entre direito e coação. Neste sentido,

emblemática sua alusão à imagem da complementaridade entre a balança e a

espada9. O alicerce do direito estaria no poder coercitivo do Estado, capaz de

subjugar a vontade alheia para garantir a obediência à norma jurídica. Sem a

força, o direito se reduziria a enunciados vazios e ineficazes.

O positivismo jurídico, por seu turno, concretizou a passagem da a-

cepção clássica para a teoria moderna da coação. Hans Kelsen, seu expoente

mais conhecido, conceitua o direito como uma ordem social coativa da con-

duta humana. Segundo ele, o direito prescreve um comportamento social-

mente desejado ao ligar um ato de coerção à conduta oposta (ilícito), aplica-

da mesmo diante da resistência do destinatário, com recurso à forca física

(ex: privação da liberdade, bens econômicos etc.)10. Na perspectiva kelsenia-

na, portanto, o ilícito não se contrapõe ao direito, mas se coloca como seu

pressuposto11. Dessa maneira, o ato coativo deixa de ser mero instrumento

9 JHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. São Paulo: Martin Claret, 2004, p.27.

10 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 35-37.

11 Idem, p. 124-128.

14 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

para a consecução do direito e passa integrar sua essência12. A coação é ab-

sorvida pelo fenômeno jurídico; deixa de habitar o plano externo ao direito

para se tornar elemento intrínseco e necessário de sua estrutura. Sob esta

ótica, em suma, normas jurídicas são imperativos sancionadores13.

Ao se debruçar sobre este vasto corpo doutrinário, Reale salienta a dis-

tinção entre coercitividade e coercibilidade. Segundo ele, a teoria da coerciti-

vidade assimila a coação como elemento inerente ao direito. Por sua vez, a

teoria da coercibilidade vislumbra a coação como possibilidade na esfera

jurídica. Recorrendo aos pressupostos da filosofia aristotélica, Reale contra-

põe à coação in acto (atual) a coação in potentia (virtual)14.

Neste panorama, Reale afirma o direito tão-somente coercível, refu-

tando a teoria da coercitividade. O raciocínio é transparente. Em regra, o

direito seria cumprido de maneira espontânea, prescindindo do uso da força.

Apenas na hipótese de resistência, é que a coação entraria em cena, visando

garantir a eficácia do comando normativo. O direito, portanto, comporta a

possibilidade de coação, mas não a sua certeza. A bilateralidade atributiva

do direito, que liga os sujeitos da relação jurídica por um nexo de polaridade

e implicação, possibilita a exigência da prestação pela vis compulsiva. Em

direção análoga, Bobbio contesta a redução do conceito de sanção jurídica

ao de coação, entendendo a primeira como resposta a uma violação, cujo

cumprimento pode ser garantido pela ameaça da primeira15.

Dentre as principais ponderações opostas por Reale à concepção coer-

citiva do direito está a anterioridade necessária da noção de juridicidade para

se compreender o conceito de coação, o que impede sirva este como pedra

de toque para delimitar o direito. Ademais, Reale aponta para a ineficácia da

coação em assegurar o respeito constante ao direito; para a possibilidade de

sua violação impune; para a ilogicidade do regresso ao infinito de normas

autorizadoras da coação; bem como para a juridicidade do ordenamento

internacional, muito embora fundado no consentimento de seus membros16.

Como consequência, a filosofia realeana promove um retorno renovado

à teoria clássica da coação. Reale identifica em Thomasius uma teoria da

coercibilidade, na qual a coação aparece como elemento possível, mas não

necessário do direito17. Assim, desenvolve tal linha de raciocínio, apresen-

tando objeções às perspectivas de Kant e Jhering, que abordam a coação

12

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006, p. cit., p. 155-157. 13

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 93. 14

REALE, Miguel. Filosofia do direito, cit., p. 680-681. 15

BOBBIO, Norberto. As sanções positivas. In: Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007, p. 28-29. 16

REALE, Miguel. Filosofia do direito, cit., p. 673-679. 17

Idem, p. 654-656.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010 15

como aspecto nuclear do direito. Para Reale, a coação não se traduz em ele-

mento essencial, senão em aspecto extrínseco ao direito. Existiria uma ten-

dência ao recurso da coação, mas esta não estaria inexoravelmente presente

no fenômeno jurídico. Em síntese, a coação se coloca como elemento virtual da

juridicidade, que pode ou não se concretizar.

Considerando a grande atenção que Reale confere ao tema da correla-

ção entre direito e poder, busca-se, a seguir, expor alguns aspectos sobre

como ela se verifica no âmbito do Direito Internacional, com enfoque especi-

al no mecanismo de solução de controvérsias da Organização Mundial do

Comércio – OMC.

No cenário posterior à Segunda Guerra, a regência mundial das rela-

ções comerciais deu-se principalmente pelo Acordo Geral sobre Tarifas e

Comércio – GATT. Concebido em 1947 para ter vigência provisória, o GATT

extrapolou o papel de um mero acordo e, aos poucos, passou a desempe-

nhar com êxito as funções de uma organização internacional de facto. A par-

tir da perspectiva da intervenção do poder no processo de nomogênese jurí-

dica, os acordos internacionais resultam de extensas negociações entre paí-

ses, nas quais as discrepâncias de poder têm peso decisivo no resultado

normativo final. Assim, explica-se porque as regras do GATT refletem, em

grande parte, os interesses dos vencedores da Segunda Guerra que, buscan-

do evitar a vinculação integral a um ente internacional, estabeleceram o di-

reito de veto às decisões e sanções do mecanismo de solução de litígios do

GATT18

.

A atuação do poder dos países mais fortes na gênese das normas in-

ternacionais também pode ser vislumbrada no fortalecimento jurisdicional

do mecanismo de solução de controvérsias da OMC. Com efeito, as limita-

ções estruturais congênitas do GATT, aliadas aos desafios crescentes no in-

tercâmbio entre os países, levaram à gradual necessidade do aprofundamen-

to das regras multilaterais de comércio19

. Em resposta, iniciou-se uma pro-

gressiva reforma, cujo ápice ocorreu com a fundação da OMC, em 1995. A

organização recebeu personalidade jurídica de Direito Internacional e, dentre

outras mudanças, promoveu o incremento das feições jurisdicionais de seu

aparato de solução de conflitos, buscando acomodar: (i) a posição dos Esta-

dos Unidos que desejavam um sistema mais adequado que o do GATT para

18

HUDEC, Robert. Broadening the Scope of Remedies in WTO Dispute Settlement. In: WEISS, Friedl; WIERS, Jochem (Eds.). Improving WTO dispute settlement procedures: issues & lessons from the practice of other international courts and tribunals, Londres: Cameron May, 2000, p. 3. 19

JACKSON, John. H. The jurisprudence of GATT & the WTO: insights on treaty law and economic relations. New York: Cambridge University Press, 2002, p. 119.

16 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

salvaguardar seus interesses e (ii) a intenção de seus principais parceiros em

conter o uso excessivo de sanções unilaterais pelos norte-americanos20

. Re-

correndo a Reale, ambas as “representações jurídicas” foram gradualmente

ganhando corpo até se concretizarem na atual estrutura normativa de solu-

ção de controvérsias da OMC.

Em complemento, a evolução normativa observada pela passagem do

sistema do GATT para o da OMC também revela uma faceta dinâmica do diá-

logo entre direito e poder. A atividade pacificadora dos conflitos de interes-

ses translada-se gradualmente do plano da força bruta para o plano da força

ética, refletindo a jurisfação ou institucionalização progressiva do poder no

cenário internacional – em alusão à Pontes de Miranda, tem-se uma “pro-

gressiva diminuição do quantum despótico” no plano do comércio interna-

cional21. Lafer captura com precisão a mencionada trajetória, descrevendo-a

como um “adensamento de juridicidade” do sistema, exteriorizado, por e-

xemplo, na eliminação do direito de veto, na automaticidade do procedimen-

to e na criação do Órgão de Apelação22

. A intensificação desse viés jurídico

(rule-oriented) limita, por conseguinte, a vertente política como força motriz

da solução de controvérsias:

É precisamente para evitar unilateralismo de interpretação e conter a “auto-ajuda” na aplicação de normas através de represálias ou retalia-ções comerciais que o sistema de solução de controvérsias da OMC foi criado. Foi estruturado como um mecanismo regido por normas, na li-nha grociana, concebidas para “domar” tendências unilaterais impulsio-nadas pela vocação do poder da “razão-de-estado”

23.

Após as breves considerações acima sobre a relação entre direito e po-

der no cenário do sistema multilateral de comércio, passa-se a apreciar co-

mo a teoria da coercibilidade sustentada por Reale se comporta em face do

Direito Internacional e do mecanismo de solução de controvérsias da OMC.

Em largas linhas, a sociedade internacional se encontra disposta de

maneira descentralizada, desprovida de autoridade com poder suficiente

para impor sua vontade ou para substituir a atuação de eventuais violadores

20

CHAYES, Abram; CHAYES; Antonia Handler. The new sovereignty: compliance with international regulatory agreements. Cambridge: Harvard University Press, 1995, p. 101. 21

REALE, Miguel. O poder na democracia (direito e poder e sua correlação). In: Pluralismo e liberdade, cit., p. 231-232; 234-237. 22

LAFER, Celso. A OMC e a regulamentação do comércio internacional: uma visão brasileira, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 29-32. 23

Idem, p. 30.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010 17

de suas regras24. Os Estados – atores tradicionais desse meio – organizam-

se em posição de igualdade formal e em relação de coordenação entre si25

.

Por conseguinte, as obrigações internacionais assentam-se, em última ins-

tância, na expressão prévia – explícita ou implícita – de consentimento do

Estado.

Nesta esteira, coloca-se a questão sobre a juridicidade do ordenamen-

to internacional. Considerando-se que sua gênese histórica está intimamente

ligada à noção de jus imperfectum, os adeptos da teoria da coercitividade

refutam a natureza jurídica da ordem normativa internacional26. Esclarece

Comparato que, se a teoria positivista estivesse correta ao condicionar a e-

xistência de direitos à possibilidade de sua afirmação pela coerção estatal, a

quase totalidade das normas internacionais perderia seu caráter jurídico27.

Reale resgata a juridicidade do direito internacional com lastro na teo-

ria da coercibilidade. Segundo ele, embora fundado no consenso, aludido

direito pode atualizar-se pela possibilidade de coação, como comprovam as

sanções econômicas e guerras de repressão28. Ademais, apesar de entender

o Estado como o detentor por excelência da sanção organizada, Reale reco-

nhece a gradual importância de entes supranacionais, com recursos eficazes

para lograr a obediência de suas decisões29. Neste sentido, o pensamento de

Amaral Jr. parece ser convergente, ao sustentar que a ausência de aparato

coativo organizado não priva a comunidade internacional de meios para

promover o cumprimento de suas normas30

.

A partir do pressuposto de que a ordem internacional é coercível, tam-

bém é possível, em um exercício livre, buscar verificar o status do sistema de

solução de conflitos da OMC. A propósito, observa-se que as regras de paci-

ficação de controvérsias da OMC determinam que, caso não ocorra o cum-

primento espontâneo de uma decisão da entidade, o reclamante (sujeito ati-

vo do conflito) poderá negociar compensação ou impor sanção ao reclama-

do31

. Coloca-se, portanto, a questão de saber se o instituto da sanção é sufi-

ciente para qualificar o mecanismo da OMC como coercível.

24

MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Direito internacional público. 14. ed. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, Vol. I, 2002, p. 53. 25

ROUSSEAU, Charles. De la compatibilité des normes juridiques contradictoires dans l‘ordre international. Revue Générale de Droit International, Paris, v. 39, n.133, 1932, p. 150-151. 26

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 148-155. 27

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. VII ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 73. 28

REALE, Miguel. Filosofia do direito, cit., p. 679-680. 29

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 187. 30

AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Introdução ao direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2008, p. 5-8. 31

Os termos ―retaliação‖ ou ―sanção‖ não são encontrados nos acordos da OMC, que se utilizam da expressão ―suspensão de concessões ou de outras obrigações‖ (Art. 22.2 do ESC). A forma mais usual de sua exteriorização consiste no aumento dos impostos de importação em desfavor de produtos ou serviços provenientes do retaliado, com o objetivo de induzir seu cumprimento.

18 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

Com apoio em Reale, é possível esclarecer que coação é espécie da

qual a sanção é gênero. Esta, por sua vez, compreende medidas tendentes a

assegurar a execução das regras de direito, podendo ser preventivas, repres-

sivas ou premiais (positivas)32. Quando necessário recorrer à força diante da

ausência de cumprimento espontâneo, a sanção assume a forma de coação.

Em outras palavras, a coação é a sanção que se concretiza pelo emprego da

força, mas em conformidade com os lindes do direito33. Dessa forma, a nota

distintiva da coação é o uso legal e comedido da força34.

A normativa da OMC claramente prevê sanções, na concepção realeana

do termo. Ademais, ao autorizar a intromissão do reclamante na esfera de

interesse protegido do reclamado, mediante a privação temporária de seus

direitos35

, nelas também se vislumbram traços de coercibilidade. É claro que

a OMC não chega ao extremo de prever a execução forçada ou a substituição

do sujeito no cumprimento da prestação. Sem embargo, nem por isso suas

sanções perdem o caráter coercível, posto que permitem ao reclamante sus-

pender unilateralmente certas obrigações perante o retaliado, restringindo

seus direitos. Trata-se de coação não no sentido tradicional de sanção-

castigo, mas na acepção de autoridade institucionalizada36.

A tese da coercibilidade no sistema de solução de controvérsias da

OMC ainda é corroborada pela natureza temporária de suas sanções, que

somente devme permanecer em vigor até a integral adequação da conduta

inconsistente. Depreende-se, assim, que a coação tem caráter instrumental,

cujo fim derradeiro é contribuir para a efetivação da decisão, colocando-se

de maneira extrínseca à definição da norma internacional.

O teor coercível da sanção na OMC, bem como a tensão entre direito e

poder em sua atividade de solução de controvérsias, podem tomar feições

mais palpáveis ao se examinar uma caso concreto. Neste sentido, o conten-

cioso dos algodão, mediante o qual o Brasil contestou parte da política de

subsídios agrícolas dos Estados Unidos, pode ser tomado como referência. A

decisão da OMC em favor do Brasil e o seu descumprimento por parte dos

Estados Unidos levou o governo brasileiro a ser autorizado a aplicar sanções.

Neste contexto, a subsequente ameaça brasileira de aumentar o imposto de

importação sobre 105 linhas tarifárias de produtos originários dos Estados

32

As sanções positivas visam fomentar atos socialmente desejáveis por meio de uma ―função promocional‖ do direito. Neste sentido, vide: BOBBIO, Norberto. As sanções positivas e Em direção a uma teoria funcionalista do direito. In: Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007, pp. 23-32 e 53-79. FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Apresentação. In: BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, pp. 7-18. 33

REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 673-674. 34

Segundo Reale, o uso da força encontra limites, afigurando-se, por exemplo, desproporcional e absurda a pena de morte. REALE, Miguel. Pena de morte e mistério. In: O direito como experiência, Ensaio XII, São Paulo: Saraiva, 1968, p. 285-287. 35

AMARAL JÚNIOR, Alberto do. A solução de controvérsias na OMC, cit., p. 110-113. 36

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito, cit., p. 94.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010 19

Unidos37, assim como de suspender a proteção de direitos de propriedade

intelectual desse país38, demonstra claramente o caráter coercível dos ins-

trumentos retaliatórios disponibilizados na normativa da entidade.

Ademais, os efeitos latentes dessa ameaça, que levaram os Estados U-

nidos a celebrarem acordo inédito com o governo brasileiro visando com-

pensar monetariamente os produtores de algodão prejudicados, assim como

buscar ações na direção da adequação de seus subsídios ilegais39, demons-

tram como a relação de poder entre Estados pode ser influenciada pela dis-

ponibilidade da sanção.

Em síntese, pode-se depreender que o sistema de solução de contro-

vérsias da OMC e, em particular, o instituto da sanção, foram capazes de, em

certa medida, neutralizar a ingerência do poder e da superioridade dos Esta-

dos Unidos em face do Brasil, favorecendo o predomínio de soluções jurídi-

cas. Trata-se, em linhas gerais, de reduzir o papel desempenhado pela po-

der, em sua vertente “nua força” (real politik), e fortalecer a contribuição

prestada pelo direito.

O presente estudo permite apreciar a validade de alguns dos principais

elementos do pensamento de Reale aplicados ao contexto do Direito Inter-

nacional e do sistema multilateral de comércio. Neste sentido, a pesquisa

revela como a complexa relação entre poder e direito decifrada pelo filósofo

se replica na progressiva institucionalização do sistema de solução de con-

trovérsias da OMC. Ademais, suas conclusões sobre o caráter coercível do

direito também se mostram acertadas para examinar a estrutura das sanções

previstas na OMC com o objetivo de induzir o cumprimento de suas deci-

sões. Assim, por meio de um breve exercício contemplativo do Direito Inter-

nacional sob a perspectiva de Reale comprova-se a consistência e a atualida-

de de seu pensamento.

37

Disponível em: http://www.mdic.gov.br/sitio/interna/noticia.php?area=1&noticia=9642. Acesso em 18/06/2010. 38

Disponível em: http://www.mdic.gov.br/sitio/interna/noticia.php?area=1&noticia=9657. Acesso em 18/06/2010. 39

Disponível em: http://www.mdic.gov.br/sitio/interna/noticia.php?area=1&noticia=9906. Acesso em 19/06/2010.

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22 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 23

Ana Paula Zavarize Carvalhal Procuradora Assessora da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo –

FAPESP e Professora de Ciência Política do Curso de Direito das Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU. Doutoranda em Direito do Estado, subárea Direito Constitucional, sob a orientação do Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho.Mestre em Ciências Jurídico-

Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Portugal. Especialista em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Este trabalho tem por objetivo analisar as relações entre poder e direito

na obra de Miguel Reale, especialmente no que se refere à formação de Esta-

dos Totalitários e Estados Pluralistas.

Especialmente a partir da década de 60, Miguel Reale deu um novo en-

foque a sua “Teoria Tridimensional”, que passou do campo da estática para o

da dinâmica.1 Nesta teoria, fato, valor e norma estão em uma constante co-

relação temporal dinâmica, onde o fenômeno do poder é responsável por dar

a segurança necessária ao direito.

Celso Lafer explica que, para o professor Miguel Reale, devia-se “pos-

tular uma visão integrada da experiência política e da experiência jurídica”. O

Direito, no tridimensionalismo realiano, é produto da interação dinâmica

entre fatos, valores e normas, sendo a norma o equilíbrio provisório entre

fatos e valores “positivados pela interferência decisória do poder”. 2

1 Nas palavras de Miguel Reale: ―O atual movimento da chamada concreção jurídica, que corresponde à ideia

do direito como experiência, não só reconhece o papel criador do juiz, como aplicador dos preceitos normativos, mas também o valor dos princípios gerais de natureza ético-jurídica (como, por exemplo, os de equidade, boa fé, probidade contratual, due processo f law etc.) respeitados como diretivas e balizas na compreensão das regras jurídicas.‖ REALE, Miguel. ―A dinâmica do Direito numa sociedade em mudança‖, comunicado ao ―Congresso Internacional de Filosofia Social e Jurídica, Sidney e Camberra, Austrália, 1977. 2 Cfr. LAFER, Celso. Entre a norma e a realidade. Entrevista para a Revista Cult em 14 de março de 2010.

24 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

Reale recusa o normativismo puro de Kelsen e o puro decisionismo de

Schmitt3. Para ele, o ponto de conexão entre a teoria jurídica e a política é a

relação entre Direito e Poder. O Poder é o núcleo do fenômeno jurídico. Sem

o papel catalisador do poder, os três elementos (fato, valor e norma) não se

juntam.4

Considerando as co-implicações identificadas por Miguel Reale entre

poder, soberania, direito e estado, este trabalho está dividido em quatro

partes. Primeiro, analisaremos as relações entre Poder e Soberania segundo a

visão do mestre. Numa segunda parte, identificaremos as implicações exis-

tentes entre poder e direito. Na terceira parte, teceremos considerações so-

bre a ligação entre direito e estado. E, por último, explicaremos na quarta

parte como as relações de mútua implicação e polaridade entre poder e di-

reito levam a Estados Totalitários ou a Estados Pluralistas.

Conforme lembra o Professor Tércio Sampaio Ferraz Junior, para os te-

óricos do direito, soberania é “a efetividade da força pela qual as determina-

ções das autoridades são observadas e tornadas de observância incontrastá-

vel”. 5

A noção do poder enquanto soberania surge juntamente com o Estado

moderno, representando “uma tomada de consciência” dos limites do poder

do ponto de vista do jurista.6 Mas, como lembra Tércio, o modo como o po-

der é tratado na teoria da soberania leva à concepção do poder como fonte

do direito. Assim, o poder é visto como poder originário, acima do qual não

há nada capaz de justificar o ordenamento jurídico.7

Para o Professor Miguel Reale, soberania é o poder de dizer o direito

em última instância8. Na noção moderna, a soberania confunde-se com o

3Segundo Celso Lafer, Schmitt, ao afirmar o interesse pela exceção e não pela normalidade no plano do direi-

to, e ao considerar o político a relação amigo/inimigo, é um antípoda de Bobbio. Enquanto Schmitt subordina o Direito à Política, Bobbio busca domesticar o poder através do Direito. Cf. LAFER, Celso. ―Bobbio domes-tica o poder por meio do direito‖, In: Revista Jurídica, Campinas, V. 14, p. 103. 4 Conforme o Professor Tércio explica, ―Nesse sentido a idéia de poder como uma espécie de catalisador: um fator capaz de engendrar a norma jurídica a partir de uma profusão de possibi-lidades normativas.‖ FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do direito. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2009, p. 18. 5 Cfr. FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do direito, p. 8.

6 Cfr. REALE, Miguel. ―Da responsabilidade do poder‖, In: Revista de Direito Público nº 7, p. 8.

7 O Professor Tércio sublinha que ―O poder originário é tratado como fonte das fontes‖. FERRAZ JR, Tercio

Sampaio. Estudos de Filosofia do direito, p. 16. 8 Em sentido contrário, Luigi Ferrajoli sustenta a tese de que há uma antinomia irredutível entre

soberania e direito, ―não apenas no plano do direito interno dos ordenamentos avançados, em que a soberania está em contraste com o paradigma do estado de direito e da sujeição de qualquer poder à lei, mas também no plano do direito internacional‖. FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 3.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 25

poder político como organização9. O poder estatal ou soberania é o poder

político, “poder enquanto força social ordenada unitariamente como expres-

são do querer coletivo de um povo”.10

Reale lembra, ainda, que a Revolução Francesa deixou como conquista

a ideia de que a soberania reside na Nação11. Dessa forma, os representantes

deveriam falar em nome de toda a sociedade e não apenas de seus eleitores.

Sublinha, no entanto, que com o afastamento dos ideais da democracia dire-

ta de Rousseau, os partidos políticos tornaram-se uma ligação artificial entre

o governo e o povo, na medida em que aboliram as corporações.12

Na obra Teoria do Direito e do Estado, Miguel Reale explica que o bem

comum, enquanto ordem social justa, é o fundamento último do Direito e da

Soberania.13 Citando Stuart Mill, lembra que:

“Sem a soberania não estaria assegurada a realização do bem comum ou a justiça social. Em verdade, quando o individualista põe o indivíduo no centro da vida do Direito, como meio e fim da ordem social, fá-lo na certeza de que a satisfação do interesse individual virá coincidir com a plena satisfação do interesse coletivo.”14

No Estado Moderno, o sistema unitário de direito positivo declarado

por uma autoridade reconhecida como autoridade representativa da unidade

nacional integrada (soberania do Estado).15 A unidade do sistema jurídico

estatal sobre os sistemas jurídicos internos é a expressão do primado de um

poder que detém o monopólio da coação juridicamente incondicionada. As-

sim, Miguel Reale explica que:

“Somos de opinião que não é possível que o Direito se positive, ou seja, que uma regra se torne regra de Direito Positivo sem o poder em geral e – se reservarmos a expressão Direito estatal para indicar o grau de plena positividade jurídica – sem a sobera-nia. Esta é uma exigência do bem comum.”16

9 Segundo Caldera, ―Em sua origem o Estado foi, ao menos em teoria, expressão da sociedade jurídica e

politicamente organizada.‖ CALDERA, Alejandro Serrano. Razão, Direito e Poder: reflexões sobre a democracia e a política. Tradução Antonio Sidekum. São Leopoldo: Editora Ijuí, 2005, p. 119. 10

Cfr. REALE, Miguel. ―Da responsabilidade do poder‖, p. 7. 11

Nas palavras do Professor Tércio: ―Ora, foi a substituição do rei pela nação (‗o princípio de toda soberania reside essencialmente na nação – Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, art. 3º), conceito mais abstrato e, portanto, de uma maleabilidade maior, que permitiu a manutenção do caráter uno, indivisível, inalienável e imprescindível da soberania (Constituição Francesa de 1791) em perfeita harmonia com um princípio de divisão dos poderes funcionalmente apto a resolver o problema de um poder judiciário com caracteres próprios e autônomos e com a possibilidade de autação restringida.‖ FERRAZ JR, Tércio Sampaio. ―O judiciário frente à divisão dos poderes: um princípio em decadência?‖, In: Revista Trimestral de Direito Público nº 9/1995, p. 41. 12

Cfr. REALE, Miguel. Obras Políticas (1ª Fase – 1931/1937). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983, p. 77-81. 13

Cfr. REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 109. 14

Cfr. REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado, p. 109. 15

Cfr. REALE, Miguel. Pluralismo e Liberdade. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, p.238-240. 16

Cfr. REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado, p. 110.

26 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

Ao contrário de Bobbio, que entende que direito e poder são as duas

faces17, Miguel Reale sustenta que não dá para falar de direito sem falar de

poder. O jusfilósofo entende que todas as teorias que pretendem tirar do

Direito a idéia de poder18 estão destinadas ao fracasso.19

Esclarece que Poder tem um duplo significado20: auctoritas (soberania)

e força (positivação). Enquanto força21, o poder é um elemento de conexão

no processo de formação do direito: escolha decisória.

Para Miguel Reale, se o poder fosse visto apenas como simples auctori-

tas, recairia no autoritarismo de Hobbes22, para quem a opção do legislador

constituía um ato de escolha unilateral e arbitrária. Salienta que a escolha

decisória do poder no Estado de Direito não é arbitrária, mas ocorre no âm-

bito de um processo axiológico global.

A decisão do poder ocorre no processo nomogenético e representa o

triunfo de um dos caminhos decorrentes do valor perante o fato23. Nas pala-

vras de Miguel Reale:

“A interferência do poder como fator deveras decisivo no processo de positivação objetiva de uma regra de Direito é, em primeiro lugar, uma

17

Nas palavras de Bobbio: ―Uma vez esclarecido que, no âmbito da Teoria Geral do Direito, o campo de referência do poder é a produção e a aplicação de normas jurídicas, disso decorre que norma jurídica e poder podem ser considerados, e de fato o foram mais ou menos conscientemente, como as duas faces de uma mes-ma moeda,, e consequentemente que o problema da relação entre Direito e poder, que é objeto dessas observa-ções, pode ser examinado tanto do ponto de vista da norma quanto do ponto de vista do poder.‖ BOBBIO, Norberto. Direito e Poder. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 195. 18 Segundo Fábio Ulhoa Coelho, ―Um direito será mais ou menos legítimo, neste sentido, na medida em que consiga ocultar as relações de poder subjacentes. Pela ideologia da legitimi-dade, o direito esconde o seu caráter instrumental, parecendo aos olhos de boa parte da socie-dade como um fim, em si justo ou, pelo menos, racional. As relações de poder, em suas evo-luções, podem acabar invertendo essa equação, surpreendendo-se o direito em sua face real. Neste caso, terá perdido a legitimidade, por não ter dissimulado a sua natureza de instrumento de poder.‖ COELHO, Fábio Ulhoa. Direito e Poder. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 109. 19

No entanto, sublinha Ferraz Jr que ―tradicionalmente, o poder não é incorporado pela dogmática jurídica como um elemento básico. Em geral, ele não é desprezado, mas encarado como um fato extrajurídico, o que ocorre não só no direito privado, mas também no direito público, em que a noção é esvaziada por limitadas concepções expostas nas teorias gerais do Estado‖ FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do direito, p. 5. 20

Cfr. REALE, Miguel. Política e Direito: ensaios. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 10. 21

Segundo Bobbio: ―Estabelecer o poder como fundamento último de uma ordem jurídica positiva não significa reduzir o direito à força, mas simplesmente reconhecer que a força é necessária para a realização do direito.‖ BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 227. 22

Segundo o Professor Lafer, ―o direito passa a ser percebido como um instrumento de gestão da sociedade. Daí a associação entre Direito e poder que está na raiz do positivismo jurídico. A sua expressão clássica é Hobbes. É o poder que unifica o significado múltiplo da palavra e diz o que é justo e o que não é justo. Hob-bes entende que a anarquia do Estado de Natureza representa também a anarquia dos significados das palavras e que cabe ao poder unificar o significado da palavra para que haja ordem.‖ LAFER, Celso. ―Entre a norma e a realidade‖. Entrevista para a Revista Cult em 14 de Março de 2010. 23

Nesse sentido, FERRAZ JR, Tércio Sampaio. ―O Problema das lacunas e a filosofia jurídica de Miguel Reale‖, In: Direito, Política, Filosofia, Poesia: Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 276-278.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 27

decorrência da desigualdade natural dos homens e do imperativo de realizar o Direito como proporcionalidade.”24

Para Reale25, as normas jurídicas pressupõem sempre uma atitude de

autoridade que se põe diante dos fatos e os julga, segundo princípios ou

diretrizes axiológicas. Assim, o poder seria “uma condição de atualização

plena do Direito”, sendo “uma exigência do Direito que não pode se erguer

contra o Direito”.

Estado não pode ser identificado normativamente com o direito. Estado

e Direito, para Reale, constituem elementos co-implicados numa relação de

polaridade que os mantém distintos e complementares: “Diga-me o seu con-

ceito de Direito que lhe direi o seu conceito de Estado. A recíproca é também

verdadeira”.26

Segundo Reale, Estado e Direito não são meras configurações normati-

vas exatamente porque há o poder que decide em função dos fins que presi-

dem o ordenamento jurídico, sem o que não haveria legitimidade.27

Em meio à dicotomia entre o Direito Puro e a Sociologia Pura, Reale de-

fende a “doutrina culturalista realista” do Estado e do Direito. 28 Esta doutrina

se apresenta como uma posição de equilíbrio entre o “exagero daqueles que

confundem o Estado com a própria realidade social” e o “exagero daqueles

que fazem abstração da sociedade para só apreciar o mundo jurídico como

um mundo puro de normas”.

A doutrina culturalista defende que o Direito se integre no historicismo

contemporâneo e aplica, no estudo do Estado e do Direito, os princípios fun-

damentais da Axiologia, ou seja, da teoria dos valores em função dos graus

de evolução social. Defende que a concepção tridimensional do Direito e do

Estado evita os erros do formalismo, que só serviu para esquecer o real sig-

nificado ético de todas as determinações jurídicas, e as pretensões dos soci-

ólogos, que procuram transformar o Direito em um capítulo da sociologia. O

culturalismo funcionaira, assim, como a integração do que é e do que deve

ser, exigindo uma compreensão unitária da realidade histórico-social, de

24

Cfr. REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado, p. 111. 25

Cfr. REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado, p. 120. 26

Cfr. REALE. Pluralismo e Liberdade, p. 242. 27

Lembra Luis Fernando Barzotto que, ―Se o Estado Absolutista, tal como aparece nas obras de Maquiavel e Hobbes, tinha na força a sua categoria central, o Estado Liberal, desde Montesquieu, é pensado a partir da lei. No Espírito das Leis, classifica ele os poderes estatais em vista da sua posição no tocante à lei. É a partir do direito, e não da força, que a realidade social é pensada a partir de agora.‖ BARZOTTO, Luis Fernando. O Positivismo Jurídico Contemporâneo. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 15. 28

Cfr. REALE. Pluralismo e Liberdade, p. 254-265.

28 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

maneira que o elemento lógico-formal seja apreciado no sistema de valores

de uma cultura.

Miguel Reale explica que em todo Estado há sempre três elementos

conjugados ou co-implicados, nenhum podendo ser compreendido sem os

outros. O primeiro elemento é o fato de existir uma relação permanente de

Poder, com uma discriminação entre governantes e governados. O segundo,

a existência de um valor em virtude do qual o poder se exerce. E o terceiro, a

existência de um complexo de normas que expressa a mediação do Poder na

atualização dos valores de convivência.

Reale conclui, então, que o Estado é a conjugação desses três fatores

(poder, convivência e ordenamento jurídico) enquanto dialeticamente se

compõem na unidade concreta do processo histórico-social. Conceitua Esta-

do como sendo sociedade juridicamente organizada para a satisfação do

bem comum.29

Reale vê a Teoria do Estado como uma ciência histórico-cultural, cuja

perspectiva tridimensional pressupõe algo na realidade estatal que lhe asse-

gure a complementariedade unitária de seus elementos constitutivos. Esse

algo é o fenômeno do Poder. Poder que não pode ser compreendido pela

perspectiva isolada do jurista, do sociólogo ou do político.

Ao compreender que o poder decide em função dos fins que presidem

o ordenamento jurídico, torna-se possível demonstrar que o poder não é um

fator arbitrário vindo de fora, mas sim um momento da nomogênese jurídica,

sendo que a decisão do poder é tomada em face e em razão de uma multi-

plicidade de valores livremente estabelecidos, como é próprio do Estado de

Direito. Como bem salienta a professora Elza, o direito será sempre uma

técnica orientada por valores.30

Mas o que é poder na nomogênese jurídica? É algo material, é um

quarto fator, é um momento, é uma relação? Reale não responde a esta per-

gunta. No entanto, como sublinha Macedo Jr, para Foucault o poder não de-

signa uma essência, mas uma relação.31 O poder é algo difuso, disperso na

trama social.

As diferentes formas de co-implicação entre direito e poder permitem

a identificação de três tipos fundamentais de institucionalização: Estado To-

29

Cfr. REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado, p. 119. 30

Cfr. BOITEUX, Elza Antonia Pereira Cunha. ―Estado Regulador e Direitos Sociais‖, In: Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano II, Nº 2 e Ano III, Nº 3, 2001-2002, p. 99. 31

Ronaldo Porto Macedo Junior explica que: ―Existem apenas relações de força que constituem situações de poder. Foucault não elabora uma ontologia do poder ou uma análise do poder na sociedade moderna tal como, frequentemente, lhe é imputado (Foucault, 1978, p. 77).‖ MACEDO JR, Ronaldo Porto. ―Foucault: o poder e o direito‖, In: Tempo Social, Revista Social. USP, São Paulo, Volume 1.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 29

talitário, Estado Pluralista Radical e Estado Pluralista Democrático.32 Cada

tipo reflete uma modalidade de ajustamento do poder às forças ou aos inte-

resses dos governantes.

No Estado Totalitário33, o ordenamento jurídico exprime uma totalida-

de de querer correspondente a um objetivo único, seja ele a conquista ou a

preservação dos interesses de uma classe, de uma raça ou de um ideário

nacional. O problema do totalitarismo, portanto, seria que ele reduz o indiví-

duo ao Estado. Como bem demonstra Hannah Arendt:

“A legitimidade totalitária, desafiando a legalidade e pretendendo esta-belecer diretamente o reino da justiça na terra, executa a lei da História ou da Natureza sem convertê-la em critérios de certo e errado que nor-teiem a conduta individual. Aplica a lei diretamente à humanidade, sem atender à conduta dos homens.”34

Segundo Reale, das doutrinas de Hegel e Marx emerge uma forma de

totalitarismo que se explica no fato de ambos terem concebido a pessoa

como ente abstrato, cuja a consciência seria resultante das contribuições da

sociedade civil.35 Também a doutrina de Smend36, conforme aponta o jusfi-

lósofo, descamba para o totalitarismo ao “desconhecer que a integração dos

indivíduos no Estado não pode significar absorção das partes pelo todo”37.

No Estado Pluralista Radical, segundo Reale, o ordenamento jurídico

deveria corresponder permanentemente ao querer popular, às transforma-

ções múltiplas e incessantes operadas na opinião pública, atuando o poder

como mero reflexo das mudanças sociais. O grande problema é que o poder

não atuaria segundo fins e direções próprias.

Já no Estado Pluralista Democrático, o ordenamento jurídico resulta de

um complexo de relações entre as partes e o todo e vice-versa, num sistema

unitário que atende, ao mesmo tempo, ao que há de específico e próprio nos

indivíduos e nas associações, assim como aos valores reconhecidos como

“exigência do todo”, como condição de realização da comunidade concreta.

32

Cfr. REALE, Miguel. Pluralismo e Liberdade, p. 243. 33

O Professor Celso Lafer sublinha que ―o totalitarismo é uma proposta de organização da sociedade que escapa ao bom senso de qualquer critério razoável de Justiça, pois se baseia no pressuposto de que os seres humanos são, e devem ser encarados, como supérfluos‖. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 19. 34

Cfr. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 514. 35

Cfr. REALE, Miguel. Crise do capitalismo e crise do estado. São Paulo: Editora Senac, 2000, p. 65-66. 36

Nas palavras de Kelsen: ―O trabalho de Smend é, em grande parte, apenas uma crítica da assim chamada teoria dominante, isto é, a teoria do Estado do século XIX, classicamente resumida na obra Teoria geral do Estado de Georg Jellinek. Mas Smend nega também a teoria normativa do Estado da Escola de Viena, que, por sua vez, surgiu de uma crítica àquela teoria dominante. A teoria da integração deve ser entendida, portanto, como um antídoto à Escola de Viena.‖ KELSEN, Hans. O Estado como Integração: um confronto de princípios. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 5. 37

Cfr. REALE, Miguel. Pluralismo e Liberdade, p. 243-245.

30 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

Embora reconheça que é possível outras tipificações, Reale destaca que

o que importa assinalar é a essencialidade do conceito de totalidade em fun-

ção do fenômeno da objetivação do direito pelo poder. E traça algumas vi-

sões da totalidade.

Sublinha que aqueles que entendem a totalidade como unidade amorfa

e indiferençada acabam por aniquilar as iniciativas e liberdades particulares,

que se admitem apenas como formas de participação às decisões do todo.

Tem como conseqüência a colocação da problemática jurídica em termos de

amgio-inimigo, a tal ponto que toda e qualquer divergência doutrinária

quanto aos fins do direito e à sua natureza é vista como traição à idéia dire-

tora do Estado.

Há, ao contrário, aqueles que entendem a totalidade como mera resul-

tante de forças múltiplas, conduzindo à concepção anarquizante do poder. É

como se nas instituições existentes já não houvesse uma linha de continui-

dade, um sentido histórico a preservar-se, como se fosse possível atender às

partes sem lhes impor limites essenciais à idéia de coexistência. Tem uma

concepção desagregadora da totalidade. Acabam por perder de vista o cará-

ter pedagógico e direcional do poder e do direito.

Miguel Reale defende a totalidade como unidade prospectiva de ordem

aberta.38 Trata-se de uma concepção dialética e dinâmica, que não conduz à

dissolução das partes no todo, nem encerra as condições de possibilidade do

processo histórico como realização da liberdade. Na totalidade concebida

como unidade prospectiva de ordem ou totalidade aberta, as partes subsis-

tem e, enquanto tais, implicam e legitimam o todo.

Como conclui que não há nada mais contrário a uma compreensão his-

tórica do direito e do estado do que concepções neutras, indiferentes à pro-

blemática dos valores e dos fins, defende a necessidade de se compreender

o Estado Pluralista como aquele que reconhece o sentido objetivo e em si

válido do processo histórico como tal, e, ao mesmo tempo, preserva a posi-

ção autônoma e crítica dos indivíduos em relação ao todo.

Este Estado Pluralista garante a irrenunciabilidade à liberdade originá-

ria e ao poder de crítica dos indivíduos. É, para Reale, a solução política de

cunho realista, que não recusa ao Estado a realização de fins comuns, mas

por outro lado, preserva a força da colaboração positiva e criadora dos indi-

víduos e das associações, sem cuja autonomia o Estado seria uma unidade

amorfa. O poder tem, assim, por finalidade, realizar os fins dos indivíduos na

medida em que estes possam coexistir com os fins gerais que, na relativida-

de de um clico de cultura, marcam a razão de ser da eminênica do poder

soberano.

38

Lafer sublinha que ―Poder e Autoridade são fenómenos plurais – coletivos -, distintos, pela sua natureza, da força, do vigor e da violência, que se colocam no singular.‖ LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos, p. 25.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 31

Assim, o Estado democrático é, necessariamente, um Estado plural39,

próprio das sociedades abertas, fundado no pressuposto da legitimidade dos

múltiplos pontos de vista, no respeito à autonomia e à coexistência pacífica

de diversos e até mesmo antinômicos centros de interesses pessoais. Para

Reale, a democracia é o único regime capaz de realizar, na prática40, as vir-

tudes de livre crítica peculiares ao tipo de cultura que recebeu do cristianis-

mo o valor fundamental do respeito à pessoa humana.

Para Miguel Reale, o homem busca uma ordem social na qual não perca

sua individualidade ao se integrar ao todo. A ordem jurídica reflete essa in-

tegração do indivíduo com o todo, do cidadão com o Estado. Ela ocorre com

a interferência do poder, que não se confunde com a força, “porque a força

se põe por si mesma, ao passo que o poder é a força, posta por uma exigên-

cia ética ou jurídica”41.

Como lembra Celso Lafer, na obra de Reale, o valor primeiro de todos

os valores é a pessoa humana. Essa preponderância da pessoa humana se

traduz na positivação dos direitos humanos, resultado da positivação de um

processo de integração dos modos de convivência coletiva.42

Por tudo, conclui-se que a jurisfação é a juridicidade progressiva de

que se reveste o poder no mundo contemporâneo. É uma maneira de fortale-

cer a importância do Estado de Direito, na qual a norma é uma diretriz de

conduta que requer a interferência decisória do poder. O poder aparece co-

mo uma categoria da realizibilidade do Direito e, portanto, leva ao pluralis-

mo. Assim, nas palavras de Miguel Reale:

“O ordenamento jurídico não é, pois, formado por uma série de normas ideais, em função das quais os fatos vão valorativamente se desenvol-vendo, mas sim uma realidade concreta de três dimensões que desde o início se correlacionam em unidade plural.”43

39

Segundo Hannah Arendt, a política se insere no campo do pensamento plural: ―a sua área de jurisdição não é a do pensamento puro, do diálogo do eu consigo mesmo, mas sim a do diálogo, com os outros com os quais devo chegar a um acordo‖. LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 60. 40

―Na experiência, observa Miguel Reale, está presente o ‗poder-dever‘ de comunicar, pois ninguém experiencia sozinho, mas sim a partir do ‗estar no mundo‘, com Outros. Daí a cultura como processo ontológico de autoconsciência comunicável e transmissível.‖ LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 127. 41

REALE, Miguel. Pluralismo e Liberdade, p. 235. 42

LAFER, Celso. Miguel Reale (1910-2006) – uma homenagem. p. 6. 43

REALE, Miguel. ―Variações sobre o poder‖, In: Política e Direito: ensaios. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 9.

32 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo e

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BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. Tradução Denise Agostinetti; revi-

são da tradução Silvana Cobucci Leite. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes,

2010.

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2008.

CALDERA, Alejandro Serrano. Razão, Direito e Poder: reflexões sobre a de-

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poldo: Nova Harmonia, 2005.

FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do

Estado nacional. Tradução Carlo Coccioli, Márcio Lauria Filho; revisão

da tradução Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: reflexões

sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. 3ª Ed. São Paulo: Edi-

tora Atlas, 2009.

-----. “O problema das lacunas e a filosofia jurídica de Miguel Reale”, In:

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Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. Coordenadores: Celso La-

fer e Tércio Sampaio Ferraz Junior. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 271-

279.

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cia?”, In: Revista Trimestral de Direito Público 9/1995. Editores Malhei-

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KELSEN, Hans. O Estado como integração: um confronto de princípios. Tra-

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LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. 2ª Ed. São

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-----. “Bobbio domestica o poder por meio do direito”, In: Revista Jurídica,

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 33

-----. “Miguel Reale (1910-2006) – uma homenagem”. Revista USP. São

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15.06.2010.

-----. “Entre a norma e a realidade”. Entrevista à Revista Cult publicada em

14 de março de 2010.

REALE, Miguel. Pluralismo e Liberdade. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Expressão e

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-----. Política e Direito: Ensaios. São Paulo: Saraiva, 2006.

-----. Teoria do Direito e do Estado. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

-----. Crise do Capitalismo e Crise do Estado. São Paulo: Editora SENAC,

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-----. Obras Políticas (1ª Fase – 1931/1937). Brasília: Editora da Universida-

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-----. “A Dinâmica do Direito numa Sociedade em Mudança”, Comunicação

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Sidney e Camberra, Austrália, de 14 a 21 de agosto de 1977.

34 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 35

Bruno Garrote Marques Mestrando do departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito FD/USP

O presente artigo possui como objetivo tratar sobre o tema das Fontes

do Direito em Hans Kelsen e em Miguel Reale. O artigo inicia-se com a expo-

sição de algumas idéias básicas de Reale e de Kelsen sobre este tema em

questão. A análise exposta neste trabalho, apesar de se compreender cir-

cunscrita ao âmbito da problemática das fontes do Direito, entende que este

é um núcleo de significações importante e central para se compreender

qualquer pensamento teórico-filosófico sobre o Direito. Ao longo deste arti-

go é feito um cotejo entre os autores, propondo-se, ao final, possíveis supe-

rações destas perspectivas.

Palavras-chave: Reale, Kelsen, fontes do Direito, pluralismo, poder de

obrigar.

The present article aims the matter of the Sources of Law in Hans Kel-

sen and Miguel Reale. The article begins with an exposition of some basic

ideas of Reale and Kelsen on this topic. The analysis contained in this work,

despite its focus at the problem of the Sources of Law, comprehends that

this subject has a core of important and central meanings to understanding

any theoretical and philosophical thought about the Law. Throughout this

article a dialog is made between the authors, suggesting, in the end, a poss-

ible overcoming to these perspectives.

Key-words: Reale, Kelsen, Sources of Law, pluralism, power to obligate.

36 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

Neste presente artigo pretendo desenvolver algumas idéias obtidas da lei-

tura de Hans Kelsen e Miguel Reale no campo da temática Fontes do Direito bem

como, passado este breve cotejo, realizar uma crítica quiçá superante.

Tendo em vista a natureza do trabalho, intentar-se-á tão-somente

uma análise introdutória, mais instigadora do que exaustiva, pretendendo

ser uma pequena contribuição para essas perplexidades e instigantes ques-

tões que costumam aparecer mais na Teoria e Filosofia do Direito do que em

outras áreas1.

Encarando diretamente o tema, trarei algumas idéias de ambos os au-

tores mencionados no intuito de construir uma base para melhor desenvol-

ver as discussões.

Assim sendo, começarei com algumas definições e apontamentos de

Miguel Reale sobre fontes do Direito. Citando Reale:

Por “fonte do direito” designamos os processos ou meios em virtude dos quais as regras jurídicas se positivam com legítima força obrigatória, is-to é, com vigência e eficácia no contexto de uma estrutura normativa. (...) Para que se possa falar, por conseguinte, de “fonte de direito”, isto é, de fonte de regras obrigatórias, dotadas de vigência e de eficácia, é preciso que haja um poder capaz de especificar o conteúdo do devido, para exigir o seu cumprimento, não sendo indispensável que ele mesmo aplique a sanção. É por isso que se diz que o problema das fontes do di-reito se confunde com o das formas de produção de regras de direito vi-gentes e eficazes, podendo ser elas genéricas ou não.

2

Tendo isso em vista, para Reale:

...quatro são as fontes de direito, porque quatro são as formas de poder: o processo legislativo, expressão do Poder Legislativo; a jurisdição, que corresponde ao Poder Judiciário; os usos e costumes jurídicos, que ex-primem o poder social, ou seja, o poder decisório anônimo do povo; e, finalmente, a fonte negocial, expressão do poder negocial ou da auto-nomia da vontade.

3

1 Conforme já percebido por Hart, que constata o fato de os juristas possuírem certas preocupações que não

passam de linhas introdutórias para outras áreas do conhecimento humano: ―Não há uma vasta literatura dedicada a responder às perguntas ‗O que é a química?‘ ou ‗O que é a medicina?‘, como ocorre com a questão ‗O que é o direito?‘. (...) Nunca se considerou esclarecedor ou importante insistir em que a medicina é ‗aquilo que os médicos fazem diante da doença‘ ou ‗uma previsão do que os médicos farão. (...) Entretanto, no caso do direito, coisas aparentemente tão estranhas quanto essas não são apenas ditas, mas frequentemente debati-das com eloqüências e paixão...‖ HART, H. L. A. O conceito de direito. Trad.: Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. p. 01-02. 2 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27ªed. 4ªtir São Paulo: Saraiva, 2004. p. 140-141.

3 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27ªed. 4ªtir São Paulo: Saraiva, 2004. p. 141.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 37

Deduz-se de várias passagens das obras de Reale, nas quais ele faz

menção, v.g., a ordenamentos morais, religiosos e esportivos, um ponto im-

portante atribuído a tal pensador, que é a pluralidade jurídica, em detrimen-

to do sistema fechado e unitário presente em Kelsen, o qual considera a

análise do Direito pelo cientista jurídico somente sob o ponto de vista de um

ordenamento único. Todavia, o quão plural e o quão diferente de Kelsen

Reale deve ser colocado no que tange essa percepção do Direito?

Um dos motivos para se denominar um sistema de fechado é não ser

possível sair dele para buscarmos o Direito. Assim, para Kelsen, “fonte do

direito” só é e somente pode ser, por óbvio, o Direito4. Todavia, quando Rea-

le diz, como afirmado há pouco, que há quatro fontes de Direito, em síntese,

processo legislativo, jurisdicional, costumeiro e negocial, ele aparentemente

nos fornece mais “fontes”, mais “Direitos”, mais “ordenamentos” e, portanto,

uma maior pluralidade do que Kelsen. Assim pensa Tercio ao analisar esta

questão sob o ponto de vista das ditas “lacunas jurídicas”5:

Ora, a dialética de Reale nos permite uma visão dinâmica da questão, capaz, contra Kelsen e com a maioria da doutrina, de explicar a possibi-lidade da lacuna, mas sem incidir nas dificuldades das concepções está-ticas do sistema jurídico.

6

Ainda sobre Reale, Tercio acrescenta este outro trecho:

A antinomia aparece porque tanto é possível dizer, com Kelsen, que la-cunas não existem e são uma "ficção política", como dizer com Zitel-mann que elas existem e podem ser demonstradas. (...) A concepção de Reale, ao contrário, nos conduziria a abandonar o conceito analítico de lacuna, substituindo-o por um conceito dialético enquanto tensão não resolvida capaz de mobilizar um conjunto de soluções, o que daria ao sistema jurídico uma certa instabilidade permanente...

7

Também é possível mencionar um dos discípulos realeanos, Celso La-

fer, a este respeito: “A interdependência existente entre fato, valor e norma

4 Focalizarei ao longe deste artigo no Kelsen da Teoria Pura do Direito, livro bastante representativo e central

de seu pensamento. 5 O estudo das lacunas é imbricado com o estudo das fontes do Direito, pois as respostas para a pergunta sobre

se as lacunas existem ou não, se podem ser preenchidas pelo jurista ou não, e como esse tal ―preenchimento‖ ocorre, variam conforme também variam as concepções de fontes do Direito 6 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. O problema das lacunas e a filosofia jurídica de Miguel Reale. In: LAFER,

Celso; FERRAZ JR., Tercio Sampaio (coords.). Direito, Política, Filosofia, Poesia: Estudos em Homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 276. 7 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. O problema das lacunas e a filosofia jurídica de Miguel Reale. In: LAFER,

Celso; FERRAZ JR., Tercio Sampaio (coords.). Direito, Política, Filosofia, Poesia: Estudos em Homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 277.

38 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

permite pensar o Direito, seja pelo ângulo interno, seja pelo ângulo exter-

no”8, o que permitiria, portanto, analisar, em tese, o Direito não como um

sistema internamente fechado, mas, sim, como algo a ser pensado também

“por fora”, pelo “ângulo externo”.

Porém, será que tal aparência de pluralidade, de instabilidade perma-

nente e de foco interno e externo realmente subsiste e serve para a diferen-

ciação de tais autores quando se pensa no efetivo acontecer jurídico na rea-

lidade? Talvez não. Vejamos essa tensão, aparente ou não.

Se se for pensar a maneira como o Direito ocorre em sua dinâmica,

tanto em Kelsen quanto em Reale, o Direito, cruamente dizendo, será aquilo

que Direito considerado for. Ou seja, o sistema em Reale parece também ser

fechado neste sentido, porquanto, apesar dele admitir estas quatro formas

de poder, que acompanham as quatro formas de fontes, há um poder maior

ou, ao menos, muito importante em Reale, qual seja, o poder de decidir, en-

contrado no momento de visualização e aplicação do Direito, conforme se

pode observar neste comentário de Reale:

... para aplicar o Direito, o órgão do Estado precisa, antes, interpretá-lo. A aplicação é um modo de exercício que está condicionado por uma prévia escolha, de natureza axiológica, entre várias interpretações pos-síveis. Antes da aplicação não pode deixar de haver interpretação, mes-mo quando a norma legal é clara, pois a clareza só pode ser reconhecida graças ao ato interpretativo. Ademais, é óbvio que só aplica bem o Di-reito quem o interpreta bem.

9

Este trecho remete, portanto, em conjunto com o dito anteriormente, à

seguinte problemática sobre fontes do direito em Reale: não basta que haja

um processo legislativo para existir um “direito” na Lei. O juiz tem de inter-

pretá-la, considerá-la como pertencente ao mundo do Direito e aplicá-la,

lembrando que a interpretação que “resultar vencedora” se distinguirá das

outras somente no momento em que o poder do aplicador é exercido. O

mesmo raciocínio se aplica às outras fontes, vez que o costume só vai pro-

duzir o Direito na medida em que é um costume reconhecido e aplicado co-

mo Direito; só o sendo, portanto, depois de selecionado pelo poder compe-

tente do aplicador – o termo é realmente selecionado, se lembrarmos que,

dos vários raios, do famigerado e bastante exemplificativo desenho-

figurativo de Reale, somente um único resta após o elemento Poder entrar no

quadro.

Agora, pensando em Kelsen, no intuito de posteriormente relacionar

tais autores, destaco estes trechos para melhor compreendermos e nos situ-

armos neste embate:

8 LAFER, Celso. O que é a filosofia do Direito? São Paulo: Manole, 2004. p. 56.

9 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27ªed. 4ªtir São Paulo: Saraiva, 2004. p. 295-296.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 39

Fontes de Direito é uma expressão figurativa que tem mais do que uma significação. Esta designação cabe não só aos métodos acima referido mas a todos os métodos de criação jurídica em geral, ou a toda norma superior em relação à norma inferior cuja produção ela regula. (...) Num sentido jurídico-positivo, fonte do Direito só pode ser o Direito. (...) Es-tas fontes [princípios morais e políticos, teorias jurídicas, pareceres de especialistas] devem, no entanto, ser claramente distinguidas das fontes de Direito positivo. A distinção reside em que estas são juridicamente vinculantes e aquelas o não são...

10

Portanto, fica claro daqui e de outras passagens da Teoria Pura do Di-

reito que, segundo Kelsen, a principal diferença do que é ou não fonte de

direito repousa tanto na idéia de competência quanto na idéia de estrutura

hierárquica; conceitos formais11

ligados, por sua vez, à idéia de interpretação

autêntica. Diz Kelsen:

...existem das espécies de interpretação que devem ser distinguidas cla-ramente uma da outra: a interpretação do Direito pelo órgão que o apli-ca, e a interpretação do Direito que não é realizada por um órgão jurídi-co mas por uma pessoa privada e, especialmente, pela ciência jurídica.

12

Vê-se, portanto, que a divisão é pura e clara, pois, trata-se de uma

discriminação formal, a qual estabelece que a interpretação não-autêntica

não é Direito – nem fonte do Direito – pelo simples e basilar fato de que

quem a faz não o aplica e, portanto, não cria o Direito.

Do dito, podemos ver que as posturas em relação à doutrina como

fonte de Direito é algo relativamente pacífico para ambos os autores, os

quais concordam, com justificações diversas, que a doutrina não é fonte de

Direito, não produz Direito. Outrossim, têm-se, aqui, duas posturas interes-

santes e que, apesar de inicialmente estarem a certa distância, parecerem se

aproximar também no que tange à análise das fontes do Direito.

Enquanto em Kelsen a competência permite ao intérprete autêntico cri-

ar o Direito, em Reale a ação do Poder – que não pode ser a ação de qualquer

força, violência ou coerção, mas, sim, a ação daquilo que se designa como

Poder e, portanto, juridicamente competente – é o que confere um fim mo-

mentâneo à dialética tridimensional e criará a norma. Dizendo em outros

10

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 7ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 259. 11

A análise formal do Direito é o objetivo a ser mirado pelo jurista cientista que Kelsen instiga: ―...Kelsen tentou construir uma teoria alternativa às concepções dominantes, sustentando um conceito puramente formal de direito. (...) Na medida em que era formal, esse conceito não se vinculava a nenhum conceito específico e, justamente por isso, pretendia superar a mistura de teoria e ideologia que impedia as teorias jusnaturalistas e sociológicas de se constituírem como um conhecimento propriamente científico.‖ COSTA, Alexandre Araújo. Direito e Método: diálogos entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica jurídica. [Tese de Doutorado] Brasília: Faculdade de Direito da UnB, 2008. Disponível em: <http://www.arcos.org.br/monografias/direito-e-metodo>. Acesso em: 22 jun. 2010. p. 296. 12

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 7ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 388.

40 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

termos, Reale se aproxima de Kelsen na medida em que ambos parecem

trabalhar com a idéia, lendo-se nas entrelinhas, de sistemas fechados e de

um ordenamento integrado: Kelsen afirmando que há somente um ordena-

mento13

e Reale dizendo que há vários, sendo que esses vários ordenamen-

tos estariam, todavia, dispostos em uma graduação de positividade.

Será, então, esta hipótese de aproximação entre estes autores, aqui

lançada, plausível? Seriam eles, portanto, tão próximos neste ponto?

No seguinte trecho é possível ver como Reale parece não concordar

com esse tipo de aproximação ao tentar se diferenciar de Kelsen:

...segundo esse pensamento [kelseniano], somente compõem um orde-namento jurídico as normas que se entrelaçam e se situam no âmbito da soberania do Estado – o qual, sob o ponto de vista da imputabilidade normativa, se identificaria com o próprio Direito – sendo a-jurídicos os demais sistemas de regras, morais, econômicas, grupalistas, esportivas etc. (...) [e continua expondo o que consiste a contraposição entre sua teoria e a de Kelsen dizendo que a] ...posição de Del Vecchio, por mim perfilhada com algumas alterações, aceitando, de um lado, a pluralidade dos ordenamentos jurídicos como realidades sociais autônomas, e não apenas permitidas ou consentidas pelo Estado, e, de outro lado, reco-nhecendo que há uma “graduação da positividade jurídica”, com predo-mino do ordenamento jurídico-estatal, que atuaria como “lugar geomé-trico” dos demais sistemas de normas.

14

Apesar deste esforço de Reale, esta tentativa de diferenciação pode pa-

recer estranha por alguns motivos. Um deles consiste no fato de Reale tentar

argumentar que ordenamentos jurídicos tais como os morais, religiosos,

econômicos, esportivos seriam autônomos e não apenas permitidos ou con-

sentidos pelo Estado; valendo-se disso para tentar se diferenciar de Kelsen.

Todavia, a meu ver, o pensamento kelseniano poderia concordar com isso,

aceitando que tais formas de organização da sociedade civil, regendo-se em

torno de normas por elas mesmas criadas, podem existir e serem jurídicas –

13

Leitura encontrada explicita e didaticamente também no seguinte trecho do artigo de Bobbio, no qual este analisa a relação de Kelsen com o Poder, relação que tanto interessou também Reale, que se valeu, todavia, do Poder de outra maneira em sua perspectiva do Direito: ―A Teoria Pura do Direito, em suma, vê um ato do Estado tanto no negócio jurídico, quanto na ordem da autoridade, em ambos os casos, numa situação concreta da produção do direito atribuível à unidade do ordenamento jurídico considerado em seu conjunto.‖ BOBBIO, Norberto. Direito e poder. Trad.: Nilson Moulin. São Paulo: UNESP, 2008. p. 177. 14

REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito. São Paulo: Saraiva, 1994b. p. 88-89.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 41

devendo, porém, ser consideradas harmônicas com as normas de caráter

mais geral, dentro de uma estrutura hierárquica15

.

De outro lado, Reale também não poderá negar, como não o faz, que,

por mais autônomos que tais ordenamentos sejam, eles não podem escapar

da permissão ou consentimento do Estado para se arquitetarem. Igualmente,

Reale expõe claramente que os outros ordenamentos não devem estar em

conflito com as fontes estatais, sendo que a soberania do Estado é a última

instância para declarar a positividade ou não de algo a ser considerado como

Direito.16

Desta forma, a única diferença que efetivamente parece existir entre

ambos os autores, concerne no fato de que Reale irá conceder chamar tais

ordenamentos regrados de ordenamentos jurídicos plurais não-estatais, en-

quanto Kelsen prefere não o acompanhar nesta distinção, vez que não vis-

lumbra uma diferença de fundo, porquanto, ao final, tais normas ou supos-

tos diversos ordenamentos sempre estarão não somente em uma disposição

normativa hierárquica, mas, também, estarão submetidas a um possível jul-

gamento por parte de algum órgão estatal competente aplicador do Direito;

e isto Reale também não nega; aliás, afirma explicitamente.

Passemos, agora, para o segundo motivo que talvez torne estranha, de

início, essa tentativa de Reale de se diferenciar de Kelsen. Trata-se do empe-

nho de Reale em dizer que há uma gradação de positividade jurídica, com o

predomínio do ordenamento jurídico estatal. Cito Reale:

15

Mario Losano exprime nestas considerações a seguir o quão forte é a influência de Kelsen e desta estrutura hierárquica criada: ―Na simbologia social a pirâmide exprime a hierarquia do poder. (...) Essa organização em forma de pirâmide é favorecida pela longa tradição sobre as fontes do direito... (...) Sob a influência da doutri-na pura do direito, para os juristas atuais a pirâmide... tornou-se o símbolo mesmo do direito. ela representa à perfeição aquele sistema que há séculos os juristas procuram construir e nunca conseguem completar até o fim. (...) [Citando Pavlos Elftheriadis] ‗Os advogados na Europa e em todas as partes descrevem a ordem jurídica como uma ordem de normas hierarquicamente arrumadas‘.‖ LOSANO, Mario G. Modelos teóricos, inclusive na prática: da pirâmide à rede. In: Revista do Instituto dos advogados de São Paulo. Nova séria, ano 8, n. 16, julho-dezembro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 267. 16

―Ora, o Direito, que vigora e tem eficácia em um território, como, por exemplo, no território brasileiro, é declarado ou reconhecido pelo Estado, através de suas próprias fontes, ou resulta das fontes dos demais orde-namentos, sem conflito com as fontes estatais. Desse modo, soberania e positividade do Direito são dois conceitos que se exigem reciprocamente: soberano diz-se do poder que, em última instância, põe ou reconhece o Direito Positivo; Direito Positivo é, por excelência, aquele que tem, para garanti-lo, o poder soberano do Estado. Desfazendo equívocos, ligados a superadas concepções de soberania, declaro que esta não é senão o poder originário de declarar; em última instância, a positividade do Direito...‖ REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito. São Paulo: Saraiva, 1994b. p. 98. No trecho seguinte ele se restringe à fonte negocial, mas a idéia é bastante elucidativa e auxilia nesta discussão: ―...os modelos negociais não podem ser constituí-dos em conflito com os modelos legais, o que implica o reconhecimento de que há uma hierarquia entre os modelos jurídicos, do ponto de vista lógico-sistemático...‖ Id. Ibid. p. 75.

42 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

Daí dizermos que, se num país são múltiplos os entes que possuem or-dem jurídica própria (teoria da pluralidade dos ordenamentos jurídicos internos), só o Estado representa o ordenamento jurídico soberano, ao qual todos recorrem para dirimir os conflitos recíprocos.

17

Aqui, portanto, não parece ser o caso de se sustentar, como intenta

Reale, um mero predomínio do ordenamento jurídico estatal, mas, sim,

como explícito neste trecho de seu próprio punho, do predomínio – se ain-

da se quiser manter tal palavra – de uma competência estatal; fato este que

Reale poderia ter reconhecido quanto trata de soberania, porquanto é com

fundamento nesta que o Direito será aplicado; podendo, para tanto, respei-

tar o regimento interno de alguma associação civil ou corrigi-lo somente

em parte, mas sempre de forma a coaduná-lo com o ordenamento jurídico

soberano do Estado, como diz o próprio Reale. Todavia, e isso é o que tal-

vez cause o estranhamento inicial, sabendo-se desde o começo que o “pre-

domínio” para julgar e aplicar o Direito seria, pois, em último caso, do Es-

tado, parece-me que tal autonomia e graduação atribuída à pluralidade de

ordenamentos jurídicos transformam-se, na verdade, em uma submissão

ao ordenamento estatal e às normas superiores – para se dizer com Kelsen

– que regulam, delimitando o alcance da atuação daqueles supostos outros

ordenamentos jurídicos.

Após este raciocínio construído, uma inclinação se desponta e, quiçá,

surge uma tendência para se concluir que, portanto, somente houve uma

diferente escolha de palavras entre estes dois autores, tendo em vista que

ambos estariam falando de idéias semelhantes por meio de termos diferen-

tes. Assim sendo, poder-se-ia, talvez, considerar esse acareamento entre

Reale e Kelsen como resolvido. Porém, parece-me que esta última conclusão

pode levar, agora, à necessidade de se trilhar um caminho justamente opos-

to a essa própria conclusão que aparentemente se prenunciava.

Se chegamos, após este caminhar, à conclusão de que ambos lança-

ram, neste ponto, propostas relativamente semelhantes tão-somente utili-

zando palavras ou construções argumentativas diversas, isso parece querer

indicar que eles são, na verdade, deveras diferentes; e isso por que: alterar a

forma, influi diretamente no conteúdo – por vezes de maneira forte, por ve-

17

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27ªed. 4ªtir São Paulo: Saraiva, 2004. p. 78. Quando Miguel Reale fala em vários ordenamentos, exemplifica com o Direito canônico, o Direito esportivo, as regu-lações internas das ONGs etc. Ou seja, lei, jurisprudência, costume e ato negocial são parte do mesmo orde-namento, qual seja o jurídico-estatal, sendo aqueles outros ordenamentos importantes de se reconhecer para se pensar uma teoria da pluralidade dos ordenamentos jurídicos internos.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 43

zes nem tanto.18

Obviamente, isso não é auto-evidente simplesmente por se

valerem de formas ou maneiras diversas de dizer algo. Todavia, já parece ser

um bom indicativo.

E é precisamente nessa alteração na forma de se dizer algo, que se ob-

serva o indício do grande triunfo e contribuição de Reale para a questão da

perspectiva da estruturação do Direito, algo que certamente subjaz toda essa

discussão. Quero dizer com isso o seguinte: Quando Reale passa a argumentar

sobre o Direito, sobre a sua estruturação, sobre a sua construção, sobre as

suas quatro fontes, sobre a convivência de diversos possíveis ordenamentos

para além do ordenamento jurídico estatal, faz destacar a existência da com-

plexidade e dos conflitos presentes em uma sociedade plural. Destaque este

de maior importância para que o sentimento em relação ao Direito se torne

mais humano, mais dúctil19

, na medida em que enxerga o Direito como algo

vivo e pulsante, em um sempiterno completar-se e se saber incompleto.20

Es-

18

Ressalto um trecho-síntese em que Tobias Barreto menciona tanto esta importância de se alterar a forma, como o conteúdo, seguida de passagens nas quais ele revela o seu intuito de encarar o Direito ligado à Cultura, o que faz com que Reale o considere um dos expoentes do culturalismo no Brasil: ―Não basta, em uma pala-vra, mudar de forma, o que todavia já seria muito; é preciso mudar de conteúdo. A controvérsia estende-se à própria concepção do direito, que deve modificar-se de maneira adaptada à intuição científica dominante.‖ BARRETO, Tobias de M. Sobre uma nova intuição do Direito. In: BARRETO, Tobias de M. Obras comple-tas. Introd. e notas de Paulo Mercadante e Antônio Paim. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/Record, 1990. Disponível em: <http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2009/05/sobre-uma-nova-intuicao-do-direito-1881.html>. Acessado em: 22 jun. 2010. p. 06; ―Dizer, como já por vezes tenho dito, que o direito é um produto da cultura humana importa negar que ele seja, segundo ensinava a finada escola racionalista e ainda hoje sustentam os seus póstumos sectários, uma entidade metafísica, anterior e superior ao homem. (...) Quando, pois, afirmo que o direito é um fruto da cultura humana, é só no intuito de considerá-lo um efeito, entre muitos outros, desse processo enorme de constante melhoramento e nobilitação da humanidade.‖ Id. Ibid. p. 21-22. 19

A visualização do dúctil é utilizada na obra de Zagrebelsky notoriamente em relação à teoria da Constitui-ção e aos princípios. Todavia, o sentimento que perpassa o uso do adjetivo dúctil é pertinente neste momento para percebermos esse caráter elástico e flexível do Direito como um todo, que se compreende como algo que cede e que ganha força, algo, portanto, que torna a prática do Direito ligada a idéia de maleabilidade: ―...una convivencia ‗dúctil‘, construida sobre el pluralismo y las interdependencias y enemiga de cualquier ideal de imposición por la fuerza. (...) Una plenitud de vida colectiva que exige actitudes moderadas (una aurea medie-tas), pero positivas y constructivas, y que puede mantenerse con la consciencia de quien sabe que este ideal corresponde a una visión de la vida y a un ethos en modo alguno despreciables.‖ ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. 7ªed. Madrid: Trotta, 2007. p. 15. 20

Como também ressalta Tercio, apesar de apoiado em motivos diversos dos apresentados: ―...o sistema, pensado dialeticamente, não é lacunoso e sem lacunas, mas torna-se lacunoso num processo que, como um todo, se preenche continuamente.‖ FERRAZ JR., Tercio Sampaio. O problema das lacunas e a filosofia jurí-dica de Miguel Reale. In: LAFER, Celso; FERRAZ JR., Tercio Sampaio (coords.). Direito, Política, Filosofia, Poesia: Estudos em Homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Sarai-va, 1992. p. 279.

44 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

tes sentimentos não comumente advêm da leitura e da proposta de Kelsen

para o cientista do Direito21

.

Assim, Reale contribui para a percepção de como o Direito se manifes-

ta: Fato-valor-norma. E nisso ele vai além de Kelsen. Não necessariamente

por este ter errado, mas tão-somente por a preocupação deste não ter sido

esta. Sendo assim, Reale contribui para essa visão diferente da norma, uma

visão que permite, como dito, um olhar mais concreto, complexo e próximo

do intérprete em relação ao Direito22

.

Quando Reale defende, então, o pluralismo jurídico e a existência de vá-

rios ordenamentos autônomos, devemos encarar tal autonomia não como uma

característica de ordenamentos extras ou paralelos, os quais estão soltos na

sociedade, funcionando marginalmente sem comunicação nem ligação entre si

e entre o ordenamento estatal positivado. A idéia de se falar em múltiplos or-

denamentos mostra uma sensibilidade para a existência de diferentes ordens

normativas que surgem da própria sociedade e que possuem a sua maneira

peculiar de agir e de “jogar” quando se está dentro dela. Destarte, são orde-

namentos autô-nomos na medida em que criam por si próprios o seu dever-

ser, a maneira como devem se comportar, criam um jogo específico dentro

deste grande jogo que é o Direito. E tais ordenamentos se constroem com

base em si mesmos e, não, com hetero-normas advindas do Estado.

É claro, entretanto, que o Estado seria a última instância (limitando a

análise para o âmbito interno) caso houvesse algum conflito que não pudes-

se ser resolvido de outra maneira. Todavia, o simples fato de afirmar isto não

quer dizer que todo o Direito seja estatal ou que todo o Direito estaria den-

tro do mesmo ordenamento. Ou melhor, talvez se pudesse dizer isso, mas se

correndo um risco. Descrevendo-se analiticamente23 esta situação, seria

pensável dizer que: o Direito é uno e só é Direito se reconhecido/homolo-

21

Conquanto Kelsen reconheça, sim, ao contrário do que parece indicar o supra-referido texto de Tercio, que o Direito possui lacunas quando olhamos do ponto de vista valorativo ético-político, Kelsen não compreende a existência das lacunas juridicamente: ―Como, porém, isso não é de fato possível, pois uma ordem jurídica é sempre aplicável e também é aplicada quando o juiz rejeita a ação com fundamento em que a ordem jurídica não contém qualquer norma geral que imponha ao demandado o dever afirmado pelo demandante, o pressu-posto de que parte o preceito acima citado é uma ficção. Esta consiste em a falta de uma determinada norma dentro de uma ordem jurídica, falta essa determinada com base num juízo de valor ético-político subjetivo, ser apresentada como impossibilidade lógica da aplicação dessa ordem jurídica.‖ KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 7ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 275. 22

Em épocas nas quais se dá mais importância à ―melhor teoria do direito de todos os tempos da última sema-na‖ BARBOSA, Samuel Rodrigues. Notas sobre o problema da acumulação literária e a contribuição de Tercio Sampaio Ferraz Jr. In: BARBOSA, Samuel; Rodriguez, José Rodrigo; et alii (orgs). Nas fronteiras do formalismo. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 18; é importante um autor como Reale para se re-pensar o problema da cumulação literária re-proposto por Samuel Barbosa: ―Longe de negar a importância da desprovincianiza-ção da reflexão por aqui, o que se coloca em causa é aquela importância da ‗produção recente dos países avançados‘ que, pela sua rapidez (agora feita em tempo real), impede a produção amadurecida e a formação de uma tradição que sirva de filtro para o consumo de métodos, temas e obras.‖ Id. Ibid. p. 17-18. 23

―Analiticamente‖ sendo utilizado aqui somente como um termo para designar um pensamento estruturado e decomposto em partes precisas e as mais claras possíveis; e não, o pensamento/filosofia analítica ou modo de se filosofar analítico.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 45

gado, de alguma forma, pelo Estado. Ou seja, analiticamente, Reale e Kelsen

podem ser iguais neste ponto; sendo esta uma primeira conclusão possível,

como dito acima, ao final do tópico dois.

Porém, o que exatamente isso significa? O que pretendo realizar

quando digo que tais autores concordam “analiticamente”? Essa expressão

parece significar algum âmbito mais puro, mais objetivo, “retirando os ex-

cessos e peculiaridades”, um local no qual se pode observar e comparar

tão-somente a estrutura formal da teoria de ambos. Enfim, um organogra-

ma com caixas ligadas entre si. Feito isso, feito este estudo “de fundo” da

teoria deles, poder-se-ia concluir, então, que eles concordam “analitica-

mente”, vez que as caixas dispostas e ligadas por traços/setas indicam que

tudo está conectado com o Estado, caixa-superior da qual as outras caixas

estão subordinadas hierarquicamente e só existem na medida em que são

consideradas Direito pelos agentes estatais competentes para tanto? Su-

pondo que intentássemos criar esses organogramas, talvez pudéssemos

chegar a um resultado semelhante ao descrevermos ambos os autores.

Portanto, como dito, poderíamos concluir que eles “concordam, ao menos,

analiticamente”? Tendo a dizer que não.

Essa conclusão representaria não somente uma “singela concordância

analítica”, mas o próprio fundamento advindo desta “análise analítica” distor-

ceria o quadro real. A idéia de se pensar que, ao menos “analiticamente” ou

em algum plano mais “estrutural”, ambos os autores estariam dizendo, “no

fundo”, a mesma coisa distorce o que realmente ocorre na prática não so-

mente quando se lê tais autores, mas quando se pensa em como eles influ-

enciam os juristas que os lêem.

Há uma tendência de se analisar teorias e autores pensando na sua

compatibilidade ou não com outros, naquilo que eles negaram ou afirmaram

explicitamente. Isso advém da nossa necessidade de realizarmos divisões

didáticas tanto para compreendermos melhor os autores quanto para conse-

guirmos realizar conexões entre os autores que nos permitam traçar uma

história do pensamento – problemáticas tais já percebidas por Schleierma-

cher24

. O dano é que, neste procedimento, ocorre uma clara diminuição da

complexidade e das sutilezas de cada pensamento. E, junto com tal perda,

perde-se, justamente, o que há de melhor e mais interessante em um autor:

os propósitos/motivações/intenções permeados no texto, os quais afetam os

leitores de maneiras diversas.

Não estou dizendo que não seja necessária essa simplificação do com-

plexo para a compreensão. Sempre é necessário tornar o mundo inteligível

para se poder falar sobre ele de forma inteligível. Porém, este procedimento

usado de maneira excessiva e distorcida, fato recorrente na academia, faz

24

SCHLEIERMACHER, Friedrich. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Trad.: Celso Reni Braida. 6ªed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008. p. 53-57.

46 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

com que nos atenhamos às categorias menos importantes de uma teoria,

quais sejam, as caixas que formam este “organograma analítico”. Destarte,

afirmar que Kelsen e Reale concordam ou se assemelham “analiticamente”

sugere a idéia errada de que eles se assemelham “ao menos na forma”, sen-

do o “conteúdo diverso”. Porém, isso é falso, pois a forma que eles escolhe-

ram para falar sobre este problema específico do Direito afeta o conteúdo.

Um pesquisador poderá dizer: “Olhem, tudo isto é uma floresta, e to-

dos os múltiplos seres desta floresta fazem parte dela e podem ser remeti-

dos a ela, sendo que quando alguém diz „folha‟, „besouro‟ ou „abelha‟, creio

que todos estes podem ser agrupados e percebidos como seres indissociá-

veis da floresta”. Enquanto isto, outro pesquisador dirá: “Olhem, aqui há um

„besouro‟ se alimentando no seu habitat; o seu nicho ecológico está funcio-

nando bem e está em equilíbrio. Agora, olhem, aqui uma „folha‟, que contri-

bui para o crescimento e fortalecimento desta árvore. Ah, ali está uma abe-

lha, que arranjou uma maneira de criar uma boa relação com a flor; enquan-

to uma ganha em termos de reprodução, a outra ganha em termos alimenta-

res – sendo todos eles seres autônomos desta floresta”.

Podemos dizer que o primeiro pesquisador está em contradição com o

segundo? Podemos dizer que ambos estão discordando entre si ou negando

um ao outro? A princípio, não. Aliás, analiticamente, ambos estão falando so-

bre a floresta e sobre os seres que lá habitam e vivem de diferentes maneiras.

Todavia, esta análise distorce a realidade do pensamento dos autores, pois

distorce justamente os propósitos e motivações destes dois pensamentos.

É claro que, no fundo, o nicho ecológico do besouro funciona bem

porque a floresta como um todo está funcionando relativamente bem. I-

gualmente a folha e a abelha podem co-existir bem, pois a floresta, como

um todo, está estável e os permite crescer e viver de forma relativamente

estável e autônoma. Ou seja, ambos os pesquisadores têm noção da im-

portância da floresta e tem noção que os seres podem ser remetidos a ela,

que é o local de pertença de todos eles e do qual eles dependem. Afinal, se

não existisse a floresta, não existiria as peculiaridades da floresta. Porém, a

perspectiva deles é diversa. Escolheram formas diversas para falarem sobre

“a mesma floresta”. Desta forma, o próprio conteúdo passa ser diverso,

pois, enquanto um está focado na análise formal e mais analítica-

catalogadora, outro se preocupa em evidenciar que cada ser é autônomo e

que vive segundo uma maneira própria, relacionando-se com outros seres,

vivendo em seus nichos ecológicos sem se pensarem ou remeterem cons-

tantemente com o todo da floresta.

Destarte, o que interessa aqui não é saber qual é a estrutura analítica

ou formal de um autor e se tal estrutura é compatível ou não com outros

autores. Isso possui a sua valia. Todavia, para se compreender como esses

autores realmente afetam os seus leitores-juristas e, portanto, como eles

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 47

afetam o nosso modo de olharmos para o Direito devemos pensar em qual é

o foco/perspectiva deles. Outrossim, é importante pensarmos no foco e nos

propósitos detrás deste foco. Assim, quando Reale abre a sua teoria para a

análise do Direito pensando no pluralismo jurídico, na miríade de ordena-

mentos presentes em uma sociedade, este autor nos oferece uma perspecti-

va sensível ao reconhecimento das maneiras diferentes de cada um destes

ordenamentos comportarem dentro de si e na sociedade. Assim, ele não ne-

ga, é claro, a importância do Direito estatal, porém, o peso dele diminui ao

se reconhecer estas manifestações autônomas de ordenamentos. Em contra-

partida, quando Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, focaliza a produção

do Direito sob o ponto de vista da norma e, mais, sob o ponto de vista de

que Direito seria somente Direito estatal25

, ele direciona a sua análise para

outro propósito, que é construir um método de análise científico que fuja

destas “flutuações” políticas e valorativas de discriminar vários ordenamen-

tos em uma sociedade de acordo com seu peso ou influência ou “regras pró-

prias e autônomas”, pois isso não faz sentido para o método adotado pela

teoria pura do Direito.

Concluindo, pois, esta parte, é importante sintetizar que os pensamen-

tos são diversos, pois, apesar de alguém poder alegar que “não estão em

contradição” ou “são analiticamente compatíveis”, o que importa é o propó-

sito e a maneira como um autor trabalha com o mesmo tema e com os mes-

mos problemas. O estilo de escrita, o foco do trabalho e o peso conferido a

um assunto é que vai diferenciar e efetivamente “fazer a diferença” quando

do momento de olhar para o Direito. É nestes “pequenos detalhes” que é

possível justamente encontrar todos os grandes detalhes, as grandes influ-

ências, e as grandes motivações inovadoras por detrás de uma teoria.

Para Reale, conforme Tercio salientara acima, é importante a noção de

(in)completude e complexidade da dinâmica do Direito. Rememorando isso,

caminhemos, agora, para abordar o problema da justificação do porquê de

certas fontes serem designadas, por Reale, como fontes do direito enquanto

outras não.

Ao mesmo tempo em que é possível enxergar uma boa contribuição,

um novo problema surge quando Reale decide dizer que a doutrina não é

fonte do Direito – assim como Kelsen o dirá por outros motivos. Para permi-

tir uma análise crítica que possa contribuir para uma abordagem concreta e

dinâmica do Direito, proposta pelo próprio Reale, vou concentrar especifica-

25

Não se deve entender por essa expressão um Direito produzido somente pelo Estado, mas o Direito reco-nhecido ou permitido pelo Estado.

48 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

mente na diferenciação que Reale propõe entre a doutrina e as quatro fontes

do direito enumeradas por ele. Trarei algumas definições que irão contribuir

para o ponto que pretendo ressaltar. Cito Reale:

...as fontes do direito, que são sempre estruturas normativas que implicam a existência de alguém dotado de um poder de decidir sobre o seu conteú-do, o que equivale a dizer um poder de optar entre várias vias normativas possíveis, elegendo-se aquela que é declarada obrigatória, quer erga om-nes, como ocorre nas hipóteses da fonte legal e da consuetudinária, quer inter partes, como se dá no caso da fonte jurisdicional ou na fonte negocial. (...) O essencial, porém, é ter presente que, sem poder de decidir, não se pode falar em fonte do direito, motivo pelo qual (...) a doutrina, ao contrário do que sustentam alguns, não é fonte do direito, uma vez que as posições teóricas, por maior que seja a força cultural de seus expositores, não dis-põem de per si do poder de obrigar.26

Aqui, entra uma forte indagação: As fontes do direito discriminadas

por Reale realmente possuem esse poder de obrigar, o qual, portanto, se-

gundo ele, as tornaria dignas de tal designação? Respondamos inicialmente

da seguinte forma: No momento em que ocorre uma nomogênese, seja ela

legislativa, jurisdicional, costumeira ou ato negocial, como elenca Reale, o-

corre também a transubstanciação de algo, que outrora estava, por assim

dizer, desorganizado – ou ainda em um processo dinâmico, em uma dialética

de implicação e polaridade entre fato, valor e norma –, para um algo resul-

tante, do qual se poderá retirar uma referência para se obrigar e para se a-

plicar o Direito. Em outros termos, da nomogênese resulta-se uma prescri-

ção após a atuação de um poder de obrigar. E este é um motivo importante,

segundo Reale, para não se considerar a doutrina, os modelos criados pela

hermenêutica, como fontes do direito. Cito Reale:

É por essa razão, pela não-prescritibilidade dos modelos hermenêuticos, que não considero a doutrina uma das fontes do direito, o que não lhes diminui, absolutamente, a relevância, visto como é tarefa da doutrina esclarecer a significação das fontes de direito.

27

Aqui está, portanto, o germe do estranhamento, da não compreensão e

talvez de uma discordância que se pode travar com Reale.

Raciocinemos da seguinte maneira: Na medida em que as fontes do di-

reito são criadas por homens e passam a significar, após a nomogênese,

uma fonte objetiva, elas deverão, segundo o próprio Reale, ser interpretadas.

Assim sendo, se, portanto, há a ação de um Poder nas nomogêneses das

diversas fontes do direito, há também, por conseqüência, a ação da instau-

ração da vontade humana presente no, por assim dizer, órgão nomogênico

26

REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito. São Paulo: Saraiva, 1994b. p. 11-12. 27

REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito. São Paulo: Saraiva, 1994b. p. 107.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 49

ou no órgão jurídico aplicador, seja ele o juiz, o legislador ou a parte contra-

tual. Portanto, deste processo humano resulta algo que é lançado ao mundo

em uma forma mais definida, seja uma lei, uma jurisdição, um costume ou

um contrato. Todavia, por mais que tenha existido certo balizamento de sig-

nificados e de fins presentes em tais produtos resultantes, nem estes nem as

fontes do direito que o produziram parecem portar em si uma prescritibili-

dade ou um poder de obrigar; porquanto, como dito, eles terão de ser inter-

pretados e só passam a existir juridicamente na medida em que se considera

o interpretado como juridicamente existente.

Em outros termos, um contrato só tem a força jurídica de um contrato,

de um poder de obrigar, na medida em que há um Poder de decidir compe-

tente, o qual, interpretando tal contrato, o fará valer. Igualmente, uma lei só

será lei portadora de um poder de obrigar na medida em que assim for con-

siderada e aplicada por um determinado Poder competente. Desta forma, a

tônica e o que parece sempre se repetir não são as fontes do direito, mas,

sim, quem possui o Poder competente para decidir sobre o poder de obrigar

de certos produtos das ditas fontes do direito em Reale. Deste modo, se, ao

que parece, a força, a prescritibilidade, enfim, o poder de obrigar, não pro-

vém destas quatro fontes do direito em si, mas, sim, dos aplicadores do Di-

reito, lato sensu, os quais reconhecem, em certos produtos/resultados/atos

jurídicos, um caráter de força prescritiva, podemos concluir que talvez não

seja tão interessante a discriminação do que seja ou não uma fonte do direi-

to sob o critério do poder ou não de obrigar algo, pois tal poder não provêm

em si das fontes do direito, mas, sim, da aplicação competente destas e do

significado que elas recebem. E, se ainda se quiser insistir nessa tese, é o-

brigatório que reconheçamos restritamente como fonte do Direito somente a

última instância que efetivamente obriga as pessoas, pois esta, sim, teria o

efetivo poder de obrigar. E tal última instância não seria quem julga, lato

sensu, mas, sim, quem executa por si próprio a sua ação e que não depende

de outra pessoa para saber se o seu ato irá ou não obrigar (como é o caso da

“incerteza” do juiz, legislador e contratante). Chegaríamos, portanto, em um

absurdo que tornaria a expressão poder de obrigar imprestável.

Trazendo mais problemas para esta divisão e categorização, pode-se

volver e re-pensar: Se é a doutrina ou, melhor dizendo, a hermenêutica jurí-

dica como um todo, que contribuirá para a interpretação daqueles que têm o

Poder competente de atribuir/reconhecer o poder de obrigar a certas cons-

truções jurídicas, ou seja, se é a hermenêutica que dará um sentido à norma,

vez que o próprio Reale nos ensina que o brocardo in claris cessat interpre-

tatio é um falso brocardo28

; então, o poder de obrigar deveria pender, curio-

28

―Antes da aplicação não pode deixar de haver interpretação, mesmo quando a norma legal é clara, pois a clareza só pode ser reconhecida graças ao ato interpretativa.‖ REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27ªed. 4ªtir São Paulo: Saraiva, 2004. p. 295.

50 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

samente, mais para o lado da hermenêutica do que para as fontes do direito

distinguidas pelo pensador Reale.

Todos sabem reconhecer o que é uma lei, uma doutrina sobre essa lei e

uma jurisprudência reiterada dos tribunais sobre tal lei. Igualmente, todos

sabem dizer o que é fisicamente um contrato e o que é a interpretação e o

sentido de um contrato. É evidente que são objetos de estudos diferentes e

que aparecem no mundo de forma diferente. Não intento realizar uma confu-

são entre todas as manifestações do Direito e as fontes do Direito; mas tão-

somente expor que a hermenêutica é algo que constitui estas quatro fontes do

direito no exato momento em que por elas é constituída e, desta forma, o po-

der de obrigar também poderia ser considerado como estando presente na

doutrina – se se fosse levar tal raciocínio às últimas consequências.

Destarte, parece-me que seria mais interessante para Reale concluir

que tanto as quatro fontes do direito enumeradas por ele quanto a herme-

nêutica jurídica são fontes do Direito. Aparentemente, estaríamos em um

impasse: ou se coloca não somente a doutrina, mas outras manifestações

humanas associadas com o termo fonte de Direito, tendo em vista todas es-

tarem imbricadas com o elemento humano que, em última instância, é o que

possui o poder de obrigar; ou se abandona tal termo vago, porém, possuidor

de grande simbologia. Kelsen chega a propor o abandono deste termo jus-

tamente por estar ligado a várias significações e por possuir uma forte caga

já anexada em si29

.

De qualquer modo, talvez haja uma terceira saída, qual seja, compre-

ender que a teoria das fontes do Direito deve ser compreendida dentro de

uma determinada sociedade e dentro do que esta reconhece como fontes do

Direito. Em outros termos, é mais útil, prático e condizente com a realidade,

olharmos para a sociedade e percebermos como essa age e atua em relação

ao que é obrigatório e o que não é. Talvez possamos compreender que as

fontes do Direito são várias, incluindo a hermenêutica; assim como o poder

de obrigar também são vários. Todavia, o que varia é o grau e a intensidade.

A idéia aqui parece ser condizente com o que Reale traz quando trata sobre

a graduação de ordenamentos e, portanto, graduação de positividade.

Ou seja, é necessário revisar – inclusive pensando realeanamente – a

noção de fonte do Direito de Reale e de poder de obrigar, na medida em que

ambos são conceitos contribuintes para a existência do Direito em uma dia-

lética complementar de implicação e polaridade entre valor-fato-norma,

sendo relevante assumir isto com o objetivo de se fugir de um fechamento

da norma em si mesma e do Direito subordinado a esta, como tanto queria

29

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad.: João Baptista Machado. 7ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.259.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 51

Reale.30

Desta forma, esta me parece ser uma superação não somente possí-

vel, mas vital sobre a discussão rapidamente abordada neste escrito sobre as

fontes do Direito.

Para finalizar, com fins de ilustrar e de não encerrar o debate, vejamos

um pertinente voto do Egrégio Supremo Tribunal Federal:

10. Permito-me, neste passo, deixar bem vincados dois pontos, o pri-meiro dizendo com o fato de que todo, todo e qualquer texto normativo é obscuro até o momento da interpretação. Hoje temos como assentado o pensamento que distingue texto normativo e norma jurídica, a dimen-são textual e a dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade. (...) A interpretação do direito tem caráter constitutivo --- não meramente declaratório, pois --- e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normati-vos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. Interpretar/aplicar é dar concreção [= concretizar] ao direito. Neste sentido, a interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: a sua inserção na vida. A interpretação/aplicação vai do universal ao particular, do trans-cendente ao contingente; opera a inserção das leis [= do direito] no mundo do ser [= mundo da vida]. Como ela se dá no quadro de uma si-tuação determinada, expõe o enunciado semântico do texto no contexto histórico presente, não no contexto da redação do texto. Interpretar o direito é caminhar de um ponto a outro, do universal ao singular, atra-vés do particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o singular 2. As normas resultam da interpretação e podemos dizer que elas, enquanto textos, enuncia-dos, disposições, não dizem nada: elas dizem o que os intérpretes di-zem que elas dizem. 11. Se for assim --- e assim de fato é --- todo texto será obscuro até a sua interpretação, isto é, até a sua transforma-ção em norma. Por isso mesmo afirmei, em outro contexto, que se im-põe “observarmos que a clareza de uma lei não é uma premissa, mas o resultado da interpretação, na medida em que apenas se pode afirmar que a lei é clara após ter sido ela interpretada” 4 Daí não caber a afirma-ção de que o texto de que nesta ação se cuida seria, por obscuridade, tecnicamente inepto. Observo apenas, quanto a este primeiro ponto, as-pecto ao qual adiante retornarei. É que --- como a interpretação do di-reito consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas --- cumpre definirmos qual a reali-dade, qual o momento da realidade a ser tomado pelo intérprete da Lei

30

Reale mostra que teve lampejos não somente sobre a grande importância da doutrina, mas também sobre a doutrina poder ser também uma fonte do Direito. ―O humanismo jurídico revela-se tanto no momento de editar leis como no ato de interpretá-las. (...) Tão poderosa foi a exegese constitucional levada a cabo pelo moderno ‗caipira‘ paulista [Pimenta Bueno] (...) e tão relevante é a força da doutrina que seus comentários, ao longo dos anos, prevaleceram sobre a letra da Carta, da qual ele havia sabido inferir razões de vida‖. REALE, Miguel. Figuras da inteligência brasileira. 2ªed., refund. e aum. São Paulo: Siciliano, 1994a. p. 50. Porém, ao que tudo indica, ele enxergou neste caso somente uma exceção.

52 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

n. 6.683/79. [STF. ADPF 153/DF – Voto do Ministro Eros Grau, p. 15-17] (negritos meus).

Após a leitura de parte deste voto do Min. Eros Grau, proferido na his-

tórica ADPF de nº 153, pode-se, no mínimo, constatar que a preocupação,

ressaltada nas breves linhas deste artigo, sobre o quê distingue as fontes do

Direito das não-fontes, bem como o importante papel do intérprete e do

homem neste processo de re-conhecimento do Direito, encontra-se viva

tanto nas suscitações acadêmicas quanto na prática jurisdicional atual.

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54 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 55

Daniel de Andrade Lévy Mestrando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.

Advogado associado de Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados.

“Les Révolutions, qui viennent tout venger,

Font un bien éternel dans leur mal passager”1

O presente artigo explora como conceitos tirados da filosofia jurídica

de Miguel Reale amoldam-se, com precisão, ao estudo da sociologia brasi-

leira, especificamente à ideia de um núcleo de poder formado em torno do

estamento. A dialética e a gradação das positividades, dois tipos filosóficos

propostos pelo jurista, demonstram como o movimento, a dinâmica e a vari-

edade de poderes permitem contestar a estática e a perenidade desse núcleo

de poder invisível que é o estamento. Tal conceito, magistralmente exposto

por Raymundo Faoro, funda-se na continuidade de uma dominação que vai

bem além de uma simples dominação econômica ou política. Trata-se, no

Brasil, de uma verdadeira arquitetura do poder, cujos estudos de Miguel Reale

sobre o tema servem a desvendar.

Palavras-chave: Estamento – Burocracia – Reale – Positividade – Teoria

Tridimensional – Revolução – Sociologia

1 Victor Hugo, Les Contemplations Aujourd‟hui – 1843-1855, p. 3.

56 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

This paper studies how two important concepts drawn from the legal

philosophy of Miguel Reale perfectly shapes the study of Brazilian complex

sociology, specifically the idea brought by important sociologists like Ray-

mundo Faoro of power core around the political Estate. Those two concepts

are the dialectic movement and the graduation of positivity, which demon-

strate how the movement, the dynamic and the variety of power intensity

challenge the static and the sustainability of that core of domination in Bra-

zil. It is different from an Economic or Political domination; it is an invisible

domination that maintains the same few persons owner of the domination

force. In Brazil, it is a truce architecture of power, whose studies of Miguel

Reale‟s philosophy may serve to unravel.

Desde 2007, uma onda de suicídios de funcionários da empresa France

Telecom, a maioria ex-servidores públicos dos Correios franceses incorpora-

dos pela gigante das comunicações após a sua privatização, em 1990, acen-

deu na França um vivo debate sócio-político acerca do embate entre o mo-

dus operandi do capitalismo e a racionalidade burocrática típica de um Esta-

do como a França2.

O trágico ocorrido demonstra a complexidade do problema, bem como

a sua atualidade, e lança a pergunta: quem é o servidor público inserido na

instrumentalidade burocrática? O quebra-cabeça torna-se ainda mais dra-

mático se considerarmos que a dominação do poder burocrático nunca pas-

sou desapercebido pela doutrina sociológica ao externar a sua preocupação,

já em meados do século XX, com o destino dos servidores franceses, engoli-

dos por um Estado pantagruélico: “Eles escapam, em parte, à ansiedade do

homem moderno, incerto do seu status, mas em seu lugar, desenvolvem um

ponto de vista acanhado e enfrentam o recrudescimento da luta pelo poder,

que são as características de um sistema excessivamente rígido”3.

Sem adentrar um juízo de mérito acerca das causas da tragédia acima

narrada, é inquestionável a preocupação de países como a França com a i-

deia de um poder burocrático racionalizado como instrumento de domina-

ção, e que impede o completo desenvolvimento do ser humano como mem-

2 Sobre o tema, vide um dos vários artigos sobre a questão, publicado jornal Le Monde de 10.04.10: ―Les

suicides à France Télécom devant la justice‖, disponível em http://www.lemonde.fr/cgi-bin/ACHATS/acheter.cgi?offre=ARCHIVES&type_item=ART_ARCH_30J&objet_id=1120386, acesso em 26.04.10. 3 CROZIER, Michel. O fenômeno burocrático: ensaios sobre as tendências burocráticas dos sistemas de

organização modernos e suas relações, na França, com o sistema social e cultural. Trad. de Juan A. Gili Sobri-nho. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981, p. 303.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 57

bro efetivo da civitas, verdadeira emancipação social, com a redução drástica

de sua margem de manobra. Essa “ficção do mundo normal”4 que o poder

burocrático proporciona ao homem apenas reforça a sua apatia e cria o ce-

nário ideal para a sua completa dominação.

No Brasil, essa sujeição foi corroborada por uma estrutura elitizada de

poder, onde a elite, historicamente formada desde a República de Avis, criou

um aparato burocrático destinado não apenas à organização econômica do

Estado, mas, sobretudo, à perpetuação de seu poder com a perenidade ne-

cessária à sua manutenção. A superação do intento meramente pecuniário é

essencial à compreensão de que “os sentimentos tem uma influência sobre

as atividades” e, por conseguinte, “a distribuição de poder e o sistema das

relações de poder no seio de uma organização têm uma influência decisiva

sobre as possibilidades e as formas de adaptação de cada um dos seus

membros”5.

É esse conjunto de interações comportamentais que faz surgir, com

magistral perfeição, a ideia de estamento burocrático, refletida na “organiza-

ção político-administrativa do Estado, juridicamente pensada e escrita, ra-

cionalizada pelos juristas”6. O estamento, imaginado por Raymundo Faoro

como uma comunidade amorfa, cujos membros pensam e agem conscientes

de pertencer a um grupo, a um círculo elevado, tem no “exercício do poder”7

uma das realizações mais fieis do que Miguel Reale chamou de “Estado virtu-

al, um verdadeiro Estado in nuce, possuindo uma estatalidade latente ou

imperfeita, uma estatalidade in fieri, à procura de um centro de força pre-

ponderante que lhe assegure a sua plenitude na positividade jurídica”8.

Acreditamos que o estudo da positividade de Miguel Reale, e o caráter

sempre dinâmico de sua teoria tridimensional, deve ter lugar de destaque no

estudo deste “funcionário patrimonial”9 e, mais amplamente, dessa estrutura

de poder tão fundada na ligação entre interesses particulares e cargos públi-

cos. O poder oriundo do estamento burocrático, situado entre a autoridade e

a liberdade, enquadra-se com precisão nesta gradação da positividade jurí-

dica que Miguel Reale resgata de Del Vecchio10, e torna amoldável, com pre-

cisão de relojoeiro, à realidade brasileira.

Ao perceber nas “formações de elites”11 uma das camadas do poder

técnico-burocrático, Tércio Sampaio Ferraz Jr. já sugere como o estamento,

4 FERRAZ JÚNIOR., Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a

justiça e o direito, 3 ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2009, p. 30. 5 CROZIER, Michel. Op. cit., p. 215.

6 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Rio de Janeiro: Globo, 2001, p. 61.

7 Ibid., p. 61

8 REALE, Miguel. Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 43.

9 BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2002, p. 146.

10 REALE, Miguel. Teoria do direito e do Estado, 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 304.

11 FERRAZ JÚNIOR., Tércio Sampaio. ―As origens do Estado contemporâneo ou o Leviathan gestor da

economia‖. In Revista Brasileira de Filosofia, v. 36. São Paulo, 1987, p. 313.

58 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

ao mesmo tempo em que constitui um centro de positividade, exige o exame

do Estado, sobretudo o brasileiro, “como realidade cultural”, não devendo se

confundir “o Estado com o seu aparelhamento legal, com o seu sistema de

normas”12, nos dizeres do mestre Miguel Reale.

Diante desse panorama, (i) a visão dinâmica da tridimensionalidade do

direito em sua incessante tensão, e (ii) a ideia da positividade como externa

ao conceito político de Estado, permitem uma apreensão do conceito de es-

tamento burocrático bastante precisa sob a forma de instrumento de poder

na formação histórica brasileira. Essas serão as duas vertentes deste texto.

No tradicional deslocamento da célula familiar ao Estado, foi no matiz

intermediário do social que se pôde observar o surgimento dessa estrutura

amorfa que instrumentalizaria o Estado por meio do poder burocrático, re-

fletida no estamento. Tal transição, que Hannah Arendt já destacava na pas-

sagem do chefe de família para o senhor feudal13, alcança a figura do Estado

como Leviatã, atribuindo-se a esse último “uma responsabilidade que, no

mundo antigo, cabia ao pater famílias”14. Ocorre que, entre nós, não foram

as organizações burocráticas que assumiram a posição do Leviatã15, mas foi

justamente essa camada social amalgamada entre o público e o privado que,

ao perceber-se protegida pelos favores nobiliárquicos, racionalizou o apara-

to burocrático para garantir a manutenção de seu poder independentemente

do Estado como ordenamento jurídico.

Não por outra razão, Sérgio Buarque de Holanda ironiza a situação dos

engenhos de açúcar ao destacar a positividade que reina dentro de cada uma

dessas unidades: “nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não

é república, sendo-o cada casa”16.

A apropriação do poder torna insuficiente qualquer aplicação do for-

malismo kelseniano, até porque a discussão acerca da norma pressuposta

fundamental terá no estamento sua maior barreira, única fonte legítima de

positividade. Ora, se o mecanismo da Teoria Geral de Kelsen é fundado na

12

REALE, Miguel. Teoria do direito e do Estado, cit., p. 313. 13

ARENDT, Hannah. A condição humana, 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 44. 14

FERRAZ JÚNIOR., Tércio Sampaio. ―As origens do Estado contemporâneo ou o Leviathan gestor da economia‖. Op. cit.. 15

Sobre a ideia da organização burocrática envolto no molde do Leviatã hobbesiano, cite-se trecho da obra de Michel Crozier: ―Toda a literatura pós-weberiana sobre a burocracia está altamente marcada por uma ambi-güidade fundamental. De um lado, a maior parte dos autores pensam que o desenvolvimento das organiza-ções burocráticas corresponde ao advento ao mundo moderno da racionalização e que, por esse motivo, é intrinsecamente superior a todas as demais formas possíveis de organização, enquanto do outro, muitos autores, e frequentemente os mesmos, consideram as organizações como se fossem Leviatãs através dos quais está se preparando a escravidão da raça humana‖ (Op. cit., p. 258). 16

BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Op. cit., p. 81.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 59

exigência de “atos de vontade que produzem normas para regular os atos de

vontade que produzem normas”17, então os primeiros, ao se tornarem impe-

rativos procedimentais, nada mais são do que o fundamento positivo da bu-

rocracia. O que “fecha o sistema”18, no âmbito desta análise, mais do que

“um poder”19, é um poder burocrático que, ao ir além do Estado, permite

encontrar neste apenas um leito de validade, mas não de eficácia, atendo-se

à terminologia de Bobbio.

O Estado, como sistema de normas, nada mais é, portanto, do que o

fantoche do estamento burocrático e é dele que se irradiam os valores pa-

trimoniais que nortearão o processo organizacional. É a unidade ilusória

desse sistema que cria o que denominamos comodismo estamental, que

consiste na manutenção do mesmo grupo de indivíduos detentores das ré-

deas da organização político-administrativa do Estado, de forma estática e

atemporal. Aqui se enquadra perfeitamente a observação de Tércio Sampaio

Ferraz Jr. ao afirmar que “lacuna não é vazio nem é inadequação, mas tensão

não resolvida temporariamente”20, haja vista que é na manutenção de um

sistema “sem tensões” que o estamento burocrático encontra a sua força de

subsistência, a sua “liga”.

A ideia de dinamicidade ou, em última instância, de revolução, é o que

faz surgir a instabilidade e, portanto, torna questionável o frágil edifício

construído sobre a base estamental, e por ela desenhado. A filosofia jurídica

de Miguel Reale permite enxergar na constante dinâmica entre fato, valor e

norma uma válvula de escape que interrompa esse moto perpétuo fundado

no circulo vicioso da criação normativa e legitimação da norma. É na tentati-

va permanente do poder burocrático de enxergar a síntese entre fato, valor e

norma à luz de uma legislação estática – e não de um ordenamento dinâmi-

co21 – que se encontra o cerne da questão, e onde o movimento realiano da

temporalidade mais contribui para a compreensão do estamento brasileiro.

A dinâmica da tridimensionalidade, a nosso ver, enxerga a ideia do po-

der como liberdade de mudança e de não-sujeição permanentes às institui-

ções sociais, o que permite uma constante renovação daquela relação trípli-

ce. Aqui, a constatação de Michel Crozier de que “o ser humano não está

apenas dotado de uma mão, ele também tem uma cabeça, um projeto, uma

liberdade”22 parece extremamente adequada para compreender de que forma

17

BOBBIO, Noberto. Direito e poder. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 159. 18

Ibid., p. 165. 19

Ibid., p. 165. 20

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. ―O problema das lacunas e a filosofia de Miguel Reale in Direito Política Filosofia Poesia: estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale em seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 279. 21

A distinção é feita por Miguel Reale: ―A legislação estatal é apenas o núcleo estável, a linha de referência do ordenamento jurídico positivo do Estado. A legislação é estática; o ordenamento é dinâmico. A legislação é formal; o ordenamento é a legislação in acto e in concreto, a substância da vida social integrada na lei pela interpretação exigida segundo os fins éticos da convivência (...)‖. Teoria do Direito e do Estado, cit., p. 336. 22

CROZIER, Michel. Op. cit., p. 221. Grifou-se.

60 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

o aparato burocrático, ao enxergar o homem como peça de máquina, cria

uma relação entre fato, valor e norma puramente estática e fundada em uma

normativa momentânea que não dá qualquer margem ao imprevisto, à liber-

dade. A fortuna de Hannah Arendt23 é a pedra de toque desse movimento de

constantes micro-revoluções, opostas ao estamento, fundadas nas tais in-

certezas de Michel Crozier24, que o estamento insiste em reduzir. Tanto que

Celso Lafer, ao se referir à obra de Hobbes e, mais precisamente, ao “jogo

monótono da dicotomia anarquia/estado”, afirma a “eficácia por vezes bené-

fica do conflito”25 que o autor inglês deixou de ressaltar.

A dinâmica temporal entre fato, valor e norma, tão preciosa à percep-

ção do estamento burocrático, foi magistralmente narrada por Miguel Reale

ao questionar os graus de positividade: “A positividade, correspondente a

sucessivos momentos de atualização de valores segundo estruturas e mode-

los alternativos, revela, ao mesmo tempo, a ordenação intra-sistemática de

normas e de situações normadas, bem como um escalonamento interssiste-

mático entre as ordenações correspondentes às distintas esferas de realiza-

bilidade jurídica, da qual o Estado é, por enquanto, o sistema mais estável e

sólido”26. Esse movimento é indispensável para relativizar os centros emana-

dores de normas, a fim de perceber no Estado apenas o “mais estável e sóli-

do” sistema, mas nunca o único, decorrendo daí a possibilidade de visualizar

outros centros de positividade, como o estamento burocrático.

Essa “integração tensional” entre os três elementos permite que não se

reduzam uns aos outros, “embora se relacionem polar e permanentemente

entre si”27, o que impede a apropriação do valor pelo estamento, que esgota-

ria em sua instrumentalidade burocrática uma norma supostamente válida, e

que beneficiaria a continuidade desse esquema de poder elitista. Caberá à

crise e à mudança enfrentar a resistência burocrática28.

Posto esse cenário, é possível observar como o estamento burocrático

subjuga os seus súditos, não apenas os tornando corpos dóceis, nos dizeres

23

―A virtù é a resposta que o homem dá ao mundo, ou, antes, à constelação de fortuna em que o mundo se abre, se apresenta e se oferece a ele, à sua virtù; a interação entre elas indica uma harmonia entre o homem e o mundo – agindo um sobre o outro e realizando conjuntamente – tão remota a sabedoria do político como da excelência moral (ou de outra espécie) do indivíduo e da competência dos peritos‖ (ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro, 5 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002, p. 182. 24

Aqui, o autor é enfático ao explorar a margem de manobra, refletida na incerteza, dos operários da manu-tenção em sua análise quase balzaquiana da Comédia Humana: ―Fazendo isso, aliás [atacando os chefes das oficinas], eles não fazem mais do que explorar sua vantagem inicial, que depende do controle que podem exercer sobre a sua única fonte importante de incerteza que subsiste nesse sistema dominado pela rotina‖ (CROZIER, Michel. Op. cit., p. 228). 25

LAFER, Celso. ―Hobbes visto por Bobbio‖. In Revista brasileira de filosofia, v. 39, fasc. 164, out./dez. 1991, p. 256. 26

REALE, Miguel. Estudos de filosofia e ciência do direito. Cit., p. 46. Grifou-se. 27

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. “O problema das lacunas e a filosofia jurídica de Miguel Reale‖. Cit., p. 275. 28

Cite-se o pensamento de Michel Crozier: ―Devido a longas demoras necessárias, à ampliação que deve revestir, à resistência que tem que vencer, a mudança constituiu, para um sistema de organização burocráti-ca, uma crise que não pode deixar de ser profundamente sentida por todos os participantes‖ (Op. cit., p. 285).

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 61

de Foucault, mas também os imbuindo de uma falsa consciência de que esse

grupo detentor de poder o é em virtude da legitimação estatal e não em vir-

tude de ser uma corpo que transcende o Estado e organiza a sua juridicidade

para a manutenção de seu poder.

A abolição da ação e do tempo do indivíduo é o mote dessa estrutura

estamental. Assim, “a sociedade, em todos os seus níveis, exclui a possibili-

dade de ação, que antes era exclusiva do lar doméstico. Ao invés, de ação, a

sociedade espera de cada um dos seus membros um certo tipo de compor-

tamento, impondo inúmeras e varias regras, todas elas tendentes a „normali-

zar‟ os seus membros, a faze-los „comportarem-se‟, a abolir a ação espon-

tânea ou a reação inusitada”29. A ideia brilhantemente exposta por Hannah

Arendt é o substrato que solidifica a relação entre fato, valor e norma para

um tempo curto, isto é, o tempo da rotina de trabalho, da standardização do

comportamento.

Foi Antonio Negri, filósofo italiano com nítida influência de Arendt e

Spinoza que, ao defender a ideia de um poder constituinte como revolução,

mais bem definiu a abolição desse tempo: “O tempo deve ser tão somente o

tempo da repetição da jornada de trabalho. É este bloqueio do tempo que,

ao contrário, aumenta a consciência das massas: leva-as da política à socie-

dade, da crítica do poder à crítica do trabalho. As massas respondem ao blo-

queio do tempo com acelerações formidáveis e imprevistas que, a cada vez,

ultrapassam o obstáculo e deslocam o limite para frente”30. O pensador itali-

ano enxerga com nitidez a dimensão da política como um poder posto e,

portanto, pertencente àqueles que o põe, no caso brasileiro, ao estamento. A

burocracia, nesse contexto, nada mais é do que o instrumento racional de

imposição desse poder político, desse poder constituído.

Ao citar os trabalhos de Merton, Selznick e Gouldner, Michel Crozier

aponta com precisão essa ideia de constituição do poder pela burocracia:

“Esses três autores dão cada vez mais lugar aos aspectos rotineiros e opres-

sivos da burocracia, que podem ser finalmente considerados como constitu-

intes de um sistema paralelo de causalidade”31. Parece-nos que é esse sis-

tema paralelo de causalidade que melhor reflete a ideia do estamento.

Em suma, a dinâmica da tridimensionalidade é o único instrumento vá-

lido e eficaz para compreender a apropriação estática de cada um desses

três elementos por uma estrutura dominante de poder. Sendo a norma sem-

pre um “equilíbrio provisório, mais ou menos duradouro entre fatos e valores

positividados pela interferência de decisões do poder”32 então se concebe a

recusa a qualquer definitividade, sendo possível imaginar a ruptura desse

29

ARENDT, Hannah. A condição humana. Cit., p. 50. 30

NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaios sobre as alternativas da modernidade. Trad. de Adriano Pilatti. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 284. 31

CROZIER, Michel. Op. cit., p. 266. Grifou-se. 32

LAFER, Celso. ―Entre a norma e a realidade‖. Entrevista de Celso Lafer à Revista Cult, p. 58.

62 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

equilíbrio por meio de uma visão dinâmica da tridimensionalidade. A própria

ideia de poder, como poder posto, constituído, reflete na burocracia um

simples instrumento de legitimação procedimental de seus atos, a fim de

imbuir no Estado uma falsa aparência de legalidade material. A apropriação

das organizações político-administrativas do Estado por um grupo dominan-

te no Brasil parece ser o maior reflexo da necessidade de superar uma estru-

tura puramente estática de fato, valor e norma, típica de uma estrutura a-

morfa, a fim de irradiá-los dessa tensão polar tão importante na dialética

realiana.

Outro aspecto da filosofia de Miguel Reale que contribuiu grandemente

para o exame do estamento burocrático brasileiro é o exame da ideia de po-

sitividade em sua obra, cuja ideia de gradação é trazida de Del Vecchio. A

relativização da positividade do Estado, e a ideia de que “a positividade não

pode ser considerada elemento essencial do jus”33‟, permitem ver com muita

nitidez o corpo estamental como emissor de comandos normativos que

transcendem um ordenamento jurídico estatal.

Exemplo clássico do descolamento acima narrado entre ordenamento

jurídico e poder estamental está no sistema de voto brasileiro, tão bem exa-

minado por Victor Nunes Leal: “No regime que botamos abaixo com a Revo-

lução, ninguém tinha a certeza de se fazer qualificar, com a de votar... Vo-

tando, ninguém tinha a certeza de que lhe fosse contado o voto... Uma vez

contado o voto, ninguém tinha a segurança de que seu efeito havia de ser

reconhecido através de uma apuração feita dentre desta Casa e por ordem,

muitas vezes, superior”34. Ora, como entender um sistema que afasta a re-

presentatividade do poder estatal sem admitir a existência de outras positi-

vidades? Parece-nos que é a essa resposta que a filosofia da gradação das

positividades de Miguel Reale pode contribuir.

A inexistência de uma “positividade única, unitária e hierárquica, mas

positividades diferentes, graduadas, no sentido vertical, mas não simétricas,

no sentido horizontal”, tão bem delineada por Tércio Sampaio Ferraz Jú-

nior35, parece abrir caminho para a racionalização de um aparelho burocráti-

co a serviço de uma positividade paralela, a do estamento.

Uma vez que Miguel Reale defende o estudo da vigência não como me-

ro procedimento formal, mas como uma “referência aos valores que determi-

naram o aparecimento da regra jurídica, assim como às condições fáticas

33

REALE, Miguel. Estudos de filosofia e ciência do direito. Cit., p. 37. 34

NUNES LEAL, Victor. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Nova Fronteira, 1997, p. 256. 35

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. ―O problema das lacunas e a filosofia jurídica de Miguel Reale‖. Op. cit., p. 278.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 63

capazes de assegurar a sua eficácia social”36, então é possível enxergar no

poder oriundo da estrutura estamental uma fonte dessa vigência, que se

legitima por meio de um aparato burocrático racionalizado. Assim é que a

distinção proposta por Jean Bodin para “fixar a diferença entre o Estado e as

quadrilhas de ladrões e de bandidos”37, ironicamente, acaba desbotada à luz

dessas múltiplas positividades e, mormente, à luz de um direito estatal que

nada mais é do que “uma espécie, ou melhor, uma fase, muito embora a

mais importante, do gênero ou da categoria lógica do direito”38.

É na centralização do poder que o estamento verá sua grande arma, ao

convidar para uma participação das decisões gerenciais aqueles indivíduos

mais dotados de uma margem de manobra que possa propiciar a margem de

incerteza tão cara à revolução. Assim é que o estamento brasileiro, progres-

sivamente, infla-se com sindicalistas, membros de movimentos sociais, a fim

de neutralizar a emanação de uma positividade difusa e revolucionária39.

A gradação das positividades supera, pois, o formalismo kelseniano, a

partir de uma visão crítica do poder normativo estatal40. Em uma sociedade

na qual “a transmigração [da corte] superpôs à estrutura social existente a

estrutura administrativa do cortesão fugitivo”41, é nítida a formação histórica

do Estado de cima para baixo, tornando-se insuficiente a filosofia de Kelsen

e impondo-se uma visão múltipla dos centros de poder em que a burocracia

é o instrumento de dominação de apenas um deles.

Sob esse enfoque, a burocracia torna-se fim em si mesmo ao ser ra-

cionalizada não como meio de instrumentalização de um poder estatal, mas

como forma de dominação do estamento. Aqui, cabe a ideia weberiana, bem

delineada por Tércio Sampaio Ferraz Júnior, que “identifica o aparecimento

do Estado com o desenvolvimento da burocracia enquanto forma de domina-

ção baseada na crença da legalidade, isto é, da organização racional das

competências com base na lei, tendo em vista o princípio da eficiência”42.

36

REALE, Miguel. Filosofia do direito, 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 597. Grifos no original. 37

Jean Bodin apud BOBBIO, Noberto. Op. cit., p. 160. 38

REALE, Miguel. Estudos de filosofia e ciência do direito. Op. cit., p. 42. 39

Essa ideia é muito bem apresentada por Micher Crozier ao mencionar as manobras de cooptação da direção empresarial: ―Ela elaborou paulatinamente um sistema de cooptação graças ao qual os representantes de cada um dos grupos, cuja força de pressão se torna excessivamente pesada, é convidado a participar na determinação da política de conjunto. Ao mesmo tempo, essa direção utilizou a situação difícil contra a qual a organização teve de lutar duramente para afirmar-se e sobreviver, como um potente recurso ideológico‖. Op. cit., p. 254. 40

Cite-se excerto da obra de Noberto Bobbio que bem reflete o pensamento kelseniano: ―O elemento que diferencia a relação definida como poder estatal (Staarsgewalt) das outras relações de poder é ser juridica-mente regulado; isto é, consiste no fato de que os homens que exercem o poder como governo do Estado são autorizados por um ordenamento jurídico a exercer aquele poder, produzindo e aplicando normas jurídicas, ou seja, no fato de que o poder estatal tem caráter normativo‖. Op. cit., p. 175. 41

FAORO, Raymundo. Op. cit., p. 295. 42

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. ―As origens do Estado contemporâneo ou o Leviathan gestor da eco-nomia‖. Op. cit.

64 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

Arrisca-se dizer que a burocracia torna-se um centro de positividade, da

positividade estamental.

Portanto, é muito pertinente a assertiva de Michel Crozier em seu cote-

jo da burocracia, ao alegar que “o fenômeno burocrático parece correspon-

der ao equilíbrio que se estabelece entre o tipo de controle social utilizado

para manter a organização como um sistema em movimento, e as reações do

grupo humano a ele submetido”43. Não obstante, essa dicotomia deve ser

compreendida cum granus salis pois, entre nós, é justamente aquele contro-

le social que impede o movimento, tão necessário à superação da dominação

burocrática.

Essa visão não é surpreendente se considerarmos que, ao fazer a críti-

ca às correntes interacionistas, Michel Crozier tangencia a noção de esta-

mento: “(...) continuam deixando de lado todas as relações de poder que se

formam em redor da hierarquia, sem as quais essa pirâmide não parece ou-

tra coisa além de um quadro informal”44. São essas estruturas paralelas (rec-

tius, transcendentes) de poder que propiciam o controle social materializado

na racionalização burocrática. Aliás, é de suma importância ressaltar que

Michel Crozier insere-se no contexto do Estado francês, no qual hoje, cada

vez mais, o solidarismo tem rompido a barreira existente entre o Estado e

essas diversas positividades. Nos dizeres de Jacques Chevalier, “o solidaris-

mo confere ao Estado republicano uma nova legitimidade: permite superar a

contradição entre o princípio teórico da igualdade política e a persistência

fática das desigualdades sociais; pelo estabelecimento da solidariedade, a

República coloca-se a serviço do progresso da sociedade o Estado encontra

aí a sua missão”45.

A visão de Antonio Negri, embora dotada de certo idealismo, tem o

mérito de desenhar com bastante precisão essas estruturas paralelas, refleti-

das, de forma até um pouco exagerada, na própria política: “A revolução

social, ao contrário, e a francesa em particular, anula a política, subordinan-

do-a a um social que, abandonando a si mesmo, gira no vazio, numa busca

da liberdade que se torna cada vez mais cega e louca. Onde quer que a polí-

tica não permita à sociedade compreender-se, constituir-se na compreen-

são, a loucura e o terror levarão a melhor. O totalitarismo não poderá senão

se afirmar”46.

O próprio Miguel Reale percebeu com nitidez esses centros de positivi-

dades externos ao Estado: “A verdade é que – alcançando um certo grau de

desenvolvimento – o ordenamento jurídico assim constituído, ou se integra

no Estado, ou se põe contra o Estado, pretendendo arrancar-lhe esferas mais

ou menos amplas de suas atribuições peculiares. Foi o que se deu e é o que

43

CROZIER, Michel. Op. cit., p. 296. Grifou-se. 44

Ibid., p. 219. 45

CHEVALIER, Jacques. ―Le service public: regards sur une évolution‖. In AJDA, Paris, 1997, p. 8. 46

NEGRI, Antonio. Op. cit., pp. 27-28.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 65

ainda se passa com o fenômeno sindicalista e com a formação de verdadei-

ros monopólios à margem do Estado, pretendendo partilhar soberania do

Estado”47. Embora Reale tenha abordado uma noção apenas horizontal de

compartilhamento de poder, deu-nos a chave para enquadrar com precisão a

transcendência vertical de poder constituída no estamento brasileiro.

Essas breves observações revelam na gradação de positividade um

pensamento que permite superar o formalismo kelseniano não apenas em

sua legitimação exclusivamente procedimental, mas em sua unicidade das

fontes de poder. A difusão de diversos centros de positividade permite en-

xergar o estamento brasileiro não apenas como uma estrutura de permanen-

te dominação, mas, sobretudo, como reveladora de um conceito de poder

desprendido do ordenamento jurídico.

Para superar a aporia entre a universalidade do conceito e da ideia e a

particularidade contingente dos fatos, Miguel Reale defende que somente

uma apreciação dialética da experiência jurídica pode superar o apontado

antagonismo48. A genialidade dessa afirmação demonstra o avanço do pen-

samento de Reale quanto à necessidade desse movimento incessante, dessa

crise, dessa tensão, para enxergar o Estado e, mais precisamente, o Estado

brasileiro.

A dinâmica de interação entre fato, valor e norma, contrapõe-se à es-

tática da perenidade do grupo que se apropria do Estado, e se legitima pela

racionalidade burocrática. A ideia das diversas positividades do direito per-

mite iluminar com maior precisão esse grupo, tentando descolá-lo do Esta-

do, a fim de não mais enxergá-lo com naturalidade. A principal consequên-

cia de sua manutenção, é a também manutenção das desigualdades sociais,

combustível não apenas de enriquecimento dessa elite mas, sobretudo, de

sua legitimação.

Não apenas a dialética é favorável a esse entendimento, como o vazio

de síntese ainda é visto por alguns como principal instrumento de continui-

dade do movimento, como é o caso de Antonio Negri: “Se na história da de-

mocracia e das constituições democráticas a tensão entre poder constituinte

e poder constituído nunca atingiu uma síntese, devemos nos concentrar pre-

cisamente nesta negatividade e neste vazio de síntese para tentar compreen-

der o poder constituinte”49.

Vê-se, portanto, que a filosofia de Miguel Reale traz instrumentos pre-

ciosos para a compreensão desse fenômeno tão brasileiro de dominação e

47

REALE, Miguel. Teoria do direito e Estado. Op. cit., p. 320. Grifos no original. 48

REALE, Miguel. Ensaios de filosofia e de ciência do direito. Op. cit., p. 38. 49

NEGRI, Antonio. Op. cit., p. 23.

66 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

poder, sem os quais a estrutura do estamento permanece confundida com o

ordenamento jurídico, e dotada de legitimidade transcendente. A burocracia,

nessa conjuntura, torna-se, mais do que nunca, um meio de propulsão da-

quele poder, fazendo da norma um amálgama entre seus valores e a esco-

lhas de seus fatos. Se essa tríplice relação for imbuída de um movimento

tensional, então, será possível entrever nos pequenos vazios que a dialética

insolúvel não quer fechar, uma esperança de questionamento desse poder da

desigualdade.

ARENDT, Hannah. A condição humana, 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Univer-

sitária, 2005;

_____. Entre o passado e o futuro, 5 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002;

BOBBIO, Noberto. Direito e poder. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Editora

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FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Rio de Janeiro: Globo, 2001;

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LAFER, Celso. “Entre a norma e a realidade”. Entrevista de Celso Lafer à Re-

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68 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

Guilherme Roman Borges Advogado, doutorando e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP; mestre em Sociologia do Direito e bacharel na UFPR, foi bolsista doutoral anual na Sholé Anthropísti-kon kai Koinonikon Epistémon–Tméma Philosophías–Panepstímio Pátron–Elleniké Demokra-

tía (Faculdade de Filosofia da Universidade de Patras-Grécia); professor de Economia e Direito Econômico na Universidade Positivo

O presente ensaio, em comemoração ao centenário de Miguel Reale,

pretende trazer uma brevíssima introdução às suas leituras metafísicas feitas

no decorrer de suas obras do pós-guerra, em especial, sobre a problemática

entre o saber filosófico e o saber científico e seus critérios de validade, como

forma de apresentar o tema ao leitor.

Partindo da sua compreensão sobre o saber jusfilosófico, definindo-o e

arquitetando os seus contornos, convém avançar sobre as matrizes filosófi-

cas que marcaram profundamente as suas investigações, com vistas a confe-

cionar o pano de fundo que costura a sua percepção metafísica e permitir

posterior parâmetro de reconhecimento de suas aceitações e de suas críticas.

Prosseguindo, embasado na fenomenologia do início do séc. XX, pre-

tende-se esboçar os traços centrais de seu raciocínio ontognoseológico, do

conceito de experiência, para que se possa chegar ao seu peculiar método

* Artigo apresentado em 22 de junho de 2010 à Disciplina Direito e Poder: Homenagem ao Centenário de

Miguel Reale (DFD5902-1), ministrada pelos Professores Titulares Dr. Tercio Sampaio Ferraz Júnior e Dr. Celso Lafer, e, pela Professora Dra. Elza Antonia Pereira Cunha Boiteux na Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de são Paulo, referente a Sétima Sessão do Congresso Internacional (08.04.10 as 9h30) sob o tema ―O Progresso da Ciência e a Filosofia‖.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 69

conjetural como síntese da experiência e da abstração do raciocínio filosófi-

co e científico.

Enfim, uma vez examinada a sua ontognoseologia e moldurada a sua

metafísica conjetural, pretende-se fazer um balanço epistemológico dos al-

cances da conjetura como forma de juspensar, bem como refletir até que

ponto Miguel Reale efetivamente conseguiu superar a clássica dicotomia da

filosofia essencialismo versus retórica.1

Iniciando, é preciso afirmar que a questão do “método conjetural” tra-

balhado por Miguel Reale aparece de modo claro e mais bem elaborado na

sua obra Verdade e Conjetura de 1983, embora suas linhas já estivessem

esboçadas desde os anos sessenta, com Direito Como Experiência de 1968,

Teoria Tridimensional também do mesmo ano e, sobretudo, Experiência e

Cultura de 1977 (eventualmente de modo longínquo em 1953 com Filosofia

do Direito).

Neste ensaio, Reale procura responder uma questão deixada em aberto

no livro Experiência e Cultura, que se resume numa tentativa de pensar uma

possível justificativa para a “experiência metafísica conjetural”. Seu caminho

gnoseológico se traduz, em primeiro, esmiuçar o “pensamento conjetural”;

em segundo, perceber as relações entre “ser e pensar”; em terceiro, no exa-

me da “liberdade e da validade” pelo pensamento conjetural; em quarto, na

materialização do “ser da cultura”; e, por fim, na compreensão dos “grandes

temas da metafísica”, com vistas a costurar o método conjetural.

A preocupação central é a retomada do clássico problema jusfilosófico

das bases da teoria do conhecimento, entre as diferenças fundamentais e de

bases epistêmicas entre o “pensar sobre a verdade” e o “pensar sobre a con-

jetura”, mais precisamente, é o resgate da discussão entre “essencialismo”

versus “retórica”, vista numa generalização.2

Preocupa-se Reale em mostrar que à medida que o pensamento meta-

físico deixa de ser dogmático, na busca do noumenon kantiano, para ser

uma reflexão crítica, ele se torna um “pensamento conjetural”. Sua base não

é um raciocínio de probabilidades, mas de versossimilhança, que procura

preencher o vazio deixado pelo pensamento analógico. Trata-se, em princí-

pio, de uma outra forma de pensar, que não pretende conhecer o “ser em si”,

mas uma realidade de provisoriedades, com formulação de enunciados sis-

temáticos e plausíveis. Esse é o pano de fundo que Reale costura, mas cuja

compreensão pressupõe antes entender suas matrizes fenomenológicas, seu

tridimensionalismo e seu criticismo ontognoseológico.

1 CUNHA, Paulo Ferreira. Lições preliminares de Filosofia do Direito.Coimbra, Almedina, 1998, p. 46 e segs.

2 ADEODATO, João Maurício. Conjetura e verdade. In.: Ética e Retórica, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 41.

70 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

A conclusão a que chega provisoriamente Miguel Reale, que adiante se

esboçará com a noção de “metafísica conjetural”, pressupôs uma questão

levantada anteriormente, como dito, no livro Experiência e Cultura, dos anos

setenta. Neste livro, Reale mostra suas bases filosóficas, em especial, a influ-

ência da fenomenologia das primeiras década do século passado. É em Hus-

serl, Heidegger e Hartmann que Reale se sustenta para pensar a “experiên-

cia” como categoria filosófica.

Miguel Reale acredita que a teoria do conhecimento se rompeu à medi-

da que houve o desdobramento das ciências positivas. A singularização

promovida pelo saber científico especializou o conhecimento sobre a mesma

e única realidade, o que, por certo, provocou a perda da totalidade do saber.

O empobrecimento cultural se atrelou inevitavelmente às visões reducionis-

tas das ciências.

O desconforto realeano se concentra no fato destas ciências, essenci-

almente gnoseológicas, terem reduzido a teoria do conhecimento à episte-

mologia, e, conseqüentemente, à leitura tecnicista e progressional do mun-

do. Por essa razão, o julsfilósofo vai em busca de uma teoria globalizante,

capaz de cobrir possíveis experiências distintas, eis porque, uma espécie de

“teoria geral da experiência”.

Para construí-la, Reale demonstra na história da filosofia, que as teori-

as se concentraram no tempo em duas matrizes distintas e opostas: a) pers-

pectiva ontológica, centrada no objeto; b) gnoseológica, centrada no sujeito,

ou, como prefere Reale, transcendente e transcendental. Porém, todas aca-

bam por se distanciar da realidade. A única maneira de compor a realidade

teoricamente é através de uma “ontognoseologia”.3

À medida que concilia sujeito-objeto, a ontognoseologia evitar fugir a

conceitos sem base exclusivamente empírica ou mesmo a construções teóri-

cas eminentemente abstratas, como a ética. O conceito de “experiência esta-

ria apto a abarcar todas as manifestações da vida humana, conciliando valo-

res e ciência. Por isso, o seu conceito é multifário, e, inevitavelmente, com-

porta uma perspectiva dialética.4

Todavia, apesar de forte influência de Hegel em Reale, a sua compre-

ensão da dialética dele se distancia, ao trabalhar com uma “dialética da com-

plementariedade”, pois nenhum dos pólos se reúne ou se sintetiza (não há

superação - Aufhebung). Trata-se de uma relação “implicação-polaridade

3 LOSANO, Mario. Storia contemporanea del diritto e sociologia giuridica. Milano: Franco Angeli, 1997, p.

71 e segs. 4

REALE, Miguel. Conjeturas da experiência jurídica. In Fontes e modelos do direito: para um novo paradig-ma hermenêutico, São Paulo, Saraiva, 1998, p. 131 a 162.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 71

aberta”. É exatamente esta dupla implicação que conseguiria, segundo Reale,

fugir à positividade asséptica das ciências.

A base para Reale seria o criticismo elaborado por Kant, embora este

devesse ser atualizado.5 Para o professor paulista, a matriz kantiana de um

saber científico transcendental, capturado da matemática e da física, e mes-

mo pelas ciências humanas, apesar de seu déficit empírico, é capaz de per-

mitir a racionalização do conhecimento, fator esse fundamental no posicio-

namento do sujeito diante dos objetos reais. Por isso, a fixação dos limites e

das possibilidades do conhecimento era uma tema que segura a leitura kan-

tiana do mundo.

O criticismo kantiano era unilateral, formal e estático, vez que enclau-

surava as condições de conhecimento numa formalização excessiva da rela-

ção transcendental entre espírito e natureza. A capacidade nomotética e

criativa do homem era nitidamente aniquilada no pensamento kantiano à

medida que o conhecimento é regido previamente por leis estabelecidas. A

transcendentalidade possível era apenas do sujeito e não do objeto.

De outro lado, Reale, buscando um criticismo dinâmico, presume tam-

bém a transcendentalidade do objeto, o que o ajuda a construir a ontogno-

seologia. Contudo, antes de explorar melhor essa relação, convém aprofun-

dar as bases husserlianas e hartmannianas de Reale.

As ciências trouxeram no início do século passado a valorização exces-

siva do conhecimento centrado no objeto, o que acabou por ser muito bem

captado pelos fenomenólogos. Especialmente em Husserl, a teoria da inten-

cionalidade da consciência abre espaço para a leitura que Reale pretende

fazer da teoria do conhecimento. Husserl sintetiza aspirações realistas e ide-

alistas, pois, embora preocupado com o objeto, o espírito está sobre ela cal-

cado e nela acaba por se imiscuir, fazendo um amálgama das experiências

com o seu a priori.

Husserl resgata, ao lado de Hartmann, uma leitura transcendental kan-

tiana indo além, e esboça uma teoria dos objetos, pressuposto da ontogno-

seologia realeana. Esta percepção fenomenológica importa a necessidade de

se compreender que os objetos só existem por força da intervenção criadora

do homem, mas, também, porque os objetos estão sempre em algum grau

de correlação, de modo que apenas o seu contrário é que permite o seu res-

gate.6

Esta leitura germânica conduz Reale a sustentar que o conhecimento

está dinamicamente relacionado na relação sujeito e objeto, e, apenas num

ambiente de correlações é que se pode conhecer. O sujeito intencional se

direciona para algo, e, este objeto, possui uma dada estruturação capaz de

ser compreendido. O conjunto de correlações expõe os limites do conheci-

5 REALE, Miguel. Experiência e cultura, São Paulo: Edusp, 1977, p. 22 e segs. (primeiro capítulo)

6 REALE, Miguel. Experiência e cultura. São Paulo: Edusp, 1977, p. 55.

72 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

mento, e lhe prescreve as suas condições objetivas, de modo que o ato de

conhecer, porque objetivo situa-se num mundo histórico e cultural.

Com isso, Reale, a partir do ato intencional de Husserl e seu subjeti-

vismo intencional, bem a objetividade de Hartmann, pressupõe que o ho-

mem só conhece porque está imbricado no objeto, não lhe sendo permitido

outro ato senão conhecer. Eis porque, na leitura transcendental realeana,

sujeito e objeto só existem porque correlacionados por dupla intencionalida-

de. É justamente a possibilidade da existência exterior ser captada por atos

intencionais da consciência que abre espaço para Reale formular sua ontog-

noseologia.

Construídas as bases kantianas, husserlianas e heideggerianas em

Reale, é possível se debruçar agora na tentativa de compreender em que

medida a sua matriz de tridimensionalismo é realmente inovadora, e, mais

precisamente, em que medida a sua base epistemológica do criticismo on-

tognoseológico ajuda-o a pensar possíveis linhas de ruptura com o pensa-

mento tradicional em busca de um pensamento conjetural.

A teoria tridimensional apresenta diversas matizes. A relação entre fa-

to, valor e norma estiveram à frente de reflexões filosóficas de inúmeras Es-

colas jusfilosóficas e não foi, de modo algum, leitura apresentada original-

mente por Reale.7 Os exegetas do séc. XIX se apegaram ao estudo da “nor-

ma”, tanto quanto os autores do “direito livre” se ocuparam do fato social e

dos valores. Porém foram os tridimensionalistas alemães, rastreados em Lask

e Radbruch, ora envolvidos pela percepção dialética, ora mera justaposição,

que compreenderam que o direito temporal e materialmente era uma relação

indissociável entre fato, valor e norma. Nessa linha também seguiu o tridi-

mensionalismo francês de Paul Roubier, ao falar em segurança jurídica, justi-

ça e progresso social, o italiano de Giorgio Del Vecchio, que vinculou geno-

seologia, deontologia e fenomenologia, o latino-americano de Legaz y La-

cambra, o argentino de Carlos Cossio, o português de Cabral de Moincada, o

hispano-mexicano Recaséns Siches, e, mesmo os autores anglo-saxões co-

mo John Austin e Roscoe Pound. Cada um pensou de modo diferente, ora

para o fenômeno “norma” falaram em lei, gnoseologia, segurança jurídica;

para “valor” falaram em deontologia, jurisprudência, justiça; e, para “fato”,

falaram em costume, fenomenologia, progresso social etc.

Contudo, o que distancia Reale de outros jusfilósofos é, em suma, a

preocupação com a concretude da experiência cultural do direito. A base

está na intencionalidade de Husserl, à medida que a relação transcendental

7 Leituras feitas com base em ADEODATO, João Maurício. Conjetura ..., p. 83-87.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 73

entre sujeito e objeto não admite uma operação reducionista de síntese dia-

lética apenas, nem tampouco uma aniquilação de um ou de outro, de modo a

privilegiar o espírito ou a natureza.8 Essa leitura pressupõe compreender que

Reale procurou ir além dos modelos transcendentais acima expostos de He-

gel e Husserl vez que cinde a transcendentalidade para conduzi-la à experi-

ência, conjugando-a aos planos material e histórico.9

Essa cisão pressupõe que a dicotomia ser e dever-ser não pode ser ab-

soluta, senão elementos que compõe uma inevitável síntese da experiência

cultural humana. Essa experiência só ocorre se sujeito e objeto estiverem na

exata medida implicados seja na intencionalidade do conhecer o mundo,

quanto do quanto essas intencionalidades se tencionam de modo objetivo na

história.10 A discussão sobre a dialética da polaridade deixa pistas funda-

mentais.

Essa relação íntima entre sujeito e objeto costura-se claramente pela

dialética da complementariedade. Seu propósito é fugir à simplificação do

realismo ou do idealismo, e ser, em si mesmo, uma espécie de realismo-

idealista, vez que somente é a subjetividade que pode conferir sentido e

coerência à realidade.

Buscando se distanciar de um Dogmatismo, a ontognoseologia realea-

na questiona o a priori da primazia das ciências positivas. Ao sustentar que

ela estaria resumida à lógica formal, o mecanismo para uma nova teoria do

conhecimento seria a pressuposição de uma perspectiva que superasse o

plano transcendental x plano empírico,11 em suma, que admitisse a dialética

da polaridade como correlação sujeito-objeto. Apenas uma objetividade

transcendental, que aceitasse outras formas de saber que não a simples e-

pistemologia ou a lógica, é que permitira a integração de uma imaginação

criativa. Deixa, então, Reale, espaço para a conjetura.

Procurando fugir da retórica, como bem destaca João Maurício Adeo-

dato,12 reale se debruça sobre a metafísica, para vê-la de outro modo. A o-

posição entre o conhecer e o pensar,13 que se singulariza na relação entre a

formulação de “conceitos” e de “idéias”, induz a se admitir que a conjetura

tem um evidente caráter de legitimidade como vetor gnoseológico. Sua fun-

8 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, São Paulo: Saraiva, 1968, p. 88.

9 REALE, Miguel. O Direito como Experiência. São Paulo: Saraiva, 1968, p. 25

10 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional ..., p. 80-81.

11 MACIEL, Bruno. O conceito de experiência na teoria da cultura de Miguel Reale. In.: Revista Interdiscipli-

nar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos, Juiz de Fora, a. 1, n. 4, p. 88, jun-ago/2007. 12

ADEODATO, João Maurício. Conjetura ..., p. 93. 13

Sobre tal relação, de modo ensaístico, ver: LAFER, Celso. Filosofia do direito e princípios gerais: conside-rações sobre a pergunta ―o que a filosofia do direito?‖. In.: O que é a filosofia do direito. Barueri: Manole, 2004, p. 51-74.

74 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

ção é “preparar o terreno para um conhecimento mais rigoroso do experien-

ciável”14

A conjetura, para que ganhe foros legítimos, não pode ser reduzida a

simples “probabilidade” ou simples “sugestão”, mas se põe fundada em ar-

gumentos críticos baseados na “plausibilidade ou na verossimilhança”15.

Conjeturar é sempre uma tentativa de pensar além daquilo que é conceitu-

almente verificável.” Eis porque o a priori cultural é fundamental.

Nesse sentido, Reale afirma: “Talvez o presente estudo possa parecer a

alguém por demais arrojado, por pretender dar status ao que denominamos

“pensamento conjetural”; mas o que peço é que o leitor, que me honra com

sua atenção, não se deixe levar desde logo pela presunção que cerca o termo

conjetura, o qual, apesar das aparências, tem desempenhado, como se verá,

função das mais relevantes na história das idéias, ás vezes reduzido ao “pen-

samento problemático”, outras ao “metafórico”, quando me parece constituir

gênero abrangente de distintas formas de pensar segundo presunções, ou

razões de plausibilidade”16

O método conjetural fica mais claro ao aproximá-lo do raciocínio das

ciências naturais, tal o faz Newton Carneiro Afonso da Costa17 que acredita

que noção de conjetura é de fundamental importância para o campo científi-

co, em especial, para a física, à medida que impõe uma nova postura para a

filosofia das ciências. O filósofo afirma que todas as teorias da física, por

mais verdadeiras que pudessem parecer, acabaram ao longo da história sen-

do abandonadas ou questionadas, tal a mecânica clássica newtoniana, a sua

teoria da mecânica celestial. Foi essa visão que permitiu que se descobrisse

Netuno. Essa leitura esteve carregada da idéia de “grau absoluto do conhe-

cimento”, até que a relatividade de Eistein pudesse suplantar a visão clássica

das partículas. Segundo Newton Costa, o que a ciência de Newton fez foi se

demonstrar como uma grande “conjetura”, a qual, nas suas limitações, cap-

turou a possível realidade da época.

O filósofo atual também destaca o mesmo fenômeno com a teoria da

mecânica quântica tradicional de Heiusenberg, Born e Pauli18, que acabou,

diante de suas fragilidades, cedendo à eletrodinâmica qüântica e a teoria

quântica de campos. Isso apenas demonstra que teoria mecânica quantica

sem relativismo, quanto outras teorias como da relatividade geral não deixa-

ram de ser críveis, porque estavam, de fato, baseados em verdadeira conje-

tura, capaz de explicar de modo claro e coerente o fato daquele momento,

14

ADEODATO, João Maurício. Conjetura ..., p. 90. 15

REALE, Miguel. Verdade e Conjetura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 25 16

REALE, Miguel. Verdade ...p. 14. 17

COSTA, Newton Carneiro Afonso da. Conjetura e quase-verdade na obra de Miguel Reale. In.: Cidadania e Cultura Brasileira (Org. Shozo Motoya). São Paulo: Edusp e Bunge, 2000, p. 33-42. 18

COSTA, Newton Carneiro Afonso da. Conjetura e quase-verdade ..., p. 34-35

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 75

mas apenas constituírem o passo necessário para a evolução do raciocínio

em busca da verdade.

Newton Costa acredita que a conjetura ou a “quase-verdade” popperia-

na ou realeana está na base de qualquer teoria ou lei física, o que importa

afirmar que: i) as semelhantes cujeturas ou quase-verdades acabam por se

ajustar à experiência, tal a mecânica newtoniana, a teoria ptolomaica etc. – o

seu abandono não representou a sua total aniquilação, apenas afirmar um

passo importante do progresso científico; ii) conjeturas, ainda que incompa-

tíveis, permitem explicar o mesmo fenômeno (relatividade geral x mecânica

quântica padrão; teoria eletromagnética de Maxwell x mecânica clássica etc.)

- O fato das teorias eventualmente serem incompatíveis e poderem ser

substituídas no futuro, isso não lhes retira a consistência; iii) embora não

sejam teorias de correspondência exata, as teorias físicas, em sendo “apro-

ximadamente verdadeiras”, qualificam-se como “conjeturas quase-

verdadeiras”,19 e isso não afasta eventual tratamento lógico-matemático que

podem receber – nada impede que permitam “previsão, sistematização e

entendimento, ainda que envolvam autocontradições.

A natureza muitas vezes conjetural das ciências naturais, e, para o filó-

sofo, das ciências humanas também, não impede a aplicação de teorias in-

compatíveis entre si ou intrinsecamente inconsistentes, pois esta é a base de

qualquer caminho epistemológico do cientista, que as pressupõe para poder

superá-las, seja por novas percepções, seja pelo reconhecimento de imper-

feições, seja por devires da própria natureza. Para Newton Costa, jamais se

alcançará a certeza aritmética que reproduz integral e de modo fidedigno o

real, o único dever é não viver de extrapolações, de meras especulações.

Newton Costa chegar a por as conjeturas em “axiomas” para afastar especu-

lações e mostra que a lógica que envolve a conjetura ou a quase-verdade é

heterodoxa: “conjeturas inconsistentes podem salvar as aparências no mes-

mo domínio do saber. Em termos técnicos: proposições tais que uma é a

negação da outra muitas vezes são quase-verdadeiras na mesma estrutura

pragmática. Logo, a lógica da conjetura não pode ser clássica”.20 Para o au-

tor, seriam lógicas paraconsistentes

De qualquer modo, a atualidade de Reale é evidente, e sua percepção

do saber e da prática muito bem o tornam inovador. O campo de aplicação

da ciência, composto de conjeturas quase-verdadeiras, não sendo mera es-

peculação, está sustentado na experiência e na análise crítica, cuja função é

aprimorar as concepções existentes e não falsificá-las. Por isso, melhor mé-

todo para filosofia do direito não teria que o da metafísica conjetural.

19

COSTA, Newton Carneiro Afonso da. Conjetura e quase-verdade ..., p. 37. 20

COSTA, Newton Carneiro Afonso da. Conjetura e quase-verdade ..., p. 41.

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78 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 79

Leonardo Passinato e Silva Aluno de mestrado, DFD-USP

Ao estabelecer uma genealogia da teoria das fontes do direito, o pre-

sente artigo adverte o caráter a-histórico que reveste a concepção acadêmica

de um modelo assentado em uma polaridade estática entre um legislador

como centro produtor ativo e exclusivo de normas em contraposição a súdi-

tos passivos. Com apoio nas reflexões sobre o problema da historicidade da

experiência jurídica, buscar-se-á estabelecer alguma convergência entre a

concepção das fontes no pensamento de Miguel Reale e de Herbert Hart, ao

se evidenciar como ambos se pautam pela importância central da considera-

ção do fenômeno jurídico a partir da valoração da experiência humana.

Palavras-chave: Dogmática analítica; Common Law; Teoria das fontes;

Miguel Reale; Herbert L. A. Hart.

O presente trabalho tem por objetivo estabelecer algumas considera-

ções sobre a genealogia de alguns dos valores afirmados pela teoria das fon-

tes, sobretudo a partir das convergências possíveis entre os trabalhos de

Miguel Reale e Herbert L. A. Hart.

A respeito da formulação de uma teoria das fontes, a história do pen-

samento jurídico antigo e medieval pouco ou nada oferece de significativa-

mente problemático sobre o arranjo dos diversos centros de produção de

normas, tal como o entendemos hodiernamente.

80 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

Com efeito, o direito romano genuíno nos oferece um conjunto de

problematizações essencialmente tópicas dos casos particulares, jamais ten-

do se constituído ali algo como um sistema, que demandasse a rigorosa de-

finição técnica, nos termos em que a questão se coloca na modernidade. Na

Antiguidade greco-romana, o problema da revelação do justo se põe como

uma questão eminentemente prudencial.1

Posteriormente, quando do surgimento do Estado nacional absolutista,

no medievo tardio, ainda pouco se mostrava necessário haver precisão em

anotar as assim ditas fontes do direito. Isto porque se fazia derivar o funda-

mento de todas as normas da vontade do monarca. Ora, por se tratar de pu-

ra vontade, a emissão de preceitos pelo príncipe potencialmente acarretaria

flagrantes contradições de conteúdo entre os elementos constantes daquele

quadro normativo.

Paradoxalmente, tal situação não implicaria maiores problemas para o

conjunto das normas emanadas pelo monarca, afigurando-se plenamente

admissível que as decisões e normas subseqüentes viessem de encontro a

disposições passadas, vez que se baseavam todas, de um modo geral, no

arbítrio real, fundamentado por sua vez no amparo da divindade. O monarca

figurava como pedra angular do Estado e de seu ordenamento jurídico, fonte

de manifestação de todos os direitos e deveres, idéia ainda muito presente

em Hobbes, com sua concepção substancialista, subjetivista e relacional do

poder, enquanto ligado à figura humana de projeção, o soberano. Em outras

palavras, uma vez que havia apenas uma instância criadora do direito, livre

de amarras e limitações – ab-soluta – a emissão de preceitos de conteúdo

contraditório não implicava dificuldades do ponto de vista sistêmico: the

king can do no wrong.2

Observa Ferraz Júnior que o surgimento da teoria das fontes é aconte-

cimento sintomático da imposição do imperativo de racionalização que e-

merge com o Estado liberal. Tal paradigma teria sido introjetado no pensa-

mento jurídico por força dos reclamos do capitalismo emergente, que traz

em seu bojo alterações de monta para a estrutura social. De fato, os novos

padrões de trocas econômicas demandavam um cenário geral que conferisse

segurança e certeza às relações sociais. A continuidade das relações comer-

ciais e financeiras não poderia depender da vontade volúvel de um gover-

nante. Em vista dessa situação, os lugares-comuns da classe burguesa as-

cendente preenchem a ordem do dia: como exemplos desses novos valores,

1 Evidentemente, sobre esta questão não poderei me estender neste momento. Oportunamente, dediquei-me ao

problema do pensamento prudencial na Antiguidade greco-romana em trabalho de conclusão de curso de graduação, Genealogia da prudentia: dimensão jurídica da experiência entre gregos e romanos, apresentado junto ao Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em dezembro de 2009. 2 Alysson Leandro Mascaro, Introdução ao estudo do direito, pp. 131-135; Klaus Adomeit, Filosofia do

direito e do Estado, pp. 66-71; Norberto Bobbio, Estado, gobierno y sociedad, p. 103.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 81

inscrevem-se, entre outros de mesma orientação, a ordem pública; a pre-

ponderância da lei escrita; a liberdade, acompanhada de seu reflexo, a não-

intervenção estatal; e a igualdade jurídica. Todos esses condicionantes po-

dem ser resumidos naquelas noções de segurança e certeza ou, dito de ou-

tro modo, em mecanismos de calculabilidade e previsibilidade, os quais Grau

ressalta como fundamentais para o adequado cumprimento dos contratos. A

ideologia do contrato de tal forma domina o cenário das relações jurídicas,

que se presta até mesmo à explicação da gênese do próprio Estado.3

Com efeito, embora plenamente válida a advertência de Heimann, no

sentido de não se poder reduzir a razão de ser de um modo de pensar a um

único fator de conformação ideológica, afigura-se patente a conexão entre

as teorias contratualistas da gênese do Estado e a filosofia empirista inglesa.

O empirismo se funda, necessariamente, na autonomia intelecto-espiritual

do indivíduo, ao fundar o conhecimento na sensação, conferindo ênfase à

observação dos fenômenos, bem como ao valor central de utilidade, que em

Hume, epítome empirista, perpassa toda a moralidade e a legalidade. 4

Dessa forma, o método de investigação promovido pelo empirismo a-

caba por servir, no âmbito da afirmação dos valores burgueses, a um desen-

cantamento do mundo que se mostra especialmente contundente para o

ideário absolutista, seja ele fundado em termos de um discurso racionalista,

metafísico ou jusnaturalista. Ao caráter indemonstrável de tantas justifica-

ções, a hipótese do contrato social se impõe como uma via intelectualmente

plausível, ao mesmo tempo em que afirma a liberdade primordial do indiví-

duo e traz para a organização social o imperativo de racionalidade. Movi-

mento paralelo se observa na obra de Quesnay e Adam Smith (este, um ami-

go mais jovem de Hume e opositor de Hobbes), cuja observação do mercado

segundo método tomado respectivamente à biologia e à física (então imbuí-

das do pensamento deísta que postula uma situação atual de desgoverno

natural em face da divindade criadora primordial) provocará o amadureci-

mento da ciência econômica cientificamente desvinculada da arte política.

Em termos práticos, nesta seara se manifesta a relação dialética entre

liberdade e segurança: a autonomia da vontade como fundamento dos con-

tratos; em contrapartida, a certeza quanto à continuidade de tendências ace-

nadas pelo sistema jurídico, a garantir a efetividade daqueles contratos. A

segurança jurídica se coloca como um sucedâneo da consecução da justiça,

vez que esta é tida como um ideal inalcançável e aberto a relativismos peri-

gosos. Percebe-se aí a existência de uma pluralidade de canais produtores

3 Eros Grau, A ordem econômica na constituição de 1988, pp.32-35; Miguel Reale, Lições preliminares de

direito, pp. 148-154; Tercio Sampaio Ferraz Júnior, Introdução ao estudo do direito, pp. 225-226. 4 Para este parágrafo e os que seguem, Claudio Napoleoni, Smith, Ricardo e Marx, pp. 40-47; Danilo Marcon-

des, O empirismo, pp. 117-123; Eduard Heimann, História das doutrinas econômicas, pp. 22-30, 53-54, 57-87; Eduardo Carlos Bianca Bittar e Guilherme Assis de Almeida, Curso de filosofia do direito, pp. 290-296, 302.

82 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

de normas, que constituem aquilo que Bobbio chamará ordenamento jurídico

complexo, de tal sorte que caberá à dogmática jurídica delimitar o lugar de

cada um desses eventos de repercussão no repertório do sistema. Eis a fun-

ção primordial da teoria das fontes.5

A esse respeito, assinala Bobbio, em continuação, que qualquer consi-

deração sobre o ordenamento jurídico de tipo simples – aqui entendido em

oposição ao ordenamento do tipo complexo, vale dizer, o sistema em que se

verifica uma única fonte produtora de normas, sendo exemplo recorrente a

polaridade entre um legislador que põe a norma e os súditos que a recebem

e obedecem (ou não) – é não-histórica e tem importância restrita às discus-

sões de escola.

Segundo Ferraz Junior, o que se dá é a progressiva conscientização

quanto ao fato de o direito integrar o mundo da cultura, enquanto constru-

ção, e não como dado. No entanto, prossegue o autor para afirmar nessa

concepção duas dificuldades de relevo. Em primeiro lugar, a percepção do

objeto como construção intelectual não implica o afastamento total de sua

eventual dimensão previamente apreendida, senão da natureza, em outras

instâncias da própria cultura. Veja-se o exemplo dado pelo próprio autor, ao

identificar tal problemática na distinção elaborada por Savigny entre lei e

espírito, dicotomia que redundaria finalmente na conhecida diferenciação

entre as fontes materiais e formais do direito. Daqui decorre a segunda difi-

culdade, consistente no problema de se promover a unidade sistemática de

um ordenamento em que coexistam essas noções opostas de fontes do di-

reito.6

Ainda sobre fontes materiais e formais, à primeira categoria pertence-

riam os fenômenos que, pensados e valorados em sua historicidade, dão

causa substancialmente às normas, é dizer, os aspectos psicológicos, socio-

lógicos, econômicos etc. que condicionam aquela disposição normativa es-

pecífica. Por seu turno, corresponderia ao conjunto das fontes formais o

produto dos procedimentos solenes previstos pelo ordenamento para a ma-

nipulação técnica daquelas fontes materiais.

Esta distinção, como se sabe, tem como principal inconveniente a difi-

culdade que ocasiona para a justificação da ordem, pois abre o caminho para

a discussão não apenas sobre qual seja o fundamento material do direito,

mas principalmente quanto à sua adequação àqueles fundamentos.

Chega-se, assim, a diversas tonalidades teóricas no que toca à centra-

lidade do papel conferido às fontes formais, conforme sejam elas percebidas

como mero instrumento de revelação do direito brotado da materialidade da

5 Gustav Radbruch, Introducción a la filosofía del derecho, pp. 39-42; Norberto Bobbio, Teoria do ordena-

mento jurídico, pp. 37-47; Tercio Sampaio Ferraz Júnior, Introdução ao estudo do direito, p. 227. 6 Para este parágrafo e os que se seguem, cf. Tercio Sampaio Ferraz Júnior, Introdução ao estudo do direito,

pp. 223-225.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 83

vida; ou verdadeiro mecanismo por meio do qual se poderá elaborar ou re-

conhecer o direito em definitivo.

Neste sentido, Miguel Reale postula que a teoria das fontes daria enfo-

que aos processos de instituição das normas jurídicas, a fim de problemati-

zar o entendimento da dimensão da validade. Com este termo, Reale se refe-

re exclusivamente à validade formal. Esta, em suas Lições preliminares de

direito, é conceituada como uma propriedade que diz respeito à competência

dos órgãos e aos processos de produção e reconhecimento do direito no

plano normativo.7

Essa definição ganha maior relevo, dentro da teoria das fontes preconi-

zada por Reale, a partir do momento em que este principia sua obra especi-

ficamente dedicada a essa questão – Fontes e modelos do direito – com um

retrospecto de suas reflexões sobre o problema das fontes, para indicar que,

se a princípio havia proposto a revisão da teoria com vistas à preponderância

final da teoria dos modelos jurídicos, ora caminhava em direção oposta, para

enfim concluir que a teoria das fontes daria enfoque aos processos de insti-

tuição das normas jurídicas, com enfoque no âmbito da validade, enquanto

que a teoria dos modelos ligar-se-ia essencialmente à dimensão da eficácia

das normas.8

Portanto, e em contraposição à noção de validade acima esboçada, a

eficácia é mencionada por Reale como dotada de um caráter experimental,

porquanto se refere ao cumprimento efetivo do direito por parte de uma

sociedade, ao „reconhecimento‟, Annerkenung, do direito pela comunidade,

no plano social, ou, mais particularizadamente, aos efeitos sociais que uma

regra suscita através de seu cumprimento.9

Reale, apoiado em Bobbio, atribui à teoria das fontes a missão primor-

dial de promover a fixação dos requisitos de fato e de direito que devem ser

obedecidos para que qualquer produção de normas possa ser considerada

válida. Ademais, caberia àquela teoria o estudo da necessária correlação com

a experiência jurídica compreendida em sua social historicidade; bem como

a análise e classificação das diversas formas ou processos de produção de

regras jurídicas.10

Como se vê, Reale toma a teoria das fontes sob o aspecto procedimen-

tal, ou seja, das condições e pressupostos que devam satisfazer quanto a um

processo de aparição da norma. Afigura-se evidente com isso que Reale en-

vereda pelo segundo rumo enunciado ao início deste trabalho, qual seja: a

minimização do problema do fundamento substancial, em atenção aos pro-

cessos formais de produção e reconhecimento da norma.11

7 Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, p. 2; Lições preliminares de direito, pp. 114; 139-140.

8 Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 1-6.

9 Miguel Reale, Filosofia do direito, pp. 112-115.

10 Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 12-13.

11 Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 12-13; 18-19.

84 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

Com efeito, Reale frisa que apenas poderá constituir objeto da ciência

jurídica o que tradicionalmente se denominou fontes formais, isto é, os pro-

cessos de produção de normas jurídicas, aquilo que, novamente com fulcro

nas Lições preliminares, constitui os processos ou meios em virtude dos

quais as regras jurídicas se positivam com legítima força obrigatória, isto é,

com vigência e eficácia no contexto de uma estrutura normativa. Por seu

turno, as fontes materiais, repise-se, configuram objeto específico de ramos

do conhecimento diversos do direito, tais como a sociologia, a ciência políti-

ca e a psicologia, disciplinas que em seu conjunto compõem o saber que

Reale dirá metajurídico.12

Não que com isso Reale considere que o direito seja exclusivamente a

norma, pois entraria em contradição com a sua própria teoria tridimensional

concreta. O autor insiste que o direito é sempre normativo, embora não ex-

clusivamente normativo. Com essa última afirmação em específico, parece-

me que Reale pretende atacar em simultâneo o normativismo do tipo kelse-

niano e aquelas correntes a que chama genericamente fisicalistas ou socio-

lógicas, no que penso compreender Reale o conjunto das vertentes ditas

realistas da ciência jurídica.13

De fato, sabe-se que Kelsen, em sua primeira fase, se deteve especifi-

camente sobre o problema da validade formal, mas, após voltar o olhar para

a vivência do common law nos Estados Unidos da América, enfim reconheceu

alguma relação entre validade e eficácia da norma jurídica. No entanto, teria

ainda ficado aquém da perspectiva defendida por Reale, já que o monismo

normativo adotado pelo austríaco considera que o âmbito material da valida-

de se limita a um processo de explicitação do sistema de normas jurídicas

por meio da decorrência puramente lógica. Por seu turno, Reale observa a

interação entre validade e eficácia sob múltiplas formas, situada historica-

mente. Sendo o direito experiência, não se pode abstrair sua inserção histó-

rico-social com apoio tão-somente em considerações de ordem lógico-

semântica.

Para Reale, não se pode separar o conceito de fonte da idéia de obriga-

toriedade das normas por ela emanadas, de modo que o conteúdo de uma

fonte do direito são as próprias regras jurídicas por ela enunciadas. Tendo

em vista a noção de validade objetiva, Reale propugna pela compreensão

prospectiva da fonte do direito, o que nos faz retornar, por via da oposição,

a Savigny, cuja reflexão acerca das fontes enfocava o produto destas sob o

viés retrospectivo, como se dá, por exemplo, com a idéia de interpretação

conforme a intenção do legislador.14

12

Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 14-15. 13

Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 14-15. 14

Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 23-24.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 85

Para Engisch, reside no debate sobre a busca do sentido objetivo da lei

a problemática central da teoria da interpretação. Para fins de interpretação

verdadeira, há que se procurar pelo contexto histórico e psicológico do le-

gislador? Ou, do contrário, teria a lei algo como um sentido que se destaca

daquele impregnado em sua gênese? Radbruch defenderá a segunda posi-

ção, com base na comparação com o método de outras ciências “do espírito”,

o que é criticado por Engisch, (muito embora, penso eu, tal seja coerente

com a visão de Radbruch, que propugna inclusive por uma estética do direi-

to). A oposição entre a compreensão prospectiva e retrospectiva das fontes

do direito já se problematiza na obra do próprio Savigny, a partir do mo-

mento em que este se insere na discussão secular sobre o critério da inter-

pretação verdadeira. Esta polêmica leva às duas grandes formulações anta-

gônicas, que buscam o sentido da norma ora na vontade do legislador, ora

na vontade da lei: a doutrina subjetivista e objetivista, respectivamente. Fer-

raz Junior e Engisch identificam Savigny como um subjetivista, na medida em

que este defende a interpretação como colocar-se em pensamento no ponto

de vista do legislador e recapitular mentalmente a sua atividade. 15

Reconhecido estudioso da hermenêutica jurídica em nosso meio, Car-

los Maximiliano se coloca ao lado dos objetivistas, ao assinalar que a inter-

pretação com base na assim chamada occasio legis é um dos métodos mais

fracos da hermenêutica, em razão de sua aplicabilidade decrescente à medi-

da que o tempo transcorre após o surgir da regra, escrita ou consuetudiná-

ria. De resto, dá à interpretação praticada pela corrente subjetivista definição

idêntica àquela que acabo de expor, no que muito se aproxima tal técnica da

noção de fonte material, deixada de lado por Reale como não-atinente à ci-

ência do direito.16

Em Reale, o ato interpretativo e a conseqüente aplicação das regras ju-

rídicas deve se desprender da fonte, de modo a dar foco à produção norma-

tiva em favor da previsão dos atos futuros, por ser um imperativo de liber-

dade, que opera dialeticamente com a ordem a fim de promover uma orde-

nação jurídica aberta e flexível, mas ainda assim realizada de modo racional.

Todas essas categorias axiológicas vêm se juntar aos imperativos de segu-

rança e certeza, que se encontram no fundamento da exigência de um nú-

mero delimitado de fontes do direito positivo.17

A teoria das fontes se revela de fundamental importância para as refle-

xões acerca da temática do poder, uma vez que o fato de Reale, muito em-

bora afaste das considerações da ciência jurídica o problema das fontes ma-

teriais do poder – que de algum modo emergem da discussão que acabo de

trazer à baila sobre as doutrinas objetivistas e subjetivistas da interpretação

15

Karl Engisch, Introdução ao pensamento jurídico, pp. 165-197; Tercio Sampaio Ferraz Júnior, Introdução ao estudo do direito, pp. 264-268. 16

Carlos Maximiliano Pereira dos Santos, Hermenêutica e aplicação do direito, pp. 121-123. 17

Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 23-24.

86 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

– venha repetidas vezes a caracterizar o fenômeno jurídico, e explicitamente

o problema das fontes, em estreita conexão com a existência de um poder.

As fontes do direito vêm a ser caracterizadas, nesse sentido, como estrutu-

ras normativas que implicam a existência de alguém dotado de um poder de

decidir sobre o seu conteúdo, o que equivale a um poder de optar entre vá-

rias vias normativas.18

Por definição, portanto, não se pode falar em fontes do direito sem o

poder de decidir, motivo pelo qual se exclui de pronto a doutrina, que por si

só não tem o poder de obrigar. A doutrina se restringe a dizer as condições

que legitimam as fontes, além de apurar o significado e alcance dos modelos

jurídicos dela decorrentes. O poder, insiste, é um elemento essencial e con-

substancial ao conceito de fontes do direito.19

Assim, desdobrar-se-ão as fontes em tantas quantas forem as possibi-

lidades de poder de decidir, a partir do que o autor enumera as fontes do

direito em um universo de correspondência fechada, numerus clausus. Reale

considera a lei; o costume; a jurisprudência; e o ato negocial.

Reale propõe a verificação de preponderância de uma ou outra fonte

do direito, diante da qual as demais seriam secundárias, como um critério de

distinção entre os sistemas romano-germânico e anglo-americano, enquanto

respectivamente fundados no primado da lei e em uma base costumeiro-

jurisprudencial. 20

Impõe-se, nesse passo, uma digressão sobre a tradição do common

law, tendo-se em conta as implicações trazidas pela vivência de tal sistema

jurídico, de todo peculiar para o jurista da tradição continental, para a elabo-

ração de uma teoria das fontes. Em verdade, verifica-se na tradição jurídica

anglo-saxã a atribuição de papel secundário à lei, o que não se traduz em

número reduzido de textos normativos, ao contrário do que sugere o senso

comum, mas em sua tímida consideração enquanto conformadores da práti-

ca jurídica. Pode-se lembrar aqui, a título ilustrativo e sem a pretensão de

estabelecer uma relação genealógica rigorosa, o pensamento de Hume, para

quem a lei positiva serve de sucedâneo à razão natural e, simultaneamente,

tem seu conteúdo confirmado ou aperfeiçoado pela reiteração dos preceden-

tes judiciais. Sempre se teve a lei como uma figura estranha à normalidade

da vida jurídica, que, embora desde o século XX tenha crescido em impor-

tância com o advento do dirigismo estatal decorrente do welfare state, seu

teor apenas será revelado e confirmado após a reiterada aplicação e inter-

pretação pelos tribunais. Com razão a prática jurídica anglo-americana legou

18

Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 11-12. 19

Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 11-12; 16-18. 20

Miguel Reale, Lições preliminares de direito, pp. 141-143.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 87

as vertentes decisionistas e representou verdadeiro desafio ao esquema teó-

rico kelseniano. 21

De outra banda, segundo a concepção clássica inglesa a respeito das

fontes, dita declaratory theory of the common law, não haveria que se falar,

a rigor, em jurisprudência como uma fonte do direito propriamente dita, uma

vez que o juiz que por primeiro tenha proferido decisão em uma matéria

teve que fundamentá-la em alguma regra não-fundada, evidentemente, na

autoridade do precedente. O fundamento remoto da cadeia decisória seria,

com efeito, constituído de regras substantivas deduzidas racionalmente da

realidade, tendo por substrato elementar o "costume geral imemorial do rei-

no". A esta categoria, por uma questão principiológica em vigor desde o sé-

culo XVIII, apenas pertencem aquelas normas costumeiras cuja existência

tenha sido atestada anteriormente ao ano de 1189. 22

Some-se a isso os complexos desenvolvimentos do direito inglês acer-

ca da dicotomia, imperfeitamente solucionada ainda na atualidade, entre o

common law e a equity, bem como a profusão de Tribunais e instâncias de-

cisórias de natureza judiciária e semi-judiciária, e ter-se-á a demonstração

patente da importância de uma formulação adequada das fontes do direito

naquele contexto. 23

Por tais razões, não se deve estranhar que um autor como Herbert L. A.

Hart manifeste, no âmbito do common law, preocupações análogas às já

mencionadas, no que tange às dificuldades ocasionadas por aquele modelo

simples enunciado no início deste trabalho, composto de um legislador que

emana regras de conduta e de súditos, meros receptores de tais normas.

Hart principia sua obra basilar, O conceito de direito, exatamente pela apre-

sentação crítica da teoria da soberania que atribui em grande medida à obra

do teórico J. L. Austin, mormente a partir de sua obra The province of juris-

prudence determined. 24

Evidentemente, o debate doutrinário no âmbito do common law era in-

tenso, não se resumindo à teoria de Austin e à crítica de Hart. A propósito,

vale recordar, na linha trazida pelo discurso de Hart, o pensamento de outro

autor, que, apesar de ter a maior parte de suas investigações centrada no

estudo da História, deu significativas contribuições à jusfilosofia inglesa, em

cujo cenário antecedeu Hart em cerca de cinqüenta anos. Refiro-me a Paul

Vinogradoff.

21

Eduardo Carlos Bianca Bittar e Guilherme Assis de Almeida, Curso de filosofia do direito, pp. 296-302; John Gilissen, Introdução histórica ao direito, pp. 208; 212; 215-216; René David, Os grandes sistemas do direito contemporâneo, pp. 433-435. 22

John Gilissen, Introdução histórica ao direito, pp. 211-212; René David, Os grandes sistemas do direito contemporâneo, pp. 427-430. 23

John Gilissen, Introdução histórica ao direito, pp. 207-216; René David, Os grandes sistemas do direito contemporâneo, pp. 416-426. 24

Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 23-26.

88 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

Ao fornecer sua própria definição do direito, Vinogradoff coloca como

seu traço característico justamente o poder: para este autor, o direito seria

conjunto de normas impostas e aplicadas por uma sociedade com relação à

atribuição e o exercício do poder sobre as pessoas e as coisas. Com essa

concisa definição, parece-me que Vinogradoff formulou algumas reflexões

posteriormente experimentadas também por Reale, em seus estudos sobre

Hart, uma vez que o autor brasileiro perceberá que as normas de conduta

não se diferenciam necessariamente, na experiência, de normas de atribui-

ção e organização. Contudo, delineia-se aqui uma distinção entre Reale e

Vinogradoff no que tange ao momento do poder em relação ao direito, vez

que o anglo-russo claramente toma o fenômeno do poder como fruto de

uma atribuição, enquanto que, em Reale, o poder terá natureza eminente-

mente genética em relação ao direito, de modo que este se manifesta a partir

de tantas quantas forem as expressões daquele. 25

Entretanto, não foi o propósito de Hart, como recorda Carl Friedrich,

realizar uma compilação de opiniões colhidas na literatura, qualidade acerca

da qual, aliás, Hart guarda plena consciência de seu caráter pouco usual. 26

Em linhas gerais, a doutrina de Austin, segundo exposta por Hart, pre-

ceitua a impossibilidade de dissociação entre direito e sanção, configurando-

se como uma teoria imperativa, em que a norma se coloca como um coman-

do reforçado por uma ameaça. Tal doutrina define os fundamentos de um

sistema jurídico como uma situação de obediência habitual por parte da

maioria dos integrantes do grupo a ordens coercitivas de um soberano, juri-

dicamente irresponsável (ab-solutum?). Para tanto, evoca-se o paradigma

das normas penais, de resto adequadas ao senso comum. 27

Antes, diga-se que apesar de Hart pôr em dúvida os fundamentos da

concepção sumarizada no discurso de Austin, isto não lhe impede de gene-

rosamente – não posso evitar o tom irônico dessa constatação, que de resto

é o próprio tom de Hart nesse passo – pensar possíveis artifícios que de al-

gum modo corroborem aquele modelo. Entretanto, o que se dá é a inutilida-

de de todo recurso retórico para fortalecer a posição teórica adversa, sem

mencionar ainda seu prejuízo à simplicidade, esta um indicativo fundamental

de coesão teórica, de tal sorte que qualquer saída para a doutrina atacada

resulta invariavelmente – e esta é a intenção de Hart – em novos elementos

para seu próprio sacrifício.

O primeiro dos argumentos de Hart dá conta que muito embora a lei

penal se assemelhe ao modelo paradigmático de uma ordem apoiada por

ameaças dadas por alguém a outrem, tal não se configura nem ao menos

para esse ramo do direito em específico. Isto porque mesmo aqui se verifica

25

Paul Vinogradoff, Introducción al derecho, pp. 24-48. 26

Carl Joachim Friedrich, La filosofía del derecho, p. 19. 27

Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 26-33.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 89

normalmente que as ordens emanadas não se dirigem exclusivamente aos

súditos, mas se aplicam também ao próprio enunciador da norma, se a con-

duta deste concretizar a hipótese do tipo penal. 28

Poder-se-ia contra-argumentar no sentido de estabelecer uma distin-

ção entre a pessoa do legislador e o exercício oficioso dessa função, de mo-

do que, ao acatar a conduta preconizada nas diversas disposições normati-

vas ainda que justamente por ele emanadas em momento anterior, o indiví-

duo age como mero particular. Entretanto, ao admitir semelhante possibili-

dade, a doutrina criticada abre espaço para uma bifurcação implícita no me-

canismo de produção do direito, que acarreta necessariamente a aceitação

dos elementos da construção teórica a ser enunciada pelo próprio Hart, con-

forme será exposto oportunamente. 29

A segunda ordem de objeções formulada por Hart em relação à doutri-

na encabeçada por Austin diz respeito à lembrança de normas jurídicas de

outros ramos dogmáticos, mormente em parcelas do direito público distintas

do direito penal, tais como as disposições constitucionais e o direito admi-

nistrativo, bem como o campo do direito privado, todas elas normas para as

quais, por sua própria natureza, não se sustenta o caráter de ordens apoia-

das em ameaças. 30

Alguns argumentos em favor da posição atacada por Hart são corren-

tes, para nós talvez até mesmo intuitivos. No caso das normas concernentes

às relações privadas, pode-se persistir em sua caracterização de comando

emanado com apoio em ameaça, se como punição for considerada a nulida-

de do ato praticado em desconformidade com o preceito normativo.

De outra banda, em relação às diversas normas de direito público, há

quem sustente (como é amplamente sabido, diga-se) que se tratam tão-

somente de fragmentos de leis, subordinados àquelas que seriam as verda-

deiras normas, a saber, os comandos que instruem as autoridades acerca

das hipóteses de aplicação de determinadas sanções, de modo que se trans-

forma a lei em um enunciado condicional, pois remete, ainda que não de

maneira explícita, a hipóteses de aplicação de sanções pelas autoridades.31

Ora, em ambos os casos, Hart acusa, promove-se uma distorção da re-

alidade social para a adequação da teoria. Isto se dá porque cotidianamente

não se pensa a norma penal (para permanecer no exemplo dado) simples-

mente como uma instrução dada pelo soberano aos tribunais, e sim como

um regramento dirigido diretamente aos súditos. A intervenção dos órgãos

judiciários é sempre pensada como ultima ratio, apenas sobrevindo quando

28

Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 35-44. 29

Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 56-59. 30

Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 36-48. 31

Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 48-52.

90 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

do fracasso da lei em dissuadir o indivíduo quanto à conduta ilícita. Relati-

vamente às normas de direito privado. 32

Em seguida, Hart afirma que nem todas as normas jurídicas surgem a

partir de algo que se possa qualificar como uma ordem, afastando-se dessa

noção por seu caráter não-explícito. A possibilidade de acrescer a qualifica-

ção de tais normas como ordens tácitas não serve para a análise dos sofisti-

cados ordenamentos das sociedades contemporâneas.

O último grande empecilho oposto por Hart à concepção do direito a

partir de ordens emanadas de um soberano, habitualmente obedecidas com

fundamento em ameaças, diz respeito ao problema da continuidade do di-

reito a despeito da limitação temporal da existência do soberano; ou mesmo

na circunstância de sequer se poder falar em um soberano passível de indi-

vidualização, tal como Hart aponta ocorrer nas democracias modernas. 33

Em suma, a partir das objeções apresentadas, Hart conclui que as idéi-

as a que se opõe não conseguem se aproximar de uma noção consistente de

norma. Para tanto, haveria que se atentar à necessidade de discriminação

entre as normas às quais se referirá como primárias e secundárias. Normas

do tipo primário seriam aquelas que exigem a prática ou abstenção de con-

dutas, independentemente da vontade do receptor; normas do tipo secundá-

rio, por sua vez, consistiriam em estipulações sobre o procedimento de in-

trodução, modificação e extinção daquelas normas primárias, além de trazer

determinações quanto à sua incidência e aplicação. 34

O modelo proposto por Austin toma em consideração apenas as nor-

mas ditas primárias. Reduzido a esse característico, o sistema jurídico apre-

sentaria falhas de vulto, que demandariam mecanismos de suplementação.

Ora, tais mecanismos consistem justamente nas normas secundárias.

A primeira dessas falhas apontadas por Hart consiste na ausência de

normas definidoras do emissor e dos critérios de interpretação autêntica.

Trata-se do problema da incerteza. Outro defeito identificado é o caráter

estático de um ordenamento composto inteiramente de normas primárias.

Em outros termos, semelhante sistema não traria previsões de identificação e

modificação deliberada das normas. Tem-se até aqui propriamente o pro-

blema das fontes do direito. A terceira falha verificada diz respeito à inefici-

ência de tal ordenamento, problema que decorre da ausência de autoridade e

procedimento estabelecido seja para a constatação da violação das normas,

seja para a execução da sanção, no que as idéias de Hart tomam rumo pró-

ximo ao conceito de direito dado por Vinogradoff.

Portanto, em conformidade com as categorias enunciadas há pouco, as

normas do tipo secundário podem se desdobrar em normas de reconheci-

32

Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 52-56. 33

Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 67-87. 34

Para este parágrafo e os que se seguem, Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 118-128.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 91

mento, de modificação e de julgamento. Em poucas palavras, as normas de

reconhecimento se prestam à identificação conclusiva das normas primárias,

com vistas a conferir certeza aos operadores do direito. Retorna-se, com

isso, às considerações iniciais sobre o contexto de surgimento da teoria das

fontes do direito. Pelo recurso à noção de normas de reconhecimento, esva-

zia-se qualquer justificação metafísica das normas, ao se chegar à solução

do problema da validade das normas do sistema, uma vez que serão válidas

exatamente aquelas que atendam aos requisitos previstos pela norma de

reconhecimento. Simultaneamente, se estabelece uma cunha entre validade e

eficácia, diferenciação especialmente problemática no quadro já exposto do

common law: a eficácia da norma apenas repercutirá em sua validade se

constituir um daqueles requisitos impostos pela norma de reconhecimento.35

Reale, ao tratar das diversas tipologias das normas, relembra a dife-

renciação da literatura entre normas primárias e secundárias, aduzindo a

posição de Kelsen, para quem são primárias as normas que estipulam san-

ções, secundárias todas as demais. Recorda ainda que Hart toma essa dico-

tomia em sentido diverso, ao dizer que normas primárias são, como já ex-

posto, aquelas que se referem a condutas, enquanto as secundárias seriam

subsidiárias das primárias. Curioso notar como a denominação do par pri-

mário-secundário não segue, em Hart, uma ordem valorativa. 36

Reale comete a Hart o mérito de transcender a ênfase kelseniana, ex-

pandindo os elementos da norma para além do aspecto da sanção; sustenta,

porém, que toda a tipologia das normas secundárias elaborada por Hart po-

de se resumir àquela categoria denominada por Reale normas de organiza-

ção. Estas, de fato, são secundárias, uma vez que têm por pressuposto a

existência das normas de conduta. Não por acaso, Reale, neste passo, já ha-

via mencionado a crítica de Bobbio à diferenciação em normas primárias e

secundárias, exatamente por se tomar, com essa dicotomia, as normas como

diferentes sob critérios temporais e axiológicos.

Para Reale, tais normas de organização vão além das funções pretendi-

das por Hart. Para tanto, aduz a título exemplificativo a existência de normas

interpretativas. No fim, a distinção entre normas primárias e secundárias

perde em importância, segundo Reale, pois uma norma pode ter em seu

momento de gênese, a natureza binária de regulação de conduta e estabele-

cimento de organização.

Qualificado por Reale como um neo-empirista, Hart, na percepção do

autor paulista, faz repousar o fundamento de validade do ordenamento em

um fato – a obediência –, o que seria uma concepção simplista do sistema

normativo, uma vez que, à luz dos ditames da teoria tridimensional concreta,

a validade do ordenamento se funda em um postulado de razão prática jurí-

35

Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 129-135. 36

Miguel Reale, Lições preliminares de direito, pp. 96-99.

92 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

dica, a saber: o ordenamento jurídico vale, no seu todo, como uma exigência

da razão, em função da experiência histórica. Para Miguel Reale, portanto,

não basta a visão sincrônica ou lógico-formal de um Kelsen, tampouco a

consideração diacrônica e em perspectiva histórica. A norma guarda um sen-

tido unitário, ao englobada pela totalidade da experiência. 37

De qualquer modo, as linhagens empiristas da tradição jusfilosófica tra-

zem ocultas em si valorações sobre a normalidade jurídica. Nesse sentido,

Hart legitimaria a obrigatoriedade da ordem jurídica por meio da admissão

forçosa do que Reale identifica como formas mínimas de proteção das pesso-

as, da propriedade e dos contratos, características indispensáveis de direito

positivo. Muito embora o próprio Hart tenha explicitamente negado à sua

doutrina o caráter de fundamentação fática do direito, ao rejeitar a aguerrida

tese positivista de abstração dos valores éticos, ou seja, de indiferença quanto

ao conteúdo para a caracterização do direito, termina por dar testemunho da

essencialidade dos motivos axiológicos na experiência do direito.38

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94 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 95

Lucas Mastellaro Baruzzi Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP.

Graduando em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH. Aluno especial do programa de mestrado

do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogado.

Este ensaio pretende identificar as funções desempenhadas pelo cam-

po jornalístico no processo de nomogênese jurídica conforme a teoria de

Miguel Reale, especialmente no que tange à interferência do poder neste

processo. O enfoque principal será dado na forma como se opera a redução

de seletividade no processo de comunicação entre os campos jornalístico e

político, de modo a compreender a manifestação do poder na ação comuni-

cativa entre estes campos (conforme teoria de Tercio Sampaio Ferraz Jr.). Em

seguida, será abordada a relação do poder enquanto comunicação com a

ação política e a efetividade da comunicação desempenhada por outros cam-

pos (literário, científico, religioso, artístico etc.) no âmbito da nomogênese

jurídica.

This essay aims to identify the functions performed by the journalistic

field in the process of rule creation as the theory of Miguel Reale, especially

in regard to the interference of power in this process. The main focus of this

essay will be how the communication process between the journalistic and

political fields operates an reduction of selectivity in the in order to under-

96 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

stand the manifestation of power in the communicative action between these

fields (according to the theory of Tercio Sampaio Ferraz Jr.). The essay will

also analyze the relation between power as communication and the political

action and the effectiveness of communication performed by other fields

(literary, scientific, religious, artistic, etc.) under the process of rule creation.

Inicialmente, de modo a subsidiar nossa análise, faz-se necessário re-

cuperar na teoria de Miguel Reale suas considerações acerca da correlação

entre direito e poder. Para o pensador, esta correlação é revelada e deve ser

analisada por meio do estudo da gênese, da criação, de uma norma jurídica.

Segundo Reale, a elaboração de toda norma está inserida num complexo de

fatos – um conjunto de circunstâncias diversas que, ao mesmo tempo, de-

mandam a criação da norma e a conformam tendo em vista e a realização

(ou não) de um fim – e valores, que, sustentados pelos indivíduos, represen-

tam a tomada de posições perante o complexo fático que se apresenta. Des-

te modo, é possível inferir que toda norma jurídica é histórica, pois está cir-

cunscrita ao momento de sua criação, à relação entre fatos e valores que se

apresentavam na época – representando, nos dizeres de Reale, uma solução

temporária1. Também é possível concluir que a proposição normativa criada

é um produto específico dentre diversos outros possíveis, dentre tantos

quantos forem os valores incidentes sobre os diferentes complexos fáticos.

Por conseguinte, para Miguel Reale, toda norma é a conversão de conteúdo

axiológico em ordem racional2.

Todavia, diante do sem número de configurações possíveis entre fatos

e valores, qual arranjo resultará numa proposição normativa? Segundo Mi-

guel Reale, a configuração será resultado de uma escolha, operada através

de um poder decisório, que instaurará a nova norma e rejeitará todas as ou-

tras possíveis, elegendo uma como apta a produzir efeitos no ordenamento

jurídico. Este poder, por sua vez, pode ter como sujeito, dentre inúmeros

outros, por exemplo, o parlamentar em sua atividade legislativa. Na teoria da

nomogênese jurídica de Miguel Reale, o poder desempenha papel funda-

mental, pois sua interferência elimina o arbítrio e põe fim à insegurança e à

incerteza. Embora a função do poder possa parecer simplória, Miguel Reale

reconhece que se trata de um problema complexo e que não pode ser apre-

sentado como ato de pura racionalidade – o que não retira da norma jurídica

seu caráter racional3.

1 REALE, Miguel. Pluralismo e Liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998. p. 226;

2 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2002. p.551;

3 REALE, Miguel. Pluralismo e Liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998. p. 228;

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 97

Tendo em vista as inúmeras formas pelas quais o poder pode se mani-

festar, este ensaio pretende estudar sua manifestação enquanto comunica-

ção. Para tanto, elegeu-se como objeto a comunicação feita pelo campo jor-

nalístico e, mais propriamente, pela imprensa televisiva.

É inegável que este artefato tecnológico – a televisão – transformou a

forma de nos comunicarmos, de percebermos e compreendermos a realida-

de, bem como o modo como informações são produzidas, transmitidas e

recebidas. José Arbex Jr.4, em trabalho sobre o jornalismo televisivo, traz um

minucioso panorama histórico de como a comunicação por meio da televisão

influenciou e tem influenciado a vida política dos países (seja internamente

ou na relação entre nações) e a formação da opinião pública, mobilizando-a

ou desmobilizando-a para as mais diversas questões.

Apenas para ilustrar a dimensão e alcance desta comunicação, José Ar-

bex Jr. nos lembra da transmissão da Guerra do Golfo na década de 90, a

primeira vez em que uma guerra era transmitida ao vivo (e que segundo ele

mais lembrava um jogo de videogame ou computador do que um conflito

sangrento entre soldados); o anúncio da abertura da passagem para Berlim

Ocidental durante uma entrevista com centenas de jornalistas, que, momen-

tos após ser noticiado pela televisão, fez com que milhares de pessoas saís-

sem ao mesmo tempo em direção aos postos fronteiriços; o julgamento de

O. J. Simpson, que transformou os fatos da vida em novela e fez com que

todos acompanhassem seu processo de julgamento e esperassem pela sua

condenação. Mais recentemente, não há como deixar de mencionar o “caso

Nardoni” que, no entender da antropóloga Silvya Caiuby Novaes5, a cobertura

jornalística buscou sempre uma cobertura espetacularizada da vida cotidiana

em seus aspectos mais banais e violentos, construindo um enredo seme-

lhante ao de Branca de Neve e de Cinderela, onde a mãe “só é mencionada

pela ausência” e “o ciúme toma conta da madrasta que, ao se sentir ameaça-

da pela menina só pode agir movida pela maldade.”

A relação entre comunicação televisa e atividade legislativa também é

igualmente importante e merece especial destaque neste ensaio. Em palestra

proferida em seminário em homenagem ao centenário de Miguel Reale, Mi-

guel Reale Jr. 6 destacou diversos episódios de nosso país onde a televisão

foi responsável por atribuir valores aos fatos que ela mesma selecionou: a

4 ARBERX Jr, José. Showrnalismo - A notícia como espetáculo. Rio de Janeiro: Casa Amarela, 2001.

5 NOVAES, Silvya Caiuby. Meninas, mães e madrastas. Por quê o caso Isabella mobiliza tanto? Disponível

em <http://www.n-a-u.org/urbservatorio/scaiuby05-2008.pdf>. Acessado em 06.06.2010. 6 Seminário Internacional em Homenagem ao Centenário de Miguel Reale, realizado na Faculdade de Direito

da Universidade de São Paulo, organizado pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, entre os dias 05 e 08.04.2010. Mundo circundante, mídia e construção do direito, ministrada pelo Prof. Miguel Reale Jr., em 05.04.2010.

98 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

repentina aprovação da Lei de Crimes Hediondos após o sequestro dos em-

presários Roberto Medina e Abílio Diniz e suas posteriores alterações com a

inclusão no rol de crimes hediondos o homicídio qualificado (após o episódio

que vitimou Daniela Perez), o homicídio quando praticado em atividade típica

de grupo de extermínio (após as chacinas de Vigário Geral e Candelária) e a

falsificação ou adulteração de produto destinado a fins terapêuticos ou me-

dicinais (após o episódio envolvendo as pílulas anticoncepcionais de farinha).

Como um último e mais recente exemplo, poderíamos mencionar o homicí-

dio do cartunista Glauco Vilas Boas e seu filho, que deu ensejo à Audiência

Pública na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado

da Câmara dos Deputados, cujo Requerimento formulado pelos Dep. Paes de

Lira (PTC-SP) e Pedro Wilson (PT-GO) vinha assim justificado “a coletividade

não quer a liberação de drogas, mesmo que seu uso venha mascarado por

um culto religioso, pois mesmo destes surgem vítimas, tanto do próprio

grupo, quanto vítimas externas, que vão desde a família do usuário a cida-

dãos comuns”7, e à proposta de Projeto de Decreto Legislativo8 (Dep. Paes de

Lira – PTC-SP) com vista a sustar a Resolução n.º 1/2010 do Conselho Nacio-

nal de Políticas sobre Drogas (CONAD) – que adotou as normas e procedi-

mentos formulados por Grupo Multidisciplinar de Trabalho para uso religioso

de Ayahuasca (relatório final do Grupo aprovado em 06.12.2006), cujo Proje-

to contem em sua justificativa menção a matérias das revistas Veja e Isto É

acerca do homicídio do cartunista.

Como já demonstrado, a nomogênese jurídica tem como um dos ele-

mentos mais fundamentais o poder, que por meio de sua interferência deci-

sória objetiva em uma nova norma o complexo fático e os valores incidentes

sobre este. Também, se demonstrou que através de fatos concretos é possí-

vel supor que a comunicação televisiva exerça de alguma forma este poder.

Contudo, subsiste a necessidade de investigarmos de modo mais aprofunda-

do a relação entre comunicação, poder e nomogênese jurídica.

Tércio Sampaio Ferraz Jr.9 propõe em sua obra Estudos de Filosofia

uma outra perspectiva para se pensar o poder: como meio de comunicação.

O autor, alertando-nos que tradicionalmente as noções jurídicas tentam re-

duzir o poder ao direito (por exemplo, com o conceito de soberania), afirma

que o estudo de poder e direito pode se dar entendendo-os como meios

7 Requerimento n.º 197/2010, Deputado Paes de Lira (PTC-SP), acessado em 14.06.2010 via

,www.camara.gov.br>; 8 Projeto de Decreto Legislativo n.º 2491/2010, Deputado Paes de Lira (PTC-SP), acessado em 14.06.2010

,via <www.camara.gov.br>; 9 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito – Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a

Justiça e o Direito. São Paulo: Atlas, 2009. p. 5;

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 99

simbólicos de comunicação. Importante ressaltar que o autor, na obra supra-

citada, propõe definir comunicação como uma estrutura comunicacional da

sociedade, um fato inerente do comportamento humano, o que permite

comparar o poder com outros meios de comunicação10

. Portanto, sob esta

perspectiva proposta, também seria possível investigar de que forma o poder

exercido pela comunicação televisiva pode afetar o direito e, mais especifi-

camente, a criação da norma jurídica.

De acordo com Tércio Sampaio Ferraz Jr., este conceito pressupõe a in-

termediação simbólica entre aqueles que se comunicam (alter e ego na defi-

nição do autor), conectando-os. Outro elemento importante da comunicação

é a seletividade: a liberdade que alter e ego possuem para selecionar o con-

teúdo a ser transmitido, estando o poder relacionado a esta possibilidade de

transmitir performances seletivas de ação11, ou seja, uma seleção que limita

a seletividade do outro.

Diante das considerações feitas, é possível aventar que a comunicação

televisiva realiza esta forma específica e sutil de poder – não o poder como

aquele exercido pelo soberano ou o regulamentado e contido no direito, de

uma vontade sobre a outra, mas a que instrumentaliza através da comunica-

ção uma vontade por ele produzida, controlando e reduzindo a seletividade

do outro. Transportando a reflexão para a esfera da teoria da nomogênese

jurídica de Miguel Reale, talvez seja este o poder comunicado àqueles que

exercem função legislativa e que atuam de acordo com a relação de ação

estabelecida pela televisão – não se tratando de uma relação de mando e

obediência entre alter e ego mas de uma combinação de ação entre as par-

tes. Assim, a comunicação televisiva comunicaria a sua preferência, a solução

a ser dada ao conjunto de fatos de acordo com o conteúdo axiológico por ela

mesma selecionado e construído.

Sobre o poder comunicado pela televisão àqueles que exercem função

legislativa poder-se-ia dizer ainda que estes últimos não estão vinculados à

agenda e preferências adotados pela televisão. Contudo, como bem observa

Pierre Bourdieu em Sobre a Televisão, os campos12

jornalístico e político pos-

suem um elemento fundamental em comum: ambos estão submetidos à

sanção do mercado e do plebiscito, exercendo o campo jornalístico (no qual

está inserido a comunicação televisiva) um poder comunicado ao campo po-

lítico (no qual está inserido os parlamentares), submetendo este último às

expectativas e exigências de uma maioria passional – constituída e construí-

da pela comunicação que recebem da televisão.

10

Idem, p. 34; 11

Idem, p. 43; 12

De acordo com a elaboração teórica de Pierre Bourdieu, ―campos‖ são espaços estruturados de posições, onde indivíduos ou instituições competem por um mesmo objeto (no caso, o objeto em disputa seria o conteú-do axiológico e normativo no âmbito da nomogênese jurídica).

100 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

Sobre esta redução da seletividade imposta por um campo (o jornalísti-

co) a outro (o político), Tércio Sampaio Ferraz Jr. afirma que “o funcionamen-

to do poder repousa sobre o fato de que certas possibilidades de relação

existem, mas cuja realização é evitada. O evitar sanções é relação indispen-

sável para a função do poder que, como meio codificado de comunicação, a

relaciona, por sua vez, com outra relação: cumprir (positivamente) a ordem

emitida: o código do poder estabelece – estrutura – relações de ação.13 For-

mulando ao modo de Pierre Bourdieu, embora o campo político não esteja

submetido a uma relação de mando do campo jornalístico, este último pode

oferecer aos políticos serviços simbólicos indispensáveis que não podem ser

conquistados na mesma dimensão sem a contribuição do campo jornalístico,

a saber, a legitimação perante os eleitores. Resgatando o que ensina Tércio

Sampaio Ferraz Jr., ambos os campos conhecem as possibilidades que devem

ser evitadas (ao político não é dada a seletividade de contrariar o conteúdo

axiológico comunicado pela televisão) de modo a prevenir que sanções se-

jam modalizadas (decréscimo simbólico da legitimação do político junto aos

seus eleitores).

Outra característica desta relação entre comunicação televisiva e no-

mogênese jurídica que merece atenção é o caráter sutil deste poder como

comunicação que, ao contrário de uma submissão legal ou de uma coerção

explícita, quase não se deixa ser notado. De acordo com formulação de Pier-

re Bourdieu, um “poder quase mágico que permite obter o equivalente da-

quilo que é obtido pela força14”. Uma vez reconhecido pelo campo político

este poder como legítimo, o poder exercido pela comunicação televisiva

(campo jornalístico) deixa de ser arbitrário e passa a existir nesta relação

entre ambos os campos, transformando a relação de força e violência em

poder simbólico15

, submetendo um campo ao outro pelo reconhecimento de

sanções simbólicas que podem vir a ser modalizadas. Para Bourdieu, o poder

simbólico não é exercido de forma instrumental por uma classe sobre a ou-

tra, mas através da relação entre atores e campos de produção simbólica,

através da imposição de significados legítimos.

Pelo exposto até o momento, a comunicação televisiva exerce enorme

poder no processo de nomogênese jurídica, de modo a comunicar aos par-

lamentares uma redução na seletividade de suas ações (por exemplo no mo-

13

Idem, p. 48; 14

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. p. 14; 15

Como ressalta Luciano Miranda in Pierre Bourdieu e o Campo da Comunicação, embora estejamos tratan-do de campos, macroestruturas, a teoria bourdiesiana possibilita a análise do poder também em enfoques microestruturais, entre campos e entre agentes;

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 101

do como devem votar e apreciar determinada matéria), ainda que este poder

seja dado numa relação “velada”, “mágica”, entre parlamentares e jornalistas.

Se pudéssemos identificar todos os processos de comunicação envol-

vidos na nomogênese jurídica (ou seja, o poder, conforme proposto por Tér-

cio Sampaio Ferraz Jr.) e, por conseguinte, identificar todas as performances

seletivas de ação transmitidas (ou seja, a limitação de seletividade transmiti-

da pelos atores dos mais diversos campos aos atores do campo político),

enxergaríamos uma distorção na norma jurídica criada: não uma distorção

na representação política, mas uma distorção daqueles que podem exercer o

poder através da comunicação, ou seja, dos campos que realmente comuni-

cam uma seletividade de ação ao campo político. Embora atualmente esteja

muito mais em voga a análise e discussão sobre a qualidade da representa-

ção no campo político (ou seja, temas como a existência ou não de uma sub-

representação política de determinados Estados, voto distrital, sistema de

lista fechada para eleições proporcionais, inelegibilidades etc.) há a necessi-

dade de se pensar também o alcance da comunicação no processo de nomo-

gênese jurídica, pois, ainda que por suposição a representação política fosse

ótima, subsistiria a distorção do poder enquanto comunicação: atores de

determinados campos (jornalístico, por exemplo) transmitiriam mais eficien-

temente uma redução da seletividade aos atores do campo político do que a

comunicação feita por outros campos (acadêmico, religioso, artístico etc.),

comunicando aos parlamentares por meio de um poder simbólico qual ar-

ranjo de fatos e valores deve se converter em norma jurídica.

Teríamos, ao final, a norma jurídica como expressão de este ou aquele

campo de produção simbólica (no caso deste ensaio, notadamente do campo

jornalístico), e não como expressão dos diferentes campos que compõem a

sociedade (campos literário, científico, artístico, político, religioso etc.), exis-

tindo uma distorção entre atores e campos que realmente possuem capaci-

dade de comunicar suas preferências (seletividades) aos parlamentares. As-

sim, também deve ser pauta de um debate público a qualidade da comunica-

ção entre os diversos campos com o campo político, de modo a se encontrar

mecanismos que se contraponham à comunicação exercida pelo campo jor-

nalístico, visando um maior equilíbrio entre os diversos campos que dispu-

tam no âmbito da nomogênese jurídica – por exemplo, a concessão de rádio

e televisão para entidades da sociedade civil organizada, o fomento a publi-

cações impressas por associações representativas diversas etc.

Outro ponto que merece ser problematizado é suscitado pela compa-

ração feita por Pierre Bourdieu16 entre o campo jornalístico (sobretudo a co-

municação televisiva) e a pesquisa de opinião: aquele instauraria com os e-

leitores uma relação direta de modo a descartar todos os demais agentes

(sejam sujeitos ou instituições e associações) legítimos a participar do pro-

16

BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 115;

102 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

cesso de elaboração de opiniões, contribuindo para enfraquecer a autonomia

do campo político e dos representantes eleitos. Assim, como se existisse um

único canal de comunicação capaz de exercer poder no processo de criação

de uma norma – o canal da comunicação televisiva.

Talvez seja possível cogitar que esta concepção de poder enquanto

meio de comunicação e que instrumentaliza uma vontade por ele produzida

possa interferir de certa forma na ação política conforme concepção cunhada

por Hannah Arendt.

Para a autora, a ação política constitui uma das três experiências hu-

manas básicas, integrando, ao lado do animal laborans e do homo faber, a

vita activa. Conforme nos ensina Celso Lafer17, interpretando a autora, são

características da ação política a necessidade de palavra e ação se converte-

rem em política por meio de espaço que permite o aparecimento da liberda-

de. Ainda de acordo com Celso Lafer, o conceito de liberdade para a autora

deve ser entendido como “liberdade para participar, democraticamente, do

espaço público da palavra e da ação” 18, sendo o espaço público frágil e in-

formado pela verdade factual. Sendo este espaço informado pela verdade

dos fatos, Celso Lafer destaca a preocupação da autora com a propaganda e

ideologia ou outros fenômenos que ameacem a verdade factual.

Ora, nesta perspectiva, cabe problematizar se a comunicação televisiva

tratada até aqui não possui o condão de se constituir em um destes “outros

fenômenos” capazes de alterar a verdade dos fatos e, consequentemente,

comprometer o espaço público e ação política. Pierre Bourdieu diria que sim,

já que para este a televisão (campo jornalístico) opera de modo a ocultar

mostrando, a tornar insignificante o que é necessário mostrar e a construir

um sentido que não corresponde à realidade19.

Uma vez comprometido o frágil espaço público, também poderia restar

comprometido o agir conjunto e a geração do poder, impedindo, por exem-

plo, a cidadania por meio da ação política e a possibilidade desta ação ins-

trumentalizar o poder de modo reduzir a seletividade do campo político no

âmbito da nomogênese jurídica (tendo então a norma jurídica posta através

do poder decisório o conteúdo axiológico comunicado pela televisão e não

pela ação política).

Os problemas associados ao espaço público também foram analisados

por Jurgen Habermas20, que estudando a imprensa (ou para Bourdieu o cam-

po jornalístico) percebeu que esta “refuncionalizou” a participação de amplas

camadas na esfera pública, todavia num movimento histórico associado a

uma perda de caráter político desta esfera e a uma perda de uma forma de

17

LAFER, Celso. Hannah Arendt – Pensamento, Persuasão e Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra. p. 31; 18

Idem, p. 32; 19

BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. pg. 24; 20

HABERMAS, Jurgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universi-tário. p. 207;

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 103

comunicação de um público (de esferas privadas políticas para uma comuni-

cação pública de massa). Jurgen Habermas também está preocupado com

esta perda de comunicação política na esfera pública e o aumento da influ-

ência política do campo jornalístico (esfera privada), o que, no entender da

teoria de Hannah Arendt, constituiria um óbice ao exercício da liberdade – ou

seja, da ação política. Consequentemente, a partir das bases construídas por

este ensaio sobre poder, comunicação e nomogênese jurídica, corresponde-

ria à criação de uma norma jurídica com interferência decisória de um poder

do campo jornalístico, não exercendo (ou exercendo pouco) a ação política

uma redução da seletividade no campo político.

Este breve ensaio tentou revelar o modo como se opera esta forma de

poder como meio, presente na comunicação. Como dissemos, trata-se de

uma forma sutil e quase oculta de poder, que necessita ser revelada para que

o poder exercido pela comunicação televisiva no âmbito da nomogênese

jurídica não seja considerado um dado mágico, dogmático, inerente à exis-

tência da televisão. A partir do momento em que este poder se torna visível e

compreendido, abre-se a possibilidade de pensar formas para que o exercí-

cio da ação política seja relevante sob o ponto de vista do poder que interfe-

re na criação da norma jurídica. Embora não se negue a importância da qua-

lidade da representação (pelo contrário), atenção e estudos também devem

ser voltados de modo a melhorar o exercício da comunicação na ação políti-

ca, no campo da sociedade, para que seu poder como meio também possa

interferir neste importante momento da nomogênese jurídica que é a objeti-

vação de fatos e valores feita pelo poder. Exercendo a ação política um poder

como meio que interfira nesta objetivação, teríamos normas jurídicas criadas

com um conteúdo axiológico fruto de diversos campos da sociedade e não

do campo do jornalismo. Como lembra Robert Dahl21

, a comunicação é um

elemento fundamental para o exercício e funcionamento da democracia. Em-

bora Robert Dahl volte sua preocupação com a existência de meios de co-

municação independentes e não controlados pelo Estado, também podería-

mos incluir a necessidade de uma comunicação que extrapole estes requisi-

tos, de modo a considerar também se os meios de comunicação disponíveis

possibilitam que a ação política interfira decisoriamente na criação da norma

jurídica ou se esta interferência é exercida exclusivamente pelo campo jor-

nalístico.

Diversas questões ainda permanecem abertas e devem ser objeto de

estudos: como melhorar a ação política enquanto comunicação? há necessi-

dade de regulamentação do campo jornalístico visando melhorar a esfera

21

DAHL, Robert Alan. Sobre a democracia. Brasília: UNB. p. 111;

104 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 2 jul/dez 2010

pública? como possibilitar que a comunicação do campo da sociedade seja

mais efetiva na criação das normas? O fato é que normas jurídicas tem sido

fruto de “índice de audiência” e não da ação política crítica e participativa.

ARBEX JR., José. Showrnalismo – A notícia como espetáculo. Rio de Janeiro:

Casa Amarela, 2001.

BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

_____. “Sobre o poder simbólico”, in O Poder Simbólico. 10ª Ed., Rio de Janei-

ro: Bertrand Brasil, 2007.

DAHL, Robert Alan. Sobre a Democracia. 1ª Ed., Brasília: UNB, 2002.

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o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. 3ª Ed., São Paulo: Atlas,

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HABERMMAS, Jurgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. 2ª Ed., Rio de

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MIRANDA, Luciano. Pierre Bourdieu e o Campo da Comunicação. Porto Ale-

gre: EDIPUCRS, 2005.

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mobiliza tanto? Disponível em <http://www.n-a-

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REALE, Miguel. “O Poder na Democracia”, in Pluralismo e Liberdade. Rio de

Janeiro: Expressão e Cultura, 1998. Cap. XIII, p. 219-227.

_____. “Tridimensionalismo Específico e a Unidade da Experiência Jurídica”, in

Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2002. Cap. XXXVI, p. 550-561.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 105

Luís Gustavo Haddad Advogado; Doutorando em Direito Civil (FDUSP);

Bacharel em Direito (FDUSP, 2000); Mestre em Direito Civil (FDUSP, 2009).

O mote deste trabalho é uma advertência feita por EÇA DE QUEIROZ, e

tomada por OLIVEIRA VIANNA como epígrafe do segundo volume das suas Insti-

tuições Políticas Brasileiras1. Reza ela que: “Os que sabem dar a verdade à

sua pátria não a adulam, não a iludem, não lhe dizem que é grande, porque

tomou Calicut; dizem-lhe que é pequena porque não tem escolas. Gritam-

lhe sem cessar a verdade rude e brutal. Gritam-lhe: tu és pobre, trabalha! tu

és ignorante, estuda! tu és fraca, arma-te”. Ao invocar essas palavras, pre-

tendo desvincular a idéia de homenagem de uma eventual propensão à ve-

neração sem crítica ou à deferência irrefletida. Os dicionaristas registram

realmente que, em sua origem, a homenagem consistia em um juramento de

subordinação e fidelidade, que os vassalos prestavam aos senhores feudais2.

Nada que se coadune, segundo entendo, com o espírito livre e questionador

que deve animar os estudos universitários. Assim, é preciso que se tome do

vocábulo homenagem, apenas, o sentido mais atual e modesto de demons-

1 VIANNA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. 2º v. (Metodologia do direito público; os problemas

brasileiros da ciência política). 2ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. 1955. 2 CALDAS AULETE e ANTONIO HOUAISS. Consultados nas versões disponíveis na rede mundial de computado-

res em www.uol.com.br, aceso em 14 de junho de 2010. No mesmo sentido, FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da língua portuguesa (médio dicionário Aurélio). São Paulo: Nova Fronteira, 1980. p. 909.

106 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

tração de respeito, igualmente reconhecido pelos léxicos acima citados.

Quero crer, com efeito, que demonstrar com sinceridade esse sentimento de

respeito, como destacou EÇA DE QUEIROZ no trecho acima transcrito, implica,

antes de tudo, não transigir com a busca da verdade e do aprimoramento,

cujos resultados são sempre precários e permanentemente sujeitos a refuta-

ção; significa não se acomodar com o propósito mais simpático e tentador

de alinhavar elogios e enumerar feitos do autor homenageado.

Feita essa observação, passo a delimitar, de modo mais direto, o tema

do trabalho. Para tanto, cabe dizer que a exposição está dividida em quatro

partes, além desta introdução. Na primeira (seção 2), procurarei registrar

alguns fatos significativos, mas nem sempre lembrados com o devido desta-

que, sobre as relações entre o personagem histórico Miguel Reale e o exercí-

cio do poder político no Brasil do século XX. A segunda parte (seção 3) será

dedicada a identificar as principais concepções e construções de Miguel Rea-

le sobre o tema da interpretação jurídica, com enfoque nas noções de mode-

los jurídicos e nos contornos da chamada hermenêutica estrutural. Na tercei-

ra parte do estudo (seção 4), tentarei mostrar de que maneira a visão do au-

tor sobre a atividade de interpretação restou refletida em um ponto bastante

central do Código Civil de 2002, que é o da função social do contrato. A

quarta e última parte (seção 5) cuidará de sintetizar, de modo breve, certas

conexões entre os papéis desempenhados pelo personagem histórico Miguel

Reale, pelo filósofo do direito que elaborou doutrina hermenêutica e pelo

presidente da comissão redatora do projeto de lei que se converteu no Códi-

go Civil de 2002.

O objetivo último do trabalho, já adianto, é demonstrar que – seja na

prática política, seja na teoria jurídica, seja na formulação legislativa – o que

desponta como constante na atuação de Miguel Reale é uma forte tendência

autocrática. Essa feição antidemocrática, segundo defendo, pode e precisa

ser neutralizada por uma interpretação do art. 421 do Código Civil que adote

outros postulados metodológicos, bastante distintos dos apregoados pelo

próprio autor homenageado, como é o caso daqueles presentes, por exem-

plo, nas teorias da argumentação jurídica formuladas por NEIL MACCORMICK3

ou ROBERT ALEXY4.

Miguel Reale não foi mero expectador da história política e jurídica do

país no século XX. Ao contrário, foi protagonista de momentos importantes e

3 MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Trad. Waldéa Barcellos. São Paulo, Martins

Fontes, 2006; e mais recentemente Rhetoric and the rule of law, a theory of legal reasoning (law, state and practical reason). Oxford, Oxford University Press, 2005. 4 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva e revisão de Claudia

Toledo, São Paulo, Landy Editora, 2005.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 107

candentes da história nacional. Embora sua atuação política tenha se dado

em um espectro bastante mais amplo do que o da Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo, o relato de certas passagens do relacionamento

entre o autor e a coletividade dos professores e alunos é capaz de trazer

elementos de interesse para o objeto deste trabalho5.

No início dos anos 1930, Miguel Reale era estudante de graduação na

Faculdade de Direito do Largo São Francisco6. O que se sabe dessa época é

que o autor professava credo marxista. Em conjunto com José Augusto Cos-

ta, Adriano Marrey e outros então estudantes, Miguel Reale foi signatário de

um manifesto de apoio a operários em greve, no qual foi condenada, de for-

ma convicta, a exploração do proletariado7. Não demorou muito para que

essa posição política fosse revista. É sabido que, já em torno de 1934, ano

em que concluiu seu bacharelado, Miguel Reale passou a defender e pregar

abertamente a ideologia integralista. As obras que refletem a adoção desse

último ideário são A Política Burguesa (1934), O ABC do Integralismo (1935),

Perspectivas Integralistas (1935), O Capitalismo Internacional (1936) e Atua-

lidades Brasileiras (1936)8. Não obstante essa forte identificação com o mo-

vimento integralista (também manifestada na época por Goffredo da Silva

Telles Junior9), e apesar de a Ação Integralista Brasileira ter sido posta na

ilegalidade por um decreto de Getulio Vargas de 2 de dezembro de 1937 (o

que também ocorreu naquele momento com todos os partidos políticos),

Miguel Reale foi designado pelo governo ditatorial para postos de relevo na

burocracia do Estado Novo. Em 1941, o autor homenageado foi nomeado

para chefiar o Departamento Administrativo do Estado de São Paulo, órgão à

época responsável pelo controle dos órgãos de imprensa, tendo posterior-

mente ocupado o cargo de Secretario de Justiça, entre 1943 e 194510, por

indicação do interventor federal.

As estreitas relações entre Miguel Reale, o movimento integralista e o

regime autoritário de Getulio Vargas foram responsáveis, inclusive, pela re-

5 Sobretudo no período da ditadura de Getulio Vargas, compreendido entre 1938 e 1945, a ―Faculdade de

Direito da Universidade de São Paulo foi o reduto democrático mais atuante, mais combativo e mas conscien-te do Brasil‖, cf. DULLES, John W.F. A Faculdade de Direito de São Paulo e a resistência anti-Vargas (1938-1945). Trad. de Vanda Mena Barreto de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. O restante da exposição dessa seção 2 está largamente apoiada nessa obra. 6 Nessa época, a Universidade de São Paulo não havia ainda sido fundada, motivo pelo qual se faz referência à

designação mais tradicional da Faculdade de Direito. 7 DULLES, John W.F. A Faculdade de Direito de São Paulo e a resistência anti-Vargas (1938-1945). Trad. de

Vanda Mena Barreto de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 67. 8 Parte dessas obras é citada na relação bibliográfica que consta de praticamente todas as obras mais recente-

mente editadas de Miguel Reale (v.g. Teoria do Direito e do Estado. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010. Outras parecem ter sido renegadas, como é o caso de ABC do Integralismo, embora tenha sido escrita e publi-cada, não consta da referida relação bibliográfica. 9 DULLES, John W.F. A Faculdade de Direito de São Paulo e a resistência anti-Vargas (1938-1945). Trad. de

Vanda Mena Barreto de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 83. 10

DULLES, John W.F. A Faculdade de Direito de São Paulo e a resistência anti-Vargas (1938-1945). Trad. de Vanda Mena Barreto de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 170 e 354.

108 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

sistência e execração que eram direcionadas contra a sua figura na Faculda-

de de Direito da Universidade de São Paulo, sobretudo durante a década de

1940. Apesar de aprovado em concurso para a cátedra de Filosofia do Direi-

to, em setembro de 1940, a congregação da escola, por quatorze votos a

dois, reformou a decisão da banca examinadora, majoritariamente formada

por membros externos à instituição (dois da Bahia e um do Rio de Janeiro).

Os dois examinadores que integravam o corpo docente da Faculdade de Di-

reito – Mário Mazagão e Alexandre Correia – foram contrários à aprovação de

Miguel Reale nesse concurso. A controvérsia somente foi resolvida de modo

favorável a Miguel Reale pelos órgãos federais do próprio Estado Novo, con-

forme decisão do Conselho Nacional de Educação, já em meados de 194111.

Quando efetivamente passou a exercer funções docentes, Miguel Reale sofria

aguerrido antagonismo por parte dos estudantes, que fizeram greves contra

suas aulas e o confrontaram pública e abertamente, questionando-o sobre

suas idéias integralistas e antidemocráticas. O episódio culminante dessa

confrontação com os estudantes ocorreu em 21 de julho de 1943, como re-

lata DULLES, com riqueza de detalhes12. Na seqüência desse evento, Miguel

Reale teria repudiado publicamente sua participação anterior no movimento

integralista13. Nessa época, era de todo impensável a hipótese de professo-

res e alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo unirem-se

para prestar homenagem a Miguel Reale.

Sobre os eventos de 31 de março de 1964, Miguel Reale – em conjunto

com outros professores da Faculdade de Direito da Universidade de São Pau-

lo – subscreveu manifesto no qual foi ficou registrado seu “júbilo pela res-

tauração da ordem democrática no país”14. Pelos anos que se seguiram, Mi-

guel Reale foi um profícuo colaborador dos governos militares. O autor foi

nomeado pelo então Presidente Costa e Silva para comandar a comissão re-

visora da Constituição de 1967, sendo responsável pela redação da Emenda

Constitucional n.º 1, de 1969. No campo do direito privado, foi o presidente

da comissão revisora encarregada pelos governos militares de elaborar o

projeto de Código Civil, que acabou por ganhar vigência apenas em 2002,

além de ter atuado também na formulação do tratado internacional e dos

demais documentos que deram corpo à hidrelétrica Itaipu Binacional.

O que se nota, portanto, é que Miguel Reale – enquanto personagem

histórico – manteve relações intestinas e cooperou ativamente com os dois

principais governos ditatoriais de seu tempo: o Estado Novo, de Getulio Var-

11

DULLES, John W.F. A Faculdade de Direito de São Paulo e a resistência anti-Vargas (1938-1945). Trad. de Vanda Mena Barreto de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 166 a 169. 12

DULLES, John W.F. A Faculdade de Direito de São Paulo e a resistência anti-Vargas (1938-1945). Trad. de Vanda Mena Barreto de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 230 a 234. 13

DULLES, John W.F. A Faculdade de Direito de São Paulo e a resistência anti-Vargas (1938-1945). Trad. de Vanda Mena Barreto de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 237. 14

DULLES, John W.F. A Faculdade de Direito de São Paulo e a resistência anti-Vargas (1938-1945). Trad. de Vanda Mena Barreto de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 375.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 109

gas, e os governos militares das décadas de 1960 e 1970. No campo ideoló-

gico, houve oscilações notáveis nas idéias abraçadas pelo autor, com passa-

gens pelo marxismo e pelo integralismo, na década de 1930, tendo ele pas-

sado a advogar, mais recentemente, o chamado pluralismo jurídico15. De

acordo com o plano de início traçado, passo agora a cuidar das concepções

hermenêuticas de Miguel Reale, a fim de verificar se haveria nelas algum

influxo da inserção política do autor, conforme acima relatada.

Por que tratar de hermenêutica no âmbito de uma reflexão sobre direi-

to e poder? Porque a atividade de interpretação talvez seja a forma mais co-

tidiana e prosaica de exercício do poder, ou de discussão sobre o exercício

do poder, na qual estão diuturnamente envolvidos todos os profissionais do

direito, desde o Ministro do Supremo Tribunal Federal até o oficial de justiça,

passando por promotores, delegados e advogados. Em todo ato de aplicação

de norma jurídica, seja ele protagonizado por um agente público ou discuti-

do por um advogado nos autos de um processo, é incontornável o momento

da interpretação; o direito não se realiza sem a interpretação da norma; é o

que demonstra, com especial profundidade, CASTANHEIRA NEVES16. Ao menos

desde KELSEN sabemos, porém, que o momento decisivo da atividade herme-

nêutica não tem caráter cognitivo e não consiste no resultado de uma per-

quirição filosófica. Os pontos cruciais da prática interpretativa residem em

decisões e escolhas, que o profissional encarregado de aplicar ou propor

aplicações para as normas tem que tomar. É por esse motivo que KELSEN ma-

nifesta ceticismo sobre a possibilidade de estabelecer um estatuto racional e

objetivo para a interpretação jurídica. No capítulo VIII da Teoria Pura do Di-

reito, ele sustenta que a interpretação, embora possa trazer consigo alguns

elementos racionais e objetivos de conhecimento, passa necessariamente

por um ato de vontade do órgão aplicador da norma. Esse ato de vontade,

porém, seria alheio ao escopo de uma ciência do direito e se relacionaria,

segundo KELSEN, à política do direito, uma vez que, em outras palavras, é um

ato de poder, impassível de apreensão e explicação por uma verdadeira ci-

15

Nesse sentido, cf. em especial os estudos O Pluralismo das Soberanias e dos Ordenamentos Jurídico-Estatais e Concepções Pluralistas do Estado e do Direito, ambos em Teoria do Direito e do Estado. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 176-213 e 265-302, respectivamente. 16

De acordo com esse autor, a interpretação é ―o acto metodológico da mediação normativa entre o direito e a realidade do seu cumprimento. O que implica, desde logo, que o critério normativo que uma qualquer fonte jurídica interpretanda se proponha oferecer, para uma concreta realização do direito, só pode oferece-lo pela mediação da interpretação – „a norma será tal como é interpretada‟. O Actual Problema Metodológico da Interpretação Jurídica – I. Coimbra: Coimbra Editores, 2003. p. 13.

110 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

ência jurídica17. REALE também parece reconhecer essa circunstância, ao qua-

lificar o poder do Estado como o poder de decidir sobre a positividade jurídi-

ca18.

Sob essa perspectiva, a metódica da interpretação e, por conseqüência,

da fundamentação das decisões, ganha uma importância central para que o

exercício do poder de decidir ocorra segundo regras claras e facilmente i-

dentificáveis, que permitam o seu controle e apreciação crítica pelos desti-

natários das decisões. Quanto mais claro, conhecido e regrado em suas jus-

tificativas for o processo hermenêutico, mais transparente e passível de con-

trole ele será. Se as regras e parâmetros hermenêuticos, por outro lado, fo-

rem excessivamente amplos, ambíguos e pouco claros, tanto maior será o

espaço conferido para que o titular do poder de decidir fundamente e justifi-

que suas decisões como melhor lhe aprouver, sem que os destinatários das

decisões disponham de argumentos racionais suficientes para criticar e, por-

tanto, exercer controle sobre as decisões tomadas. É o que comprova a ob-

servação de FERRAZ JR., merecedora de transcrição por sua acuidade: “O mo-

mento da motivação, assim, é, nos julgamentos jurídicos, memória e organi-

zação conceitual. Obedece a regras (processuais) e a cânones metódicos.

Exige fundamentação e argumentação (momento das razões da motivação),

citações, esquemas de raciocínio, usados como um fator em proveito de uma

persuasão a ser obtida. Esse momento tem, assim, o sentido de uma forma

de poder, que se revela na imposição imperativa da decisão, argumentação

como poder persuasivo, cujo resultado imperativo se submete ao controle

processual. Donde a exigência de clareza, da possibilidade de recursos, de

embargos de declaração, de apelação. Esses controles servem para compor o

discurso decisório, como um arranjo eficiente, mas utilitário” (grifo do pró-

prio autor)19. Toda proposta de realização do trabalho hermenêutico que

alargue excessivamente o rol dos elementos passíveis de utilização pelo jul-

gador e lhe confira amplo espaço de construção e criação tem, por assim

dizer, uma vocação autocrática; isso porque ela confere ao juiz ou ao julga-

dor, de modo geral, uma ampla margem de arbítrio na realização das esco-

lhas e na eleição dos fundamentos passíveis de uso em suas motivações e

justificações. São muitas e variadas as escolhas e decisões que podem ser

justificadas – e é muito difícil criticar e controlar racionalmente essas esco-

lhas e decisões – se praticamente tudo: fato, valor, norma, história e cultura,

pode ser usado como guia na interpretação da norma. Por outro lado, se a

proposta de realização da interpretação trata o momento da aplicação da

17

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª edição. Trad. João Baptista Machado, Coimbra, Armênio Amado Editora, 1984. p. 469-470. Sobre esse ponto, cf. também a análise do chamado desafio kelseniano, feita por FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 1996. p. 260-263. 18

Cf. capítulo X da obra Teoria do Direito e do Estado. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, intitulado Análi-se do Poder do Estado. 19

Ato de julgar e senso de justiça. In: Estudos de filosofia do direito. Reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2009. p. 289-307. O trecho transcrito consta da p. 292.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 111

norma como um exercício de razão prática, sujeito a procedimentos e a uma

racionalidade pré-determinada, o campo oferecido para a justificação e a

motivação das decisões e escolhas diminui sensivelmente. Nem tudo pode

ser usado como fundamento para as decisões; se há norma claramente iden-

tificável que incide sobre os fatos, não há porque preterir o silogismo ou

taxá-lo, de antemão, como pobre ou insuficiente. Apenas na ausência de

uma norma que, por silogismo, possa decidir a controvérsia, é que faz senti-

do buscar outros modos de interpretação e justificação das decisões20. Ao

lado de MACCORMICK, outro autor que se esforça por estabelecer um estatuto

racional e regrado para as decisões e escolhas feitas no processo de inter-

pretação é ALEXY21. Não seria impreciso, ademais, incluir DWORKIN entre os

estudiosos que comungam da mesma preocupação, uma vez que ele equipa-

ra o agir jurídico com a atividade interpretativa, entendida não como conhe-

cimento estático das possibilidades de aplicação da norma, nos moldes da

ciência jurídica do século XIX22, mas como o exercício de um raciocínio valo-

rativo e capaz de determinar, justificar e criticar decisões. DWORKIN ilustra

esse papel interpretativo e argumentativo do agir jurídico ao sintetizar o tra-

balho de seu famoso juiz-filósofo Hércules como a construção (e não o co-

nhecimento) de um “esquema de princípios abstratos e concretos que forne-

ça uma justificação coerente a todos os precedentes do direito costumeiro e,

na medida em que estes devem ser justificados por princípios, também por

um esquema que justifique disposições constitucionais e legislativas”23.

Não tenho aqui nenhuma intenção de criticar Miguel Reale por constru-

ir uma teoria do direito à margem da virada lingüística24. O teor da objeção é

distinto. Conforme de certo modo já anunciei acima, o ponto que quero aqui

destacar é o de que a proposta de Miguel Reale para o tema da hermenêutica

é tão ampla, e tem pretensões tão abrangentes, que acaba por atribuir ao

julgador possibilidades as mais largas possíveis de fundamentação de suas

20

MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Trad. Waldéa Barcellos. São Paulo, Mar-tins Fontes, 2006. Em sentido semelhante, FERRAZ JR., segundo o qual: ―se não for possível um método que nos permita apontar um sentido correto ou verdadeiro para as normas, na linha de autores céticos com Kel-sen e Alf Ross, ao menos seria possível identificar interpretações justificadas ou não justificadas a partir de certos postulados de competência ou máximas de racionalidade retiradas da própria finalidade da atividade de legislação como relação assimétrica e de decisão de conflitos por meio de mensagens jurisdicionais‖. Ato de julgar e senso de justiça. In: Estudos de filosofia do direito. Reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2009. p. 299. 21

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva e revisão de Claudia Toledo, São Paulo, Landy Editora, 2005. 22

Um exemplo bem acabado dessa concepção novecentista da hermenêutica jurídica pode ser encontrado na obra de MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, 16ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1996. 23

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira, São Paulo: Martins Fontes, 2002, no ensaio ―Casos Difíceis‖. p. 182. Sobre a vida e obra de DWORKIN, cf. GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Edimburgh: Edinburgh University Press, 1992. 24

Sobre a virada lingüística e seus reflexos no campo do Direito, confira-se CASTANHEIRA NEVES, Antonio. O actual problema metodológico – Da interpretação jurídica. t. I. Coimbra, Coimbra Editora, 2003. p. 113 e seguintes.

112 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

decisões, sem que se tenha critérios suficientemente claros e objetivos para

submeter esses juízos a críticas e controles. É o que se constata mediante

uma análise mais detida da chamada teoria dos modelos jurídicos, que de

certo modo dão corpo às concepções de Miguel Reale sobre a atividade de

interpretação. Passagens significativas do pensamento do autor a esse res-

peito podem ser encontradas em diversas obras. Em O direito como experi-

ência, o ensaio X, dedicado justamente a Problemas de Hermenêutica Jurídi-

ca, Miguel Reale trata com franqueza do que qualifica como um pressuposto

ou condicionante de todo ato interpretativo: “a típica liberdade ou problema-

ticidade do ato interpretativo”. Segundo o autor, o juiz teria a liberdade, ao

julgar, de “por as premissas do seu raciocínio” e, na determinação dessas

premissas, “o juiz é sempre livre”25. No remate do raciocínio, Miguel Reale

afirma que essa liberdade, a rigor, assiste a qualquer intérprete, em excerto

que merece transcrição: “Essa, na realidade, é a liberdade não só do juiz,

mas de qualquer intérprete, o qual se desenvolve problematicamente, isto é,

tendo a disponibilidade de múltiplas opções possíveis no âmbito de uma

objetividade cujos horizontes o vinculam. É claro que a amplitude dessa ca-

pacidade de escolha varia segundo diferentes objetividades histórico-sociais,

mas, em nenhuma delas, penso eu, é tão vasta como nos domínios do direi-

to” 26. Não coloco em dúvida que possa haver uma pluralidade de modos de

interpretação de uma determinada norma ou de uma situação normada. O

problema é não haver, na teoria da interpretação de Miguel Reale, qualquer

critério racional capaz de dizer qual desses diferentes modos deve ser prefe-

rido, ou qual deles é capaz de fornecer melhores justificativas para as deci-

sões e escolhas do intérprete. Há um folgado espaço de escolha e decisão no

qual o autor reconhece simplesmente liberdade ao julgador, que fica por

assim dizer imune a críticas e controles sobre o exercício dessa liberdade.

Em Fontes e Modelos do Direito (para um novo paradigma hermenêutico)27,

Miguel Reale formula preceitos que definiriam o que denomina de interpre-

tação estrutural, em linha com a definição de modelo jurídico como espécie

do gênero estrutura. Nesse estudo, o autor elabora um elenco de dez diretri-

zes hermenêuticas, que tomo a liberdade de parafrasear como segue: a) a

interpretação deve ter caráter unitário; b) a interpretação supõe a valoração

inerente às proposições normativas; c) a interpretação deve ser feita com

atenção ao contexto; d) a interpretação não pode se divorciar por completo

25

REALE, Miguel. O direito como experiência. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 244. Sobre o tema da interpretação em Miguel Reale, cf. LAFER, Celso. A contribuição de Miguel Reale para a interpretação e aplicação dos princípios gerais da Constituição. Revista Brasileira de Filosofia. V. LII. Fasc. 212. out/nov/dez 2003. p. 498-500. 26

REALE, Miguel. O direito como experiência. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 244. 27

REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito (para um novo paradigma hermenêutico). São Paulo: Saraiva, 2002. p. 5: ―Em primeiro lugar, tenha-se presente que o modelo não é senão uma espécie do gênero estrutura, entendida como esta como „um conjunto de elementos que entre si se correlacionam e se implicam de modo a representar dado campo unitário de significações‟‖.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 113

do direito positivo; e) a interpretação deve considerar as intenções iniciais do

legislador, mas também atualiza-las diante dos fatos e valores supervenien-

tes; f) a interpretação deve se mostrar racional; g) a interpretação deve levar

em conta as circunstâncias históricas; h) a interpretação deve estar atenta à

coerência dos modelos jurídicos; i) a interpretação deve se guiar por esco-

lhas éticas; e j) a interpretação deve tomar parte de uma compreensão geral

do mundo e da vida. Com todo respeito devido ao autor, essas dez máximas

consubstanciam platitudes, que seriam de pouca valia para um intérprete

interessado em identificar critérios racionais pelos quais deve preferir uma

dentre duas ou mais soluções possíveis para um caso concreto. As diretrizes

são tão abrangentes que qualquer solução poderia, com mais ou menos es-

forço retórico, ser reconduzida a elas, de modo que reina, afinal, o arbítrio

de quem está em posição de decidir, sendo suas escolhas defensáveis e i-

munes a críveis e imunes a crsempre defensas sempre defend) a interpreta-

çerpretaçaçodo a representar dado campo unitpretativo: "críticas sempre que

se apoiarem nos vastos preceitos da hermenêutica estrutural. As mesmas

idéias são apresentadas, em forma resumida, nas Lições Preliminares de Di-

reito28. Em um outro estudo interessante, voltado à obra de Tullio Ascarelli,

Miguel Reale é enfático em qualificar o trabalho de interpretação como au-

tenticamente criador, permeável a valorações e preferências do julgador29.

Essa concepção sobre a atividade hermenêutica não restou circunscrita

ao campo doutrinário. Miguel Reale, como se sabe, presidiu a comissão re-

datora do projeto de lei que se converteu no Código Civil de 2002 e teve a

oportunidade de imprimir suas convicções em pontos centrais desse diploma

legislativo. Um desses pontos é o da chamada função social do contrato,

positivada no art. 421 do Código Civil. Tal como posta e redigida, essa nor-

ma acaba por dar margem exatamente a exercícios de hermenêutica estrutu-

ral, propiciando juízos autocráticos e desregrados na solução de casos con-

cretos. É do que tratará a seção seguinte.

O art. 421 do Código Civil afirma que: “A liberdade de contratar será

exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. A liberdade

contratual, com a qual a função social guarda nítida relação, é princípio cujo

caráter capital para o direito dos contratos é elementar e dispensa maiores

comentários. Esse mesmo princípio da liberdade contratual, além disso,

28

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 23ª edição. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 285-289. 29

REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro. n. 38. São Paulo. 1980. p. 75-85. 30

Parte das considerações dessa seção constam de minha dissertação de mestrado, defendida em 2009, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, intitulada Função Social do Contrato: um ensaio sobre seus usos e sentidos.

114 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

transmite uma regra permissiva clara, cujos problemas de interpretação se

situam precisamente nos limites da permissão, e não no seu sentido e con-

teúdo propriamente ditos. Cumpre, portanto, tentar diminuir a vagueza e a

ambigüidade que cercam a chamada função social do contrato. Limites obs-

curos são maus limites, pois falham na tarefa básica de distinguir o certo do

errado, o lícito do ilícito. Por um lado, essas notas de vagueza e ambigüidade

decorrem da chamada textura aberta da linguagem e nelas se acha campo

fértil para o desenvolvimento do raciocínio jurídico. Por outro lado, porém,

essas mesmas características facilitam e incentivam a prática de abusos re-

tóricos na elaboração e justificação das decisões, o que tende a gerar solu-

ções díspares para problemas idênticos ou equivalentes. O mesmo efeito de

propiciar abusos retóricos e ensejar decisões diferentes para casos seme-

lhantes é catalisado por postulados hermenêuticos como aqueles defendidos

por Miguel Reale, conforme procurei demonstrar na seção anterior. Esse ris-

co de soluções divergentes para problemas idênticos ou equiparáveis, todas

pretensamente fundadas na função social dos contratos, compromete o

princípio da igualdade, que manda conferir igual tratamento às situações

iguais e desigual às situações diferentes, na proporção das dessemelhanças

verificadas. Na prática, e a teor da própria redação do artigo 421 do Código

Civil, pode-se lançar mão da função social do contrato tanto como argumen-

to que reforça como argumento que limita a liberdade contratual em deter-

minado contexto. Afinal, a função social do contrato é posta a um só tempo

como razão e limite da liberdade de contratar; uma dialética de implicação-

polaridade pode ser uma boa descrição de uma situação complexa, mas é

capaz de deixar um tanto confuso alguém que tenha interesse em usar a

norma como guia de conduta. Com base em qual critério se deve decidir

sobre a prevalência da função social como fundamento ou como limite, em

um caso concreto? O Código Civil, segundo defendo, não é a sede adequada

para a proclamação de aforismos filosóficos ou para a explicitação de dialé-

ticas de implicação-polaridade31. Normas jurídicas são e devem ser usadas

como guias para a conduta humana; devem ser capazes de permitir juízos de

fundamentação e crítica dos comportamentos que lhes forem conformes ou

contrários, de acordo com as circunstâncias do caso32. Para remediar essa

situação, sustento que se deve buscar construir uma leitura da função social

do contrato que se paute pela noção de razão prática33.

Embora tenha se tornado lei vigente em 2002, é sabido que a chamada

“idade mental” do Código Civil data do início dos anos 1970. A defasagem

31

Sobre a dialética de implicação-polaridade, cf. REALE, Miguel. O direito como experiência. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 70-74. 32

HART, H.L.A. The concept of law. 2nd

ed.. Oxford, Oxford University Press, 1997. p. 124-136. 33

MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Trad. Waldéa Barcellos. São Paulo, Mar-tins Fontes, 2006 e Rhetoric and the rule of law, a theory of legal reasoning (law, state and practical reason). Oxford, Oxford University Press, 2005.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 115

que hoje acomete os modelos jurídicos que pretenderam conformar o Códi-

go Civil foi captada com especial precisão por JUNQUEIRA DE AZEVEDO, em estu-

do sobre o tratamento conferido por esse diploma à boa-fé objetiva34. Nesse

estudo, o autor vale-se da noção de paradigma para demonstrar que o Códi-

go Civil vigente está já ultrapassado, por confiar excessivamente na capaci-

dade de o Poder Judiciário remediar a vagueza dos conceitos jurídicos inde-

terminados e das cláusulas gerais. Em outras palavras, o Código Civil investe

o julgador de amplos e maleáveis poderes de decisão, na medida em que

oferece parâmetros ambíguos e vagos como elementos capazes de conferir

motivação e fundamentação para as escolhas feitas pelos intérpretes, con-

forme procurei apontar na seção anterior. Ainda segundo JUNQUEIRA DE AZEVE-

DO, estão hoje igualmente defasados tanto o paradigma da lei, típico do sé-

culo XIX, como também o paradigma do juiz, característico do século XX. Há,

atualmente, uma fuga do juiz, uma recusa à retórica sem diretriz concreta e

uma busca por soluções mais expeditas, que prescindam, se possível, do

Poder Judiciário35. Por isso, embora as idéias de conceito jurídico indetermi-

nado e cláusula geral sejam necessárias para qualquer aproximação da fun-

ção social do contrato prevista no Código Civil, é preciso hoje trabalhar pelo

aprimoramento do modelo que as engendrou.

Para superar as mazelas de que se originou o art. 421 do Código Civil,

é preciso estabelecer critérios capazes de ordenar o uso da função social do

contrato, na linguagem do direito privado brasileiro. Já se chamou a atenção,

acima, para o risco representado pela vagueza e ambigüidade ínsitas à locu-

ção função social do contrato. Na ausência de um conjunto sistemático de

conhecimentos capaz de regrar a atribuição de sentidos a essa locução, a-

bre-se margem para uma utilização arbitrária dessa figura jurídica. Nesse

manejo desregrado, é grande a possibilidade de serem apresentadas solu-

ções díspares para casos idênticos ou equivalentes, o que compromete sen-

sivelmente a observância do princípio da igualdade, conforme já sublinhado

acima. Além disso, abre-se também espaço para uma outorga desmedida de

poderes ao juiz, que, sob o amplo e impreciso pálio do discurso sobre as

cláusulas gerais, estaria livre para preencher o conteúdo da função social do

34

JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto de Código Civil (atualmente, código aprovado) na questão da boa-fé objetiva nos contratos. In: Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo, Saraiva, 2004, p. 148-158. 35

Por sua expressividade, confira-se o pensamento do autor em suas próprias palavras: ―Após o [paradigma] da lei, veio o paradigma dito do juiz, daquele tempo em que o Estado era intervencionista; ele usava os famo-sos conceitos jurídicos indeterminados e as cláusulas gerais. Esses conceitos jurídicos indeterminados eram principalmente o que chamo de ‗bando dos quatro‘ – à moda daquela revolução cultural comunista -, quais sejam: função social, boa fé, ordem pública e interesse público. O problema todo desses quatro conceitos era que eles não tinham conteúdo, eram vazios do ponto de vista axiológico. Até hoje eles servem para a retórica, mas o mundo atual não se conforma mais com esses conceitos vazios. O paradigma, que antes era o da lei, passou a ser o do juiz, e, agora, é o da solução rápida do caso concreto. Hoje, estamos fugindo do juiz.‖ JUN-

QUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto de Código Civil (atu-almente, código aprovado) na questão da boa-fé objetiva nos contratos. In: Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo, Saraiva, 2004, p. 156.

116 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

contrato de acordo com sua livre consciência, sensibilidade e criatividade.

Em meio à ausência de parâmetros minimamente objetivos, aumenta a pro-

babilidade de o Poder Judiciário atuar sem maiores contenções ou atenção,

por exemplo, à possibilidade de universalização da decisão a todo o conjun-

to de casos iguais que, por uma razão ou outra, não chegaram a ser levados

a juízo ou ao mesmo julgador. Não se cuida de um risco abstrato, imaginário

ou distante. É possível encontrar na obra de diversos autores, alguns fre-

qüentemente citados no foro, a defesa de uma utilização praticamente irres-

trita da função social do contrato, o que a aproximaria de um instrumento

flexível e quase onipotente, capaz de solucionar todas e quaisquer deficiên-

cias e injustiças que possam acometer as relações contratuais. Por essa últi-

ma ótica, a função social do contrato permitiria fundamentar desde o puro e

simples arbitramento de taxas de juros em contratos bancários, a solução

para problemas de endividamento excessivo e consistiria ainda em um re-

médio adequado para todos e quaisquer problemas de desequilíbrio ou desi-

gualdade contratual36. Como ilustram os trechos transcritos nessa última

nota, estão em voga idéias que parecem querer atribuir à função social do

contrato as propriedades terapêuticas um autêntico emplastro jurídico, cuja

concepção entraria nas mentes dos julgadores a “bracejar, a pernear, a fazer

as mais arrojadas cabriolas de volatim”, como ocorreu com o finado Brás

Cubas. Diante dessa notável desorientação, é fundamental a observação de

SALOMÃO FILHO, no sentido de que a função social do contrato não se presta a

“tentativas assistemáticas e difusas de requilíbrio contratual”37. Além de ter

em conta esse alerta, cumpre sistematizar os grupos de casos em que se

pode advogar um uso regrado da função social do contrato38.

36

É o que se colhe, por exemplo, em NERY JR., Nelson. Contratos no Código Civil. Apontamentos gerais. In: O novo Código Civil. Estudos em homenagem ao Prof. Miguel Reale. Coord. Domingos Fanciulli Neto et. allii. São Paulo, LTr, 2003. p. 398-444: ―Esses juros de 15% ao mês, liberados segundo o STF, constam de cláusula de contrato bancário celebrado entre instituição financeira e empresa. A empresa ajuíza ação de revisão de contrato, entendendo que os juros estão acima de sua capacidade de pagamento e que, além disso, são fator de desequilíbrio do contrato. O juiz pode, aplicando a cláusula geral de função social do contrato (CC 421), reduzir os juros a, por exemplo, 7% ao mês. Com isso o juiz observou a intangibilidade da liberdade de fixação do percentual de juros, bem como desconsiderou a polêmica questão sobre a incidência ou não do Código de Defesa do Consumidor aos contratos bancários. Simplesmente aplicou o Código Civil e fez concre-tizar-se a cláusula geral abstrata da função social do contrato‖ (p. 417-418). Em sentido semelhante, o já citado VILLAÇA AZEVEDO, Álvaro. Contratos: disposições gerais, princípios e extinção. In: Princípios do Código Civil Brasileiro e Outros Temas (homenagem a Tullio Ascarelli). Coord. JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio; TÔRRES, Heleno Taveira e CARBONE, Paulo. São Paulo, Quartier Latin, 2008, p. 52. Um terceiro entre prováveis outros exemplos de laxismo na interpretação da função social do contrato pode ser encontrado em FURCK, Christiane Hessler. Conceito legal indeterminado: a função social do contrato e a função criadora do juiz. Revista de direito privado. São Paulo. n. 34. p. 85-104, cuja conclusão é a seguinte: ―a função social do contrato, como conceito legal indeterminado, enseja a atividade criadora do Juiz a partir do exercício de complementação da vagueza do conceito legal, que culminará na sentença determinativa, capaz de restituir o equilíbrio contratual e a harmonia das relações jurídicas‖ (p. 103). 37

SALOMÃO FILHO, Calixto. Função social do contrato: primeiras anotações. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro. São Paulo, n. 132, p. 7-24, 2003, em especial p. 22. 38

Foi o que procurei realizar em Função Social do Contrato: um ensaio sobre seus usos e sentidos. São Paulo. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 2009.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 117

Este trabalho procurou demonstrar que há uma linha coerente a unir a

atuação de Miguel Reale como personagem histórico, como teórico do direito

e como formulador de textos legislativos. O personagem histórico, como

apontado na seção 2, engajou-se e colaborou ativamente com os dois prin-

cipais governos autoritários do país durante o século XX, o Estado Novo de

Getulio Vargas, e as ditaduras militares dos anos 1960 e 1970. Como teórico

e filósofo do direito, consoante demonstrado na seção 3, acima, Miguel Reale

esmerou-se em construir o que denominou interpretação estrutural, que

embora possa ser imbuída de louváveis intenções, tem o efeito prático de

conferir ao julgador amplíssimos e desregrados poderes de escolha e deci-

são na fundamentação das soluções propostas aos casos concretos. Essa

visão peculiar do processo hermenêutico restou refletida, ainda, nas tarefas

de elaboração legislativa desempenhadas por Miguel Reale, como ilustra o

art. 421 do Código Civil. Esse caráter antidemocrático que marca as origens

da função social do contrato, segundo aqui se procurou demonstrar, precisa

ser superado por uma leitura metodológica profundamente distinta daquela

apregoada por Miguel Reale.

É uma exigência democrática, decorrente do princípio da separação

dos poderes, que as pessoas encarregadas de aplicar o direito, mediante

interpretação, devem ser distintas daquelas encarregadas de elaborá-lo e

promulgá-lo; é um requisito do Estado de Direito, igualmente, que os juízes

e tribunais devem aplicar à solução das disputas regras de direito pré-

estabelecidas e previamente editadas39. Advogar a atribuição aos julgadores

de faculdades profundamente criadoras, como pretende a interpretação es-

trutural de Miguel Reale e aparentemente se pretendia na origem, com a edi-

ção do art. 421 do Código Civil, significa negar essas exigências democráti-

cas. São assim necessários outros ares, muito distintos dos que inspiraram

Miguel Reale, para conferir a necessária atualidade democrática à função

social do contrato40.

39

MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of law, a theory of legal reasoning (law, state and practical reason). Oxford, Oxford University Press, 2005. p. 5, 56 e 275. Nessa última página, o autor traça uma impor-tante distinção entre lawmaker e law-finder. O que se espera dos juízes e tribunais em uma democracia, com efeito, é que sejam law-finders, não lawmakers. 40

Nesse sentido, este trabalho é também uma refutação à iniciativa de BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Função social dos contratos – interpretação à luz do Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2009, que busca na obra do próprio Miguel Reale elementos para subsidiar a interpretação do art. 421 do Código Civil.

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120 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 121

1

Marcelo Karam Delbim Mestrando em Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogado.

O presente artigo tem por objetivo expor a penetração do abuso do

poder econômico no fenômeno da corrupção. São analisados, inicialmente,

alguns componentes históricos e culturais que ajudaram a delinear o cenário

que propicia o abuso do poder econômico e a corrupção no Brasil; posteri-

ormente, são observadas manifestações do poder econômico e da corrupção,

bem como seus pontos de contato e abrangência. Após o aclaramento do

panorama em que a corrupção e o abuso do poder econômico estão assen-

tados, o relevante pensamento de Miguel Reale é trazido à baila – correlacio-

nando-o com o objeto de estudo ora em apreço.

The objective of this article is to expose the influence of the abuse of

the economic power in the phanomenon of corruption. Initially, there will be

an analysis of some historical and cultural components that are aimed at

delineating the scenario that favors the abuse of the economic power and

corruption in Brazil; then, manifestations of the economic power and corrup-

1 Este trabalho, ora apresentado com pequenas retificações e adequações, foi originalmente apresentado como

exigência parcial para a aprovação na disciplina ―Direito e Poder – Homenagem ao centenário de Miguel Reale‖, ministrado pelo Prof. Titular Tercio Sampaio Ferraz Jr. e pela Profa. Dra. Elza Antonia Pereira Cunha Boiteux, no 1º semestre de 2010, no curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

122 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

tion, as well as their coincidences and manifestations will be observed. After

such elucidation, the thoughts of Miguel Reale (a Brazilian jurist) will be ex-

posed and connected to the object of this research.

Este trabalho visa expor de maneira crítica as relações travadas entre a

corrupção e o poder econômico, este como elemento relevante para a trans-

gressão das regras impostas pelo ordenamento e a perpetuação ou nova

ocupação das esferas de interesse e influência.

O panorama em que este trabalho se assenta é o curso Direito e Poder

– homenagem ao centenário de Miguel Reale, ministrado no Pós-Graduação

da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Tendo em vista a bibliografia estudada ao longo do referido curso bem

como as orientações sugeridas pela Professora Dra. Elza Boiteux, a análise

do universo envolvendo o poder econômico e a corrupção será permeada

preponderantemente pelas obras de autoria dos professores ministrantes da

disciplina, de Miguel Reale, bem como de palestrantes participantes do Con-

gresso Internacional em homenagem ao centenário de Miguel Reale2.

Não obstante a observação acima feita, a pesquisa não ficará centrada

apenas nos autores sugeridos; outros estudiosos pátrios e estrangeiros, cu-

jos trabalhos sejam pertinentes com o conteúdo ora explorado, serão rela-

cionados de forma a proporcionar um trabalho mais consistente e completo.

A corrupção é um fenômeno mundial. Como delimitação do objeto de

pesquisa deste trabalho, o foco principal será centrado na sociedade brasi-

leira, tendo em vista: o curso ter sido em homenagem ao autor brasileiro

Miguel Reale; a variedade de exemplos pátrios (infelizmente) que podem ser

utilizados e; a pertinência do tema com a história brasileira. Não serão des-

prezados, entretanto, eventuais referências e exemplos adequados proveni-

entes de universos distintos do nacional.

Após a presente introdução, serão abordadas a realidade brasileira e

algumas razões históricas e culturais que ajudaram a tornar o fenômeno da

corrupção algo disseminado e estratificado nos mais diversos ambientes do

país.

Posteriormente, serão abordadas, em pontos distintos, manifestações

do poder econômico e seu abuso e manifestações da corrupção. O detalha-

mento dos fenômenos em si e dos elementos que ajudam, de maneira direta

2 Realizado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no início do mês de abril de 2010, as

palestras (verdadeiras aulas) foram parte integrante do curso – o que imprimiu um colorido único à matéria, vez que a oportunidade de debater com diversas autoridades e estudiosos e, de presenciar discussões relacio-nadas aos estudos do autor aguçaram a vontade de estudar mais profundamente as obras de Miguel Reale e propiciaram uma reflexão mais crítica e múltipla sobre os diversos temas tratados.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 123

ou indireta, a compô-los mostra-se extremamente relevante para a elabora-

ção consistente deste trabalho acadêmico.

Mais adiante serão feitas considerações, dotadas com uma perspectiva

realiana, com o fito de concatenar e organizar as idéias expostas e as refle-

xões e questionamentos apresentados no decorrer do desenvolvimento da

pesquisa.

O Brasil desde a chegada do homem “civilizado”, séculos atrás, tem ti-

do suas riquezas naturais exploradas e comercializadas como forma de ob-

tenção de dinheiro. Práticas comerciais desordenadas e despadronizadas

constituíram por muito tempo a regra das transações empreendidas; isso era

possível graças à inexistência de mecanismos de controle neste período; as

potências absolutistas, tal como Portugal, queriam arrecadar riquezas para

satisfazer as luxurias da corte inchada e ineficiente3.

As terras brasileiras foram ocupadas inicialmente pelos portugueses

através das capitanias hereditárias - cada qual (das que foram efetivamente

ocupadas) era guiada na prática por regras distintas, determinadas pelo por-

tuguês que detivesse o poder sobre a gleba4. Percebe-se que a presença do

poder, no sentido de possibilitar a imposição e determinação dos modos de

conduta, já se expressava no Brasil desde o início.

Poder-se-ia relacionar o cenário acima referido com a verticalidade de

um modelo de justiça, tratado com maestria pelo professor Tercio Sampaio

Ferraz Jr. 5, de tal forma que a aventada verticalidade estaria relacionada com

elementos emocionais, com a idéia de vingança e a imposição da violência

como forma de retribuição.

Ao longo dos anos as práticas comerciais e as relações sociais estabe-

lecidas na colônia Brasil eram pautadas, escancaradamente, no interesse

pessoal que cada parte poderia extrair da negociação. Como exemplo desta

afirmação, reputa-se pertinente aventar uma passagem histórica, evidencia-

da por Arno Wehling e Maria José Wehling, que destaca o desempenho dos

funcionários da Coroa no período colonial; retrata o universo em que a soci-

3 Segundo Leonel Mello e Luís Costa: ―a principal característica do absolutismo foi a concentração de todo o

poder e autoridade na pessoa do rei e a completa identificação entre este e o Estado‖ in História Moderna e Contemporânea (p. 75). 4 Conforme ensina Nelson Werneck Sodré: ―dividida a costa em talhões paralelos, concorreram a tais domí-

nios alguns fidalgos que haviam já prestado serviços. (...) A empresa da colonização, entretanto, é, por sua amplitude, fundamentalmente capitalista. (...) A colonização não é obra do estado, do governo, do rei. É uma emprêsa de particulares. (...) Sendo particular a empresa, explica-se a amplitude dos direitos concedidos pelo estado ao indivíduo‖. In Formação da sociedade brasileira (p. 68-73). 5 ―Justiça como retribuição: da razão e da emoção na construção do conceito de justiça” In Estudos de

Filosofia do Direito, Reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito (Cap. 6).

124 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

edade brasileira fora assentada (panorama que permite e facilita o fomento e

o crescimento das redes de corrupção – muitas vezes assistidas e participa-

das pelas autoridades).

“Esses funcionários eram competentes, dedicados e eficientes? Os tes-temunhos da época, considerando-se o conjunto, são em geral negati-vos. Os funcionários seriam ávidos por dinheiro e preocupavam-se mais com seus interesses particulares do que com os do Estado.”

6

Segundo os ensinamentos de Miguel Reale7, o dever de dizer a verda-

de, em atenção à importância da veracidade, requer a participação do desti-

natário das regras (sejam elas jurídicas ou morais); os indivíduos não estão

isolados, de tal forma que a verdade é relevante na aproximação do equilí-

brio desejado para balizar as relações de diversas naturezas.

Questiona-se se no Brasil a verdade, desde a acepção mais pura que o

termo confere, tem sido efetivamente prestigiada e observada. Esta obriga-

ção de dizer a verdade deveria conferir uma límpida transparência aos negó-

cios das mais variadas naturezas, sobretudo naqueles envolvendo o poderio

econômico; possibilitaria uma melhor compreensão dos mecanismos e con-

teúdos que formam as negociações e compromissos, nas áreas pública e

privada; na prática, em consonância com as indagações sugeridas pela pro-

fessora Elza Boiteux8, este universo, muitas vezes, trabalha de modo não

muito evidente, sigiloso - a discrição permite que o poder econômico atue

de forma a aumentar a sua vastidão e influência.

Diante deste cenário, a corrupção, que será abordada em ponto poste-

rior, torna-se possível e é facilitada porque muitas pessoas que fazem parte

da Administração Pública transgridem (impulsionadas pelo Poder Econômico)

a ética que se espera dos servidores e das autoridades públicas, em conso-

nância com o trabalho do professor Tercio9.

Em compasso com a visão que enaltece a importância da ética e o

princípio da moralidade encontra-se o artigo do professor Joaquim Carlos

Salgado10

(que participou do Congresso internacional em homenagem ao

centenário de Miguel Reale).

6 ―O funcionário colonial entre a sociedade e o rei” in Revisão do Paraíso: os brasileiros e o estado em 500

anos de história (p. 154). 7 “Da obrigação de dizer a verdade” in Estudos de Filosofia e Ciência do Direito (p. 14-15).

8 In Poder econômico: direito pobreza, violência e corrupção (p. 31).

9 “Poder econômico, ética da administração pública” in Poder econômico: direito, pobreza, violência e

corrupção (p. 180-195). 10

―Um dos valores fundamentais do Estado Democrático de Direito, na sua dimensão essencialmente ética, é o princípio da moralidade no trato da coisa pública, em nossa sociedade reconhecido como conteúdo axiológi-co universal e, assim formal e universalmente declarado na Constituição da República, no art. 37, por consen-so social.‖ – ―Contas e ética” in Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 125

Não se pode esquecer que na Administração Pública o agir está condi-

cionado à permissão contida no preceito legal, ao passo que no universo

privado é facultado fazer aquilo que não é proibido pelo ordenamento11

.

A palavra poder pode estar relacionada a diferentes elementos. É pos-

sível, por exemplo, falar em poder ligado à religião, à política, ao mercado;

mas, por ora, a acepção a ser explorada é a do poder econômico – poder

este que convive com aqueles outros poderes mencionados, tal como subli-

nha Miguel Reale12

.

Ressalta-se o valioso arcabouço dos estudos balizados pelas intera-

ções entre o poder e o direito na obra do professor Celso Lafer13

que entende

que as relações que envolvem o poder e o direito são “irredutíveis” a uma

categoria no âmbito do tridimensionalismo específico de Miguel Reale. Mais

adiante, o professor Lafer14

destaca o pensamento de Hannah Arendt subli-

nhando que “o consenso de agir conjunto gera poder”.

No dinamismo da competitiva e excludente sociedade capitalista, a

busca pela ocupação, e sua conseqüente permanência, nas cadeiras do poder

provoca disputas extremamente acirradas e muitas vezes violentas.

No ambiente globalizado, guiado pela economia de mercado, os de-

tentores do poder econômico (detentores, portanto, dos elementos que pos-

sibilitam a modificação das estruturas e rumos das economias e mercados –

através de consideráveis investimentos ou pela evasão repentina destes)

possuem em suas mãos grande influência, podendo determinar quais focos

de atenção devem ser priorizados – não importando, sob este viés eminen-

temente econômico, segundo a ótica do investidor, as diretrizes pretendidas

pelo legislador dos ordenamentos dos respectivos lugares em que investe.

Neste sentido encontra-se a lição de Zygmunt Bauman15

que sustenta,

em uma visão pessimista em relação ao fenômeno da globalização, que esta

é favorável aos investidores. Pergunta-se: quem são os investidores? São

aqueles que detém o poder econômico; aqueles que conseguem manter a

produção e o consumo.

Percebe-se um potencial abuso dos mecanismos de condução dos ru-

mos a serem tomados em virtude do poder econômico que determinados

11

Sobre o princípio da legalidade que rege os atos da Administração Pública, sublinha-se o magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello: Curso de Direito Administrativo (p. 66-68). 12

“Da Responsabilidade do Poder”, in Revista de Direito Público (p. 07). 13

O Brasil e a crise mundial (p. 31). 14

Ibid. (p. 35). 15

Globalização: As consequências humanas (p. 112).

126 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

players têm. Quando usam este poder para contornar a alterar as regras e/

ou fazer prevalecer seus interesses estão abusando do poder que possuem.

Não por acaso houve a necessidade de adequação da lei brasileira anti-

truste (Lei nº 8.884/94, alterada por legislações posteriores) no final do sé-

culo passado, bem como a melhor estruturação do Sistema Brasileiro de De-

fesa da Concorrência (SBDC) conforme destacam João Grandino Rodas e Ges-

ner de Oliveira16

.

Pertinente mostra-se o estudo de Susan Strange17

que destaca logo nas

primeiras palavras do seu trabalho o real enfraquecimento do poder do Esta-

do; mais adiante, rechaça a idéia que sustenta que os resultados do mercado

são provenientes de um exercício impessoal ou despretencioso daqueles que

compram e vendem. Indo além, na segunda parte do livro, Strange ressalta

que poucas fontes de poder não estatais afetam significativamente os rumos

da economia global e das sociedades.

A publicação de Strange ora em comento não é considerada demasia-

damente recente tendo em vista ter sido publicada em 1996, todavia, perce-

be-se grande pertinência com a realidade hoje apresentada e experimentada

- talvez as constatações e indagações apresentadas pela estudiosa tenham

sido agravadas pelo incremento da competitividade comercial e pela criação

de outros meios de comunicação (ex: Internet).

Ainda, importante mencionar que o poder econômico em si não é con-

siderado algo ilegal, como bem ressaltou o professor Fábio Nusdeo durante

o Seminário Internacional em homenagem ao centenário de Miguel Reale; o

que se quer coibir são algumas formas de expressão deste poder - que não

fica concentrado apenas no âmbito comercial ou financeiro, expande suas

raízes para outras esferas, tal como a política. O “desvio do poder”, segundo

o professor Tercio18

, representa a alteração do curso do poder em face de

um referencial que funciona como uma “baliza vinculante”.

Pode o poder econômico interferir na forma de interpretar a lei, de ela-

borá-la bem como de aplicá-la – tudo em consonância com os interesses do

poderio econômico; isso se torna possível também (dentre outros fatores

que não são objeto do presente trabalho) por causa da corrupção – que será

tratada a seguir.

16

Direito e Economia da Concorrência. 17

The retreat of the state: the diffusion of power in the world economy. 18

“Desvio de poder e princípio da moralidade” in Direito constitucional: Liberdade de Fumar, Privacidade, Estado, Direitos Humanos e outros temas (p. 385).

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 127

19

A corrupção deve ser entendida como uma patologia do direito, vez

que consiste numa burla às regras preceituadas pelo ordenamento. Segundo

destacou o professor Tercio na quarta sessão do Seminário Internacional em

homenagem ao centenário de Miguel Reale, se o poder econômico for com-

preendido como uma modalidade de apossamento, talvez seria possível en-

tendê-lo como uma forma de positivação da vontade; esta, posteriormente

seria substituída por um modelo melhor organizado – talvez em um modelo

de gestão, tal como destacado pelo mesmo professor em Poder econômico e

gestão orgânica20: esta visão do poder econômico se alinha ao fato de que

atualmente há uma organização abstrata, travestida por empresas, que fun-

ciona e orbita ao redor da extensa área da sociedade de consumo; a corrup-

ção liga-se atualmente ao poder econômico como organização e gestão,

existe uma forma de corrupção, relacionada ao modo pelo qual ocorre a po-

sitivação, denominada corrupção endêmica - não mais evidenciada ou detec-

tada de forma clara – figura existente em algumas localidades do planeta, tal

como no Brasil21

.

Interessante mostra-se o trabalho do venezuelano Moisés Naím22

que

destaca o papel exercido pelos chamados “paraísos fiscais”, os quais auxili-

am na concretização das estruturas formadas pelos interesses daqueles que

abusam do poder econômico, estando também bastante relacionadas à cor-

rupção.

Defende Susan Rose-Ackerman23

que os estados democráticos devem

implementar esforços para estabelecer políticas claras de combate à corrup-

ção; salienta que indivíduos e firmas corruptas focam na obtenção de favores

específicos aos seus respectivos interesses.

Ponto importante de ser mencionado no combate à corrupção, como

bem observa Marcos Fernandes Gonçalves Silva24

, é a edição da Lei nº

8.666/93, texto que regula e institui normas para as licitações e contratos

envolvendo a Administração Pública. Esta lei minimiza o poder discricionário

dos agentes públicos, propiciando a observância de um controle, reduzindo

também o potencial surgimento de práticas corruptas que vem de encontro

ao texto legislativo.

19

Sobre a corrupção cumpre salientar inicialmente a observação feita por Marcos Fernandes Gonçalves da Silva: ―Na verdade, existem muito sentidos que podem ser atribuídos à palavra corrupção, mas existe um denominador comum a todos: ela envolve a interação entre pelo menos dois indivíduos ou grupos de indiví-duos que corrompem ou são corrompidos, e essa relação implica uma transferência de renda que se dá fora das regras do jogo econômico strito sensu‖ in A economia política da corrupção no Brasil (p. 23). 20

In Poder econômico: direito pobreza, violência e corrupção (p. 16-42). 21

Ressalta-se também sobre o tema um interessante trabalho de Salomão Ribas Junior, cujo título é ―Corrup-ção endêmica‖; o autor, como conselheiro do Tribunal de Contas de Santa Catarina, confere uma visão inte-ressante do importante papel dos Tribunais de Contas no combate à corrupção. 22

Ilícito: o ataque da pirataria, da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global (p. 134). 23

Corruption and Government: causes, consequences, and reform (p. 142). 24

“Um exemplo de ação contra a corrupção” in A economia política da corrupção no Brasil (p. 105-118).

128 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

Estudando-se a obra de Miguel Reale percebe-se que ele não foi um

estudioso do poder econômico. Todavia, conforme destacado ao longo do

curso Direito e Poder – homenagem ao centenário de Miguel Reale, percebe-

se que o poder em seus estudos tinha relevância, não como um dos elemen-

tos da sua teoria tridimensional, mas como um fator de extrema importância

para a viabilidade e funcionamento da referida teoria - vez que funcionaria

como um “catalisador” (como bem destacou, em mais de uma oportunidade,

o professor Tercio durante as aulas do referido curso).

Segundo as lições de Miguel Reale25

, o poder pode ser visto como uma

das possíveis positivações conferidas pela ordem jurídica; estaria relacionado

à vontade. Reale26

destaca o pensamento de Del Vecchio, para quem a positi-

vidade seria um elemento extrínseco do Direito; o Direito Positivo seria vari-

ável em virtude das atualizações das aspirações e necessidades do homem.

Em face do crescimento do poder de forças privadas, conforme expos-

to anteriormente, sobretudo numa esfera cada vez mais internacionalizada e

integrada, Miguel Reale27

, ao discorrer sobre a Teoria da graduação da posi-

tividade jurídica, sustenta que mesmo diante desta realidade o Estado não

deve ter subtraído o poder-dever de resolver conflitos e confirmar e presti-

giar a positividade do direito.

Deve o Estado se munir para conseguir trabalhar e controlar potenciais

abusos provenientes do Poder econômico; não por acaso o artigo 173, § 4º,

da Constituição Federal, dispõe neste sentido28

.

A resposta do Estado deve ser precisa, de forma a compreender a

complexidade e as peculiaridades impostas pelas inovações dos negócios

empreendidos e transacionados. Isso coaduna-se com a lição de Miguel Rea-

le29

que, ao evidenciar a “concreção jurídica”, expõe que o julgador, sem

desprezar os preceitos e valores do ordenamento, deve adequar a aplicação

da lei aos casos concretos inovadores para que eles sejam adequadamente

25

―O Direito se positiva gradativamente, e alcança a sua expressão mais concreta no Direito estatal, por meio de uma combinação de múltiplos elementos, não sendo possível esquecer que a vontade humana interfere de maneira decisiva nesse processo‖ – ―Análise do poder do Estado” in Teoria do Direito e do Estado (p. 340). 26

―Graduação da positividade do Direito” in Estudos de Filosofia e Ciência do Direito (p. 38). 27

“A Teoria da graduação da positividade jurídica” in Teoria do Direito e do Estado (p. 338). 28

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. 29

“A dinâmica do Direito numa sociedade em mudança” in Estudos de Filosofia e Ciência do Direito (p. 56).

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 129

agasalhados pelo ordenamento; ademais, a interpretação da norma legal

deve ser vista de acordo com o contexto em que será relacionada30

.

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30

Neste contexto faz-se importante destacar as lições de Agustín Gordillo (Tratado de Derecho Administrati-vo– p. IX-30) e a importância da figura do magistrado; o autor sustenta que não deve a atividade jurisdicional, própria dos juizes, ser substituída, total ou parcialmente, por atividades desenvolvidas pela Administração.

130 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 131

Priscila Sissi Lima Advogada. Doutoranda em Filosofia e Teoria Geral

do Direito pela Universidade de São Paulo.

Partindo da apreensão da linguagem pelo homem pós-moderno como

meio ambiente sub-rogado diante da inexistência de qualquer outro, o pre-

sente estudo visa a questionar o alcance da verdade enquanto escopo pri-

mordial do processo cognitivo. Ponderando as acepções retórica e essencia-

lista acerca da linguagem, enquanto lugar comum ou caminho para a verda-

de, respectivamente, apreende-se a ontognoseologia de Miguel Reale, visan-

do-se a considerar a relação sujeito-objeto na análise cognoscitiva, com

vistas à avaliação da importância do pensamento conjetural para a formação

do conhecimento, o que, inevitavelmente, leva à ponderação da influência do

processo cultural, enquanto elemento objetificador do conhecido, de modo a

permitir o alcance de uma unidade do conhecimento.

No contexto pós-moderno, o ser tecnológico deixa de ser a espécie

triunfante que domina a natureza, e passa a ser compreendido como um ser

metafórico, retardado, intermediado em sua relação com o meio ambiente,

incapaz de ter acesso às coisas simples da vida. Uma vez distanciando-se o

homem da natureza, ele passou a ser dominado pela necessidade de com-

pensação, vez não mais possuir um meio ambiente. Tal compensação, des-

tarte, dá-se pela linguagem, a qual surge como meio-ambiente dos seres

132 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

humanos, uma vez inexistindo outro. Não obstante, há quem considere a

linguagem um instrumento para a descoberta da verdade, e há quem discor-

de desse posicionamento.

Fato é que, para os essencialistas, atingir a verdade pela linguagem se-

ria possível, estando ela aparente, ou oculta por detrás de aparências. Fun-

damental faz-se, neste caso, o método dotado de lógica, intuição, emoção,

somadas a todo aparato cognoscitivo do ser humano aplicado adequada-

mente. Desse modo, seria possível aos seres humanos alcançar a verdade em

seu contato com o mundo, havendo uma conclusão que coagiria todos os

seres racionais a aceitar tal verdade.

Já os retóricos são convictos de que o alcance da verdade pela lingua-

gem é uma quimera, sendo a linguagem o máximo de acordo possível, ape-

nas capaz de construir um ambiente comum a todos, numa objetividade

condicionada a variados contextos, autopoiéticos, transitórios e modificá-

veis.

Nota-se, destarte, que uma das questões centrais da teoria do conhe-

cimento é observar, entre os homens, se a linguagem realmente descreve as

coisas como são ou se se reduz à mera convenção estabelecida pelo arbítrio

humano, não numa relação subjetiva estabelecida por cada homem entre a

língua e o mundo, mas num consenso efêmero, sujeito a reformulações a

realizarem-se pela intervenção da própria determinação humana.

Põe-se, dessa forma, a questão dicotômica entre verdade e conjetura

que, inevitavelmente, permeia os horizontes da teoria do conhecimento. De

fato, como assevera Reale1, um dos problemas capitais da Filosofia é a per-

quirição acerca do “valor do pensamento mesmo e do valor do verdadeiro”.

Platão foi um dos pioneiros ao observar uma bipartição do conheci-

mento em δόξα (doxa), enquanto opinião ou certeza subjetiva e ἐπιστήμ

(episteme), ou conhecimento objetivo. Enquanto δόξα representaria um de-

terminado ponto de vista subjetivo, ἐπιστήμ se referiria à crença verdadeira

e justificada.

Nesta esteira, encontra-se a denominada ontognoseologia de Reale,

voltada ao processo cultural em sua perspectiva histórica. Fundamentada na

relação sujeito-objeto, a ontognoseologia realeana propõe-se a obter não a

verdade absoluta, mas o conhecimento conjetural, abrangendo as condições

basilares do conhecimento, preocupando-se com a validade do pensamento

e das condições do objeto do conhecimento em geral e sua relação com o

sujeito que conhece, na correlação apriorística estabelecida entre sujeito

cognoscente e objeto cognoscível.

Difere, portanto, a análise ontognoseológica da metafísica, uma vez

que esta busca a verdadeira essência e condições de existência do ser. O ser

metafísico, não se trata de um objeto possível ao conhecimento, vez o ser

1 1999, p. 26.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 133

situar-se anteriormente a qualquer possibilidade, equivalendo à totalidade

de possibilidades. Reale caracteriza o pensamento metafísico como proble-

mático, na medida em que, nele, estão contidas questões insolúveis.

Conforme leciona Adeodato2, é nítida a influência da metafísica de Ni-

colai Hartmann no pensamento de Reale, no sentido de que “o sujeito e o

objeto ocupam o mesmo plano ontológico, uma vez que a ontologia do ob-

jeto do conhecer e a ontologia do conhecer são dois aspectos de uma única

realidade conoscitiva: a ontognoseologia realeana.” Não obstante, enquanto

para Hartmann os valores devem ser compreendidos historicamente, para

Reale eles estão ontologicamente relacionados ao plano da existência, mes-

clando-se, num único ente, a ontologia e a axiologia.

Em verdade, o próprio Immanuel Kant já havia desvencilhado o tema

dos meandros da metafísica, engendrando a admissão da participação ativa

do sujeito no processo do conhecimento, reconhecendo a capacidade do eu

transcendental de legislar sobre a natureza, o que denomina de poder no-

motético do espírito3, no sentido da habilidade de criar ou instaurar coisas

novas. Admitindo que o que se sabe depende do “eu que pensa”4, o pensa-

mento kantiano acolhe, portanto, uma relação intrínseca entre experiência

possível e condição de conhecimento, reunindo em uma problemática una as

facetas distintas da transcendentalidade e da experiência, na determinação,

pelo espírito, das regras norteadoras da origem e do desenvolvimento dos

fenômenos, a constituir tanto as ciências da natureza como as ciências hu-

manas.

Corroborando com Kant, segundo Reale, o valor do conhecimento deve

ser apreciado sob o enfoque transcendental e sob o enfoque empírico-

positivo, sendo este condicionado por aquele, não sendo possível determinar

qualquer objeto da experiência sem relacioná-lo às suas condições trans-

cendentais de possibilidade, nem, ao revés, sendo concebível uma condição

transcendental não correlacionada à experiência possível5.

Diante dessa superação da metafísica notada em Kant, conforme asse-

vera Franklin Leopoldo e Silva, “Resta o valor heurístico, definido agora como

regulador e transcendental, e resta um outro lugar, o pensar, distinto do

conhecer”6. Na cadência do pensamento kantiano, Reale reflete sobre a dis-

tinção entre conhecer segundo conceitos e pensar segundo ideias. Tal dife-

renciação fora abordada por Celso Lafer7, em cuja exposição verificou-se o

pensar como voltado à busca do significado e o conhecer ocupado com o

valor da cognição, numa dialética de mútua implicação-polaridade, como

2 ADEODATO, 2009, p. 320.

3 REALE, 1977, p. 21.

4 REALE, disponível em < http://www.miguelreale.com.br/artigos/teoriaser.htm>, acesso em 19 jun. 2010.

5 REALE, 1977, p. 34.

6 SILVA, 2005, p. 102.

7 Revista Cult, Ano 10, p. 58.

134 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

afirmaria Reale, não sendo essa uma dicotomia excludente, mas comple-

mentar, tornando-se possível, desse modo, conceber “uma expansão subje-

tiva da razão e uma delimitação definitiva do conhecimento objetivo”8.

Reale observa a distinção de Kant entre os conceitos ostensivos e heu-

rísticos, vislumbrando-os como “princípios regulativos” do conhecimento,

todavia, conforme ressalta Adeodato, afastando-se, todavia, da tendência

retórica moderna em considerar tão somente o conhecimento heurístico e

sopesar a teoria como holística e essencialista9.

É neste ponto que se faz primordial a análise do pensamento conjetu-

ral, ao qual a ontognoseologia realeana pretendeu conferir maior dignidade.

É manifesta a dificuldade em se encontrar uma conceituação precisa do

que consista o pensamento conjetural, uma vez que não há uma clara distin-

ção entre os objetos cognoscíveis e incognoscíveis, entre os quais não há

apenas uma diferença quantitativa, mas também qualitativa. Ora, segundo

lecionou Kant, as coisas em si não podem ser conhecidas, uma vez postas

pelo conhecimento, por incidir este, exclusivamente, sobre fenômenos. Des-

se modo, as coisas em si devem apenas ser pensadas – e não conhecidas –,

como noumenon, para que sirvam de fundamento aos próprios fenômenos,

na medida em que restringem o conhecimento, direcionando-o para as con-

dições da sensibilidade.

Ademais, conforme esclarece Reale, sob o olhar kantiano, “todo conhe-

cimento depende de duas formas de sensibilidade, o espaço e o tempo”10.

Isso quer dizer que as formas a priori da sensibilidade remetem à conversão

da realidade em experiência, de modo que já não se pode apreender a reali-

dade tal como poderia ser em si mesma. Logo, se apenas é possível conhecer

os fenômenos – submetidos às formas da sensibilidade e às categorias do

intelecto –, jamais sendo alcançada a coisa em si – que transcende o campo

do sensível e do intelectual –, as condições do conhecimento mostram-se

situadas na esfera da subjetividade, do sensível e do categorial11. Além da

órbita das sensações e dos conceitos, ultrapassar-se-ia o plano da ciência e

passar-se-ia ao plano das ideias, da insegurança e da incerteza, plano este

que, segundo Kant, é, por sua natureza, conjetural.

Desse modo, como mesmo nos objetos mais conhecidos resta um pano

de fundo no qual somente pode penetrar o pensamento conjetural, é possí-

vel afirmar que as conjeturas ocupam as brechas do conhecimento, sendo

complementares aos processos cognitivos.

Pautada em razões de plausibilidade e verossimilhança12, a conjetura, a

que Reale se refere, não se confunde com o mero palpite, com o discurso

8 SILVA, op. cit, p. 102.

9 ADEODATO, op. cit., p. 322.

10 REALE, 2000, p. 37.

11 REALE, op. cit, p. 38.

12 ADEODATO, op. cit., p. 323.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 135

probabilístico, assim como não se embaraça com a analogia, com a intuição,

com a fé, ou com a linguagem metafórica dos mitos13. Pelo contrário, en-

quanto a probabilidade considera a possibilidade de determinado evento, a

conjetura se funda em razões verossimilhantes que preenchem os vazios do

conhecimento, sendo mais ampla e desvinculada, centrando-se no cerne da

verdade.

Tais características fazem com que a conjetura, embora fundada na

experiência, seja hábil a produzir um discurso crítico, constituindo um modo

de pensar que transcende as fronteiras do evidente e do empiricamente

comprovável, possibilitando ao homem suplantar os seus próprios limites

cognoscitivos, vez que ventila suposições plausíveis fundadas na experiência

e em concordância com ela, almejando responder questionamentos eivados

da própria atividade empírica. Nas palavras de Judith Martins Costa: “Como

toda a conjetura parte da experiência, é possível que se façam conjeturas

para transcender a experiência e alcançar uma solução plausível e que inte-

grará o status da verdade num determinado momento histórico.”14

Se no núcleo da verdade situa-se a conjetura, verifica-se que a afirma-

ção kantiana, de que o que se sabe depende do “eu que pensa”, levando ao

poder nomotético do espírito do sujeito cognoscente, cede lugar a outra

conclusão: a de que “às vezes, o que se sabe depende da perspectiva ou

ponto de vista do eu que pensa.”15

Segundo conclui Reale, perspectivismo e pensamento conjetural, por-

tanto, estão indissociavelmente ligados, mostrando-se necessários à solução

de problemas da ciência positiva, na medida em que, ao lidar com um com-

plexo de verdades racionalmente verificadas, as quais não se mostram sufi-

cientes para suprir determinados espaços lacunosos do conhecimento, ela

requer a completude possibilitada pelo pensamento conjetural, o qual lhe

conduzirá a “quase verdades”16, isto é, a verdades resultantes de conjeturas.

Não há que se negar, destarte, a asseveração de Reale de que uma ba-

se conjetural subjaz a todo conhecimento, notando-se que a investigação

positiva e o pensamento conjetural não se excluem, mas se complementam,

numa relação dialética de complementaridade, na qual a imaginação criadora

condiciona os momentos da pesquisa científica à liberdade atinente ao pen-

samento conjetural, que, então, surge como sintetizadora da escolha axioló-

gica ante o real, de que resultará a nova verdade. Desse modo, ainda na ob-

jetividade da investigação científica, verifica-se cabível o exercício da liber-

13

ADEODATO, op. cit., p. 324. 14

MARTINS COSTA, 2002, p. 12-13. 15

REALE, disponível em < http://www.miguelreale.com.br/artigos/teoriaser.htm>, acesso em 19 jun. 2010. 16

Reale faz menção direta à ―Lógica Paraconsistente‖, enquanto lógica não clássica heterodoxa, fundada, entre outros, pelo matemático, lógico e filósofo brasileiro Newton Carneiro Affonso da Costa, em que se distingue a ―verdade‖, racionalmente verificada, da ―quase verdade‖ ou ―verdade parcial‖, oriunda do pensa-mento conjetural.

136 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

dade humana, na realização de conjecturas e na atualização de valores des-

tinados a integrar o próprio discurso científico, dando-se o conhecimento, a

um só tempo “subjetivo-objetivo”17.

Não obstante, cabe salientar que os resultados eventualmente alcança-

dos pelo pensamento conjetural devem conciliar-se com o experienciável,

não podendo essa atividade de imaginação criadora deixar de atender às

exigências do pensamento científico nem, tampouco, confundir-se com

ele18.

Outrossim, não se trata, o pensamento conjetural, embora configure

uma esfera de liberdade, de um pensar abstratamente incondicionado. Pelo

contrário, o pensamento humano, na atividade do conhecimento, é inevita-

velmente condicionado a partir do próprio homem e de seu processo vital.

Em outras palavras, a cultura é condição a priori transcendental do conheci-

mento, sendo o ato do conhecimento um ato cultural, em que se mostra ine-

rente o poder nomotético do espírito19.

Na medida em que a cultura tem seu berço na afirmação da liberdade,

no momento em que o sentido teleológico passa a integrar a vida humana,

uma vez que o homem descobre seu poder em fazer escolhas e legislar so-

bre a natureza, daí por diante, esse contexto cultural passa a guiar suas a-

ções.

Reconhecida a existência de um a priori cultural, o conhecimento se

torna objetivo e comunicável, sendo potencializado e convertido em base

para novos conhecimentos, dando azo a novas percepções, que possibilitam

o aperfeiçoamento da própria ciência e o surgimento de novas formas de

civilização20

, vez que a comunicação, em si, segundo Tercio Sampaio Ferraz

Jr., constitui a própria base de edificação dos sistemas sociais.21

Todavia, não há que se reduzir cada ciência ao âmbito exclusivo de sua

linguagem pelo fato desta representar o meio-ambiente compensatório do

ser humano, embora se deva admitir a linguagem enquanto Logos socráti-

co22

, o lugar da verdade, sendo algo além do retórico consenso intradiscursi-

vo. A linguagem, bem como a origem e o desenvolvimento de toda ciência,

mesmo sendo produto essencial do espírito23

, mostra-se condicionada na

17

REALE, 2000, p. 40. 18

ADEODATO, op. cit., 325. 19

REALE, 2000, p. 42. 20

REALE, 2000, p. 42. 21

FERRAZ JR. (2003: 36-37) aponta que ―os sistemas sociais se formam via comunicação‖, tratando-se esta de ―um fato incontornável do relacionamento humano. 22

ADEODATO, op. cit, p. 326. 23

REALE, disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/artigos/cultling.htm>, acesso em 19 jun. 2010.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 137

existência objetiva do mundo real. Percebe-se, dessa forma, que a língua

não é apenas a língua, havendo um mundo objetivo por trás dela.

Sendo a linguagem a expressão comunicativa da cultura e esta um

“complexo e sempre inconcluso mundo dos objetos do conhecimento”24

,

conforme conclui Reale, “o ato de conhecer, longe de ser dual – o subjetivo

ante o objetivo – é trino, uma vez que nele está ínsito o poder nomotético de

conversão do subjetivo-objetivo em uma expressão autônoma e comunicá-

vel, que passa a valer por si.”25

Logo, além da relação dialética de complementaridade havida entre as

verdades racionalmente verificadas na investigação positiva e o pensamento

conjectural, faz-se imprescindível a objetivização – de natureza cultural – do

conhecido que o torna comunicável, conduzindo, destarte, à unidade do co-

nhecimento humano.

A partir das explanações de Reale, em sua ontognoseologia, pode-se

extrair que o caminho para o conhecimento não se detém, exclusivamente,

na análise objetiva, buscando equipar-se tão somente de verdades racional-

mente verificáveis. Em virtude da permanência de espaços lacunosos não

supridos por tais verdades obtidas por meio da investigação objetiva, torna-

se imperiosa a utilização de conjeturas, as quais, lastreadas em razões de

plausibilidade e verossimilhança e distantes do pensamento meramente opi-

nativo, intuitivo e fideísta, possibilitam a supressão desses espaços em bran-

co, por meio do alcance de verdades parciais, ou quase verdades, obtidas

por meio de uma via de liberdade oriunda do pensar imaginativo-criativo,

sendo este fundado no experienciável e com ele compatível. Logo, nota-se

que tanto a verificação positiva como o pensamento conjetural não se exclu-

em, correlacionando-se, pelo contrário, numa dialética de complementarida-

de, de modo a possibilitar o conhecimento, dado a um único tempo subjeti-

vo-objetivo. Não obstante, para que tal conhecimento seja potencializado,

de modo a permitir a criação de novas bases de conhecimento e, desse mo-

do, engendrar novas formas civilizatórias, a comunicação, por meio lingua-

gem, sendo esta o meio ambiente compensatório do homem pós-moderno,

faz-se o terceiro artefato essencial do processo cognoscitivo, dado a partir

da assunção de um a priori cultural, enquanto elemento norteador das ações

humanas.

24

REALE, disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/artigos/cultling.htm>, acesso em 19 jun. 2010. 25

REALE, 2000, p. 44.

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 141

Renata Moura Gonçalves Advogada, mestranda em Filosofia e

Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

A correlação entre direito e poder é uma temática antiga que ainda ho-

je consiste em um dos grandes temas da filosofia do direito. Propondo-se a

estudar e a analisar o assunto, Miguel Reale investiga a estrutura e a função

do poder na ordem jurídica positiva sob duas perspectivas – uma estática,

que busca responder a pergunta acerca da essencialidade dessa correlação

consoante uma categoria lógica e universal; e outra dinâmica, em que são

consideradas as categorias históricas. Especificamente sob o ponto de vista

estático, a necessidade de escolha, em um contexto de nomogênese jurídica,

de uma diretriz de conduta que será dotada de validade objetiva revela a

imprescindibilidade da correlação de mútua implicação entre direito e poder.

Assim, questiona-se se o poder, entendido na teoria do direito de Miguel

Reale como o momento de decisão para outrem, aproximar-se-ia da idéia de

positivação da norma pela autoridade competente.

Palavras-chave: Poder – Direito – Reale – Positivismo – Norma jurídica –

Nomogênese – Fato – Valor.

The correlation between law and power is an old thematic that is still

one of the major themes of philosophy of law. Proposing to study and ana-

lyze this subject, Miguel Reale investigates the structure and function of

142 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

power in positive law from two perspectives – one static, which seeks to an-

swer the question about the essentiality of this correlation as a logical and

universal category; and other dynamic, in which are considered the historical

categories. Specifically under the static point of view, in a context of legal

nomogênese, the need for a choice a guideline of conduct that shall have

objective validity reveals the indispensability of mutual implication of the

correlation between law and power. This raises the question whether the

power, understood in legal theory of Miguel Reale as the moment of deci-

sions for others, would bring the idea of positive standard by a competent

authority.

A temática sobre a relação entre direito e poder é antiga e remonta à

filosofia grega, afirmando-se, ainda hoje, como um dos grandes temas da

filosofia do direito. O jurista não raro se depara com o dilema de que, embo-

ra o poder seja imprescindível para o direito, ele pode consistir em um fator

de perversão do direito. Assim, o poder pode desempenhar tanto uma fun-

ção positiva de sustentar o direito, quanto uma função negativa de subvertê-

lo. A tensão existente entre poder e direito igualmente remete à problemáti-

ca da identificação entre direito e poder, de forma que tudo o que o detentor

do poder ordenasse constituiria direito.1

Com a moderna afirmação de que incumbiria ao Estado o monopólio

do uso da força legítima, surge a necessidade de impor limites ao poder es-

tatal, o que foi alcançado com a fundamentação democrática do poder. Desta

forma, apenas um poder político democrático poderia realizar a positivação

dos direitos. Ressalta-se, todavia, que esta não consiste na única forma de

relacionar poder e direito, existindo modelos que proponham a supremacia

de um deles em detrimento do outro ou, até mesmo, a separação total entre

eles.2

A Constituição Federal de 1988, no parágrafo único de seu artigo 1º,

estabelece que “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de re-

presentantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Ao fa-

zê-lo, o legislador constituinte manifestou adesão a um modelo de Estado

democrático3 em que os cidadãos elegem por meio do voto os seus repre-

sentantes para elaboração de leis que regulamentarão suas próprias condu-

tas em restrição ao âmbito de liberdade individual de cada um, bem como

1Cf. M. MAIWALD. Diritto e potere. In: Rivista italiana di diritto e procedura penale, n.1, v.47, 2004, pp.03-

22. 2Cf. G. P. B. MARTÍNEZ. Derecho y poder: el poder y sus limites. In: Derechos y libertades. Revista del Insti-

tuto Bartolomé de las casas, n.7, v.4, 1999, pp.15-34. 3―A democracia é, pela sua própria natureza, um regime de limitação de poderes.” (F. K. COMPARATO. A

democratização do poder mundial. In: Juízes para democracia, n.23, v.5, 2001, pp.10-11.)

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 143

exercem alguns mecanismos de democracia direta, como, por exemplo, a

iniciativa popular para proposta de leis.4

Neste sentido, observa-se a existência de ao menos duas acepções di-

versas da palavra poder no referido dispositivo constitucional. Em um pri-

meiro sentido, há uma idéia abstrata de poder como algo que emana do po-

vo. Uma segunda acepção, por sua vez, relaciona-se principalmente com a

atividade de elaboração das normas jurídicas, visto se tratar de algo que po-

de ser exercido de maneira direta ou indireta.

Na seara das ciências humanas ou sociais, é muito comum encontrar

palavras dotadas de uma multiplicidade de significados, principalmente as

que são utilizadas para designar importantes aspectos da vida humana, de

modo a não existir um consenso terminológico preciso tal como ocorre no

domínio das ciências exatas.5 Neste diapasão, apresenta-se como de alta

complexidade a compreensão da palavra poder, a qual se insere no contradi-

tório mundo das aspirações humanas, refletindo, em suma, as aporias exis-

tenciais dos indivíduos.6

As diversas noções da palavra poder presentes no parágrafo único do

artigo 1º da Constituição Federal de 1988 remetem ao conceito de soberania

e ao de competência para a elaboração das leis. Nesta esteira, é possível

considerar que neste dispositivo constitucional encontra-se presente o cerne

da preocupação do jurista no estudo do tema da correlação entre poder e

direito, visto que, segundo Miguel Reale, ao jurista cumpre analisar não os

aspectos históricos ou psicológicos da origem do poder, mas sim a sua es-

trutura e a sua função na ordem jurídica positiva.7

Fabio Konder Comparato, ao tecer considerações sobre a necessidade

de democratização do poder mundial, expressa que, para legitimar o regime

democrático, a soberania popular deve significar a competência exclusiva

4“A teoria do poder constituinte é basicamente uma teoria da legitimidade do poder. Surge quando uma nova

forma de poder, contida nos conceitos de soberania nacional e soberania popular, faz sua parição histórica e revolucionária em fins do século XVIII. Esse poder novo, oposto ao decadente e absoluto das monarquias de direito divino, invoca a razão humana ao mesmo passo que substitui Deus pela Nação como titular da sobe-rania. Nasce assim a teoria do poder constituinte, legitimando uma nova titularidade do poder soberano e conferindo expressão jurídica aos conceitos de soberania nacional e soberania popular.” (P. BONAVIDES. Curso de direito constitucional. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 141.) 5“No domínio das ciências físicas as palavras possuem quase sempre sentido claro e unívoco, que não admite

confusões. (...) quando passamos, porém, para as ciências sociais ou humanas, encontramos palavras que albergam uma multiplicidade de sentidos, razão pela qual Bergson já nos disse que as palavras são prisões capazes de receber múltiplos conteúdos.” (M. REALE. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.497.) 6“Por serem palavras cujas raízes se aprofundam no mundo contraditório dos interesses e das preferências

humanas; por estarem sempre na funcionalidade de forças inovadoras que pretendem subordinar a regulari-dade dos fenômenos naturais à pauta de fins almejados; por refletirem, em suma, todas as aporias da existên-cia humana, em uma incessante experiência de estimativas, as „palavras cardeais‟ da cultura e da civilização (liberdade, justiça, igualdade etc.), todas elas não comportam a univocidade peculiar às coisas neutras para o mundo dos valores.” (M. REALE. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.498.) 7Cf. O poder na democracia: direito e poder e sua correlação. In Pluralismo e liberdade. Rio de Janeiro: Ex-

pressão e Cultura, 1998, p.208.

144 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

para decidir as questões fundamentais da organização e das diretrizes do

Estado. Desta forma, é possível considerar que, para o citado autor, o poder

relaciona-se com a decisão.8-9

Com intuito de salientar a complexidade do estudo das relações entre

direito e poder, cumpre mencionar que, segundo observa Tercio Sampaio

Ferraz Junior, o poder é um fenômeno irredutível. Deste modo, embora seja

possível apontar o que há de central em seu processo, é muito difícil definir

qual seja o seu núcleo essencial.10 Assim, qualquer tentativa de definir o

poder nas variadas searas em que ele se faz presente, tais como, a política, a

economia, o direito e a sociologia,11 por exemplo, encontra como obstáculo

a multiplicidade de formas de manifestação do poder.12

Em suas diversas acepções, o poder pode ser entendido como uma

substância, como uma faculdade humana de produzir obediência, ou, ainda,

como um instrumento de exercício de império e de soberania, conforme

destaca Tercio Sampaio Ferraz Junior. Deste modo, usualmente se fala que

alguém detém o poder, como se este fosse uma substância passível de ser

apropriada por um indivíduo. Ademais, dentre o uso lingüístico da palavra

poder, não raro se faz referência a uma idéia de poder como relação, em que

uma pessoa exerce poder sobre a outra. Como verbo, há uma estrutura mo-

dal que ora remete a uma possibilidade de algo vir a ocorrer, ora aponta para

as noções de faculdade, oportunidade, potência, sugestão, ou de direito

subjetivo. Não se deve esquecer, ainda, o emprego da palavra poder no sen-

tido de força para fazer alguma coisa.13

Constata-se, por conseguinte, uma inerente dificuldade à compreensão

precisa do fenômeno do poder, a qual torna o estudo das relações entre di-

reito e poder muito mais complexo, consoante destacou o Professor Miguel

8Cf. A democratização do poder mundial. In: Juízes para democracia, n.23, v.5, 2001, pp.10-11.

9“A definição de poder em termos de tomada de decisões acrescenta um elemento importante à „produção de

efeitos pretendidos sobre outras pessoas‟ – a saber, o recurso a sanções quando os efeitos pretendidos não se produzem. É a ameaça de sanções que diferencia o poder da influência em geral.” (A. KAPLAN; H. LASS-

WEL. Power and society – a framework for political inquiry. Trad. Port. de Maria Lucy Gurgel Valente de Seixas Corrêa. Poder e sociedade. Brasília: UnB, 1979, p.111.) 10

Cf. Estudos de filosofia do direito – reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito, 2ª ed., São Paulo, Atlas, 2003, pp.15 e 16. 11

“O impulso pela conquista e manutenção do poder, em qualquer meio social – familiar, tribal, nacional ou internacional – e em suas diferentes modalidades – poder político, econômico, religioso, cultural -, tem se mostrado uma das mais fortes paixões a agitar o coração humano.” (F.K. COMPARATO. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das letras, 2006, p. 589.) 12

“O fenômeno do poder é certamente irredutível. É possível apontar o que há de mais central – e oculto – em seu processo. Mas dizer-lhe o núcleo essencial é tarefa que esbarra numa sensação de multiplicidade, individual e socialmente dispersa, que nos assalta a cada passo como uma descoberta adolescente. Por isso, o poder diz-se na política, na economia, no direito, na cultura, no amor, na ciência, e se vê na força, na violên-cia, na persuasão, no convencimento, na vitória, na resistência e até na fraqueza e no desamparo.” (T.S. FERRAZ JUNIOR, Estudos de filosofia do direito – reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito, 2ª ed., São Paulo, Atlas, 2003, p.16). 13

Cf. T.S. FERRAZ JUNIOR, Estudos de filosofia do direito – reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito, 2ª ed., São Paulo, Atlas, 2003, pp. 16-20.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 145

Reale.14 Este autor enfatiza que o referido tema apresenta diferentes aborda-

gens de acordo com a área do conhecimento que o investiga.

Assim, por exemplo, dando ênfase para o aspecto da dinamicidade da

vida social, o historiador manifesta maior interesse em verificar as circuns-

tâncias de espaço e de tempo do processo por meio do qual direito e poder

se relacionam. Nesta esteira, o sociólogo apresenta como escopo a investi-

gação acerca da natureza deste processo, a fim de saber qual a participação

de elementos religiosos, econômicos, entre outros, na relação entre poder e

direito. Voltando-se para os indivíduos situados em uma relação de poder, o

psicólogo pesquisa os fatores que atuam para que as pessoas distingam en-

tre si a posição de governado ou de governante, bem como exijam que a

força esteja cada vez mais limitada objetivamente.15

Ao jurista, por sua vez, consoante previamente salientado, incumbe

analisar a estrutura e a função do poder no âmbito da ordem jurídica positi-

va, de modo a ser necessário o estudo sobre a soberania e as relações exis-

tentes entre a competência estatal e a liberdade individual. Já o político, para

quem o poder consiste em uma questão principal, apresenta uma preocupa-

ção bem mais ampla sobre esta matéria, uma vez que o poder configura o

próprio elemento de instauração de um direito, seja pela transformação do

antigo, seja pela introdução de novas normas no sistema vigente.16 Por fim,

o filósofo, atento principalmente para o fundamento do poder, verifica a le-

gitimidade ética na relação deste com o direito.17

Observa-se, pois, a existência de uma interdisciplinaridade entre os

referidos campos de pesquisa, de forma a não ser possível que o estudioso

de uma determinada área do conhecimento realize suas pesquisas ignorando

os resultados atingidos pelas demais áreas.18

Além das diversas acepções do fenômeno do poder e da multiplicidade

de áreas do conhecimento que o tomam por objeto de estudo, Miguel Reale

apresenta duas diferentes óticas por meio das quais é possível analisar a

correlação entre direito e poder. A primeira consistiria em um ponto de vista

estático, ao passo que a segunda diria respeito a um ponto de vista dinâmi-

co.19

14

Cf. O poder na democracia: direito e poder e sua correlação. In Pluralismo e liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, pp.207-208. 15

Cf. M. REALE. O poder na democracia: direito e poder e sua correlação. In Pluralismo e liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, pp.207-208. 16

“O conceito de poder é talvez o mais fundamental em toda a ciência política: o processo político e a forma-ção, a distribuição e o exercício do poder (em um sentido mais amplo, de todos os valores de deferência, ou da influência em geral.” (A. KAPLAN; H. LASSWEL. Power and society – a framework for political inquiry. Trad. Port. de Maria Lucy Gurgel Valente de Seixas Corrêa. Poder e sociedade. Brasília: UnB, 1979, p.110.) 17

Cf. M. REALE. O poder na democracia: direito e poder e sua correlação. In Pluralismo e liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, pp.207-208. 18

Cf. M. REALE. O poder na democracia: direito e poder e sua correlação. In Pluralismo e liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, pp.207-208. 19

Cf. O poder na democracia: direito e poder e sua correlação. In Pluralismo e liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, p.209.

146 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

O ponto de vista estático oferece maior clareza e rigor na pesquisa a-

cerca da correlação entre poder e direito, em virtude de partir de uma análise

prévia consistente no questionamento acerca da essencialidade da correlação

entre poder e direito. Neste diapasão, indaga-se, abstraindo o aspecto di-

nâmico intrínseco ao poder na seara histórica e sociológica, se a correlação

entre poder e direito é necessária a despeito dos elementos contingenciais

de espaço e de tempo. A resposta afirmativa a esta pergunta implica a con-

clusão de que a correlação entre poder e direito consiste em uma categoria

lógica universal e não em uma mera categoria histórica.20

Desta forma, partindo previamente da análise do ponto de vista ôntico

de um momento da experiência jurídica, Miguel Reale enxerga na necessida-

de de escolha para objetivação de uma determinada conduta na norma jurí-

dica a essencialidade da correlação entre poder e direito. O momento nor-

mativo corresponde à formulação racional de uma preferência por uma de-

terminada conduta relacionada com valores os quais se almeja preservar, de

forma que a normatividade enseja a tomada de uma decisão, tanto relacio-

nada a um fim quanto aos meios adequados para atingi-lo.21

Para Miguel Reale, a interferência da vontade na escolha dos fins e dos

respectivos meios em um mundo casualmente determinado, no qual a liber-

dade igualmente se faz presente, implica a necessidade da existência do

poder na nomogênese jurídica.22 Neste sentido, o direito não seria concebí-

vel sem o poder, tendo em vista que este se revela como um de seus compo-

nentes essenciais.

Tem-se, portanto, que a noção de poder é muito importante para a

própria teoria de Miguel Reale sobre o direito. Com o objetivo de melhor

estudar esta questão, o referido autor leva em consideração o processo de

elaboração da norma jurídica, conhecido como nomogênese jurídica. Neste

processo, visualiza-se a atuação do poder como um momento de decisão

que torna objetivamente válida para outrem uma determinada norma jurídi-

ca. Diante deste entendimento de Miguel Reale acerca da função do poder no

âmbito da ordem jurídica positiva, é pertinente questionar qual papel de-

sempenharia o poder para o positivismo jurídico.

Neste passo, segue-se a comparação das noções de estática e de di-

nâmica para Miguel Reale e para Hans Kelsen, bem como a verificação da

maneira pela qual o fenômeno do poder é entendido em Miguel Reale e no

positivismo jurídico.

20

Cf. M. REALE. O poder na democracia: direito e poder e sua correlação. In Pluralismo e liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, p.209. 21

Cf. M. REALE. Filosofia do Direito.20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp. 550-551. 22

Cf. Filosofia do Direito.20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.551.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 147

Ao tratar da temática da estática e da dinâmica sociais, Miguel REALE

observa o embate constante entre duas aspirações diversas na sociedade –

de um lado, há a força da inovação, da mudança e do progresso; e, de outro,

verifica-se a preferência pela manutenção do status quo, pela conformidade

com a situação e pelo apego ao que está consagrado pelos usos e costu-

mes.23 A predominância de uma destas aspirações nos indivíduos permitiria,

segundo Miguel REALE, a identificação de dois tipos humanos diversos – os

revolucionários e os conservadores.24

A conjugação entre a estabilidade e o movimento resulta em um equi-

líbrio instável que permite o progresso da sociedade sem que ela se dissolva

nem se estagne. Deve-se, portanto, buscar atingir um meio termo entre es-

tes dois extremos. Neste cenário, o direito, entendido como uma ordem das

relações humanas segundo o ideal de justiça, consiste em uma composição

harmônica entre estabilidade e movimento.25 Desta forma, é possível afirmar

que Miguel REALE toma por base o conceito aristotélico de justiça, segundo o

qual esta consiste em um meio-termo entre dois extremos. Para Aristóteles,

a justiça deve observar uma proporção entre duas coisas e duas pessoas.26

Miguel REALE considera que não se deve reduzir a ordem jurídica a um

retrato estático da legislação positiva, sendo necessário levar em considera-

ção as circunstâncias históricas, econômicas, éticas e psicológicas, entre

outras, que esclarecem a dinâmica do direito.27

Hans KELSEN, por sua vez, entende que é possível distinguir uma teoria

jurídica estática de uma teoria jurídica dinâmica, conforme se enfatize o as-

pecto das normas reguladoras da conduta humana ou, por outro lado, a

conduta humana regulada para norma. Importa observar que, segundo o

autor austríaco, as normas jurídicas são objeto da ciência jurídica, de forma

que as condutas humanas só serão estudadas pelo direito na medida em que

constituem o conteúdo das normas jurídicas ou são determinadas por elas.28

Neste sentido, a teoria jurídica estática toma por objeto o sistema de

normas em vigor, captando, por conseguinte, o direito em seu momento

estático; ao passo que a teoria jurídica dinâmica examina o direito em seu

movimento, isto é, o processo jurídico por meio do qual o direito é produzi-

23

Cf. Teoria do direito e do estado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, pp.91-94. 24

Cf. Teoria do direito e do estado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p.91. 25

Cf. Teoria do direito e do estado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, pp.91-94. 26

“Se, pois, o injusto é iníquo, o justo é o eqüitativo, como, aliás, pensam todos sem discussão. E como o igual é um ponto intermediário, o justo será o meio-termo.” (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. port de Leonel Vallandro e Gerd Barnheim. In: Os pensadores. vol. II. São Paulo: Victor Civita, 1984, p.125.) 27

Cf. Teoria do direito e do estado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, pp.91-94. 28

Cf. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 79-80.

148 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

do e aplicado, sendo necessário lembrar que a própria elaboração e a aplica-

ção do direito são regulamentadas por normas jurídicas.29

Hans KELSEN ressalta que o processo legislativo é regulado pela Consti-

tuição. Já a aplicação das leis materiais seria regulada pelas leis processuais.

Na esteira destes pressupostos, o autor conclui que a produção e a aplicação

do direito somente interessam à ciência jurídica pelo fato de serem determi-

nadas por outras normas jurídicas, de modo que, também em sua dinâmica,

o estudo do direito remete às normas jurídicas.30

Assim, constata-se que as noções de estática e de dinâmica apresen-

tam diferentes significados para Miguel REALE e para Hans KELSEN. O primeiro

autor, em consonância com uma teoria tridimensional do direito, a qual não

exclui da apreciação do jurista os elementos fáticos e valorativos, apresenta

tanto uma abordagem da estática e da dinâmica sociais, quanto uma pers-

pectiva estática e outra dinâmica para a análise da correlação entre direito e

poder.

Ao expor sobre a estática e a dinâmica sociais, Miguel REALE identifica

na sociedade forças díspares que ora apontam para o movimento, ora apon-

tam para a estagnação. O direito, neste cenário, constituiria a resultante da

atuação destas forças contrapostas que apontam para a estática da ordem

vigente e para a dinâmica das ordens sociais. O direito seria, portanto, para

Miguel REALE, a expressão da unidade multíplice da sociedade, sendo, con-

comitantemente, unidade e multiplicidade, estabilidade e movimento.31

Ademais, Miguel REALE estabelece uma distinção entre as perspectivas

estática e dinâmica ao analisar a correlação entre poder e direito. Sob o pon-

to de vista estático, o autor busca verificar a essencialidade da correlação

entre direito e poder. Para tanto, parte da análise de um momento da experi-

ência jurídica sem levar em consideração o condicionamento histórico. O

autor opta por tomar como ponto de partida a norma jurídica, uma vez que

esta pode ser considerada um dado inicial para o jurista e, ainda sob a ótica

estática, examina o processo de nomogênese jurídica, em que, em razão da

interferência do poder, há uma síntese precária entre fatos e valores em uma

norma jurídica, a qual adquire validade objetiva para ser invocada em face de

terceiros.32

Já sob o ponto de vista dinâmico, Miguel REALE analisa a correlação en-

tre direito e poder inserida em seu contexto histórico, verificando como o-

29

Cf. H. KELSEN. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 79-80. 30

Cf. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 79-80. 31

Cf. Teoria do direito e do estado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, pp.91-94. 32

Cf. O poder na democracia: direito e poder e sua correlação. In Pluralismo e liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, p.209. “Cada modelo jurídico, em suma, considerado de per si, corresponde a um momento de integração de certos fatos segundo valores determinados, representando uma solução temporária (momentânea ou duradoura) de uma tensão dialética entre fatos e valores, solução esta estatuída e objetivada pela interferência decisória do poder em dado momento da experiência social.” (M. REALE. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.554.)

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 149

corre esta correlação, por exemplo, nos Estado totalitários e nos Estados

pluralistas, bem como procedendo à investigação acerca do processo de ju-

risfação do poder, com a progressiva despersonalização do poder.33

Neste ponto surge a questão da necessidade de positivação dos direi-

tos fundamentais e de outros mecanismos de organização do poder como

uma expressão da preocupação filosófica de estabelecer limites e garantias

frente ao exercício do poder. A positivação representaria, neste cenário, uma

resposta à necessidade de atribuir forma jurídica para pretensões valorativas,

de modo que a positividade do direito e a racionalização do poder estariam

indissoluvelmente conectadas.34

Em suma, enquanto Hans KELSEN limita o objeto de estudo do jurista à

norma jurídica tanto em uma teoria estática, dirigida ao sistema de normas

em vigor, quanto em uma teoria dinâmica, voltada para as normas jurídicas

relacionadas à aplicação e à elaboração do direito, Miguel REALE preocupa-se

com as estáticas e as dinâmicas sociais e considera que a análise do proces-

so de elaboração da norma jurídica com abstração das contingências históri-

cas consiste em uma perspectiva estática. Ademais, mesmo sob este ponto

de vista estático, Miguel REALE não exclui da apreciação do jurista os elemen-

tos fáticos, axiológicos e normativos, além de reconhecer a imprescindibili-

dade da interferência do poder para o momento da nomogênese jurídica.

Por fim, cumpre mencionar, conforme lembra Celso LAFER, a classifica-

ção dos pensadores elaborada por Isaiah BERLIN, segundo a qual há os ouri-

ços, que guardam uma perspectiva centrípeta da realidade, uma visão unitá-

ria, coerente e monista; e há as raposas, que exprimem uma perspectiva

centrífuga da realidade, com uma visão mais pluralista. Para Celso LAFER,

embora Hans KELSEN não ignore a complexidade metajurídica, a abordagem

metodológica e o desenvolvimento de uma teoria pura do direito, bem como

a defesa da existência de uma única ordem jurídica, tornam-no um autor

mais ouriço do que raposa. Já Miguel REALE, ao combater o reducionismo por

meio da ontognoseologia e da dialética de mútua implicação e polaridade em

que se relacionam fato, valor e norma, pode ser considerado mais raposa do

que ouriço, segundo Celso LAFER.35

O estudo das fontes e dos modelos do direito revela-se de grande im-

portância para a compreensão adequada da correlação entre direito e poder.

33

Cf. O poder na democracia: direito e poder e sua correlação. In Pluralismo e liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, pp. 220-235. 34

Cf. A. GREPPI. Algunos aspectos de la racionalización del poder através del derecho. In: Derechos y liberta-des. Revista del Instituto Bartolomé de las casas, n.8, v.5, 2000, pp.629-638. 35

Cf. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das letras, 1988, pp. 13-15.

150 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

O problema das fontes do direito coloca-se como uma das questões funda-

mentais do positivismo jurídico e remete à primazia conquistada pela lei em

face de outras fontes do direito no desenvolvimento do Estado moderno.36

Consoante entendimento manifestado por Norberto Bobbio, fontes do direito

consistem nos atos ou nos fatos aos quais determinado ordenamento jurídi-

co atribui a competência ou a capacidade de produzir normas jurídicas. Nes-

te sentido, a importância do problema das fontes reside na verificação da

relação de pertinência de uma norma a um determinado ordenamento jurídi-

co. Por este motivo, os ordenamentos jurídicos complexos apresentam não

apenas normas que regulam a conduta dos indivíduos, mas também normas

que regulam a produção jurídica.37

Ocorre, todavia, que o questionamento acerca das fontes do direito co-

loca um problema prévio sobre a gênese de todo o direito, implicando, por

conseguinte, uma separação entre direito e poder. Diante disto, Miguel Reale

elaborou uma teoria dos modelos do direito38 em que não seria necessário

separar direito e poder.

Para melhor compreender a natureza dos modelos jurídicos,39 os quais

consistem em uma espécie de modelo de direito que apresenta uma nature-

za prescritiva, com a função precípua de reger, de modo objetivo, atos futu-

ros, indicando um fim concreto, Miguel Reale procede à análise da gênese

dos modelos jurídicos.40

Primeiramente, este autor destaca que os modelos jurídicos não são

uma construção artificial da mente humana. Embora a criação dos modelos

jurídicos exija a participação do intelecto, não se pode desconsiderar que se

trata de um momento da experiência jurídica o qual, por este motivo, con-

siste em uma expressão do mundo cultural.41 Assim, as pretensões de cará-

ter político de uma sociedade pluralista são dotadas de validade objetiva no

36

Cf. N. BOBBIO. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 161. 37

Cf. O positivismo jurídico – lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, pp. 161-162. 38

“Sendo os modelos jurídicos formas de compreensão e atualização do conteúdo das fontes do direito, eles são obviamente dotados da mesma força objetiva e positiva de obrigatoriedade já atribuída às fontes, não se reduzindo, por conseguinte, a meras expressões lingüísticas, ou a simples formas técnicas de conhecimento das regras jurídicas. Estas constituem sempre o objeto do processo hermenêutico, só que são interpretadas enquanto elementos componentes de um modelo, cuja estrutura e atualização pressupõem sempre referibili-dade a fatos e valores.” (M. REALE. Fontes e modelos: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, pp. 37-39.) 39

“Os modelos jurídicos, assim elaborados por meio da interferência decisória do poder, têm distintos índices de obrigatoriedade e áreas diversificadas de incidência. A sua positividade está correlacionada a uma gera-ção de poder. A soberania, como poder de declarar em última instancia, a positividade do Direito, significa para Miguel Reale que o Estado, no mundo moderno, é o centro geométrico da positividade jurídica, sem prejuízo do pluralismo dos modelos jurídicos.” (C. LAFER. Direito e poder na reflexão de Miguel Reale. In: Miguel Reale na UnB. Brasília: UnB, 1981, p.63.) 40

Cf. Fontes e modelos: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, pp. 37-39. 41

“Não se pode, em suma, configurar os modelos jurídicos como lentes através das quais se observa o mundo da conduta humana, mas sim como estruturas que surgem e se elaboram no contexto mesmo da experiência, como objetos histórico-culturais que são.” (M. REALE. Fontes e modelos: para um novo paradigma herme-nêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, pp.49-50)

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 151

instante em que um projeto de lei é aprovado e sancionado pelo poder com-

petente.42

Com intuito de pôr fim ao cenário de incerteza dominado por interes-

ses e pretensões conflitantes, Miguel Reale sustenta que o poder, entendido

como uma decisão, é imprescindível à gênese dos modelos jurídicos. Nesta

esteira, criticam-se as tentativas que, ao afastar direito e poder, concebem a

criação do direito como sendo a auto-revelação de um processo social ima-

nente.43

Ademais, interessa notar que, com a progressiva despersonalização da

idéia do poder, a norma jurídica passou a ser válida por si mesma. Assim,

Miguel Reale assinala que, paradoxalmente, a norma jurídica surge com a

interferência do poder e, para que continue subsistindo de modo objetivo e

legítimo, ela passa a conter dentro de si o poder. Em outras palavras, o que-

rer do poder converte-se em querer da norma.44

Com a absorção do poder pelo modelo jurídico, as impurezas e as con-

tradições inerentes ao poder são convertidas em esquemas objetivos de

condutas obrigatórias, de modo que o modelo jurídico vale por si mesmo a

despeito de qualquer caráter de índole pessoal relacionado ao poder.45

Conforme ressaltado, o poder constitui, para Miguel REALE, um elemen-

to essencial do direito, sem o qual este é esvaziado de sentido. Ressalta-se

que, para melhor esclarecimento acerca da imprescindibilidade do poder no

processo de elaboração da norma jurídica e do seu papel na ordem jurídica,

se faz necessário reconhecer que o direito consubstancia-se em um proces-

so dialético de mútua implicação e polaridade entre as circunstâncias fáticas,

as posições axiológicas e as normas jurídicas, adotando-se, pois, a teoria

tridimensional específica e dinâmica do direito sustentada por Miguel REA-

LE.46

Segundo esta teoria, a experiência jurídica apresenta uma estrutura

tridimensional na qual se encontram em uma correlação essencial os aspec-

tos fáticos, axiológicos e prescritivos, os quais, em sua unidade, constituem

o direito. Portanto, para Miguel REALE, não é apropriado tecer uma análise

setorizada que apenas leve em consideração fato, valor ou norma, de manei-

42

Cf. M. REALE. Fontes e modelos: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, p.51. 43

Cf. M. REALE. Fontes e modelos: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, p.52. 44

Cf. Fontes e modelos: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, pp.54-55. 45

Cf. M. REALE. Fontes e modelos: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, pp.56-57. 46

Cf. M. REALE. O poder na democracia: direito e poder e sua correlação. In Pluralismo e liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, p.212.

152 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

ra unilateral, como fazem as teorias tridimensionais genéricas. Neste passo,

impõe-se examinar a correlação essencial dos elementos primordiais do di-

reito, os quais se implicam mutuamente em uma imprescindível conexão.

Esta característica da tridimensionalidade remete ao seu aspecto específico.47

Ademais, é preciso analisar o direito sob uma perspectiva tridimensional

dinâmica, a qual exige o reconhecimento de que os elementos fáticos, valo-

rativos e normativos estão em uma correlação temporal. Não se trata sim-

plesmente de situar estes elementos no tempo, mas sim de admitir que eles

sejam intrinsecamente temporais, de modo a não ser possível identificá-los

fora do tempo em que se alteram. Em suma, para Miguel REALE, mais do que

afirmar a existência destes três fatores, é preciso reconhecer que eles são

inseparáveis e, principalmente, que o aspecto tridimensional é inerente ao

direito.48

Diante disto, verifica-se que não há uma identificação necessária entre

um valor e uma norma de conduta específica. Uma mesma proposição axio-

lógica pode ensejar mais de uma forma de dever ser. Deste modo, para Mi-

guel REALE, valor, dever ser e fim constituem momentos de um denso pro-

cesso marcado pela interação de forças díspares de estática e de dinâmica, o

qual se consubstancia na experiência total do homem, com a integração en-

tre o ser do homem e o seu dever ser.49-50

A formulação de uma norma jurídica que imponha como objetivamente

válida uma determinada conduta voltada para a realização ou para a preser-

vação de um valor específico exige uma tomada de decisão, em que se es-

clarece a essencialidade da correlação entre poder e direito. Cumpre recordar

que, a fim de afastar as discussões que colocam em oposição a técnica e a

ética, Miguel REALE adota uma noção mais simples de norma jurídica como

um comando de conduta que estabelece previamente algumas conseqüên-

cias para a sua observância ou para o seu descumprimento. Observe-se,

ainda, que a norma jurídica apresenta um sentido vetorial de apontar para

um comportamento desejado ou de vedar uma conduta danosa. Ademais, a

norma é dotada de validade objetiva e a tutela de seu cumprimento é garan-

tida por meio da cominação de uma conseqüência jurídica para a sua inob-

servância.51

47

Cf. M. REALE. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp. 511-514; 543-544. 48

Cf. M. REALE. O poder na democracia: direito e poder e sua correlação. In Pluralismo e liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, p.212. 49

Cf. M. REALE. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.550. 50

Neste sentido, cumpre citar Martin Heidegger, para quem a constituição ontológica é una: “Experienciado como ser, o tão propalado „ser ele mesmo‟, na verdade, permanece ser, no sentido do ser dos entes. (...) Porque a reunião integra todos os entes no ser, surge do pensamento que se volta para a reunião a impressão inevitável e insistente de que o ser (dos entes) não é apenas igual à totalidade do ser mas, como igual, tam-bém como o que unifica, é até mesmo o ente máximo.” (M. HEIDEGGER. Vorträge und Aufsätze. trad. port. de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. Ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Vozes, 2001, p.213.) 51

Cf. M. REALE. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp. 550-555.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 153

Deste modo, ressalta-se que a norma jurídica relaciona-se com a es-

colha para tornar uma conduta como objetivamente válida perante terceiros,

não se resumindo ao seu enunciado escolhido, uma vez que igualmente en-

volve os mecanismos de preservação desta escolha. Na experiência jurídica,

fato e valor somente se compõem por meio da interferência do poder. Miguel

REALE ressalta que esta tomada de posição não pode ser entendida com abs-

tração dos elementos axiológicos, tendo em vista que o ato de decisão re-

sulta antes de um ato de preferência entre valores.52

Assim, tem-se que na teoria tridimensional do direito de Miguel REALE,

o tema do poder relaciona-se com a experiência axiológica, visto que este

não pode ser concebido como mera força material criadora de regras jurídi-

cas. O legislador cria o direito ao optar por um caminho dentre vários possí-

veis cuja observância passa a ser juridicamente exigível. Neste passo, a deci-

são, a qual consiste na “alma do poder”53, somente se verifica dentro do pro-

cesso de elaboração normativa, justifica-se, pois, a importância de estudar o

tema da nomogênese jurídica a fim de melhor entender o poder como um

ato de decisão munido de uma garantia específica.5455

A explicação da essencialidade da correlação entre direito e poder to-

ma por base a nomogênese jurídica, ou seja, o processo de elaboração de

uma norma jurídica. Supondo a necessidade de tomar providências normati-

vas para resolver uma situação de fato, Miguel REALE esclarece que, em pri-

meiro lugar, os legisladores encontram-se condicionados por um complexo

de circunstâncias de fato, entre as quais se situa tudo o que já existe, inclu-

indo-se os interesses e as normas jurídicas, que já integram de maneira ob-

jetiva a experiência histórica. Ademais, verifica-se a presença de um com-

plexo valorativo que se manifesta por meio de diversas inclinações e convic-

ções de indivíduos e de grupos de interesse. Neste ponto, cumpre ressaltar

que, na nomogênese jurídica, o componente da pressão axiológica sempre

se relaciona a uma situação de fato, conforme é possível constatar por meio

da existência de uma multiplicidade de proposições normativas e de projetos

de lei.56

52

Cf. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp.556-557. 53

Cf. M. REALE. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp.556-557. 54

Cf. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp.556-557. 55

Cumpre observar que Miguel Reale aceita a teoria da graduação da positividade, a qual admite que a própria garantia jurídica não constitui monopólio do Estado. Cf. Teoria do direito e do estado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, pp.314-315. 56

Cf. M. REALE. O poder na democracia: direito e poder e sua correlação. In Pluralismo e liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, pp.211-212.

154 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

Tendo em vista a necessidade de pôr termo à incerteza57 e de oferecer

um equilíbrio, ainda que momentâneo, para a conjugação das aspirações

díspares dos indivíduos,58 impõe-se como uma exigência a escolha de uma

das proposições normativas elaboradas em detrimento das demais. Para Mi-

guel REALE, no instante em que o projeto de lei é aprovado e sancionado,

ocorre a conversão da proposição normativa em norma jurídica, dotada de

validade objetiva e de força constitutiva de novo direito. O momento desta

decisão por outrem evidencia, pois, a essencialidade da correlação entre po-

der e direito.

Cumpre observar que, muito embora Miguel REALE aponte o momento

em que o poder manifesta a essencialidade de sua participação no direito,

mais precisamente, na nomogênese jurídica, não resta esclarecido qual seria

o entendimento deste autor acerca da noção de poder. No processo de ela-

boração da norma jurídica, já seria possível notar a presença do poder entre

os elementos fáticos e axiológicos e não somente no ato de decisão. Deste

modo, quando um grupo de interesses, por exemplo, consegue fazer com

que uma determinada proposição normativa prepondere sobre as demais,

alcançando, portanto, a defesa de um valor almejado, é possível dizer que

este grupo detém poder, entendido como uma substância capaz de produzir

obediência.59 Assim, a despeito de quem seja o detentor da competência

para a decisão de aprovar e de sancionar um projeto de lei, a vontade de um

determinado grupo, a qual apóia um valor específico, será dotada de valida-

de jurídica objetiva.

Tem-se, portanto, que, sem levar em consideração o caráter mutável e

transitório acerca da pessoa ou do órgão que detém o poder para que uma

decisão seja tomada em um sentido e não em outro, Miguel REALE preocu-

pou-se em identificar onde se manifestava o poder em si mesmo considera-

do, chegando à conclusão de que no momento de criação da norma jurídica

57

“É claro que, diante de um contraste ou conflito entre valores e fatos, ou mesmo diante de um conflito entre múltiplas atitudes estimativas condicionadas por um único valor, que esteja historicamente incidindo em dado meio social, uma única solução pode preponderar juridicamente. Nada mais incompatível com o direito do que a incerteza, a carência de uma diretriz segura (...)” (M. REALE. O poder na democracia: direito e poder e sua correlação. In Pluralismo e liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, p.213.) 58

“O direito, que é a ordem das relações humanas segundo o ideal de justiça compatível com as contingên-cias históricas (...) representa, nem pode deixar de representar, um meio-termo, uma composição harmônica de estabilidade e movimento.” (M. REALE. Teoria do direito e do estado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p.92.) 59

Cf. T.S. FERRAZ JUNIOR, Estudos de filosofia do direito – reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. 2ª ed., São Paulo, Atlas, 2003, pp. 19-20.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 155

encontra-se o poder em sua correlação mais essencial com o direito, inde-

pendentemente de saber a quem ela favorece.60

Para Miguel REALE, como de uma mesma proposição axiológica é possí-

vel extrair inúmeras proposições normativas, o poder se faz imprescindível

para consagrar a norma e torná-la efetivamente obrigatória perante tercei-

ros.61 Neste passo, poder e direito são inseparáveis, mas não se pode reduzir

um ao outro. Ademais, não seria apropriado tomar o poder como uma quarta

dimensão. O ato de decisão para outrem, momento característico do poder,

insere-se dentro do mundo cotidiano, sendo condicionado pelos valores que

legitimam a opção normativa feita em concreto.62 O poder desacompanhado

de uma preocupação axiológico-normativa consiste em mera força que não

pode ser considerada como jurídica positiva.63

Como visto, a necessidade de uma ordem para regulamentação social

que ponha fim às incertezas encontra no direito o meio adequado para con-

jugar os múltiplos anseios sociais em um equilíbrio em movimento que ex-

presse a unidade multíplice da sociedade.64 Neste sentido, impõe-se a ne-

cessidade de uma decisão. A competência para fazer esta escolha, em regra,

está nas mãos dos integrantes do poder legislativo. Todavia, isto não signifi-

ca que, obrigatoriamente, eles tenham o poder de arbitrariamente impor

suas vontades. A decisão tomada situa-se dentro de todo um complexo ce-

nário em que se conjugam fato, valor e norma em uma unidade concreta e

dinâmica, não se devendo esquecer a limitação objetiva imposta pela ordem

jurídica. Não raro, portanto, o poder advém do corpo social que exerce pres-

são sobre os membros do Congresso Nacional para que determinado projeto

60

Sobre a relação entre poder e decisão: “Do ponto de vista da sociedade como um todo, é freqüentemente impossível determinar, sem informações adicionais, se um determinado ato legislativo, decreto executivo, regra administrativa ou julgamento de tribunal é uma decisão. (...) Como uma decisão é uma determinação „efetiva‟ de política, envolve todo o processo de executar determinado curso de ação. Participam do processo decisório apenas as pessoas cujos atos efetivamente têm importância. Não diremos que um voto foi dado – exceto como operação – se os votos não forem contados.” (A. KAPLAN; H. LASSWEL. Power and society – a framework for political inquiry. Trad. Port. de Maria Lucy Gurgel Valente de Seixas Corrêa. Poder e socieda-de. Brasília: UnB, 1979, pp.109-110.) 61

“É certo que o poder consagra a norma e a torna efetivamente obrigatória, mas a obrigatoriedade do direito positivo não resulta, a nosso ver, da incognoscibilidade dos valores do justo, mas sim da relatividade de suas possíveis projeções concretas.” (M. REALE. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.558) 62

“Outro equivoco, a meu ver, consiste em pensar que, atingido o momento normativo, destes defluam rela-ções ou conseqüências de direito, pelo simples fato de sua incidência sobre o plano factual, dando configura-ções jurídicas aos comportamentos humanos. Na realidade, os modelos jurídicos, como estruturas fático-axiológico-normativas, acham-se imersos na práxis social, na Lebenswelt, assim como desta não se libertam também os legisladores (lato sensu), os advogados e os juízes, isto é, os que elaboram os modelos jurídicos e os que com ele operam.” (M. REALE. Nova fase do direito moderno. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.169.) 63

Cf. M. REALE. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp.560-561. 64

Cf. M. REALE. Teoria do direito e do estado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p.93.

156 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

de lei seja votado e aprovada como aconteceu, por exemplo, com a Lei da

Ficha Limpa, a qual resultou de um projeto de lei de iniciativa popular.65-66

A mutabilidade verificada na identificação precisa de quem exerce a

força determinante para que haja uma decisão em um determinado sentido e

não em outro no processo de elaboração da norma jurídica levou Miguel REA-

LE a buscar abstrair as contingências históricas e sociológicas, a fim de obter

uma essência imutável na correlação entre poder e direito. Como resultado,

o autor conclui que poder é essencialmente um ato de decisão objetivante.

Tem-se, por conseguinte, que, a despeito da multiplicidade de formas de

manifestação e de titulares, o poder revela-se na decisão tomada por um

órgão ou um indivíduo para que uma entre muitas proposições normativas

adquira validade objetiva perante terceiros e passe a ser uma conduta juridi-

camente exigível cuja inobservância enseja a atuação de um aparato especí-

fico para exigir o seu cumprimento.67

Ocorre que, ao identificar o poder com o momento da nomogênese ju-

rídica, Miguel REALE acaba por aproximar a noção de poder com o ato de po-

sitivação de uma norma jurídica pela autoridade competente em consonância

com um sistema escalonado de normas em que a norma inferior retira seu

fundamento de validade da norma imediatamente superior dentro de uma

ordem jurídica positiva embasada na norma fundamental. Ademais, cumpre

salientar que a idéia de poder como uma decisão para outrem remete ao

conceito de heteronomia em oposição ao de autonomia.

A capacidade de produzir obediência em um Estado democrático de

Direito apenas é possível mediante o processo de elaboração normativa, em

consonância com o princípio da legalidade, segundo o qual, ninguém será

obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Apenas as normas jurídicas, portanto, são dotadas de validade objetiva.

65

Neste sentido, cumpre observar algumas considerações tecidas por Miguel REALE: “Não se pode dizer que em qualquer processo legislativo haja sempre uma carga de irracionalidade, de pretensões e pressões oriun-das de inqualificáveis interesses, sendo mais plausível admitir a hipótese freqüente de leis originadas de legítimos interesses, graças a uma tramitação parlamentar objetiva e isenta, na qual, além de serem cumpri-dos os requisitos formais, tenham sido consultados e atendidos os reais interesses da coletividade. (...) Não ignoro, todavia, que esta hipótese nem sempre prevalece na vida parlamentar, onde predomina cada vez mais contraste de interesses, alguns ideológicos e outros de clientela, quando não são fruto de reprováveis ambi-ções pessoais ou meras vaidades. Não cabe, por certo, à Ciência do Direito como tal o estudo desse assunto, o qual se situa por inteiro no âmbito da Política do Direito (...)” (Fontes e modelos: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, p.50.) 66

Cf. Lei Complementar n.º135, de 04 de junho de 2010. 67

“Como se vê, é pelo Estado que a obrigatoriedade do Direito alcança sua maior garantia, que o Direito vale acima dos contrastes das opiniões. Daí dizemos que o Estado representa o lugar geométrico da positivi-dade do Direito.” (M. REALE. Teoria do direito e do estado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, pp.318-319.)

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 157

A crença na existência de uma lei comum, imutável, não escrita e

transcendente à lei particular que cada povo fornece a si mesmo, consoante

é ilustrado na peça Antígona, de Sófocles, embasou durante muitos séculos a

dicotomia entre direito natural e direito positivo. A noção de um direito na-

tural como paradigma de pensamento delineia-se, principalmente, em torno

da idéia de imutabilidade, de universalidade e de acessibilidade por meio da

razão, da intuição ou da revelação. Neste sentido, o direito natural é tomado

como um dado e não como algo posto por uma convenção. O direito positi-

vo, por sua vez, caracteriza-se por apresentar particularidades em virtude

das condições de espaço e de tempo de cada civilização que o estabelece.

Com o surgimento do Estado moderno e o deslocamento do cerne de preo-

cupação da natureza para o homem, marca distintiva da modernidade, houve

uma progressiva erosão na crença generalizada em um direito natural. As-

sim, os processos de secularização, sistematização, positivação e historici-

zação do direito podem ser citados como integrantes desta modificação de

paradigma.68

A laicização do direito, bem como a sua sistematização, confluiu para a

crescente positivação. Com a secularização, buscou-se fornecer um emba-

samento para o direito independentemente da teologia. A obra de codifica-

ção do direito vigente igualmente forneceu o cenário propício para o desen-

volvimento do positivismo jurídico. A idéia de sistematização do direito vi-

gente, o qual foi positivado em códigos e constituições, ensejou a busca pelo

fundamento do direito na vontade do legislador e não mais nos ditames da

razão. Por fim, a percepção do direito dentro de sua historicidade entra em

choque com as aspirações universais e imutáveis de um direito natural.69

Neste diapasão, conforme salienta Celso LAFER, o Estado moderno deita

as suas raízes na identificação entre direito e poder, a qual, segundo este

autor, deriva da positivação. A identificação entre direito e poder também

estaria na base da afirmação hobbesiana de que não é a sabedoria, mas sim

a autoridade que faz a lei. Para Hobbes, a lei consistiria no comando daquele

ou daqueles que detêm o poder soberano. Assim, segundo Celso LAFER, com

a convergência entre direito e poder, o direito se torna um instrumento de

gestão governamental, produto da vontade estatal soberana. Isto revela a

ontologização do direito positivo, o qual desempenha a função de comandar

68

Cf. C. LAFER. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das letras, 1988, pp. 35-41. 69

Cf. C. LAFER. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das letras, 1988, pp. 35-41.

158 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

as condutas humanas e não de qualificá-las em boas ou más, como fazia o

direito natural.70

Nesta esteira, Miguel REALE reconhece o mérito de Gustav RADBRUCH ter

identificado a imprescindível ligação entre a positividade do direito e o fe-

nômeno do poder, muito embora não concorde plenamente com a justificati-

va oferecida por este autor, segundo o qual, diante da impossibilidade de

determinar o que seria um direito justo, o fundamento e a legitimidade da

validade do direito posto seria o estabelecimento por uma autoridade que

tenha poder de impor a observância do que foi estabelecido.71

A codificação, como um processo de simplificação e racionalização

formal do direito, atendia à necessidade de fornecer segurança jurídica para

a economia capitalista e de fornecer um instrumento eficaz de intervenção

na vida social para o Estado. Assim, em virtude da busca pela segurança ofe-

recida pelo princípio da legalidade, a lei positiva alcançou preponderância na

experiência jurídica.72

Todavia, a percepção de que as normas jurídicas sofrem alteração ao

longo do tempo, com a revogação e a elaboração das leis, implica a necessi-

dade de reconhecer o direito como uma totalidade organizada que não perde

sua identidade a despeito da mudança de seus elementos. Neste sentido,

conforme expõe Celso LAFER, a correlação entre direito, Estado e organização

social, fez com que Santi-Romano identificasse o direito como um ordena-

mento, ou seja, uma entidade unitária formada pelo complexo de normas do

direito positivo, a qual mantém sua unidade ainda que as normas jurídicas

sofram alteração no tempo. Posteriormente a Santi-Romano, a teoria da or-

dem jurídica tem como cerne de estudos a estrutura do ordenamento e não o

seu conteúdo. No mundo contemporâneo, o direito positivo encontra-se em

constante alteração, de forma que, para identificá-lo, é preciso atentar para

a sua forma e não para o seu conteúdo.73

Neste contexto, insere-se a resposta teórica oferecida por Hans KELSEN.

Dentro da teoria pura do direito, a teoria jurídica dinâmica sustenta que uma

norma é válida, independentemente de seu conteúdo, em razão de ter sido

formalmente criada em consonância com as normas do ordenamento jurídi-

co.

Diante disto, para Celso LAFER, Hans KELSEN representa o grande exem-

plo do positivismo jurídico formalista. Segundo a teoria kelseniana, o direito

não consiste em um dado a ser acessível por meio da razão, da intuição ou

da revelação, mas sim em algo criado. Ademais, a ordem jurídica enquanto

70

Cf. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das letras, 1988, pp. 35-41. 71

Cf. Filosofia do Direito.20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp.558-559. 72

Cf. C. LAFER. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das letras, 1988, pp. 35-41. 73

Cf. C. LAFER. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das letras, 1988, pp. 51-55.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 159

dinâmica ocupa-se, para Hans KELSEN, com a função de regular a própria ela-

boração das normas jurídicas. Por este motivo, Celso LAFER afirma que em

Hans KELSEN o direito se autoproduz, e o estudo efetuado acerca da estrutura

interna da ordem jurídica poderia ser visto em consonância com o processo

de racionalização formal do direito de Max Weber.74

Ao buscar responder a pergunta acerca do fundamento de validade da

ordem jurídica normativa, Hans KELSEN entende que o caráter vinculativo de

uma norma apenas pode advir da validade de outra norma, visto que o dever

ser somente pode seguir de outro dever ser e não de algo da ordem do ser.75

Hans KELSEN expõe que a norma que fundamenta a validade de outra

norma é designada como norma superior. Em um primeiro momento, pode-

ria parecer que o fato de uma autoridade estabelecer a norma constitui o

fundamento de validade desta. Assim, por exemplo, a validade dos Dez

Mandamentos estaria fundamentada no fato de terem sido postos por Deus.

Todavia, este autor alerta que o fundamento de validade não consiste no fato

de Deus ter posto uma determinada norma em um lugar e um tempo especí-

ficos, mas sim na norma pressuposta de que se deve obedecer aos manda-

mentos de Deus.76

Ademais, a teoria kelseniana ressalta que somente uma autoridade

competente pode estabelecer normas válidas. Para tanto, é preciso que a

competência legiferante esteja fundamentada em uma norma que confira

poder para estabelecer normas, a qual vincula tanto a própria autoridade

competente quanto os indivíduos submetidos a ela. Como a indagação do

fundamento de validade de uma norma não pode seguir indefinidamente,

impõe-se a necessidade de pressupor uma última norma mais elevada. Esta

norma deve ser pressuposta, uma vez que não pode ser posta por uma auto-

ridade, visto que isto exigiria que a competência desta autoridade fosse fun-

damentada por uma norma ainda mais elevada. Neste sentido, a norma pres-

suposta como a mais elevada é designada como norma fundamental.77

Constata-se, por conseguinte, que, ao afastar a idéia de que uma au-

toridade possa por sua própria força estabelecer uma norma superior que

fundamente a validade das demais normas inferiores, Hans KELSEN abstraiu

do direito a noção de um poder como substância, ou seja, como capacidade

74

Cf. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das letras, 1988, pp. 51-55. 75

Cf. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 215-217. 76

Cf. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 215-217. 77

Cf. Teoria pura do direito, 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.217.

160 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

de produzir obediência.78 Para este autor, apenas uma norma jurídica pode

fundamentar a validade de outra norma jurídica e estabelecer uma conduta

como juridicamente exigível perante terceiros.79

Em face deste entendimento, Miguel REALE afirma que Hans KELSEN, em

consonância com a busca por uma ciência jurídica pura, nega a interferência

do poder na modificação das normas de uma ordem jurídica positivista.80

Todavia, como, para Hans KELSEN, Estado e direito identificam-se e o único

direito existente é o direito positivo, Miguel REALE afirma que o autor austría-

co forçosamente deve reduzir a idéia de poder à de norma jurídica. Desta

forma, Miguel REALE entende que, para Hans KELSEN, o poder não consiste em

algo antecedente que garante a criação e a atualização do direito, mas sim

na própria coação como conteúdo da norma válida. Em outras palavras, na

teoria kelseniana não há um poder por trás do direito, visto que a idéia de

um poder de Estado seria, na verdade, o poder do próprio direito positi-

vo.8182

Ocorre, todavia, que, sem a interferência do poder no direito, elimi-

nando o elemento subjetivo da vontade humana, Miguel REALE considera que

não seria possível uma compreensão dinâmica da ordem jurídica. Assim,

78

“Tradicionalmente, o poder não é incorporado pela dogmática jurídica como um elemento básico. Em geral, ele não é desprezado, mas encarado como um fato extrajurídico, o que ocorre não só no direito priva-do, mas também no direito público, em que a noção é esvaziada por limitadas concepções expostas nas teori-as gerais do Estado. (...) assim, poder seria, inicialmente, alguma coisa, poder é coisa, uma substância, no homem, na natureza. Algo que o homem detém, ganha, perde, limita, aumenta. Poder nessa acepção tem a ver com império, capacidade de produzir obediência, atributo essencial da autoridade política, judiciária, legis-lativa, administrativa, policial.” (T.S. FERRAZ JUNIOR, Estudos de filosofia do direito – reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito, 2ª ed., São Paulo, Atlas, 2003, p.19.) 79

“Se se toma apenas em consideração a ordem jurídica estadual – e não também o direito internacional -, e se se pergunta pelo fundamento de validade de uma Constituição estadual que foi historicamente a primeira (...), então a resposta – se renunciamos a reconduzir a validade da Constituição estadual e a validade das normas criadas em conformidade com ela a uma norma posta por uma autoridade metajurídica, como Deus ou a natureza – apenas pode ser que a validade desta Constituição, a aceitação de que ela constitui uma norma vinculante, tem de ser pressuposta para que seja possível interpretar os atos postos em conformidade com ela como criação ou aplicação das normas jurídicas gerais válidas (...) a proposição fundamental da ordem jurídica estadual em questão diz: (...) Em forma abreviada: devemos conduzir-nos como a Constituição estadual prescreve.” (H. KELSEN. Teoria pura do direito, 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp.223-224.) 80

“Seduzido pelo ideal de uma „ciência jurídica pura‟, na qual o direito deveria aparecer como uma expres-são de pura normatividade, (...) Hans Kelsen e os seus discípulos repudiam a doutrina clássica segundo a qual não se realiza o direito sem a participação do poder.” (M. REALE. Teoria do direito e do estado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p.80.) 81

Cf. M. REALE. Teoria do direito e do estado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, pp.80-81. 82

Norberto Bobbio procura compreender melhor esta idéia à luz da distinção entre poder de fato e poder legítimo. Assim, ao comparar Weber e Kelsen, o referido autor entende que: “No fim, ambos chegam à mesma conclusão, vale dizer, à conclusão de que existe um poder legítimo distinto de um poder de fato, já que discu-tem o problema tradicional de toda teoria privatística do Estado, que deve encontrar de alguma maneira um critério de distinção entre a ordem coativa do Estado e a ordem igualmente coativa de um bando de malfeito-res, ou da máfia, ou da sociedade secreta revolucionária. Mas seguem dois percursos opostos: o primeiro [Weber] mobiliza a investigação daquilo que torna legítimo o poder (e é o direito), o outro [Kelsen], daquilo que trona efetivo o direito (e é o poder).” (N. BOBBIO. Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p.240.) Por fim, ressalta-se que, em consonância com a teoria da graduação da positividade, Miguel Reale entende o Estado como o lugar geométrico da positividade jurídica. Cf. M. REALE. Teoria do direito e do estado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, pp.314-319.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 161

para este autor, sem o poder, o direito ficaria reduzido a uma simples mecâ-

nica de normas. O direito positivo apenas se aperfeiçoa, portanto, pela inter-

venção do poder.83

Em suma, ainda que Hans KELSEN pretenda afastar a interferência do

poder no direito com o escopo de atingir uma teoria jurídica pura, Miguel

REALE conclui pela imprescindibilidade do poder no momento decisivo de

escolha da positivação do direito.84

Muito embora Hans KELSEN pretenda excluir do direito o fenômeno do

poder, tendo em vista o escopo de atingir uma pretensa pureza na teoria

jurídica, Miguel REALE reconhece a imprescindibilidade da participação do

poder na nomogênese jurídica, de tal sorte que a correlação entre direito e

poder torna-se essencial também de um ponto de vista ôntico.

Todavia, a necessária interferência do poder no processo de elaboração

da norma jurídica não pode ser confundida com imposição arbitrária pela

força da vontade de quem detém o poder em detrimento da coletividade, por

exemplo. Nesta esteira, Miguel REALE conclui que o poder, no Estado de Di-

reito, é

um fato (um ato decisório qualificado, em virtude e em razão da compe-tência do órgão legítimo que decide) inserido ou enucleado num com-plexo fático-axiológico, fato este que acaba subsumindo-se à norma, a que dá lugar e explica o „sentido de validade e eficácia‟ com que a nor-ma surge. 85

Observa-se que, apesar de reconhecer a imprescindibilidade da parti-

cipação do poder na gênese dos modelos jurídicos e acentuar os elementos

fáticos, axiológicos e normativos atuantes, Miguel REALE se limita a relacionar

o poder com a decisão de uma autoridade competente para elaborar leis em

consonância com os requisitos formais, sem, portanto, esclarecer o conceito

de poder. Neste ponto, a participação do poder na gênese das normas jurídi-

cas aproximar-se-ia do ato de positivação realizado pela autoridade compe-

tente.

Diante disto, conclui-se que tanto no positivismo jurídico, quanto em

Miguel REALE, impõe-se a necessidade da interferência do poder no direito. A

norma jurídica positiva apresenta validade e eficácia heterônoma e impessoal

em razão de englobar em si mesma o poder. Todavia, além de reconhecer a

83

“O poder é uma condição de atualização plena do direito porque é uma condição essencial à integralização jurídica da sociedade, sendo, por conseguinte, uma exigência do direito que não pode se erguer contra o direito.” (M. REALE. Teoria do direito e do estado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p.120.) 84

Cf. Teoria do direito e do estado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p.107. 85

Cf. Fontes e modelos: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, p.55

162 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

identificação entre poder e direito, de modo que a norma jurídica vale por si

mesma, independentemente de seu conteúdo, pelo fato de ter sido posta por

uma autoridade competente segundo as regras formais da ordem jurídica, tal

como já fizera o positivismo jurídico, Miguel REALE identifica o poder que está

fora do direito e, em suas contradições, às vezes irracionais ou a-racionais,

interfere na escolha da proposição normativa que irá adquirir validade obje-

tiva perante terceiros.86

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86

“Um dos aspectos mais notáveis da nomogênese jurídica é exatamente esse superamento das contradições às vezes irracionais ou a-racionais que precederam a elaboração do modelo jurídico, com o advento deste como um ente racional, que deve ser objeto de interpretações e aplicação à luz de exigências da razão, sem as paixões que porventura hajam tisnado a sua formação.” (Cf. M. REALE. Fontes e modelos: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, p.57.)

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164 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 165

Roberto Biava Júnior Fiscal de Rendas e Consultor Tributário da Secretaria da Fazenda de São Paulo, Mestrando

em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo-USP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET e pela USP

O presente trabalho aborda uma temática que perpassa a correlação

entre poder e direito, por tratar do papel do poder social e da coação jurídica

na Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale.

Dessa forma, inicialmente abordamos (tópico segundo) o papel do po-

der na democracia na visão de Miguel Reale, para entendermos como se dá

este constante ajustamento entre a lei e as aspirações da coletividade (que

representa este poder social), dando concretização jurídica aos valores que

se vão objetivando em cada momento da história da cultura. Para entender-

mos este processo, temos que partir da correlação Direito-Poder na obra de

Reale, partindo inicialmente da análise do elemento essencial ao jurista, a

noção de norma jurídica e como se dá seu nascimento (nomogênese jurídica)

em face dos valores e dos fatos, através da participação de um quarto ele-

mento catalisador, ou seja, o poder. Em seguida passamos brevemente por

assuntos correlatos: a indagação sobre a existência de vários ordenamentos

jurídicos e a integração entre os mesmos, sua gradação de positividade (on-

de no topo está o Estado em virtude da soberania), a teoria dos modelos

jurídicos, o processo de institucionalização progressiva do poder.

Em seguida (tópico terceiro) passamos a abordar a Teoria Tridimensio-

nal do Direito de Miguel Reale em sua tridimensionalidade concreta (diferen-

te da tridimensionalidade abstrata) de fato, valor e norma em uma correlação

de natureza funcional e dialética, dada a "implicação-polaridade" existente

entre fato e valor, de cuja tensão resulta o momento normativo. Também

registramos a influência de Miguel Reale em todos os campos da dogmática

jurídica (do direito privado ao direito público).

166 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

Logo depois (tópico quarto) para entendermos o papel do poder social

e da coação jurídica, voltamos a uma indagação fundamental, que é a dife-

renciação entre o Direito e a Moral na obra de Miguel Reale, que passa pela

observação da existência de regras sociais de cumprimento espontâneo e

outras de cumprimento obrigatório. Passa-se em seguida para a diferencia-

ção entre coercitividade (na teoria da coação) e coercibilidade (potencial),

chegando-se ao conceito de coação jurídica (onde são apontados dois senti-

dos jurídicos) e da teoria da bilateralidade atributiva em Reale. Partindo-se

do conceito de coação jurídica, discute-se o papel da força no direito e da

chamada “violência razoável” em Tércio, para em seguida tratarmos do con-

ceito de sanção em Miguel Reale (repressivas ou premiais), numa passagem

gradual na solução dos conflitos, do plano da força bruta para o plano da

força jurídica, ressaltando-se a visão realeana da compatibilidade lógica en-

tre direito e força.

Antônio Bráz Teixeira1 analisa a idéia de democracia no pensamento de

Miguel Reale, e assinala, que mesmo em sua primeira fase (integralista na

década de 30), já havia preocupação com a democracia, que “seria o regime

em que se realizasse „uma permanente e cada vez mais perfeita correspon-

dência entre o sistema dos processos sociais e o sistema das normas jurídi-

cas‟, pelo que seria sua condição essencial o contacto permanente entre go-

vernantes e governados, o que só seria conseguido com a existência de ór-

gãos e meios capazes de assegurar a manifestação concreta e efectiva dos

núcleos sociais nos sectores das respectivas actividades, o que significaria

que o problema da democracia, em última instância, se reconduzia ao da

representação política, ou seja, ao da „constituição e funcionamento dos ór-

gãos destinados a captar, interpretar, desenvolver e propulsionar as aspira-

ções populares até transformá-las em leis do Estado‟”. Depois, nos lembra a

publicação do livro Teoria do Direito e do Estado que, com Fundamentos do

Direito, marca o início de uma nova fase de Miguel Reale, onde sustenta que

“a democracia só se realiza desde que haja correspondência entre o direito

positivo e, a vida e ao mesmo tempo, haja a possibilidade de este processo

de constante ajustamento entre a lei e as aspirações da colectividade não se

ver suspenso, interrompido ou impedido, permanecendo sempre a possibili-

1 BRÁZ TEIXEIRA, Antônio. ―A idéia de Democracia no pensamento de Miguel Reale‖ – Artigo elaborado

em Março de 2.010 para a palestra proferida em 5 de Abril de 2.010 para o Seminário Internacional em Ho-menagem ao Centenário de Miguel Reale - USP, 2010, p. 8.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 167

dade de ir dando concretização jurídica aos valores que se vão objectivando

em cada momento da história da cultura”.2

Bráz Teixeira assevera ainda que a partir da publicação de Pluralismo e

Liberdade, que marca o início do terceiro momento na evolução do seu pen-

samento político, que a teoria democrática de Miguel Reale encontra a sua

formulação mais amadurecida e acabada, entendendo:

“que a democracia deverá ser concebida como um processo histórico aberto para o futuro, que se confunde com o „processo de actualização dos valores da convivência‟, por via do progressivo enriquecimento do homem e do mundo da cultura, enquanto „expressão das forças revela-doras e constituídas do espírito‟”.3

Justamente para compreender este ideal de democracia e sua função

transformadora do mundo jurídico, é que é importante o estudo da correla-

ção Direito-Poder em Miguel Reale, que aparece de forma magnífica no arti-

go “O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação)”, publicado em

edição de Pluralismo e Liberdade (1998), e que é citado mundialmente, por

ter sido também publicado sob o título “Law, Power and their correlations”

no volume “Essays in honor of Roscoe Pound”.

Para se iniciar a discussão da relação direito e poder, temos que inici-

almente analisar as acepções da expressão “poder” na dogmática jurídica.

Como nos adverte Tércio Sampaio Ferraz4, tratando das acepções do

“poder” na dogmática jurídica, que tradicionalmente o poder não é incorpo-

rado pela dogmática jurídica como um elemento básico, mas não é despre-

zado, embora em geral seja encarado como um fato extrajurídico.

De qualquer forma, Tércio Sampaio Ferraz5 nos ensina que o jurista

usa a expressão “poder” de acordo com a necessidade teórica, sem que os

sentidos encontrem um denominador comum, como por exemplo: a) no di-

reito público (poder nos processos de formação do direito, influindo quando

o direito surge e depois se contrapondo ao direito – no sentido de poder do

Estado juridicamente limitado); b) também no sentido de poder como coisa

que o homem detém (acepção de império, capacidade de produzir obediên-

cia, como atributo da autoridade, seja judicial, política, etc.); c) o poder como

faculdade (ligado ao direito subjetivo), como nos exemplos de poder tributá-

2 BRÁZ TEIXEIRA, Antônio. ―A idéia de Democracia no pensamento de Miguel Reale‖ – Artigo elaborado

em Março de 2.010 para a palestra proferida em 5 de Abril de 2.010 para o Seminário Internacional em Ho-menagem ao Centenário de Miguel Reale - USP, 2010, p. 9. 3 BRÁZ TEIXEIRA, Antônio. ―A idéia de Democracia no pensamento de Miguel Reale‖ – Artigo elaborado

em Março de 2.010 para a palestra proferida em 5 de Abril de 2.010 para o Seminário Internacional em Ho-menagem ao Centenário de Miguel Reale - USP, 2010, p. 11. 4 FERRAZ JR., Tércio. ―Poder e Direito‖ in Estudos de Filosofia do Direito: Reflexões sobre o Poder, a

Liberdade, a Justiça e o Direito, p. 5. 5 FERRAZ JR., Tércio. ―Poder e Direito‖ in Estudos de Filosofia do Direito: Reflexões sobre o Poder, a

Liberdade, a Justiça e o Direito, p. 5-6.

168 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

rio (faculdade de exigir tributos), poder jurídico (faculdade de agir e reagir

em face da lei), poder legal ou competência (faculdade de exercer certa fun-

ção); d) o poder como instrumento (que serve para alguma coisa), como por

exemplo, no “poder público” (conjunto de órgãos pelos quais o Estado exer-

ce sua função e mantém sua soberania).

Assim, conclui que “podem-se extrair três associações da idéia de po-

der: (1) poder como algo (substância); (2) poder como faculdade (humana) de

produzir obediência; (3) poder como instrumento de exercício de império e

de soberania.”6

Por sua vez, Miguel Reale7 entende que o estudo das relações entre o

direito e o poder pode ser tomado por diversas perspectivas (história, psico-

logia, ciência política e outras), mas que na perspectiva jurídica interessa a

análise da estrutura e funcionalidade do poder no âmbito dos ordenamentos

jurídicos positivos, ou seja, demandando “o estudo do conceito de soberania

e das relações entre a competência dos órgãos do Estado e os campos reser-

vados à liberdade dos indivíduos e dos grupos que a ele pertencem”.

Miguel Reale8 nos convida a pensar num prévio problema ôntico: o de

saber se o direito é pensável sem o poder e vice-versa? Para Miguel Reale

“pensar o direito com abstração do poder é esvaziá-lo de uma de suas com-

ponentes essenciais, com o resultado de conceber-se algo que não é o direi-

to”. Assim, Reale9 para investigar o caráter essencial da correlação direito-

poder sugere que se parta da análise do elemento essencial ao jurista: a no-

ção de norma jurídica em sua expressão mais simples, como enunciado de

comando (que aponta para um sentido de ação ou comportamento), tutelan-

do o caminho escolhido (cominando uma pena/sanção ao transgressor ou

conferindo vantagem a quem respeita a norma: a chamada “validade objetiva

da norma”). Neste sentido, a norma jurídica é uma proposição lógica que

envolve uma opção e decisão dentre múltiplos caminhos possíveis, o que nos

revela o que há de essencial na correlação direito-poder.

Reale demonstra o processo de “nomogênese jurídica” (processo de

formação de uma norma legal), onde todos legisladores estão condicionados

por um complexo de circunstâncias de fato (F), que é o conjunto de interes-

ses, situações jurídicas, fatores naturais e tudo que se tornou momento ob-

jetivado da experiência histórica. Por sua vez, cada legislador, cada partido

político ou cada grupo enunciam diversos juízos de valor e as tomadas de

6 FERRAZ JR., Tércio. ―Poder e Direito‖ in Estudos de Filosofia do Direito: Reflexões sobre o Poder, a

Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Atlas, 2009, p. 6. 7 REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na

Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 219-220. 8 REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na

Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 220-222. 9 REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na

Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 221-222.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 169

posição axiológica dependem de um complexo de valores (V), de modo que

cada uma dessas posições corresponde a uma proposição normativa (P) 10.

Para Miguel Reale11, chega-se a um momento no processo legislativo

onde se opta por um caminho com sacrifício dos outros mil possíveis. Dessa

forma, o Congresso vota e o governo sanciona o projeto vencedor, sendo

que uma das proposições normativas (P) se converte em norma legal (N). E é

justamente nesta escolha (dotada de validade objetiva e de força constitutiva

de direito novo) é que se revela a co-participação do poder (P), “o qual é um

fato que determina uma solução normativa em função de um complexo de

outros fatos, mas já é, por sua vez, condicionado pela tensão axiológica do

processo normogenético como tal”. E assim, “(...) chega o momento do fiat

lex, átimo culminante de uma decisão (...) é este o momento por excelência

do poder”12.

Assim, considerando o direito em elaboração numa representação grá-

fica: há diversas pressões axiológicas (V) incidindo sobre um prisma (fatos

sociais, econômicos, técnicos, etc.), situação fática (F), refratando-se em

diversas proposições normativas (P), onde apenas uma se converterá em

norma jurídica (N) pela interferência do poder (P):

Fonte: REALE, Miguel. “Pluralismo e liberdade”, Rio de Janeiro: Expressão e

Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua corre-

lação), p. 226, onde: F: fato; V: valor; P: poder; N: norma-jurídica.

10

REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 223-224. 11

REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 224-225. 12

REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 224-225.

170 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

Quanto à relação entre o poder e a objetividade da decisão, nos lembra

Miguel Reale13, que cada norma corresponde a um momento de integração

de fatos segundo determinados valores e representa uma solução temporária

de uma tensão dialética entre fatos e valores, estatuída e objetivada pela

interferência decisória do poder. E que, apesar do exemplo acima da figura,

ser de decisão do poder estatal (processo legislativo), poderia valer também

ao “poder social difuso” em uma comunidade (como é o caso do direito cos-

tumeiro).

Miguel Reale14 no que diz respeito à questão da implicação de direito e

de poder (quem origina quem? o poder origina o direito ou vice-versa?) en-

tende que, do ponto de vista lógico, não se pode falar em anterioridade do

direito ou do poder, já que os dois fatores se implicam numa relação de po-

laridade (“há polaridade entre dois fatores quando o conceito de um é essen-

cial à plena determinação conceitual do outro, sem que um possa, no entan-

to, ser reduzido ao outro, mantendo-se pois, sempre distintos e comple-

mentares”15).

De outro lado, Reale nos mostra que a relação entre direito e poder é

vista pelo pensamento jurídico contemporâneo da estatalidade (todo direito

nasce do Estado ou é por ele reconhecido) ou da socialidade (chamado tam-

bém de pluralismo, que reconhece diversos ordenamentos jurídicos), fir-

mando a posição de que existem diversos ordenamentos jurídicos, mas que

existe “entre eles uma gradação de positividade, cujo ápice é representado

pelo ordenamento do Estado”.16

Neste sentido, Celso Lafer17 tratando da “teoria dos modelos jurídicos”,

nos lembra que em “O Direito como Experiência”18 (e depois em “Fontes e

Modelos do Direito”) Miguel Reale propõe a substituição da teoria das fontes

pela dos modelos jurídicos, em virtude de sua concepção tridimensional do

Direito (como produto inseparável do fato, do valor e da norma) e da crítica

às teorias clássicas das fontes formais e materiais, por uma ótica retrospec-

tiva19 e não prospectiva do Direito. Para Reale os modelos jurídicos20 se es-

truturam da integração de fatos e valores através de normas postas por atos

13

REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 226-227. 14

REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 229-231. 15

REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 230. 16

REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 230. 17

LAFER, Celso. Direito e poder: apontamentos sobre o tema na reflexão de Miguel Reale. In: Anacleto de Oliveira Faria. (Org.). Textos clássicos de filosofia do direito; em homenagem ao Prof. Miguel Reale. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 164-166. 18

REALE, Miguel. O Direito como experiência, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1992. p. 147-226. 19

REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico, São Paulo: Saraiva, 1999. P. 23-24. 20

REALE, Miguel. O Direito como experiência, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1992. p. 192-209.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 171

de escolha dentre diversos caminhos possíveis (o ato de escolha é um mo-

mento de poder na experiência jurídica). Assim, os modelos jurídicos teriam

distintos índices de obrigatoriedade e sua positividade está correlacionada

com uma gradação21 de poder, onde a soberania é o poder de declarar, em

última instância, a positividade do Direito. Assim, “a norma posta pela inter-

ferência decisória do poder converte-se numa intencionalidade objetivada,

pois, para Miguel Reale, „a norma jurídica é sempre uma medida racional ou

teleológica de conduta ou de organização‟”.22

Miguel Reale23, analisando a correlação direito-poder de um ponto de

vista dinâmico, critica as teorias que pretendem eliminar o poder do direito,

tendo em vista a juridicidade progressiva do poder, e o fato de o direito

nunca ter um processo de elaboração espontâneo (não há surgimento auto-

mático das normas jurídicas pela pressão das “representações jurídicas”) sem

a participação de uma autoridade estatal. Tal posicionamento de que o direi-

to é sempre obra do poder, também pode ser encontrado em Maurice Hauri-

ou24, Gény e Pascal.

Reale defende o pluralismo (existência de multiplicidade de ordena-

mentos jurídicos internos em cada país), mas reconhece uma gradação de

positividade, onde para se atingir o bem comum, se impõe o sistema de di-

reito estatal sobre os demais. Assim, seu conceito de “soberania, não é (...),

porém, um poder absoluto, mas o poder de declarar; em última instância a

positividade do direito, superando os possíveis conflitos; existentes entre os

círculos sociais internos, que não podem deixar de se subordinar à ordem

jurídica estatal que, se de um lado os condiciona e limita, de outro lado lhes

assegura paz e coexistência”. 25

Para Reale há um processo de institucionalização progressiva do poder,

que pode ser demonstrado historicamente, por ex., pela institucionalização

das contendas individuais (aparelhamento judiciário e garantias legais, solu-

ção de conflitos pelo judiciário). Assim, “o que caracteriza o progresso jurí-

dico não é o desaparecimento (...) das lutas entre indivíduos (...), mas a

21

REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000. p. 303-338. 22

LAFER, Celso. Direito e poder: apontamentos sobre o tema na reflexão de Miguel Reale. In: Anacleto de Oliveira Faria. (Org.). Textos clássicos de filosofia do direito; em homenagem ao Prof. Miguel Reale. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 166. 23

REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 232-233. 24

―A regra de direito ‗não emana dos fatos sociais do mesmo modo que as leis físicas emanam dos fenômenos físicos; ela é sempre obra de um poder que, até certo ponto, a impõe às forças sociais; ela tem necessidade de ser mantida por este poder para vencer as resistências que encontra; convém desconfiar de todos os sistemas que afirmam o império do direito (...) o direito não reina por si mesmo (...) atrás da regra de direito é preciso encontrar o poder que a sanciona". Maurice Hauriou, Precis de Droit Constitutionnel, Bordeus, 1ª Ed., pags. 8 e 9. apud in REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Di-reito e poder e sua correlação), p. 233. 25

REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 233.

172 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

transladação cada vez maior da solução dos conflitos do plano da força bruta

para o plano da força ética”.26

Assim, a institucionalização do poder27 ocorre por processos de duas

ordens, que se polarizam e de quando e quando se harmonizam em equilí-

brio instável: de um lado as aspirações por mudanças e inovações (dos revo-

lucionários), e de outro, a manutenção do status quo e a conformidade para

o que já existe (dos conservadores), sendo que estas duas forças não se eli-

dem, e sim, resultam na linha do progresso civil.

Do mesmo modo, aponta Reale28 para o fenômeno da integração dos

ordenamentos jurídicos, onde se verifica a expansão das áreas de interesses

de classes e grupos, que se convertem em interesses da coletividade e do

Estado. Esta é a função objetivante do poder (conversão de um direito local

em direito estatal). Este processo se dá pela constituição de ideais ou aspira-

ções (“representações jurídicas”) nas situações histórico-sociais, sendo a

“representação jurídica” dotada de força de expansão, e que por isto tende a

tornar-se norma jurídica positiva.

Também aponta Miguel Reale29 que os processos de institucionalização

do poder são acompanhados da despersonalização30 e transpersonalização

do poder, uma vez que quando se passa da “nua força” para formas discipli-

nadas do exercício da autoridade, o poder decorre dos imperativos legais e

deixa de ser mera ordem subjetiva dos chefes.

Miguel Reale31 entende o conceito de Estado e de Direito como ele-

mentos co-implicados numa relação de polaridade que os mantém distintos

e complementares. Assim, defende a idéia de Estado pluralista democrático

(o ordenamento jurídico resultaria de um complexo de relação entre partes e

o todo, e vice-versa, num sistema que atende ao que há de específico e pró-

prio nos indivíduos e associações, assim como os valores da exigência do

todo), como o mais desejável, quando posto em comparação ao Estado tota-

litário (ordenamento jurídico que exprime uma totalidade de querer corres-

pondente a um objetivo único, seja a conquista de interesses de uma classe,

de uma raça ou de um ideário nacional).

Como ensina Miguel Reale:

26

REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 234. 27

REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 236-237. 28

REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 238-239. 29

REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 241-242. 30

REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico, São Paulo: Saraiva, 1999. p. 53-54. 31

REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 242-246.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 173

“daí a necessidade de compreender-se o Estado pluralista como aquele que reconhece o sentido objetivo e em si válido do processo histórico como tal, e, ao mesmo tempo, preserva a posição autônoma e crítica dos indivíduos em relação ao todo: é a irrenunciabilidade à liberdade origi-nária e ao conseqüente poder de crítica dos indivíduos que assegura continuidade e autenticidade ao direito que se objetiva mediante o poder estatal”.32

Bagolini33 (Universidade de Bolonha) assinala que a primeira caracterís-

tica do pensamento de Miguel Reale é a natureza sistemática da sua concep-

ção: um grande edifício harmonioso provido por diferentes requisitos teóri-

cos e práticos que são construídos de modo que cada parte não pode ser

claramente compreendida independente das outras partes e do todo.

De acordo com Bagolini34, para Reale o direito não seria apenas norma,

ou apenas fato social, sendo que o monismo e reducionismo normativista

(ou sociológico) são superados por Reale em uma tridimensionalidade de

valor, norma e fato (tridimensionalidade concreta que se contrapõe à tridi-

mensionalidade abstrata, onde valor, norma e fato são considerados de for-

ma isolada e transformados em objeto de três ciências distintas: dogmática

jurídica – norma, sociologia jurídica – fato, política do direito - valor).

Miguel Reale35 entende que os tridimensionalistas, em geral, têm-se

limitado a afirmar o caráter fático-axiológico-normativo do direito, sem ex-

plorar todas as suas conseqüências para a ciência do direito. Assim, para

Reale “a teoria tridimensional (...) representa a tomada de consciência de

todas as implicações que aquela verificação estabelece para qualquer gênero

de pesquisa sobre o direito e suas conseqüentes correlações nos distintos

planos da Jurisprudência, da Sociologia Jurídica ou da Filosofia do Direito”.36

32

REALE, Miguel. ―Pluralismo e liberdade‖, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, cap. XIII: O poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 245. 33

BAGOLINI, Luigi. ―Pensieri, Rileggendo Miguel Reale‖ in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 55. 34

“Il diritto non è soltanto norma nè soltanto fatto sociale. Il monismo ed il riduttivismo normativistico o sociologico vogliono essere da Reale superati in una tridimensionalità di valore, norma e fatto. Ma questa tridimensionalità non è un 'già dato' ma è continuo „da farsi‟; è una tridimensionalità concreta e Reale si contrappone ai sostenitori della tridimensionalità astratta. (...) Secondo i sostenitore di quella che Reale chiama per l'appunto "tridimensionalità astratta", valore, norma e fatto sono considerati isolatamente e trasformati in oggetti dì tre scienze distinte. Per costoro "la norma costituirebbe l'oggetto della giurisprudenza dommatica o, secondo la terminologia anglosassone, della giu-risprudenza analitica; il fatto sarebbe studiato dalla sociologia o psicologia giuridica ecc.; e infine il valore del diritto costituirebbe l'oggetto della teoria della giustizia o assiologia o politica del diritto”. BAGOLINI, Luigi. ―Pensieri, Rileggendo Miguel Reale‖ in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 57. 35

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 53-55. 36

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 54.

174 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

Dessa forma, para Reale, dada a natureza essencialmente triádica do

direito, não se pode isolar absolutamente um dos fatores para torná-lo obje-

to de pesquisa, e dessa forma surgem importantes questionamentos:

“a) Se há três fatores correlacionados no direito, o que é que garante a unidade do processo de elaboração jurídica, e em que essa unidade con-siste? b) Se no direito há três fatores, como é que eles se correlacionam, ou, por outras palavras, como atuam uns sobre os outros? Pode-se falar em fator dominante que subordine os demais ao ângulo de sua perspectiva? c) Se todo estudo do direito é tridimensional, como se distinguirão en-tre si, respectivamente, as investigações filosófica, sociológica e dogmá-tica que tenham por objeto a experiência jurídica?”37

Reale critica os cientistas do direito que caem na tentação de apresen-

tar a experiência jurídica sob forma unitária e englobante, como se fosse

uma única ciência. Entende Reale, “ao contrário, que o saber jurídico não se

apresenta, em seu todo, como uma espécie de scientia omnibus, na qual

todas as investigações se justaponham, mas que ele se desdobra em planos

lógicos que não podem e não devem ser confundidos, o plano transcenden-

tal e o empírico-positivo”.38

Celso Lafer39, por sua vez, analisando Norberto Bobbio, nos lembra dos

três campos da Filosofia do Direito: (i) Deontologia (Filosofia Política e Teoria

da Justiça): reflexão sobre a reforma e transformação da sociedade orientada

por valores; (ii) Ontologia (Teoria Geral do Direito): análise e definição de

noções gerais (ex.: validade, eficácia, direito subjetivos, etc.) sobre o que

todos os ordenamentos jurídicos contem (delimitação do campo do Direito);

(iii) Sociologia do Direito: estudo do Direito enquanto fenômeno de controle

social. Daí, concluí-se que “também na perspectiva de Bobbio, existe uma

visão tridimensional da Filosofia do Direito, pois a Deontologia corresponde

ao valor, a Ontologia à norma e a Sociologia Jurídica ao fato”.40

Celso Lafer, assim, aponta sobre o ponto de vista do poder, o risco de

uma tridimensionalidade articulada sem interconexões mais profundas, onde

o poder tende a ser encarado (i) como um dado externo à norma (correntes

positivistas); (ii) como um dado independente da norma (na Sociologia Jurídi-

ca); (iii) ou ainda como um meio para se alcançar a norma desejável (Deonto-

logia). Por isto, “a relevância da passagem de um tridimensionalismo abstra-

37

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 54. 38

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 56. 39

LAFER, Celso. Direito e poder: apontamentos sobre o tema na reflexão de Miguel Reale. In: Anacleto de Oliveira Faria. (Org.). Textos clássicos de filosofia do direito; em homenagem ao Prof. Miguel Reale. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 171-172. 40

LAFER, Celso. Direito e poder: apontamentos sobre o tema na reflexão de Miguel Reale. In: Anacleto de Oliveira Faria. (Org.). Textos clássicos de filosofia do direito; em homenagem ao Prof. Miguel Reale. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 172.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 175

to para um tridimensionalismo concreto, tal como propõe Miguel Reale, que

internaliza o poder na norma”.41

Miguel Reale afirma que sua Teoria Tridimensional do Direito distin-

gue-se das demais de caráter genérico ou específico, por ser concreta e di-

nâmica, isto é, por afirmar que:

“a) Fato, valor e norma estão sempre presentes e correlacionados em qualquer expressão da vida jurídica, seja ela estudada pelo filósofo ou o sociólogo do direito, ou pelo jurista como tal, ao passo que ,na tridi-mensionalidade genérica ou abstrata, caberia ao filósofo apenas o estu-do do valor, ao sociólogo o do fato e ao jurista o da norma (tridimensio-nalidade como requisito essencial ao direito). b) A correlação entre aqueles três elementos é de natureza funcional e dialética, dada a "implicação-polaridade" existente entre fato e valor, de cuja tensão resulta o momento normativo, como solução superadora e integrante nos limites circunstanciais de lugar e de tempo (concreção histórica do processo jurídico, numa dialética de complementaridade)”.42

Miguel Reale, ainda, complementa sua teoria tridimensional, com ou-

tros pontos relevantes, expondo diversas teses43 (assuntos versados por

41

LAFER, Celso. Direito e poder: apontamentos sobre o tema na reflexão de Miguel Reale. In: Anacleto de Oliveira Faria. (Org.). Textos clássicos de filosofia do direito; em homenagem ao Prof. Miguel Reale. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 172. 42

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 57. 43

―c) As diferentes ciências, destinadas à pesquisa do direito, não se distinguem umas das outras por se distri-buírem entre si fato, valor e norma, como se fossem fatias de algo divisível, mas sim pelo sentido dialético das respectivas investigações, pois ora se pode ter em vista prevalecentemente o momento normativo, ora o mo-mento fático, ora o axiológico, mas sempre em função dos outros dois {tridimensionalidade funcional do saber jurídico). d) A Jurisprudência é uma ciência normativa (mais precisamente, compreensivo-normativa) devendo-se, porém, entender por norma jurídica bem mais que uma simples proposição lógica de natureza ideal: é antes uma realidade cultural e não mero instrumento técnico de medida no plano ético da conduta, pois nela e atra-vés dela se compõem conflitos de interesses, e se integram renovadas tensões fático-axiológicas, segundo razões de oportunidade e prudência (normativismo jurídico concreto ou integrante). e) A elaboração de uma determinada e particular norma de direito não é mera expressão do arbítrio do poder, nem resulta objetiva e automaticamente da tensão fático-axiológica operante em dada conjuntura histórico-social: é antes um dos momentos culminantes da experiência jurídica, em cujo processo se insere positivamen-te o poder (quer o poder individualizado em um órgão do Estado, quer o poder anônimo difuso no corpo social, como ocorre na hipótese das normas consuetudinárias), mas sendo sempre o poder condicionado por um complexo de fatos e valores, em função dos quais é feita a opção por uma das soluções regulativas possí-veis, armando-se de garantia específica (institucionalização ou jurisfação do poder na nomogênese jurídica). f) A experiência jurídica deve ser compreendida como um processo de objetivação e discriminação de mode-los de organização e de conduta, sem perda de seu sentido de unidade, que vai desde as "representações jurídi-cas" — que são formas espontâneas e elementares de juridicidade (experiência jurídica pré-categorial) — ate ao grau máximo de expansão e incidência normativas representado pelo direito objetivo estatal, com o qual coexistem múltiplos círculos intermédios de juridicidade, segundo formas diversificadas e autônomas de integração social, com a concomitante e complementar determinação de situações e direitos subjetivos (teoria dos modelos jurídicos e da pluralidade gradativa dos ordenamentos jurídicos).

176 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

Reale desde os primeiros livros de 1940 – Fundamentos do Direito e Teoria

do Direito e do Estado – até seus últimos estudos de Filosofia Jurídica).

Celso Lafer44 analisando o tema das relações entre direito e poder na

obra de Miguel Reale, vê no seu tridimensionalismo específico45 (no campo

do Direito e do Estado) uma postura epistemológica (a ontognosiologia jurí-

dica), que o leva a entender o fenômeno jurídico como objetivamente tridi-

mensional (unidade integrante de três elementos: fato, valor e norma). Disto

deriva conseqüências na apreciação destes elementos: (i) o fato (na concep-

ção de Reale) não é dado externo indiscutível e puramente empírico, pois há

uma correlação funcional sujeito/objeto (o sujeito contribui na constituição

do objeto); (ii) o valor (na concepção de Reale), quanto especificamente ao

ato de conhecimento não seria puramente lógico-formal, mas também esti-

mativo (há potencial axiológico na própria estrutura do conhecimento), sen-

do que Reale realça, quanto aos valores, as suas características de “realizabi-

lidade” na história e a sua inexauribilidade derivada da abertura, a cada mo-

mento histórico (historicismo axiológico); (iii) a norma (na concepção de

Reale) é vista como uma expressão dialética que integra fato e valor, em ca-

g) A norma jurídica, assim como todos os modelos jurídicos, não pode ser interpretada com abstração dos fatos e valores que condicionaram o seu advento, nem dos fatos e valores supervenientes, assim como da totalidade do ordenamento em que ela se insere, o que torna superados os esquemas lógicos tradicionais de compreensão do direito (elasticidade normativa e semântica jurídica). h) A sentença deve ser compreendida como uma experiência axiológica concreta e não apenas como um ato lógico redutível a um silogismo, verificando-se nela, se bem que no sentido da aplicação da norma, um pro-cesso análogo ao da integração normativa acima referida. i) Há uma correlação funcional entre fundamento, eficácia e vigência, cujo significado só é possível numa teoria integral da validade do direito. j) Essa compreensão da problemática jurídica pressupõe a consideração do valor como objeto autônomo, irredutível aos objetos ideais, cujo prisma é dado pela categoria do ser. Sendo os valores fundantes do dever ser, a sua objetividade é impensável sem ser referida ao plano da história, entendida como "experiência espiri-tual", na qual são discerníveis certas ―invariantes axiológicas", expressões de um valor-fonte (a pessoa huma-na) que condiciona todas as formas de convivência juridicamente ordenada (historicismo axiológico). k) Conseqüente reformulação do conceito de experiência jurídica como modalidade de experiência histórico-cultural, na qual o valor atua como um dos fatores constitutivos dessa realidade (função ôntica) e, concomitan-temente, como prisma de compreensão da realidade por ele constituída (função gnoseológica) e como razão determinante da conduta (função deontológica). l) Em virtude da natureza trivalente do valor e da tripla função por ele exercida na experiência histórica, o direito é uma realidade in fieri, refletindo, no seu dinamismo, a historicidade mesma do ser do homem, que é o único ente que, de maneira originária, é enquanto deve ser, sendo o valor da pessoa a condição transcendental de toda a experiência ético-jurídica (personalismo jurídico). m) Necessidade de uma Jurisprudência que, no plano epistemológico, desenvolva-se como experiência cog-noscitiva, na qual sujeito e objeto se co-implicam (criticismo ontognoseológico) e, no plano deontológico, não se perca em setorizações axiológicas, mas atenda sempre a solidariedade que une entre si todos os valores, assim como à sua condicionalidade histórica (Jurisprudência histórico-cultural ou axiológica). n) Tudo isto pressupõe, outrossim, uma orientação metodológica própria, caracterizada pelo superamento da reflexão fenomenológica de moldes husserlianos, por uma reflexão transcendental de tipo crítico-histórico, baseada na correspondência entre a intencionalidade da consciência e o significado das "intencionalidades objetivadas" pela espécie humana no processo da experiência histórico-cultural.‖ REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 60-63. 44

LAFER, Celso. Direito e poder: apontamentos sobre o tema na reflexão de Miguel Reale. In: Anacleto de Oliveira Faria. (Org.). Textos clássicos de filosofia do direito; em homenagem ao Prof. Miguel Reale. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 161-164. 45

REALE, Miguel. Filosofia do Direito, 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002. 539-561.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 177

da situação histórica de maneira mais ou menos duradoura (mas não defini-

tiva), sendo esta integração fruto de uma escolha dentre normas possíveis

(interferência decisória do poder na nomogênese jurídica).

De outro modo, Lourival Vilanova46 analisando a teoria tridimensional

do direito, pela ótica da lógica, entende que a mesma está permeada de kan-

tismo e fenomenologia, ao mesmo tempo em que não deixa de ser uma teo-

ria normativista do direito, uma vez que, os dados fáticos e axiológicos só se

qualificam através das normas. Assim, entende que “de Kant provém o repú-

dio ao empirismo que conduz ao naturalismo”, sendo que já na “Teoria do

Direito e do Estado” (1940) Reale já revela seu culturalismo. Assim, o direito

teria três constituintes: o substrato fático, o valor e a norma. Posteriormente

entende Vilanova que com o livro “Experiência e Cultura” (1977) Reale toma

rumo com a fenomenologia, sem desprender-se totalmente da teoria trans-

cendental da experiência de raiz kantiana.

Já Lino Rodriguez-Arias Bustamante47 (Universidade Los Andes), anali-

sando a Teoria Tridimensional, entende que Miguel Reale concebe um mun-

do ideal (com os princípios de direito natural, onde o homem constrói o

mundo histórico e cultural) e o mundo real (com os fatos, onde se movem

todos os mortais adquirindo experiências). Assim, Reale constrói a Teoria

Tridimensional a partir da estrutura social e da experiência jurídica, com um

sentido histórico, cultural e normativo realizando uma “sindérisis” entre

norma, fato e valor para conjugar adequadamente sua validez formal (ou

vigência), dirigida à sua eficácia jurídica e reposando sobre o valor que pro-

porciona sua transcendência ética. Lembra ainda a menção de Hernandés Gil,

sobre o pensamento e afirmação de Miguel Reale, que capta esta integração

axiológica-fática-normativa: “teorizar a vida e viver a teoria na unidade in-

dissolúvel de pensamento e ação”.

Segundo Antônio Bráz Teixeira48, no pensamento de Reale o direito é

uma realidade tridimensional constituindo uma triunidade, sendo simultane-

amente “facto” (conduta ou agir humano), valor (a que se refere este fato) e

norma (que visa ordenar o primeiro em relação ao segundo, encontrando

estas três dimensões interligadas). Reale também reconhece que a tridimen-

sionalidade não é específica do direito, pois na religião, na moral e nos usos

sociais se pode constatar a dimensão axiológica, o momento normativo e a

manifestação empírica. De qualquer forma, a conduta jurídica se individuali-

46

VILANOVA, Lourival. ―A lógica na teoria jurídica de Reale‖ in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estu-dos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 305-306. 47

BUSTAMANTE, Lino Rodriguez-Arias. ―De la Teoría Tridimensional de Miguel Reale al Derecho Comu-nitário‖ in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 193-195. 48

BRÁZ TEIXEIRA, Antônio. ―Miguel Reale e o Diálogo Filosófico Luso-Brasileiro‖ in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 261-262.

178 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

za em relação às demais por configurar um momento bilateral-atributivo da

experiência social.

Cretella Júnior49 nos chama a atenção sobre a influência de Miguel

Reale em todos os campos do direito: do direito privado (direito civil, comer-

cial, internacional privado) ao direito público (direito constitucional, tributá-

rio e administrativo). Em especial, comenta o entusiasmo de Miguel Reale

em relação ao Direito Administrativo, onde se poder falar que Miguel Reale

estruturou um sistema de direito administrativo, com diversas publicações

esparsas que formam um conjunto ordenado, que trataram dos principais

assuntos deste ramo jurídico (tais como: conceito de direito administrativo e

seus princípios, ato administrativo, contrato administrativo, interpretação no

direito administrativo, o reconhecimento da elaboração de institutos próprios

neste campo jurídico e de modelos peculiares ao direito administrativo, criti-

cando a transposição incorreta de esquemas privatísticos, bem como tratou

de diversos outros assuntos).

Por sua vez, Ruy Barbosa Nogueira50 (primeiro catedrático de Direito

Tributário da USP) também assinala no campo do direito público, especifica-

mente no Direito Tributário, a profunda contribuição de Miguel Reale, não

apenas ao campo dogmático do direito tributário, mas, sobretudo, à Ciência

e à Filosofia do Direito Tributário. Lembra que o direito tributário brasileiro

em seu normativismo entre Estado e seus juridicionados necessita precipua-

mente de humanização, somente alcançável pelo progresso das ciências fis-

cais e, sobretudo, pela humanística e humanizadora filosofia do direito tri-

butário. Assim, cita em seu artigo “Miguel Real e o Direito Tributário” alguns

trabalhos de Miguel Reale, com objetivos de humanização da tributação na-

cional.

Clóvis do Couto e Silva51 (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

nos atenta para a importância de Reale e da teoria tridimensional no campo

do direito civil, onde Miguel Reale assumiu dois papéis importantíssimos: o

de jurisconsulto (nos pretórios do país) e também como codificador, como

Coordenador da Comissão de Reforma do Código Civil. Em suas obras e

pareceres publicados no direito civil é possível analisar suas inclinações e

seu modo de trabalhar com os modelos jurídicos, perseguindo, sempre, uma

solução que integre, de modo harmônico, o fato, o valor e a norma.

49

CRETELLA JÚNIOR, J. ―A Ótica Administrativa de Miguel Reale‖ in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 354-362. 50

BARBOSA NOGUEIRA, Ruy. ―Miguel Real e o Direito Tributário‖ in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 392-395. 51

COUTO E SILVA, Clóvis. ―Miguel Reale, Civilista‖ in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 414-415.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 179

Para se compreender o papel do poder social e da coação jurídica na

obra de Reale, tem-se que voltar a uma indagação fundamental, quanto à

distinção entre o Direito e a Moral.

Miguel Reale nos explica no capítulo V de “Lições Preliminares de Direi-

to”, a diferença entre a Moral e o Direito. Recorda inicialmente a “teoria do

mínimo ético” (especialmente desenvolvida por Jeremias Bentham e Georg

Jellinek), que consiste em afirmar que o Direito representa apenas o mínimo

moral obrigatório para a sobrevivência da sociedade, mas como nem todos

realizam as obrigações morais, se armam de força certos preceitos éticos,

sendo o Direito nesta teoria envolvido pela Moral (figura de dois círculos

concêntricos).

Por isto, Reale52 tece algumas críticas a esta idéia, mostrando que nem

tudo que é jurídico é moral (dada existência de direito amoral, bem como de

direito imoral), apesar do “desejo incoercível de que o Direito tutele só o „lí-

cito moral‟”

Assim, de acordo com Miguel Reale, o Direito e a Moral poderiam ser

representados por dois círculos secantes, conforme a figura abaixo dese-

nhada para representar esta idéia:

Assevera, ainda, Miguel Reale53 que há regras sociais de cumprimento

espontâneo e outras de cumprimento obrigatório (ou forçado). Neste senti-

do, a Moral se situa no mundo das condutas espontâneas, sendo que o ato

moral implica na adesão do espírito ao conteúdo da regra (o ato moral não é

fruto da força ou da coação, mesmo quando a força se manifesta juridica-

52

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 41-43. 53

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 44-46.

180 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

mente). Já em relação ao Direito não há necessariamente uma adequação

entre a forma de pensar do sujeito e o fim que a norma jurídica prescreve.

Na verdade, o sujeito por vezes cumpre o direito espontaneamente, mas por

vezes, só o cumpre porque obrigado juridicamente.

Miguel Reale54 observa atentamente uma importante diferença entre a

Moral e o Direito: a Moral é incoercível e o Direito é coercível, sendo a coer-

cibilidade (expressão que denota a plena compatibilidade que existe entre o

Direito e a força) algo que distingue o Direito da Moral. Observa a existência

de três teorias da relação Direito e a Força: (i) uma que sustenta o eticismo

absoluto (o Direito, assim como a Moral nada tem a ver com a força, o que é

uma idealização do mundo jurídico); (ii) a teoria da coação, que vê o Direito

como efetiva expressão de força (aceita por Jhering e Tobias Barreto, vendo o

direito como “norma + coação”, como “a organização da força”); (iii) e por

fim, a teoria da coercibilidade acatada por Reale, onde o Direito seria a orde-

nação coercível da conduta humana (a coação no direito não seria efetiva,

mas potencial, como garantia da execução da norma, apenas quando os in-

teressados não a querem cumprir).

Miguel Reale55 relembra o ensinamento de Kant em relação à Moral au-

tônoma e o Direito heterônomo. Isto porque, as normas jurídicas (Direito)

valem independentemente do querer e da opinião dos obrigados. Assim, a

validade objetiva e transpessoal das normas jurídicas se põem acima das

pretensões dos sujeitos numa relação. Deste modo, o Direito seria “a orde-

nação heterônoma e coercível da conduta humana”.

Miguel Reale56 para explicar melhor a nota distintiva essencial do direi-

to, aprofunda esta noção de “coação potencial” (do coercível) passando à

teoria da bilateralidade atributiva. Haveria “bilateralidade atributiva quando

duas ou mais pessoas se relacionam segundo uma proporção objetiva que as

autoriza a pretender ou a fazer garantidamente algo”. Daí, este fato social

passa a ser jurídico. O conceito de bilateralidade atributiva se desdobraria

nos seguintes elementos complementares:

“a) sem relação que una duas ou mais pessoas não há Direito (bilaterali-dade em sentido social, como intersubjetividade); b) para que haja Direito é indispensável que a relação entre os sujeitos seja objetiva, isto é, insuscetível de ser reduzida, unilateralmente, a qualquer dos sujeitos da relação (bilateralidade em sentido axiológico); c) da proporção estabelecida deve resultar a atribuição garantida de uma pretensão ou ação, que podem se limitar aos sujeitos da relação ou es-tender-se a terceiros (atributividade)”.

57

54

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 46-48. 55

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 48-49. 56

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 50-52. 57

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 51.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 181

Miguel Reale58, ainda, para explicar melhor a nota distintiva essencial

do direito, lembra da existência das regras costumeiras (ou normas de trato

social: regras de decoro, de etiqueta, de cortesia) que estão numa situação

intermediária entre a Moral e o Direito (não há possibilidade de coação, são

heterônomas e bilaterais, mas não atributivas).

Assim, traça interessante quadro, resumindo as notas distintivas dos

três campos da Ética:

Coercibilidade Heteronomia Bilateralidade Atributividade

MORAL - - + -

DIREITO + + + +

COSTUME - + + -

Fonte: REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Sa-

raiva, 2006, p.57.

Reale59 nos explica no capítulo VII de “Lições Preliminares de Direito”,

os conceitos de sanção e coação. Começando a tratar das acepções da pala-

vra “coação”, lembra que o termo “coação” tem para os juristas dois signifi-

cados bem diferentes. Em primeiro lugar, significaria apenas violência (física

ou psíquica) contra uma pessoa ou um grupo, e que se contrapondo ao Di-

reito, torna anuláveis os atos jurídicos. Neste sentido, tratado inclusive no

Código Civil como vício do ato jurídico, “o ato jurídico, praticado sob coação,

é anulável; tem existência jurídica, mas de natureza provisória, até que o

ofendido prove que agiu compelido, sob ameaça física ou psíquica”.

Todavia, não é neste primeiro sentido, que o termo “coação” serve para

distinguir o Direito da Moral. Neste segundo sentido, “coação” é entendida

como força organizada para fins do próprio Direito, uma vez que as normas

jurídicas têm como objetivo preservar a convivência humana, e não poderiam

depender da simples adesão espontânea dos obrigados (cumprimento obri-

gatório do Direito). Assim, “quando a força se organiza em defesa do cum-

primento do Direito mesmo é que nós temos a segunda acepção da palavra

coação”.60

58

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 56-57. 59

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 69-70. 60

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 70-71.

182 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

Tércio Sampaio Ferraz61 tratando da “violência razoável” (que seria ju-

rídica, em contraponto à violência não-razoável e antijurídica), nos fala que a

violência (enquanto vis, força) está ligada à natureza do homem, sendo um

dado palpável a agressividade do homem, e por isto a importância da fixação

de limites no seu uso. Neste sentido, caberia à autoridade utilizar a força

apenas em certa margem e no interesse público, que sendo uma noção vaga

torna a vinculação direito e violência constantemente instável. Mas reconhece

que o poder não se apóia somente na violência, mas também no prestígio,

no conhecimento e na lealdade.

De qualquer forma, para Tércio Sampaio Ferraz 62 “o que define o cará-

ter jurídico de um ato concreto de autoridade é, também, o grau de consen-

so público que ele admite”. Assim, tal consenso pode ser obtido de modos

variados, tais como por procedimentos: políticos (ex.: eleições), interindivi-

duais (ex.: contrato), avaliativos (ex.: sentença judicial) e outros. De qualquer

forma, a violência legal tem caráter jurídico, na medida, que corresponde a

certos procedimentos institucionais que presumem o consenso de tercei-

ros.63

Ao tratar do conceito de “sanção”, Miguel Reale64 nos explica que as

regras (jurídicas, religiosas, morais, de etiqueta, etc.) existem para ser cum-

pridas, implicando certa obediência e respeito para que não fiquem sós no

papel. Neste sentido, as “sanções” são formas de garantia do cumprimento

das regras, existindo tantas formas de garantia quantas são as espécies dos

distintos preceitos. Dá o exemplo, das sanções no descumprimento de or-

dem moral (remorso, arrependimento) ou de ordem social (sanção social da

opinião pública sobre a conduta reprovada), mas lembra que há aqueles (tão

embrutecidos) que não se incomodam nem com o remorso, nem com a rea-

ção social. Daí se torna necessário a organização das sanções, representando

o fenômeno jurídico uma forma de organização da sanção. A sanção jurídica

é caracterizada pela predeterminação e organização (existência do judiciário,

aparelhamento policial e outros exemplos). O próprio Código Civil (de 1916)

em seu artigo 75 rezava que a “todo direito corresponde uma ação que o

assegura”.

Miguel Reale65 (2006, pg. 75) afirma que “o progresso da cultura hu-

mana, que anda pari passu com o da vida jurídica, obedece a esta lei funda-

mental: verifica-se uma passagem gradual na solução dos conflitos, do plano

da força bruta para o plano da força jurídica”. Assim, atualmente “ao lado

61

FERRAZ JR., Tércio. ―Poder e Direito‖ in Estudos de Filosofia do Direito: Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Atlas, 2009, p. 81-83. 62

FERRAZ JR., Tércio. ―Poder e Direito‖ in Estudos de Filosofia do Direito: Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Atlas, 2009, p. 82. 63

FERRAZ JR., Tércio. ―Poder e Direito‖ in Estudos de Filosofia do Direito: Reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Atlas, 2009, p. 82-83. 64

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 72-76. 65

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 75.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 183

das sanções penais, temos as sanções premiais que oferecem um benefício

ao destinatário, como, por exemplo, um desconto ao contribuinte que paga

o tributo antes da data do vencimento”.

Neste sentido, Miguel Reale66 enxerga o Estado como ordenação obje-

tiva e unitária da sanção (o Estado seria a organização da Nação em uma

unidade de poder com a finalidade da aplicação das sanções numa propor-

ção objetiva e transpessoal). Por isto, que alguns constitucionalistas definem

o Estado como instituição detentora da coação incondicionada (monopólio da

coação na distribuição da justiça), uma vez que o Estado como ordenação do

poder, disciplina as formas e os processos de execução coercitiva do Direito.

Os exemplos são vários no cotidiano jurídico: uma sentença que retira um

bem do patrimônio do indivíduo; a prisão no direito penal (perda da liberda-

de) e outros exemplos do dia a dia jurídico.

Miguel Reale também reconhece as ordenações jurídicas não-estatais,

defendendo no livro “Teoria do Direito e Do Estado” que a coação também

existe fora do Estado, apesar do Estado ser o detentor da coação em última

instância. Assim, também o direito existe em outros grupos e instituições (os

exemplos são vários: a Igreja, as ONG´s, as organizações internacionais,

etc.), procedendo para Reale a teoria da pluralidade das ordens jurídicas po-

sitivas. Por outro lado, Reale67 reconhece também que existe uma gradação

no Direito, segundo o índice de organização e de generalidade da coação.

Neste sentido, o Estado em comparação às outras ordens jurídicas apresenta

a universalidade da sanção com força impositiva mais eficaz.

Martín Lacau68 (da Universidade de Buenos Aires) nos lembra acerca da

discussão do caráter coercitivo do direito, havendo juristas que negam a co-

ação como nota distintiva do mundo jurídico, enquanto outros acreditam não

poder haver direito sem coação (ordem coativa do comportamento humano).

Lacau assevera que para Miguel Reale quando se fala de coação deve-se dis-

tingui-la na sua acepção sociológica e técnico-dogmática e entre coação

atual (coercitividade) e coação virtual (coercibilidade, entendida como coação

possível e relacionada ao conceito denominado por Reale de “bilateralidade

atributiva”).

Lacau (2004, p. 281-282) entende que os conceitos de sanção e coa-

ção são relacionados, mas distintos, sendo que a coação é uma das possíveis

sanções pelas quais se tenta assegurar o cumprimento do comportamento

prescrito por normas jurídicas, lembrando que as sanções podem ser pre-

66

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 76. 67

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 77-80. 68

LACAU, Martín. ―Coercibilidad y Bilaterilidad Atributiva em La Filosofia del Derecho de Miguel Reale‖ in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 281.

184 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

ventivas, repressivas ou até que premiam comportamentos desejáveis, sendo

que a coação caracteriza a sanção repressiva.69

Martín Lacau70 lembra que para Reale a coação deve ser distinguida em

sua acepção sociológica e jurídica, sendo que o meio social manifesta rea-

ções coletivas (conjunto de sanções) contra os infratores das regras, poden-

do ser reações sociais difusas ou socialmente organizadas. Assim, na coação

jurídica há dois elementos, uma pressão de ordem física ou psíquica, e de

outro lado, uma forma estruturada que permite diferenciar a coação jurídica

da força bruta. Neste sentido há coação quando se impõe uma alternativa,

com exclusão de outras alternativas possíveis, que resultam descartadas ab

initio. Na coação jurídica há substituição do querer do sujeito pelo querer

objetivo da lei, quando, por exemplo, o indivíduo se encontra obrigado a um

determinado comportamento.

Lacau71 também observa que Reale faz distinção entre coação virtual

(coercibilidade) e atual (coercitividade). Assim, rememora que tal distinção

tem um paralelo na distinção de Aristóteles entre ato e potência. Todavia, há

autores (grande maioria) que defendem que o direito é coercitivo e que não

há direito sem um efeito ato de coação. Lembra a posição de Ihering, para

quem o direito é constituído por um conjunto de normas e estas se realizam

através da coação exercida pelo Estado; a posição de Hans Kelsen, que na

Teoria Geral do Direito e do Estado considera a coação como elemento es-

sencial do direito e coloca o problema em nível normativo (desvincula-se das

motivações psicológicas); a posição de Alf Ross, para quem há íntima relação

entre direito e força (a força não é um elemento extrínseco ao direito, sendo

o ordenamento jurídico um corpo de regras que determinam as condições

pelas quais a força física deve ser exercida contra uma pessoa).

Como bem assinala Martín Lacau72, Miguel Reale, por sua vez, critica a

teoria da coação por trazer uma idéia de conflito entre direito e cumprimento

espontâneo das normas jurídicas, por perceber que na maioria dos casos os

indivíduos se comportam espontaneamente de acordo com o prescrito nas

69

Segundo Martín Lacau ―la coaccíon es la nota que caracteriza al segundo tipo de sancíon, esto es, a aquella que castiga um comportamiento al que se estima disvalioso (...) em ella, el uso de la fuerza resulta ineludible; pero se trata – según expressa Reale – de uma fuerza disciplinada, esto es, de uma fuerza ejercida dentro de los limites legitimados por la tutela de los bienes de la convivência, de un fuerza que se hace presente de conformidad con los fines del derecho y dentro de los limites que este le ortoga‖. LACAU, Martín. ―Coercibilidad y Bilaterilidad Atributiva em La Filosofia del Derecho de Miguel Reale‖ in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 282. 70

LACAU, Martín. ―Coercibilidad y Bilaterilidad Atributiva em La Filosofia del Derecho de Miguel Reale‖ in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 282-283. 71

LACAU, Martín. ―Coercibilidad y Bilaterilidad Atributiva em La Filosofia del Derecho de Miguel Reale‖ in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 282-285. 72

LACAU, Martín. ―Coercibilidad y Bilaterilidad Atributiva em La Filosofia del Derecho de Miguel Reale‖ in Direito, Política, Filosofia, Poesia – Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 285-288.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 185

normas jurídicas. Isto não significa que não haja possibilidade de violar o

direito, com eventual coação, que permanece latente, sendo esta coação po-

tencial denominada por Reale de “coercibilidade” (característica do direito).

Para Reale há compatibilidade lógica entre direito e força, mas o direito utili-

za a força como uma segunda instância de garantia. Assim, a noção de coa-

ção está vinculada com a “bilateridade atributiva” (nota distintiva do mundo

jurídico), sendo que o direito implicaria numa relação entre duas ou mais

pessoas segundo certo critério objetivo de exigibilidade, pois quando uma

parte não cumpre sua prestação a outra pode exigir seu cumprimento. Daí é

que surge o caráter atributivo da relação bilateral e conseqüentemente a

exigibilidade das prestações mutuamente devidas, uma vez que, o direito é

coercível porque é exigível, e é exigível porque é bilateral atributivo.

O presente trabalho tratou do poder social e da coação jurídica na

Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale, partindo: (i) da correlação

Direito-Poder sob a ótica do papel do poder na democracia (ajustamento

entre a lei e as aspirações da coletividade - poder social – para dar concreti-

zação jurídica aos valores que se vão objetivando em cada momento da his-

tória da cultura); (ii) da análise do nascimento da norma jurídica (nomogêne-

se jurídica) em face dos valores e dos fatos, através da participação de um

quarto elemento catalisador, ou seja, o poder; (iii) da abordagem da Teoria

Tridimensional do Direito de Miguel Reale em sua tridimensionalidade con-

creta (diferente da tridimensionalidade abstrata) de fato, valor e norma em

uma correlação de natureza funcional e dialética, dada a "implicação-

polaridade" existente entre fato e valor, de cuja tensão resulta o momento

normativo; (iv) da diferenciação entre o Direito e a Moral em Miguel Reale

(existência de regras sociais de cumprimento espontâneo e outras de cum-

primento obrigatório), para se chegar aos conceitos de coação jurídica (onde

são apontados dois sentidos jurídicos); coercibilidade (coação potencial); de

bilateralidade atributiva (o direito implicaria numa relação entre duas ou

mais pessoas segundo certo critério objetivo de exigibilidade); de sanção

(repressivas ou premiais) em Miguel Reale (caracterizada pela predetermina-

ção e organização), ressaltando-se a visão realeana da compatibilidade lógi-

ca entre direito e força, com uma passagem gradual na solução dos confli-

tos, do plano da força bruta para o plano da força jurídica.

Também passamos por alguns aspectos importantes da doutrina de

Miguel Reale, como a consideração da existência de pluralidade de ordena-

mentos jurídicos, a integração entre ordenamentos em um contexto demo-

crático (onde se verifica a expansão das áreas de interesses de classes e gru-

pos, que se convertem em interesses da coletividade e do Estado), a idéia de

186 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

uma gradação de positividade entre os ordenamentos (onde no topo está o

Estado em virtude da soberania), a teoria dos modelos jurídicos (pela qual

Reale propõe a substituição da teoria das fontes), o processo de institucio-

nalização progressiva do poder (acompanhados da despersonalização e

transpersonalização do poder), registrando também a influência de Miguel

Reale em todos os campos da dogmática jurídica (do direito privado ao direi-

to público).

BAGOLINI, Luigi. “Pensieri, Rileggendo Miguel Reale” in Direito, Política, Filo-

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no seu octogésimo aniversário. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 305-313.

188 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 189

Rui Carlo Dissenha Professor de Direitos Humanos e Direito Penal do Curso de Direito da Universidade Positivo

e Coordenador do Grupo de Estudos sobre Tribunais Internacionais, Jurisdições Internacionais e Direito Internacional Criminal

“Os animais e as crianças são terrivelmente resistentes às deduções:

um cavalo se mostra extremamente surpreso quando é forçado a um volteio

incomum. Quando o homem começou a raciocinar, tentou justificar as dedu-

ções que havia feito irracionalmente em tempos passados. Boa dose de má

filosofia e de má ciência resultou dessa propensão. Os „grandes princípios‟,

tais como o da „uniformidade da Natureza‟, a „lei da causalidade universal‟ e

assim por diante, constituem tentativas de apoiar a nossa crença de que o

que tenha acontecido freqüentemente antes voltará a acontecer, o que cons-

titui uma atitude mental em nada superior à do cavalo ao admitir que você

deva fazer os volteios que já tenha feito antes. Não é fácil saber-se o que

deva substituir esses pseudoprincípios na prática da ciência; mas talvez a

teoria da relatividade nos permita um vislumbre do que devemos esperar. A

causalidade, no velho sentido, não tem mais lugar na Física teórica. Há, na-

turalmente, algo que a substitui, e o substitutivo parece ter base empírica

melhor do que o velho princípio substituído1”.

1 RUSSEL, Bertrand. ABC da Relatividade. 5ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 211.

190 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

“O colapso do tempo onienvolvente, segundo o qual todos os aconte-

cimentos havidos no universo podem ser datados, deverá, a longo prazo,

afetar os nossos pontos de vista quanto a causa e efeito, a evolução e a mui-

tas outras coisas2”.

Essa idéia, apresentada por RUSSEL, parece também ter marcado REA-

LE. Conforme se pode ver em sua filosofia, a questão do tempo muda de

acordo com uma certa evolução do pensamento. A análise da sua Teoria Tri-

dimensional em dois momentos distintos indica a variação do conceito de

“tempo” de forma evidente e, de alguma maneira, similar à mudança do

“tempo clássico” ao “tempo quântico”.

O presente artigo pretende, com as limitações que a temática impõe e

com a certeza da dificuldade que a questão transparece – tanto no que toca

à questão do espaço-tempo quanto à Filosofia de REALE – aproximar a análi-

se do tempo na Teoria Tridimensional do Direito com a mudança paradigmá-

tica que essa grandeza sofre a partir das teorias da Física contemporânea.

Assim, analisar-se-á primeiramente a postura de REALE frente ao tem-

po, tentando indicar qual é o sentido e importância dessa grandeza na cons-

tituição da ontognoseologia realeana e, em seguida, como se deu a mudança

de compreensão da idéia de tempo da Física clássica para a Física contempo-

rânea, de fundamentos einstenianos. O objetivo que se procura é indicar

traços de que, eventualmente, a Filosofia de REALE esteve mais próxima da

Física do que um incauto leitor possa imaginar.

Não se pode negar que REALE foi o grande nome do tridimensionalis-

mo brasileiro. Embora não seja possível afirmar que se trate de uma posição

inovadora, já que pensar o Direito de forma tridimensional é algo que se

fazia desde o século XIX3, é certo que a sua leitura do tridimensionalismo é

efetivamente diferenciada em determinadas pontos, caracterizando-se, por

isso, certa inovação em sua obra. Uma dessas questões é certamente a sua

visão sobre o tempo na inter-relação entre os elementos do fenômeno jurí-

dico e importa, nestas linhas, discutir diretamente essa questão como fator

diferenciador na filosofia realeana.

A idéia de que o direito envolvia os três elementos era algo corrente.

As obras dos antecessores de REALE já falavam do direito cultural e social

como fenômeno que envolvia a teoria dos valores e, dessa forma, já se preo-

2 RUSSEL, Bertrand. ABC da Relatividade. 5ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 211.

3 Nesse contexto, a obra do próprio Miguel REALE, ao apresentar os tridimensionalismos historicamente

existentes, é bastante rica. Ver REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Sarai-va, 2000, p. 511 e seguintes.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 191

cupavam com o significado de valor e como ele se relacionava com os fatos.

Corrente, sobretudo, era o debate acerca da natureza da justiça como um

determinativo objetivo ou como resultante do ato subjetivo pelo qual se ca-

racteriza a valoração.

Nesse sentido, o caldo filosófico do início do século XX, com a recupe-

ração de KANT e HEGEL, com algumas tendências ao realismo e outras à i-

dentificação do valor no Direito, vão influenciar o pensamento realeano e vão

dar subsídios para o seu tridimensionalismo. É nesse contexto culturalista

que REALE constrói sua filosofia e elabora seu raciocínio com teorias dos

fatos e teorias dos valores. E é também nesse contexto que REALE discute a

questão do tempo, inicialmente de forma estática e, depois, de forma dinâ-

mica.

A noção de tempo em REALE é tema recorrente. A idéia de temporali-

dade, essencial à construção da historicidade que vai marcar seu tridimensi-

onalismo, ainda que com ela não se confunda, é debatida em vários momen-

tos da sua obra e tem relação especial com o valor na tríade que compõe o

fenômeno jurídico. No chamado tridimensionalismo estático realeano, o

tempo é um elemento eminentemente inerte (daí a idéia de “estático”). Nesse

sentido, embora um determinado contexto temporal envolva uma miríade de

valores – ou seja, esses valores que interessam diretamente ao Direito, como

qualquer outra coisa, estão necessariamente ligados a uma temporalidade

específica – eles existem independentemente do tempo. Isso não significa,

obviamente, que tais valores existam fora do tempo. Tal condição implica,

apenas, uma compreensão desses valores, bem como dos demais elementos

do Direito (o fato e a norma), em determinado espaço temporal, certamente,

e, aí, dentro do tempo, portanto. Mas todos eles apenas existem no tempo e

dele estão abstraídos, pois lhes são independentes.

REALE chamava essa teoria estática, ou genérica, pois nela se trabalha-

vam os elementos em separado, ainda que correlacionados: fato é uma coisa,

valor é outra e norma, uma terceira. Assim, todos esses elementos estariam

evidentemente correlacionados, mas ainda manteriam as suas singularida-

des. Nesse contexto, o tempo, em REALE, é meramente uma variável crono-

lógica que identifica fato, valor e norma em um conjunto de eixos e vetores e

lhes dão a sua chamada temporalidade. Por isso se trata de um tempo nu-

mérico e quantitativo, inerte como um cenário onde se desenrola uma peça.

Nas suas palavras, “quando se procuram combinar os três pontos de vista

unilaterais e, mais precisamente, os resultados decorrentes de estudos leva-

dos a cabo separadamente, segundo aqueles pontos de vista, configura-se o

que chamamos de tridimensionalidade genérica do Direito4”.

Adiante na sua filosofia, no tridimensionalismo dinâmico, REALE rompe

com esse modelo estático e com a visão meramente quantitativa de tempo.

4 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 514.

192 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

Nesse novo contexto, o tempo assume uma função maior, pois os ele-

mentos que compõem a tríade do Direito não são apenas localizados no

tempo, mas são constituídos pelo tempo. Essa é a diferença que REALE apre-

senta entre a temporalidade (caráter vinculado a uma idéia estática de tem-

po) e a historicidade (onde o tempo desempenha um papel também constru-

tor da realidade) e que caracteriza uma inovação da sua filosofia5. Nessa

forma, os valores existem em correlação ao elemento temporal, o que é mui-

to mais do que simplesmente imaginá-los no tempo. Mais do que isso, é

necessário cogitar que esses fatores se relacionam com o tempo cada vez de

uma forma diferente. Nesse contexto, existe uma correlação temporal em si

mesma, de forma que não se trata de apenas olhar os fatos no tempo, mes-

mo porque os fatos não estão no tempo, eles são temporais. Isso ocorre

também com os valores e com a norma: eles são enquanto tempo, pois, no

momento, se modificam, ajustam, existem e acontecem. Nesse sentido, os

elementos do fato jurídico têm a temporalidade dentro de si e, por isso, as

suas existências e a correlação entre eles também é inerentemente temporal.

Isso produz uma mudança em como se olha a tridimensionalidade, que não

pode mais ser olhada genericamente, mas sim de forma específica.

Ora, o tempo não é uma simples grandeza que, passada, fica efetiva-

mente para trás. Os fatores que compõem o Direito são resultado de uma

construção temporal porque a cultura não trabalha com um processo de es-

quecimento, mas de acumulação. Daí que o passado não é ignorado, mas se

agrega à experiência do hoje e se agregará à experiência do amanhã para

construir um presente. Isso se dá com todos os elementos da tríade, pois

fato, valor e norma são dessa forma construídos com o tempo e não mera-

mente existentes em um tempo específico. E tais fatores se relacionam de

forma tão íntima no tridimensionalismo específico que se torna impossível

pensar o direito sem levar em consideração os três fatores de forma conco-

mitante6. Em outras palavras, não se anula o passado, pois o tempo humano

não é meramente uma grandeza física, um vetor estático sobre o qual a hu-

manidade acontece – o tempo permanece, se agrega e constitui a própria

realidade, é o tempo que dá a significação e caracteriza o processo histórico.

Daí a clara diferença entre a temporalidade e a historicidade: “o que é

histórico, assenta Miguel Reale, é aquilo que se inseriu, ou se insere, signifi-

cativamente nas coordenadas do espaço e do tempo”, de forma que “por não

ser mera inserção, mas inserção grávida de significados, a história não se

confunde com o mero fluir dos dias e das datas, é interpenetração e simulta-

neidade, é „atualidade constante dos bens culturais7”. Pensar o fenômeno

5 MARTINS-COSTA, Judith. Direito e Cultura: Entre as Veredas da Existência e da História. In investigación

y Docencia (p. 90-103), p. 93-95. 6 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 514.

7 MARTINS-COSTA, Judith. Direito e Cultura: Entre as Veredas da Existência e da História. In investigación

y Docencia (p. 90-103), p. 93.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 193

jurídico, nesse contexto, é pensar um todo construído por uma experiência

valorativa que é resultado de um tempo e não, apenas, colocado em um

tempo. Daí, novamente, MARTINS-COSTA afirmar, referindo-se à figura do

tempo cultural em REALE, que “este é constituído por valores, por significa-

ções, de modo a poder-se dizer que é da correlação entre tempo e valor que

surtirá o caráter dinâmico da sua Teoria Tridimensional do Direito, que o

discerne de outros jusfilósofos tridimensionalistas8”. Essa condição aparece

muito evidente como base do pensar de REALE9.

Ao identificar o papel do juiz, inclusive, REALE deixa essa realidade

bem clara: “a regra vigente deve ser sempre uma baliza ao comportamento do juiz que, no entanto, não pode deixar de valorar o conteúdo das regras se-gundo tábua de estimativas em vigor em seu tempo. Ele, juiz, enquanto homem, já participa dela, e pertence às circunstâncias de sua „tempora-lidade‟, como se pode ver em nosso livro O Direito como Experiência10”.

Afinal, ainda segundo as palavras de REALE,

“os valores não são uma realidade ideal que o homem contemple como se fosse um modelo definitivo, ou que só possa realizar de maneira in-direta, como quem faz uma cópia. Os valores são, ao contrário, algo que o homem realiza em sua própria experiência e que vai assumindo ex-pressões diversas e exemplares, projetando-se através do tempo, numa incessante constituição de entes valiosos11”.

Em suma, no tridimensionalismo dinâmico de REALE, o tempo não é

apenas um número, um parâmetro. Ele desempenha uma função essencial na

própria existência do fenômeno jurídico porque condiciona fato, valor e

norma, ajudando a construí-los na medida em que são fenômenos culturais

que não ignoram o passado e, portanto, o tempo em que existem. Mais do

que um simples fundo de cena, o tempo é um elemento efetivamente dinâ-

mico.

A leitura da função desempenhada pelo tempo na filosofia realeana

remete a uma comparação interessante. Ao indicar que o tempo reage com

outros elementos e assim os faz existirem para construir o Direito, REALE

8 MARTINS-COSTA, Judith. Direito e Cultura: Entre as Veredas da Existência e da História. In investigación

y Docencia (p. 90-103), p. 95. 9 Nesse sentido, ver REALE, Miguel. Teoria do Conhecimento e Teoria da Cultura. In Cinco temas do cultu-

ralismo, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 27 a 37. 10

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 583. 11

REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 157.

194 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

parece falar a mesma língua da Física contemporânea ao ponto de se poder

cogitar, até, que esse autor tenha sido influenciado por uma leitura assídua

da Matemática e dos avanços da Física no século XX. Por isso, a proposta é

discutir, neste momento, como muda a visão do fenômeno tempo com as

evoluções científicas e, então, comparar essa evolução com a compreensão

realeana do mesmo elemento.

A Física clássica tendia a ver o tempo como uma grandeza que não so-

freria alterações. Componente da natureza, tratava-se talvez de uma das

maiores certezas da existência: determinante da morte, o tempo é inexorável

e não se altera jamais. Essa construção correspondia ao modelo físico vigen-

te até o início do século XX – o modelo Newtoniano – e assentava-se na idéia

de que as leis da natureza, tal qual enunciadas pela Física, comporiam um

conhecimento absolutamente certo. Nesses termos, “a natureza é um autô-

mato que podemos controlar, pelo menos em princípio. A novidade, a esco-

lha, a atividade espontânea são apenas aparências, relativas apenas ao ponto

de vista humano12”.

NEWTON fundamentava seu universo em um contexto de espaço e

tempo absolutos e independentes da matéria. Nessa construção, a realidade

se desenvolvia em um palco inerte e que servia, apenas, para localizar e con-

textualizar o evento. Essa forma de raciocínio se desenvolve segundo a pró-

pria base da filosofia newtoniana, construída a partir de Henry MORE13: ape-

gado que era à idéia de um Deus eterno e absoluto, também eternas e abso-

lutas deveriam ser essas grandezas que o representavam. É por isso que

“tanto Aristóteles quanto Newton acreditavam no tempo absoluto. Isto é, acreditavam que se pode, sem qualquer ambigüidade, medir o intervalo de tempo entre dois eventos, e que o resultado será o mesmo em qual-quer mensuração, desde que se use um relógio preciso. O tempo é in-dependente e completamente separado do espaço

14”.

Assim, o tempo e o espaço newtonianos são o fundo de cena onde os

eventos ocorriam sem jamais serem por eles afetados. O tempo era eterno e

infinito, para frente e para trás, como o que se vê ao se olhar os paralelos

trilhos de um trem15.

Todavia, é certo que a mecânica newtoniana acabou destronada pela

mecânica quântica no correr do século XX16. As evoluções da Física teórica

no início do século XX, sobretudo aquelas levadas a cabo por EINSTEIN e pe-

los outros físicos de seu tempo, colocaram em xeque a realidade estática da

12

PRIGOGINE, Ilya. O Fim das Certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza. São Paulo: Unesp, 1996, p. 19-20. 13

GOMIDE, Fernando; BERMAN, Marcelo. Introdução à Cosmologia Relativística. Curitiba: Editora Albert Einstein, 1986, p. 1-2. 14

HAWKING, Stephen. Uma breve história do tempo. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p. 30. 15

HAWKING, Stephen. O Universo numa Casca de Noz. 6ª edição. São Paulo: Arx, 2002, p. 32. 16

PRIGOGINE, Ilya. O Fim das Certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza. São Paulo: Unesp, 1996, p. 19.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 195

natureza e demonstraram – inicialmente através de modelos teóricos e, pos-

teriormente, através de experiências práticas17 – que a Física newtoniana

podia explicar a realidade em determinadas situações, mas que para o muito

grande ou para o muito pequeno, seus axiomas não funcionavam. As dificul-

dades teóricas encontradas pelos físicos o início do século XX foram aos

poucos minando a Física assim chamada de clássica. Teorias novas surgiram

e novos princípios, como o da co-variância18, passaram a representar a reali-

dade e a indicar novas necessidades para a Física. Mudava, sobretudo, a

concepção do tempo e do espaço. Em outras palavras, “...Newton imaginou

espaço e tempo como um referencial absoluto para todos os movimentos.

Contudo, para Einstein, espaço e tempo podiam assumir um papel dinâmi-

co19”.

Nesse contexto, tempo e espaço não são mais independentes. A iden-

tificação de um ponto no espaço, que até então era feita com quatro quanti-

dades específicas (como os eixos cartesianos mais a identificação do mo-

mento em que algo se dá), ainda é feita com as mesmas unidades. Todavia,

não se pode mais pensá-las como independentes: todos os quatro elemen-

tos dependem, necessariamente, uns dos outros20. Se na física newtoniana,

espaço e tempo eram dados que existiam por si mesmos (os três eixos car-

tesianos são compostos de medidas independentes e o tempo, idem), na

relatividade, essa condição muda completamente, pois “o espaço e o tempo

tomam parte da ação”. Como conseqüência, “a própria divisão do tempo en-

tre passado, presente e futuro parece carente de significado físico21”. Aliás, a

relatividade (não no sentido que Einstein lhe dá) do tempo é tal que alguns

autores contemporâneos chegam a afirmá-lo como “um acidente do espa-

ço22”.

Em outras palavras, se “antes de 1915, espaço e tempo eram conside-

rados como um palco fixo no qual os eventos ocorriam, sem que fossem

afetados pelo que nele acontecesse”, para a Teoria Geral da Relatividade de

EINSTEIN, a situação é bastante diferente:

17

―Toda a Física relativista está mais ligada a etapas sucessivas de o que a Física e a Geometria dos velhos tempos. As linhas retas de Euclides têm de ser substituídas por raios de luz, os quais não se enquadram bem nos padrões euclidianos de retilidade quando passam por perto do Sol ou de qualquer outro corpo muito pesado. Ainda se considera a soma dos ângulos retos em regiões muito pequenas do espaço vazio, mas não em qualquer região extensa. Não podemos encontrar em parte alguma um lugar em que Euclides esteja exa-tamente certo. As proposições que eram provadas pelo raciocínio tornaram-se agora ou convenções ou meras verdades aproximadas verificadas pela observação‖. RUSSEL, Bertrand. ABC da Relatividade. 5ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 210. 18

KAKU, Michio. O Cosmo de Einstein: como a visão de Albert Einstein transformou nossa compreensão de espaço e tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 81. 19

KAKU, Michio. O Cosmo de Einstein: como a visão de Albert Einstein transformou nossa compreensão de espaço e tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 79. 20

RUSSEL, Bertrand. ABC da Relatividade. 5ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 59. 21

PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: UNESP, 1996, p. 172. 22

PRIGOGINE, Ilya. O Fim das Certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza. São Paulo: Unesp, 1996, p. 23, referindo-se à célebre obra de Stephen HAWKING, ―Uma breve história do tempo‖.

196 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

“espaço e tempo são atualmente considerados quantidades dinâmicas: quando um corpo se move ou uma força atual, afeta a curva do espaço e do tempo – e, por sua vez, a estrutura do espaço-tempo afeta a forma como os corpos se movem e as forças atuam. Espaço e tempo não ape-nas afetam, mas também são afetados por qualquer coisa que aconteça no universo23”.

Não se pode ignorar como essa complexa forma contemporânea da

grandeza tempo se aproxima da imagem de tempo para REALE. Ora, ao indi-

car que os elementos do fenômeno jurídico se constroem em uma eterna

dialética de implicação-polaridade24 dentro da qual o tempo – não como

mera escala de medida, como temporalidade simples, mas como uma condi-

ção de historicidade – desempenha um papel cuja existência se confunde

com os próprios elementos fato, valor e norma, então o tempo realeano nes-

sa medida é mais do que um palco: é, na verdade, algo com o que os ele-

mentos-atores se relacionam extensa, ampla e intrinsecamente. É, em outras

palavras, o tempo quântico, não o tempo clássico; é uma temporalidade ine-

rente à condição segundo a qual os “fatos se subordinam a exigências eleti-

vas de valor e se compõem na unidade integrante das normas de direito”

para as quais existe, sim, uma inerente temporalidade certa, mas que “como

diz L. Bagolini, não é a do tempo do relógio25”.

Nesse contexto, REALE, tratando da condicionante cultural que se põe

na raiz do ato de conhecer e que lhe caracteriza, critica KANT mesmo quanto

à terminologia usada. Afinal, KANT se refere ao “espaço e tempo” enquanto,

para REALE, mais certa estaria a expressão einsteniana “espaço-tempo”, jus-

tamente aquela que se vincula adequadamente ao conceito de um tempo que

se relaciona intrinsecamente com o espaço (ao ponto de chegar a dobrar-se,

inclusive, segundo as demonstrações físicas contemporâneas) e, portanto,

com todas as coisas, inclusive, naquela crítica, com o sujeito cognoscente26.

Para afastar KANT e o seu sujeito situado in abstrato, a alegação de

REALE torna praticamente expressa a sua vinculação ao novo modelo físico,

donde se extrai que abarca essa nova visão de tempo:

“Na realidade, o que se dá é uma substituição de modelo cognoscitivo. É sabido que a Gnoseologia kantiana se situa no contexto epistêmico da Física de Newton, representando o propósito de se alcançar, em todos os domínios do conhecimento, a certeza de resultados atingida naquele

23

HAWKING, Stephen. Uma breve história do tempo. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p. 45. 24

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. O Problema das Lacunas e a Filosofia Jurídica de Miguel Reale. In Direito Política Filosofia Poesia: estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale em seu octogésimo aniversário (p. 271-279), São Paulo: Saraiva, 1992, p. 275/276. 25

REALE, Miguel. Estrutura e fundamento da ordem jurídica. In “Estudos de filosofia e ciência do direito‖. São Paulo: Saraiva, 1978 (p. 26 a 34), p. 27. 26

REALE, Miguel. Teoria do Conhecimento e Teoria da Cultura. In Cinco temas do culturalismo, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 27 a 37, p. 30.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 197

campo, devendo ser estabelecidas as bases universais do conhecimento positivo, que, segundo o mestre do criticismo, só poderia ficar adstrito ao mundo fenomenal, próprio das ciências naturais, sendo transcenden-talmente condicionadas pelas condições subjetivas a priori por ele apon-tadas. É natural que, alterada a visão da Ciência – quer pela nova com-preensão da Física, cada vez mais teorizada em termos lógicos e mate-máticos, culminando no relativismo de Einstein, à margem do indutivis-mo antes reinante, quer em razão do advento das ciências sociais e an-tropológicas – é natural que ocorra também a substituição do modelo, em função do qual são postos os problemas do conhecimento27”.

Do que foi escrito anteriormente e da análise da figura de tempo que

REALE usa em sua filosofia, é possível uma aproximação entre a filosofia

realeana e as novidades trazidas pela Física contemporânea, sobretudo a-

quelas indicadas pelas teorias de EINSTEIN.

Ao reconhecer o fenômeno jurídico como algo que se constrói a partir

da inter-relação entre fato, valor e norma, e ao indicar que essa tríade se

constitui não como um agrupamento de caracteres, mas, sim como um com-

plexo conjunto de elementos necessariamente dependentes, ainda que reco-

nhecíveis em separado, REALE também se refere ao entorno dessa relação

como algo que com ela se imiscui.

Ora, ao pensar o fenômeno jurídico como algo que existe dentro da

cultura e, portanto, dentro de um tempo que constrói essa cultura, também

reconhece que o próprio tempo – e, conseqüentemente, ao seguir a idéia

einsteniana de “espaço-tempo”, o espaço – é condicionante dessa relação.

Assim, o tempo em REALE não é o tempo estático de NEWTON ou da física

clássica, mas, sim, o tempo dinâmico de EINSTEIN e seus contemporâneos.

Importa lembrar que essa idéia de tempo é essencial para que se com-

preenda o real sentido que REALE quer dar à sua filosofia e, talvez, seja um

dos maiores diferenciadores do modelo tridimensional realeano em compa-

ração com outros modelos tridimensionais.

Aliás, a descrição desse tempo por REALE e a sua expressa vinculação

ao novo modelo físico fazem crer que, talvez, sua filosofia tenha sido anima-

da, desde sempre, por uma leitura ávida de físicos e matemáticos. É possível

que, nesse sentido, as belas ciências exatas tenham dado um impulso subs-

tancial a um dos maiores filósofos brasileiros. E talvez uma centelha do pen-

samento de EINSTEIN se tenha espalhado em toda a filosofia do Direito na-

cional.

27

REALE, Miguel. Teoria do Conhecimento e Teoria da Cultura. In Cinco temas do culturalismo, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 27 a 37, p. 33

198 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

“A conclusão final é que conhecemos pouquíssimo, sendo, contudo, sur-preendente que conheçamos tanto, e mais surpreendente ainda que tão pouco conhecimento nos possa proporcionar tamanho poder28”.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. O Problema das Lacunas e a Filosofia Jurídi-

ca de Miguel Reale. In Direito Política Filosofia Poesia: estudos em ho-

menagem ao Professor Miguel Reale em seu octogésimo aniversário (p.

271-279), São Paulo: Saraiva, 1992.

GOMIDE, Fernando; BERMAN, Marcelo. Introdução à Cosmologia Relativística.

Curitiba: Editora Albert Einstein, 1986.

HAWKING, Stephen. O Universo numa Casca de Noz. 6ª edição. São Paulo:

Arx, 2002.

_____. Uma breve história do tempo. São Paulo: Círculo do Livro, 1988.

KAKU, Michio. O Cosmo de Einstein: como a visão de Albert Einstein trans-

formou nossa compreensão de espaço e tempo. São Paulo: Companhia

das Letras, 2005.

MARTINS-COSTA, Judith. Direito e Cultura: Entre as Veredas da Existência e

da História. In investigación y Docencia (p. 90-103).

PRIGOGINE, Ilya. O Fim das Certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza. São

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REALE, Miguel. Estrutura e fundamento da ordem jurídica. In “Estudos de

filosofia e ciência do direito”. São Paulo: Saraiva, 1978 (p. 26 a 34).

_____. Filosofia do Direito. 19ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2000.

_____. Introdução à Filosofia. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994.

_____. Teoria do Conhecimento e Teoria da Cultura. In Cinco temas do cultu-

ralismo, São Paulo: Saraiva, 2000 (p. 27 a 37).

RUSSEL, Bertrand. ABC da Relatividade. 5ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Edi-

tores, 1981.

28

RUSSEL, Bertrand. ABC da Relatividade. 5ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 215.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 199

Victor Nóbrega Luccas Bacharel em Direito pela DIREITO GV

Mestrando em Filosofia do Direito pela USP Advogado

O artigo examina o significado concreto de uma lição de Miguel Reale

sobre a relação entre Direito e Poder, explorando como o poder dos meios

de comunicação de massa – a mídia – ajuda a construir a coação jurídico-

penal. Como base para a análise identifica um panorama penal contemporâ-

neo marcado por uma grande demanda por criminalização e punição e suge-

re que as construções jurídicas possuem um papel ambíguo, ora limitando,

ora justificando o poder da mídia. Utilizando a ferramenta da retórica explica

como a mídia exerce seu poder e, em seguida, usando como exemplos o

conceito de bem jurídico e o Caso Nardoni, mostra como o Direito Penal

possui o papel ambíguo referido. Ao final, conclui que a relação entre Direito

e Poder deve ser vista levando em conta essa ambigüidade de limitação e

justificação.

Palavras-chave: Poder, Direito, Mídia, Dogmática, Penal, Retórica

The article examines the concrete meaning of a Miguel Reale‟s lesson

about the relationship between Law and Power, revealing how the power of

the mass media partially builds the criminal law. The analysis starts with an

overview of a contemporary society in which there is a great demand for cri-

200 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

minalization of conducts and punishment and with the suggestion that law

both limits the mass media power and justifies it, playing an ambiguous role.

Rhetorics are used as a tool to explain how the mass media exercises its

power. The concept of “bem jurídico” and the Nardoni Case are used to show

how criminal law plays an ambiguous role. The article concludes that the

relationship between Law and Power should be observed taking into account

this Law ambiguous role of limitation and justification.

Há grandes lições que quando as ouvimos pela primeira vez parecem

simples. Mas por serem realmente grandes, não podemos absorvê-las ou

compreender sua real extensão desde logo. Iludimos-nos quanto a sua apa-

rente simplicidade. Isso geralmente ocorre por uma das seguintes razões: ou

não conhecemos a profundidade do debate que a antecedeu, ou então temos

dificuldade em saber efetivamente o significado da lição nas questões práti-

cas e concretas que enfrentamos.

Miguel Reale nos deixou algumas dessas lições. Na síntese de Celso

Lafer, ele nos ensinou, por exemplo, que “é impossível lidar com a experiên-

cia jurídica sem lidar simultaneamente com os fatos sociais, com os valores e

com as normas”1. Mas ele nos ensinou mais. Ele nos ensinou que Fato, Valor

e Norma fazem parte da nomogênese jurídica, ou seja, do processo de cria-

ção das normas jurídicas. Mostrou ainda que este processo nos leva a diver-

sas proposições normativas possíveis e que “quando as proposições corres-

pondem a exigências vitais, um dia será necessário decidir, mister será optar

por um caminho, com sacrifício de mil outros possíveis”2.

Essa escolha é feita pelo poder. E é a “necessidade de escolha de uma

diretriz de conduta dotada de validade objetiva que nos revela o que há de

essencial na correlação entre direito e poder”3. Sobre essa escolha, conquan-

to façamos uma suposição de racionalidade para a norma posta, ele pondera

que “Seria evidentemente ingênuo quem apresentasse a decisão do poder

como um ato de pura racionalidade (...)”4. Ou seja, o poder decide qual será

o Direito e não o faz orientado por critérios puramente racionais.

Para aumentarmos nossa compreensão dessa grande lição, nosso tra-

balho analisará uma questão concreta a partir dela, não lidaremos com “o”

poder, mas com “um” poder. Trataremos de como o poder dos meios de co-

1 LAFER, Celso. A Filosofia do Direito e Princípios Gerais: Considerações sobre a pergunta ―O que é Filoso-

fia do Direito?‖ in Alaôr Caffé Alves et alli, O que é Filosofia do Direito. São Paulo: Manole, 2004, p.55 2 REALE, Miguel. ―A complexidade do tema‖ in Pluralismo e Liberdade. Rio de Janeiro: Expressão e Cultu-

ra, 1998, Cap. XIII, O Poder na Democracia (Direito e poder e sua correlação), p. 224 3 REALE, op. Cit., p. 222

4 REALE, op. Cit., p. 228

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 201

municação de massa – a mídia5 – ajuda a construir a coação jurídico-penal.

Para isso, devemos antes traçar um breve panorama sobre a esfera penal no

contexto contemporâneo6.

Vivemos em uma sociedade do risco, marcada pela institucionalização

da insegurança. A idéia do risco perpassa as mais diversas esferas sociais e

ajuda a criar uma generalizada e profunda sensação social de insegurança.

Esta sensação justifica outra denominação para esta realidade, sociedade do

medo.

A esfera penal é uma plataforma de observação privilegiada para esse

fenômeno, pois sua atual configuração é fortemente orientada por essa sen-

sação de insegurança. Em resposta a ela (e também de certo modo ajudando

a alimentá-la), cresceu a demanda por criminalização e punição. Um dos

elementos chave nessa estrutura, que ajuda a cultivar a sensação de insegu-

rança e a maximizar a demanda por criminalização e punição é a mídia.

Como conseqüência, as últimas décadas foram o palco de mudanças

estruturais (apesar de incompletas)7 no aparato institucional que lida com o

crime e na própria cultura penal. Sobre esta última, vale citar a alteração na

percepção social do criminoso, que passa a ser visto como o outro e a mu-

dança de rumo da criminologia, que passa a se orientar a partir da idéia de

controle. O Direito Penal não pode escapar ileso.

Mas qual é a efetiva influência da mídia no Direito Penal? Qual a exten-

são do seu poder? No que exatamente ela faz diferença? De que modo ela

exerce esse poder, perturbando o Direito Penal e a percepção social sobre

ele? Nesse trabalho tentaremos responder a essas questões, tendo por obje-

tivo esclarecer a extensão e o modo de exercício do poder da mídia no con-

texto penal contemporâneo.

Apesar do Direito Penal ser, em alguma medida, uma limitação a de-

manda social por punição, pode-se notar que a mídia afeta tanto (a) a pro-

dução legislativa quanto a (b) produção judicial. Em verdade, as construções

jurídicas possuem um papel ambíguo. Se às vezes elas servem à limitação do

5 O termo mídia será utilizado nesse trabalho para designar o conjunto dos meios de comunicação massa à

disposição na sociedade contemporânea. Não se refere a qualquer meio de comunicação, como freqüentemen-te se faz em literatura sobre mídia. 6 Para o panorama dos parágrafos seguintes ver: (a) sobre sociedade do risco, BECK, Ulrich. Risk Society.

New York: Sage, 1992 e BECK, Ulrich. World Risk Society. London: Polity, 1997; (b) sobre a sensação social de insegurança e a demanda por punição, SANCHÉZ, Jesús-María Silva A Expansão do Direito Penal – Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: RT, 2002, especialmente Cap. 1 ―Sobre algumas causas da expansão‖; e (c) sobre as mudanças no aparato institucional e na cultura penal, GARLAND, David The Culture of Control: Crime and Social Order in Contemporary Society. Chicago: The University of Chicago Press, 2002, especialmente Cap. 8 ―Crime Control and Social Order‖. 7 Há uma complexidade adicional para se entender o contexto, pois essas mudanças não são completas. Se-

gundo Garland (op. Cit., pgs. 168-169), na esfera penal o novo convive com o velho. No mesmo sentido, Minhoto aponta para uma ―convivência tensa entre um ethos racionalizador do sistema punitivo, que seria próprio da modernidade, e uma economia penal de excesso que seria própria da pós-modernidade‖ MINHO-TO, L. D. Excesso e Eficiência na penalidade contemporânea e expertise nacional Working Paper da Direito GV, disponível na internet (ver lista bibliográfica para endereço)

202 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

poder da mídia, em outros casos elas o incorporam ao discurso jurídico, ofe-

recendo uma justificativa para esse poder e legitimando-o. Tendo em vista

nosso objetivo e essas considerações sobre as construções jurídicas, dividi-

remos o texto em três partes.

Na primeira parte ofereceremos uma explicação sobre de que maneira

a mídia exerce seu poder, persuadindo a população e contribuindo para a

manutenção da sociedade do medo descrita acima. Nessa seção ficará mais

claro o papel da mídia na construção do contexto penal mais amplo, pano de

fundo de mudanças de política criminal e mudanças legislativas. Anote-se

que esse contexto, ainda que de modo mais sutil, também produzirá efeitos

na produção judicial. Na segunda parte mostraremos como o Direito Penal

possui o papel ambíguo a que nos referimos. Por último, teceremos algumas

conclusões sobre a relação entre Direito e poder a partir do discutido.

É importante saber como a mídia influencia as decisões jurídicas e a

percepção popular sobre a sua correção. Para realizar esta análise utilizare-

mos o aparato conceitual da retórica, disciplina que estuda como se processa

a persuasão de um auditório por um orador. No caso, a mídia assume a po-

sição do orador que busca persuadir o auditório composto pela massa.

A retórica distingue três modos básicos de persuasão8 através do dis-

curso9: (a) o ethos, que constrói uma identificação do orador (ou dos valores

que ele representa) com o auditório, dotando o primeiro de confiança e au-

toridade; (b) o pathos, que articula a tese defendida pelo orador com o con-

junto de valores tidos como inquestionáveis pelo auditório; e (c) o logos, que

diz respeito à argumentação propriamente dita, que busca as melhores res-

postas às questões que se apresentarem.

A mídia se utiliza de todos os três modos de persuasão. Com a ressal-

va de que eles aparecem interrelacionados de maneira intrincada na realida-

de, faremos um esforço didático para por em evidência como a mídia usa os

diferentes modos no exercício do seu poder. Daremos maior atenção às di-

mensões do ethos e do logos, por serem menos discutidas do que o apelo

emocional de pathos.

8 Uma explicação breve e clara sobre os modos de persuasão pode ser encontrada em REBOUL, Olivier.

Introdução à Retórica. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 47-49. Uma discussão mais detalhada e profunda, que baseou a nossa conceituação, pode ser encontrada em MEYER, Michel A Retórica. São Paulo: Ática, 2007, especialmente Cap. II. Por fim, como guia principal de estudo de retórica ver PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: A Nova Retórica. São Paulo: Martis Fontes, 2ª Ed., 2005. 9 Não trataremos aqui dos modos de persuasão para além do discurso (às vezes denominados extrínsecos), não

obstante a mídia frequentemente os utilize, como por exemplo, imagens chocantes, músicas e sons para ca-denciar a emoção, etc.

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 203

Com relação ao ethos, na construção da identificação com o auditório,

a mídia caminha em dois sentidos principais: (1) apresentação da própria

mídia como porta-voz da opinião pública; e (2) identificação da maioria com

a vítima do delito.

Ao se valer da opinião pública a mídia busca legitimar suas opiniões,

que passam a ter a força e o aval da maioria. Ao mesmo tempo, por se apre-

sentar apenas como uma porta-voz, ela tenta alcançar ares de imparcialida-

de e objetividade.

Porém, a mídia não simplesmente apresenta, mas condiciona e influen-

cia a opinião pública. Em primeiro lugar, porque o processo de definição das

notícias e da opinião pública está longe de ser objetivo. Existe parcialidade

tanto na forma pelo qual será revelada a notícia ou a opinião, quanto na pró-

pria seleção da notícia ou opinião a ser revelada. E em segundo lugar, por-

que dizer que uma tese é sustentada pela opinião pública já é oferecer um

argumento a favor desta tese.

De outro lado, a mídia se coloca ao lado da vítima e trabalha para que

a maioria se identifique com a vítima do delito10

. Narra-se a história trágica

de um cidadão comum, vítima de algum crime, cuja vida é parecida com a de

muitos. Além da identificação pela semelhança, essa narração serve também

para tornar a situação presente para o auditório, permitindo que o receptor

da informação possa se colocar no lugar da vítima. Desse procedimento sim-

ples, duas fortes consequências podem ser extraídas.

Primeiro, é despertado um sentimento de solidariedade para com a ví-

tima, que se manifestará na punição do criminoso. A pena é vista como um

meio da sociedade comunicar que se importa para a vítima. Segundo, há um

reforço da distância estabelecida entre o cidadão e o criminoso, visto como o

outro. Dado que a vítima e o criminoso são concebidos como diametralmen-

te opostos, ao se aproximar da vítima acaba-se por se afastar do criminoso.

A oposição e a exclusão são tão fortes que a preocupação com os direitos

dos criminosos torna-se uma desconsideração com a vítima. Daí a frase que

se tornou popular, “Direitos humanos para humanos direitos”.

Em relação ao pathos, o âmbito criminal torna o apelo forte e a per-

suasão fácil. As condutas objeto de tipificação criminal geralmente são vistas

como atentatórias a valores socialmente muito caros. A vítima personifica

esses valores e o crime, como ataque a vítima, é um ataque a tais valores. O

seu desrespeito gera uma angústia que demanda uma solução. Esta será, é

claro, a pena.

A violência, em especial, possui extremo apelo emocional. Será, por-

tanto, o alvo favorito da mídia. Nestes casos, a força da emoção permite que

se aponte não somente para a punição do criminoso, mas para a sua neutra-

lização. Tal resposta é eminentemente simbólica, pois, incapaz de produzir

10

Uma discussão sobre este fenômeno encontra-se em SANCHÉZ, op. Cit., p. 53 e seguintes

204 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

um aumento substancial da segurança, dá a sensação de controle da situa-

ção e elimina temporariamente a angústia.

Por fim, como qualquer crime afeta algum valor social, passa a se en-

tender que não existe crime sem vítima. No mínimo, a coletividade será tida

como vítima11

. Um ataque a um valor socialmente importante é sempre, em

algum grau, um ataque à sociedade.

Quanto ao logos, a mídia argumenta em dois níveis: (1) geral, caracte-

rizando a sociedade em que vivemos como insegura e demandando endure-

cimento; (2) específico, em que ela se posiciona sobre casos concretos, in-

cluindo quanto à solução que deve ser tomada.

Em linhas gerais, a força dos argumentos utilizados pela mídia assenta

em sua simplicidade, que é, contudo, simplória. São feitas caracterizações

simplificadoras da realidade e sobre elas constroem-se hipóteses aparente-

mente verossímeis. Tais argumentos são feitos sem qualquer ressalva ou

rigor e não buscam comprovação em dados empíricos, mas apenas em per-

cepções já distorcidas pela própria mídia.

Por exemplo, da identificação da maioria com a vítima conclui-se que o

que aconteceu com a vítima poderia acontecer com qualquer um. Afinal, o

que impede que isso se repita? Este é o principal raciocínio a contribuir para

o aumento da sensação de insegurança e espetacularização do medo. Com

isso, a percepção da criminalidade acaba por situar-se muito além de sua

freqüência estatística.

Outro argumento freqüentemente utilizado, dessa vez para justificar o

endurecimento, é o de que a tolerância das pequenas condutas criminosas

contribui para o aparecimento das grandes, assim como se tolerarmos os

pequenos criminosos eles se tornarão cada vez piores por conta da impuni-

dade, até se tornarem realmente perigosos.

Tanto sob uma ótica valorativa, de moral e justiça, quanto consequen-

cialista, voltada a construção de uma política criminal, as questões se colo-

cam de maneira mais complexa. Um pouco de reflexão basta para notar o

quanto é difícil querer resolver todos esses problemas simplesmente através

de punição mais drástica e generalizada. Além disso, os poucos casos esco-

lhidos pela mídia e noticiados até a exaustão dificilmente podem constituir

uma amostra significativa que permita qualquer conclusão.

Mas são os casos narrados pela mídia o seu grande trunfo. Eles possu-

em o insuperável apelo da realidade e da concretude. Como sustentar uma

descrição mais branda perante esta tragédia bem aos nossos olhos? Ou ain-

da, como alguém pode querer ser brando diante de tal violação (pathos)?

Estas narrações, muitas vezes com acentuado viés, se posicionam so-

bre a culpa dos indiciados e denunciados e não raro tentam ridicularizar o

discurso jurídico. A prova ilícita, os parâmetros da dúvida razoável e a pre-

11

Nesse sentido, GARLAND, op. Cit.,. pg. 181

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 205

sunção de inocência são alvos comuns, pintados como obstáculos à realiza-

ção da justiça. Na próxima seção analisaremos dois casos em que o discurso

jurídico se defronta com o apelo da mídia.

Como já comentado na Introdução, as construções jurídicas são ambí-

guas em relação à mídia. Às vezes limitam seu poder, às vezes ajudam a

legitimá-lo. Como é possível sustentar essa ambigüidade? Não se trataria de

uma contradição?

Devemos lembrar que o problema central da dogmática jurídica é o da

decidibilidade dos conflitos sociais a partir de dogmas, mas que, ao abordar

esses problemas, os juristas não lidam com certezas, mas com incertezas

que se ampliam de modo controlado12. Neste processo, as decisões são jus-

tificadas quando observados os padrões dogmáticos hermenêuticos e argu-

mentativos.

Dadas as diferenças entre problemas sociais concretos, esses dogmas

e parâmetros podem apontar para sentidos diferentes do ponto de vista de

uma análise de Sociologia do Direito ou Criminologia (disciplinas zetéticas),

mas permanecer harmônicos de um ponto de vista dogmático. Ou seja, tal

perplexidade pode ser absorvida pelo Direito sem prejuízo de sua coerência

interna. Assim, são possíveis as mudanças estruturais incompletas no con-

texto penal, referidas na Introdução.

Nessa seção daremos um exemplo da atuação do Direito Penal em cada

sentido. Como exemplo de limitação, abordaremos o conceito de bem jurídi-

co e para a justificação trataremos do clamor público no Caso Nardoni.

A noção de que o Direito Penal protege valores socialmente muito ca-

ros, abordada quando tratávamos do pathos, também recebe um tratamento

dogmático, estando presente no conceito de bem jurídico. Contudo, em ter-

mos dogmáticos, essa idéia não serve para produção de apelo emocional

com a conseqüente ampliação da punição (seja em relação ao conjunto de

condutas tipificadas ou a dosimetria da pena).

Pelo contrário, a teoria do bem jurídico foi construída como um meio

de contenção da expansão do Direito Penal e legitimação da aplicação da

pena13. O princípio da insignificância penal (frequentemente invocado como

12

Conforme FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão,Dominação. 6ª Ed., São Paulo: Atlas, 2008. Para a questão da decidibilidade ver p. 63-66. Sobre os juristas trabalharem com incertezas e as ampliarem de modo controlado ver p. 26-27. 13

No sentido de que a teoria do bem jurídico busca a contenção do ius puniendi, ver FERNÁNDEZ, Gonzalo D. Bien Jurídico y Sistema del Delito – Un ensayo de fundamentación dogmática. Buenos Aires: B de F, 2004. Especialmente sobre as funções do conceito de bem jurídico ver p. 149-151

206 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

razão de decidir em julgados do Superior Tribunal de Justiça noticiados em

seu sítio eletrônico), por exemplo, justifica-se pela atipicidade da conduta,

dada a sua incapacidade potencial de afetar o bem jurídico protegido pela

norma penal.

A construção caminha no sentido de que os valores protegidos muitas

vezes não são afetados por condutas que parecem se enquadrar no tipo pe-

nal. Justamente o oposto do defendido pela mídia de que qualquer conduta

minimamente ofensiva deve ser criminalizada, para evitar que dêem ensejo a

condutas mais danosas (conforme explicação sobre o logos da mídia). Des-

tarte, a construção dogmática do bem jurídico limita o poder exercido pela

mídia.

Por outro lado, uma questão controvertida que geralmente surge

quando a mídia acompanha um processo penal é a dos fundamentos da pri-

são preventiva. Em casos violentos, que chocam a população, é comum haver

pressão popular pela prisão imediata dos suspeitos, indiciados ou denuncia-

dos. É o chamado clamor público14.

Recentemente, em 27 de março de 2010, foi julgado pelo Tribunal do

Júri, presidido pelo magistrado Maurício Fossen, um dos casos de maior re-

percussão na mídia dos últimos tempos, o Caso Nardoni. Tratava-se do as-

sassinato da menina Isabella Nardoni pelo seu pai, Alexandre Nardoni, e sua

madrasta, Anna Carolina Jatobá. Segundo a sentença, a menina foi esganada

pelos réus e depois jogada inconsciente pela janela do apartamento de Ale-

xandre. Os réus foram condenados por homicídio triplamente qualificado e

também por fraude processual, por terem tentado alterar o local do crime a

fim de induzir o juiz e os peritos a erro.

Com a ajuda da mídia, criou-se um intenso clamor público. Este foi,

em última instância, o fundamento para a manutenção da prisão preventiva

dos réus durante todo o processo e após a prolação da sentença. Na justifi-

cativa da prisão o raciocínio empreendido pelo juiz, em linhas gerais, foi o

seguinte: O clamor público pela prisão dos réus é tão intenso que se não for

atendido afetará a credibilidade do Poder Judiciário e, conseqüentemente, a

ordem pública. Como a garantia da ordem pública é um dos possíveis fun-

damentos para a prisão preventiva, pelo art. 312 do Código de Processo Pe-

nal, a prisão estaria justificada.

A mídia foi mencionada expressamente na sentença: “(...) diante da hediondez do crime atribuído aos acusados, pelo fato de envolver membros de uma mesma família de boa condição social, tal si-tuação teria gerado revolta à população não apenas desta Capital, mas de todo o país, que envolveu diversas manifestações coletivas, como

14

Sobre a controvérsia acerca do clamor público como fundamento para a prisão preventiva, ver SANGUINÉ, Odone. A inconstitucionalidade do clamor público como fundamento da prisão preventiva. In SHECAIRA, Sérgio Salomão Estudos Criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva. São Paulo: Método, 2001, p. 257-295

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 207

fartamente divulgado pela mídia, além de ter exigido também um enor-me esquema de segurança e contenção por parte da Polícia Militar (...), tamanho o número de populares e profissionais de imprensa que para cá acorreram, daí porque a manutenção de suas custódias cautelares se mostra necessária para a preservação da credibilidade e da respeitabili-dade do Poder Judiciário (...)”. (grifo nosso)

O magistrado citou ainda precedente do Supremo Tribunal Federal e

decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo sobre o mesmo caso

em grau de recurso, para fundamentar a manutenção da prisão. O que se

observa é a construção, pela jurisprudência, de uma tentativa de harmonizar

o clamor público com os fundamentos legalmente previstos para a prisão

preventiva. Criou-se um meio do atendimento ao clamor público fazer parte

da garantia da ordem pública.

Apesar das críticas, principalmente de índole constitucional, que even-

tualmente possamos fazer ao raciocínio do juiz, estamos diante de uma

construção jurídica que contempla e justifica o exercício do poder pela mídia

na definição da coação jurídico-penal. O cotejo do exemplo do Caso Nardoni

com o exemplo do bem jurídico deixa claro o papel ambíguo das respostas

que o Direito oferece ao poder da mídia.

A atuação da dogmática jurídica nos mostrou que se o poder é algo

que decide qual é o Direito, ao mesmo tempo o Direito é algo que limita o

poder. Por outro lado, o estudo revelou também que o poder, ao ser incor-

porado ao discurso jurídico, se justifica, ganha legitimidade e se reafirma

enquanto tal. Assim, apesar do poder decidir qual é o Direito, não nos parece

possível simplesmente tratar o Direito como um mero fruto do poder, como

poderia parecer numa primeira impressão equivocada.

Com o Direito posto e operando nem sempre há espaço para determi-

nadas escolhas. O clamor público gerado pela mídia para ser incorporado ao

Direito teve que receber uma justificativa jurídica, ainda que criticável. É cla-

ro que podemos pensar em casos em que o poder simplesmente determine o

Direito, como aconteceu em diversos regimes autoritários no passado. Mas

talvez devamos distinguir essas realidades, tratando a primeira como poder-

influência e a última por poder-determinação.

Vale dizer ainda que o exercício do poder, por sua vez, pode se dar no

sentido da consolidação do próprio Direito. Podemos pensar, por exemplo,

na mídia como um instrumento em prol da democracia, ajudando na divul-

gação da informação e no controle do processo eleitoral. Talvez falte atenção

(em parte por culpa da mídia, em parte por conta da população) às notícias

208 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

que tratam de decisões importantes, por conta do foco em questões penais

espetaculosas15

.

Com esse trabalho, de enfrentamento de uma questão prática e con-

creta, acreditamos ter aguçado nossa compreensão acerca de uma grande

lição teórica sobre o poder. Mas esperamos, principalmente, ter avançado

também em outra grande lição, talvez a maior, de Miguel Reale, a de que

devemos “Teorizar a vida e viver a teoria na unidade indissolúvel do pensa-

mento e da ação”.

BAJER, Paula. Processo Penal e Cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

FERNÁNDEZ, Gonzalo D. Bien Jurídico y Sistema del Delito – Un ensayo de

fundamentación dogmática. Buenos Aires: B de F, 2004.

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Deci-

são,Dominação. 6ª Ed., São Paulo: Atlas, 2008.

GARLAND, David. The Culture of Control: Crime and Social Order in Contem-

porary Society. Chicago: The University of Chicago Press, 2002.

LAFER, Celso. A Filosofia do Direito e Princípios Gerais: Considerações sobre

a pergunta “O que é Filosofia do Direito?” in Alaôr Caffé Alves et alli, O

que é Filosofia do Direito. São Paulo: Manole, 2004.

MEYER, Michel. A Retórica. São Paulo: Ática, 2007.

MINHOTO, L. D. Excesso e Eficiência na penalidade contemporânea e exper-

tise nacional Working Paper da Direito GV, disponível em

http://www.direitogv.com.br/interna.aspx?PagId=HTKCNKWI&IDCatego

ry=26&IDSubCategory=149

PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação:

A Nova Retórica. São Paulo: Martis Fontes, 2ª Ed., 2005.

REALE, Miguel. “A complexidade do tema” in Pluralismo e Liberdade. Rio de

Janeiro: Expressão e Cultura, 1998, Cap. XIII, O Poder na Democracia

(Direito e poder e sua correlação), p. 219-246

REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes,

2004.

15

Nesse sentido, escreve Paula Bajer que ―É curioso que, inicialmente, as questões submetidas ao Supremo Tribunal Federal despertavam o interesse da população, que comparecia aos julgamentos, aplaudindo ou rechaçando as teses defendidas. Esse fenômeno não tem lugar hoje. A Justiça afastou-se das pessoas e só alguns poucos advogados e diretamente interessados assistem às sessões, embora elas sejam públicas. Excep-cionam-se, é claro, os casos em que a imprensa aparece como intermediária entre os processos e a sociedade, transmitindo as informações e formando opinião que, depois, repassa aos que realizam o processo penal‖ BAJER, Paula. Processo Penal e Cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 32-33

RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010 209

SANCHÉZ, Jesús-María Silva. A Expansão do Direito Penal – Aspectos da polí-

tica criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: RT, 2002.

SANGUINÉ, Odone. A inconstitucionalidade do clamor público como funda-

mento da prisão preventiva. In SHECAIRA, Sérgio Salomão Estudos Cri-

minais em homenagem a Evandro Lins e Silva. São Paulo: Método,

2001, p. 257-295.

Jurisprudência (Sentença de Mérito do Caso Nardoni)

TJSP, Plenário II do 2º Tribunal do Júri da Capital, Juiz-Presidente Maurício

Fossen, julgamento em 27.03.2010, disponível em http://s.conjur.

com.br/dl/sentenca-nardoni.pdf

.

210 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010

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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 5, n. 2 jul/dez 2009 211

VOLUME 6

NÚMERO 2

JULHO-DEZEMBRO 2010

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Revista do curso de Direito e da Pós-Graduação

HOMENAGEM

AO CENTENÁRIO

DE MIGUEL REALE

VOLUME 6

NÚMERO 2

JULHO-DEZEMBRO 2010

JURÍDICASRaízes

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ISSN 1809-5119

• Direito Internacional sob a perspectiva do poder social e da coação jurídica em Miguel Reale

• Poder e Direito para Miguel Reale: o Estado Totalitário e o Estado Pluralista

• Diálogo de superação:Kelsen e Reale

• O Estamento Burocrático Brasileiro à luz da Filosofia de Miguel Reale

• Considerações sobre a teoria das fontes do direito em Miguel Reale e Herbert L. A. Hart

• Poder e nomogênese jurídica: bases para uma reflexão do campo jornalístico

• Direito, poder e interpretação: notas críticas sobreMiguel Reale e a função social do contrato no Código Civil

• A relação do abuso do poder econômico e a corrupção à luz do pensamento de Miguel Reale

• Sobre verdade e conjetura e o papel da linguagem na ontognoseologia de Miguel Reale

• O Poder no Positivismo Jurídico e em Reale

• Poder social e coação jurídica:o tridimensionalismo de Reale

• Breves pensamentos sobre Miguel Reale, o tempo e a Física contemporânea

• O poder da mídia e a ambiguidade do Direito Penal: limitação e justificação

Abrão Miguel Árabe Neto

Ana Paula Zavarize Carvalhal

Bruno Garrote Marques

Daniel de Andrade Lévy

Leonardo Passinato e Silva

Lucas Mastellaro Baruzzi

Luís Gustavo Haddad

Marcelo Karam Delbim

Priscila Sissi Lima

Renata Moura Gonçalves

Roberto Biava Júnior

Rui Carlo Dissenha

Victor Nóbrega Luccas

• O método jusfilosófico conjetural: as bases para o progresso da ciência e da filosofia

Guilherme Roman Borges