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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana O filósofo Michael Linn Eldridge (1941-2010) Ano II, número 4, 2011 ISSN: 1984-7157

Revista Redescrições, ano2, número 4, 2011

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Revista Redescrições -Revista on line do GT de pragmatismo, Ano 2, número 4

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Revista RedescriçõesRevista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana

O filósofo Michael Linn Eldridge (1941-2010)

Ano II, número 4, 2011ISSN: 1984-7157

Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados tratam de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas

ISSN: 1984-7157

Corpo editorial:Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo Cerasel Cuteanu – CEFAJames Campbell – Universidade de ToledoLeoni Maria Padilha Henning - Universidade Estadual de LondrinaMichel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes”Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte †Inês Lacerda Araújo - PUC-PRHeraldo Silva – UFPIJosé Nicolao Julião- UFRRJGregory Fernando Pappas - Texas A & M UniversityMarcelo Barreto - UFESMaria José Pereira - UCGAldir Carvalho Filho - UFMAVera Vidal - FiocruzRonie Silveira – UFRBReuber Scofano - UFRJSérgio Oliveira – Faculdade São Bento- RJ

ExpedienteREDESCRIÇÕESRevista do GT-Pragmatismo da ANPOFISSN: 1984-7157Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de CastroEditor executivo: Marcos Carvalho LopesLogo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr.Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: ManufatoFoto da capa: James Campbell

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Revista RedescriçõesRevista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana

O filósofo Michael Linn Eldridge (1941-2010)Ano II, número 4, 2011

SumárioEditorial 4

Notas & Comentários

A resposta para quem me chama de “relativista” - Paulo Ghiraldelli Júnior 6

Liberdade e individualidade nas grandes cidades: contribuições de Georg Simmel para o debate contemporâneo - Amana Rocha Matos 9

Artigos:

1. Justiça e igualdade em Ronald Dworkin - Fábio Oliveira 23

2. James, Rorty, Vattimo e a religião pós-metafísica – Cristiane Maria Marinho 30

3. Richard Rorty e a redescrição da sabedoria: - Marcos Carvalho Lopes 52

4. A Utopia Liberal de Richard Rorty - Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira 59

Tradução:

1. Um arco do pensamento- Robert Brandom 82

2. O giro neopragmatista - David. L. Hildebrand 90

3. Michael Linn Eldridge - James Campbell 100

Resenha:

DEWEY, John. Arte como Experiência. Tradução de Vera Ribeiro, Martins Fontes, 2010. – (Coleção Todas as Artes). 646 pág. - por Inês Lacerda Araújo 108

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Editorial

É com enorme prazer que apresentamos este último número de nosso segundo ano. Nesta edição o leitor encontrará artigos versando sobre temas caros à filosofia de uma maneira geral, e, em especial, ao pragmatismo, tais como religião na atualidade, a noção de experiência e linguagem, justiça igualitária, liberdade e muitos outros.

Na seção de notas e comentários, destinada a autores convidados, estão os textos de Paulo Ghiraldelli, “A resposta para quem me chama de “relativista””, e de Amana Matttos, “Liberdade e individualidade nas grandes cidades: contribuições de Georg Simmel para o debate contemporâneo”. O primeiro texto mostra de modo claro como Rorty escapa do relativismo através do entendimento causal da linguagem, mediante a qual diferencia sentenças intencionais de sentenças descritivas. O segundo apresenta a argumentação de um texto lapidar de George Simmel, publicado em 1903, no qual o autor descreve a sociedade contemporânea e seu apego à liberdade, e como o aumento da liberdade representa o aumento da solidão nos grandes centros urbanos.

Na seção de artigos o leitor encontra os textos de Fabio Oliveira, “Justiça e igualdade em Ronald Dworkin”, Cristiane Maria Marinho, “James, Rorty, Vattimo e a religião pós-metafísica”, Marcos Carvalho Lopes, “Richard Rorty e a redescrição da sabedoria: Ciúme de Platão, Ciúme de Proust”, e Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira “A Utopia Liberal de Richard Rorty”. No primeiro o autor apresenta as principais teses de Dworkin sobre a justiça igualitária e distributiva nas sociedades liberais. Cristiane Marinho mostra em artigo de fôlego como Vattimo, James e Rorty apresentam versões atualizadas das crenças religiosas, redescritas para o mundo atual. No terceiro artigo, Marcos traz a filosofia para o plano da psicologia ‘humano’ e mostra como a filosofia de Platão pode ser explicada a partir do ciúme de Platão por Homero. Não há nesse ciúme nada de depreciativo, mas como mostra Rorty através do conceito bloomiano de ‘angústia da influência’, o ciúme é o motor por trás da obra dos grandes autores. Por fim, Antonio Engelke brinda-nos com um artigo de fôlego sobre a filosofia política de Rorty, suas influências e debates, e também suas falhas.

Na seção de tradução, encontará “Um arco de pensamento” de Robert Brandom, “O giro neopragmatista” de David. L. Hildebrand, e, finalmente, “Michael Linn Eldridge” de James Campbell. O último texto foi apresentado na mesa redonda no 38th SAAP, em março deste ano, em homenagem a Michael Eldridge, falecido em outubro do ano passado. Conhecido por seu trabalho sobre Dewey, Tranforming Experience, Mike era membro do nosso corpo editorial. Mike participou de um dos encontros do Grupo de Trabalho Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof e ao longo desses anos manteve um diálogo estreito com seus membros. O texto de Hildebrand é certamente um texto que toca num ponto chave do debate Rorty e Dewey, a noção de experiência. Rorty defende que está noção tornou-se supérflua depois da virada linguística. Hildebrand argumenta, no entanto, que essa noção é fundamental para o pragmatismo e não pode ser abandonada. No primeiro texto, de Robert Brandom, o leitor encontra a leitura de Brandom da história da filosofia da mente de Rorty e de como ele abandona-a pelo pragmatismo.

Na seção de resenha o leitor encontra a resenha de Inês Araújo Lacerda sobre o livro de John Dewey, Arte como experiência, publicado pela primeira vez em sua íntegra no ano passado. Este livro certamente merece a atenção dos estudiosos do pragmatismo e da filosofia da arte, seja por que aborda a noção central da filosofia deweyana, experiência, seja por que apresenta um novo modo, pragmatista, de abordar as questões da estética.

Os editores

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Notas & Comentários

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A resposta para quem me chama de “relativista”

Paulo Ghiraldelli Júnior

Para os meus amigos Nicolao e Susana, estudiosos do relativismo

Como o pensamento pragmatista adota o perspectivismo, comum a James e a Nietzsche,

não é difícil encontrar aqueles que vêem nessa doutrina nada além do relativismo – a implicância

com Nietzsche e James tem história. A confusão entre relativismo e perspectivismo é comum entre

os que, vindo de tradições doutrinárias que falam na busca do absoluto, não consigam – ou não

queiram – ver a diferença entre uma postura e outra.

Para os meus adversários, quem adota a ideia de que temos melhores idéias se

consideramos o maior número de perspectivas – que é o perspectivista – é absorvido no time dos que

adotariam a ideia de que todas as perspectivas se equivalem – o que denominam relativista. Mas, é

claro, essa idéia está errada.

Um perspectivista acredita ser melhor não transformar o mundo num lugar em que a

pluralidade de visões é anulada por uma só visão, sem exame em cada caso. Um relativista, na conta

de meus adversários, também não; ele é aquele que tem consideração por todas as visões que se lhe

apresentam, mas as consideraria como equivalentes e, portanto, teria menos chances de justificativa

perante os que optaram de maneira diferente e, principalmente, oposta.

Os adversários do relativismo nem sempre percebem – e se percebem ficam bem quietinhos

às vezes – que esse personagem, o relativista, é uma invenção pouco plausível. Ninguém deixa de

optar sobre a maior parte das questões que são colocadas, e não é verdade que não tenhamos boas

justificativas para oferecer pelas nossas opções. Então, se é assim e se isso é razoável de se dizer,

qual o problema que faz alguns tão incomodados com o relativismo?

O que os incomodados com o relativismo dizem é que é um fato empírico que optamos

sempre e que é também aceitável ver que há boas justificativas para determinadas opções. Mas, eles

insistem que tais decisões são baseadas em justificativas que não se sustentam pelas próprias pernas,

uma vez que, no limite, uma justificativa pode se apresentar tão boa quanto a do lado contrário.

Sendo assim, a verdade associada à justificativa, que é o que Platão chamou de conhecimento, não

estaria de posse do relativista. Não tendo conhecimento, o relativista optaria e justificaria, sim, mas,

sem qualquer segurança. Dizendo isso, o adversário do relativista acaba concordando com o cético,

para quem a verdade é possível, sendo que aquilo que não é possível é o conhecimento.

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Eis aí o pântano: aquele que é o adversário do relativista termina por endossar o cético. E se

ele fica em desconforto assim, pode ser que volte ao dogmatismo para dizer que é mentira de

Nietzsche que “Deus está morto”. Então, esbraveja que há um absoluto. E complementa: o fato da

filosofia não encontrar o absoluto é uma questão de tempo. Vinte e cinco séculos é pouco.

Os pragmatistas não precisam ir por essa via. Concordo com Richard Rorty quando ele

reapresenta o “tudo é interpretação” de Nietzsche. As visões são sempre nossas, são interpretações,

claro. Mas isso não quer dizer que elas se equivalem e também não quer dizer que nossas

justificativas são sempre idiossincráticas a ponto de não podermos obter validade durável para elas.

Caso observemos o que temos para concretamente observar (não há razão para não aprendermos

nada com a Linguistic Turn), que é o uso de nossa linguagem, poderemos ver isso com certa

facilidade. O exemplo de Rorty, nesse caso, é significativo e feliz. Ele fala sobre dinossauros.

Rorty diz que quando comentamos sobre dinossauros, quando queremos descrevê-los,

podemos usar dois tipos de enunciados, e ambos podem envolver única e exclusivamente relações

causais – as relações causais são as relações que admitimos válidas em nossa ciência. É o que temos

no mundo sublunar! Falamos dos dinossauros levando em conta relações causais sob uma descrição

que diz respeito aos seus ovos; depois, falamos dos dinossauros levando em conta relações causais

sob uma descrição que diz respeito a nós. Ambas são descrições nossas e ambas são causais, mas a

primeira não pode ser alterada uma vez que dinossauros são dinossauros porque são ovíparos. Não

podemos falar de dinossauros não ovíparos. Algo não ovíparo parecido com o dinossauro não será

dinossauro. (Do mesmo modo que baleia parece peixe, mas é mamífero, não é peixe.). Agora, a

segunda descrição sempre poderá ser alterada, como vem sendo, pois estamos sempre modificando o

desenho que fazemos dos dinossauros (RORTY, 1998, p.97-98).

Assim, a questão toda é de levar em conta o uso da linguagem: se sabemos utilizar a palavra

dinossauro corretamente nos jogos de linguagem em que ela cabe, não criaremos problemas. Não há

razão para dizer aquilo que alguém com pendores metafísicos (ou que leu muito Platão ou Kant)

gostaria de dizer, por exemplo, que botar ovos é algo da coisa-em-si chamada dinossauro, enquanto

que o resto seria da coisa-para-nós chamada dinossauro. Fazemos isso, de vez em quando, porque

estamos acostumados a achar que temos de distinguir a descrição de ações intencionais da descrição

de ações não-intencionais. Chegamos até a dizer que a descrição de ações não intencionais é a

descrição do que é Real, imutável, enquanto que a descrição do que é intencional é a interpretação, o

mutável e, então, não propriamente o Real (o R em maiúsculo, aqui, é proposital). Podemos

distinguir essas descrições, claro, mas não temos que distingui-las a partir de uma distinção que as

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coloca em campos opostos, em reinos que as faz de espécies diferentes. Não precisamos criar um

reino para cada tipo de ação. Ambas são ações causais. “O dinossauro é ovíparo”(a) indica uma ação

de causa: ele, dinossauro, é a causa de seu ovo. O “dinossauro é um animal que conhecemos faz

pouco tempo”(b) indica uma ação de causa: ele, dinossauro, causou em nós uma idéia (que não

tínhamos antes das primeiras descobertas arqueológicas a respeito da Era dos Dinossauros). As

frases (a) e (b) são descrições, ambas. Acreditar que a constância da primeira e a volatilidade da

segunda nos dão condições de afirmar que há uma “coisa em si”, uma essência dinossáurica que

escaparia de ser uma descrição, que estaria para além da nossa linguagem, é o passo metafísico que

não precisamos dar. Se dermos esse passo, reintroduzimos a briga desnecessária que faz o metafísico

criar o relativismo para poder socar como um sparring. Pois se introduzimos a linguagem da

metafísica, haverá novamente o que é “interno”, “em si”, e o que é “externo”, “para nós”. Quando,

com as nossas descrições de eventos causais, já eliminamos o problema à medida que soubemos usar

corretamente a palavra “dinossauro” dentro de um jogo de linguagem em que o uso correto é o esse

mesmo, o que de fato fizemos, para que temos de voltar com o jogo de linguagem da metafísica?

Não digo que essa explicação toda é imune a objeções. Mas digo que, com Rorty, estou

convencido que alguém de boa vontade deixaria de lado essa coisa de “ele caiu no relativismo”.

Relativamente a ovos, a descrição de dinossauro é uma. Relativamente a nós, a descrição do

dinossauro é outra. Mas, em cada caso, temos uma descrição, ou seja, uma visão do assunto – uma

interpretação. Ei aí o perspectivismo: o que se entende como sendo dinossauro possui várias

descrições. Há várias perspectivas para que possamos olhar um dinossauro. Conforme o momento,

temos de lançar mão de uma e não de outra. Mas isso não me autoriza a dizer que uma delas daria o

dinossauro em-si e outra não, pois ambas são produzidas por mim enquanto usuário da linguagem na

qual a palavra dinossauro faz sentido segundo esse uso que mostrei. O outro uso, o do jogo de

linguagem da metafísica, não parece nos levar a bom caminho. Além disso, o jogo de linguagem da

metafísica torna o nosso jogo de linguagem comum estranho. Ora, às vezes é bom levar a sério

Montaigne, quando ele diz que “é insípida toda a sapiência que não se acomoda à insipiência

comum” (MONTAIGNE, 2004, p. 103).2

Referências

Rorty, R. Truth and progress. Philosophical papers III. Cambridge: Cambridgre University Press,

1998, p. 87-88.

Montaigne. Pequeno vade-mécum. Lisboa: Antígona, 2004, p. 103.

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LIBERDADE E INDIVIDUALIDADE NAS GRANDES CIDADES: contribuições de Georg Simmel para o debate contemporâneo

Amana Rocha Mattos*

RESUMO: O presente trabalho discute o importante texto de Georg Simmel “As grandes cidades e a vida do espírito”, escrito em 1903, trazendo seus pontos principais para pensar a experiência de liberdade no espaço urbano nos dias atuais. Desde sua publicação, esse texto se tornou uma referência na área das Ciências Sociais para o estudo da Modernidade, do individualismo e da subjetivação no cotidiano das metrópoles. Entendendo que esses assuntos constituem a base para a discussão de temas como a liberdade, a independência e a autonomia, articulamos os argumentos de Simmel com essas questões, trazendo também outros comentadores de seu texto. (Apoio: CAPES)

Palavras-Chave: Liberdade. Metrópoles. Modernidade. Individualismo.

ABSTRACT: The present work discusses “The metropolis and the mental life”, Georg Simmel's seminal 1903 text, using its main points to underline contemporary experiences of freedom in urban spaces. From its release, Simmel's text has become a reference in the social sciences for studies of Modernity, individualism and the subjectivities produced in daily metropolis life. Positing these themes as the ground for any significant discussion about freedom, independence and autonomy, we use Simmel’s arguments, and other authors that comment on his text, as a base toward thoughts about these topics. (Apoio: CAPES)

Keywords: Freedom. Metropolis. Modernity. Individualism.

.Introdução

A ideia de liberdade é, no mundo ocidental contemporâneo, uma noção central para

indivíduos e países. As discussões acerca do tema mobilizam pessoas, grupos e a sociedade como

um todo, orientam práticas governamentais e pautam as relações internacionais. Para a democracia, a

liberdade é um valor fundamental.

Como condição para a convivência democrática e pacífica entre os sujeitos, a liberdade

aparece como um valor importante na cidade. Entretanto, seu exercício é difícil e muitas vezes

gerador de conflitos, angústia e mal-estar entre os sujeitos que se veem às voltas com as constantes

* Psicóloga, Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquiso os sentidos que jovens contemporâneos têm de liberdade, a partir da revisão do conceito na teoria liberal e das críticas a esse conceito realizadas pela teoria crítica feminista e por autores da democracia radical. Tenho pesquisado também a construção do sentido de liberdade na sociedade Brasileira a partir do exame do período histórico da belle époque carioca, na passagem do século XIX para o XX. Email: [email protected]

negociações de limites implicadas na convivência humana. Para os sujeitos contemporâneos, a

liberdade configura-se como um termo que aglutina uma série de valores, expectativas e práticas.

Em trabalho anterior (MATTOS e CASTRO, 2008), tomamos a noção senso comum de liberdade

como uma formação discursiva de nosso tempo, e investigamos quais são os seus significados, que

condições subjetivantes da contemporaneidade ela exprime, percebendo que em muitos sentidos ela

se afasta das definições políticas e acadêmicas sobre o que vem a ser liberdade. Discutimos de que

forma a experiência de liberdade vem sendo significada e vivida por jovens cariocas, que problemas

surgem desse exercício, de que forma os sujeitos se sentem tocados por esses problemas. Ao

entender a liberdade, a independência e a individualidade como formações discursivas da

contemporaneidade que assimilam importantes concepções das teorias democrática, liberal e

pragmática, procuramos identificar os impasses subjetivos e da convivência com o outro, implícitos

e vivenciados na atualidade, entendendo tais impasses como tributários de uma concepção de mundo

liberal e calcada numa economia de mercado.

No presente trabalho, tomamos o texto “As grandes cidades e a vida do espírito” de Georg

Simmel, escrito em 1903, para refletirmos sobre a constituição psíquica do indivíduo do início do

século XX, habitante das grandes cidades, que se veem subjetivados pela convivência com

estranhos, pela exigência de autonomia, pelo imperativo da divisão social do trabalho e, acima de

tudo, que se veem envolvidos na promessa moderna de liberdade individual. Esse texto, de enorme

importância para as Ciências Sociais, propõe questões muito férteis para o campo da Psicologia, uma

vez que, embora já tenham se passado 108 anos do momento de sua produção, observamos as

metrópoles contemporâneas com problemas e questões tributárias do projeto de sociedade moderna.

Além disso, o texto descreve com grande sensibilidade os traços constitutivos da urbanidade e

civilidade de 1903 (como a indiferença, ou “atitude blasé”; a intelectualização das reações, a

objetificação dos vínculos e a onipresença do dinheiro permeando as relações...), o que nos faz

perceber, ao longo de sua leitura, que problemas enfrentados hoje nas grandes cidades guardam

profunda familiaridade com as questões narradas por Simmel, que tanto lhe chamavam a atenção.

Para complementarmos a discussão do trabalho, traremos textos de Gilberto Velho (1995) e

Hermano Vianna (1999) que se debruçam sobre discussões oriundas do clássico texto de Simmel,

contribuindo com exemplos e explicações que enriquecerão nossa exposição. Nosso propósito é

discutir as ideias centrais desses três textos e articulá-las com o problema da liberdade no mundo

atual, oferecendo um campo teórico mais amplo onde se possam pensar as implicações subjetivas da

valorização da experiência de liberdade na vida dos indivíduos. Para tanto, gostaríamos de fazer,

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inicialmente, uma breve apresentação da questão da liberdade, do valor que esta assume na

Modernidade e de como a democracia constitui o palco para o exercício das liberdades individuais

para, em seguida, trazer o texto de Simmel e seus comentadores.

1. A liberdade como valor moderno: um breve panorama

Num mundo hierarquizado como o da Idade Média, de posições sociais bem definidas e

relações de poder que se legitimavam pela vontade divina, as noções de tempo e verdade eram

eternizadas, tal como ilustra Tocqueville ([1840], 2000, p.38), autor francês que viveu na primeira

metade do séc. XIX: “O legislador pretende promulgar leis eternas, os povos e reis só almejam erigir

monumentos seculares e a geração presente se encarrega de poupar às gerações futuras o trabalho de

resolver seu destino.” Com a Modernidade, este cenário social se desmonta, e os papéis a serem

desempenhados pelos cidadãos já não são previamente definidos. No Estado moderno, a igualdade

submete todas as classes a uma mesma lei, o que permite um intercâmbio constante de costumes e

valores entre os diferentes grupos sociais. O outro já não está tão distante e a alteridade se estabelece

entre tipos de uma mesma espécie, a saber, a humanidade.

Todas as classes se comunicam e se mesclam todos os dias, se imitam e se invejam; isso sugere ao povo uma porção de idéias, de noções, de desejos, que ele não teria se as posições sociais fossem fixas e a sociedade imóvel. Nessas nações, o servidor não se considera jamais inteiramente estranho aos prazeres e aos trabalhos do amo, o pobre aos do rico; o homem do campo se esforça para assemelhar-se ao da cidade, e as províncias à metrópole. (TOCQUEVILLE, [1840], 2000, p. 45)

Neste corte radical com um passado arcaico e hierarquizado, a Modernidade estabelece um

sujeito universal, amplia a relação do indivíduo com o todo através da ideia de humanidade e torna a

filosofia, a ética e a cidade assuntos que dizem respeito a todos os indivíduos, e não mais a uma

casta ou classe exclusivamente. A esse respeito, Starobinski (1994) afirma que o século XVIII foi

responsável pela invenção do conceito e da experiência de liberdade. Reunindo, de um lado, o

pensamento Iluminista e sua busca por fundamentar uma lei da Razão, que não subjugasse o homem

aos poderes e caprichos de instâncias mundanas e que lhe desse liberdade para pensar, e, de outro, a

ascensão da burguesia na sociedade europeia inaugurando a relação livre com o prazer, o

crescimento e o trabalho desligados do pecado, o século XVIII forja a liberdade como algo a ser

buscado na relação do homem com o pensamento, com as artes, com o Estado e com a sociedade.

Segundo o autor:

no plano político, como no plano moral ou religioso, nada mais parece justificar a relação arbitrária entre a autoridade e os súditos obedientes. Como dirá Kant, os homens das Luzes

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resolveram não mais obedecer a uma lei externa: querem ser autônomos, submetidos a uma lei que percebem e reconhecem em si mesmos. (STAROBINSKI, 1994, p. 18)

A ideia de igualdade na Modernidade tem papel fundamental na democratização e

laicização da sociedade, tornando cada indivíduo por direito igual aos demais, isto é, cada um deve

obedecer às mesmas leis, tem as mesmas necessidades e os mesmos direitos que todos os outros.

Entretanto, a experiência da desigualdade econômica e social é vivida intensamente no cotidiano

europeu. Fatores como a industrialização emergente, o surgimento das grandes cidades e o

alargamento do fosso entre pobres e ricos, somados a uma nova percepção da liberdade, tornam a

Europa, e em especial a França, um caldeirão em ebulição em meados do século XVIII. Segundo

Starobinski (1994, p. 18), o ataque à liberdade na sociedade francesa estava em toda parte: “nas

insolências dos ricos, na falta de habilidade dos governantes, no recurso ao aparato opressivo do

poder. Descobre-se que a extrema liberdade de alguns atenta contra a liberdade de todos.”

A Revolução Francesa trouxe à cena os conflitos presentes no seio da sociedade, e seus

ideais – igualdade, liberdade e fraternidade – foram o mote das guerras contra a monarquia, a

submissão dos cidadãos à autoridade real, os privilégios do clero e da nobreza. Sustentando a

Revolução, o Iluminismo fornecia o pensamento sobre os direitos inalienáveis e naturais do homem,

particularmente os direitos à liberdade individual e à propriedade privada. Segundo Cassirer (1997,

p. 334), a filosofia francesa do século XVIII foi a primeira a proclamar a doutrina dos direitos

inalienáveis (elaborada pelos filósofos ingleses) com entusiasmo. “E ao proclamá-la dessa maneira,

inseriu-a verdadeiramente na vida política real, conferindo-lhe essa força de choque, essa potência

explosiva que se manifestou nos dias da Revolução Francesa.”

Ter direitos. E não apenas isso, mas conhecê-los e poder lutar por eles. Para Voltaire,

pensador iluminista francês, tal é o sentido de liberdade: “No essencial, em sua acepção mais

apropriada, a idéia de liberdade coincide com a dos direitos do homem. O que quer dizer, finalmente,

ser livre senão conhecer os direitos do homem? Pois conhecê-los é defendê-los.” (VOLTAIRE apud

CASSIRER, 1997, p. 336)

O pensamento Iluminista do século XVIII consolida a importância do domínio de si, a

autonomia do sujeito, e passa a visar o domínio do mundo, da natureza. A Física e a Matemática,

com a enunciação das Leis da Natureza, abrem a perspectiva inédita até então de controle e previsão

dos fenômenos naturais. Poder intervir no curso natural das causas e efeitos leva os pensadores do

século XVIII a tomar o conhecimento como o principal instrumento de ação do homem no mundo, e

a técnica daí proveniente como o caminho para o progresso e o desenvolvimento. “O porvir abre-se

para novas obras de arte, para novos empreendimentos utilitários, para as grandes reformas da ordem

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humana. Máquinas de tecer, máquinas a vapor, cidades ideais ou novas dramaturgias.”

(STAROBINSKI, 1994, p. 233)

É também no século XVIII que se firmam as bases para o individualismo. A preocupação

com as liberdades individuais, com os direitos à propriedade e ao lucro, a valorização, a partir da

consolidação da burguesia no poder, do trabalho como meio para se atingir a riqueza e do esforço

individual como motor do desenvolvimento são alguns dos fatores que fortaleceram e estabeleceram

o individualismo na Modernidade. A construção de uma dimensão íntima e privada, da experiência

do prazer, a vivência da solidão, bem como a legitimação do sujeito racional na filosofia, que por

meio apenas do pensamento poderia aceder à Verdade, contribuíram de maneira decisiva para o

individualismo, em termos econômicos, psicológicos e sociais, que tem início nos séculos XVII e

XVIII e adquire fôlego no século XIX, quando movimentos importantes como o Romantismo, o

desenvolvimento do capitalismo e do liberalismo, aliados à Revolução Industrial irão reforçar o

percurso do individualismo na Modernidade.

2. As cidades modernas como espaço privilegiado para o exercício da liberdade: contribuições

de Georg Simmel para pensarmos o sujeito urbano

Já no primeiro parágrafo de seu texto, Simmel afirma que “[o]s problemas mais profundos

da vida moderna brotam da pretensão do indivíduo de preservar a autonomia e a peculiaridade de sua

existência frente às superioridades da sociedade, da herança histórica, da cultura exterior e da técnica

da vida [...].” (SIMMEL, 2005 [1903]. p. 577). Para o autor, que proferia esta palestra (depois

transformada em texto) no ano de 1903, a constituição das grandes cidades como espaço privilegiado

de convivência e sociabilidade na passagem dos séculos XIX para XX é motivo de reflexão, e ele se

interessa por entender o homem que vive nessas cidades, seu espírito, seus sentimentos, sua maneira

de agir neste ambiente recente e até então pouco explorado na história da humanidade: as

metrópoles.

Segundo Velho, em comentário a esse texto de Simmel, o papel das cidades no surgimento

das mudanças socioculturais que se apresentam para o indivíduo moderno não é meramente uma

função de cenário, como um “receptáculo passivo”, mas funcionam como “produtora[s] de novas

formas de sociabilidade e interação social”. Esse papel ativo na constituição dos estilos de vida

urbanos se deve, como ressalta o autor, ao papel desempenhado pelo capitalismo nas mudanças

realizadas em todos os setores da vida social pós-Revolução Industrial. “Certamente foi uma das 13

maiores transformações na história da humanidade, e é neste quadro que se desenvolvem as

metrópoles moderno-contemporâneas.” (VELHO, 1995. p. 228).

A preocupação do sujeito em preservar sua autonomia (ou, podemos ler aqui, sua liberdade)

no intenso meio urbano ocorre, segundo Simmel, como uma maneira de se proteger de uma série de

características que a sociabilidade urbana lhe impõe: o desenraizamento, o encontro com incontáveis

estranhos diariamente, a exposição constante a estímulos de todos os tipos, a velocidade, o vai e vem

das calçadas... “Assim, o tipo do habitante da cidade grande [...] cria um órgão protetor contra o

desenraizamento com o qual as correntes e discrepâncias de seu meio exterior o ameaçam: ele reage

não com o ânimo, mas sobretudo com o entendimento [...].” (SIMMEL, 2005 [1903]. p. 578). O

entendimento aqui seria uma intelectualização das reações dos indivíduos das grandes cidades, que

se defenderiam assim das “coações” da metrópole. Ao intelectualizar aquilo que chega a si, o sujeito

evitaria submeter-se a emoções e afetos inconstantes, reagindo de maneira “lógica”, “racional”,

“intelectual” ao que se lhe apresenta.

Vemos aqui como o projeto filosófico da Modernidade, de autonomia do sujeito centrado e

racional, repercute nas práticas e nos valores compartilhados pelos habitantes das cidades grandes,

atualizando o estilo de vida urbano. Velho sublinha tal característica das metrópoles, afirmando que

essa maneira de viver nas cidades grandes, encontrável nas metrópoles já no início do século XX, é

“a expressão mais radical dos processos de individualização da modernidade”. (Velho, 1995. p. 232)

Uma das características marcantes da cidade grande – e muito valorizada por seus

habitantes até hoje – é a possibilidade oferecida aos indivíduos de que eles sejam “livres”, e muito

mais livres do que seriam numa cidade pequena ou no meio rural, por exemplo. Isso ocorre, em

grande medida, porque o estilo de vida urbano tem particularidades que estimulam e preservam a

privacidade e a individualidade de seus habitantes. Uma delas é o exercício da reserva do sujeito,

que evita estabelecer relações muito íntimas com personagens do seu cotidiano urbano (como

vizinhos, colegas de trabalho, transeuntes, prestadores de serviço com os quais interage, etc.). Esse

exercício da reserva, do recolhimento dos sujeitos para seus espaços privados de circulação, é uma

das principais notas características da experiência de urbanidade inaugurada com as grandes

cidades.

A outra particularidade do estilo de vida urbano – intimamente ligada à primeira – é a

indiferença, ou a atitude blasé. Como afirma Simmel

A essência do caráter blasé é o embotamento frente à distinção das coisas; não no sentido de que elas não sejam percebidas, como no caso dos parvos, mas sim de tal modo que o

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significado e o valor da distinção das coisas e com isso das próprias coisas são sentidos como nulos. (SIMMEL, 2005 [1903]. p. 581)

Esse fenômeno é descrito por Simmel como próprio à cidade grande. O autor afirma,

inclusive, que ele deriva de uma defesa fisiológica do indivíduo frente a tantos estímulos variados

que o atingem. Podemos pensar, entretanto, que se trata de uma subjetividade urbana que está sendo

educada, forjada, constituída a partir de condições de trabalho, de vínculos, de trocas inteiramente

novas, e que essa constituição se dá num outro registro que não o fisiológico – no registro da

subjetividade.

Talvez por isso mesmo, para marcar esse outro registro distinto do fisiológico em que se dá

a constituição do homem urbano, que Vianna faça questão de ressaltar o quanto o poeta Fernando

Pessoa distingue-se, em sua obra O Livro do Desassossego, da descrição do indivíduo blasé ou

indiferente de Simmel:

Em Fernando Pessoa a reação não cessa, sua vida mental continua no nível de agitação mais

intenso. Não se trata mais de um indivíduo que tem os mesmos limites nervosos daqueles que

Simmel pensava encontrar numa cidade pequena (e que por isso sofriam na transição para uma

cidade grande). Fernando Pessoa coloca em cena um outro tipo de indivíduo, que pode reagir

intensamente a vários estímulos ao mesmo tempo, aceitando o desafio da metrópole e propondo um

atalho para o desenvolvimento de novas ‘culturas subjetivas’. (VIANNA, 1999. p. 112)

Ora, se tal atitude é possível e nos chega através da arte, certamente não estamos falando, ao

pensarmos o homem urbano, de um efeito fisiológico, mas sim de um produto, de uma montagem,

de uma construção de um novo tipo de pensamento da cultura moderna. É justamente porque as

características dessa nova “vida do espírito” (reserva, autonomia, indiferença) são uma produção

forjada no contexto social e econômico das grandes cidades, e não uma modificação das condições

fisiológicas dos habitantes do espaço urbano, que podemos encontrar sujeitos que pensam a cidade e

a habitam de outra maneira, como o faz Pessoa em sua poesia, por exemplo.

Ainda assim, compartilhamos da tese principal de Simmel, de que a cidade moderna produz

e estimula a liberdade, a individualidade, a autonomia de seus habitantes. E ao fazê-lo, cria códigos

de conduta, comportamentos, estilos de vida que não apenas preservam tais qualidades subjetivas,

mas também as tornam possíveis. Com isso, um dos principais valores da Modernidade, a liberdade,

atravessou o século XX e chega ao século XIX como algo a que todos os cidadãos aspiram em suas

vidas: a liberdade de poder fazer o que quiser, e se realizar através de escolhas, alcançando assim a

liberdade. Esse sentido de liberdade é o que é afirmado pelo pensamento liberal, e que foi nomeado

por Isaiah Berlin (2002) como liberdade negativa.

15

Além de tratar das modificações subjetivas que se passam no período em que escreve,

Simmel se preocupa também com as possíveis consequências da valorização das qualidades do

homem urbano na convivência no espaço urbano, seja para a vida em comum nas cidades, seja

psicologicamente. O trecho seguinte ilustra com clareza, nas palavras do autor, essa dualidade, ou o

“reverso dessa liberdade”:

Pois a reserva e indiferença mútuas, as condições espirituais de vida dos círculos maiores, nunca foram sentidas tão fortemente, no que diz respeito ao seu resultado para a independência do indivíduo, do que na densa multidão da cidade grande, porque a estreiteza e proximidade corporal tornam verdadeiramente explícita a distância espiritual. Decerto é apenas o reverso dessa liberdade se, sob certas circunstâncias, em nenhum lugar alguém se sente tão solitário e abandonado como precisamente na multidão da cidade grande; pois aqui, como sempre, não é de modo algum necessário que a liberdade do ser humano se reflita em sua vida sentimental como um sentir-se bem. (SIMMEL, 2005 [1903]. p. 585)

Da perspectiva de Simmel, no início do século XX, a solidão e o abandono seriam o preço

que a liberdade cobraria dos cidadãos pela vida nas metrópoles. Ou, como ressalta Velho, o

anonimato e a fragmentação da experiência social (VELHO, 1995. p. 229). Para os sujeitos,

preservar a liberdade seria um projeto de vida que admitiria a fragmentação das relações,

aumentando a sensação de desafiliação dos sujeitos. Essa constatação de Simmel é bem interessante,

pois levanta uma questão a respeito do gozo da liberdade individual que não costuma ser

suficientemente abordada, especialmente a partir do referencial da teoria liberal, onde a liberdade é

valor último a ser buscada pelos indivíduos e pelas nações, e é colocada como garantia de realização,

plenitude e liberdade.

Ao enfatizar que a experiência da liberdade individual não é acompanhada por um “sentir-

se bem”, Simmel aponta para os efeitos indesejáveis da liberdade – que demanda um

desenraizamento, um destacamento do sujeito das tradições, dos costumes geracionais e das relações

mais coletivas, de codependência e solidariedade. Mais do que uma aventura individual, a

experiência de liberdade nas grandes cidades implica uma negação de tudo o que não afirme o

indivíduo (independente e autônomo) como aquele que pode gozar da vida urbana. Esse

desenraizamento é realizado por cada um cotidianamente, e reafirmado nas práticas que colocam o

homem como senhor de seu destino2, mas não produz bem-estar. Mas do que Simmel estaria falando,

a que tipo de sofrimento subjetivo ele estaria se referindo, então, se a liberdade individual é um valor

tão central nas cidades modernas?

As mudanças nos modos de vida e de produção que a urbanização promove, que

ressaltamos no início desse artigo, estão intimamente associadas com o sistema capitalista. Ao

contrário de muitos pensadores do seu tempo que se dedicavam a elogiar as maravilhas do progresso

16

da ciência e as conquistas na cidadania promovidas pela democracia, Simmel é profundamente

tocado pelos efeitos que esse novo modo do indivíduo viver, se comportar e se pensar, ressaltando as

características opressivas que a onda de valorização da liberdade individual produz. As relações

entre as pessoas se tornam profundamente marcadas pelo distanciamento e pelo anonimato, e essas

mudanças na sociabilidade não se introduzem sem um custo psíquico, subjetivo. Além disso, a

objetificação das relações produzida pelo dinheiro, como iremos discutir adiante, reifica o

afastamento entre os sujeitos pelo custo e pela utilidade das relações.

Se nos descolarmos do momento histórico discutido por Simmel e nos voltarmos para nossa

sociedade contemporânea, percebemos que as indagações que inquietavam o autor parecem ser

ignoradas no cenário atual. Mas o termo “ignoradas” aqui deve assumir uma conotação muito mais

próxima da noção de recalque psicanalítico, de defesa psíquica em que o sujeito mantém

inconscientes certas representações, do que de desconhecimento ou desconsideração intencional.

Atualmente, a liberdade individual é tratada como a solução para todos os problemas que se

originam na relação com o outro. Não devemos ignorar que a consolidação da cultura do consumo e

da economia de mercado se deu no intervalo de um século que nos separa do texto de Simmel. Ainda

assim, acreditamos que haja profundas similaridades entre o cenário descrito e pensado pelo autor e

este em que nós vivemos. Percebemos uma notável diferença entre a exacerbação de certas

características na reflexão que Simmel realizou de seu tempo e a que vemos ser feita, de maneira

geral, sobre a liberdade e a individualidade no contemporâneo. Voltaremos a essa questão mais

adiante.

Em relação à metrópole moderna discutida por Simmel, ela põe em cena a igualdade dos

cidadãos perante a lei, assegurando a possibilidade de que cada um possa trilhar sua própria história,

traçar seu próprio futuro, e descolar-se da tradição. Por outro lado, é justamente essa “desorientação”

constitutiva das relações sociais que realça o sentimento de inadequação, de estranhamento, de

inconformidade tão presentes entre os sujeitos modernos.1 Como afirma Velho, “Na sociedade

moderna o alto nível de especialização se, por um lado aumenta a aparente liberdade de escolha, por

outro diminui, no mundo do trabalho, o campo possível de experiências individuais.” (VELHO,

1995. p. 229)

Esse descolamento da vida dos sujeitos de uma suposta tradição se dá no processo de

constituição das cidades, no projeto de consolidação de uma sociedade moderna. Como ingrediente

principal deste processo, temos a ascensão da economia capitalista e a divisão social do trabalho, em

que a especialização dos trabalhadores desvincula o homem de uma compreensão e de uma

17

integração mais plena do processo de produção e do trabalho em geral, tornando o indivíduo

especialista em determinada função pontual, específica. Simmel fala do desenvolvimento, na cultura

moderna, do “espírito objetivo” (SIMMEL, 2005 [1903]. p. 588), isto é, da importância que a técnica

e a especialização adquirem na cidade, em detrimento dos vínculos pessoais e tradicionais. E se há

um ingrediente que corporifica essa mudança e esse novo “espírito objetivo”, esse ingrediente é o

dinheiro: Na medida em que o dinheiro compensa de modo igual toda a pluralidade das coisas; exprime todas as distinções qualitativas entre elas mediante distinções do quanto; na medida em que o dinheiro, com sua ausência de cor e indiferença, se alça a denominador comum de todos os valores, ele se torna o mais terrível nivelador, ele corrói irremediavelmente o núcleo das coisas, sua peculiaridade, seu valor específico, sua incomparabilidade. (SIMMEL, 2005 [1903]. p. 581-582)

O valor das coisas – e não só das coisas, mas dos serviços, dos vínculos, das pessoas –

ganha, assim, uma medida comum, através da qual se pode compará-las. Neste cenário, é importante

ressaltarmos, a concepção de liberdade difundida amplamente na sociedade aproxima-se cada vez

mais dos valores defendidos pelo liberalismo econômico, como discutimos exaustivamente em

trabalhos anteriores (MATTOS, 2011, 2006). Assim, ao almejarem a liberdade para si próprios, os

sujeitos urbanos agarram-se a valores claramente derivados do vocabulário econômico: desejam a

liberdade de escolha (a se realizar no consumo), a independência pessoal (a se concretizar em bens

materiais e na não dependência do outro para alcançar sua estabilidade de vida), a realização pessoal

(materializada em bens e serviços a serem consumidos), etc. Ainda mais importante do que

percebermos a promessa do liberalismo econômico implícita em cada um desses desejos modernos, é

entendermos que essa aparente “evidência” do que deve querer e buscar um indivíduo para ser feliz

tem suas raízes no discurso econômico vigente, que pretende objetivar as relações a partir de um

referencial comum. Como resume Simmel, “Pois o dinheiro indaga apenas por aquilo que é comum

a todos, o valor de troca, que nivela toda a qualidade e peculiaridade à questão do mero ‘quanto’.”

(SIMMEL, 2005 [1903]. p. 579)

Considerações finais

A valorização da liberdade individual em nossa sociedade contemporânea é um fenômeno

que se observa nas diferentes gerações, e percebemos que ela se dá, de maneira geral, através da

expectativa de que pela via da liberdade (na realização de seus gostos, desejos e escolhas) o

indivíduo alcançará a felicidade.

18

Muitas são as questões que se colocam a partir dessa forte expectativa de realização

individual pela liberdade. Dentre elas, destacamos as dificuldades na convivência com o outro e na

aceitação de diferenças, que potencializam uma série de conflitos que podem ser observados nos

níveis pessoais e coletivos de nossa sociedade. Além disso, percebemos que pouco se problematizam

as consequências do exercício da liberdade individual: assim como a discussão sobre os problemas

implicados na definição dos limites não parece ganhar grande destaque hoje, a tematização do mal-

estar que acompanha a liberdade e das dificuldades do seu exercício é minimizada, dando-se

destaque à valorização dessa experiência como algo que qualifica o indivíduo em nossa sociedade.

O espaço em que a experiência de liberdade se dá na contemporaneidade é, eminentemente,

o espaço urbano. Pensar a construção da subjetividade contemporânea significa refletir sobre os

usos, as apropriações e sobre os conflitos que se dão nesse espaço. Nesse sentido, as contribuições

de Georg Simmel se mostram profundamente atuais para estimular e contribuir com essa reflexão.

Neste trabalho, exploramos e organizamos as ideias apresentadas por Georg Simmel em seu

texto “As grandes cidades e a vida do espírito”, articulando-as às contribuições de seus

comentadores, acerca da experiência subjetiva do espaço urbano, dos valores e das relações que aí se

praticam e atualizam, sempre procurando perceber de que maneira o autor, ao falar do início do

século passado, também está falando de problemas que se impõem a nós e a nossas metrópoles

contemporaneamente. Isso é possível dado que ele escreveu sobre questões que, a nosso ver, se

acirraram, se exacerbaram e se tornaram mais críticas na atualidade, estando muito distantes de

desaparecer enquanto problemas. Seja na indiferença vivida ao extremo na dinâmica das cidades,

seja na violência contra os grupos menos favorecidos economicamente, na tolerância sempre tênue

no convívio com a diferença nos espaços públicos ou comuns, ou na profunda alienação dos

indivíduos em seus espaços privados, em todos esses problemas podemos identificar as temáticas

trabalhadas por Georg Simmel em seu texto de 1903. Cabe a nós pensá-las, a partir da Psicologia,

com o auxílio de um referencial teórico que não isole ainda mais os sujeitos em suas experiências,

tantas vezes angustiantes, na cidade, mas que procure entender o momento atual à luz de discussões

mais amplas, no campo da economia, da sociologia e da história. A nosso ver, o texto de Georg

Simmel traz um importante alerta para os estudos psicológicos: que não devemos tomar como

evidente a experiência individual na cidade, sem pensar o contexto em que essa experiência se

consolidou e o percurso que percorreu até os dias atuais.

19

NOTAS1. Nesse sentido, vale ressaltar a intensa produção literária e filosófica do existencialismo no século XX, que

tematizou principalmente a liberdade como experiência inerradicável do homem moderno e urbano, assim como o seu sentimento correlato de angústia (ou a “náusea” sartriana), uma vez que, para os existencialistas, a experiência da liberdade é sempre desconcertante, e está sempre lançando o homem no vazio da indeterminação.

2. O caráter eminentemente masculino da noção de indivíduo, assim como dos conceitos de liberdade negativa, independência e autonomia, tem sido repetidamente denunciado e explicitado pela teoria crítica feminista. Para uma discussão aprofundada dessa questão, ver Coole (1993) e Hirschmann (2003).

REFERÊNCIAS

BERLIN, I. Dois conceitos de liberdade. In: I. Berlin, H. Hardy, & R. Hausheer (Eds.), Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios / Isaiah Berlin (pp. 226-272). São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

CASSIRER, E. A filosofia do Iluminismo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.

COOLE, D. Constructing and deconstructing liberty: a feminist and poststructuralist analysis. Political Studies, XLI, pp. 83-95, 1993.

HIRSCHMANN, N. The Subject of Liberty: Toward a Feminist Theory of Freedom. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2003.

MATTOS, A. R. Liberdade, um problema do nosso tempo: os sentidos da liberdade para jovens no contemporâneo. Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

______. Fazer escolhas, ‘ser você mesmo’, ‘ter personalidade’: um estudo sobre a experiência de liberdade de jovens cariocas na contemporaneidade”. Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.

MATTOS, A. & CASTRO, L. Ser livre para consumir ou consumir para ser livre? Psicologia em Revista, v. 14 n. 1, pp. 151-170, 2008.

SIMMEL, G. As grandes cidades e a vida do espírito. In: Mana – Estudos de Antropologia Social. V. 11 nº 2, out., pp. 577-591, 2005/1903. STAROBINSKI, J. A invenção da liberdade, 1700 - 1789. São Paulo: Editora da UNESP, 1994.

TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. Vol. II.São Paulo: Martins Fontes, 2000/1840.

VELHO, G. Estilo de vida urbano e modernidade. Estudos Históricos, nº 16: Cultura e História Urbana. v. 8, jul-dez, pp. 227-234, 1995.

20

VIANNA, H. Ternura e atitude blasé na Lisboa de Pessoa e na Metrópole de Simmel. In: G. Velho (org.). Antropologia urbana: cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

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Artigos

JUSTIÇA E IGUALDADE EM RONALD DWORKIN: o leilão hipotético e a divisão igualitária de recursos

Fabio Alves Gomes de Oliveira*

RESUMO: O tema da igualdade tem sido central na discussão desenvolvida na filosofia política dos últimos tempos. De especial interesse no contexto desse debate, a relação estabelecida entre o conceito de justiça e o próprio conceito de igualdade se apresenta como alvo central, na medida em que a questão da distribuição justa em uma sociedade também se coloca. Em outras palavras, trata-se de perseguir o foco fundamental de uma teoria igualitarista da justiça. Neste trabalho pretendo analisar mais precisamente a proposta oferecida por Ronald Dworkin, no que diz respeito ao enfoque da justiça sobre a distribuição igualitária de recursos.

Percebendo a importância das noções de participação cívica, desenvolvimento comum de normas, mas rejeitando os aportes como a noção de bem comum básico, Dworkin propõe um novo modelo para se compreender a esfera da igualdade na justiça liberal. Ainda sob o prisma da distribuição igualitária dos bens, e sem abrir mão do que tocam nossos anseios mais básicos sobre a justiça distributiva, este trabalho percorre a esfera da igualdade de recursos desenvolvida por Dworkin, com o propósito de analisar até onde sua teoria poderia, de fato, vislumbrar o melhor caminho para a construção de uma sociedade mais justa. Ao final deste trabalho pretendo ser capaz de apresentar a proposta da teoria dos recursos e, com isso, suscitar seus ganhos e possíveis limites. Palavras chaves: Dworkin. Igualdade de Recursos. Justiça Liberal.

ABSTRACT: The theme of equality has been central to the discussion developed in political philosophy in recent times. Of particular interest in this debate, the relation between the concept of justice and the concept of equality is presented as a central target, in as much as the question of equitable distribution in a society also arises. In other words, it is pursuing the fundamental focus of an egalitarian theory of justice. In this article I intend to examine more precisely the proposal offered by Ronald Dworkin, with respect to the focus of justice on the equal distribution of resources.

Realizing the importance of notios of civic participation, development of commonstandards, but rejecting the contributions as the basic notion of common good, Dworkin proposes a new model for understanding the sphere of equality in liberal justice. Even through the prism of equal distribution of property, and without giving up what touches our most basic desires of distributive justice, this work covers the sphere of equality of resources developed by Dworkin, with the purpose of considering how far his theory could in fact, envision the best way to build a fairer society. At the end of this article, I intend to be able to present the proposal of the theory of resources and thereby raise its earning potential and limits. Keywords: Dworkin. Equality of Resources. Liberal Justice.

1. Introdução

Neste trabalho procurarei investigar o conceito de igualdade sublinhado na teoria de Ronald

Dworkin. Defendendo a adoção da igualdade de recursos como a melhor esfera a ser resguardada

neste conceito, a tese central oferecida pelo autor propõe que uma distribuição equitativa de bens é

* Doutorando do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRJ; assessor e pesquisador do Núcleo de Inclusão Social da UFRJ. 23

justa quando satisfaz algumas premissas que promovam fundamentos sólidos para a esfera da

igualdade eleita: a distribuição equitativa dos recursos disponíveis. Dentre os aspectos oferecidos por

sua teoria, Dworkin se apóia na idéia de que as pessoas são responsáveis pelas escolhas que fazem

em suas vidas. No entanto, o próprio autor admite que esta premissa não é suficiente para uma

distribuição justa de bens. Isto porque Dworkin também está preocupado na influência determinante

que atributos naturais, tais como o talento e a inteligência, podem ter frente à disposição dos recursos

em uma sociedade.

Portanto, é a partir da igualdade de recursos que Dworkin procura superar os impasses que,

segundo ele mesmo comenta, John Rawls não conseguiu. Este comentário pode ser verificado logo

em 1975, no seu artigo ― The original position. Neste trabalho Dworkin se opõe à Rawls em

diversos pontos, dentre eles, ao procedimento de representação rawlsiano.

O conceito de igualdade trazido por Dworkin se traduz basicamente na disposição de

recursos que as pessoas devem possuir para que possam realizar/implementar suas escolhas pessoais.

Naturalmente, este tipo de argumento contrafático utilizado pelo autor é herança do próprio John

Rawls. No entanto, o mecanismo do contrato social só é utilizado quando Dworkin para tentar nos

convencer de que a esfera da igualdade eleita pela sua concepção de justiça é a mais apropriada. É

com Ronald Dworkin que retiramos o véu da ignorância que cobria nosso olhar do mundo para o

mundo e passamos a ocupar um lugar onde nós, habitantes desse espaço e tempo, desejamos realizar

uma divisão justa dos recursos que estão disponíveis. Resta-nos saber, contudo, como Dworkin irá

definir e defender os critérios que determinarão a distribuição justa desses bens. O leilão começou.

2. A igualdade de recursos

“What is equality? I and II”, artigos publicados em 1981, marcam os primeiros passos para

o surgimento da teoria da igualdade de recursos de Dworkin. Com a idéia inicial bastante semelhante

àquela percorrida por Rawls, Dworkin critica a posição utilitarista de justiça constatando que o bem-

estar nunca pode ser utilizado como o único critério para uma análise social bem sucedida.

A igualdade de recursos defendida por Dworkin se configura, sobretudo, a partir de dois

princípios básicos que permeiam toda a sua teoria da justiça: escolha e responsabilidade. A escolha

como um princípio norteador fundamental tem o papel de esclarecer o que, de fato, deve ser

distribuído na sociedade com a finalidade de refletir as escolhas das partes envolvidas. Este princípio

permite uma avaliação sobre a relação entre a igualdade e a liberdade na distribuição das riquezas. O

24

intuito de Dworkin é demonstrar que uma distribuição idêntica de riquezas não pode ser

necessariamente traduzida como uma distribuição justa. Enquanto isso, o princípio da

responsabilidade implica na responsabilidade individual que cada qual tem sobre o sucesso de sua

própria vida. Trata-se de um princípio relacional no qual cada indivíduo deve ser responsável pelas

escolhas que fez e faz no decorrer de sua vida. Resta ao governo a criação de mecanismos para que

os cidadãos alcancem os objetivos refletidos outrora nos planejamentos e opções disponíveis.

Para defender e esclarecer como se daria o funcionamento de uma sociedade baseada na

igualdade de recursos, Dworkin, bem como Rawls, utiliza uma situação hipotética. Em Dworkin, a

situação se configura em um cenário onde um grupo de pessoas encontra-se em um local com

recursos naturais suficientes para a sobrevivência de todos. Sabendo da indeterminação do tempo

que essas pessoas podem viver no lugar, um acordo é feito: ninguém possui direito prévio a nenhum

dos recursos disponíveis. Ou seja, não há nenhum recurso que seja exclusivamente destinado a

qualquer um dos indivíduos, por qualquer razão que seja. A partir desse cenário, Dworkin cria um

modelo de divisão igualitária e legítima dos bens disponíveis em uma sociedade real. Mas como

fazer com que a divisão tenha uma validade do que compreendemos por justiça?

O problema a ser enfrentando por Dworkin é de como viabilizar um modelo capaz de

distribuição equitativa desses recursos. E é a partir do livro A virtude Soberana que sua teoria

igualitária de recursos finalmente ganha corpo. O autor acredita que a virtude soberana de uma

sociedade política está diretamente relacionada ao caráter igualitário que a mesma possui. A

igualdade aqui passa a ser pensada não apenas como um valor compatível com a liberdade, mas,

sobretudo, com os recursos que cada cidadão possui a sua disposição.

O envy test, ou teste da cobiça, é inserido por Dworkin com a finalidade de validar sua

proposta. A inserção deste conceito emerge com o propósito de garantir uma divisão pública dos

bens disponíveis na sociedade. Este teste teria o propósito de avaliar a distribuição da seguinte

forma: ao final da divisão dos recursos, se algum integrante preferir o bem adquirido por outro a

divisão dos recursos não pode ser tida como igualitária. Este artifício deveria oferecer, segundo

Dworkin, um meio de impedir que a divisão dos recursos privilegie algum segmento das partes

envolvidas. Mas como os representantes dessa sociedade poderiam achar uma alternativa para uma

divisão mecânica desses recursos?

É preciso esclarecer um ponto fundamental antes de elaborar com mais profundidade a

divisão dos recursos em Dworkin. É necessário dizer que o autor está imaginando uma variedade de

recursos plenamente disponíveis para seus indivíduos – numa ilha deserta. Os indivíduos desta

25

sociedade são provenientes de um náufrago. E por essa razão, o desfecho proposto por Dworkin é

caracterizado de forma que cada indivíduo tenha posse de um número considerável e igual de

conchas. Essas conchas são utilizadas como fichas para um leilão - um método que busca mensurar

os recursos necessários para cada vida em particular, observando, sem dúvida, o peso de cada

recurso adquirido por um indivíduo em relação aos demais cidadãos.

3. O leilão igualitário inicial

O leilão, para a teoria de Dworkin, representa o artifício entre o mercado de bens

disponíveis e a divisão dos recursos entre os participantes. Para o autor, não devemos confiar apenas

nas leis da disposição de mercado para se alcançar um ideal de igualdade social. Isto porque,

segundo o autor, o mercado em si deixa de fora um importante atributo social a ser considerada por

uma proposta mais abrangente, uma teoria da justiça: as condições dos participantes detentores de

recursos para aquisição dos bens disponíveis à compra. O mercado consiste, nesse sentido, numa

ferramenta que possui duas propriedades: (i) um mecanismo de correção da desigualdade de recursos

gerados a partir de escolhas individuais e; (ii) o papel de demonstrar que o motivo da diferença de

riquezas entre as pessoas não pode ser a diferença de talentos naturais1, mas as contingências das

escolhas de cada um. A partir desse esclarecimento, Dworkin tenta provar que sua opção é a mais

igualitária possível quando nos convida a imaginar novamente a ilha deserta. Segundo ele, um leilão

de bens jamais daria certo em uma ilha deserta ou evitaria a cobiça de seus participantes ou, até

mesmo, jamais teria conseguido adeptos para a solução da distribuição das riquezas, se todos não

dispusessem de uma mesma quantidade de conchas no início do leilão – o leilão igualitário inicial.

O caráter de igualdade inicial no leilão se trata de um artifício que só pode conter a própria

igualdade durante o acontecimento do próprio leilão. Já com a finalização do leilão, o que prevalece

entre as relações dos indivíduos é o livre comércio. Isto significa dizer que, em pouco tempo, a

igualdade de recursos almejada e alcançada na etapa do leilão será desfeita. E para isso, Dworkin

constrói outra etapa para sustentar sua defesa em torno da igualdade de recursos: O seguro.

4. Sorte e azar no leilão: a necessidade do seguro

Com o seguro, as pessoas têm a possibilidade de efetuar uma compra como precaução a

possíveis futuros danos. Dessa forma, cada um é responsável pelos bens que optaram e pelos seguros

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que sopesaram adquirir. Ainda que algumas pessoas da ilha optem por não adquirir algum ou

qualquer tipo de seguro, a igualdade inicial, ainda assim, foi garantida no artifício do leilão. Todos

possuem as mesmas quantidades de conchas e, por isso, as mesmas chances de adquirir os bens

disponíveis. Cabe a cada indivíduo optar por adquirir um determinado bem e, em decorrência dessa

opção, ser responsável pelos resultados positivos ou danosos dessas escolhas. E é por isso que

Dworkin diz não haver razão para refutar, em nome da justiça distributiva, um resultado pelo qual

quem se recusou a apostar2 possui menos do que aqueles que não se recusaram. E, assim sendo, a

política distributiva defendida desenvolve uma alocação que contemple níveis iguais de bens,

recursos e oportunidades de escolhas para todos os concernidos.

Possíveis ressalvas:

(i) Os gostos dispendiosos:

Algumas considerações críticas poderiam ser direcionadas à teoria da igualdade de recursos.

A mais clássica delas faz referência ao suposto cidadão que possui gostos dispendiosos, como o caso

da preferência por ovo de tarambola ou da champagne, ao invés da cerveja. Esta crítica sutilmente

reflete a possibilidade de notar indivíduos mais satisfeitos com a realização de escolhas não

dispendiosas. Isso poderia acarretar um sentimento de injustiça, sob o ponto de vista daqueles que

possuem gostos dispendiosos, ao ponto de reivindicar ao governo igual consideração. Esta igual

consideração implicaria na solicitação de maior quantidade de recursos para que esses pudessem

satisfazer seus gostos, tal qual indivíduos que possuem gostos menos dispendiosos. Para analisar

esse possível problema, Dworkin diz que a neutralidade mais eficaz exige que a mesma parcela seja

destinada a cada um dos indivíduos, de modo que a escolha entre gostos mais ou menos

dispendiosos fosse elaborada por cada pessoa, sem nenhuma noção de que a parcela que lhe cabe

será aumentada se escolher uma vida mais dispendiosa. (DWORKIN, 2005, p.288) Para o defensor

da igualdade de recursos, a existência de indivíduos com gostos dispendiosos não fundamenta uma

real premissa crítica, uma vez que gostos por ovo de tarambola ou necessidade de champagne

excessivo não implicam na necessidade de procedimentos reguladores de distribuição.

(ii) Deficiência física

Outro problema levantado como possível entrave à igualdade de recursos se refere ao

âmbito dos talentos naturais. A deficiência física, por exemplo, poderia incapacitar indivíduos para

uma livre escolha de projetos de vida quando comparados aos indivíduos que gozam de uma saúde

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plena. Ou seja, uma desvantagem natural, como o talento, parece dizer que a distribuição de uma

mesma quantidade de recursos não é compreendida como uma distribuição justa. Neste ponto

Dworkin tem uma tarefa complicada. A concepção da igualdade de recursos, para que seja

considerada justa, parece exigir um sistema que produza desigualdades, como por exemplo, o custo

diferencial de bens e oportunidades destinados àqueles com necessidades especiais. O importante

aqui, no entanto, é como fazer com que essa diferenciação econômica de bens e oportunidades para

alguns grupos de indivíduos, não ignore a base que fundamenta a igualdade de recursos – o leilão

igualitário inicial.

Neste momento, Dworkin demonstra que tipo de concepção de justiça realmente subjaz sua

teoria igualitária. O autor está preocupado na questão da justiça em cada caso particular, não

somente na soma agregada entre as partes da sociedade. Por isso, admite que para um avanço

político seja necessário explicitar o papel da liberdade dentro de sua teoria da justiça. E para seu

entendimento, a liberdade é um dos aspectos fundamentais para uma distribuição igualitária,

havendo, inclusive, congruência para a própria definição do que seja uma real distribuição justa. A

liberdade, de acordo com Dworkin, não deve ser compreendida como sinônimo daquilo que é

permitido, pois se trata de um conjunto de direitos distintos. A liberdade é um instrumento pelo qual,

se pode viabilizar um ideal de igualdade dentro de uma sociedade. E é deste modo que Dworkin traz

para o debate a liberdade em companhia da igualdade de recursos. Para o autor, a liberdade só se

concilia com a igualdade quando um número de pessoas opta pelo direito à liberdade. Isto porque

percebem que somente com certo grau de liberdade é possível defender interesses particulares. E

para Dworkin, isso faria com que as pessoas desejassem adquirir a liberdade em suas cotas de

recursos. É dessa forma que essas pessoas poderiam viabilizar a concretização de objetivos.

5. Conclusão

Em Dworkin observamos a escolha por uma esfera da igualdade em que recaia sobre o

Estado o dever de promoção de uma comunidade política justa, que respeite a esfera privada na qual

os indivíduos realizam sua liberdade para agir e desenvolver suas escolhas. Sua abordagem política

elabora o procedimento do leilão em uma comunidade (a ilha deserta) disposta pela situação ideal de

condições adequadas e suficientes ao processo de distribuição e ordenamento social. Diante disso, a

opção pela igualdade de recursos representa a via que Dworkin acredita ser a melhor para a

promoção de uma distribuição igualitária. Para isso, o autor defende a igualdade de condições para

28

todos os indivíduos efetuarem suas escolhas durante o leilão. Mas até onde a proposta de Dworkin é

efetivamente sensível à escassez e crises sociais vivenciadas pelas sociedades atuais?

Se em Rawls o processo de derivação a favor da justiça origina-se dos limites da razão

teórica e prática e dos pressupostos da concepção política, para Dworkin a justiça é conquistada no

momento em que todos os indivíduos alcançarem uma organização que proporcione a mesma

capacidade aquisitiva entre os participantes do contrato.

Este pode ser, sem dúvida, um importante ponto a favor da proposta oferecida por Dworkin.

Com a igualdade de recursos é possível superar eventuais circunstâncias onde indivíduos poderiam

naturalmente sofrer e necessitar de compensações político-sociais previstas em uma teoria da justiça

inadequada. Resta-nos saber, contudo, quão inclusivo esse método pode ser. Seria possível

conquistar uma sociedade efetivamente amparada pelo valor da inclusão social a partir da disposição

igualitária de recursos? Esta é uma pergunta que permanece aberta e oferece um caminho a ser

perseguido em próximos trabalhos.

NOTAS:1. Para Dworkin, os talentos naturais, bem como as capacidades inatas dos seres humanos não podem ser

levadas em consideração na distribuição de riqueza, pois trata-se de um favorecimento advindo do acaso.2. Aqui deve-se compreender ‘apostar’ como o ato de adquirir ou não os seguros.

REFERÊNCIAS

DWORKIN, R. A virtude soberana: A teoria e prática da igualdade. Editora Martins Fontes, 2005.

______ What is Equality? Part I and II: Equality of Resources, Philosophy and Public Affairs, p. 185-243. 1981. Reprinted in Dworkin’s Sovereign Virtue Abridgement in M. Rosen and J. Wolff Political Thought

______ The Original Position. [1975]. In: DANIELS, N. Reading Rawls. Critical studies in Rawls' A theory of justice. Stanford: University Press, 1989. p.16-53.

RAWLS, J. Uma teoria da Justiça. Universidade de Brasília, 1972.

ROEMER, J. Theories of Distributive Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1996.

29

JAMES, RORTY, VATTIMO E A RELIGIÃO PÓS-METAFÍSICA

Cristiane Maria Marinho*

RESUMO: Este artigo objetiva fazer a exposição de algumas das principais reflexões de James, Rorty e Vattimo sobre a religião, presentes em algumas de suas obras que abordam a questão religiosa. E, a partir daí, demonstrar uma convergência de caráter pós-metafísico nesses pensadores no que diz respeito à experiência religiosa: no pensamento pragmático de James e Rorty, e no pensamento fraco de Vattimo e sua valorização da hermenêutica.Palavras-chave: Religião. Pós-metafísica. James. Vattimo. Rorty.

ABSTRACT: The purpose of this article is to show some of the main reflections of James, Rorty and Vattimo on religion, which can be found in some of their works about the religion issue. Then, it's intended to demonstrate a convergence of postmetaphysical character of such thinkers as for the religious question: In the pragmatic thinking of James and Rorty and in the weak Vattimo's thinking and his valuation of hermeneutics.Keywords: Religion. Postmetaphysics. James. Vattimo. Rorty.

“Uma religiosidade não-metafísica é também uma religiosidade não-missionária” (Vattimo).

Introdução

O objetivo do presente artigo é, em primeiro lugar, expor as principais reflexões de James,

Rorty e Vattimo sobre a religião. E, em segundo lugar, demonstrar uma convergência de caráter pós-

metafísico nas reflexões desses pensadores, seja pelo seu caráter pragmático seja pelo seu caráter

hermenêutico, no que diz respeito à experiência religiosa

Em James, a investigação fica circunscrita às obras A vontade de crer (1897) e Variedades

de experiência religiosa (1902), essa última será vista a partir de um ensaio de Richard Niebuhr. Em

Rorty lançar-se-á mão dos textos Anticlericalismo e ateísmo (2004), Fé religiosa, responsabilidade

intelectual e romance (2007) e O pragmatismo como um politeísmo romântico (2007). Já na reflexão

de Vattimo sobre religião, os textos consultados serão Acreditar em Acreditar (1996) e A idade da

interpretação (2004). Para subsidiar essa investigação também será consultado o diálogo Qual é o

futuro da religião após a metafísica? (2004) entre Rorty e Vattimo e mediado por Zabala, presente

no livro O futuro da religião, bem como o seu prefácio, escrito por Paulo Ghiraldelli.

* Mestra em Filosofia (UFMG/UFPB); Doutora em Educação (UFC); Professora Adjunta do Curso de Filosofia da UECE. Endereço eletrônico: [email protected] 30

A metafísica pragmática da experiência religiosa de James

A vontade de crer (The Will to believe) foi uma palestra proferida por James, posteriormente

publicada em livro, na qual faz a defesa de adoção da crença religiosa sem que seja necessária a

evidência de sua verdade, na medida em que a própria adoção da crença a torna verdadeira para

aquele que crê. Já o livro Variedades de experiência religiosa consiste em uma compilação de

várias palestras sobre Teologia Natural e tem como foco central discutir sobre o sentimento

religioso e a sua desvalorização diante do fortalecimento do materialismo científico do início do

século XX. O sentimento religioso seria uma experiência pessoal, indizível e intransferível, o

que em nada lhe diminuiria face à Ciência, e proporcionaria alegria e otimismo, por isso seria

útil, o que o tornaria verdadeiro.

No livro A vontade de crer James afirma que considerará “a religião em abstrato, em seu

caráter genérico, prescindindo de suas variedades acidentais” (JAMES, 1922, p. 1). Seu intuito maior

é fazer a defesa do direito de cada um adotar uma atitude crente em matéria religiosa sem que, por

isso, seja condenado a alguma coação lógica do intelecto. A esse respeito afirma James:Durante muito tempo sustentei diante de meus alunos a legitimidade de uma fé adotada voluntariamente, e observei que na medida em que o espírito da lógica ia se apoderando deles, regra geral, começaram a rejeitar minha alegação como antifilosófica, ainda que, de fato, os mesmos que o recusaram fossem devotos convictos de alguma fé (JAMES, 1922, p. 1).

Para James, a tendência a crer, indica uma vontade em potência. Assim, a vontade faz brotar

a luz que ilumina “os fechados depósitos da nossa fé”. A nossa razão fica satisfeita quando é

possível, ao ser discutida nossa credulidade, achar argumentos defensivos da nossa fé. Inteligência e

verdade se procuram e dão sustentação ao nosso sistema social:Queremos obter uma verdade; queremos crer que nossos experimentos, estudos e discussões devem levar-nos cada vez mais até ela, e nesta linha combatem juntas nossas vidas pensantes. Mas, se um cético pirrônico nos perguntar como conhecemos tudo isto? Acharia nossa lógica uma resposta a mão? Não, certamente que não. É uma vontade contra outra; nós vamos até a vida em busca de uma verdade ou hipótese que a vida não tem interesse algum em apresentar-nos (JAMES, 1922, p. 6).

Uma das explicações para essa vontade de crer é o peso prático que tem a crença religiosa,

pois “em geral, não cremos naqueles fatos e teorias que não têm alguma importância para nós”

(JAMES, 1922, p. 6). A nossa natureza não intelectual exerce decisiva influência em nossas

convicções. Há tendências passionais e volitivas que precedem a crença e outras que vão atrás dela.

Assim, para James, o argumento de Pascal reforça e complementa “nossa fé na missa e na água

31

benta” e somente a introspecção e a lógica não são por si mesmas os únicos fatores de nossos credos

(Conf. JAMES, 1922, p. 6):Há, pois, fatos cuja existência depende, em absoluto, da chegada da fé. E se a fé em um fato pode criar o fato, é atrevida e pretensiosa a lógica que sustenta que a fé sem completa evidência científica é ‘a mais detestável imoralidade em que pode cair um ser pensante’. Tal é, contudo, a lógica com que pretendem regular nossa vida esses cientistas absolutistas (JAMES, 1922, p. 13).

Assim, também, para James, fica demonstrado que para as verdades dependentes de nossa

ação pessoal, é necessária, quase indispensável, a fé baseada no desejo (JAMES, 1922, p. 13).

James, nesse texto, dirigindo-se somente aos que crêem, discute também o que ele chama de

hipótese religiosa como hipótese viva, que vem a ser a possibilidade da existência de Deus ser

verdadeira e a religião, portanto, certa e válida. Assim, no atual estágio de conhecimento, no qual a

Ciência diz que as coisas existem, a Moral sentencia que umas são melhores que outras, e a Religião

afirma que as coisas mais compreensivas são as mais perfeitas, as mais eternas e que por crer na

primeira proposição adquirimos uma supremacia moral, é possível observar que a religião se oferece

como uma opção momentânea, e que no instante em que cremos, nos supomos desejosos de um certo

bem vital, que perderíamos caso não acreditássemos.

Portanto, a religião se nos apresenta como uma opção forçosa enquanto faz relação ao bem

que podemos perder. Ou seja, não é possível evitar a opção religiosa declarando-nos céticos, na

espera de mais provas, por que ainda assim, evitando cair no erro de admitir a religião como uma

verdade, perderíamos o bem que pudéssemos adquirir através dela. (Conf. JAMES, 1922, p. 13).

Dessa forma,Tentar nos submeter ao ceticismo religioso enquanto conseguimos alcançar uma ‘evidência suficiente’, equivale a dizer que, apresentada a hipótese religiosa, o mais prudente é rendermo-nos ao temor de sua errônea existência, antes que a esperança em sua certeza. [...]. Não existem, pois, tal oposição nas duas posições, em uma das quais militam todas as paixões contra a inteligência pura, senão que a esta a impulsionam também elementos passionais. E que garantias de suprema onisciência pode atribuir-se estes, para ser os guias do intelecto? Engano por engano, que provas há de que o engano pela esperança seja de pior linhagem que o engano pelo medo? Eu desobedeço o mandato da Ciência para cumprir melhor o fato em que ela funda tal gênero de opção; e sigo minha inclinação própria, guia suficiente para permitir-me, em casos como o que trato, correr meu risco (JAMES, 1922, p. 14) (Grifo nosso).

Para James, a necessidade passional da religião não deve ser tolhida por proibições, a

vontade de considerar religiosamente o mundo deve ser vista como justa e como liberdade pessoal,

mesmo que a fé ativa se apresente ilógica, poisO aspecto perfeito, eterno, do universo, está representado em nossas religiões como se tivessem forma pessoal. Uma vez adquirida a fé religiosa, o universo deixará de ser para nós um mero elo e será um tu, verdadeiro interlocutor invisível. Assim, ainda que em certo

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sentido, aparecemos sendo partículas passivas do universo, deste outro modo gozamos de autonomia, vindo a sermos centros ativos, independentes. (JAMES, 1922, p. 14)

A filosofia jamesiana afirma que há muita prisão nos fortes argumentos da lógica inflexível,

pois “pensam que a Divindade há de falar-lhe um dia sem que eles façam nada de sua parte para

reconhecê-la em algum momento de sua vida” (JAMES, 1922, p. 14). Com o sentimento religioso,

que ignoramos de onde vem e de quê, cumprimos o mais sagrado dever com o universo, e parece que

a essência da hipótese religiosa integra a vida. Assim, o intelectualismo puro com sua severa

condenação da vontade de crer seria um absurdo, pois temos o direito de crer por nossa conta em

toda hipótese suficientemente viva: Na liberdade de ‘crer no que queremos’, acaso imaginam que compreendo até a fé claramente supersticiosa, e talvez cheguem a supor que quero admitir a fé que definem as crianças no catecismo de ‘crer algo que não é certo’ (crer o que não se vê). Basta para acabar com essa torcida interpretação o esclarecimento feito em concreto; a liberdade de crer, somente compreende opções vivas, que ainda que o intelecto individual não acerte a resolver por si mesmo, nunca pareçam absurdas a quem se propõe. (JAMES, 1922, p. 14)

Assim, por conseguinte, ao considerar o problema religioso dentro da ordem prática e

volitiva, uma tendência instintiva íntima, James pondera a intromissão proibitiva da Ciência sobre a

religiosidade humana como uma regra absurda e ridícula corroendo os subterrâneos da Filosofia:Admitida a crença como medida da ação, tudo o que nos proíba acreditar na certeza da religião, necessariamente nos impede de fazer, construir como deveríamos, dando a esta por verdadeira. A dignidade e o valor da fé religiosa se sustentam na ação. Se a fé inspirada ou exigida pela hipótese de uma religião fosse o centro da verdade, em nada diferiria da hipótese materialista, e a fé religiosa seria inútil, supérflua, e seria perda de tempo ocupar-se dela. Eu vejo que a hipótese religiosa comunica ao mundo expressão tal, que por si mesma determina numerosas reações específicas na conduta humana, diferentes das que emanam do conceito materialista do mundo (JAMES, 1922, p. 14).

Para James, os juízos intelectuais não são infalíveis e a consciência não nos dá certezas

objetivas incontestáveis vindas de órgãos tão perfeitos de conhecimento. E é por isso, dentre outras

tantas coisas, que: Ninguém deve proibir a cada um sua peculiar crença, nem zombar dela; pelo contrário, a liberdade mental deve ser profunda e cortesmente respeitada; só assim prosperará a república intelectual; só com tal espírito de íntima tolerância não será um corpo sem vida toda nossa bendita tolerância externa, orgulho do empirismo; só assim progrediremos tanto no mundo especulativo como no prático (JAMES, 1922, p. 15).

O livro Variedades de experiência religiosa consiste em uma compilação de várias palestras

sobre Teologia Natural e tem como foco central discutir sobre o sentimento religioso e a sua

desvalorização diante do fortalecimento do materialismo científico do início do século XX.

Para James, diversamene, como visto na obra A Vontade de crer, o sentimento religioso seria

33

uma experiência pessoal indizível e intransferível, mas nem por isso é inferior ou menor face

à Ciencia. Outra caracterísitca do sentimento religioso é a sua capacidade de proporcionar

alegria e otimismo, o que o tornaria útil e verdadeiro.

Niebuhr (2010) afirma que a obra As variedades de experiência religiosa de James, composta de

vinte conferências e um pós-escrito, é ao mesmo tempo desapontadora e desafiadora: “Ela é

desapontadora para os leitores que desejam ter imediatamente à mão mais conclusões consideradas

por James acerca da experiência religiosa. Ela é desafiadora para os leitores que estão prontos para

buscar em outras partes dos escritos de James evidências adicionais acerca do que podem ser essas

visões” (p. 270).

Na verdade, segundo Niebuhr, esse texto não saiu como planejado por James e prometido

no seu título, ou seja, fazer uma avaliação filosófica da religião, pois “a saúde ruim frustrou a

realização dessa ambição, de modo que apenas a vigésima e última conferência, juntamente com o

pós-escrito do autor, lidam explicitamente com suas reflexões filosóficas sobre a experiência

religiosa” (NIEBUHR, 2010, p. 272).

No pensamento de James, o valor das atitudes, crenças e modos de vida religiosos “só

podem ser determinados por juízos espirituais emitidos diretamente sobre elas, juízos baseados

primariamente em nosso sentimento imediato e secundariamente naquilo que podemos determinar de

suas relações experienciais para com nossas necessidades morais e para com o restante daquilo que

consideramos verdadeiro” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 275-276). Dessa forma, os critérios

genuinamente válidos para fazermos juízos de valor acerca da experiência religiosa, são o que James

chama ‘luminosidade imediata’, ‘razoabilidade filosófica’ e ‘prestimosidade moral’, sendo todos

critérios pragmáticos.

‘Luminosidade imediata’, por exemplo, estaria relacionada às experiências profundas e

marcantes nas vidas daqueles que passam por elas, traz alterações na percepção do eu e do mundo.

Experiência aí significando “aquele impartilhável sentimento que cada um de nós tem do aperto do

destino... girando na roda da fortuna” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 276), apreensões

sensíveis de mudança, mas sempre significando ‘conhecimento’ que traz conseqüências práticas.

Assim, para James, é importante julgar a vida religiosa também, e principalmente, por seus

resultados. A filosofia deve refletir acerca da utilidade moral da experiência religiosa e da relação de

tal experiência para com o que acreditamos ser verdadeiro. A cura de uma doença, por exemplo, por

meio da união com uma ‘Presença superior’ (Conf. NIEBUHR, 2010, p. 278).

34

A esse propósito, em uma carta escrita por James a Frances Morse em abril de 1900,

podemos observar a seguinte assertiva: O problema que coloquei para mim mesmo é um problema difícil: primeiro, defender (contra todos os preconceitos de minha ‘classe’) a ‘experiência’, contra a ‘filosofia’, como sendo a verdadeira espinha dorsal da vida religiosa do mundo – quero dizer, a oração, a orientação, todo esse tipo de coisa imediata e privadamente sentida, contra altas e nobres visões gerais sobre nosso destino e sobre o significado do mundo; e segundo, fazer o ouvinte ou leitor acreditar naquilo que eu mesmo invencivelmente acredito: que, embora todas as manifestações especiais da religião tenham sido absurdas (quero dizer, seus credos e teorias), ainda assim a vida da religião como um todo é a função mais importante da humanidade. Uma tarefa quase impossível, temo eu, e na qual devo falhar; mas tentá-la é o meu ato religioso (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 270)

James, defendendo a experiência das coisas particulares, se coloca contra a filosofia do

absoluto, do grande todo abstrato, da Totalidade. Experiência aqui se refere à sensação, percepção,

sentimentos, oração, mudanças de coração, libertações do medo e alterações de atitude. A

experiência é o alicerce do pluralismo metafísico pragmático de James, a ‘forma dos particulares,

que é a nossa forma humana de experienciar o mundo’ (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 271).

Dessa forma, a experiência tem muito mais a nos dizer que um estudo empírico da vida religiosa nos

incita a realizar (Conf. NIEBUHR, 2010, p. 271)

Esse pluralismo também é contemplado no que diz respeito à existência de seitas e credos

religiosos, pois não há uma essência simples da religião e sim múltiplos sinais da religião:O divino não pode significar nenhuma qualidade única, ele deve significar um grupo de qualidades das quais, sendo defensores em alternância, diferentes homens podem todos encontrar missões dignas. Sendo cada atitude uma sílaba na mensagem total da natureza humana, é necessária a totalidade de nós para decifrar completamente o significado... Devemos francamente reconhecer o fato de que vivemos em sistemas parciais e que as partes não são intercambiáveis na vida espiritual (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 282).

Contudo, nessa multiplicidade há de se levar em consideração o aspecto individual da

experiência religiosa: “A religião, [...], deve significar para nós os sentimentos, atos e experiências

de homens individuais em sua solidão, na medida em que eles se apreendem como estando em

relação com o que quer que eles possam considerar o divino” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p.

282).

Esse divino, para James, é bem amplo e tem várias características: é ‘ativo’; é

semelhante a um deus [godlike], quer ele seja uma divindade concreta, quer não; os deuses são

envolventes; “O divino deve significar para nós apenas uma realidade primal à qual o indivíduo se

sinta impelido a responder solenemente e gravemente, e nem mediante uma maldição nem uma

pilhéria” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 282); a resposta religiosa é enérgica e excede a

atitude mental moral, pois no estado mental religioso “a vontade de nos afirmarmos e de mantermos 35

o que é nosso foi substituída por uma disposição de fecharmos nossas bocas e sermos como um nada

nas enchentes e trombas-d’água de Deus” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 282); o estado

mental religioso é um estado de felicidade, não como mero sentimento de fuga, pois ela não se

importa mais em fugir, mas sim em proporcionar Uma felicidade superior [que] mantém em cheque uma felicidade inferior [...]. A religião, portanto, torna fácil e feliz aquilo que é necessário de qualquer modo; e se ela for a única agência que pode realizar esse resultado, sua importância vital como uma faculdade humana encontra-se vindicada além de qualquer disputa (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 283).

Há três conceitos que são importantes nas reflexões religiosas de James: conversão,

santidade e misticismo. A conversão é “o processo, gradual ou súbito, pelo qual um eu até então

dividido, e conscientemente errado, inferior e infeliz, torna-se certo, superior e feliz, em

conseqüência de sua preensão mais firme das realidades religiosas” (JAMES APUD NIEBUHR,

2010, p. 286). A sucessão de campos de consciência que constitui a alma é que possibilita a

conversão. Ela ocorre em “um conjunto de memórias, pensamentos e sentimentos que são

extramarginais [subliminar, subconsciente] e estão totalmente fora da consciência primária” (JAMES

APUD NIEBUHR, 2010, p. 287). Assim, uma consciência ultramarginal fortemente desenvolvida

perturba o equilíbrio da consciência primária e explica a conversão. Essa consciência subliminar

possibilita a apreensão de uma realidade mais ampla e eleva o patamar de percepção: Eu ligo a consciência mística ou religiosa à posse de um eu subliminar extensivo, com uma fina separação através da qual irrompem mensagens. Assim nos tornamos convincentemente cônscios da presença de uma esfera de vida maior e mais poderosa do que nossa consciência usual, com a qual esta última é, não obstante, contínua. As impressões e impulsos, e emoções, e excitações que recebemos dali nos ajudam a viver, elas fundamentam a segurança invencível de um mundo além dos sentidos, elas... comunicam significância e valor a tudo (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 289).

E nesse sentido, coerente com o pragmatismo, James afirma que o que importa são os

efeitos que tais percepções poderiam produzir: “O mero fato de sua transcendência não estabeleceria

por si mesmo nenhuma presunção de que elas fossem mais divinas do que diabólicas” (JAMES

APUD NIEBUHR, 2010, p. 290).

O conceito de santidade, por sua vez, e o seu valor são a seqüência natural do conceito da

conversão. A santidade seria o resultado ideal, embora incerto, da conversão. Na santidade, as

emoções espirituais formam o novo centro de energia pessoal. É quando James reflete sobre o

conceito de santidade que explicita seus ‘juízos espirituais’ sobre a experiência religiosa e que são

correlatos ao que ele compreende por santidade. Entre eles estão os seguintes: (a) as religiões se ‘aprovam’ na medida em que satisfazem necessidades vitais, ‘nenhuma religião jamais deveu sua prevalência à ‘certeza apodítica’ [...]; (b) as instituições religiosas são propensas a se tornar interessadas principalmente em seus próprios dogmas e ambições

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corporativas [...]; (c) toda virtude é sujeita à corrupção [...]; (d) a caridade, por toda sua ternura, é essencial para a evolução da sociedade [...]; (e) a verdade presente no ascetismo é que ‘aquele que se alimenta da morte que se alimenta dos homens possui a vida sobreeminentemente... e enfrenta melhor as demandas secretas do universo’ [...]. ‘no geral... o grupo de qualidades santas é indispensável para o bem-estar do mundo’ (NIEBUHR, 2010, p. 290).

Por fim, nas Variedades, o conceito de misticismo ocupa o cume das investigações

precedentes. Para James, a experiência religiosa pessoal tem sua raiz e seu centro nos estados

místicos de consciência: “O mar original e a nascente de todas as religiões se encontram nas

experiências místicas dos indivíduos, tomando a palavra mística em um sentido bastante amplo”

(JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 291). Os estados místicos superiores, então, Apontam em direções para as quais os sentimentos religiosos até mesmo de homens não místicos se inclinam. Eles falam da supremacia do ideal, da vastidão, da união, da segurança e do repouso. Eles nos oferecem hipóteses que podemos voluntariamente ignorar, mas que, como pensadores, não podemos possivelmente derrotar. O sobrenaturalismo e o otimismo aos quais eles nos persuadiriam podem... ser afinal o mais verdadeiro dos insights sobre o significado da vida (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 292).

Assim, os estados místicos: possuem autoridade absoluta sobre aqueles que os têm; são

epistemologicamente sensoriais; parecem ter uma verdade empírica; “[...] destroem a autoridade da

consciência racionalista, baseada unicamente no entendimento e nos sentidos. Eles mostram que ela

é apenas um tipo de consciência” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 294). E como se fora uma

grande culminância de todo esse processo místico, James argumenta que a prece é a própria alma e

essência da religião. A prece é a religião em ato. É uma energia que flui do alto para satisfazer

determinada necessidade e acaba por se tornar operativa no mundo fenomênico: “Enquanto se

admite que essa operatividade é real, não faz nenhuma diferença essencial se seus efeitos imediatos

são subjetivos ou objetivos. O ponto religioso fundamental é que na prece... um trabalho espiritual

de algum tipo é realmente efetuado” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 294).

O privatismo religioso e a religião como questão cultural em Rorty

Castro (2008) nos lembra que para Rorty, a cultura ocidental e o modelo de intelectual

passaram por diversas mudanças, nas quais o intelectual seleciona os bens simbólicos de acordo

como uma hierarquia de valor: O bem simbólico de maior valor é aquele que proporciona a auto-superação e a redenção. Em outras épocas, a ciência e a religião ocuparam esse lugar no topo da hierarquia: quando buscávamos uma explicação para a nossa existência olhávamos ou para a ciência ou para a religião. Hoje, diz Rorty, nem a religião, nem a ciência fornecem as respostas, mas sim a literatura (p. 214).

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Assim, a religião não ocuparia mais o topo da relação dos bens simbólicos, e a ciência teria

sido secundarizada dessa posição em virtude de ter se tornado uma auxiliar da tecnologia e da

indústria. De uma forma generalizada, as ciências [...] estão subordinadas às demandas constantes por bens materiais, e pouco ou nada oferecem à criação de novos bens simbólicos. Por um largo período, a ciência ofereceu a redenção e o aperfeiçoamento moral buscado por oferecer melhores respostas do que a religião para a explicação da vida, e por apontar para a utopia de uma existência melhor. Hoje, porém, a ciência-tecnologia não tem condições de oferecer “pão ao espírito”, isto é, exemplos de auto-superação-moral, dado seu horizonte limitado pelas demandas materiais de consumo (CASTRO, 2008, p. 215)

É assim que, no texto Anticlericalismo e teísmo, Rorty explica que com o fim da metafísica,

ser religioso já não significa mais ter como referência fenômenos especificamente observáveis,

determinados como evidências. Baseado em Vattimo, concorda que a dissolução da metafísica da

objetividade, o pensamento que identificava a verdade do ser com a manipulabilidade do objeto da

ciência, possibilitou a existência de uma religião antiessencialista, movida por interesses privados,

pessoais e que tenta realizar as palavras de João no Evangelho, quais sejam, Deus já não nos

considera servos, mas amigos. Rorty, declarado ‘laico anticlerical’, nos lembra que não há

necessidade de legitimarmos essas “interpretações pós-modernas do cristianismo, pois o conceito de

‘legitimidade’ não é aplicável àquilo que cada um de nós faz em sua própria solidão” (ZABALA,

2006, p. 42).

Rorty observa que apesar das afirmações sobre o ateísmo ser algo lógico e evidente e a

crença religiosa ser irracional, ele, como um secularista contemporâneo, fica satisfeito em dizer que

o ateísmo é politicamente perigoso. E a religião “é irrepreensível na medida em que é privada – na

medida em que as instituições eclesiásticas não tentam animar a fé por trás de propostas políticas e

na medida em que os crentes e não-crentes concordam em seguir uma política de viver e deixar

viver” (RORTY, 2006, p. 52).

A privatização da religião deve implicar “que às pessoas religiosas cabe o direito, para

certos propósitos, de ficar de fora desse jogo. Elas ganham a prerrogativa de desligar suas afirmações

da rede de inferências socialmente aceitáveis que fornece justificações para fazer essas afirmações e

tirar conseqüências práticas por tê-las feito” (RORTY, 2006, p. 57). E é possível encontrar a

reafirmação da postura democrática dessa privatização no livro Filosofia como política cultural:A crescente privatização da religião ocorrida durante os últimos duzentos anos criou um clima de opinião no qual as pessoas têm o mesmo direito a formas idiossincráticas de devoção religiosa quanto a escrever poemas ou pintar quadros nos quais ninguém mais pode encontrar algum sentido. É característica de uma sociedade democrática e pluralista que nossa religião seja nosso assunto particular – algo sobre o qual não precisamos nem mesmo discutir com outros, muito menos tentar justificar, a menos que sintamos vontade de o fazer. Uma tal sociedade tenta deixar tanto espaço livre quanto possível para que os indivíduos

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desenvolvam seu próprio sentido sobre quem são e a que se destinam suas vidas, pedindo apenas que obedeçam ao preceito de Mill e estendam aos outros a tolerância de que eles próprios usufruem. Os indivíduos são livres para elaborar seus próprios jogos de linguagem semiprivados [...], desde que não insistam em que todos os outros também os joguem (RORTY, 2009, p. 53).

Essa privatização do exercício religioso busca a religião como exercício da amizade entre

Deus e o homem, livre das imposições institucionais. A esse respeito Rorty afirma: “Quanto mais o

Ocidente se torna secular, quanto menos hierocrático, mais ele cumpre a promessa dos Evangelhos

de que Deus não mais nos verá como servos, mas como amigos” (RORTY, 2006, p. 57).

Uma religião que esteja fora da arena epistêmica, como por exemplo, a batalha entre

religião e ciência, onde não haja uma disputa entre a verdade do teísmo versus ateísmo, pode ser

exatamente a mais adequada ao privatismo religioso. Inclusive porque se o senso comum é

necessário para a cooperação social, a ciência é elemento viabilizador dessa cooperação. Dessa

forma, afirma Rorty:A batalha entre religião e ciência conduzida nos séculos XIX e XVIII foi uma contenda entre instituições, ambas das quais afirmavam supremacia cultural. Não foi uma boa coisa para a religião e para a ciência que esta tenha vencido tal batalha. Pois verdade e conhecimento são uma questão de cooperação social, e a ciência nos dá os meios para cumprir melhor projetos de cooperação social do que o que tínhamos antes. Se a cooperação social é o que se quer, a conjunção de ciência e senso comum dos dias atuais é tudo que é necessário.” (RORTY, 2006, p. 58-59).

Rorty, que foi educado sem religião, afirma que a relutância à privatização da religião como

forma de livrá-la da universalidade, é fruto do pensamento de que a religiosidade é uma nostalgia de

algo como uma ‘natureza humana básica’ pré-cultural. (Conf. RORTY, 2006, p. 59). Assim, “Se

abandonamos a idéia de que a questão da verdade ou a questão de Deus estão bem instaladas em

todos os organismos humanos e permitimos a ambas as questões aparecerem como questões de

formação cultural, então tal privatização parecerá natural e apropriada” (RORTY, 2006, p. 59).

Da mesma forma, a idéia de sagrado para Rorty, tem um sentido expressamente imanente:Meu sentido do sagrado, na medida em que tenho algum, está atado à esperança de que algum dia, em algum milênio futuro, meus descendentes remotos viverão em uma civilização global em que o amor será adequadamente a única lei. Em tal sociedade a comunicação seria de domínio livre, classes e castas seriam algo desconhecido, hierarquia seria uma questão de conveniência pragmática temporária, e o poder estaria inteiramente à disposição dos acordos livres de um eleitorado alfabetizado e bem educado (RORTY, 2006, p. 60).

Assim, Rorty afirma que para o pragmatismo e a hermenêutica, após a ontoteologia, no fim

da metafísica há uma conexão entre democracia e cristianismo: “Sim, penso que a atitude

hermenêutica ou gadameriana é no mundo intelectual o que a democracia é no mundo político. As

39

duas podem ser vistas como apropriações alternativas da mensagem cristã que o amor é a única lei”

(RORTY, 2006, p. 100).

Baseado no único livro de Dewey sobre religião, Rorty pondera que “podemos vivenciar

um sentido de integração em uma comunidade de causas que agrupa o universo humano com o não-

humano. Esse tipo de panteísmo romântico, [...], é a única expressão de um sentido de dependência

que precisamos – reconhecer que somos parte de um todo maior” (RORTY, 2006, p. 106). Seja esse

todo maior os livros que se leu ou a tradição cultural ou o universo físico.

Outro elemento importante na reflexão rortyana sobre a religião é aquela que concebe a

questão da existência de Deus no âmbito cultural: “Tenho sustentado que deveríamos substituir a

questão ontológica sobre a existência de Deus pela questão da conveniência cultural da conversa

sobre Deus.” (RORTY, 2009, p. 52). E essa questão implica o direito de um indivíduo ser religioso,

mesmo que seja incapaz de justificar suas crenças religiosas a outros, mesmo que a sua religião não

encontre respaldo institucional, pois:A sociedade deveria conceder a indivíduos particulares o direito de formular sistemas privados de crença, ao mesmo tempo permanecendo militantemente anticlerical. James e Mill concordam que não há nada de errado com as igrejas, a menos que suas atividades causem danos sociais. Mas, quando se trata de decidir se as igrejas existentes de fato causam tais danos, as coisas ficam complicadas. A história sociopolítica do Ocidente nos últimos duzentos anos está pontuada com controvérsias como as do Estatuto da Liberdade Religiosa da Virginia de Jefferson, a laicização da educação na França, a Kulturkampf na Alemanha e a controvérsia na Turquia sobre as estudantes usarem véus no campus da universidade (RORTY, 2009, p. 54).

Rorty afirma que essas questões requerem soluções diferentes em países diferentes e

séculos diferentes, pois seria absurdo propor normas universalmente válidas para resolvê-las. No

entanto, ele insiste: Um debate sobre tais questões políticas concretas é mais útil para a felicidade humana do que um debate sobre a existência de Deus. Elas são as questões que permanecem após nos conscientizarmos de que é inútil apelar para a experiência religiosa para decidir quais tradições devem ser mantidas e quais devem ser substituídas, depois de termos percebido o despropósito da teologia natural (RORTY, 2009, p. 54).

No texto O pragmatismo como um politeísmo romântico, presente no livro Filosofia como

política cultural, Rorty esboça cinco teses concisas de uma filosofia pragmatista da religião. A

primeira tese se refere à “vantagem da concepção antirrepresentacionista da crença [...], a concepção

de que crenças são hábitos de ação -, que ela nos libera da responsabilidade de unificar todas as

nossas crenças em uma única visão do mundo” (RORTY, 2009, p. 68). E, assim, se variam os

propósitos atendidos pela ação, variam também os hábitos desenvolvidos que serve a esses

propósitos, evitando, assim, a crença como algo essencialista e imutável.

40

A segunda tese, baseada em Nietzsche, afirma que “a tentativa, [...], de considerar a fé

religiosa como simbólica e, com isso, tratar a religião como poética e a poesia como religiosa, e

nenhuma das duas como competindo com a ciência, está no caminho certo” (RORTY, 2009, p. 68),

pois é também uma tentativa de abrir mais espaço para a individualidade do que a já feita pelo

monoteísmo ortodoxo ou pelo Iluminismo, quando pôs a ciência no lugar da religião como fonte de

Verdade. Contudo, afirma Rorty, para fortalecer essa tentativa é necessário seguir o utilitarismo

romântico pragmatista que abandonou a idéia de que partes da cultura satisfazem a necessidade de

conhecer a verdade e outras não. Portanto, “se não há nenhuma vontade de verdade distinta da

vontade de felicidade, não há maneira de contrastar o cognitivo com o não cognitivo, o sério com o

não sério” (RORTY, 2009, p. 68).

A terceira tese rortyana sobre a religião se baseia sobre o combate feito pelo pragmatismo à

distinção entre projetos de cooperação social e projetos de autodesenvolvimento pessoal. A Ciência

natural e o Direito pertencem ao primeiro grupo, e buscam aperfeiçoar a condição humana através de

observação e experimento. A arte, por sua vez, é um projeto paradigmático possibilitador do

desenvolvimento pessoal. Já “a religião, se puder ser desconectada tanto da ciência quanto dos

costumes – da tentativa de prever as conseqüências de nossas ações e da tentativa de classificar as

necessidades humanas -, poderia ser um outro desses paradigmas” (RORTY, 2009, p. 69).

Ou seja, a religião poderia se tornar também um projeto de autodesenvolvimento pessoal,

que não permanecesse tão distante da imanência dos homens, presa às questões universais

metafísicas.

A quarta tese critica a pretensa irresponsabilidade intelectual da crença religiosa em

alcançar a verdade, imposta pelo dever de amarmos a Verdade. Contudo, Rorty argumenta que não

há esse amor à Verdade, e sim “uma mistura do amor por se atingir um acordo intersubjetivo, o amor

por vencer discussões, e o amor por sintetizar pequenas teorias em grandes teorias” (RORTY, 2009,

p. 69). Portanto, se não há prova de que uma crença religiosa não alcança a Verdade, nunca constitui

uma objeção a ela. Dessa forma, “a única objeção possível poderia ser o fato de que ela intromete

um projeto individual em um projeto social e cooperativo [...]. Tal intrusão é uma traição da

responsabilidade de um indivíduo de cooperar com outros seres humanos, não da responsabilidade

de um indivíduo para com a Verdade e razão” (RORTY, 2009, p. 69).

A quinta e última tese rortyana sobre a religião traz uma reflexão em torno da Verdade

única como sendo a secularização da esperança religiosa tradicional que tem o poder

(Poderoso/Deus) como nosso aliado e inimigo dos outros. Mas a democracia pragmatista faz objeção

41

contra a esperança de lealdade para com o poder, pois a considera “uma traição do ideal de

fraternidade humana que a democracia herdou da tradição religiosa judaico-cristã. Esse ideal

encontra sua melhor expressão na doutrina, [...], de que cada necessidade humana deveria ser

satisfeita a menos que isso cause a insatisfação de muitas outras necessidades humanas” (RORTY,

2009, p. 70). O que deve ser tentado é a obtenção de um consenso democrático e a maximização da

felicidade.

A ontologia débil como transcrição da mensagem cristã em Vattimo

Vattimo pensa a questão religiosa a partir do fim da metafísica, apoiado em Heidegger,

Nietzsche e Pareyson, e baseando-se na importância filosófica da hermenêutica. Para tanto ele

desenvolve inicialmente quatro grandes argumentos em torno da interpretação e do questionamento

sobre a validade da verdade objetiva: a) a analítica existencial (primeira seção do Ser e tempo) nos torna conscientes de que o conhecimento é sempre interpretação e nada mais que isso. As coisas aparecem para nós no mundo somente porque estamos no meio dele e sempre já orientados a buscar algum sentido específico, ou seja, temos uma pré-compreensão que faz de nós sujeitos interessados e não telas neutras de um panorama objetivo; b) a interpretação é o único fato de que podemos falar: nele [...] ‘o ‘objeto’ se revela na medida em que o ‘sujeito’ se exprime, e vice-versa. [...] na interpretação, dá-se o mundo, não há apenas imagens ‘subjetivas’. [...]; c) [...] a interpretação, quanto mais queremos captá-la em sua autenticidade (Eingentlichkeit), mais ela se revela como Ereignishaft, eventual, histórica. Donde, d) se mesmo o fato de que não existem fatos, apenas interpretações é – como Nietzsche lucidamente reconheceu – uma interpretação, ela só poderá se realizar como resposta interessada a uma situação histórica determinada. Não como ato objetivo de tomar conhecimento de um fato que permanece externo a ela, mas como um fato que, ele próprio, passa a compor aquela mesma situação histórica à qual co-responde (VATTIMO, 2006, p. 64-65).

Para Vattimo, portanto, não se fala impunemente sobre a interpretação1, pois ela

redimensiona a realidade à mensagem. A eliminação da diferença entre natureza e sociedade, por

exemplo, mostra que as ciências naturais estabelecem também seus paradigmas a partir de pré-

compreensões. Assim, o fato é a interpretação e a interpretação é o fato. É dessa forma que a

hermenêutica confronta a metafísica e enuncia a existência histórica.

Já a importância do pensamento heideggeriano é justificada em função de sua capacidade de

deixar falar o evento, o que teria o mesmo significado do niilismo nietzschiano e ambos

corresponderiam ao fim da metafísica. As principais características do fim da metafísica seriam: fim

do eurocentrismo; crítica da ideologia pela dissolução da consciência através da psicanálise;

pluralização das agências de informação, os mass media, que, segundo Heidegger, tornam

impossível uma imagem única do mundo; e o fim das metanarrativas, conforme Lyotard (Conf.

MARINHO, 2009). Mas Vattimo chama a atenção para o fato de que: 42

[...] não devemos esquecer no ensinamento heideggeriano, e que Lyotard, ao contrário, negligencia, é que o fim da metanarrativa não é o despertar de um estado de coisas ‘verdadeiro’, no qual as metanarrativas não ‘existem mais’; é, pelo contrário, um processo no qual precisamos, na medida em que estamos mergulhados nele e não olhando do exterior, colher um fio condutor que servirá para projetar seus ulteriores desenvolvimentos: para estarmos dentro dele, ou seja, como intérpretes e não como registradores objetivos dos fatos (VATTIMO, 2006, p. 66).

É nessa perspectiva que Vattimo aproxima a reflexão sobre a hermenêutica às questões

religiosas. Há algo decisivo nesse universo teórico apresentado que escapa à maioria dos pós-

modernos, qual seja, Nietzsche e Heidegger estão inseridos não somente no âmbito do fim das

metanarrativas, mas também no interior da tradição bíblica: “Não é tão absurdo sustentar que a

morte de Deus anunciada por Nietzsche é, em muitos sentidos, a morte de Cristo na cruz narrada

pelos Evangelhos” (VATTIMO, 2006, p. 66). E, apoiado em Dilthey, argumenta que: [...] é o advento do cristianismo que torna possível a progressiva dissolução da metafísica, dissolução essa que, em sua perspectiva, culminará em Kant, mas que é também o niilismo de Nietzsche e o fim da metafísica de Heidegger. O cristianismo introduz no mundo o princípio da interioridade, com base no qual a realidade ‘objetiva’ perderá pouco a pouco o seu peso determinante. A frase de Nietzsche ‘não há fatos, apenas interpretações’ e a ontologia hermenêutica de Heidegger não farão mais que levar tal princípio às suas conseqüências extremas. A relação da hermenêutica moderna com a história do cristianismo, portanto, não é apenas aquilo que sempre se acreditou, ou seja, o vínculo essencial que a reflexão sobre a interpretação sempre teve com a leitura dos textos bíblicos. O que proponho aqui é, ao contrário, que a hermenêutica, em seu sentido mais radical, expresso na frase de Nietzsche e na ontologia de Heidegger, é o desenvolvimento e a maturação da mensagem cristã. [...]. Podemos realmente sustentar que o niilismo pós-moderno é a verdade atual do cristianismo (VATTIMO, 2006, p. 67). (Grifo nosso)

Para a hipótese vattimiana, é com o fim do autoritarismo da Igreja, que tem marcado sua

trajetória histórica, que o cristianismo pôde ter desdobrado “todo o seu efeito antimetafísico e a

‘realidade’ se reduzido, em todos os seus aspectos, a mensagem” (VATTIMO, 2006, p. 70). Assim,

o sentido do cristianismo diante dessa “redução” da realidade à mensagem seria o de compreender

que a realidade não é simplesmente o que está presente e de dissolver, assim, as explicações

decisivas do que seja a realidade: Há nesse processo de redução dois aspectos inseparáveis: o cristianismo só tem sentido quando a realidade não é, unicamente e acima de tudo, o mundo das coisas vorhanden, simplesmente presentes; e o sentido do cristianismo como mensagem de salvação é justamente, antes de tudo, aquele de dissolver as pretensões peremptórias da ‘realidade’. A frase paulina ‘morte, onde está tua vitória?’ pode, de direito, ser lida como a negação extrema do ‘princípio de realidade’ (VATTIMO, 2006, p. 70).

Para Vattimo, é necessário, portanto, que a Igreja reconheça que o sentido redentor da

mensagem cristã desdobra-se precisamente na dissolução das pretensões da objetividade. Com isso,

ela poderia, por fim, resolver o conflito histórico entre verdade e caridade que tanto infelicita a vida

dos homens, principalmente dos que são crentes:

43

A verdade que, segundo Jesus, nos tornará livres não é a verdade objetiva das ciências e nem mesmo a verdade da teologia: assim como não é um livro de cosmologia, a Bíblia também não é um manual de antropologia ou de teologia. A revelação escritural não é feita para nos fazer saber como somos, como Deus é, quais são as ‘naturezas’ das coisas ou as leis da geometria – e para salvar-nos, assim, por meio do ‘conhecimento’ da verdade. A única verdade que as Escrituras nos revelam, aquela que não pode, no curso do tempo, sofrer nenhuma desmistificação – visto que não é um enunciado experimental, lógico, metafísico, mas sim um apelo prático – é verdade do amor, da caritas (VATTIMO, 2006, p. 71).

Vattimo enfatiza que essa proximidade entre verdade e caridade não é algo esdrúxulo na

filosofia pós-metafísica contemporânea, ela se encontra no neopragmatismo rortyano e na teoria do

agir comunicativo habermasiano, por exemplo2.

Para a filosofia contemporânea, a experiência da verdade acontece como a experiência de

participação em comunidade que não é, necessariamente, uma comunidade fechada.

Significativamente, na hermenêutica gadameriana a verdade acontece como uma construção entre

comunidades na busca da ‘fusão de horizontes’. Isso significa, portanto, que a verdade não é uma

objetividade que tem uma correspondência representativa, mas sim proposições compartilhadas pelas

comunidades.

Com a morte de Deus e a dissolução da metanarrativas ocorreu uma desmistificação do

princípio de autoridade e dos saberes objetivos. Com isso, a “nossa única possibilidade de

sobrevivência humana está depositada no preceito cristão da caridade” (VATTIMO, 2006, p. 76). A

razão disso é que a caridade nos possibilita “aceitar os diferentes jogos de linguagem, as diferentes

regras dos jogos de linguagem” (Ibidem, p. 81). Essa herança cristã que retorna no pensamento débil

é também, e principalmente, herança do preceito cristão da caridade e da sua recusa da violência

(Conf. VATTIMO, 1998, p. 36).

Vattimo reafirma, portanto, que na sua perspectiva, “o niilismo pós-moderno (a dissolução

das metanarrativas) é a verdade do cristianismo. O que significa que a verdade do cristianismo

parece ser a dissolução do próprio conceito (metafísico) de verdade” (VATTIMO, 2006, p. 72).

Para Vattimo, o cristianismo traz uma mensagem histórica da salvação. Os que seguiram

Cristo, não o fizeram somente porque viram seus milagres, como os dos séculos posteriores, a crença

nos ensinamentos de Jesus advém da sua própria condição de não poder ser anulada ou derrotada:

“quem crê, entendeu, ouviu, intuiu que sua palavra é ‘palavra de vida eterna’” (VATTIMO, 2006, p.

73). Além dessa questão, há também o fato de que a nossa existência histórica não teria sentido sem

a revelação cristã. Da mesma forma que os clássicos de literatura fazem uma cultura, “assim também

a nossa cultura em seu conjunto mais amplo não teria sentido se quiséssemos amputar-lhe o

44

cristianismo” (Ibidem, p. 74). Não podemos negar uma tradição aberta pelo anúncio do Cristo e a

nossa pertença a essa tradição. Na verdade, ainda não conseguimos explicitartodas as conseqüências antimetafísicas do próprio cristianismo; dado que ainda não somos suficientemente niilistas, isto é, cristãos, ainda opomos à inderrogabilidade histórico-cultural da tradição bíblica uma ‘realidade natural’ que substituiria independentemente dela e em relação à qual a verdade bíblica deveria ‘provar-se’. [...]. É muito mais razoável pensar que a nossa existência depende de Deus porque aqui e agora não conseguimos falar a nossa língua e viver a nossa historicidade sem responder à mensagem transmitida pela Bíblia. Pode-se dizer que essa é também uma pertinência particular, que esquece a humanidade em geral e se fecha para as outras religiões e outras culturas. Mas isso acontecerá em maior grau se pensarmos que a revelação cristã é ligada a uma metafísica natural que, hoje, depois da crítica marxista da ideologia e do desenvolvimento da antropologia cultural, tem se revelado o oposto disso (VATTIMO, 2006, p. 74-75).

É nessa perspectiva que também podemos encontrar outro conceito importante na reflexão

vattimiana sobre a religião. É o conceito de Kenosis, a encarnação, como renúncia de Deus à própria

transcendência soberana. Esse conceito é retomado de Girard3 que defende a idéia da encarnação

como dissolução do sagrado enquanto violento (Conf. VATTIMO, 1998, p. 29). Mas o cristianismo

niilista vattimiano vai além: enquanto o Deus violento de Girard é o Deus da metafísica,

caracterizado pelo ser objetivo, a dissolução da metafísica é também o fim desta imagem de Deus, a

morte nietzschiana de Deus:A encarnação, isto é, o rebaixamento de Deus ao nível do homem, aquilo a que o Novo Testamento chama de kenosis de Deus, deverá ser interpretada como sinal de que o Deus4

não violento e não absoluto da época pós-metafísica tem como traço distintivo a mesma vocação para o debilitamento de que fala a filosofia de inspiração heideggeriana (VATTIMO, 1998, p. 30).

Assim, para Vattimo, a ontologia débil seria uma transcrição da mensagem Cristã. Ou seja,

o pensamento fraco e o seu ser fraco seriam uma tradução da morte desse Deus metafísico duro,

autoritário, objetivo, onipotente, eterno e absolutista. Diversamente, então, poderíamos pensar em

um Deus fraco, flexível, subjetivo, não-absolutista e amigo. Dessa forma, a secularização,

característica da história do Ocidente moderno, é um fato interior ao cristianismo, algo

extremamente positivo trazido pela mensagem cristã e que conduz à concepção da história da

modernidade como debilitamento e dissolução do ser. (Conf. VATTIMO, 1998, p. 32).

E nesse sentido, a encarnação (Kenosis) é o símbolo do processo de secularização como

processo liberador da civilização laica moderna das suas origens sagradas. E a secularização pode e

deve muito bem ser compreendida como uma forma expressiva dos ensinamentos cristãos e não um

distanciamento deles:A chave de todo este discurso é o termo “secularização”. Com ele, como se sabe, indica-se o processo de “deriva” que liberta a civilização laica moderna das suas origens sagradas. Mas se o sagrado natural é o mecanismo violento que Jesus veio para revelar e desmentir, é bem

45

possível que a secularização – que é também perda de autoridade temporal por parte da Igreja, autonomização da razão humana em relação à dependência de um Deus absoluto, juiz ameaçador, de tal modo transcendente em relação às nossas idéias do bem e do mal a ponto de parecer um soberano caprichoso e bizarro – seja precisamente um efeito positivo do ensinamento de Jesus e não um modo de nos afastarmos dele (VATTIMO, 1998, p. 32-33).

Dessa forma, Vattimo encontra e acentua o sentido “positivo” da secularização, qual seja, o

de que “a modernidade laica se constitui também e sobretudo como continuação e interpretação

dessacralizante da mensagem bíblica [...], dessacralização do sagrado violento, autoritário e absoluto

da religião natural” (VATTIMO, 1998, p. 33). A secularização seria a própria essência da

modernidade. O filósofo italiano cita alguns exemplos representativos dessa secularização: a

sociologia religiosa de Weber e a sua interpretação do capitalismo moderno sendo resultante da ética

protestante; a forte ligação entre a racionalização da sociedade moderna e o monoteísmo hebraico-

cristão; a história da transformação do poder do Estado, passando da monarquia de direito divino à

monarquia constitucional até chegar à democracia representativa. Mais adiante reitera a questão

central da positividade da secularização:Um dos sentidos, ou o sentido principal, da centralidade da idéia de secularização como fato “positivo” interior à tradição cristã é, precisamente, o de negar esta imagem objetivista do retorno. Secularização como fato positivo significa que a dissolução das estruturas sagradas da sociedade cristã, a passagem a uma ética da autonomia, à laicidade do estado, a uma literalidade menos rígida na interpretação dos dogmas e dos preceitos, não deve ser entendida como um acréscimo ou uma despedida do cristianismo, mas como uma realização mais plena da sua verdade que é, recordemo-lo, a kenosis, o rebaixamento de Deus, o desmentir dos traços “naturais” da divindade (VATTIMO, 1998, p. 39).

Dessa forma, para Vattimo, a positividade da secularização está distante da afirmação da

transcendência de Deus, da idéia de uma fé pura conduzindo a crença do aperfeiçoamento humano e

o progressivo esclarecimento da razão. Ocorre o inverso, afirma Vattimo: “a kenosis, iniciada com a

encarnação de Cristo – e já antes com o pacto entre Deus e o ‘seu’ povo – continua a realizar-se em

termos cada vez mais claros, prosseguindo a obra de educação do homem para a superação da

essência originária violenta do sagrado e da própria vida social” (VATTIMO, 1998, p. 41).

Considerações finais

A metafísica pragmática da experiência religiosa de James faz a defesa de adoção da crença

religiosa sem que seja necessária a evidência de sua verdade, na medida em que a própria adoção da

crença a torna verdadeira para aquele que crê, principalmente pelo peso prático que possui. Da

mesma forma, defende o sentimento religioso e repudia a sua desvalorização diante do

fortalecimento do materialismo científico do início do século XX. O sentimento religioso,

experiência pessoal, indizível e intransferível, não é menor que a Ciência, e a sua verdade consiste 46

nele proporcionar alegria e otimismo, e daí a sua utilidade. Mas, acima de tudo, James faz a defesa

do direito de cada um adotar uma atitude crente em matéria religiosa sem que, por isso, seja

condenado, pois a vontade de crer é, prioritariamente, um direito e uma liberdade pessoais.

Vattimo demonstrou que, na era do fim da metafísica, a hermenêutica historicizou a

filosofia, ao acabar com a distinção entre ciências da natureza e ciências do espírito. Isso pode ser

constatado quando o próprio Nietzsche afirma que a expressão que “não há fatos, apenas

interpretações” é também uma interpretação. Para Vattimo a perda de representação da realidade se

deve também ao cristianismo e ao seu princípio de interioridade que dissolveu a experiência da

realidade objetiva em interpretação de mensagens:Essa hermeneutização da filosofia libertou a religião da metafísica no momento em que identificava a morte de Deus, anunciada por Nietzsche, com a morte de Cristo na cruz narrada pelos Evangelhos. Se acreditamos ainda hoje no significado salvífico dessa morte, é porque o lemos no Evangelho, e certamente não porque temos nas mãos provas objetivas do fato histórico da ressurreição. Ao recorrer a Croce, Vattimo conclui observando que o próprio pragmatismo antifundacionista de Rorty só é possível porque vivemos nessa sociedade originária da mensagem bíblica. O pragmatismo e a hermenêutica transformam-se em filosofias capazes de ultrapassar o lógos metafísico em direção a uma cultura do diálogo que não é mais animado por uma busca da verdade (ZABALA, 2006, p. 42-43).

Para Vattimo a morte de Deus corresponde ao ateísmo filosófico que, em última instância, é

sinônimo do fim do fundamento último. Por isso, paradoxalmente, somente uma filosofia ‘absolutista’ pode se sentir autorizada a negar a experiência religiosa. [...] justamente porque o Deus-fundamento último, isto é, a estrutura metafísica absoluta do real, não é mais sustentável, justamente por isso é novamente possível crer em deus. Certamente, não no Deus da metafísica e da escolástica medieval, que de todo modo não é o Deus da Bíblia, isto é, do livro que justamente a metafísica racionalista e absolutista moderna havia pouco a pouco dissolvido e negado (ZABALA, 2006, p. 34).

Para o filósofo italiano, para superar os equívocos da guerra de religião é necessário,

vivermos a nossa religiosidade fora do esquema do Iluminismo racionalista: “ou o fanatismo de uma

fé cega (credo quia absurdum) ou o ceticismo de uma razão sem raízes e também sem vínculo

efetivo com o mundo” (Conf. ZABALA, 2006, p. 38). Assim, é preciso renovar a religiosidade.

Cultivar uma religião sem violência e sem a ambição do poder. Ao invés de levar adiante uma guerra

pelo triunfo da fé ou se aliar a uma ideologia manipulatória, viabilizar soluções para problemas

sociais, e refletir sobre os problemas econômicos do Terceiro Mundo. Deve-se abandonar a idéia de

fazer triunfar uma fé sobre outra, pois “a tarefa que todos temos pela frente é reencontrar – depois da

época ‘metafísica’ dos absolutismos e da identidade entre verdade e autoridade – a possibilidade de

uma experiência religiosa pós-moderna, na qual a relação com o divino não seja mais poluída pelo

medo, pela violência, pela superstição” (Ibidem, p. 39).

47

Vattimo e Rorty acreditam que uma religiosidade fraterna e amorosa seja possível devido a

uma característica da atual era pós-metafísica: a desistência da Verdade como Representação da

Realidade. Nesse âmbito, segundo Ghiraldelli, convergem as tradições filosóficas de cada um desses

dois pensadores, a hermenêutica e o pragmatismo, nas quais o “verdadeiro” e o “falso” só podem ser

enunciações mediadas pela invenção da linguagem de, no mínimo, duas pessoas que compartilham

um mundo e uma atividade comuns e que as impele à comunicação. O Verdadeiro Conhecimento

pretensamente alcançado pela metafísica teria um núcleo duro que inviabilizaria a interação das

pessoas que se falam e dessas com o ambiente compartilhado e da redescrição que cada um faz desse

ambiente. Assim, o realismo religioso busca mostrar a realidade eterna e imutável da Verdade em

Deus ou no “Caminho Para Ele” (Conf. GHIRALDELLI, 2006). Por caminhos distintos, mas

convergentes, os dois filósofos compreendem a religião em uma perspectiva imanente, sem os

absolutismos metafísicos:Vattimo, socialista, aprecia considerar um fato passado: a importância da vinda de Cristo. Rorty, liberal de esquerda, gosta de santificar a esperança de um fato futuro: a ampliação pelo mundo de uma generosa sociedade livre e sabiamente igualitária. [...] Ambos acreditam [... na] idéia de que Deus está querendo deixar de nos tratar como servos para nos tratar como amigos. Vattimo vê isso na Encarnação. Rorty vê isso na Utopia Vaga. Sermos tomados como amigos é sermos considerados como aqueles que não têm de obedecer, mas como aqueles que podem viver sob uma única lei, a do amor (GHIRALDELLI, 2006, p. 10).

As nuanças pós-metafísicas do pragmatismo de James, do pensamento fraco de Vattimo e

do neo-pragamatismo de Rorty, vêem a relação entre o fim da metafísica e a religião como um

abandono da crença de que somente a verdade objetiva da teologia e das ciências naturais nos torna

livre. Assim, A revelação escritural não contém a explicação de como Deus é e de como podemos nos salvar através do conhecimento da verdade. A única verdade que o Evangelho nos revela é o apelo prático ao amor, à caridade. A verdade do cristianismo é a dissolução do próprio conceito metafísico de verdade. Um cristianismo sem Deus representa uma fé liberta da metafísica objetivista que pensa demonstrar, com base na ‘sadia razão natural’, a existência de um ser supremo. O principal desafio da Igreja Católica na modernidade é o mesmo da ciência: também a Igreja quer valer como fonte única de verdade. As discussões sobre a demonstração da existência de Deus ou dos milagres sempre se moveram em torno da idéia de que a verdade que liberta é a verdade objetiva (ZABALA, 2006, p. 39-40). (Grifo nosso).

Para Zabala (2006), o homem pós-moderno, testemunha do fim das grandes sínteses

unificantes do pensamento metafísico tradicional, pode viver sem neuroses em um mundo sem Deus

e sem estruturas fixas e garantidas, de fundação única, última e normativa para o conhecimento e

para a ética. Este homem não mais necessita da segurança extrema e mágica que era fornecida pela

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idéia de Deus e, assim, aceita que a história não esteja sempre a seu favor, que não há garantia de

felicidade e que o mundo é relativo e feito de meias-verdades. Dessa forma, O ideal de uma certeza absoluta, de um saber totalmente fundamentado e de um mundo organizado racionalmente é, para ele, apenas um mito tranqüilizador próprio de uma humanidade ainda primitiva. Graças à secularização, o homem desvincula-se da hierarquia criatural e de qualquer limite, seja ele cosmológico, como prevê a visão grega do mundo, seja ele teológico, como prevê aquela da Igreja. Nesse sentido, um conceito fraco de razão não seria mais conforme a pregação evangélica do amor? O próprio Paulo não hesita em afirmar: ‘quando sou fraco, é então que sou forte’ [...]. É a fragmentariedade da razão, típica do pensamento pós-moderno, que põe à disposição do homem aquele lugar vacante no qual a Igreja deveria colocar sua própria mensagem de fé para não incorrer mais em contradições” (ZABALA, 2006, p. 35).

Este homem pós-moderno, que assume a condição fraca do ser e da existência, aprende a

conviver consigo e com a finitude, para além da nostalgia do fim do absoluto da metafísica. Dessa

forma, a aceitação da nossa condição constitutivamente dividida, instável e plural, própria ao nosso

ser, constituída de diferença, transitoriedade e multiplicidade, pode possibilitar a prática da

solidariedade, caridade e ironia. Esta última compreendida aqui como descrença em relação à

verdade objetiva e afirmação das verdades plurais e interpretativas. A recusa da transcendência

além-túmulo valoriza o pluralismo e a tolerância evitando o autoritarismo de uma visão particular.

Assim, A ‘morte de Deus’ [...] indica hoje a encarnação, a kénosis (do verbo kenóo, torno vazio), com a qual Paulo alude ao ‘esvaziar-se de si mesmo’ realizado pelo Verbo divino, que se rebaixou à condição humana para morrer na cruz. Tudo isso nos leva a uma concepção menos objetiva e mais interpretativa da revelação, ou seja, a uma concepção ‘do último deus’ (ZABALA, 2006, p. 35-36).

Assim, a atualidade da hermenêutica a partir do ponto de vista religioso, indica que a

salvação não passa através da descrição e do seu conhecimento, mas sim através da interpretação.

Noções como ‘comunicação’, ‘globalização’, ‘diálogo’, ‘consenso’, ‘interpretação’, ‘democracia’ e

‘caridade’ assumiram na cultura contemporânea uma tendência do pensamento a abandonar a

objetividade (Conf. ZABALA, 2006, p. 36).

O pensamento fraco busca a compatibilidade da privatização da fé religiosa, longe da

institucionalização da fé religiosa instituída em igrejas e posições políticas. Aqui, o laicismo é

anticlericalismo, ou seja, “a tendência a afirmar a completa autonomia da vida cultural, social e

política em relação a qualquer igreja, o futuro da religião, segundo Rorty e Vattimo, depende da

capacidade das atuais autoridades eclesiásticas de deixar que a religião se transforme em algo

privado” (ZABALA, 2006, p. 37). Essa perspectiva está muito próxima a de James quando este

defende o direito de cada um adotar uma atitude crente em matéria religiosa sem ser condenado pela

49

lógica ou pela ciência, mas constituindo uma verdade estabelecida pelo desejo e viabilizadora de

soluções práticas.

Na era pós-metafísica, também idade da interpretação, a religião enquanto questão privada

se transformaria na responsabilidade diante de si mesmo e não mais diante de Deus, pois “a

democracia, a hermenêutica e o cristianismo, de um ponto de vista pós-metafísico, não são métodos

para a descoberta da verdade e excluem deliberadamente todas as questões concernentes ao

verdadeiro” (Ibidem, p. 38).

NOTAS:1.“De um lado, ela reduz toda a realidade a mensagem – colocando fora do jogo também a distinção entre

Natur- e Geisteswissenschaften, dado que mesmo as chamadas ciências ‘duras’ verificam ou rejeitam como falsas as suas proposições dentro de determinados paradigmas ou pré-compreensões. Se assim os ‘fatos’ revelam que não são mais que interpretações, por outro lado a interpretação se apresenta, ela mesma, como o fato: a hermenêutica não é uma filosofia, mas a enunciação da própria existência histórica na época da metafísica” (Vattimo, 2006, p. 65).

2. “Na filosofia pós-metafísica de hoje, assim como no neopragmatismo de um Rorty ou na filosofia do agir comunicativo de Habermas, a vizinhança entre verdade e caridade não é de modo algum uma idéia extravagante. Para esses dois pensadores e para muitos de nossos contemporâneos, não existe experiência da verdade senão como experiência de participação em uma comunidade: não necessariamente a comunidade fechada, de paróquia, de província, de família, dos comunitaristas. Como no caso da hermenêutica de Gadamer, a verdade acontece como construção sempre em curso de comunidades que coincidem em uma ‘fusão de horizontes’ (Horizontveschmelzung), que não possui nenhum insuperável limite ‘objetivo’ (como aquele da raça, da língua, das experiências ‘naturais’). O que parece cada vez mais óbvio no pensamento pós-metafísico contemporâneo é que o verdadeiro não é, sobretudo, correspondência da proposição com a coisa. Mesmo quando falamos de correspondência, pretendemos aludir a proposições verificadas no âmbito de paradigmas cuja verdade consiste antes de tudo no fato de serem condivididos por uma comunidade” (Vattimo, 2006, p. 71-72).

3.“Girard é também herdeiro de muita teologia do séc. XX, que insistiu na diferença radical entre fé cristã e ‘religião’,entendendo esta última no sentido da natural propensão do homem para se pensar dependente de um ser supremo p o qual, precisamente porque responde a esta propensão natural, acaba por não ser mais nada além de uma projeção dos desejos humanos, oferecendo-se à crítica poderosamente inaugurada por Feuerbach e depois continuada por Marx” (Vattimo, 1998, p. 29).

4.Conf. Paulo, Carta aos Filipenses.

REFERÊNCIAS

CASTRO, Susana de. Visões rortyanas acerca da “cultura literária”. In: Pragmatismo e questões contemporâneas./Arthur Arruda Leal ferreira (Org.). Rio de Janeiro: Arquimedes: Grupo de Trabalho em Pragmatismo, Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Brasil), 2008.

GHIRALDELLI JR, Paulo. Pragmatismo e hermenêutica. In: O futuro da religião: solidariedade, caridade, ironia. Tradução: Eliana Aguiar, Paulo Ghiraldelli. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.

JAMES, William. La voluntad de creer. Traducion castellana Santos Rubiano. Madrid, 1922. Disponível em http://www.unav.es/gep/LaVoluntaddeCreer.html.

MARINHO, Cristiane M. Pensamento pós-moderno e educação na crise estrutural do capital. Fortaleza, EDUECE, 2009.

50

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RORTY, Richard. VATTIMO, Gianni. ZABALA, Santiago (Org.). O futuro da religião: solidariedade, caridade, ironia. Tradução Eliana Aguiar, Paulo Ghiraldelli. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.

RORTY, Richard. VATTIMO, Gianni. ZABALA, Santiago (Org.). Qual é o futuro da religião após a metafísica? In: O futuro da religião: solidariedade, caridade, ironia. Tradução Eliana Aguiar, Paulo Ghiraldelli. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.

RORTY, Richard. Anticlericalismo e ateísmo. In: O futuro da religião: solidariedade, caridade, ironia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.

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RORTY, Richard. A política cultural e a questão da existência de Deus. In: Filosofia como política cultural. Tradução: João Carlos Pijnappel. São Paulo: Martins Fontes, 2009. (Coleção Dialética).

RORTY, Richard. O pragmatismo como um politeísmo romântico. In: Filosofia como política cultural. Tradução: João Carlos Pijnappel. São Paulo: Martins Fontes, 2009. (Coleção Dialética).

VATTIMO, Gianni. Acreditar em Acreditar. Tradução Elsa Castro Neves. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1998.

VATTIMO, Gianni. A idade da interpretação. In: O futuro da religião: solidariedade, caridade, ironia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.

ZABALA, Santiago. Uma religião sem teístas e sem ateístas. In: O futuro da religião: solidariedade, caridade, ironia. Tradução Eliana Aguiar, Paulo Ghiraldelli. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.

51

RICHARD RORTY E A REDESCRIÇÃO DA SABEDORIA: Ciúme de Platão, Ciúme de Proust

Marcos Carvalho Lopes*

RESUMO: A relação de ciúme que funda a busca de Platão por superar e colocar-se no lugar de Homero, é redescrita por Rorty, a partir da visão proustiana deste sentimento em mote para pensar como a “angústia da influência” – conceito do crítico Harold Bloom – permeia o campo filosófico. Com isso, a ânsia de desenvolver uma teoria que desvelasse verdades imutáveis e não-relacionais pode ser tomada como um mero desejo de fugir da contingência. A aceitação da contingência e a percepção da Filosofia como um gênero de escrita promoveriam uma mudança na percepção do que chamamos de sabedoria.Palavras-chave: Proust. Platão. Rorty. Ciúme. Metafilosofia.

ABSTRACT: The envy has founded the search of Plato to overcome and put herself in the place of Homer, this relation is redescribed for Rorty from the Proustian vision of this feeling in a sense for thinking about how the "anxiety of influence" – a concept of critical Harold Bloom – pervades the field of philosophy. Thus, the drive to develop a theory that would unveil unchanging and non-relational truths can be taken as an anxiety to escape from contingency. The acceptance of contingency and perception of philosophy as a genre of writing promove a change in perception of what we call wisdom.Keywords: Proust. Plato. Rorty. Metaphilosophy. Jealousy.

A sabedoria não se transmite, é preciso que a gente mesmo a descubra depois de uma caminhada que ninguém pode fazer em nosso lugar, e que ninguém nos pode evitar, porque a sabedoria é uma forma de ver as coisas. (PROUST, 1984, p.339)

Platão tinha ciúme de Homero e do lugar que os poetas ocupavam na cultura grega. A

Filosofia nasceu desse sentimento, trazendo consigo a promessa de desenvolver uma boa sociedade

que estaria livre da deformação do desejo (NUSSBAUM, 2004), afirmando a identificação socrática

de virtude com conhecimento, e tomando este pressuposto como caminho de ordenação social. Para

combater os poetas, Platão não tinha alternativa senão a de tecer narrativas e criar seus próprios

mitos, combatendo sombras com sombras. Escrevendo contra a escrita, afirmava um saber que se

fundaria na contemplação da Verdade eterna e imutável.

O jovem Richard Rorty (1931-2007) escolheu aos quinze anos frequentar o curso de

Filosofia buscando nele esta “verdade redentora” que a leitura de Platão havia lhe anunciado

confusamente. Rorty queria encontrar um sistema de pensamento em que pudesse conciliar os seus

gostos idiossincráticos (por orquídeas selvagens, por exemplo) com a busca por justiça social. A

leitura de livros marxistas havia lhe colocado em dúvida sobre seu caráter moral, já que seus gostos

* Doutorando em filosofia pela UFRJ, bolsista da Capes. Mestre em filosofia pela UFG. 52

privados não teriam lugar, sendo condenados em qualquer utopia, já que nelas a distinção entre

privado e público é extirpada.1 Em Platão, o jovem percebeu a possibilidade de alcançar uma espécie

de conhecimento que prometia ao mesmo tempo lhe garantir virtude moral.

A “verdade redentora” que Rorty vislumbrava adquirir pela Filosofia seria o mesmo tipo de

saber que a fé religiosa proporciona: a crença na posse de uma perspectiva privilegiada que permite

ver a realidade como ela é em si mesma, e, com isso, por fim a qualquer processo de inquirição.

Tinha dúvidas se essa perspectiva privilegiada vertical tomaria a forma sublime de um bem estar

profundo e incomunicável ou lhe daria a posse de argumentos belos e racionais, capazes de

convencer qualquer interlocutor.

As duas opções apontam para o anseio de tornar-se autêntico, se distanciando da educação

e cultura de sua sociedade na tentativa de transcender qualquer contexto de justificação, ocupar um

lugar de “olho-de-deus”. Rorty tentou com afinco alcançar essa posição filosófica, contudo não

conseguiu manter a necessária fé na Igreja da Razão, crença que seria primordial para seguir os

caminhos de investigação ascética e positivista, padrão na academia (norte-americana).

Suas dúvidas quanto à possibilidade de seguir o caminho de ascensão na escada platônica,

das sombras e aparências para a luz e a verdade, tornaram-se mais fortes após a leitura de dois livros:

A Fenomenologia do Espírito, de Hegel e Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Rorty

conta que por bom tempo considerou estas como sendo as “grandes realizações da espécie à qual

pertencia” (RORTY, 2005, p.39). Hegel ocupou para ele o mesmo lugar dos livros marxistas, com a

ideia de que também poderia “traduzir o seu tempo em pensamento” e, desta forma, contribuiu para

transformar o mundo (como pretendia Karl Marx). Já Proust ocuparia, para Rorty, o lugar de suas

orquídeas selvagens, ou seja, sua obsessão privada. Apesar de a primeira ser uma obra teórica e a

segunda literária, as duas narrativas traziam para o jovem filósofo a percepção de algo que a tradição

platônico-kantiana reprimira: a contingência. Em seu ensaio autobiográfico “Trotsky e as orquídeas

selvagens”, Rorty descreve com vivacidade o encantamento provocado por esta descoberta:

Era o regojizante compromisso com a temporalidade que Hegel e Proust compartilhavam – o elemento especificamente antiplatônico em suas obras – que parecia tão maravilhoso. Ambos pareciam capazes de tecer todas as coisas que encontravam em uma narrativa sem solicitar uma moral para tal narrativa, e sem perguntar como a narrativa apareceria sob o aspecto da eternidade. (RORTY, 2005, p.39-40).

O encontro com Hegel e Proust ajudou a modificar a busca que empreendia. Podemos dizer

que serviram de início para a “trajetória do pragmatista”, uma espécie de auto-narrativa irônica que

Rorty utilizaria como “ponto fixo”, seu “Plano Oculto”2 para encaixar em um espectro os textos que 53

lhes chegam a mão. Tal trajetória teria três fases: (1) Num primeiro momento, o “Perseguidor da

Iluminação” começa a duvidar da utilidade dos grandes dualismos da filosofia ocidental e percebe

que esses não devem ser superados, mas esquecidos: com a ajuda de Nietzsche, compreende tais

dualismos como marcos de tentativas fantasiosas de adquirir um controle total sobre a realidade.

(2) Num segundo momento, o pragmatista passa a destruir/desconstruir esse desejo de controle

total, como “um simples eufemismo pretensioso da esperança masculina de oprimir as mulheres,

ou da esperança da criança de se vingar da sua mamãe e do papai.”(RORTY, 1993, p.109). Aqui, o

“Perseguidor da Iluminação” já pode esboçar uma risada irônica, ao perceber a origem de sua

antiga compulsão por uma “verdade redentora”. (3) Num terceiro momento, a pessoa deixa de crer

que seu caminho consiste de passos numa escada em direção a uma iluminação: sua trajetória seria

mais próxima do resultado contingente da leitura de vários livros. Deixa para trás qualquer

dimensão da busca da verdade por correspondência e se dá conta de que “há tantas descrições

quanto são os usos a que o pragmatista possa ser submetido por si mesmo ou pelos outros”. Então,

a avaliação de qualquer das descrições alternativas é vista como tendo por referência sua eficácia

para cumprir determinado objetivo, sua utilidade para um projeto (RORTY, 1993, p.108-109).

Essa trajetória descreve uma narrativa que teria sentido pedagógico, conduzindo à dúvida

quanto a distinções filosóficas tradicionais, como as entre essência e aparência, que servem para

sustentar a pretensão de autoridade fundacional da visão filosófica.

O primeiro livro completo escrito por Rorty, A Filosofia e o Espelho da Natureza,

argumenta contra a argumentação, questionando as ideias representacionistas que fundamentariam

a pretensão da Filosofia de colocar-se, a partir de Kant, como juíza e guardiã da cultura, dado seu

acesso privilegiado às bases epistemológicas da sabedoria. Nele, o filósofo norte-americano tenta

descartar os problemas que haviam ocupado a Filosofia em sentido platônico-kantiano, como

perguntas perenes por essências e princípios universais. Se não existe uma “realidade” esperando

para ser “descoberta”, as descrições podem ser alteradas de acordo com os projetos que

pretendemos desenvolver. Nesse contexto, qual seria a função da Filosofia?

Para Rorty, a Filosofia com “F” maiúscula, que marca a pretensão metafísica de um

acesso privilegiado à verdade, não teria mais lugar. Seria necessário então pensar em uma era pós-

filosófica ou criar uma perspectiva diferente da sabedoria, que se afastasse da tentativa de fundar

epistemologicamente o conhecimento ou se colocar como juiz e “guarda de fronteira” dos valores

culturais. A filosofia, com letra minúscula, deveria se tornar finita e assumir sua historicidade,

cuidando de limpar o lixo metafísico de conceitos inúteis para abrir espaço para a imaginação.

54

Em Contingência, Ironia e Solidariedade, Rorty tenta construir alguma resposta para seus

anseios de juventude, rejeitando a tentativa platônica de unir justiça social e autocriação em uma

única teoria. Esse livro tem mais a dever a Proust do que a Platão. Embora Rorty critique o anseio

de “pedagogizar narrativas”, pressupondo um fundamento epistemológico que elas espelhariam,

neste artigo pretendo utilizar Proust contra/com a “Trajetória do Pragmatista”, ou melhor,

assumindo que a filosofia é um gênero literário e o filósofo um tipo de escritor, a narrativa de Em

busca do tempo perdido pode ser lida como um mito que substitui a alegoria platônica como mote

para uma redescrição da sabedoria.

Lendo Contingência, Ironia e Solidariedade como sumarizando muitas das intuições de

Em busca do Tempo Perdido, poderemos entender melhor porque invejar os poetas e os criadores

de metáforas, como Proust, parece ser uma sina de quem procura a sabedoria.

A principio, acho interessante assinalar as semelhanças que tanto a narrativa

autobiográfica construída por Rorty quanto os romances de formação tem com o mito da busca de

Parsifal pelo Santo Graal.3 Na história deste cavaleiro, imortalizada na ópera de Wagner de mesmo

nome, ele consegue alcançar o Graal por manter sua pureza de coração, caminhando entre opostos

e construindo, não pela inteligência, mas pela fé, o seu saber. O Graal é seu caminho. Marcel,

protagonista do romance proustiano, segue entre os caminhos de Guermantes e de Swann, entre

Sodoma e Gomorra, é tentado pelas “raparigas em flor”4 etc. (Em verdade, todos os “romances de

formação” tem algo da herança de Parsifal e das lendas do Graal). Rorty queria seguir entre as

opções binárias da Filosofia tradicional, entre analíticos e continentais, o belo e o sublime,

realistas e antirrealistas etc. Ambos denunciam a pressuposição de que exista um caminho, uma

teoria, um método, e tentam traduzir em seus termos a lição de Nietzsche sobre a aventura de

tentar “chegar a ser quem se é”.

Nenhum dos dois tem ou pensa ter algo como um poder moral como “pureza de coração”

e o seu “Graal” não deixa de ser uma “ilusão de ótica”, uma mudança de perspectiva que tem

como componente estético o ciúme. Ciúme dos precursores na arte que se quer dominar, inveja

que se faz busca, que nos incita a uma tentativa de apreender o ser em uma teoria, a nos tornarmos

especialistas e dominar pela inteligência o objeto de nossa obsessão (impulso presente em Swann e

Marcel, especialistas em sua compulsão). Para Harold Bloom, essa “angústia da influência” torna o

parricídio na poesia uma condição necessária para que o artista supere a repetição e possa ser ele

55

também um criador original. Nesse sentido, para o crítico norte-americano, Proust desvenda a

radical necessidade que corporifica o escritor, tendo por sintoma sua escrita: (...) a narração romanesca é inveja criativa, amor é ciúme, ciúme é o pavor de não haver espaço suficiente para si (inclusive espaço literário), e de que jamais possa haver tempo suficiente para si, porque a morte é a realidade da vida de uma pessoa. (BLOOM, 2006, p.88.)

A lição de Proust pode nos ajudar a entender a necessidade de redescrever a sabedoria,

que animou o trabalho de Rorty. O escritor francês oferece em sua escrita um “antilogos”, uma

“antifilosofia”, como descreve Gilles Deleuze: “Proust constrói uma imagem do pensamento que

se opõe à da filosofia, combatendo o que há de mais essencial em uma filosofia clássica: seus

pressupostos” (DELEUZE, 2006, p.88). O ciúme, para Deleuze, também estaria na raiz da busca

pela verdade, já que tal procura nasce no ciumento que desvenda

(...) um signo mentiroso no rosto da pessoa amada; é o homem sensível quando encontra a violência de uma impressão; é o leitor, o ouvinte, quando a obra de arte emite signos, o que o forçará talvez a criar, como o apelo do gênio a outros gênios. (DELEUZE, 2006, p.88)

A comunicação de um gênio para com outro não tem a forma de uma “amizade tagarela”,

mas surge como desafio de enfrentamento agonístico. A tradicional Filosofia “com todo o seu

método e a sua boa vontade, nada significa diante das pressões secretas da obra de arte”

(DELEUZE, 2006, p.81). Tais “pressões secretas”, para Rorty, assim como para Deleuze, advêm

da imaginação que desenvolve novas formas de ver o mundo. O ciúme alimenta o criador, este

“divino intérprete que vigia os signos pelos quais a verdade se trai”. Tal traição é o que abre

espaço para o novo, e, talvez seja traindo a sabedoria da Filosofia que poderemos recriá-la, com a

amorosa violência de quem “dês-lê” (misreads) seus precursores, tomando-os como mais trigo

para o moinho de seu processo de autocriação.

A sabedoria do romance nos ensina a lidar com a incerteza, a diversidade, a

incompletude. Como ensina Milan Kundera:

O espírito do romance é o espírito da complexidade. Cada romance diz ao leitor: “as coisas são mais complicadas do que você pensa”. Esta é a eterna verdade do romance que, entretanto, é ouvida cada vez menos no alarido das respostas simples e rápidas que precedem a questão e a excluem. (KUNDERA, 1988. p. 21-22).

56

Em sua tentativa de redescrição da Filosofia em filosofia, Rorty passou do ciúme de

Platão para o ciúme dos poetas, do privilégio da razão para o da imaginação. Mas essa é apenas

uma escolha contingente, que não pode ser tomada como uma nova “verdade teórica”. Em

entrevista, Rorty disse que

Invejo os poetas da mesma forma como filósofos analíticos, do tipo de Quine, têm inveja de cientistas naturais. Uma das grandes diferenças entre filosofia analítica e não-analítica tem sido o objeto da inveja dos filósofos. Não me imagino sendo invejoso de um físico ou de um matemático, do mesmo modo que de um contador ou advogado – não interessando quão talentoso ou socialmente útil. Eu não tenho certeza se Quine se poderia imaginar tendo inveja de Blake ou Rilke.(RORTY, 2006. p.71)

O idiossincrático objeto de nossa inveja determinaria a forma de nossos interesses e o

caminho que nos constitui como amigos do saber. Já que não pode argumentar a favor do tipo de

sabedoria que considera mais útil, Rorty tem que contar histórias que possam ser interessantes para

os demais. Seu mote é o de que a filosofia não pode nem precisa ser mais do que uma voz, um tipo

de discurso, dentro da conversação da humanidade.

NOTAS

1. A utopia pede que se bloqueie o “eu” em favor do “nós”. Assim, o desejo de transformação social deve ser superior a qualquer gosto idiossincrático individual. Para realizar ou manter sua promessa de ordenação social, os projetos utópicos não podem “dar espaço à liberdade pessoal ou individual” (RIBEIRO, 2004, p. 165).

2. No debate com Umberto Eco, Richard Rorty constrói uma narrativa “semi-autobiográfica” que seria, para ele, seu ponto fixo, sua obsessão paranoica. Era uma forma de ironizar a pretensão de Eco de propor limites para a interpretação. No livro de Umberto Eco (1989) O Pêndulo de Foucault, os personagens que se entregam a semiose hermética criam um “Plano” que tem por centro a busca do Santo Graal pelos templários. Todos os eventos, para a interpretação hermética desses personagens, apontam direta ou indiretamente para este grande Plano oculto. O Pendulo de Foucault é um dos motes do debate entre Eco e o filósofo neopragmatista americano. Rorty descreve sua narrativa sobre a “Trajetória do Pragmatista” como sendo um “equivalente pessoal da história dos templários”. (RORTY, 1993, p.108) Usando os termos de Eco neste romance, diríamos que “A trajetória do pragmatista” é o Plano da semiose hermética de Rorty.

3. Nos romances do Graal, e de forma marcante na história de Parsifal fica evidente a importância dada ao individuo e a sua vontade, que o faz seguir seu caminho. Em sua história a vontade é divinizada, segundo Joseph Campell (1990, p.198) “o romance do Graal é o romance de Deus em nosso próprio coração, e nele o Cristo se transforma numa metáfora, num símbolo daquele poder transcendental que é o esteio e o ser de nossa própria vida”. A divinização da vontade exposta nas histórias do Graal é a única forma de resolver o problema da Terra Devastada. Nela a desordem e o caos advém justamente do fato das pessoas viverem uma vida sem autenticidade, deixando de seguir o que lhes pede o coração, para se curvar diante de convenções sociais (Idem, p. 201). A busca pelo Graal é uma procura por desfazer essa situação de falsidade. O Graal seria a essência da energia vital que palpita nos corações humanos. Parsifal – Percival ou Parzifal – é o cavaleiro que alcança o Graal, dele se torna guardião, assim como dos mais altos valores espirituais: compaixão e lealdade (Ibidem, p. 243). Parsifal é um “puro idiota tornado sábio pelo sofrimento” (Assim o descreve Richard Wagner em sua peça Parsifal (MILLINGTON, 1995, p. 353.), representa a superação de todas as oposições, seja entre Ocidente e Oriente, seja entre bem e mal. Parsifal seria aquele que segue perci à val, ou seja, pelo meio do vale; caminhando entre os contrários e construindo o seu próprio caminho . Na busca pelo Graal, cada qual deve fazer a sua própria rota, deve entrar na floresta e seguir seus instintos, mesmo que gire em círculos, não pode tomar a trilha de outro como a verdadeira: isso só o faria se perder ainda mais. Como explica Joseph Campell: “Pode-se obter indicações dadas por pessoas que seguiram algum caminho, mas é preciso que, obtidas essas indicações, você as traduza 57

segundo o seu próprio critério, e para isso não existem livros de normas. Nessa busca fantástica – este é um romance maravilhoso, no qual cada um dos cavalheiros segue o seu próprio caminho -, quando alguém encontra o caminho de outrem e pensa; ‘ele está chegando lá’ e começa a seguir por ali, logo em seguida se vê completamente perdido, muito embora aquele outro possa ter chegado ao seu destino.” (CAMPELL, 1990, p. 199).

4. Quando Parsifal é tentado pelas “raparigas em flor”, em sua inocência pergunta “Vocês são flores? Vocês cheiram bem!”. Provavelmente são as “meninas-flor de Parsifal que inspiram o título do segundo volume de Em busca do Tempo Perdido: À sombra das raparigas em flor.

REFERÊNCIAS

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CAMPELL, Joseph. As transformações do mito através do tempo. São Paulo: Cultrix, 1990

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

ECO, Umberto Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

_____, O pendulo de Foucault. Editora Record, Rio de Janeiro, 1989.

KUNDERA, Milan. A arte do romance. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988

MILLINGTON, Barry (org). Wagner: um compêndio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

NUSSBAUM. Martha, A República de Platão: a boa sociedade e a deformação do desejo. Porto Alegre: Bestiário, 2004

PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. Paulo: Abril Cultural, 1984.p.27.

RIBEIRO, Renato Janine. “A Utopia Lírica de Chico Buarque de Hollanda.” In: EISENBERG, J (et al.) Decantando a República. v.1: Inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.

RORTY, Richard. Take care of freedom and truth will take care of itself. Stanford Califórnia: Stanford University Press, 2006.

______. “A trajetória do pragmatista”. In: ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993

______. “Trotsky e as orquídeas selvagens”. In: Pragmatismo e Política. São Paulo: Martins, 2005.

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UTOPIA LIBERAL DE RICHARD RORTY

Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira*

RESUMO: O objetivo deste artigo é contribuir tanto para uma compreensão mais aguda das críticas feitas à filosofia política de Richard Rorty quanto para uma leitura mais generosa de suas qualidades. O foco de análise serão as principais ideias expressas por Rorty em “Contingência, Ironia e Solidariedade” – o impacto do reconhecimento do caráter contingente das crenças que servem de suporte ao ideário liberal-democrático, a distinção entre público e privado, a aposta no poder das redescrições como fonte de progresso moral – bem como alguns problemas que tais ideias suscitam. Para tanto, discutirei criticamente objeções e comentários feitos por autores como Juergen Habermas, Richard Bernstein, Nancy Fraser, Christopher Voparil, James Conant, Thomas McCarthy, entre outros.Palavras-chave: Utopia. Rorty. Liberalismo. Contingência. Redescrição.

ABSTRACT: The purpose of this article is to foster not only a deeper comprehension of the criticism aimed at Richard Rorty’s political philosophy, but also to suggest a more generous reading of its qualities. The main branch of analysis will be the ideas Rorty advances in “Contingency, Irony and Solidarity – the impact of acknowledging the contingency of beliefs that support liberal-democratic values, the public-private distinction, the assumption of redescriptions as sources of moral progress – as well as the doubts they aroused. To do so, I will critically discuss objections and commentaries made by authors such as Juergen Habermas, Richard Bernstein, Nancy Fraser, Christopher Voparil, James Conant, Thomas McCarthy, among others.Keywords: Utopia. Rorty. Liberalism, Contingency. Redescription

Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.

Karl Marx, Teses sobre Feuerbach

1. Introdução: Filosofia e Política Neopragmatistas

Já foi dito que o sucesso não se faz sem controvérsia, e com o filósofo norte-americano

Richard Rorty não foi diferente. Poucos intelectuais extrapolaram as fronteiras de sua própria

disciplina com tanto vigor e alcance quanto Rorty. Neste percurso, Rorty foi lido das formas as mais

diversas, nem sempre generosas. Polêmico, foi chamado de “pragmatista vulgar”, “pós-modernista”,

“niilista”, “anti-intelectualista”, “relativista”, “cético disfarçado”, “elitista”, “caricaturista” etc.

* Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira é doutorando em ciências sociais pela PUC-RJ. Tem interesse em filosofia neopragmática, filosofia política moderna, sociologia do conhecimento, antropologia urbana e segurança pública no Rio de Janeiro. 59

(MARGUTTI, 1998; POGEBRINSCHI, 2006; HAACK, 1995; SEMERARO, 2005). Parte das

críticas acerta o alvo; outras tantas carecem de pontaria mais acurada. Nesse sentido, o objetivo do

presente trabalho é contribuir tanto para uma compreensão mais aguda das críticas feitas às

insuficiências de algumas ideias de Rorty quanto para uma leitura mais generosa de suas qualidades1.

Antes, porém, uma breve introdução.

Rorty ganhou notoriedade buscando mostrar que a epistemologia moderna está fundada em

metáforas que mais criam problemas do que os resolvem: a metáfora de que a mente seria uma

espécie de container que possuiria crenças, e a de que uma parcela especial destas crenças seria

como um espelho capaz de representar corretamente a realidade (RORTY, 1994a). Tais metáforas

estão no cerne daquele que é, desde Platão, o sonho que anima a empresa intelectual do Ocidente: a

tentativa de livrar o pensamento das contingências da história, a busca de ideias cuja validade

independa de contexto, o desejo aparentemente incurável de atingir uma perspectiva fora de qualquer

perspectiva. Rorty reconhece os progressos intelectuais feitos em função desta tradição, mas diz que

estamos em condições de abandoná-la, como quem descarta uma escada após utilizá-la para chegar

num pavimento mais alto (RORTY, 1994b). E sugere que, em prol do aperfeiçoamento do ideário

liberal-democrático, podemos substituir estas metáforas por outras, mais úteis aos nossos propósitos

atuais.

O ponto de partida de Contingência, Ironia e Solidariedade é a constatação da

incomensurabilidade entre o público e o privado. De um lado, autores como Marx, Mill, Habermas e

Rawls nos ajudaram a pensar como nossas instituições e práticas sociais poderiam ser mais justas, ou

menos cruéis; do outro, filósofos como Nietzsche, Foucault e Heidegger nos ensinaram a enxergar a

importância da autonomia do indivíduo, isto é, a importância do florescimento da vida humana que

se liberta das amarras sociais de seu tempo e cria a si própria. Trata-se, diz Rorty, de duas

perspectivas igualmente válidas, que deflagram demandas também igualmente válidas – autocriação

privada e solidariedade coletiva – mas definitivamente incompatíveis entre si. Não há como imaginar

uma teoria sobre a sociedade que seja capaz de sintetizar o impulso nietzschiano de implodir as

convenções sociais que impedem os indivíduos de serem eles mesmos com a preocupação

habermasiana de garantir as condições ideais de uma comunicação compartilhada sem distorções.

Assim sendo, Rorty nos incita a pensar neste dois grupos de autores como ferramentas que servem a

propósitos distintos, ferramentas que “necessitam de síntese tão pouco quanto os pincéis e os pés-de-

cabra” (RORTY, 2007: 17). Em outras palavras, Rorty quer conciliar os vocabulários advindos do

romantismo e do racionalismo iluminista, valorizando as contribuições específicas de cada um, mas

60

sem com isso pretender unificá-los numa espécie de metavocabulário. Ao contrário, sua intenção é

usá-los para propósitos diferentes. O vocabulário de inspiração romântica, cujo traço distintivo é a

crítica aos processos de socialização e o apelo à liberdade de autocriação do indivíduo, é útil desde

que fique restrito ao âmbito privado. O vocabulário herdado do racionalismo iluminista, e tudo que

veicula no sentido de fomentar um esforço social compartilhado em favor da justiça e da

solidariedade, é essencialmente público. Este é um ponto importante, e Rorty insiste bastante nele: as

aspirações de ambos os vocabulários devem permanecer confinadas aos seus respectivos domínios

de ação.

Tal demarcação rígida de fronteiras causou polêmica, do mesmo modo que as alegações de

Rorty em favor de uma cultura liberal pós-metafísica, isto é, uma cultura em que os valores liberais

conservem sua força a despeito de não serem socialmente percebidos como tendo um fundamento

universal. Nós não precisamos, diz Rorty, de um tribunal supra-humano ao qual recorrer para tentar

assegurar a validade definitiva das crenças que nos são mais caras; o consenso de nossa comunidade

é o suficiente. Aqui o antifundacionismo rortyano encontra seu projeto político. Ao rejeitar a ideia

de que seja possível representar a realidade como ela é em si mesma, Rorty está propondo uma visão

da filosofia como o lugar de uma conversação com o objetivo de resolver problemas transitórios e

apresentar propostas para a realização de utopias. Mas a impossibilidade de nos agarrarmos a

fundamentos não deveria nos levar a crer que não temos bons motivos para preferir o ideário liberal-

democrático, nem que estamos condenados a um relativismo paralisante. “Uma crença”, diz Rorty,

“pode continuar a ser considerada algo por que vale a pena morrer, entre pessoas plenamente

cônscias de que essa crença não é causada por nada mais profundo do que circunstâncias históricas

contingentes” (RORTY, 2007: 312). Tais pessoas seriam ironistas2.

Eis o esquema rortyano: o reconhecimento da contingência (da linguagem, do self e dos

valores que unem uma comunidade) fomenta a ironia (postura algo cética3, que informa e atravessa

uma cultura historicista) que, por sua vez, irá desaguar na preocupação em estender o espaço da

solidariedade, ingrediente essencial ao liberalismo democrático. O primeiro passo parece

automático; de fato, qualquer pessoa que venha a reconhecer o caráter contingente das próprias

crenças é levada a adotar uma atitude intelectual que, se não implica necessariamente na suspensão

do juízo, ao menos impede o dogmatismo. Mas o segundo passo, o movimento da ironia em direção

à solidariedade, não oferece conexão evidente. Rorty o explica através de sua concepção de

progresso como o resultado do incessante processo de substituição de velhos e desgastados

vocabulários por outros mais novos, adequados aos propósitos de sua época. Não apenas progresso

61

intelectual, mas também e sobretudo moral: diferentemente da maioria dos filósofos hodiernos,

Rorty acredita que os avanços morais são feitos quando nos tornamos mais imaginativos, e não

quando supostamente nos aproximamos um pouco mais de descobrir, de uma vez por todas, o que

seria o Justo e o Correto. Quando se trata de melhorar nossa visão de mundo, nossa maneira de nos

relacionarmos uns com os outros, a imaginação é a faculdade humana central. A razão apenas se

movimenta dentro dos parâmetros estabelecidos pelos jogos de linguagens correntes, mas a

imaginação tem o poder de criá-los (RORTY, 2007).

Os avanços intelectuais e morais são portanto vistos como resultado de um processo

interminável de apresentar redescrições capazes de criar novos vocabulários. Como observa

Christopher Voparil (2006), a redescrição rortyana resulta da mistura entre a concepção

wittgensteiniana da linguagem como uma ferramenta – uma alavanca, digamos, jamais um espelho –

e a noção de Thomas Kuhn do poder transformador das revoluções conceituais. Seguindo Kuhn

(2005), Rorty afirma que a mudança para um novo vocabulário não seria uma consequência direta do

acúmulo de certezas e conhecimentos, ou o desenrolar natural da investigação cada vez mais

racional, mas antes saltos inovadores de percepção, rupturas de paradigmas que resultam da

inovação, da criação de novas maneiras de pensar. Visto dessa forma, o processo de mudança

histórica deve muito à criação de novas metáforas, entendidas no sentido que Donald Davidson lhes

confere4.

Para além de seu poder revolucionário, a redescrição cumpriria um papel fundamental na

criação de solidariedade, pois esta, segundo Rorty, não é descoberta pela reflexão, mas sim criada. Ela é criada pelo aumento de nossa sensibilidade aos detalhes particulares da dor e da humilhação de outros tipos não familiares de pessoas. (...) Esse processo de passar a ver outros seres humanos como “um de nós”, e não como “eles”, é uma questão da descrição detalhada de como são as pessoas desconhecidas e de redescrição de quem somos nós mesmos. Essa não é uma tarefa para a teoria, mas para gêneros como a etnografia, a reportagem jornalística, o livro de história em quadrinhos, o documentário dramatizado e, em especial, o romance. (...) A ficção de autores como Choderlos de Laclos, Henry James ou Nabokov fornece detalhes sobre os tipos de crueldade de que nós mesmos somos capazes e, com isso, permite que nos redescrevamos. É por isso que o romance, o cinema e o programa de televisão, de forma paulatina mas sistemática, vêm substituindo o sermão e o tratado como principais veículos de mudança e progresso morais (RORTY, 2007: 20).

Rorty entende este processo como o “declínio da verdade redentora e a ascensão da cultura

literária” (2006). Sua tese é a de que os intelectuais do Ocidente esperaram primeiro pela redenção

de Deus (a crença na relação com um ente divino onisciente e onipotente), depois pela redenção da

filosofia (a crença na aquisição de um conjunto de crenças capazes de espelhar a natureza), e agora,

pela redenção da literatura (a produção de um conhecimento tão variado quanto os seres humanos). 62

São as narrativas, e não mais os tratados de filosofia ou os livros sagrados das religiões, os agentes

responsáveis pelo alargamento de nossa sensibilidade em relação ao sofrimento e humilhação.

Porém, note-se: ao afirmar que as descrições imaginativas de situações particulares são as principais

fontes de progresso moral, Rorty já está unindo ironia e solidariedade. O ironista, cuja atitude

intelectual é calcada na dúvida, rejeita a pretensão de qualquer alegação de conhecimento cuja

validade independa de contexto. Não se arvora em nenhum universal – “razão”, “natureza humana”

– para decretar sua superioridade. Ao contrário, ele sabe que a história, inclusive a história dos

nossos dias, está repleta de exemplos de atrocidades cometidas em função do hábito de usar tais

universais como garantia de legitimidade para interesses particulares. Quando chamado a defender

os valores e conquistas da democracia liberal perante um público que lhes é hostil, o ironista não se

apresenta como alguém que faz “melhor uso de uma capacidade humana universal”, mas sim como

alguém que possui “uma história instrutiva para contar” (RORTY, 2005a: 122). O ironista é portanto

assumidamente etnocêntrico5. Mas o que o redime é o fato de seu etnocentrismo ser o das pessoas

que “foram criadas para desconfiar do etnocentrismo” (RORTY, 2007: 326).

2. Filosofia: Razão, Verdade e Contexto

Rorty é frequentemente lido como o filósofo que “vulgarizou” ou mesmo “distorceu a

mensagem da tradição do pragmatismo clássico” (HAACK, 2004: 41; tradução livre). Dado o

relativismo subjetivista e o elogio romântico à estetização do discurso e da vida que emanaria de

seus textos, diz-se que Rorty deveria ser visto não como representante do neopragmatismo, mas

como um dos expoentes mais notáveis do pós-modernismo (KLOPPENBERG, 1998;

POGEBRINSCHI, 2006). Tais leituras têm sua razão de ser. De fato, a filosofia de Rorty possui uma

coloração pós-moderna, e no geral pouco se assemelha, por exemplo, ao pragmatismo de Peirce.

Mas se por um lado é válido atentar para a filiação intelectual de Rorty, por outro a redução de suas

ideias a rótulos lhes poda a compreensão. Mais produtivo é avaliar como estes rótulos vieram à tona.

Comecemos, pois, pelos argumentos de Jüergen Habermas, admirador e crítico arguto de Rorty.

Em O Discurso Filosófico da Modernidade, Habermas (2002) distingue entre “razão

centrada no sujeito”, uma razão pura e transcendental, invenção da filosofia grega, e “razão

comunicativa”, que não é um dom biologicamente dado, e sim um conjunto de práticas sociais. Ao

insistir que deixemos de pensar na razão como uma qualidade metafísica subjetiva, Habermas a

socializa, como aliás já havia feito Durkheim na introdução de As Formas Elementares da Vida

63

Religiosa. A racionalidade comunicativa, afirma Habermas, está “imediatamente entrelaçada no

processo social da vida porque os atos de entendimento recíproco assumem o papel de um

mecanismo de coordenação da ação” (Habermas, 2002: 439). O corolário deste raciocínio é que um

indivíduo não pode ser racional sozinho, assim como não pode operar sozinho dentro da linguagem.

A racionalidade está inextricavelmente ao intercâmbio de justificativas, ao “jogo de dar e pedir

razões”, nas palavras de Robert Brandom (apud RORTY, 2005c: 256). Rorty concorda com

Habermas, dizendo que postular a razão comunicativa é afirmar que o conhecimento é aquilo que

emerge como o resultado de um debate, de um consenso, e que a verdade está mais relacionada a

este debate do que a uma qualidade interna do sujeito, um estado mental individual (RORTY,

2005c).

Habermas distingue também entre dois tipos de discurso: o discurso considerado “sério”,

que supõe alegações de validade, e o meramente poético, imaginativo, ficcional. O primeiro tipo de

discurso é por definição sujeito a normas argumentativas universais; pode ser racionalmente

criticado e defendido em qualquer contexto, ou seja, suas alegações podem ser discutidas por sobre

uma base comum, o que torna possível o entendimento intersubjetivo. Já o discurso

fundamentalmente estético é auto-referente, basta-se a si próprio: não transcende contextos

subjetivos particulares a fim de estabelecer uma base universal necessária à integração social

mutuamente compreensiva. Neste ponto a crítica de Habermas a Rorty começa a tomar fôlego. Ao

preferir o estético ao racional, a retórica à lógica, a narrativa à inferência, e a metáfora à acuidade

descritiva, Rorty estaria se embrenhando na auto-referência e no relativismo característicos dos

discursos pós-modernos. Não há como escapar da razão, diz Habermas, porque não há como escapar

da linguagem, e a linguagem é necessariamente racional.

Com efeito, Habermas quer preservar a noção de argumento intrinsecamente melhor e a

validade universal como objetivo de investigação, não apenas em função de suas convicções acerca

do funcionamento da linguagem e da racionalidade, mas também por uma questão lógica. É que

afirmar “não há alegações universalmente válidas” e pretender que esta seja uma afirmação

universalmente válida é incorrer numa contradição auto-performativa – o que é apenas uma outra

maneira de dizer que todo argumento relativista refuta a si próprio, como já se sabia na Grécia

antiga. Habermas localiza aí uma dificuldade intrínseca ao projeto filosófico de Rorty.

Impossibilitado de reclamar legitimidade para si nos moldes platônicos, Rorty não tem outra

alternativa senão argumentar que a legitimidade de sua perspectiva, ou a justificativa para a

aceitação do vocabulário que propõe, residiria na eficiência, no fato de ser um vocabulário mais

64

apropriado às condições de vida atuais. Aí o nó: pois se Rorty faz do sucesso funcional o critério de

avaliação de sua própria legitimidade, então está em apuros, porque ele mesmo admite que as

distinções metafísicas que pretende abandonar fazem parte do senso comum ocidental (RORTY,

1994b). Se o vocabulário platônico permanece até hoje com aderência suficiente em nossas práticas

lingüísticas cotidianas, diz Habermas, é porque parece satisfazer plenamente nossas necessidades.

Logo, do ponto de vista pragmático não haveria bons motivos para substituí-lo por outro vocabulário

(HABERMAS, 2005: 77-78).

Rorty, como vimos, tenta associar a noção habermasiana de racionalidade comunicativa à

sua concepção de verdade como o resultado de um consenso intersubjetivo alcançado por meio de

um debate livre, isento de coerções (unforced agreement). Mas Habermas esquiva-se deste

contextualismo forte avançado por Rorty, e insiste em que há asserções cuja validade independe de

contexto. Afirmando que é preciso reconhecer a diferença entre “verdadeiro” e “justificadamente

tido como verdadeiro”, e evocando o uso acautelatório do predicado verdade (“‘p’ está bem

justificado, mas pode não ser verdadeiro”), Habermas sugere que não devemos “assimilar verdade à

aceitabilidade racional”, e sim “esticar o referente da ideia de que uma proposição é racionalmente

aceitável ‘para nós’, para além dos limites e padrões de toda comunidade local. (...) De outro modo,

‘verdadeiro’ fundir-se-ia como ‘justificado no contexto presente’” (HABERMAS, 2005: 79)6.

É justamente em função da inobservância da distinção entre “verdadeiro” e “justificado para

nós” que James Conant (2000) dirá que o neopragmatismo de Rorty não consegue satisfazer seu

próprio critério de validação. Em Contingência, Ironia e Solidariedade, Rorty elogia o clássico

“1984”, de George Orwell, dizendo que trata-se de um bom exemplo de como a literatura pode

aumentar nossa percepção e sensibilidade para experiências de dor, crueldade e humilhação. Conant,

no entanto, observa que Rorty não ofereceria ao indivíduo que habitasse um mundo totalitário como

o imaginado por Orwell recursos suficientes para julgar adequadamente sua realidade. Um dos

personagens do romance de Orwell, Winston Smith, lembra de haver visto aviões na infância, antes

da tomada de poder pelo Partido. Desde então, todos, exceto Winston, sofreram lavagem cerebral,

passando a acreditar que os aviões foram inventados pelo Partido. Assim sendo, se afirmasse que os

aviões não haviam sido inventados pelo Partido, Winston não estaria fazendo uma afirmação

justificada dentro de seu contexto, porque não contaria com o consenso de seus concidadãos; estaria

portanto fazendo uma afirmação falsa, segundo os critérios rortyanos. Em outras palavras, se

Winston abrisse mão completamente da ideia de verdade como correspondência com a realidade de

modo a abraçar o tipo de atitude intelectual que Rorty sugere, chegaria à conclusão de que o Partido

65

inventara o avião. Mas se Winston ignorasse a noção de “justificação consensual”, então teria

motivos para manter intacta sua crença, que era verdadeira. Isto sugere que apesar de Rorty ter razão

acerca da impossibilidade de descrevermos o mundo a “partir de lugar nenhum”, ainda restam bons

motivos para que não descartemos noções como verdade e objetividade. Preservar a distinção entre

“verdade como consenso” e “verdade como correspondência com a realidade” não é tentar escapar

da contingência do nosso vocabulário, mas sim levar a sério o fato de que podemos dar crédito às

afirmações que fazemos dentro do nosso vocabulário (MCDOWELL, 2000).

Em sua resposta a Conant, Rorty (2000b) diz não acreditar que, numa sociedade totalitária

como a imaginada por Orwell em “1984”, alguém tivesse condições de se apegar à “verdade dos

fatos”. É por esta razão que Rorty não se cansa de afirmar a “prioridade da democracia para a

filosofia” (RORTY, 2002), pois se tomarmos conta da liberdade, a verdade tomará conta de si

mesma7. Seja lá o que for a Verdade, diz Rorty, nós só a conheceremos se formos capazes de garantir

as condições para que o debate, qualquer debate, transcorra livre de constrangimentos ou

impedimentos. Aqui, Rorty não faz mais do que repetir o elogio de John Stuart Mill (1991) ao

choque de opiniões como mola mestra do desenvolvimento social. Em contextos totalitários,

assevera Mill, o avanço social e intelectual só ocorre como fruto de esforços intermitentes e

direcionados das lideranças políticas; em contextos de liberdade, as energias dos indivíduos

desenvolvem-se nas direções as mais diversas, e o embate entre elas, se não chega a garantir o acesso

à Verdade propriamente dita, ao menos possibilita a introdução de novos e férteis pontos-de-vista.

A insistência de Rorty na prioridade da política para a filosofia não se apóia somente na

defesa da liberdade como condição de possibilidade para uma atividade filosófica produtiva, mas

também na percepção de que o seu antifundacionismo coloca a política em primeiro plano. Senão,

vejamos: se o repertório dos modos de descrever a sociedade humana e suas realizações é por

definição infinito, todo modelo teórico construído a priori será sempre limitado, correndo assim o

risco de não levar em conta variáveis novas, imprevistas8 (SOARES, 1994). Se assim é, então

modelos e teorias não devem ser avaliados em relação a algum fundamento metafísico

(necessariamente dado), mas sim por contraste, comparando seu rendimento com outros modelos e

teorias, também eles contingentes. Aí a utilidade da filosofia rortyana: porque os pactos são

contingentes, e as vantagens, relativas, ambos podem e devem ser avaliados de acordo com seu

rendimento comparativo (SOARES, 1994). À luz deste raciocínio, podemos então relativizar a

afirmação de Habermas e Conant de que o projeto de Rorty falharia em satisfazer seu próprio critério

66

de satisfação. Na filosofia de Rorty, a política assume uma centralidade. E é desta centralidade que

passaremos a tratar agora.

3. Política: Público, Privado, e os Limites da Redescrição

As ideias políticas de Rorty lograram realizar um feito notável, qual seja, o de suscitar ainda

mais polêmicas do que sua filosofia. Curiosamente, as leituras que lhes foram dispensadas, muitas

das quais absolutamente diferentes entre si, o que leva o observador mais atento a se perguntar se

estariam tratando do mesmo objeto, parecem afirmar uma das principais noções propostas por Rorty:

a de que qualquer coisa, seja uma teoria, um fato histórico ou uma narrativa, pode ganhar contornos

radicalmente novos conforme a maneira que seja redescrita.

Contudo, a maior parte das críticas parece caminhar no sentido da denúncia de um Rorty

elitista e conservador, verdadeiro “ideólogo do individualismo” (FILHO, 2008) que estaria “a

serviço de um liberalismo pós-modernizado e de um capitalismo virtual que combatem a política”

(SEMERARO, 2005:38). Já foi dito, por exemplo, que o ironismo de Rorty seria uma versão

piorada, porque ainda mais niilista, “desonesta” e “inautêntica”, do esoterismo de Leo Strauss

(ROGERS, 2004); ao que se poderia responder que é preciso muita criatividade para enxergar no

niilismo o traço principal de um autor cuja obra é completamente transpassada pela ideia de

fomentar esperança – não sem razão, um dos livros de Rorty chama-se Philosophy and Social Hope.

Outro crítico observou que Rorty acredita haver adotado um posicionamento “‘ontologicamente

neutro’ (...), pelo fato de limitar-se apenas a descrever, sem ideologia, o mundo com seus vários

vocabulários, sem privilegiar nenhuma linguagem específica” (SEMERARO, 2005: 34). Quando na

verdade trata-se justo do oposto: mais do que qualquer outro pensador de seu tempo, Rorty insistiu

na ideia de que não há um modo de nos projetarmos para fora de nossas mentes, de transcendermos

as contingências de nossa linguagem de modo a atingir um ponto de vista absolutamente

descontaminado pela maneira através da qual aprendemos a pensar, falar e viver em sociedade.

Pouco importa. A crítica prossegue assim:Em conformidade com o elitismo de Nietzsche e Heidegger, Rorty também acredita que as mudanças no mundo acontecem pelas “revoluções conceituais” (...), pela introdução de “novas metáforas”, pelas idiossincrasias dos grandes pensadores (...), sem relacioná-las às lutas concretas de grupos sociopolíticos, a complexas disputas de contrapostos projetos de sociedade, menos ainda suspeitar que muitas idéias e “metáforas” podem se originar nas ações e nas reflexões de seres humanos comuns (SEMERARO, 2005: 34-35).

67

De fato, Rorty vê a mudança histórica movida pela invenção de novos vocabulários, e não

os relaciona às “lutas concretas de grupos sociopolíticos”. Mas afirmá-lo “em conformidade com o

elitismo de Nietzsche e Heidegger” em função disso é perder de vista o principal da sua filosofia. Ao

se insurgir contra a noção tradicional de objetividade e a ideia de verdade como correspondência

com a realidade, Rorty desconstrói boa parte do edifício através do qual o saber ocidental legitima a

si próprio. Amplia assim o espaço de validade para discursos e narrativas contra-hegemônicos, que

passam a contar com bons argumentos para se recusarem a jogar conforme as regras do discurso que

tanto criticam. O critério a ser adotado na avaliação do conhecimento não deve ser calcado numa

suposta adequação às coisas “como elas são”, mas sim na observância de se as ideias permitem

alcançar nossos propósitos de forma mais frutífera. Muda o foco da discussão: abandona-se o

método para a obtenção do saber, sua adequação a um determinado padrão de investigação que se

supõe neutro e descompromissado, em favor do comprometimento da finalidade do saber em relação

aos objetivos que nos são mais caros.

É certamente mais produtivo voltar o olhar para aspectos mais problemáticos da obra de

Rorty, como a distinção público-privado e a própria noção de redescrição, pois levantam questões

sobre as quais vale refletir. Não seria o público-privado uma distinção impossível, dado que a

linguagem dentro da qual o self privado constitui-se é eminentemente social, construída numa arena

pública? (SHUSTERMAN, 2001). Não estaria Rorty deixando de reconhecer que os processos de

individuação estão intimamente conectados aos processos de socialização? (MCCARTHY, 1995).

São as inclinações particulares dos indivíduos que precisam ser protegidas das operações da esfera

pública, ou o contrário? (VOPARIL, 2006). Que garantia teríamos de que anseios idiossincráticos

não venham a extrapolar o domínio do privado e contaminar a vida pública, de maneira a solapar a

esperança liberal? (WILLIAMS, 2003). Será que as redescrições são tudo de que necessitamos para

nos aproximarmos cada vez mais de uma sociedade livre e igualitária? (Fraser, 1990).

A demarcação rigorosa de uma fronteira entre o público e o privado à primeira vista causa

desconforto: se há uma lição sociológica básica é a de que elementos da estrutura institucional das

sociedades modernas penetram na subjetividade individual, ajudando a constituí-las. Assim, postular

o divórcio entre os registros do público e do privado seria, para dizer o mínimo, uma ingenuidade. A

crítica seria perfeita – se Rorty tivesse esta separação em mente. Mas ele afirma que não se trata de

uma “distinção entre o círculo doméstico e o fórum público, entre o oikos e a polis”, e sim de uma

distinção “entre as preocupações privadas, no sentido de projetos idiossincráticos de superação

pessoal, e as preocupações públicas, essas que estão relacionadas com o sofrimento de outros seres

68

humanos” (RORTY, 2005b: 385; itálicos meus)9. Ao separar o público do privado, Rorty está

evocando a distinção de John Stuart Mill entre “ações que dizem respeito a si mesmo” e “ações que

dizem respeito aos outros” (CALDER, 2006: 38). Assim entendida, a distinção ganha contornos que

desfazem a aparência de equívoco sociológico que, num primeiro momento, provoca um

estranhamento natural.

O problema não está tanto na separação entre público e privado tal como Rorty a concebe,

mas sim na forma como enxerga o relacionamento entre eles. Ao restringir o questionamento da

contingência do nosso vocabulário ao espaço da vida privada, dos afazeres individuais de cada um,

Rorty está tentando afastar a possibilidade de que a esfera pública venha a ser tomada de assalto por

paixões políticas potencialmente disruptivas. Mas que garantia teríamos de que este insulamento

ocorreria? A saída de Rorty consiste em dizer que, idealmente, somente intelectuais seriam tocados

pelo tipo de atitude crítica comum ao vocabulário de inspiração romântica. Mas isso não é suficiente

para desfazer o nó. Estaria Rorty disposto a impedir os intelectuais ironistas de publicar trabalhos,

conceder entrevistas ou vir a público “falar a verdade ao poder”, na expressão de Edward Said

(2005)? A solução de Rorty, observa Thomas McCarthy (1995), é colocar a própria distinção entre

público e privado dentro da cabeça dos intelectuais ironistas: em público, eles discursariam a

respeito de valores e projetos compartilhados socialmente, assim contribuindo para reforçar os laços

de pertencimento e solidariedade; no âmbito particular, estariam livres para usar o vocabulário

irônico da autocriação da forma que mais lhes aprouvesse. “Não faz sentido especular como isso

seria feito” prossegue McCarthy, “pois seria apenas explicitar os detalhes de um suicídio

intelectual”. E arremata: “O objetivo [de Rorty] é manter a esfera pública liberal livre da crítica

radical” (ibidem: 40-42; tradução livre). Em diapasão semelhante, Nancy Fraser conclui que:[A]s concepções de Rorty sobre a política e a teoria são complementos uma da outra. Se a teoria é hiperindividualizada e despolitizada, então a política é hipercomunalizada e desteorizada: enquanto teoria, torna-se pura poiêsis, enquanto política, pura technê. Além disso, na medida em que a teoria passa a ser o âmbito da pura transcendência, a política é banalizada, esvaziada de radicalismo e de desejo. Finalmente, na medida em que a teoria torna-se a produção ex nihilo de novas metáforas, a política deve ser meramente a sua literalização; a política deve ser somente aplicação, jamais invenção (FRASER, 2010: 16).

É inútil tentar rebater o argumento. O próprio Rorty abriu o flanco para esta crítica quando,

referindo-se à obra de Mill, afirmou que “o pensamento social e político do Ocidente talvez tenha

passado pela última revolução conceitual de que necessita” (RORTY, 2007: 120; itálico do autor).

Rorty parece querer assegurar o monopólio seguro, porque inquestionado, dos fins liberais em

público, o que expressaria o desejo de triunfo de apenas um único princípio na esfera política – algo

69

que um pluralista como Isaiah Berlin rejeitaria (VOPARIL, 2006: 122). Não obstante, podemos

ainda fazer um esforço no sentido de abrir a possibilidade de uma leitura mais generosa. Ao

contrário de pensadores pós-kantianos (como Habermas), para os quais a justiça se coloca como o

princípio básico, Rorty elege a liberdade – negativa, como veremos – como único ideal regulativo,

deixando todo o resto em segundo plano (MACCARTHY, 1995; VOPARIL, 2006). Em outras

palavras, na batalha entre os vocabulários do racionalismo iluminista e do romantismo, Rorty

concede a vitória a este último. Nesse sentido, quem quer que o veja como o apólogo por excelência

do imobilismo e da conservação estará deixando de observar que, na escala rortyana de prioridades

de valores, a liberdade vem primeiro. O problema está em prevenir os extremos a que a paixão pela

liberdade pode levar. A solução que Rorty propõe é inadequada, por certo. Mas isto não deveria nos

impedir de enxergá-lo como alguém que deseja ver as aspirações e reivindicações de toda produção

intelectual de espírito crítico incorporadas a conta-gotas na arena pública, num ritmo constante e

sobretudo equilibrado: nem lento demais, de modo a inibir a articulação em torno da demanda por

reformas, nem rápido a ponto de inflamar a ânsia urgente por revoluções.

Há mais, entretanto. Voparil observa acertadamente que Rorty lê Mill através de Isaiah

Berlin, adotando sua visão de que a sociedade liberal é aquela que oferece espaço suficiente para que

os indivíduos possam criar a si próprios e perseguir seus sonhos privados, contanto que não

prejudiquem a outrem. Mas Mill, ao contrário de Rorty, enxergava o auto-aperfeiçoamento

individual como uma condição necessária à reforma da sociedade e de suas instituições. Enquanto

Mill “oferece uma defesa pública do privado, onde o cultivo de si é entendido como um meio de

fortalecer a democracia pública, Rorty defende seus terrenos agudamente delineados [sharply

delineated realms] como uma maneira de isolar as energias criativas individuais da vida pública e da

luta por justiça” (VOPARIL, 2006: 115; tradução livre). Voparil observa que Rorty erra ao opor

perfeição privada à busca por justiça social, pois tais impulsos não são necessariamente opostos,

podendo inclusive vir a se combinar. Rorty os crê em oposição porque parte do pressuposto de que

toda autocriação é fundamentalmente egoísta, caminha sempre em direção contrária ao ethos

público, o que explica a necessidade de confiná-la num domínio restrito, privado10. Trata-se de duas

ideias contrárias: o cultivo do self é para Mill uma ponte entre o público e o privado, ao passo que,

para Rorty, é uma atitude que alargaria o abismo entre ambos. Rorty parece não se dar conta de que a

maior ameaça ao funcionamento da democracia, como Mill e Tocqueville preveniam, não está no

excesso de participação, no transbordamento de demandas individuais, mas na ausência delas. Em

70

suma, Rorty exige que, para entrar no domínio do político, o indivíduo deixe em casa a melhor parte

de si (ibidem: 134).

Por fim, resta observar a aposta rortyana na força das redescrições imaginativas como fonte

de progresso moral e solidariedade social. Contra Kant, para quem somente a razão poderia impor

obrigações morais universais, Rorty quer resgatar “a percepção da importância, para o progresso

moral, de descrições empíricas pormenorizadas” (RORTY, 2007: 317). Isto porque a solidariedade

não seria uma questão de reconhecimento de uma essência naturalmente humana, ou de respeito aos

ditames de uma faculdade universal (a razão); a solidariedade, diz Rorty, não é “descoberta”, mas

sim criada através do aumento de nossa sensibilidade à experiência da dor, da crueldade e da

humilhação sofridas por pessoas diferentes do nosso grupo social. Aqui novamente as dúvidas

persistem: não foram poucos os intelectuais que questionaram, de uma maneira ou de outra, este

argumento de Rorty. Tais dúvidas podem ser sumariadas em três grandes perguntas, a saber: Há de

fato uma conexão estreita entre literatura e progresso moral? Redescrições podem realmente fazer

qualquer coisa parecer boa ou má, dependendo dos traços que lhes sejam emprestados, como Rorty

parece sugerir? Seriam as redescrições abrangentes e eficientes a ponto de tornar dispensável o

trabalho teórico?

O primeiro questionamento foi resumido por Nancy Fraser: “[É] realmente verdade que as

sociedades que produzem a melhor literatura são também as mais igualitárias? Os interesses dos

poetas e os interesses dos trabalhadores de fato coincidem tão perfeitamente? (Fraser, 2010: 8; grifo

meu). Esta passagem reflete bem a confusão a que uma leitura pouco atenta do argumento de Rorty

pode levar. Na verdade, Rorty nunca afirmou que as sociedades que produzem as “melhores”

literaturas são necessariamente mais generosas ou igualitárias, mas sim que as visões de mundo

plasmadas nas obras de escritores alargam nossa sensibilidade em relação à diferença, solapam o

provincianismo intelectual e, desta forma, contribuem para o progresso moral e social. Mas o

questionamento de Fraser erra o alvo também em outro aspecto. Pois o que exatamente a autora

considera como sendo “a melhor literatura”? “Melhor” sob quais critérios? “Melhor” para quem?

Fraser não nos diz nada a este respeito, de modo que parece seguro entender que estava se referindo

ao cânone da literatura ocidental. Entretanto, a questão principal não é esta suposta relação entre

sociedades igualitárias e “produção literária de qualidade”, seja lá o que isso signifique; a questão é

que a literatura, não importa o grau de refino estético que apresente a nossos olhos, pode não

fomentar uma visão de mundo mais generosa e solidária, como quer crer Rorty.

71

Fraser teria feito melhor se houvesse mobilizado a obra de Edward Said. Em Cultura e

Imperialismo, Said argumenta que o moderno romance realista ajudou, de forma quase imperceptível

e por isso tão eficaz, a fabricar entre os europeus o consenso em relação ao processo de conquistar

povos e territórios distantes. Retirando exemplos das obras de Dickens, Kipling e Conrad, Said

expõe os vínculos entre as visões de mundo transmitidas em obras literárias e as práticas

imperialistas ocidentais. “A pessoa”, escreve Said, “lê Dante ou Shakespeare para acompanhar o

melhor do pensamento e do saber, e também para ver a si mesma, a seu povo, suas tradições sob as

melhores luzes” (SAID, 1995: 13). E aquelas melhores luzes e tradições, que com o tempo

sedimentam-se em educação, não cessavam de reafirmar a superioridade das artes, dos saberes, dos

modos de vida do homem europeu. Said nos mostra que a luta pela geografia não pode ser reduzida a

uma questão estritamente militar ou econômica: ela abarca sobretudo imagens, narrativas,

representações. Mais do que de dinheiro ou pólvora, o imperialismo depende de uma formação

ideológica que o sustente e impulsione – e as obras de romancistas analisados por Said constituíam

parte ativa e importante de tal formação, ainda que elas não tivessem sido escritas tendo em vista tal

objetivo. (Conrad, Dickens e Kipling, claro está, não tencionavam fomentar a empresa imperial.) É

possível estender o argumento de Said à ficção do século XX e também contemporânea, pois não

temos bons motivos para crer que a escrita preconceituosa e perversamente etnocêntrica tenha

acabado no século XIX. Assim, não dispomos de nenhum indício que nos leve a acreditar na

correção de perspectiva da produção literária, que Rorty pressupõe.

O segundo questionamento, se apreciado com a atenção merecida, nos arrastaria para uma

longa discussão acerca da narrativa, de sua relação com os fatos que pretende descrever11. Ao elogiar

poetas românticos em função de sua crença de que “qualquer coisa podia ser levada a parecer boa ou

má, importante ou sem importância, útil ou inútil, ao ser redescrita” (RORTY, 2007 : 32), e insistir

no caráter contingente dos vocabulários dentro dos quais as descrições do mundo são feitas, Rorty

atraiu para si duras críticas. Vejamos, por exemplo, uma história verídica narrada por Albert Camus

numa palestra na Universidade de Columbia, em 1946. Na Grécia ocupada pela Alemanha nazista,

oficiais da wehrmacht preparavam-se para executar três irmãos que haviam caído prisioneiros.

Assistindo à cena, a mãe implora misericórdia, ao que os soldados alemães reagem dizendo que ela

poderia escolher um filho, apenas um, para ser salvo. Diante da incapacidade da mulher de decidir

qual filho poupar, os oficiais se preparam para abrir fogo. Ela enfim intercede e escolhe o mais

velho, porque tinha filhos para criar – e assim condena os outros dois à morte, à qual é obrigada a

assistir. A pergunta, ou melhor, o desafio que se coloca à proposta de Rorty é: “Como poderia esta

72

história ser redescrita de maneira a parecer ‘boa’”? (ELSHTAIN, 2003: 147; tradução livre). Rorty,

assevera Elshtain, insiste nessa possibilidade; na verdade, ele “requer esta possibilidade para

sustentar seu argumento maior acerca da absoluta contingência e arbitrariedade das nossas

caracterizações” (ibidem: 147).

O terceiro aspecto problemático da noção rortyana de redescrição é sua insistência no fato

de que ela poderia substituir o trabalho teórico, ao menos no que diz respeito ao alargamento do

ideário liberal-democrático. Rorty não apenas se mostra impaciente em relação à teorização pura; ele

a reputa pouco capaz de promover avanços culturais e morais. Parte desta impaciência deriva de uma

atitude algo cética, expressa no reconhecimento de que não há nenhuma maneira não-circular de

justificar nossas crenças liberais, e da manifesta aversão de Rorty a qualquer coisa que recenda à

metafísica. Mas há também um desdém pela teorização que ultrapassa o filtro do ceticismo, um

desdém que refere-se à capacidade da teoria de conquistar relevância prática. Rorty dá a impressão

de sugerir, equivocadamente, que a produção teórica atual assume duas formas: ou a filosofia

inutilmente presa às teias do fundacionismo metafísico, ou o pós-modernismo auto-indulgente

(BERNSTEIN, 2003). O que ele não se dá conta é de que o caráter sempre vago e abstrato de suas

posições – Rorty nunca desce aos detalhes, nunca penetra nos meandros – podem ser prejudiciais à

esperança de sua própria utopia liberal. Nesse sentido, talvez seja lícito afirmar que, na perspectiva

rortyana, cenários políticos diferentes não devem ser cotejados com a realidade, mas sim com

cenários alternativos: o ironismo elimina a possibilidade de compararmos visões imaginativas com a

realidade, o que lhe retira a tração crítica (VOPARIL, 2006). Assim, o problema da filosofia de

Rorty não é o relativismo, mas sim que ela não nos conduz para perto da realidade. A redescrição

não pode suplantar a teoria, a ponto de torná-la desnecessária, porque a teoria tem um compromisso

com a realidade – falho, instável e problemático, mas um compromisso ainda assim. Não se trata

aqui de afirmar que a teoria supera a redescrição, mas apenas de observar que, sem um debate

teórico, reformas políticas podem facilmente transformar-se em mero ativismo à cata de soluções

fáceis (BERNSTEIN, 2003). Portanto, se o que Rorty almeja é estender as conquistas liberais por

meio de reformas sucessivas, então a criação de novas metáforas, apesar de necessária, não basta. É

preciso também o artesanato de cunho teórico.The trouble with Rorty’s “inspirational” liberalism is that, at best, it tends to become merely inspirational and sentimental, without much bite. (...) At worst, it is a rhetorical smokescreen that obfuscates the type of serious thinking and action required to bring about liberal reform that he envisions. Inspirational liberalism without detailed, concrete plans for action tends to become empty, just as quick fixes without overall vision and careful theoretical reflection tends to become blind (ibidem: 137).

73

4. Observações Finais: Desdivinização e Reencantamento do Mundo

Bernstein capta um aspecto relevante do projeto de Rorty: a intenção de inspirar. Este é um

dado fundamental para a compreensão de sua obra, e no entanto largamente ignorado pela maioria de

seus críticos, ao menos no Brasil. Rorty escreve imbuído da missão de sacudir o pessimismo e a

resignação acumulados nas últimas décadas pela chamada “esquerda cultural norte-americana”, a

fim de lhe inspirar uma atitude crítica voltada para problemas reais. Se ele é vago demais, não é por

inaptidão ou desleixo intelectual; se não expõe propostas concretas, não é porque tenha se

deslumbrado com suas próprias ambições metafilósoficas. Rorty pretendeu realizar um movimento

anterior, cujo objetivo era despertar seus companheiros intelectuais de esquerda para a necessidade

de cultivar a esperança na democracia liberal e, ao mesmo tempo, a obrigação de trazer sugestões

criativas para reformá-la12. Contra o pessimismo resignado, o compromisso cívico secular: Rorty

segue o exemplo de Dewey e Whitman no sentido de buscar resgatar o orgulho nacional norte-

americano e a esperança no aperfeiçoamento de suas instituições liberais. Orgulho nacional não

como patriotismo rasteiro, mas disposição para se engajar nas lutas da nação; esperança não como

mero sentimento, mas como crença – entendida no sentido peirceano, um hábito de ação – acerca do

futuro (COOKE, 2004).

Num livro importante mas pouco lido no Brasil, Rorty (1999) reconhece que o recente

projeto intelectual da esquerda, estruturado em torno de questões como “representação” e

“diferença”, ajudou a tornar os EUA um país menos cruel, posto que menos condescendente com as

práticas da humilhação, discriminação e sadismo. Mas esta mesma esquerda, na esteira de autores

como Nietzsche e Foucault, teria caído em profunda desesperança e resignação, transformando-se

em uma intelligentsia passiva, espectadora alienada das lutas concretas dos subalternos. “Se eu fosse

a oligarquia republicana” diz ele, “gostaria que a esquerda gastasse todo o seu tempo pensando sobre

questões de identidade de grupo, em vez de pensar sobre salários e horas de trabalho” (RORTY,

NYSTROM, PUCKETT, 2006: 54). É verdade que Rorty não apresenta planos concretos sobre

salários e horas de trabalho. Mas esta não é nem sua vocação, nem sua intenção. Ao propor uma

maneira de conciliar os vocabulários do romantismo e do racionalismo iluminista, que pode ser vista

também como uma tentativa de equilibrar as contribuições subjetivas da teoria crítica com as

qualidades objetivas da ordem liberal-burguesa, Rorty está tentando persuadir os defensores de

ambos os vocabulários a fecundarem-se mutuamente, e não fecharem-se sobre si próprios,

dogmaticamente convictos de sua respectiva superioridade. As soluções encontradas por Rorty para

74

levar a cabo seu intento nem sempre são exatamente bem sucedidas. Mas o reconhecimento de suas

insuficiências não deveria nos levar a ignorar o desejo que o anima, o desejo de inspirar um senso de

orgulho e otimismo dentro do espírito crítico, contribuindo para renová-lo. Isto se coaduna com seu

projeto filosófico maior, cuja preocupação é intervir na realidade com o intuito de imaginar soluções

transitórias para problemas transitórios. Rorty é muito mais modesto do que julgam seus críticos.

Tal modéstia se expressa em sua proposta de abandonar as seduções do pensamento

“vertical” – a busca por uma Verdade redentora, seja nas alturas da metafísica, seja nas profundezas

da alma humana – em prol de um pensamento “horizontal”, que não supõe ou requer uma instância

transcendente de validação. Rorty nos exorta a abandonar o impulso ao absoluto, comum à

“grandiosidade universalista” e à “profundidade romântica”, e a nos contentar em exercitar nossa

“finitude humanista”, pois não há responsabilidade maior do que a que assumimos para com o nosso

semelhante (RORTY, 2005c).

“Não espere pelo Julgamento Final”, escreveu Albert Camus. “Ele acontece todos os dias”.

Esta é a inspiração que transborda dos textos de Rorty. Em A Filosofia e o Espelho da Natureza,

Rorty quis desdivinizar o mundo; posteriormente, em Contingência, Ironia e Solidariedade, buscou

reencantá-lo (VOPARIL, 2006). Já no final da vida, afirmou que a única maneira de criticar regras

culturais vigentes é fazendo referência a noções utópicas, mostrando assim o quanto certas

promessas continuam esperando sua realização (RORTY e MENDIETA, 2006). Sua utopia liberal

reivindica as promessas surgidas na esteira dos ideais de liberdade e igualdade, que ainda aguardam

realização. Como Marx, para quem as contradições da modernidade só poderiam ser resolvidas com

o adensamento da própria modernidade, e não com a fuga dela (BERMAN, 1986), Rorty acreditava

que os problemas inerentes ao mundo regido pelos valores liberais e democráticos seriam

solucionados não através da invenção radical de outros mundos, mas sim com reformas graduais que

promovessem o aprofundamento de tais valores.

Notas:

1. A extensão e profundidade da obra de Rorty impõe certos limites. Neste trabalho, deixarei de lado o

estofo analítico que impulsiona A Filosofia e o Espelho da Natureza a fim de concentrar a análise em seus escritos de

corte mais político, sobretudo Contingência, Ironia e Solidariedade. Desde já, gostaria de agradecer aos comentários e

críticas de Susana de Castro. Infelizmente, não pude responder aqui de maneira satisfatória; espero fazê-lo futuramente.

Assumo, é claro, inteira responsabilidade pelas insuficiências deste artigo.

2. Rorty define o ironista como alguém que preenche três requisitos, a saber: i) mantém dúvidas

permanentes e radicais em relação ao vocabulário final que usa para descrever o mundo e as pessoas, dado que foi

75

impactado por outros vocabulários também considerados finais; ii) sabe que tais dúvidas não podem ser desfeitas através

de seu atual vocabulário; e iii) “na medida em que filosofa sobre sua situação, [o ironista] não acha que seu vocabulário

esteja mais próximo da realidade do que outros, que esteja em contato com uma força que não seja ele mesmo”

(RORTY, 2007: 134).

3. Para um exame da relação entre ironia e ceticismo, ver MARGUTTI, 1998 e WILLIAMS, 2003.

4. Davidson (1992) afirma que as metáforas não possuem sentidos diferentes dos seus sentidos literais,

não têm um lugar fixo no jogo de linguagem corrente e, por esta razão, não podem ser nem refutadas nem confirmadas.

São candidatas a valor de verdade que, se forem aceitas, vão aos poucos adquirindo um uso habitual até conquistarem

um lugar no jogo de linguagem estabelecido, quando então perdem seu caráter metafórico e se literalizam. Nesse sentido,

metáforas seriam operadores que possibilitariam a introdução de perspectivas inéditas de pensamento, veículos para a

introdução de ideias tão novas que acabam por estabelecer os parâmetros de julgamento pelas quais elas próprias serão

avaliadas posteriormente (RORTY, 2007).

5. Quando confrontado com a crítica de que seu elogio etnocêntrico às liberdades burguesas não se

baseava em um estudo mais cuidadoso de outras tradições e culturas (PEERENBOOM, 2000), Rorty assim respondeu:

“That is an understatement. It is based on no study at all of those traditions and cultures, but only on my impression that

wherever bourgeois freedoms and the culture of rights have gotten a grip, people have liked the results pretty well. No

country has tried them and willingly given them up again, any more than any patient whose headaches have been

relieved by aspirin has ever decided to cease using it” (RORTY, 2000a: 90).

6. Estou ciente de que minha exposição do debate Habermas-Rorty é superficial. Creio que, dados os

objetivos deste artigo, não poderia ser de outro jeito: qualquer reflexão aprofundada sobre tal debate nos levaria aos

intrincados meandros da filosofia da linguagem de Donald Davidson, de quem Rorty retira os argumentos que lhe

servem de suporte. Para um resumo mais completo do diálogo entre Habermas e Rorty, inclusive com uma ótima

introdução à filosofia de Davidson, ver GHIRALDELLI, 2007.

7. No original: “If we take care of freedom, truth will take care of itself” (RORTY, 2000b: 347).

8. Poder-se-ia argumentar, seguindo um falibilismo como o de Popper, que a refutação sucessiva de

modelos e hipóteses teóricas nos levaria à verossimilhança, de modo a garantir se não um destino final, ao menos um

porto seguro para uma determinada área da investigação. O problema com esta noção, como observou Giddens (1998), é

que a ideia de que estaríamos nos aproximando cada vez mais da verdade à medida que hipóteses sejam testadas e

refutadas só é defensável se acreditarmos que o número de hipóteses da qual podemos dispor é finito. Do contrário, isto

é, se as hipóteses são infinitas, a noção de “aproximação” em relação à Verdade deixa de fazer sentido.

9. A este respeito, Rorty declarou o seguinte numa entrevista: “A má interpretação original veio de

Nancy Fraser, que disse: ‘Rorty não se dá conta de que o pessoal é político’. Acho que ela e eu estávamos indo em

sentidos opostos. Eu pensava em um sentido de privado, algo como a definição de Whitehead para a religião: ‘o que você

faz com a sua solidão’. Fraser pensava no privado como a cozinha ou o quarto de dormir, em oposição à praça do

mercado e ao escritório. Não havia nenhuma relevância para aquilo que eu estava dizendo” (RORTY, NYSTROM e

PUCKETT, 2006: 86).

10. Aqui é preciso fazer uma ressalva, a fim de evitar um possível mal entendido. Se Rorty de fato opõe

a perfeição privada à busca por justiça social, que dizer de sua insistência acerca da importância da redescrição para o 76

progresso moral e social? Não haveria aí uma contradição no argumento de Voparil (e minha também, por subscrevê-lo)?

Dois esclarecimentos se fazem necessários. Primeiro: não devemos confundir “oposição” com “blindagem” ou

“impermeabilidade” absoluta; dois terrenos podem ser “opostos” e ainda assim fecundarem-se mutuamente. É o que

acontece no caso da distinção público/privado de Rorty, na qual, como já foi observado, o privado deveria vir se

entranhar no público num ritmo lento e constante, como um “conta-gotas”. Segundo: redescrições que servem a

propósitos de progresso social não necessariamente surgem de um desejo idiossincrático por perfeição privada (elas

podem, por exemplo, advir apenas de um devaneio, uma epifania, ou tão somente do desejo de imaginar um futuro

diferente). Agradeço ao parecerista da Revista Redescrições por haver me chamado a atenção sobre a necessidade de

explicitar melhor esta questão.

11. Teríamos que discutir, apenas para começar, a existência ou não de constrangimentos inerentes aos

fatos históricos, constrangimentos estes capazes de impedir sua redescrição futura em termos radicalmente diferentes.

Para uma introdução ao assunto, visto por ângulos opostos, ver ECO, 2005 e WHITE, s/d/p.

12. O que aliás explica a incrível freqüência com que Rorty faz uso do pronome “nós” em seus escritos:

“nós, deweyanos”, “nós, liberais democratas”, “nós, humanistas”, “nós, intelectuais burgueses ocidentais” e assim por

diante (VOPARIL, 2006).

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80

Tradução

81

UM ARCO DO PENSAMENTO: a trajetória de Rorty do Materialismo Eliminativo para o Pragmatismo

Robert Brandom*1

Richard Rorty costumava dizer que era um exemplo perfeito do ouriço de Isaiah Berlim2:

ele realmente teria sempre uma mesma ideia. Considerando a diversidade e vasta gama de tópicos

aos quais Rorty se referia – abrangendo epistemologia, metafísica, filosofia da mente, toda história

da filosofia e da cultura em geral, literatura, política e mais – tal alegação poderia parecer

literalmente inacreditável. Mas penso que há um núcleo de verdade nisto. Porque seu pensamento

segue uma trajetória quase balística, que começa muito cedo – bem antes de A Filosofia e o Espelho

de Natureza – que o leva até a forma madura do seu pragmatismo. Sua obra tardia pode ser vista

como resultado do prolongamento da meditação sobre as lições que poderiam ser tiradas do seu

trabalho inicial. Rorty seguiu implacavelmente a lógica de seu raciocínio, não importa onde ela o

levasse, continuando a extrair consequências muito tempo depois da mudança que promoveu na

direção do pensamento de muitos pensadores, tendo-a invertido do modus ponens para o modus

tollens. De fato, um traço que compartilhou com seu colega em Princeton, David Lewis, é a

frequência com que ambos, mais do que quase qualquer outro filósofo de sua geração, consideraram

necessário lembrar aos seus ouvintes – como memoravelmente afirmou Lewis, que "um olhar fixo de

incredulidade não é um argumento". É claro que, o tipo de intensidade, resolução e implacável

obstinação que frequentemente provocam este tipo de olhar fixo tem sido o ponto de partida de

algumas de nossas mais elevadas aventuras filosóficas – basta pensar em Spinoza, Hobbes e

Berkeley, ou em Kant, Hegel, e Nietzsche.

Temos uma boa ideia, afinal, sobre onde Rorty queria chegar.3 Ele achava que a maior

contribuição que os filósofos haviam dado para a cultura em geral havia sido o Iluminismo. O que

foi mais importante naquele mar de mudanças conceituais é que desistimos da ideia de que as

normas que regem nossa conduta teriam sua fonte em algo não-humano (sendo elas alguma coisa

imposta sobre nós por uma vontade divina) e passamos a ver que nós mesmos precisamos assumir a

responsabilidade por estas normas – que precisamos deliberar uns com os outros e decidir que tipo

de seres queremos ser, e o que demos fazer. Rorty foi finalmente levado a clamar por um segundo

* Robert Brandom é professor na Univeridade de Pittsburgh, autor de diversos livros como Makind it explicit (1994) e Between Saying and Doing: Towards an Analytic Pragmatism.(2008). 82

Iluminismo: que estenderia para nossas concepções teóricas acerca do conhecimento o mesmo

insight que animou as criticas construtivas do primeiro Iluminismo aos modos tradicionais de

interpretar a esfera prática. Sobre isso Rorty pensa também que precisamos achar modos de nos

livrar da imagem de humanos como responsáveis por algo não-humano. No lado teórico, a

autoridade putativa não-humana em relação a qual nós nos achamos submetidos não é Deus, mas a

Realidade objetiva. É claro que nenhuma reconceituação pode nos livrar do atrito com aquilo que

Dewey chamou "situações problemáticas". Porém deveríamos compreender essa restrição como uma

característica de nossas práticas e não como algo externo, nos obrigando do exterior. Nós

precisamos deliberar coletivamente e decidir o que nós podemos dizer, em grande medida da mesma

maneira que o primeiro Iluminismo nos ensinou sobre a necessidade de deliberar coletivamente e

decidir o que poderíamos fazer. E a razão é a mesma nos dois casos: qualquer coisa diferente

desmerece nossa dignidade como criaturas auto-determinadas.

Que linha de pensamento levou Rorty a esta surpreendente conclusão? Minha hipótese é

esta: suponho que principia com as idéias por trás do materialismo eliminativo ao qual ele já havia

chegado antes de 1970. Tendo sido um bebê de fraldas vermelhas, Rorty sempre se encaminharia

para ser um revolucionário conceitual. Seu primeiro alvo foi a filosofia da mente, onde ele, sozinho,

veio com uma resposta verdadeiramente nova para o antigo problema mente-corpo.4 Colhendo uma

figura de linguagem de Hegel, Nietzsche fez o famoso anuncio de que Deus está morto. O que havia

de singular nisto não era ateísmo; longe disto. Mas sim o compromisso com o ter havido um Deus,

cuja própria existência dependia de nossos pensamentos e práticas. Quando nós modernos

começamos a viver, agir e acreditar de maneiras diferentes, Deus saiu de nossas vidas – e assim, o

pensamento radical deixou de existir. Desta forma, Rorty afirmou (contra, por exemplo, os

behavioristas wittgensteinianos) que nós temos, sim, mentes cartesianas. Mas este fato ontológico

depende de nossas práticas sociais. É inteligível – e talvez mesmo aconselhável – que deveríamos

mudar aquelas práticas, em maneiras que implicariam que nós "perdemos nossas mentes."

Rorty considera que Descartes introduziu uma concepção moderna original da mente

(como parte da "virada subjetiva" que precedeu a nossa "linguística"). O gênero das "pensées"

cartesianas que subsume fenômenos tão diversos, como pensamentos e sensações na qualidade de

espécies é definido pela "incorrigibilidade como marca do mental” – como o título de seu clássico

ensaio sobre isto.5 Ninguém está em condições de substituir minha honestidade quanto a relatos

contemporâneos em primeira pessoa acerca de meus estados mentais correntes. (Esta é,

naturalmente, a mesma característica que levou Wittgenstein a negar a inteligibilidade das alegações

83

de que quaisquer de nossas declarações possam ser tomadas como relatos sobre coisas que exibiriam

este tipo estranho de privacidade.) O pensamento, que é decisivo para Rorty, é ambíguo. O primeiro

elemento é a ideia de que a incorrigibilidade neste sentido seria um fenômeno normativo: uma

questão de autoridade incontestável de certos relatos. O segundo é uma ideia do pragmatismo social

que ele originalmente credita ao Esclarecimento: condições normativas assim como autoridade são

sempre instituídas através de práticas sociais. É perfeitamente inteligível (em oposição a

Wittgenstein) que alguns de nossos proferimentos teriam essas duas características, a de serem

relatos e incontestavelmente fidedignos. Porém, isso não se dá devido ao antecedente

intrinsecamente metafísico nem ao caráter ontológico daquilo de que elas são relatos. Este é o

motivo pelo qual nós podemos dizer precisamente o que temos de fazer de modo a tratar uma classe

de nossos relatos como incontestavelmente fidedignos: como incorrigíveis. Tratá-los assim institui

esse tipo de status normativo. Mas isso é nossa criação. Rorty pensa que os gregos antigos não

tinham mentes cartesianas. Estas nos foram dadas pelo arranjo de nossas práticas de modo a instituir

normas com este caráter distintivo, nós podemos dispensar se mudarmos aquelas práticas para

permitir que outros tipos de evidência tenham peso de indicativo comprobatório na contestação de

relatos anteriormente tomados como incorrigíveis. Ironicamente, e radicalmente, Rorty faz isto com

o que é mais próprio do cartesianismo, o privado e sagrado do sujeito se transfere para o poder

plástico, que às vezes é reivindicado por estar acima de outras coisas, por exemplo, como o poeta

favorito de Rorty, Yeats, exprimiu6

God-appointed Berkeley that proved all things a dream,That this pragmatical, preposterous pig of a world, its farrow that so solid seem,Must vanish on the instant if the mind but change its theme;

[Berkeley, enviado por Deus, demonstrou que todas as coisas são um sonho,Que este pragmático, absurdo e porco mundo, estas criaturas que parecem tão sólidas,Desaparecem em um instante se a mente muda de tema;]7

A mente Cartesiana é real, mas ela é algo contingente, um produto opcional de nossas práticas

sociais mutáveis.

Penso que neste ponto Rorty começou uma extensa investigação sobre a relação entre o que

chamou de vocabulários, de um lado, e ontologia, de outro – uma relação que, a exemplo do

materialismo eliminativo, mostrou ser demasiado complexa para ser apreendida por uma “correção

teórica do olhar”, segundo a qual, tanto faz como as coisas sejam objetivamente, teria autoridade

sobre o que podemos dizer acerca delas. Ele prosseguiu guiado por um modo de ver a ontologia

através de lentes normativas, e compreendendo a normatividade de um modo social pragmatista. Da

84

vantagem oferecida por esse comprometimento metodológico estratégico, uma ordenação tripartida

da ontologia aparece. Coisas subjetivas (cartesianas) são aquelas acerca das quais cada indivíduo

conhecendo-e-agindo como sujeito tem incontestável autoridade. Coisas sociais são aquelas sobre as

quais comunidades têm incontestável autoridade. Então não é compreensível que se afirme que os

Kwakiutl estão errados sobre o que seria um gesto de saudação aceitável em sua tribo. Não há fatos

sobre esse tipo de correção social para além e acima das atitudes práticas coletivas que levem a

considerar ou tratar alguns gestos como saudações. Finalmente, coisas objetivas são aquelas sobre as

quais nem indivíduos nem comunidades têm autoridade incontestável, mas são elas mesmas que

exercem autoridade sobre exigências que, em sentido normativo, que falantes e pensantes é que são

responsáveis por aquilo que contam como sendo sobre estas coisas.

Agora estou em posição para formular mais cuidadosamente minha tese principal sobre o

fio argumentativo que leva Rorty do seu pensamento inicial para aquele que desenvolveu

posteriormente. Penso que ele continuou aplicando essencialmente as mesmas considerações,

mutatis mutandis, que ele fizera para o campo subjetivo, desta tripartida ontologia, para o campo

objetivo. Uma vez que distinções ontológicas foram estabelecidas em termos normativos de

autoridade e responsabilidade, o pragmatismo social em relação às normas acarreta como

consequência, a transferência do privilégio de certa substância categorial para a categoria ontológica

do social. O pragmatismo considera que as condições normativas que distinguem as três categorias

ontológicas – as estruturas de autoridade e responsabilidade características de cada uma – sejam, elas

mesmas, coisas que caem na categoria do social. As regras e práticas para construir e contestar os

vários tipos de afirmações pertencem às comunidades linguísticas que implantam os vocabulários em

questão. Assim, entre os tipos ontológicos do individual-subjetivo, social-intersubjetivo e objetivo,

o social é primus inter pares.8 Que tipo de posição teríamos afinal se tentássemos fazer o mesmo movimento a respeito da

categoria objetiva que Rorty fez para o subjetivo com seu materialismo eliminativo? Acho que ele

efetivamente oscilou entre duas posições. Aqui é importante lembrar que algumas das perspectivas

de Rorty são mais escandalosas que outras – mas nenhuma é menos. A visão mais escandalosa é a de

que a estrutura de autoridade e responsabilidade que constituem a objetividade é efetivamente

incoerente. Quando pensamos de um ponto de vista pragmatista sobre o que isso requereria, vemos

que não é possível para nós instituir tal estrutura. Pois isso requer conceder autoridade a alguma

coisa não-humana, alguma coisa que meramente está lá, para coisas intrínseca e normativamente

inertes, que deveriam estar em uma caixa com a indicação de Wittgenstein “considerada apenas

85

como um pedaço de madeira”. Grande parte da retórica de Rorty parece se comprometer com uma

perspectiva deste tipo. O que é inteligível é um consenso cognitivo teórico sobre vários pontos

(ainda que contingente, parcial e temporário). Mas a idéia de algo que não pode entrar em uma

conversação conosco, para a qual não podemos dar ou perguntar por razões, como se ditasse aquilo

que deveríamos dizer não está entre aquelas a que, finalmente, poderíamos dar um sentido. É a idéia

de que nós somos sujeito (responsável) por uma autoridade no final das contas irracional – algo cuja

completude cognitiva é, só por conta de sua irracionalidade, ininteligível. A realidade como a

moderna tradição filosófica a construiu (“apenas um pedaço de madeira”) é o tipo errado de coisa

para exercer a autoridade racional. Esta é o que nós fazemos uns com os outros. Essa é a lição que nós deveríamos ter aprendido sobre Deus a partir do primeiro

Iluminismo, e seria preciso um segundo Iluminismo para nos ensinar como aplicar aquela lição com

relação à Realidade Objetiva: o candidato a sucessor de nossa sujeição, não provém agora da Igreja,

mas da Ciência. Rorty se consolou frequentemente depois de ataques sobre seu caráter intelectual,

fomentados por aqueles que viam em suas ideias um perigoso irracionalismo (como se rejeitando a

ideia de restrições não-humanas externas, isso significasse que não poderíamos mais encontrar

sentido na ideia de restrições manifestadas em nosso dar e perguntar aos outros por razões) com o

pensamento daqueles filósofos do início dos tempos que foram seriamente condenados como

imoralistas, por sustentarem que a matéria conteria seus próprios princípios de movimento.9 Nós

acabamos por aprender, afinal, que o tipo de ateísmo envolvido em rebaixar essa função do divino

para a esfera humana não precisa levar a que corra pelas ruas um selvagem imoralismo.Talvez um

dia nos possamos aprender a deixar de lado também nosso terror inicial e aprender a viver com uma

reconstrução dos aspectos de nossas práticas que a estrutura normativa de objetividade originalmente

postulava explicar.

Mas esta não é a única maneira de aplicar as lições anteriores ao caso em questão. Talvez

seja um avanço cultural para nós, considerar ininteligível que um mero fato – mesmo o fato de que

Deus nos criou (supondo que seja um fato), juntamente com tudo o mais – deveria ser suficiente para

dar a Ele autoridade moral sobre nós, para determinar quem deveríamos ser e como deveríamos

viver nossas vidas. Como afinal, na era pós-feudal, nós podemos entender a conexão entre os dois

que é firmemente unida na concepção de nosso Senhor? Mas se nós não olharmos para o Iluminismo

original e sim para o materialismo eliminativo como nosso modelo, parece que uma lição diferente

emerge. Pois a reinvindicação era precisamente não de que a estrutura subjetiva da autoridade

individual que institui eventos mentais como incorrigíveis seriam ininteligíveis. Pelo contrário:

86

podemos entender exatamente como nós devemos considerar ou tratar uns aos outros para instituir

essa estrutura e assim a categoria ontológica das coisas que exercem autoridade desse tipo. A

exigência era a de que essa estrutura seja contingente e opcional, e que por isso seja possível, e sob

circunstâncias concebíveis, seja mesmo aconselhável que mudemos nossas práticas de modo a

instaurar uma diferente estrutura de autoridade.

Como seria se tomássemos essa atitude com relação à estrutura normativa que constitui a

objetividade? Nesta linha, não se pode negar que a noção de objetividade faz sentido. Seria melhor

investigar que estruturas das práticas sociais mereceriam contar como sendo o lugar onde instituímos

uma dimensão especial de avaliação normativa de nossas performances, de tal modo que esta

autoridade sobre se elas estão corretas juntamente com essa dimensão deferida para algumas coisas

(em geral) não-humanas, as quais nós então neste sentido normativo achamos que conta como falar

ou pensar sobre algo. Procurar-se-ia observar se esta estrutura de práticas sociais normativas, uma

vez identificada, poderia ser vista como opcional, no sentido de que haveriam alternativas que

seriam ao menos inteligíveis. E poder-se-ia então determinar se existem quaisquer considerações ou

circunstâncias que possam tornar atraente, desejável ou eficaz alterar ou descartar práticas que

exibem esta estrutura, em favor de alguma que tenha uma forma completamente diferente.

O ponto chave é a exigência do pragmatismo social de que a normatividade é sempre

instituída por nossas práticas e atitudes práticas – as condições normativas são, em última análise,

estatutos sociais – isto não implica que sejam somente os humanos que instituíram aquelas condições

podem exibi-las ou possuí-las. A noção de responsabilidade de uma autoridade não humana, em

principio, não é minada pela visão do Iluminismo pragmatista de que quaisquer destas estruturas

dependem de atitudes humanas que a levam ou tratam como algo fidedigno. Considerem-se

oráculos. Xamãs da antiga China colocavam cascos de tartaruga no fogo e, então inspecionavam as

rachaduras buscando similaridades com caracteres ideográficos, procurando respostas que teriam

autoridade sobre pesadas interrogações factuais sobre o futuro. Na Europa, cometas e o avistamento

de pássaros raros foram ocasionalmente investidos com tremenda significação normativa e

significado. Na medida em que o sentido normativo é posto por nós, podemos colocá-lo onde nos

apraz – porém imprudentemente. A pergunta, ao que me parece, não é se nós podemos investir

autoridade em coisas não-humanas: tomá-las de modo que nos mesmos sejamos na prática

responsáveis por elas, de um modo que isso nos faça responsáveis por elas. Claro que podemos. É

um pouco como podemos instituir uma dimensão de avaliação sobre o que dizemos e fazemos que

seja corretamente compreendida como concedendo autoridade semântica e epistêmica em relação à

87

sua correção, como para aquelas coisas que nós então, neste distinto sentido normativo,

consideramos como pensar e falar sobre. Que estrutura ou constelação de atitudes práticas sociais

devem contar para tomar ou tratar algumas coisas como representantes, no sentido de que avaliações

de sua correção dependem (tem apelo sobre, são responsáveis por) de objetos e fatos que são assim

representados por eles? Haverá tantas respostas a essa pergunta como há sentidos para 'representação'. Se nós

aprendemos alguma coisa desde que Descartes pôs este conceito no centro de atenção da filosófica

moderna, é que existem muitos de tais sentidos. Podemos perguntar então sobre cada um deles, até

que ponto o reconhecimento da responsabilidade de alguns de nossos estados, de sua correção neste

sentido, dos vários aspectos do mundo (incluindo nossos companheiros de práticas discursivas) é um

caso contingente, opcional. A que tipo de empobrecimento expressivo nos condenaríamos se

desistíssemos de reconhecer (e assim instituirmos) uma distinta estrutura de autoridade semântica e

responsabilidade para coisas em grande parte não-humanas e fatos característicos de espécie de

representação referencial? Acho que ainda temos um longo caminho a percorrer (no quarto século

depois de Descartes) no delineamento desta espécie de condição normativa e, assim, responder ao

questionamento crítico feito por Rorty sobre isso.

O que é importa é que, a minha própria resposta em Making it Explicit é de que, uma vez

adequadamente compreendida, podemos ver que a dimensão referencial representacional do

conteúdo semântico é algo central, essencial e aspecto inevitável do jogo de pedir e dar razões

próprios dessa prática discursiva enquanto tal. Essa é uma característica transcendental no sentido de

ser uma condição necessária da possibilidade de os interlocutores navegarem através das inevitáveis

(e produtivas) diferenças de compromissos pressupostos entre falante e ouvinte, para que possamos

usar cada um as asserções do outro, como premissas em nossas próprias inferências. Isto é

constitutivo da noção de informação que pode ser transmitida fazendo alegações uns aos outros.

Nesta leitura, as duas teses principais de Rorty são compatíveis com o reconhecimento da

existência de uma estrutura objetiva e representacional da autoridade semântica. Pois, primeiro a

dimensão referencial, representacional, denotativa da intencionalidade, é compreendida como uma

estrutura normativa. Aquilo sobre o que falamos ou pensamos, a que nos referimos ou

representamos, é aquilo a que estamos outorgando um tipo característico de autoridade sobre a

correção de nossos compromissos, ao longo de uma dimensão distinta da avaliação normativa que

instituímos pela adoção daquelas atitudes práticas de nos fazermos responsáveis por aquilo que,

neste sentido, conta como coisas com que nos comprometemos. E, em segundo lugar, nós

88

entendemos que fazendo isso, tornando-nos responsáveis por coisas não humanas, reconhecendo sua

autoridade, como algo que nós fazemos – tal como conferir a elas um tipo semântico distinto de

status normativo, adotando atitudes sóciopráticas, normativas. A única questão que permanece diz

respeito à engenharia social: que forma nossas práticas precisam tomar para instituir esse tipo de

status normativo? Este é um tipo de questionamento deweyano para o qual Rorty teria dado boas-

vindas.

NOTAS:1. Tradução de Marcos Carvalho Lopes. Brandom gentilmente autorizou a tradução e publicação deste artigo

inédito, disponível em sua página pessoal (http://www.pitt.edu/~brandom/index.html) com o título “An Ark of Thought: From Rorty’s Eliminative Materialism to his Pragmatism”.

2. A referência é o famoso artigo de Isaiah Berlim “O ouriço e a raposa” (The Hedgehog and the Fox) publicado em 1953.

3. Estou pensando na linha de pensamento apresentado por Rorty com o título “Anti-autoritaismo em epistemologia e ética” (“Anti-authoritarianism in Epistemology and Ethics”) em suas Ferreter Mora Lectures, de 1996 na Universidade de Girona.

4. Em contraste com o funcionalismo, que possui muitos pais.5. Brandom se refere ao ensaio de Rorty “Incorrigibility as the Mark of the Mental”.6. “Blood and Moon”, In: The Winding Star.7. Tradução literal (N. do T). 8. Compare o judiciário, que pelo menos desde Marbury contra Madison, foi levado a exercitar a autoridade

última na determinação do que cai dentro da própria esfera do executivo, legislativo e ramos judiciais do governo norte-americano.

9. c.f. o excelente livro de Jonathan Israel sobre Espinosa: ISRAEL, Jonathan. Radical Enlightenment: Philosophy and the Making of Modernity 1650-1750. Oxford: Oxford University Press, 2001.

89

O GIRO NEOPRAGMATISTA*1

David. L. Hildebrand

Há um consenso geral de que o renascimento do pragmatismo no século XX produziu duas

versões prontamente identificáveis. Uma é usualmente chamada pragmatismo “clássico” (ou

simplesmente “pragmatismo”), e a outra “neopragmatismo” (a qual chamarei “pragmatismo

linguístico”). Esta mais nova forma de pragmatismo pode ser avaliada pela resposta a três questões:

1. Como o pragmatismo linguístico “atualiza” o pragmatismo clássico?

2. Por que o pragmatismo linguístico rejeita a “experiência” como uma noção filosófica útil?

3. Por que o pragmatismo linguístico está equivocado sobre a “experiência”? Isto é, por que a

experiência é indispensável ao pragmatismo?

Minha alegação é a de que a experiência é metodologicamente inseparável do pragmatismo,

e de que o pragmatismo linguístico pode negligenciar ou extirpar a experiência apenas às custas de

tornar o pragmatismo abertamente teórico, isolado da ação prática. Assim, o pragmatismo linguístico

revisaria o pragmatismo pela supressão de várias características que explicam o renovado e

difundido entusiasmo por ele.

O pragmatismo linguístico

O desenvolvimento do pragmatismo linguístico pode ser atribuído principalmente, se não

inteiramente, a Richard Rorty. Em 1995, Rorty escreveu:

Eu linguisticizo tantos filósofos pré-giro-linguístico quanto posso, a fim de lê-los como profetas da utopia na qual todos os problemas metafísicos terão sido dissolvidos, e a religião e a ciência terão cedido seu lugar à poesia2.

Para muitos de fora da comunidade filosófica americana, o pragmatismo rortyano tornou-se

virtualmente sinônimo do próprio pragmatismo. Dado este fato e os limites deste artigo, deverei

tratar a formulação do pragmatismo linguístico de Rorty mais como um tipo do que como um caso.

* Tradução de Filipe Milagres Boechat, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Endereço para correspondência: Estrada da Boiuna, 519, casa 22. Taquara/Jacarepaguá. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP: 22723-021. Tel.: (21) 9488-2003. Currículo: http://lattes.cnpq.br/8473520379317311 Email: [email protected].

90

O pragmatismo linguístico revisa o pragmatismo em três movimentos básicos. Primeiro,

aplaude-se pragmatistas tais como James e Dewey por repudiarem uma gama de métodos e objetivos

da filosofia tradicional. Segundo, renuncia-se às suas tentativas de reconstruir o que não deveria ser

reconstruído. Por fim, aceita-se que apenas a linguagem é capaz de fornecer o material da filosofia.

Este passo completo, pode-se criar livremente, mesmo poeticamente, para servir ao fim que convier.

Menos do que repetir as bem conhecidas críticas do pragmatismo à tradição, permitam-nos

seguir adiante a fim de que consideremos as renúncias do pragmatismo linguístico. O pragmatismo

fez mal, assim se conta, ao reconstruir ideias tradicionais tais como "experiência", "realidade" e

"pesquisa" ― os antiquíssimos projetos filosóficos que ele buscaria desmascarar. Tivessem os

pragmatistas abandonado tais projetos estéreis, eles poderiam ter criado argumentos mais

persuasivos e duradouros contra a tradição. A fixação de Rorty neste problema está em dividir

Dewey em uma boa e uma má metade. O bom Dewey foi crítico: da evidência, do fundacionismo e

dos defensores dos dualismos. O Dewey mau foi o Dewey reincidente, misturando explicações

metafísicas positivas de "pesquisa", "situação" e, talvez pior do que tudo, de "experiência". Rorty

escreve:

[Dewey] nunca escapou da noção de que o que ele próprio disse sobre a experiência descrevia o que a experiência parecia ser propriamente, enquanto que outros diziam que experiência era uma confusão entre os dados e os produtos de suas análises. [...] Porém uma explicação não-dualista da experiência, do tipo que o próprio Dewey propôs, era um verdadeiro retorno a die Sache selbst 3.

Defendo Dewey dessa acusação na seção seguinte. O que é importante para o pragmatismo

linguístico é a afirmação de que esses movimentos essencializantes (típico de muitos pragmatistas

clássicos) podem ser evitados pela utilização do "giro linguístico". Rorty escreve:

A filosofia analítica, graças a sua concentração na linguagem, foi capaz de defender certas teses cruciais do pragmatismo melhor do que James e Dewey. [...] Focalizando nossa atenção na relação entre a linguagem e o resto do mundo menos do que entre a experiência e a natureza, a filosofia analítica pós-positivista foi capaz de romper mais radicalmente com a tradição filosófica 4.

Assim, a solução de Rorty ao problema da incomensurabilidade dos vocabulários

filosóficos é a adoção de um vocabulário linguístico (servindo, assume-se, como uma lingua franca

metafilosófica). De alguma maneira, este vocabulário deveria estar desprovido, por sua própria

conta, de qualquer bagagem metafísica. Rorty escreve:

"Linguagem" é uma noção muito mais conveniente do que "experiência" para as coisas holísticas e antifundacionais que James e Dewey quiseram dizer. Isto porque a

91

maleabilidade da linguagem é uma noção menos paradoxal do que a maleabilidade da natureza ou dos "objetos". Tomando o [...] "giro linguístico" e enfatizando que nenhuma linguagem é mais intrinsecamente relacionada à natureza do que qualquer outra, filósofos analíticos como Goodman e Putnam têm sido capazes de tornar os argumentos antirealistas comuns a Dewey e [T. H.] Green mais plausíveis do que o fizeram ambos 5.

O pragmatismo linguístico, portanto, evita termos filosóficos que se referem a entidades ou

efeitos não-linguísticos. Ao invés disso, este se pergunta como podemos "retecer crenças" usando

novos e melhores "vocabulários". Por exemplo:

Toda conversa sobre fazer coisas com objetos necessita, em uma consideração pragmatista da pesquisa “sobre” objetos, ser parafraseável em termos de retecer crenças. Nada além de eficiência será perdido em tal tradução... 6

Esta interpolação por um vocabulário linguístico simplificaria as coisas ao insistir que os

referentes sejam expressos no mesmo vocabulário. A efetividade da linguagem é medida com mais

linguagem – e não pela divisão do mundo em “coisas” e “contextos”, ou em “blocos maciços e

textos frouxos” 7 “Retecer uma rede de crenças”, diz Rorty, “é… tudo que podemos fazer.” 8

Tivesse Dewey realizado o giro linguístico, sustenta Rorty, ele poderia ter evitado buscas

infrutíferas por diferenças topológicas entre pesquisas e abster-se de tentar descrever algum método

“melhor”. Ele teria percebido que o progresso científico resulta não de um “método” aprimorado (ela

própria, uma noção duvidosa), mas do “desenvolvimento de vocabulários particulares.” 9

O custo do pragmatismo linguístico

O pragmatismo linguístico tem claramente um charme. Ele promete retirar a filosofia de

uma situação extremamente difícil, facilitar a comunicação e dissolver velhos enigmas. Promete,

além disso, adequação a uma nova experiência ― uma vez que tudo é caracterizado através da

linguagem, a linguagem deve ser adequada à experiência. Antes de defender a experiência como

uma parte ineliminável do pragmatismo, deixe-me concluir esta exposição do pragmatismo

linguístico indicando o que eu considero suas principais deficiêcias.

Em primeiro lugar, existe o movimento de um (compreensível) ceticismo em relação a

encontrar um solo último de garantia ao postulado dúbio de que a linguagem é ubíqua. Em

Consequences of Pragmatism, Rorty interpreta que Derrida, Wilfrid Sellars, Gadamer, Foucault e

Heidegger concordam todos

que as tentativas de se chegar por detrás da linguagem a algo que a “sustenta”, ou que nela se “expressa”, ou com o qual se poderia esperar estar “adequada”, falharam todas 10.

92

Todavia, Rorty faz, logo em seguida, a seguinte afirmação:

A ubiquidade da linguagem diz respeito à linguagem mover-se em direção às lacunas deixadas pela falha de todos os vários candidatos à posição de “pontos de partida naturais do pensamento, pontos de partida que são anteriores a e independentes da maneira como uma cultura fala ou falou 11 .

Num salto apressado, Rorty move-se da observação empírica de que ninguém chegou a um

ponto objetivo para comparações entre a linguagem e o mundo à afirmação metafísica de que a

linguagem é ubíqua – isto é, que “contexto é tudo o que temos” e “só se pode pesquisar coisas após

uma descrição” 12. Esta inferência não é segura. Como observou Hilary Putnam, se Rorty está certo

ao dizer que comparar a linguagem e o pensamento com a realidade é um projeto ininteligível, é

igualmente ininteligível afirmar que é impossível fazê-lo. No entanto, Rorty faz precisamente isso.

Segundo Putnam, “Rorty permanece cego para a maneira pela qual sua objeção do realismo

metafísico partilha da mesma ininteligibilidade 13.

Se a comparação é “ininteligível”, eis aí uma questão difícil. De grande importância para o

pragmatismo é o fato de que o ponto de partida do pragmatismo linguístico de Rorty é teórico e não

prático. Por “teórico” eu compreendo isto: todas as declarações de Rorty ― de que (1) a linguagem é

ubíqua, de que (2) tudo é contexto, (3) de que nada extra-linguístico pode ser mencionado em

argumentos filosóficos ― falham por decorrerem de generalizações empíricas da experiência. Ao

invés disso, sua plausibilidade reside em sua presunção, em lugar da investigação. Rorty

corretamente chama de “falhas” os pontos de partida tradicionais, porém sua visão de que a

linguagem pode agora mover-se “em direção às falhas” revela sua aceitação tácita de uma

abordagem teórica tradicional. Do meu ponto de vista, a adoção de tal abordagem, em lugar de uma

abordagem experimental e prática, é o erro fundamental do pragmatismo linguístico [14]. E tudo isso

começa com a extirpação da experiência do pragmatismo deweyano.

Por que o pragmatismo linguístico rejeita a “experiência”

Antes de defender a reconstrução da experiência de Dewey, é importante lembrar duas

razões pelas quais ela foi rejeitada pelos pragmatistas linguísticos e outros. Alguns, dadas suas muito

distintas visões de mundo, acharam-na incompreensível; outros a compreenderam mal, tomando-a

como uma noção metafísica tradicional que autorizaria uma descrição absoluta da realidade. Rorty

sustenta a última perspectiva, argumentando que a experiência era a maneira teórica de Dewey de

dissolver dualismos filosóficos insolúveis. Rorty escreve que, para Dewey,

93

deve haver um ponto de vista a partir do qual a experiência possa ser vista [...] o qual [...] tornará impossível para nós descrevê-la nessas formas equivocadas que geram os dualismos sujeito-objeto e mente-matéria [...] Este ponto de vista assemelhar-se-ia à metafísica tradicional, provendo uma matriz neutra permanente para a pesquisa futura. [...][dizendo] “eis aqui o que a experiência realmente é, antes da análise dualista tê-la feito parecer funcionar” 15.

Na leitura cética de Rorty, a experiência era um substituto para a desacreditada noção de

substância, e Dewey “deveria ter abandonado o termo experiência antes do que redefini-lo

[procurando] noutro lugar a continuidade entre nós e os brutos” 16. Rorty acredita que não o haver

abandonado foi infeliz, afastando seu esforço do aspecto fundamental capturado por suas criticas à

tradição. Tomar o desvio linguístico teria ajudado Dewey a abster-se de ancorar a justificação na

experiência e permitido que ele reconhecesse que, como afirma Rorty, “nós podemos eliminar

problemas epistemológicos eliminando a pressuposição de que a justificação precisa repousar em

algo distinto das práticas sociais e necessidades humanas”17. Os pragmatistas deveriam, além disso,

ver que tudo o que as pesquisas precisam é “a realização de uma mistura apropriada de acordo não-

forçado com desacordo tolerante” 18. Em suma, os pragmatistas deveriam substituir Objetividade por

Solidariedade.

Por que a “experiência” é indispensável ao Pragmatismo

Tendo discutido os métodos do pragmatismo, devo agora defender a experiência como parte

essencial do pragmatismo. Os escritos de Dewey sobre a experiência eram extensos e

revolucionários. Ele conduziu os filósofos ao reconhecimento da dimensão somática (ou não-

discursiva) da experiência19; expandiu a estética e a ética, dirigindo a discussão para longe de valores

estáticos em direção à função processual de valoração. No que concerne ao tópico de hoje, o

pragmatismo linguístico, a experiência é crucial em razão de sua relação com o método filosófico.

Uma defesa da experiência pode começar por notar que ela é fenomenologicamente mais

valiosa. O significado visado é bem ordinário. Rorty adianta que a “experiência” não é visada como

“uma matriz neutra e permanente para a pesquisa futura”, nem como outro intermediário teórico

qualquer entre a aparência e a realidade. A experiência deve ser tomada como sinônimo de coisas e

eventos ordinários. Dewey escreve que

O homem comum certamente não considera barulhos ouvidos, luzes vistas etc., como existências mentais; mas não as vê também como coisas conhecidas. Que elas sejam apenas coisas é o bastante para ele. […] Sua atitude para com estas coisas como coisas envolve não estar em relação com uma mente ou um conhecedor. (MW 6: 108) 20

94

Para atualizar este ponto, substitua “linguístico” por “mental”. O homem médio não ouve

barulhos, luzes ou carros como “fragmentos de linguagem” ou “movimentos num jogo de

linguagem”. Tidas, são como são experienciadas. Como disse R.W. Sleeper, “não é a experiência

que é experienciada, mas coisas e eventos, e o contexto circundante com o qual podemos ‘lidar’...

por meio da pesquisa transacional” [21]. A “experiência” é radicalmente empírica ao não ser de

maneira nenhuma radical. Isso aponta para o que Ortega y Gasset chamou “minha vida”: um

contínuo de coisas, eventos, relações e transações. Minha vida são tidos, feitos, ditos e conhecidos, e

enquanto posso me referir à minha vida (como na melancólica ruminação “Essa é minha vida...”)

não posso permanecer por detrás ou sobre ela enquanto o faço. A recognição deste continuum

constitui outra maneira pela qual a experiência é o mais próximo: nisto que ela tacitamente

recomenda um método que nem oferece nem autoriza explicações grosseiras que permanentemente

abstraem os conceitos de seus contextos práticos ― p.e., “cor” em “vibrações”, “dor” em “estador

mentais” ou “falar sobre objetos” em “falar sobre crenças.” Como método, a experiência desvia as

energias filosóficas de definições especulativas em direção a uma denotação engajada e

conscienciosa do que é concretamente presente.

O valor [...] da noção de experiência para a filosofia é que ela afirma a finalidade e a compreensividade do método de apontar, encontrar, mostrar e a necessidade de ver o que é apontado e aceitar o que é encontrado de boa fé e sem desprezo. (LW 1: 372)

O que Dewey encontra, de fato, “de boa fé e sem desprezo” é que o experienciar ocorre de

maneira tanto “tida” (ou “sofrida”) e “conhecida.”

[N]o processo de viver, tanto a absorção numa situação presente e a resposta que levam em conta seus efeitos sobre […] experiências posteriores são igualmente necessárias para a manutenção da vida. [...][S]ituações são imediatas em suas ocorrências diretas, e, além disso, mediam e são mediadas num contínuo temporal que constitui a experiência da vida. (LW: 14.30)

Agora, essas duas ideias cruciais ― de que a filosofia deveria começar pela denotação antes

do que pela suposição teórica e que a observação indica uma diferença genérica entre experiências

reflexiva e não-reflexivas ― são ambas anatemáticas para o pragmatismo linguístico. Ambas, no

entanto, têm sido amplamente mal-compreendidas.

Alguns vêem a ênfase de Dewey sobre o começo denotativo como simplista ― Como pode

a realidade simplesmente ser apontada? Dewey elaborou que a denotação “não é tão simples e direto

como apontar um dedo ― ou bater numa mesa”, mas é, antes, “ter tais ideias como apontar e guiar-

se pelo uso como métodos para alguma situação diretamente experienciada.” (LW 3: 82-83)

95

A segunda objeção, mais tenaz (tanto para pragmatistas realistas quanto pragmatistas

linguísticos) é a de que “experiência” é uma noção fundacionista. Essa má compreensão decorre da

convicção de que qualquer tentativa de descrever “ter” ou não experiências discursivas requer um

ponto de partida privilegiado (i.e., extra-experiencial). Mas tal ponto de partida violaria o

naturalismo de Dewey, levando ao que Douglas Browning chama “o paradoxo fenomenológico”.

Browning escreve:

[C]omo pode [Dewey] descrever adequadamente nossas experiências imediatamente vividas e pré-reflexivas sem admitir uma postura para examiná-las que, sendo reflexiva e retrospectiva, não pode contribuir para isso, mas, antes, desvelá-las, não como foram experienciadas na intimidade de nossa vivência delas, mas como “objetos” que vemos externamente? 22

Sendo ela própria um ato (linguístico) reflexivo, a descrição necessita colorir todo assunto

pré-reflexivo que ela descreva. Uma vez que a filosofia ― aí incluído o pragmatismo ― comenta

apenas por meio de símbolos reflexivos, ela não pode iluminar este nível da experiência (se isso

pode mesmo ser mostrado existir). Na medida em que Dewey assim o fez, ele agiu de má-fé. Essa

acusação atinge o núcleo do pragmatismo de Dewey e deve ser o ponto mais importante a esclarecer

e defender.

Essa defesa poderia começar pela citação de uma lição de “The Postulate of Immediate

Empiricism.” Lá, Dewey argumenta que a realidade da coisa não é unicamente uma questão de ser

aquilo que está para ser conhecido; outros modos de experienciação são tão importantes quanto na

constituição da realidade. (A repulsa, enquanto uma experiência que resiste à caracterização precisa,

é tão real quanto a teoria dos direitos.) No momento em que os críticos reconhecem o ponto de

Dewey (a igual realidade de modos não-racionais de experienciar), eles devem então admitir que

Dewey não precisa escolher entre oferecer tanto uma anatomia precisa e final do não-discursivo ou

nenhuma de todo. A caracterização de tais experiências pode proceder empiricamente: observe,

proponha, teste e revise. É dado, assim crê Dewey, que nós nunca definimos exaustivamente as

experiências primárias ― suas completudes passam com seus momentos ― mas podemos nos

aproximar delas, conscientes do fato de que aproximações permanecem ou decaem baseado em sua

instrumentalidade para uma pesquisa particular.

O principal ponto é que mesmo a pesquisa metafísica pode ser feita pragmaticamente, ou

seja, sem premissas axiomáticas. Dewey, relembra-nos Sleeper, “estava tentando trabalhar fora de

uma metafísica de existência sobre a base do sucesso de uma pesquisa já em prática”23. Todas as

pesquisas começam in media res: a metafísica pragmatista pode servir como um guia “apenas após o

96

terreno ter sido explorado, e somente após ter feito [o guia] poder servir [...] a futuras explorações” 24.

Se esta conexão entre pesquisa e metafísica é levada a sério, torna-se claro que a

experiência não é a pedra de toque para algum fundacionismo secreto da metafísica de Dewey. Isso

não é o que Wilfrid Sellars chamou de “episódio de auto-autenticação não-verbal” (i.e., mais um

candidato à certeza). Antes, para Dewey, a garantia epistemológica não reside ou repousa sobre a

experiência: ela decorre de e remete à verificação experimental. Além disso, uma proposição está

garantida se ela “concorda” com seu problema, mas os pragmatistas linguísitcos devem lembrar que

isto é garantia-pela-ação e não garantia-pelo-discurso-intersubjetivo. O “acordo”, escreve Dewey, “é

acordo em atividades, e não a aceitação intelectual do mesmo conjunto de proposições. […] Uma

proposição não ganha validade em razão do número de pessoas que a aceitam” (LW 12: 484, ênfase

minha). Enquanto Dewey não estabelece uma distinção categórica entre linguagem e ação (a

linguagem é claramente uma espécie de ação para Dewey), ele deixa pouco espaço para a noção

restrita dos pragmatistas linguísticos de garantia-como-um-acordo-intersubjetivo-no-interior-de-

uma-coletividade. Normas de garantia são moldadas por circunstâncias culturais e históricas,

situações experienciadas são sua última medida, e tais situações sempre extrapolam as fórmulas

presentes.

Estes argumentos não convencerão os pragmatistas linguísticos a endossar a experiência, a

menos que façam um deslocamento fundamental, metodológico: eles precisam adotar um ponto de

vista prático. A contemplação da posição de Dewey não é suficiente ― ele precisam ser convidados

a tentar experimentá-lo e ver como ele se sai. “Todo conhecimento intelectual”, escreve Dewey, “é,

antes, um método para conduzir um experimento, e […] argumentos e objeções são, antes, estímulos

para induzir alguém a tentar um determinado experimento ― isto é, recorrer a um problema não-

lógico e não intelectual”. (MW 10: 325 n.1, ênfase minha.) O fato de que a experiências dá-se de

várias maneiras ― estética, moral, discursiva, não-discursiva ― não é nem antinatural, nem

exclusivamente o produto da prática linguística. Mas porque hábitos de descrição e caracterização

estão tão profundamente arraigados, o pragmatismo linguístico irrita-se com a ideia de que a

linguagem está constrangida por um mundo de descrição desafiador, e talvez até duvide desse

mundo. Deste predicamento ― a incomunicabilidade do não-linguístico ―, Dewey afirma que

é inerente, de acordo com o empiricismo genuíno, na relação derivada do discurso com a experiência primária. Qualquer um que recuse ir além do universo do discurso […] priva a si mesmo da compreensão do que seja uma “situação”, tal como questão diretamente experienciada. (LW: 14.30-31)

97

Se o pragmatismo linguístico adota tal ponto de partida, ele começará a evitar a arena

prática onde os termos devem finalmente boiar ou afundar. Evitar esta verificação é contra-

pragmático porque bloqueia a via da pesquisa.

Conclusão: experienciando uma redireção para o método filosófico

A vida, tal como a vivemos, encontra-se amplamente fora de nosso controle. Ela nos impõe

o bom, o mau, o belo e o feio. Uma vez que temos significativamente maior controle sobre teorias do

que sobre a experiência, nós desenvolvemos uma propensão a utilizá-las para ilustrar nossos desejos.

Contra isso, a experiência compromete o pragmatismo com uma falibilidade radical; desafia

abordagens totalizantes que declaram que “tudo é contexto” ou “toda experiência é um caso

linguístico” ou “tecer uma teia de crenças é […] tudo o que se pode fazer.” Isso não proibe nem o

realismo nem a legitimação, mas insiste que ambos devem ser defendidos, como coloca Joseph

Margolis, “em um espírito relativista, histórico e anti-universalista” [25]. Se alguém se inscreve para

o ideal do filósofo-como-mosca, segue-se que só pode cumprir essa obrigação se não se está

emaranhado em intermináveis disputas escolásticas. Uma mosca deve ser livre para seguir o cavalo.

A experiência como método encoraja este ideal com a recorrente admoestação para tratar de

questões políticas e sociais, ajudando a garantir que "o lugar de trabalho, os problemas e os assuntos

particulares da filosofia cresçam dos estresses e tensões na vida da comunidade [...] e que [...] seus

problemas específicos variem de acordo com as mudanças na vida humana que estão sempre

acontecendo e que às vezes constituem uma crise e um ponto de inflexão na história humana". (MW:

12,256).

NOTAS

1. Este artigo é uma versão resumida e revisada de “Avoiding Wrong Turns: A Philippic Against The Linguistification of Pragmatism”, apresentado na conferência “John Dewey: Modernism, Postmodernism and Beyond”, no Behavioral Research Council (Great Barrington, MA, July, 2001) e está baseado em Dewey, Pragmatism, and Economic Methodology, editado por Elias L. Khalil (New York: Fordham University Press, 2003).

2. Richard Rorty, “Response to Hartshorne.” In: Rorty and Pragmatism: The Philosopher Responds to His Critics, editado por Herman J. Saatkamp (Nashville: Vanderbilt University Press, 1995), 35.

3. Consequences of Pragmatism: Essays: 1972-1980. (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1982), 79-80.

4. Rorty, “Comments on Sleeper and Edel,” Transactions of the Charles S. Peirce Society 21, no. 1 (Winter 1985): 40.

5. “Comments on Sleeper and Edel,” 40. Apesar, porém, da dubiedade de Rorty a respeito do conceito de “experiência”, ele está disposto ainda assim a atribuir à linguagem a tarefa de enriquecê-la. Em “Response to Hartshorne”, Rorty afirma que Hartshorne define uma verdade necessária como aquela “com a qual qualquer experiência concebível é ao menos compatível”. Minha objeção é que nós ainda não temos qualquer ideia do que é ou do que não é 98

uma experiência concebível. Porque penso no enriquecimento da linguagem como o único meio para enriquecer a experiência, e porque penso que a linguagem não tem limites trancendentais, penso a experiência como potencial e infinitamente enriquecível. (“Response to Hartshorne” em Rorty and Pragmatism, 36, ênfase minha.)

6. Rorty, Objectivity, Relativism, and Truth, (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), 98. 7. Objectivity, Relativism, and Truth, 98. 8. Objectivity, Relativism, and Truth, 101. 9. “Comments on Sleeper and Edel,” 41. 10. Consequences of Pragmatism, xx. 11. Consequences of Pragmatism, xx. 12. Objectivity, Relativism, and Truth, 99-100. A alegação de que a linguagem captura adequadamente a

experiência é compartilhada por outro, como Wilfrid Sellars (“toda consciência é um assunto linguístico”) e Hans-Georg Gadamer (que enfatiza “a essencial linguisticidade de toda experiência humana do mundo”), e Jaques Derrida (não pode haver um “hors-texte”, “uma realidade […] cujo conteúdo pudesse tomar lugar, pudesse ter tomado lugar fora da linguagem.”) Ver Sellars, Science, Perception, and Reality (London: Routledge and Kegan Paul, 1963), 60; Gadamer, Philosophical Hermeneutics (Berkeley: University of California Press, 1976), 19; e Derrida, Of Grammatology (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1976), 158. Essas passagens foram-me trazidas à atenção por Richard Shusterman, em “Dewey on Experience: Foundation or Reconstruction?” In: Dewey Reconfigured: Essays on Deweyan Pragmatism (New York: SUNY Press, 1999), 210.

13. Hilary Putnam, Words and Life. Editado por James Conant (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1994) 299, 300.

14. Assim, o pragmatismo linguístico compartilha um território com as epistemologias contra as quais Dewey situou-se. “A epistemologia moderna”, escreveu Dewey, “leva à visão de que as realidades devem elas próprias ter uma compleição teórica e intelectual ― e não prática.” (MW 4: 127)

15. Consequences of Pragmatism, 80, ênfase minha. 16. “Dewey between Hegel and Darwin” em Rorty and Pragmatism, 7. 17. Consequences of Pragmatism, 82. 18. Objectivity, Relativism, and Truth 41. 19 Ver, por exemplo, Bruce Wilshire “Body-Mind and Subconsciousness” em Philosophy and the

Reconstruction of Culture, ed. John J. Stuhr (Albany: SUNY Press, 1993), 266; ver também Richard Shusterman “Dewey on Experience: Foundation or Reconstruction?” em Dewey Reconfigured: Essays On Deweyan Pragmatism, ed. Casey Haskins e David I. Seiple (New York: SUNY Press, 1999).

20. Do volume 6 de John Dewey: The Middle Works, 14 vols. (Carbondale: Southern Illinois U. Press, 1976-88), 108. Referências futuras ao trabalho de Dewey usarão as abreviações MW ou LW. LW refere-se a John Dewey: The Later Works, 17 vols. (Carbondale: Southern Illinois U. Press, 1981-91).

21. “Rorty’s Pragmatism: Afloat in Neurath’s Boat, But Why Adrift?” Comunicações da Charles S. Peirce Society, vol. XXI, no. 1 (Winter, 1985): 14-15.

22. Manuscrito, página 29. Em breve, como “Introduction” no relançamento de The Influence of Darwin on Philosophy de John Dewey (Carbondale: Southern Illinois University Press, 2003).

23. Ralph W. Sleeper, “Rorty’s Pragmatism: Afloat in Neurath’s Boat, But Why Adrift?” Comunicações da Charles S. Peirce Society, vol. XXI, no. 1 (Winter, 1985): 17.

24. Sleeper, “What Is Metaphysics?” Comunicações da Charles S. Peirce Society 28, no. 2 (Spring 1992): 184. 25. Joseph Margolis, “A Convergence of Pragmatisms”Em Frontiers of American Philosophy, Vol. 1, ed. por

Robert W. Burch e Herman J. Saatkamp, Jr. (College Station: Texas A&M University Press, 1992), 38.

99

Michael Linn Eldridge*

(1941-2010)James Campbell

Michael Eldridge nasceu na cidade de Oklahoma OK em 13 de outubro de 1941. Morreu

inesperadamente em sua casa em Charlotte, NC, no dia 18 de setembro de 2010 de uma embolia

pulmonar que se desenvolveu ao quebrar sua perna num acidente em seu quintal.

Ele começou a educação superior no Harding College em Searcy, AR, onde se graduou em

1964 como um bacharel em linguagens bíblicas. Em seus estudos posteriores, no Abilene Christian

College, recebeu um grau BD da Yale Divinity School em 1969. Na ordem dos “Discípulos de

Cristo”, Mike passou os próximos cinco anos no ministério de Baltimore, MD, trabalhando

sucessivamente em duas igrejas, uma que pertencia aos Discípulos e a outra da United Church of

Christ. Eventualmente, ele andou da igreja à comunidade organizando o trabalho da (para a) cidade

de Baltimore. Mike, então, ensinou ética na Ethical Culture Fieldston School no Bronx de 1975 a

1978.

Mike retornou à educação superior em 1978, fazendo, também, seu primeiro curso de

Filosofia e eventualmente fazendo um mestrado em Filosofia pela Columbia University em 1980.

Foi premiado com um PhD pela Universidade da Flórida com quarenta anos em 1985 com a

dissertação intitulada: “Philosophy as Religion: A study in Critical Devotion” (Filosofia como

Religião: Um estudo em Devoção Crítica).

Após alguns anos como instrutor na Flórida. Mike entrou num duro mercado de trabalho; e

na tentativa de maximizar seu conhecimento de grego e latim, ele se ofereceu como professor de

filosofia antiga. O meu primeiro encontro com Mike foi nesse ponto, quando ele passou alguns dias

em Toledo numa desafortunada entrevista de emprego em minha Universidade. Baseado neste breve

encontro, eu não duvido que tenha se tornado um excelente professor de filosofia antiga se seguisse

nesta mesma linha, mas todos nós sofreríamos uma grande perda (no pragmatismo).

Em 1986 Mike empregou-se para ensinar filosofia no Spring Hill College em Mobile, AL, e

ensinou lá até 1989. Ele então se mudou para Queen’s College em Charlotte, onde lecionou com

aparente sucesso – aproximando-se, em 1993, do direito a posse de uma disciplina com um recorde

numa cadeira efetiva recebendo um prêmio de “Professor do Ano” – até 1994, quando diferenças

teológicas com a administração presbiteriana levaram-no a sua demissão. Mike desembarcou na

* Tradução de Eustáqui José e Rebeca Virna. 100

Universidade da Carolina do Norte em Charlotte como conferencista permanente, uma posição que

conservou até sua aposentadoria em 2008. Mais do que um titular naquela função, ele estava

profundamente envolvido na vida do Departamento e na Educação Universitária. Ele serviu, por

exemplo, por muito tempo como coordenador na Universidade de Filosofia.

Durante seus anos em Charlotte, Mike foi também um scholar muito ativo. Suas

publicações incluíram: Transforming Experience: John Dewey’s Cultural Instrumentalism

(Vanderbilt University Press, 1998); a “Introdução” para o Segundo volume do The Correspondence

of John Dewey (InteLex, 2001); e numerosos artigos e entradas na enciclopédia sobre vários

aspectos da filosofia americana e a situação da alta educação americana. Mike também administrou a

website: www.obamaspragmatism.info.

Na cena filosófica internacional, Mike serviu como conferencista na Universidade de

Szeged, Hungria (2004). Também foi participante convidado em numerosas conferências

internacionais. Entre os países que ele visitou como um embaixador da filosofia americana estão:

Cuba, Brasil, Finlândia, Eslováquia, Polônia, Alemanha, República Tcheca, Hungria, Turquia,

China e Coréia do Sul.

Algumas das memórias de nossas viagens juntos – em adição, naturalmente, ao trabalho

filosófico real – incluído um painel para um congresso em Porto Alegre, Brasil, onde Mike apreciou

ter sua imagem mostrada em uma tela imensa sobre sua cabeça enquanto falava; uma viagem de

ônibus por uma comunidade pobre perto de Xangai, quando Mike se molhou por ter sentando perto

de uma janela quebrada; uma refeição silenciosa a base de carne de cervo sob o sol da meia noite de

Helsinki; e a missão pelo melhor sorvete de todos em Cádiz.

Por vários anos, Mike foi muito ativo nas programações dos encontros anuais da Sociedade

para o Avanço da Filosofia Americana. Ele eventualmente foi eleito para o cargo de secretário,

posição que ocupou com bastante entusiasmo e dedicação de 2006 a 2010. Quando ele renunciou

ano passado, foi homenageado pela Sociedade com o prêmio Josiah Royce por sua lealdade em

muitos anos de serviço.

Diferente de alguns filósofos cuja vida e trabalho parecem projetos distintos, Mike revelou

muito de si em seus escritos. Seus tópicos eram os seus, não desenhados sobre o que estava ‘no ar’;

seu estilo era pessoal, lento e cuidadoso. O que eu gostaria de fazer com meu tempo restante neste

artigo era desenvolver um retrato parcial de Mike esboçando algumas de suas ideias filosóficas

sobre temas como educação superior, mudanças políticas e renovação religiosa.

101

Começando pela educação superior. Mike escreveu uma revisão detalhada do meu

volume sobre os primeiros anos da American Philosophical Association¹. Sua análise começou de

forma nada promissora como segue: "Este não é um livro que todos deveriam ler";mas Mike salva a

si mesmo quando ele continua escrevendo que é um livro que "qualquer pessoa que se

preocupa com a nossa profissão" e como ela chegou a sua situação atual "deveria

estudar cuidadosamente "². Podemos considerar, por exemplo, seu resumo minucioso

da natureza e funcionamento das faculdades mais tradicionais:

A filosofia acadêmica nos Estados Unidos no século XIX foi concentrada com maior freqüência em pequenas universidades e estava confinada a um único curso ministrado pelo Ministro-presidente Protestante. E por "pequenas" e quero dizer realmente pequenas. As faculdades, em muitas das vezes não tinham mais do que meia dúzia de colegas professoras treinados e educados. Eles se viam como sendo transmissores de conhecimento, em vez de produtores originais do mesmo. A filosofia que era ensinada teve suas origens na Europa e foi uma síntese instável, em última analise, do empirismo, do Cristianismo e da metafísica de uma realidade que está além da experiência. Foi, acima de tudo, de orientação prática e anticética. Esse senso comum realista escocês, como era conhecido, foi considerado seguro e necessário para a educação de um cavalheiro cristão, que era o objetivo da faculdade produzir. A filosofia não era feita para sua própria causa; era para uma parte especial da comunidade, isto é, um segmento profissional e economicamente educado da sociedade. Isto apoiou a orientação evangélica da comunidade, permitindo seus professores e alunos abraçarem plenamente a evolução científica e tecnológica do momento³.

Este mundo acadêmico estava sendo incomodado pelo darwinismo, o mais alto criticismo

bíblico, e pelas muitas mudanças na área industrial e social resultantes da Guerra Civil.

Para uma deweyano como Mike este momento representou uma grande possibilidade de

redesenhar um sistema de ensino superior - com a filosofia em seu núcleo - para desenvolver uma

concepção alternativa do bem social. Sabemos, evidentemente, que as coisas sucederam de forma

diferente; que os líderes (e talvez os membros) da Western Philosophical Association e da

American Philosophical Association estavam mais interessados

numa investigação filosófica restrita e em desenvolver “trabalhos originais." Como Mike escreveu: A atenção para o ensino, a produção de livros didáticos, a transmissão das realizações filosóficas passadas - tudo dentro de um entendimento convencional da cultura- eram o que eles estavam buscando ir além. Estas foram as ênfases das faculdades. Esses filósofos profissionais recentes estavam desenvolvendo um grupo de apoio que lhes permitissem ser uma parte da nova educação rigorosa e científica que emergia do fim do século XIX … essa profissão transformada valoraria a investigação original também através das salas de aula e fóruns públicos. O que a filosofia se tornou no século XX não foi um mero acidente; foi, na verdade, uma profissão bem pensada mesmo que alguns de nós agora questionem a sabedoria desta ação planejada.4

102

Esta abdicação de uma função pública pela profissão filosófica incomodava Mike. Tanto porque

retirava da filosofia uma tarefa social mais importante quanto privava aqueles que foram tão

engajados de alguma ajuda filosófica.

Passando agora para o trabalho de Mike na filosofia política, todos nós sabemos que

ele encontrou suporte em Dewey para resolver os problemas da mudança social. (Duvido que

ele tivesse encontrado ajuda semelhante em Platão e Aristóteles, caso tivesse continuado na

filosofia antiga).

Um dos temas para o qual Mike retornava sempre era o comentário de Dewey de que ele

não tinha tentado "praticizar a inteligência", mas sim "intelectualizar a prática”5. Mike tomou

desta distinção que a prática social era o nosso interesse primário, embora muitas vezes ela seja

impensada e míope. Nós agimos por hábito, mas às vezes nossas maneiras habituais de agir deixam de ser formas eficazes de satisfazer as nossas necessidades." Nestes casos, quando há"uma discrepância entre os nossos interesses e satisfações " precisamos examinar nossas práticas e encontrar uma melhor adequação entre meios e fins". Quando decidimos que a diferença entre os dois tornou-se muito grande devemos"repensar o que estamos fazendo", seguindo as sugestões de Dewey para "deliberação e experimentação6.

O tema da complexidade da mudança inteligente foi outro aspecto importante do

pensamento social de Mike. Ele observa repetidamente que nós temos o poder de modificar o nosso

futuro: "não temos de pegar apenas o que vier". Nós podemos desenvolver nossos interesses

usando "algumas atividades para alcançar os outros", e “ seu campo de ação indireta é a

inteligência"7. Mike percebeu, no entanto, que mudança inteligente não significa necessariamente

mudança pacífica:Eu cresci numa sociedade segregada. Lembro-me de escolas separadas para negros e brancos, banheiros e bebedouros separados, e confrontações raciais violentas. Não penso que o movimento pelos direitos civis dos anos cinqüenta e sessenta poderia ter o sucesso que teve em transformar aquela situação desesperada, deplorável sem alguma coisa a mais que discussão, comunicação e boa vontade. Nós precisávamos das confrontações, por vezes dolorosas, que geralmente eram ocasionadas pelas táticas agressivas do movimento pelos direitos civis.

Mike continua, contudo, que “educação, se estamos falando de educação de escola que

ocorre por deliberação pública, é preferível à mudança violenta, particularmente se a violência é

permitida prevalecer e deslocar os esforços deliberativos”8

O terceiro tema central é o foco de Mike há longo prazo. Como ele escreve, o

objetivo de uma tecnologia política democrática é criar uma ordem social que liberta os indivíduos;

103

isto não é mera vitória política. “O objetivo da política democrática é "a ampla distribuição de poder,

e não sua concentração. "Para Mike, o melhor meio disponível para distribuição de energia foi"

Tornar inteligível a prática política "através da adoção de orientações estratégicas, tais como:

(1) Ser mais cuidadoso com políticos idealistas e operativas, pois ambos separam ideais e

métodos.

(2) perceber que nem a situação existente nem uma suposta alternativa são absolutas. A situ-

ação atual foi originada pela atividade humana; portanto, pode ser reconstruída…

(3) empregar o questionamento social tanto para identificar a prática a ser mudado (incluin-

do suas condições e consequências) como o fim a ser realizado em vista

(4) Usar o questionamento social para criar um público… Públicos não são dados ou encon-

trados; eles são criados através da comunicação aberta e informada e pela auto-identifica-

ção no que se refere a necessidades e propósitos comuns. Públicos são feitos, não surgem,

e são feitos através do questionamento.

(5) Procurar por solos conciliadores – isto é comuns.

(6) Empregar meios democráticos para realizar fins democráticos9.

Mike também escreveu sobre o lugar da filosofia nesse processo da mudança social

inteligente: “a tarefa do filósofo social é encorajar o desenvolvimento do método da inteligência

social; isto não é esgotar soluções10. Aqui nós temos uma aparente – mas só aparente – ruptura com

Dewey. Mike diz que não devemos tomar as sugestões de Dewey como sugestões para nós. O que

nós precisamos fazer é abordar “os problemas do seu tempo e aprender a partir do método que ele

empregou”. Temos, assim, de enfrentar dois compromissos distintos. "É a tarefa de a

filosofia cultivar métodos para lidar com os problemas humanos; é tarefa de todos

trabalhar em nossos problemas comuns". Confundir estas duas tarefas e procurar

respostas programáticas em Dewey é não compreender o seu método. "Ele falou sobre

situações particulares, usando seus métodos filosoficamente cultivados"11. Essas situações não são as

nossas - embora sua abordagem continue a ser valiosa.

Um terceiro tema que desempenhou um grande papel na perspectiva filosófica de

Mike era o da religião. E aqui ele também encontrou a ajuda nos trabalhos de Dewey.

104

Talvez aproveitando sua experiência pessoal Mike escreveu sobre a preocupação de Dewey "com

aqueles que tinham abandonado crenças tradicionais e não estavam nas igrejas, mas que ainda se

consideravam - ou desejavam ser - religiosos". Ele viu um papel importante para

os religiosos na auto-definição corrente da comunidade. O que Dewey defendeu,

e que Mike tentou, era "a emancipação dos elementos religiosos dentro da

experiência comum", o cultivo de um senso de um todo maior que é muitas vezes

submerso em momentos da vida. Esta emancipação tem sido a tarefa do naturalismo – que

Mike descreve como "oposição ao sobrenaturalismo, associação com a ciência e humanidade como

parte integral da natureza"13- por pelo menos um século.

Mike escreve que Dewey "estava tentando encontrar um meio termo entre a sua

sensibilidade secular e a herança religiosa convencional de seu público leitor"14. Para aqueles de uma

atitude religiosa - entre os quais eu colocaria Mike - esta busca continua. Mike era um pragmatista

que chegou atrasado para a filosofia; mas ele se tornou um filósofo que nos ajudou nesta busca.

James Campbell

Universidade de Toledo, EUA

Março de 2011.

NOTAS

. James Campbell, A Thoughtful Profession: The Early Years of the American Philosophical Association (Chicago: Open Court, 2006).

2. “When Philosophy Became What It Is Today,” Transactions of the Charles S. Peirce Society, XLIII/2 (Spring 2007), pp. 375-381. Essa passagem aparece na p. 376.

3. Idem., pp. 376-377.

4. Ibid., pp. 378, 380.

5. Transforming Experience: John Dewey’s Cultural Instrumentalism (Nashville: Vanderbilt University Press, 1998), p. 5. Eldridge is drawing here from Charles Frankel, “John Dewey’s Social Philosophy,” New Studies in the Philosophy of John Dewey, ed. Steven M. Cahn (Hanover, NH: University Press of New England, 1977), pp. 3-44.

6. “Dewey on Race and Social Change,” Pragmatism and the Problem of Race, ed. Bill E. Lawson and Donald F. Koch, (Bloomington: Indiana University Press, 2004), pp. 11-21. Essa passagem aparece na p. 16.

7. Transforming Experience, p. 200.

105

8. “Thick Democracy Too Much? Try Pragmatism Lite,” Education for a Democratic Society, ed. John Ryder and Gert-Rüdiger Wegmarshaus, (Amsterdam: Rodopi, 2007), pp. 121-129. Essa passagem aparece na p. 127.

9. Transforming Experience, pp. 113-114.

10. “Dewey on Race and Social Change,” p. 19.

11. “Dewey’s Limited Shelf Life: A Consumer Warning,” In Dewey’s Wake: Unfinished Work of Pragmatic Reconstruction, ed. William J. Gavin, (Albany: SUNY Press, 2003), pp. 25-39. Essa passagem aparece na p. 37.

12. Transforming Experience, pp. 147-148,

13. “Naturalism,” Blackwell Guide to American Philosophy, ed. Armen T. Marsoobian and John Ryder (Malden, MA: Blackwell, 2004), pp. 52-71. Essa passagem aparece na p. 52.

14. Transforming Experience, p. 168.

106

Resenha

107

Resenha

DEWEY, John. Arte como Experiência. Tradução de Vera Ribeiro, Martins Fontes, 2010. –

(Coleção Todas as Artes). 646 pág.

por Inês Lacerda Araújo

A arte é a mais universal e mais livre das formas de comunicação [...] é a extensão da função dos ritos e cerimônia unificadores dos homens [...] ela também conscientiza os homens de sua união uns com os outros na origem e no destino (John Dewey).

A publicação original da obra Arte como Experiência data de 1934. Finalmente o leitor

brasileiro tem acesso às reflexões de Dewey sobre teoria da arte. Em geral toda a obra de Dewey

recebe pouca atenção da parte de editores, reflexo de críticas apressadas que têm sido feitas ao

pensamento de Dewey em particular, e ao pragmatismo norte-americano de modo geral. A

revitalização da escola no Brasil se deve a uma apreciação mais isenta de professores e intelectuais

com relação ao pragmatismo. Grupos de estudo sobre James, Dewey, e sobre um dos representantes

mais recentes do movimento, R. Rorty vêm contribuindo para esse despertar. O mesmo pode-se

dizer da Revista Redescrições, publicação quadrimestral do GT Pragmatismo e Filosofia Americana.

Em tradução competente, a longa obra de Dewey vem acompanhada de uma introdução de

Abraham Kaplan (1919-1993), e, no final de notas e referências do próprio autor, o que soma 646

páginas. Kaplan se refere à má compreensão que teve o pragmatismo nos EUA, confundido com

oportunismo, busca de sucesso material, quando é um movimento filosófico de renovação, que tem

em Dewey um de seus expoentes. Atentar para as consequências e mostrar a interação entre

organismo e ambiente, essas são as propostas de Dewey, longe de uma filosofia do interesse material

imediato do homem de negócios norte-americano. A arte faz parte, ela integra os propósitos e

valores da vida, nasce dos processos de interação entre o organismo e o meio, a que Dewey chama

de experiência.

Na introdução, A. Kaplan mostra que Dewey combate os dualismos, pois vê uma

continuidade entre duplos, entre díades, como homem e ambiente, natureza e sociedade, a arte e a

ciência. A experiência ativa e dinâmica é a base para arte. Kaplan enxerta seus próprios exemplos,

como quando expõe as razões que levam Dewey para argumentar sobre a correlação entre matéria e

forma. Ressalta que Dewey analisa o “artístico” de preferência ao “estético” ao preservar o

distanciamento com que devem ser empregados os princípios da interpretação da arte, que não serve

a propósitos políticos, não é o meramente útil. Afasta tanto as interpretações realistas, quanto as que

reduzem a arte à função representativa. Nada mais estranho ao pragmatismo, analisa Kaplan, do que 108

a concepção vulgar de que não passa de um utilitarismo e que, portanto, nada teria a dizer sobre arte,

uma vez que ela é inútil.

Pelo contrário, Dewey reserva à arte um lugar especial na construção de seu pensamento e

de suas obras, e este lugar é o da experiência, conceito chave para a compreensão de suas ideias.

No prefácio Dewey informa que a obra é resultado de uma série de dez conferências que

pronunciou na Universidade de Harvard. Os textos são longos, com numerosos exemplos, bastante

expositivos, e que vão num crescendo: as noções e conceitos se explicitam e se firmam a cada um

dos catorze capítulos em que a obra foi organizada.

É preciso compreender seu ponto de partida, ao qual ele recorre ao longo de toda a obra.

Por isso é fundamental ler “A criatura viva” (capítulo 1), pois nele vem exposta a tese central de

Dewey. Toda criatura viva recebe e sofre a influência do meio, e a isso Dewey chamou de

experiência. Há uma continuidade entre os eventos e atos do cotidiano. A arte é também uma forma

de experiência que alcança dimensão estética. O Partenon, por exemplo, representa a cultura grega,

seus atos e experiências; o que se vê em museus foi algo que serviu a povos, fruto de sua habilidade,

de seus cultos, danças, rituais, música, arquitetura, inseparáveis de sua vida.

Os museus serviram a princípio para ostentar o poder, em geral de impérios. Mais

recentemente, a arte se transforma em moeda de troca pelos colecionadores. Com isso os objetos

artísticos ficam “desvinculados da experiência comum e servem de insígnias de bom gosto e

atestados de uma cultura especial” (p. 60); daí o abismo entre os dois tipos de experiência, a comum

e a estética, vem daí a falsa assunção de que arte é contemplação.

A proposta de Dewey é reverter essas noções e situações, a arte, diz ele, liga-se às

experiências cotidianas. Sua teoria indaga acerca da natureza da produção artística, como ela surge e

evolui a partir de ações comuns e necessárias à vida, à adaptação ao meio, à satisfação de

necessidades. Há uma ordem, um equilíbrio das energias, quando o organismo chega a essa

estabilidade, e “traz em si os germes de uma consumação semelhante ao estético” (p.77).

Significados se incorporam aos objetos criados, o artista neles vê potencialidades, passa a cultivá-

los.

Dewey recorre com frequência à diferença entre arte e ciência, esta se ocupa com situações

e problemas em que contam a observação, o pensamento indaga e investiga. Em contraste, a

experiência estética brota da ordenação segundo padrões que surgem na interação entre organismo e

meio. A solução de tensões e conflitos leva a uma harmonia, a um prazer quando há uma adaptação.

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A vida fornece as fontes da experiência estética; a energia, a prontidão, toda essa vitalidade é gerada

pela troca ativa e alerta com o mundo: “a experiência é a arte em estado germinal” (p.84).

Por isso não tem lugar na teoria estética de Dewey nada de transcendente e etéreo. No

capítulo 2 ele vai às raízes da divisão corpo/mente, sensível/inteligível, inferior/superior. Filósofos

como Platão, e moralistas desprezam os sentidos, o gozo, o impulso e os apetites. Ora, os sentidos

abrem para a atividade, para a lida com os materiais sensíveis que são meios para a ação, na qual a

mente tem um papel ativo, ela extrai e preserva significados e valores que surgem daquela interação.

Não há por que temer as experiências vivas e sufocá-las por debaixo do intelecto e da mente puros.

No homem, tempo e espaço fazem parte de necessidades que tem a vida consciente de

transformar os estímulos orgânicos em meios para expressar e comunicar. A arte usa as energias e

materiais da natureza, amplia a vida, une significado com impulso e necessidades, produção de

artefatos, sendo, desde os povos antigos um norteador da humanidade. A experiência completa inclui

o fazer, o ver, o expressar. Dewey combate a hostilidade e o preconceito contra a arte útil e contra as

práticas e técnicas consideradas inferiores, que reserva a pura contemplação às classes superiores.

Segundo ele, a cultura avançou juntamente com os processos vitais, com as experiências com o meio

e a natureza. Na obra de Emerson e Thoreau, na arquitetura há essa relação sensorial; na poesia de

Keats, não há separação entre sensibilidade, imaginação, raciocínio, intelecto e intuição.

Há experiências singulares há um fluxo. O mesmo se dá com as obras de arte, há unidade,

há especificidade. E isso é “ter uma experiência”, tema do capítulo 3. Ideias não são algo fluido,

puramente mental, elas formam um fluxo como fases afetivas e práticas, expressas em símbolos. A

qualidade estética não é exterior nem diversa do prático, nem do intelectual, pertence aos

movimentos vitais, algo emocional e parte integrante de uma experiência complexa. A interação

criatura/meio resulta em adaptação, há um padrão, há uma estrutura, em que a ação expressa e

amplia as experiências, do que resulta inteligência, habilidade, sensibilidade. E tudo isso tem a ver

com o artístico e o estético. A arte como produto e servi à apreciação, ao prazer estético. Esse

resultado distingue a arte do fazer técnico e da produção espontânea. O artista controla o que faz e

dirige sua produção a alguém, julga o efeito que a percepção da obra pode produzir. Na experiência

intelectual conta a relação entre partes para chegar a uma conclusão. Já na estética há um crescendo,

um ritmo com um desfecho, que resume uma etapa e leva a outra.

Por isso Dewey valoriza “O ato de expressão” (capítulo 4), que nasce de nossas impulsões,

da busca de satisfação, da superação de obstáculos, os quais, com a resistência do meio, levam a ter

que refletir para agir, guiar-se por objetivos, planejar a ação. As coisas se transformam em meios,

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assumem significados, e são expressas. Na expressão artística há construção, controle, tempo de

criação, uso do material que o artista acumulou e que a emoção seleciona em atos que abstraem nos

objetos algo comum. É isso que confere à arte, universalidade. Sem emoção, não há arte, apenas

habilidade, mas essa emoção leva em conta a proporção, ordenação e equilíbrio. Disso resulta

melhoria para uma comunidade.

A disputa de teorias estéticas entre as que defendem a pura expressão subjetiva e as que

defendem que arte é pura representação de algo externo, não faz sentido. Ambas as teorias são

criticadas por Dewey no capítulo 5. O significado na arte reside na expressão de uma experiência,

uma obra de arte “constitui uma experiência” (p.184) na medida em que realiza imediatamente uma

intenção. Dewey exemplifica com uma carta em que Van Gogh descreve para seu irmão a paisagem

que pretende representar. O resultado, o quadro, expressa em cores e pinceladas o que na paisagem

impressionou o pintor. Ele põe na obra suas experiências, segue um ritmo, o que ele vê é

esteticamente modificado e não representado como se fosse uma foto do real. O artista tem do objeto

uma experiência nova, ele revê ou re-apresenta no objeto um tema com significado próprio,

resultado de sua “visão imaginativa”. Ele pode traduzir o objeto em termos de planos, fusão de

cores, mesmo na arte abstrata, nela também há cor, extensão, ritmo, movimento. Cézanne reordena a

percepção, escolhe o que será expresso. E isso sem perder a referência ao mundo, às coisas, suas

qualidades e estruturas.

Dewey critica também o associacionismo que parte da sensação como fonte do conhecimento

e da arte. A visão é sempre uma percepção; reconhecer e ligar objetos faz parte essencial dos

processos vitais que a arte renova e transforma em novas experiências de vida. “No fim das contas,

as obras de arte são os únicos meios de comunicação completa e desobstruída entre os homens, os

únicos passíveis de ocorrer em um mundo cheio de abismos e muralhas que restringem a comunhão

da experiência” (DEWEY, p.213).

Cada arte tem um tipo de linguagem e de comunicação entre o objeto, o artista e o público. O

material produz um novo modo de ver, sentir e apreciar. Por isso não há separação entre a matéria e

a forma, defende Dewey no capítulo 6, sobre substância e forma. O tema não se confunde com a

substância ou matéria. Se o tema é uma paisagem, o que ela evoca são emoções, a forma ou veículo

transformam o objeto em algo novo. A crítica artística pode e deve analisar matéria e forma como

distintas, mas sem esquecer que estão profundamente ligadas.

A separação entre matéria e forma remonta às filosofias antigas, Platão considerava a forma

como essencial, e a matéria como mutável, caótica, sensível. A verdadeira natureza das coisas é

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inteligível. A teoria estética, influenciada por Platão e Aristóteles, contrapõe matéria incompleta, à

forma, completa e coerente.

Objetos industriais têm forma adaptada ao uso, a função estética não é a primeira escolha do

designer, há que considerar a finalidade e os modos de composição ou construção. Na obra de arte as

relações e formas se combinam com os materiais ou objetos relacionados, são inseparáveis, a não ser

por uma análise posterior. Qualidades sensórias na arte são expansíveis, não se prestam para o

meramente decorativo. Na arte há seleção, organização, estímulos conectados em um quadro de

referencial que despertam a emoção, às vezes admiração. Desrespeitar isso leva ao grotesco ou

vulgar.

Às vezes o que se considera matéria em uma obra de arte, serve como forma em outra. A

relação entre elas é a mesma que existe entre sofrer ou ficar sujeito a uma ação, de um lado, e agir de

outro lado. A interação entre ser vivo e o meio, para Dewey, é o parâmetro por excelência, tanto para

conhecer, como para agir, tanto para criar arte e objetos de uso, como para transmitir e comunicar

significados. A obra de arte “mantém viva, simplesmente por ser uma experiência plena e intensa, a

capacidade de vivenciar o mundo comum em sua plenitude. E o faz reduzindo a matéria-prima dessa

experiência à matéria ordenada pela forma” (p. 257).

A forma tem uma “história natural”, (capítulo 7), ela resulta de ações e reações as mais

diversas na natureza e na sociedade, onde houver integração de forças que conduzem a uma

realização plena da experiência de um evento ou situação, há forma. Na arte a forma expressa a

tensão, antecipação e resistência, próprios de toda ação inteligente, que Dewey resume no conceito

de ritmo, presente em todas as obras de arte. O ritmo vem da contínua e ordenada variação de

mudanças, energias que resistem uma à outra, pausas, equilíbrio e simetrias. Todas essas qualidades

são próprias da expressão estética. No canto, na música e no teatro, essas emoções são diretamente

despertadas em uma plateia, outras artes são duradouras, como a arquitetura e as artes plásticas.

Quando um ritmo se impõe, há criação, a tensão entre homem e meio diminui. Esse dinamismo, a

arte não pode perder.

O eu ativo impõe ritmo tanto nas artes relacionadas ao espaço, como as relacionadas ao

tempo, pois o ritmo não é mecânico, e sim dinâmico, organizador de forças e energias, como ele

mostra no capítulo 8 (“A organização das energias”). O ritmo traz a novidade, não aquela facilmente

digerível dos best-sellers, mas as variações que criam novos padrões. Nada limita a arte, exceto o

material e a intenção do artista. Entre todas elas há uma substância comum, o fato de seu produto ser

matéria na qual foram organizadas energias distribuídas no espaço e no tempo. Estes não existem,

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não são entidades em si e fixas, o que há é o movimento das coisas, agir e reagir de um organismo

vivo com seu meio. Fica evidente o naturalismo deweyano.

Depois de mostrar o que há em comum, nosso autor se volta para as peculiaridades e

particularidades das artes. Ele é contra classificações, todas elas restringem algo ou são

inapropriadas. Assim, diferir as artes visuais das auditivas, as espaciais das temporais, as

representativas das não representativas, qualificativos como superior ou inferior, delimitar entre o

que é prosa e o que é poesia – são rótulos que empobrecem as diferentes manifestações artísticas.

As diferenças existem, mas não os compartimentos. A persistência e a expressão de

estabilidade da vida são próprias à arquitetura, na escultura há uma organicidade, na pintura, luz, cor

e um largo poder de expressão. A prosa de Dewey quase se torna literária neste capítulo, quando

expõe a força da música, o impacto da vibração desta que é a arte mais disseminada e com ampla

gama de meios. A literatura expressa uma “força intelectual superior”, as palavras têm uma “carga

quase infinita de implicações e ressonâncias” (p.422), e na poesia assumem “uma energia de

expressão quase explosiva” (p.423). Enfim cada uma das artes explora a energia própria do material

usado como meio de expressão.

Dewey critica as concepções filosóficas que consideram haver uma profunda escansão entre

mente, eu, espírito e tudo o que é corpóreo e material. Para ele não há um eu puro, mas sim

atividades da mente com suas capacidades exploratórias; o eu não possui propriedades intrínsecas,

todas as suas operações se devem à interação entre organismo e meio. A distinção alma/corpo, a

distinção entre a classe intelectual que contempla as ideias, e os artesãos que lidam com a técnica,

está na base da teoria estética que reduz a arte à pura contemplação racional, distante da ação e da

emoção. Para Dewey a arte envolve elementos intelectuais, emocionais e os da sensibilidade. Não há

antítese entre práticas e usos, os artesãos se expressam esteticamente, e até mesmo os produtos

industriais podem ter qualidade estética.

A obra de arte resulta da imaginação e funciona imaginativamente, alarga e concentra a

experiência, assim inicia Dewey o capítulo 12, chamado “O desafio à filosofia”. As filosofias da

estética devem levar em conta tanto os aspectos da imaginação como os do controle, tanto as

emoções, quanto experiências com o objeto. Assim, a arte não pode ser definida unicamente pelo

aspecto lúdico, há a livre criação do eu, mas ela é ordenada pelo material que só se torna arte pela

fusão do subjetivo com o objetivo ao produzir uma nova experiência. Novamente Dewey se

posiciona contra a tese da representação do objeto pela mente, e contra a tese de que a arte é

conhecimento. A arte transforma o saber pela visão imaginativa e emocional, ela é expressão.

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O capítulo que merece ser lido por todos que se dedicam à crítica da arte, é o 13 (“Crítica e

percepção”). Dewey define com sensibilidade e inteligência a função da crítica e os modos mais

adequados de exercê-la. É preciso preparo, “uma formação rica e uma visão disciplinada” (p.512).

Há os que se escandalizam e não conseguem lidar com novas modalidades de expressão, os que

confundem técnica com forma, os que confiam apenas em sua impressão pessoal. O crítico deve ser

cauteloso ao formular seus juízos, sincero, bem informado; ele detalha, unifica, analisa, conhece as

diversas tradições e procura evitar que a predileção pessoal e partidarismo atrapalhem seu

julgamento. Deve evitar todo e qualquer reducionismo, o ideológico, o sociológico, o político. O uso

de categorias externas à arte, como as psicológicas, e explicar a obra pela biografia, também

prejudicam a crítica da arte.

No último capítulo “Arte e civilização”, Dewey eleva o tom, enaltece a arte, a qual, como

expressão, “é uma manifestação, um registro e uma celebração da vida de uma civilização, um meio

para promover seu desenvolvimento e também o juízo supremo sobre a qualidade dessa civilização”

(p.551). Retorna ao tema das atividades de que nascem as artes, imbricadas com as necessidades e as

condições de experiências vitais. Percorre as artes de diversas civilizações, desde a egípcia e a grega,

passando pelo medievo. Neste período o poder de agregação da religião permitiu um grande

desenvolvimento das artes. É pela arte que se entra nos componentes mais profundos de civilizações

remotas e estranhas à nossa experiência, o que leva a romper barreiras e permitir a comunicação

entre culturas.

A marca da modernidade são os produtos industriais que podem ocasionar revoluções

estéticas pela melhor adaptação às necessidades. Resta a questão da produção que visa o lucro

privado. Dewey defende a participação dos trabalhadores “na produção e na administração social dos

bens que ele produz” (p.576) o que mudaria o conteúdo da experiência que entra na criação de

objetos. Isso mostra que a arte tem função social, e como tal, deve ser incorporada ao sistema de

relações sociais. O poder da produção artística e intelectual é maior do que o poder da reflexão

moral. Pelo poder da imaginação, ao despertar desejos e emoções, a arte vai além das evidências,

transforma e transcende hábitos arraigados.

Por todas essas novidades que traz a reflexão de Dewey sobre arte como experiência, aliada

a numerosos exemplos de obras e de artistas, vale a leitura. Além disso, trata-se de uma concepção

original, calcada no pragmatismo, no naturalismo e no evolucionismo. O conceito chave de sua

filosofia pragmatista é o de experiência, sem ela não há vida, sem ela não há arte.

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Revista RedescriçõesRevista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana

Ano II, número 4, 2011ISSN: 1984-7157

Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro

www.gtdepragmatismo.com

O filósofo Michael Linn Eldridge (1941-2010)

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