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Revista São Boaventura

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Revista São Boa Ventura. Edição: jul./dez. 2008. Revista de Filosofia.

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Centro Universitário Franciscano do ParanáInstituto de Filosofia São Boaventura

Revista Filosófica São Boaventura, v.1, n.1, p.1-106Curitiba, jul./dez. 2008

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Copyright © 2008 by autoresQualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

Centro Universitário Franciscano do ParanáInstituto de Filosofia Boaventura

Instituto mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ)

ReitorFrei Nelson José Hillesheim

Pró-reitor acadêmicoAndré Luis Gontijo Resende

Pró-reitor administrativoPaulo Arns da Cunha

Diretor do IFSBMs. Vicente Keller

EditoresDr. Vagner Sassi e Dr. Enio Paulo Giachini

Comissão EditorialDr. Roberto H. PichMs. Vicente KellerDr. Jaime SpenglerDr. João Mannes

Dr. Marcelo Perine

Conselho EditorialDr. Osmar Ponchirolli

Dr. Mauro SimõesDr. Antônio Joaquim Pinto

Dr. Écio Elvis PizzetaDr. Leonardo Mees

Ms. Solange Aparecida de Campos CostaDr. Renato Kirchner

RevisãoComissão editorial

Projeto Gráfico e DiagramaçãoMaria Laura Zocolotti

Ana Rita Barzick Nogueira

CapaRoland Cirilo

R. 24 de Maio, 135 | 80230-080 | Curitiba-PRe-mail: [email protected]

Catalogação na fonte

Revista filosófica São Boaventura/Centro UniversitárioFranciscano do Paraná. Instituto de Filosofia São Boaventura.

v.1, n.1, julho/dezembro 2008- . Curitiba: CentroUniversitário Franciscano do Paraná, 2008-v. 23cm

Semestral

1. Filosofia - Periódicos. I. Centro Universitário Franciscano doParaná. Instituto de Filosofia São Boaventura.

CDD - 105

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Estudar, Filosofia? 1Hermógenes Harada

Filosofia e Pensamento 13Vagner Sassi

Pascal: Apologia em Fragmentos 27Jaime Spengler

Uma Reflexão Antropológica da Violênciaa Partir das Atividades Liberativas daFilosofia de Schopenhauer 37

Osmar Ponchirolli

Reflexões sobre a Obra de Arte - umaanálise do texto “A Origem da Obra deArte” de Martin Heidegger 47

Solange Aparecida de Campos Costa

Trabalho e si mesmo. Reflexões a partirde Heinrich Rombach 59

Enio Paulo Giachini

A Ética Kantiana e o Primadoda Autonomia 69

Ítalo Kiyomi Ishikawa

Utilitarismo Negativo 83Leonardo A. dos Reis T. dos Santos

Os Dois Infinitos 99Blaise Pascal

To Study, Philosophy? 1Hermógenes Harada

Philosophy and Thought 13Vagner Sassi

Pascal: Apology In Fragments 27Jaime Spengler

An Anthopological Reflection aboutViolence Stemming from the LiberativeActivities of Schopenhauer’s Philosophy 37

Osmar Ponchirolli

Reflections about the Work ofart - an analysis of the text “The Originsof the Works of Art” by Martin Heidegger 47

Solange Aparecida de Campos Costa

Work and yourself. Reflections stemmingfrom Heinrich Rombach 59

Enio Paulo Giachini

Kantiana Ethics and the Priorytyof Autonomy 69

Ítalo Kiyomi Ishikawa

Negative Utilitarism 83Leonardo A. dos Reis T. dos Santos

The Two Infinites 99Blaise Pascal

SUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIO SUSUSUSUSUMMARYMMARYMMARYMMARYMMARY

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EditorialEditorialEditorialEditorialEditorial

Um rápido olhar pela história da filosofia mostra que uma dascaracterísticas mais marcantes do ser humano se faz presente emtodos os momentos. A inquietação, a insatisfação pelas explicaçõesapresentadas a determinados fatos e fenômenos, a busca poresclarecimentos a situações novas que se apresentam, a reflexãocontínua e continuada sobre avanços científicos são característicasque acompanham o ser humano em todos os momentos.

Basta lembrar a admiração e a estupefação dos primeiros filósofosdiante da multiplicidade e diversidade dos fenômenos naturais; o“conhece-te a ti mesmo” exposto aos visitantes do Templo deDelfos; o “sei que nada sei”, pensamento favorito de Sócrates aoabordar seus oponentes e, muitos deles, futuros discípulos; ainquietação expressa por Santo Agostinho em sua busca pelaverdade (“minha alma não descansará enquanto não repousarem ti, Senhor”); a contrariedade e contraditoriedade de Hegel(“naquilo com que um espírito se satisfaz, mede-se a grandezade sua perda”).

A Revista Filosófica São Boaventura se propõe ser um canal paraa expressão desta inquietação, da reflexão contínua e continuada,da manifestação de novas respostas a problemas antigos que sepunham e continuam a se apresentar ao ser humano. O objetivoda revista é ser um ponto de apoio para o pensar e um canal dedivulgação e incentivo à produção científica. Enquanto ponto deapoio, acolhe contribuições relevantes da área de filosofia, devertentes diversa=s, tanto endógenas quanto exógenas. Enquantocanal, busca o diálogo entre autores e leitores sobre diversos temaspertinentes à área de filosofia. Significa dizer que seu campo deabrangência é o estudo e a produção filosóficos de maneirabastante ampla, mesmo estando focada no nível de graduação.Aceita artigos de professores, pesquisadores, estudantes e amantesda filosofia.

Na verdade, trata-se de mais um canal do Curso de Filosofia doInstituto de Filosofia São Boaventura e da Unifae - CentroUniversitário Franciscano do Paraná. É mais um desafio a seusprofessores e alunos para exercitarem o diálogo e a reflexão, tantointerna quanto externamente, com seus pares.

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Neste primeiro número encontram-se artigos assinados sobretudopor autores vinculados ao Instituto de Filosofia São Boaventura eao seu curso de Filosofia. São contribuições, no dizer delespróprios, que pretendem: “tematizar o filosofar, o lado esotéricoda filosofia, como sendo busca do fundo o mais fundo, paraalém ou aquém de todas as posições e suposições das filosofias,como vislumbre de uma aberta, qual uma racha mal percebida àraiz do ser de todas as coisas, envolta numa intensa nuvem donão saber”; “apontar para a necessidade de se ultrapassar aabordagem metafísico-categorial da linguagem em favor de umfalar originário e de uma escuta não-objetivante”; “oferecerindicações sobre a gênese da obra “Pensamentos”, buscando umacompreensão em torno do que seja uma apologia, e no casoApologia do Cristianismo; por fim propor considerações em tornodas características daquele gênero literário denominado‘fragmento’”; “verificar a importância da concepção filosófica deSchopenhauer como fundamento antropológico do fenômenoda violência”; “possibilitar uma discussão inicial sobre o temaque permita o estudo acadêmico da estética ou filosofia da arte”;“refletir sobre algumas indicações de H. Rombach relacionadascom o tema do trabalho e suas implicações”; “apresentar a éticade Kant e ressaltar seus princípios metafísicos, assim como,demonstrar os fundamentos racionais do Direito e do Estado”;“defender a coerência da proposta com o pensamento de Poppere com uma crítica à epistemologia milleana, possibilitando umaaproximação do utilitarismo com a moral comum e combatendoos possíveis efeitos perversos de uma política direcionada para oincremento do bem-estar”. Finalmente, este primeiro númeroencerra com a tradução de alguns fragmentos extraídos do livroPPPPPensamentosensamentosensamentosensamentosensamentos, de Blaise Pascal.

O desafio está lançado a professores, pesquisadores, estudantese amantes da filosofia. Nos próximos números, o seu artigo poderáser publicado aqui.

Prof. Vicente KellerDiretor do Instituto de Filosofia São Boaventura

Coordenador do Curso de Filosofia da FAE Centro Universitário

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artigos

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EstudarEstudarEstudarEstudarEstudar, Filosofia?, Filosofia?, Filosofia?, Filosofia?, Filosofia?

TTTTTo Studyo Studyo Studyo Studyo Study, Philosophy?, Philosophy?, Philosophy?, Philosophy?, Philosophy?

Hermógenes Harada*

ResumoResumoResumoResumoResumo

Filosofia se apresenta como saber constituído, institucionalizadodo ensino, aprendizagem e pesquisa. Nesse saber, são imensas eextensas as exigências requeridas para se ter qualificação eexcelência do saber competente. A esse aspecto podemos chamarde aspecto exotérico da filosofia, o seu lado virado para fora,para o público. No estudo, a saber, no empenho e desempenhodo labutar na filosofia, há também um aspecto virado para o seuinterior, para o âmago do seu ser, o aspecto que pode serdenominado como esotérico. É o seu lado virado para dentro,para o seu ser próprio, para sua essência. Essa ambigüidade dafilosofia se formula numa definição da filosofia que diz: filosofiaé filosofar. O artigo tenta tematizar o filosofar, o lado esotéricoda filosofia, como sendo busca do fundo o mais fundo, para alémou aquém de todas as posições e suposições das filosofias, comovislumbre de uma aberta, qual uma racha mal percebida à raiz doser de todas as coisas, envolta numa intensa nuvem do não saber.

PPPPPalavras-chave:alavras-chave:alavras-chave:alavras-chave:alavras-chave: estudar; filosofia; exotérico; esotérico; estudo.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

Philosophy presents itself as established knowledge,institutionalized in education, learning and research. Within thisknowledge, there are great demands to acquire qualification andexcellence of competent knowledge. This aspect can be calledexoteric knowledge of philosophy, its outside aspects, turned tothe public. In this study, in an effort to work philosophy, there isalso an aspect turned inside to the core of itself, this aspect maybe called exoteric. Its the part turned inside, to its own being, toits own essence. This ambiguity of philosophy is formulated in adefinition of philosophy that states that: philosophy is to exercisephilosophy. This article aims to make a theme out of exercisingphilosophy, the exoteric side of philosophy, seeking the deepestof deepest, beyond all other stances and suppositions of otherphilosophies, as a glimpse of an open, unnoticeable fissure at theroot of all things, enveloped by a large cloud of not-knowing.

KKKKKey Wey Wey Wey Wey Wordsordsordsordsords: to study; philosophy; exoteric; esoteric; study.* Filósofo e pesquisador do Instituto

de Filosofia São Boaventura (IFSB).

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2 HARADA, Hermógenes. Estudar filosofia?

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Filosofia é uma interrogação? Ou a interrogação vale sobre o estudo? Supondo-se que seja sobre ambos, devemos saber o que é filosofia e o que é estudo. Mas, seestudar filosofia não é propriamente saber sobre o que é, mas filosofar1, então essefilosofar não mais seria saber sobre filosofia nem sobre estudo, mas apenas questão2. Naquestão interrogar não é para responder e resolver um problema, mas abrir-se à disposiçãoda jovialidade incondicional da busca.

Filosofia nos é dada como disciplina escolar. Ao lado das outras disciplinas daaprendizagem e do ensino. Como ciência. Como mundividência. Muitas vezes, comoconjunto de doutrinas ideológicas. Como informações culturais e métodos, normas, comocoleção de ensinamentos profundos da vida e da história, como sabedoria. Como matériasde estudo, com provas e notas de aprovação ou reprovação. Com “ranking” do saberacadêmico, como promoção de graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado, no empenho e desempenho do trabalho intelectual. E como qualquer outramatéria de estudo escolar, a filosofia está sujeita a variegadas e diferentes apreciaçõesdos que a estudam. Mas, usualmente, a filosofia como mundividência, ciência, ideologia,cultura, sabedoria, disciplina de ensino e aprendizagem escolar, de grau superior, seja oque for e como for, é considerada como uma das manifestações e expressões do espíritohumano, do espírito europeu-ocidental.

Filosofia, porém, não é boa para indicar a profissão de uma pessoa, a não sercomo professor de filosofia. Soa estranho chamar alguém de filósofo, como se costumaclassificar, chamando alguém de engenheiro, mecânico, lixeiro, advogado, operário,médico, historiador. Filósofo soa, assim, não como alguém que tem uma função social,um status, uma tarefa ou trabalho bem definido, mas como alguém solitário, todo próprio,digamos particular e singular, algo diferente, de alguma forma afim com excêntrico,alienado, excepcional, estranho, sábio quem sabe, de vez em quando até santo, mas emtodo o caso não oficial, não comum, e sempre como privativo, próprio, singular. Nessesentido, se, em vez de dizer, filósofo é aquele que estudou filosofia, é a pessoa que éformada na especialização “filosofia”, se disser é aquele que filosofa, pensa, matuta,“crania”, a gente se sente melhor, mais familiarizado com a qualificação. Mas pensar,matutar, “craniar” não é de toda gente, de todo mundo? O que há de especial no filosofar?O que quer dizer a famosa expressão: filosofia é filosofar?

1 Filosofia é filosofar. Cf. HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafisicaOs conceitos fundamentais da metafisicaOs conceitos fundamentais da metafisicaOs conceitos fundamentais da metafisicaOs conceitos fundamentais da metafisica. Mundo-finitude-solidão.Tradução de: Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p.5.

2 Questão vem do verbo latino quaerere (quaero, quaesivi, quaestum ou quaesitum, quaerere) que significa buscar, procurar.

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artigos

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Filosofia é filosofarFilosofia é filosofarFilosofia é filosofarFilosofia é filosofarFilosofia é filosofar

Formalmente a formulação filosofia é filosofar quer dizer: o substantivo filosofiatem como substância ser um verbo. Filosofia não é isso ou aquilo, não é algo ali pré-jacente, dado de antemão, mas uma ação bem “encorpada”, um verbo. Mas não umverbo, uma ação que ocorre, mas sim o ter que ser, o ter que se perfazer. Nesse sentidofilosofia é só em filosofando. Ser filosofia é: ser como em sendo. Filosofia como filosofar

está responsabilizada, é responsável de cabo a rabo, em todas as articulações e fibras de

sua estruturação, no seu método e no seu modo de ser e não ser, na sua gênese, no seu

crescimento e na sua consumação: em, por e para ser (verbo) ela mesma, em sendo. Ser

assim não é sujeito, não é agente, não é um quê, que age, que tem a ação, mas é o

próprio, em sendo, o pura, plena e totalmente inteiriço “verbo”, ser. Em assim sendo, ser

é pura ação, anterior à atividade e passividade, um ato, “em si”, a partir de si, nele

mesmo, de todo e plenamente próprio, ele mesmo, na soltura, na autonomia da auto-

identidade. É, pois, ser ab-soluto. Esse caráter de ser ab-soluta liberdade de si, da pura

ação se diz em latim studium, e em grego scholé3, que se diz em português estudo,

empenho e desempenho, o zelo. Esse caráter típico de ser próprio se chama hermético.

Enquanto propriedade de ser, na ab-solutidade, na ab-soltura da liberdade de autonomia,

absoluto não significa propriamente fixidez da imutabilidade; nem hermético trancamento

e fechamento; mas pelo contrário franca abertura na imensidão, profundidade e

criatividade da jovialidade de ser, no seu perfazer-se, no seu consumar-se per-feito. Em

vez de na sua consumação perfeita podemos também dizer na sua bom-dade.

Quando em português dizemos “bom!” significamos um ente, um em sendo que

está no ponto, ou melhor, no seu ponto. No ponto aqui quer dizer no seu próprio, na sua.

Para indicar esse “na sua”, “no seu próprio” apertamos de leve a ponta, o lóbulo da orelha,

lá onde se é cheio, redondo, pleno, solto, digamos na sua “identidade”, na sua coerência,

na sua auto-adesão. Ser assim solto na coerência, como uma gota de água, redondinha,

tinindo na sua contenção plena é ser no acima insinuado sentido verbal da bom-dade.

Quando a filosofia é filosofar, na sua caracterização de ser ela mesma, de estar na

sua, “em casa”, no tinir da sua coerência, i. é, na sua scholé (leia-se: em casa na escola),

3 Scholé, em latim schola, em português escola significa ócio, repouso, tempo livre, de lazer. Ócio, aqui, porém, nãoquer dizer dolce far niente. Antes indica um modo de ser e de agir, uma modalidade de trabalho todo próprio,caracterizado como labor livre, gratuito, assumido cordialmente por causa dele mesmo, e por isso, isento deremuneração seja ela prêmio ou castigo, por ele ser querido voluntariamente, como realização da vocação de umapessoa. Por isso scholé significava estar livre dos negócios (=ne ou non+otium = negotium = trabalho forçado doescravo ou empregado); atividade da formação de ensino e aprendizagem escolar, conferência, diálogo, conversaçãoerudita e filosófica (Cf. MENGE, Hermann. Langenscheidts Grosswörterbuch GriechschLangenscheidts Grosswörterbuch GriechschLangenscheidts Grosswörterbuch GriechschLangenscheidts Grosswörterbuch GriechschLangenscheidts Grosswörterbuch Griechsch. Teil 1 Griechisch-deutsch.Editora Langenscheidt, Berlim/Munique/Zurique, 1970, p. 670. Essa compreensão do trabalho livre é a mesma dasassim chamadas profissões liberais.

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4 HARADA, Hermógenes. Estudar filosofia?

para quem não consegue “ver” o ser como verbo, mas apenas como “substância”

deslocada no seu sentido do ser para uma coisa-bloqueada como algo, a tênue vibração

do tinir da contenção da bom-dade perfeita, o ponto nevrálgico da plenitude consumada

de ser não é percebida, como também não se percebe a dinâmica da densidade de ser de

uma turbina em plena rotação a não ser como estaticamente parada; e a soltura absoluta

da autonomia da identidade é vista como fechamento, trancamento, como superfície

dura de um espaço ou de uma coisa hermeticamente fechada.

A filosofia enquanto filosofar sofre da ambigüidade da “hermeticidade” acima

mencionada, deslocada da sua dinâmica interna, quando vista de fora. É nesse sentido

que se costuma dizer que a filosofia é hermética. Ou dito de outro modo, numa

constatação banal: Filosofia é dura, difícil de estudar, pois, a partir de fora, não há

nenhuma entrada de acesso.

O hermético da filosofiaO hermético da filosofiaO hermético da filosofiaO hermético da filosofiaO hermético da filosofia

Tentemos verificar esse pretenso fechamento da filosofia para dentro dela mesma,mencionando algumas de suas características, destacadas por Heinrich Rombach, quandoanalisa o modo de ser da filosofia Moderna no seu livro Substanz System, Struktur4.

1. Filosofia como filosofar é autoconstituição. Como tal ela não recebe nenhumacausação, ordenação, nenhum apoio ou subsídio de fora. Enquanto tal nãohá da parte de fora nenhum ponto de referência que nos possibilite ou faciliteentrar nela. Não resta, pois, a não ser entrar em contato direto, corpo a corpocom ela, a partir dela e nela mesma; ou deixar que ela fale, dite a sua lei. Porisso: “ela pode ser definida como o pensar que se coloca a si mesmo sobre simesmo e empreende tomar todas as suas soluções e fundamentações, de simesmo, e todo o empréstimo de outras fontes, sejam elas experiência,autoridade, revelação, é rejeitado; e isto, não porque elas lhe pareçamincredíveis, mas porque elas estão sob as leis de um outro âmbito. Não somenteé rejeitada a condução, mas também todo e qualquer conteúdo de pensamentode fora”. Aqui não se trata de reação de movimento de emancipação contraautoridade, seja ela qual for e donde vier, mas da precisão de uma busca, naqual se procura manter a coerência e limpidez do ser próprio de cada dimensão.

2. Porque a filosofia como filosofar cria o seu médium próprio, vive, se move e énele e a partir dele, não se acha mais na ordenação do mundo que lhe é dado

4 O que segue é resumo e citação da exposição de Rombach das páginas mencionadas abaixo. As citações estão emitálico. Cf. ROMBACH, Heinrich. Substanz, System, StrukturSubstanz, System, StrukturSubstanz, System, StrukturSubstanz, System, StrukturSubstanz, System, Struktur. Die Ontologie des Funktionalismus und der philosophischeHintergrund der modernen Wissenschaft (Substância, sistema, estruturaSubstância, sistema, estruturaSubstância, sistema, estruturaSubstância, sistema, estruturaSubstância, sistema, estrutura. A ontologia do funcionalismo e o fundode trás da ciência moderna) Freiburg/Munique: Verlag Karl Alber, 1965. p.349-354.

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fora da sua autoconstituição. “Assim a filosofia não assume nenhuma posiçãovisível e distinta em referência à sociedade do seu tempo”. Assim, ela nãopossui nenhuma familiaridade e credibilidade simples no meio da sociedade,não lhe é acessível de imediato, não encontra receptividade junto dos seuscontemporâneos. Nesse sentido “ela não mais fala para fora, mas fala aindaapenas para si mesma; ela é coisa de especialista para especialista. Ao filósofonão mais lhe interessa ocupar uma posição educativa no todo do seu mundocircundante, ou demonstrar através da forma de sua existência a forma a maissublime e excelente da existência humana, mas ele se retrai, se torna invisívelpara a sociedade e não possui nenhum característico que tivesse para com opovo a significação e importância de um perfil exemplar do humano numaconfiguração prenhe de significação. Assim, o filósofo parece qualquer um,age como todo mundo, e não faz da sua filosofia um objeto doutrináriotransmissível”. Isto quer dizer: ele não possui nenhuma posição oficial, não éda oficialidade, não é clérigo nem público. O filósofo não é aquele que échamado para uma tarefa humanitária pela vocação, o político, o educador,professor, alguém como teólogo, juiz ou médico. Ele in-porta apenas a simesmo, por e para si, e vive no seu pensamento como o eremita na sua cela.

3. Já que a filosofia como filosofar está de pé somente sobre si mesma, e falasomente por e para si, para as décadas e os séculos futuros ela fica fora dasescolas. “Todos os pensadores decisivos da nova filosofia, Descartes, Hobbes,Arnauld, Pascal, Espinosa, Locke, Leibniz e Hume são mestres não funcionáriose não possuem nenhuma conexão digna de menção com a universidade. Elestrabalham e pensam como pessoas privativas e se relacionam com os colegassomente na forma privativa. A universidade e os estudos gerais permanecem,por longo tempo, intocados por esse pensar”.

4. A filosofia como filosofar não ocupa nem assume um determinado lugardescritível e visível dentro do mundo espiritual. Pois, ela implica, contém em sitodo o mundo do espírito, ou melhor, ele é todo o mundo do espírito. E assim,“ela agora somente pode apelar a isso que surgir nela mesma e é nela pensado.Ela é pensar sem pré-suposição. Ela não pode tomar da outra forma nemaxiomas, nem princípios, nem verdades primeiras, nem os dados, mas devetudo pro-duzir, gerar de si mesma. Agora sim, somente agora, a filosofia setorna ‘fundante’, ‘fundamental’ de modo que ela tem que fundamentar tudoque ela usa como meios do pensar nela mesma”. Desse modo, a filosofia éacossada em direção ao fundo e à fundamentação do fundo, de tal modoque, uma vez a caminho, não lhe resta mais nenhuma outra orientação a nãoser a ausculta e sondagem do abismo insondável e sem fundo da possibilidadede ser. Assim, não se pensa em expandir, estender a extensão do saber, não seestá mais na tarefa do pensar enciclopédico, da vasta erudição, mas toda a

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6 HARADA, Hermógenes. Estudar filosofia?

tarefa consiste em se concentrar na questão do início, do toque de origem eretorno a ela na busca do outro início. “Não mais os summa, não mais umspeculum universale é a tarefa, a missão da filosofia; não o processamento e apropagação do saber ‘substancialista’ sobre mundo e vida podem ser para elatarefa, mas apenas ainda a questão de fundo da sua própria facticidade”. Essaconcentração na questão do início faz surgir diferenciados e variegados estilosnas manifestações literárias na causa da filosofia. Temos assim, por ex., tratados,ensaios, discursos, correspondências, fragmentos, anotações, diários etc., quepor sua vez mais do que estilos, gêneros ou obras literárias, são vestígios dopensar como caminhos, sendas, trilhas que acenam. Não visam, pois, o quantumdo saber, o seu resultado, mas somente se trata do toque do início, do retornoao início de fundamentações.

O como dos diálogos entre filosofias não é mais o de confronto argumentativode pressuposições, usadas na fundamentação das teses principais de cadafilosofia. As pré-suposições são mantidas intactas, intocadas, ou atécompreendidas da melhor maneira possível dentro da lógica do todo dacolocação. No entanto, o todo da colocação de cada filosofia em contactomútuo entre si sofre uma espécie de escavação de sapa, na qual a posição defundo do todo de cada colocação é interrogado no seu ser e este, no sentidodo ser, subsumido operativamente por cada uma dessas filosofias em“confronto”, ao “construir” o conjunto visível exotérico da sua aparição. Aquino “confronto” não estão em jogo posições particulares dentro do todo dacolocação, mas sim o toque inicial da abordagem do todo da colocação.“Confira-se nessa perspectiva a controvérsia, p. ex., de um Locke contraDescartes, então de novo de um Leibniz contra Locke, de um Kant contra Leibnizetc.” Aqui cada oponente se conserva mutuamente protegido nas suasafirmações internas, esotéricas. Mas ao mesmo tempo, cada uma dasabordagens do todo de colocação de cada oponente é colocada em questão,i. é, na busca, como ainda uma posição, portanto, não suficientemente nofundo, onde se possa vislumbrar um abismo sem fundo do pensar de origem.

5. “Na medida em que a filosofia não mais é mantida, determinada e esclarecidaatravés e por meio de um mundo do ser e do sentido do ser extrafilosóficos, eladeve não somente pensar ela mesma, mas também deve determinar todas assuas particularidades e posições fundamentais. Por isso, ela começa cada vezcom uma autocolocação, auto-exame e autoconsideração. Antes de adentraros problemas intrafilosóficos, o pensador deve clarear antes de tudo e como talo seu conceito de filosofia. Cada filosofia tem como seu primeiro e fundamentaltema a possibilidade do próprio filosofar ele mesmo. Com isso, cada uma filosofiase torna aaaaa filosofia. Ela se torna uma nova fundação do filosofar como tal edeve tudo pensar novo de novo no seu reino”. Isso faz com que o pensador

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artigos

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seja considerado como isolado e apenas ligado na referência ao seu próprioespírito. Assim começa cada qual, consigo mesmo. Aqui, cada qual édescobridor do campo o mais próprio da filosofia. Cada pensador secompreende uma nova erupção, uma nova eclosão, uma retomada, como oinício de toda uma época do pensar e não apenas como uma nova tese dentrode uma moldura que permanece igual, do filosofar como tal. “Somente agorao pensar se torna num modo destacado historial. Filosofia se torna epocal. Elase adentra cada vez de tal maneira na História, que com ela (filosofia) inicia umnovo tempo. Cada filosofia se compreende como a incisão epocal entre as erasdo universo temporal”. Assim, a interpretação dos outros filósofos se tornavolta às e retomada das pressuposições como sondagem e ausculta do queelas ocultam da possibilidade de ser. Nenhuma filosofia pode se estabelecer,sem dar ao mesmo tempo a sua própria apresentação e exposição da históriada filosofia. A história da filosofia não é mais apresentação das diferentesopiniões sobre as mesmas perguntas, mas é entendida agora como uma históriada questão do sentido do ser que contém cada vez diferentes possibilidadesfundamentais da compreensão do mundo, homem e Deus, que projeta, nessaspossibilidades, diferentes perguntas e modos de perguntar.

Nessa perspectiva, “não existe uma base comum para discussão direta entre asfilosofias. Com a criação nova do conceito de filosofia surge também cada vezuma nova, própria e i-repetível terminologia do pensar. Essa “terminologia”,quiçá, esclarece esse pensar em si, mas não o deixa mais se referir a outropensar e a teses em outro pensar. Cada filosofia deve ser concebida a partir dasua própria terminologia, e por isso mesmo suas enunciações não podem serditas para fora dela, portanto não mais no sentido usual como “diálogo” entreos filósofos. Os pensadores se isolam na absoluta solidão do seu mundoconceptual cada vez seu. Todas as categorias como essência, substância, ser,verdade, pensar, fundo e fundamento, causa, matéria, forma, assumemdiferentes significações, sim até conteúdos contrários, na medida em que seatêm a diferentes círculos de pensamento”. Diante disso, não se pode maisfalar na filosofia de “Introdução geral da filosofia”, já que cada filosofia por epara si mesma é introdução, o adentrar-se no filosofar.

6. Do que até agora dissemos, a filosofia como filosofar se assenta sobre e em simesma e não é propriamente uma forma específica de espírito como tal. Assim,ela possui uma impostação e implicância toda própria, totalmente irredutívelpara com a sua tarefa. Ela é um modo de pensar que difere totalmente domodo de pensar do usual cotidiano, quer na ciência, quer na vida. Por isso afilosofia é difícil para a gente. Ela se torna assim inacessível e des-natural,artificial para quem se acha fora dela.

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8 HARADA, Hermógenes. Estudar filosofia?

Esse resumo da exposição, muito mais detalhada, das características da filosofiacomo filosofar, feita por Rombach, pode nos induzir a tirarmos conclusões precipitadas.Falemos, pois, brevemente apenas sobre uma dessas conclusões equivocadas que maisocorrem, desviando-nos de um questionamento adequado da questão.

Evitando uma conclusão apressadaEvitando uma conclusão apressadaEvitando uma conclusão apressadaEvitando uma conclusão apressadaEvitando uma conclusão apressada

A acima mencionada conclusão precipitada em questão consiste em tirarmos detudo quanto dissemos até aqui, caracterizando o modo de ser próprio da filosofia comofilosofar, a conclusão de que tal estudar filosofia é um puro fechamento para dentro dosolipsismo subjetivo-existencialista.

Admitindo a possibilidade de tal conclusão, sem entrar no questionamento daspressuposições ali pré-jacentes não analisadas, queremos aqui apenas apontar um itemque poderia insinuar uma conclusão diferente, conclusão que, longe de ser uma solução,é antes uma questão mais exigente.

O termo hermético, como já foi mencionado bem no início, conota fechamento,trancamento completo para dentro de si.

Nos supermercados encontramos e compramos à beça produtos alimentíciosembalados e fechados em sacos de plástico resistente, de cujo interior se retirou de todoo ar, de modo que os alimentos estão totalmente blindados contra o contato com o arexterior. É esse tipo de fechamento que nos vem à mente de imediato, quando ouvimosou lemos a palavra “hermético”. Assim, para nós hoje, o adjetivo “hermético” se referede imediato ao fechamento, é relativo ao fato de se estar trancado por e para dentro. Noentanto, “hermético” contém o nome Hermes, um dos deuses principais e mais influentesda mitologia grega. O que tem deus Hermes a ver com trancamento por e para dentro,com o fechado hermeticamente? Talvez, segundo Aurélio, porque “hermético” significatambém “encimado por um Hermes”. Hermes ou herma é um bloco quadrilátero-quadrangular de pedra, cuja parte de cima é um busto esculpido de Hermes, em que opeito, as costas e os ombros são cortados por planos verticais, formando a parte inferiordo bloco a modo de um pedestal quadrangular; ou é um meio-busto esculpido ou estátuade Hermes aplicada a um plinto. Essa peça quadrilátero quadrangular de pedra, quandoera usada para tampar um espaço aberto, o fechava de tal modo que de fora, ali nadamais entrava. Daí, num sentido figurado, algo cuja compreensão nos é fechada, inacessívelou muito difícil e obscura, é qualificado de hermético.

Mas a referência do “hermético” ao fechamento pode ter uma acepção mais profundado que o simples fato de uma abertura ser fechada com um plinto encimado por um bustode Hermes. É o que se insinua na ligação que a palavra “hermética” tem para com “ciência”oculta de mutação e transmutação das forças elementares das profundezas da matéria, daalquimia. “Hermético” agora se refere diretamente ao deus Hermes, enquanto relacionadocom as forças ocultas das profundezas obscuras da matéria. A referência da palavra“hermético” ao fechamento não poderia vir da sua direta referência ao deus Hermes? Deus

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Hermes, no seu modo de ser, nas suas propriedades, não nos poderia levar a umainterpretação da filosofia como filosofar, e que na exposição acima do item “O herméticoda filosofia” parecia se caracterizar como hermeticamente fechada em, por e para dentrodo solipsismo subjetivo-existencialista?

A filosofia como filosofar está fechada com o deus HermesA filosofia como filosofar está fechada com o deus HermesA filosofia como filosofar está fechada com o deus HermesA filosofia como filosofar está fechada com o deus HermesA filosofia como filosofar está fechada com o deus Hermes

Fechar em português pode significar trancar, cerrar, tapar a abertura etc. Maspode também em tudo isso significar concluir, levar ao cabo, consumar, perfazer. Nessesentido é que dizemos: fechei um negócio, fechei um contrato. E no Brasil a expressãofechar com pode significar estar a favor ou ao lado de; concordar com. Não é assim quena mesma direção vai também a acepção da expressão: estou contigo e não abro?

Fechamento hermético da filosofia como filosofar não poderia significar então que afilosofia esteja declarando a deus Hermes: Estou contigo e não abro? Ou melhor, que afilosofia no seu filosofar não é outra coisa do que ser simplesmente, totalmente inserção no“estar na sua” da divindade de Hermes, no entusiasmo de Hermes? Em que consiste o estar“na sua”, no próprio divino de Hermes, no seu entusiasmo? Hermes é deus, uma divindade.E deus na sua divindade é representação da excelência do ser, concentrada num ente, i. é,em um “em sendo”. Essa concentração na “mitologia” é entendida muitas vezes comopersonificação, subjetivação ou hipostatização, gramaticalmente substantivação do adjetivoou verbo, de tal sorte que o Hermes deus se transforma num sujeito-pessoa, num substantivoque indica um algo substancial, um quê ocorrente em si, que por sua vez possui qualidadesocorrentes e acrescentadas a ele como seus atributos e ações. Se “des-mitologizamos”5 omito dos deuses gregos dessa personificação e os consideramos na dinâmica do seu serpróprio como divindade, como o divino, então “deus” ou “divindade” como excelênciado ser, concentrada num ente, i. é, em um “em sendo”, não deve mais ser entendida comofixação num ponto como centro, mas como onipresença cujo centro está cada vez emtoda parte, sem ocupar lugar, mas cada vez em cada momento de todo o “em sendo”,como plenitude, como alegria, como vitalidade de ser. O quê, aqui qualificado comoconcentração do ser, não é um quê-ponto, um núcleo subjacente a propriedades e atuações,mas vigência qual difusão a modo de claridade ou afinação. A modo de claridade ouafinação é tal que instante, momento, vigência ali é cada vez instante do instante, momentodo momento, vigência da vigência em crescimento e decrescimento da densidade deliberação da auto-identidade de cada “em sendo”. Esse modo de ser da vigência, domomento, do instante “difusão” no crescimento e decrescimento da liberação da auto-identidade é insinuado pelas expressões afins entre si como: o próprio, na sua, cada vez seue expressa a excelência de ser que personificada e qualificada em suas diversificadas apariçõesrecebe o nome de deus, deuses ou o divino.

5 Desmitologizar aqui não significa desmascarar o mito de suas interpretações defasadas e supersticiosas, não objetivasfactuais, mas sim desbloquear o mito de amarras de perspectivas a ele inadequadas, para deixá-lo ser ele mesmo nasua liberdade própria.

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10 HARADA, Hermógenes. Estudar filosofia?

Hermes, diferindo do seu irmão Apolo, que é deus do sol meridiano, deus da luzdo dia, é deus da luz sombreada do lusco-fusco do despertar da manhã; e é deus da luzsombria da noite, das trevas incandescentes. O seu elemento, a sua ambiência familiar, oseu “em casa” é vigência das forças ocultas das profundezas do mistério do ser, doabismo insondável e inesgotável das possibilidades de ser. Ele é assim o mensageiro, oarauto dos enigmas dos deuses, é condutor das almas para dentro do desconhecido,inesperado e inaudito do mistério da origem e do seu toque. O seu reinado começa a sesentir em casa lá onde todas as nossas possibilidades do ser e pensar aparentementeestabelecidas sobre certeza do saber, exatidão do cálculo e controle, sobre firmeza doquerer do poder, colocadas, padronizadas e classificadas, nas suas posições epressuposições afundam nas nuvens do não saber, do não poder, do não ser,impulsionadas na paixão da busca hermética do sentido do ser.

O fechamento hermético! O que, à primeira vista, sob a luz gélida e neutra e aomesmo tempo tórrida e causticante da interpelação produtiva do auto-asseguramento deum cientificismo objetivante exacerbado, aparece como fechamento em, por e para dentrodo solipsismo subjetivo-existencialista da filosofia como filosofar, não seria antes tentaçãoe tentativa de uma boa aventurança, na busca da disposição, da prontidão atenta daespera do inesperado, trabalhada, renovada, buscada tenazmente sempre de novo pelaexistência “acadêmica” que de todo fecha com a paixão de Hermes e não abre?

Mas, e a filosofia institucionalizada no ensino e na aprendizagem escolar, com todasas suas exigências formais e de conteúdo, monitoradas pela sociedade acadêmico-científica?Nelas e através delas, assumir o empenho e desempenho de nos exercitarmos em infindastentativas de resolver os problemas e as dificuldades provenientes de suas determinadasposições e pressuposições; e nessas tentativas aguçar, ampliar, questionar a precisão e acordialidade da busca na mira da única questão do fundo de todas as pressuposições, paradentro do abismo hermético de uma espera, inteiramente nova e jovial, da possibilidadedo ser, isso seja talvez a tarefa hodierna do estudo da filosofia.

ConclusãoConclusãoConclusãoConclusãoConclusão

O estudo? A filosofia? Filosofia é filosofar? O que vale, porém, em tudo isso, énão esquecer o aceno da recordação, a mais necessária dos tempos de urgência:

“Pois odeiaO deus sensatoCrescimento intempestivo”(HÖLDERLIN, Do motivo dos Titãs. IV, 218)6.

6 Cf. HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísicaIntrodução à metafísicaIntrodução à metafísicaIntrodução à metafísicaIntrodução à metafísica. Apresentação e tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1987. p.227.

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ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísicaOs conceitos fundamentais da metafísicaOs conceitos fundamentais da metafísicaOs conceitos fundamentais da metafísicaOs conceitos fundamentais da metafísica: mundo – finitude – solidão.Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísicaIntrodução à metafísicaIntrodução à metafísicaIntrodução à metafísicaIntrodução à metafísica. Apresentação e tradução de: EmmanuelCarneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987.

MENGE, Hermann. Langenscheidts grosswörterbuch griechischLangenscheidts grosswörterbuch griechischLangenscheidts grosswörterbuch griechischLangenscheidts grosswörterbuch griechischLangenscheidts grosswörterbuch griechisch: griechisch-deustsch.Berlin: Langenscheidt, 1970. v.1.

ROMBACK, Heinrich. Substanz, system, strukturSubstanz, system, strukturSubstanz, system, strukturSubstanz, system, strukturSubstanz, system, struktur: die ontology des Funkionalismus und derphilosophische Hintergrund der modern Wissenschaft. Freiburg: K. Albert, 1965.

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Filosofia e PFilosofia e PFilosofia e PFilosofia e PFilosofia e Pensamentoensamentoensamentoensamentoensamento

Philosophy and ThoughtPhilosophy and ThoughtPhilosophy and ThoughtPhilosophy and ThoughtPhilosophy and Thought

Vagner Sassi*

ResumoResumoResumoResumoResumo

Partindo do desafio lançado pelos membros da Escola de Kyoto,a saber, estabelecer as condições de possibilidade de um diálogoentre o pensamento tradicional japonês e a filosofia ocidental, opresente artigo, atento às considerações de Martin Heideggeracerca da diferença entre filosofia e pensamento, aponta para anecessidade de se ultrapassar a abordagem metafísico-categorialda linguagem em favor de um falar originário e de uma escutanão-objetivante.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: fenomenologia; superação da metafísica;linguagem; pensamento originário.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

Starting from the challenge issued by the Kyoto School, whichwas, to establish the conditions to allow a dialog between Japanesetraditional thinking and western philosophy, this article, takinginto account the considerations of Martin Heidegger about thedifferences between philosophy and thought, points to thenecessity to go beyond the metaphysical-categorical language infavor of a language originating from a non-objective listening.

KKKKKey Wey Wey Wey Wey Wordsordsordsordsords: phenomenology; overcoming metaphysics;language; original thinking.

* Mestre e doutor em filosofia pelaPUC-RS e licenciado em pedagogiapela PUC-PR, é professor na FAE -Centro Universitário Franciscano,lecionando as disciplinas dehistória da filosofia antiga, ética eética e responsabilidade social.

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14SASSI, Vagner. Filosofia e pensamento

O presente texto procura desenvolver algumas observações acerca da distinçãoentre filosofia e pensamento a partir de um diálogo entre Ocidente e Oriente. Sem qualquerpretensão sistemática, ele segue a modo dos treinos que perfazem uma arte marcialjaponesa e igualmente descarta qualquer pretensão propriamente erudita. Em sualimitação, pouco ou nada sabe, de modo que não tem muito a acrescentar.

Isso porque o que move o presente texto é mais a jovialidade da experiência doque a vontade de saber. Se ele afirma algo de algo, o faz atento a uma antiga palavra deque “pouco saber, mas muita jovialidade é dada a mortais” (HÖLDERLIN). De fato, acuriosidade de explicações jamais conduz a uma questão de pensamento. Cumpre,portanto, permanecer na questão e assim abrir-se à possibilidade de um diálogo.

Sabe-se que a Escola de Kyoto, fundada por Kitaro Nishida (1879-1945) em finsdo século XIX, marca o começo da “filosofia japonesa”, compreendida como diálogoentre o pensamento tradicional japonês e a filosofia ocidental. Cumpre aqui, porém, darum passo atrás no sentido de questionar a possibilidade tanto de uma filosofia japonesacomo de uma relação entre filosofia e pensamento.

Tal passo é importante, uma vez que tanto no senso comum como em meios ditoscientíficos vai-se muito depressa ao se falar de uma “filosofia japonesa”, expressão essaque dá muito que pensar. A bem da verdade, o próprio conceito do que seja propriamentefilosofia se presta hoje a não pouca discussão.

Nos meios acadêmicos, a filosofia é geralmente tida como um valor, a saber, umamanifestação do espírito e um produto cultural. Com isso se quer dizer que ela já está aícomo algo, do qual alguém pode se servir, se apropriar e, quiçá, aprender e ensinar.Nesse sentido não há problema algum em se falar de uma “filosofia japonesa”, nem deuma culinária, literatura ou arquitetura japonesas.

Contudo, uma tal abordagem da filosofia enquanto produto à disposição em ummercado cultural de consumo desvirtua a questão pelo que seja a filosofia, uma vez que,ainda que útil, nada tem de filosófica. Seu único interesse é o da aquisição, controle emanipulação, em razão do que ela objetifica e instrumentaliza. Em outras palavras, jánão se move no âmbito próprio da filosofia, mas sempre fora e em torno dela.

Como, então, é possível entrar na própria filosofia a fim de compreendê-la a partirdela mesma?

Ao discorrer sobre Que é isto – a filosofia?, Martin Heidegger toma disto que setem imediatamente diante de si quando se pronuncia a própria palavra filosofia.

Se escutarmos a palavra filosofia em sua origem, então ela soa philosophía. Apalavra filosofia fala agora através do grego. A palavra grega é, enquanto palavragrega, um caminho. A palavra grega philosophía é um caminho sobre o qualnós estamos a caminho (HEIDEGGER, 1979b, p.14).

A própria filosofia carrega consigo os ocidentais que a partir dela falam, a saber,a existência grega enquanto ocidental-européia. Por essa razão,

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a frase: a filosofia é grega em sua essência, não diz outra coisa que: o Ocidente ea Europa, e somente eles, são, na marcha mais íntima de sua história,originariamente filosóficos. E isso é atestado pelo surto e domínio das ciências(HEIDEGGER, 1979b, p.15).

Isto pressuposto, levanta-se uma primeira questão: se a filosofia, como a própriapalavra grega o diz, determina a linha-mestra da história ocidental-européia, a saber, deuma determinada experiência do mundo e do ser, e se o Japão como tal surgiu de umadeterminada experiência de pensamento radicalmente distinta da ocidental-européia, épossível se falar propriamente de uma “filosofia japonesa”?

Mantendo essa questão, cumpre, todavia, levantar uma outra, que decorre dessaprimeira, sem, contudo, ser menos pertinente à presente investigação.

Isso porque “não apenas aquilo que está em questão, a filosofia, é grego em suaorigem, mas também a maneira como perguntamos, e mesmo a nossa maneira atual dequestionar, ainda é grega” (HEIDEGGER, 1979b, p.16). Esse modo de questionar e depensar que foi desenvolvido por Sócrates, Platão e Aristóteles pergunta pelo que algo é,como a questão da essência, a saber, uma pergunta metafísica.

De fato, a metafísica como experiência do pensamento que deve, para investigaro ser, ir além do ente, aponta para o traço característico da filosofia desde os gregos atéa modernidade. Entre seus aspectos constitutivos destacam-se dois, a saber, a apreensãoconceitual (lógica, racional) do Ser e a cisão do real em mundo sensível e supra-sensível.Só que a metafísica não é a única experiência do pensamento e, quiçá, nem a originária.

Cumpre reconhecer que, radicalmente diferentes da experiência metafísica, existemoutras experiências do pensamento. Nelas, a unidade é tomada como totalidade, impossívelde ser representada e, por conseguinte, apreendida pelos conceitos e categorias dametafísica. Tais são, por exemplo, o mito, a mística, a poesia, a arte e o próprio pensamento.

Nisso, levanta-se uma segunda questão, a saber, se a filosofia é essencialmentemetafísica e se a aparelhagem (instrumentos, linguagem etc.) da metafísica se mostra incapazde apreender outras experiências do pensamento na sua diferença, isto é, sem reduzi-las auma mera referência de si própria, é possível falar propriamente de uma relação entre filosofiae as demais experiências do pensamento não-metafísicas?

Essas duas questões devem acompanhar a presente investigação. Elas estão nofundamento do que chamamos Escola de Kyoto, a saber, a primeira escola de filosofiaconstituída no Japão, porque no início de um diálogo que se procurou estabelecer entreOriente (pensamento tradicional japonês) e Ocidente (filosofia).

O fio condutor que aqui se apresenta é a recepção do pensamento de MartinHeidegger pelos membros da Escola de Kyoto. É importante atentar aqui para o sentidodessa recepção, que não se compreende como síntese, isto é, como um movimentouniformizador destinado a diminuir, e quiçá eliminar as diferenças, mas sim como encontroque possibilita um diálogo.

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No início do século XX, vários professores da Universidade de Kyoto freqüentaramas preleções de Heidegger, dentre os quais podemos destacar Kuki Shuzo (1888-1941) eHajime Tanabe (1885-1962). Esse diálogo foi mantido também posteriormente emencontros com Keiji Nishitani (1900-1990), que ouviu preleções sobre Nietzsche, TezukaTomio (1903-1983), professor de literatura alemã em Tókio, e Kôichi Tsujimura.

Desde as apostilas do curso Expressão e manifestação, ministrado em 1920, todosos textos foram levados para a Universidade de Kyoto e amplamente discutidos. Assim ofoi com a conferência O que é Metafísica?, ministrada em 1929 e traduzida para ojaponês já no ano seguinte. Enquanto esta foi prontamente compreendida no Japão, jána Europa ela prestou-se a grandes equívocos de interpretação niilista.

Contudo, esse interesse dos professores japoneses encontrou tambémreciprocidade. Por sua vez, Heidegger era leitor de Lao-Tsé e dos trabalhos de DaisetzTeitaro Suzuki sobre o zen-budismo. Nos anos de 1945-46, ele tentou traduzir partes deTao Te King e na sua conferência A essência da linguagem, pronunciada em 1957, fazdiversas referências ao pensamento japonês. Escreve Heidegger:

A palavra-guia do pensamento poético de Lao-Tsé é tao e significa propriamentecaminho. Porque se costuma representar sem dificuldade o caminho, atribuindo-lhe o sentido exterior de trecho de ligação entre dois lugares, muitos consideramnossa palavra caminho inadequada para nomear o que diz tao. Prefere-se traduzirtao por razão, espírito, raison, sentido, logos (HEIDEGGER, 2003, p.155).

E continua:

O tao poderia ser, no entanto, o caminho que tudo en-caminha, aquele caminhosomente a partir do qual se pode pensar o que essência, razão, espírito, sentido,logos dizem propriamente, ou seja, a partir do seu vigor próprio. Talvez na palavracaminho, tao, se resguarde o mistério de todos os mistérios da saga pensante dodizer, ao menos quando deixamos esses nomes retornarem para o que neles semantém impronunciado (HEIDEGGER, 2003, p.156).

Assim, o pensamento japonês aparece afinado com a busca zur Sache selbst dafenomenologia. Essa afinação está na origem da recíproca recepção que aparece nodiálogo entre Ocidente e Oriente empreendido pela fenomenologia no Ocidente e pelaEscola de Kyoto no Oriente. Origem que contém em si um caminho de encontro,semelhante ao que se esboça na seguinte narrativa zen-budista.

Pintada pela primeira vez na China por um aluno do mestre Lin-chi (em japonês:Rinzai, morto em 866) no tempo de Sung, a narrativa diz do caminho percorrido por umpraticante do zen que procura e encontra, para então viver de acordo com sua verdadeiranatureza. Esse itinerário aparece na estória de um vaqueiro que sai a procura de umtouro que se perdeu (e do qual se perdeu) e o encontra.

Embora existam diversas versões, juntamente com respectivas interpretações ecomentários, podemos, resumidamente, identificar os seguintes passos: procurando otouro, encontrando as pegadas, primeiro vislumbre do touro, agarrando o touro,

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domando o touro, indo para casa montado no touro, esquecendo o touro, esquecendoa si mesmo, retornando à fonte, entrando no mercado para ajudar os outros.

Em vista da presente investigação, cumpre abordar brevemente aqui apenas algunsdesses passos. Para tanto, recorre-se à versão do mestre zen chinês K‘uo-an Chihyuan,que teve seus versos traduzidos por D. T. Suzuki (In: SCOTT, 2000, p.153ss).

Sozinho na imensidão, perdido na selva, o rapaz está buscando, buscando!As águas transbordantes, as montanhas longínquas e o caminho sem fim;Exausto e em desespero, ele não sabe para onde ir,Ele só escuta as cigarras vespertinas cantando nas árvores.

De modo análogo, todos já fizemos a experiência de sair à procura de algo quejulgamos haver perdido. Tal perda, contudo, não significa propriamente privação. Seestivéssemos completamente alienados, não teríamos sequer por que (motivos) nem poronde (vestígios) começar a procurar. Isso porque a possibilidade da busca está justamenteem que de antemão já se deu um encontro, e este perdura como possibilidade.

O caminho sempre já nos é dado. Isso, contudo, não nos isenta de ter que percorrê-lo. O caminho se faz ao caminhar. Ainda que o touro nunca se separe do vaqueiro, issonão impede que este se separe daquele e, nesse extravio, o coloque como objeto de suabusca. Um objeto atrás do qual ele deve sair à procura como a um perdido e o encontrarcomo um achado. Um objeto que precisa ser conquistado.

Com a energia deste ser total, o rapaz, finalmente, segurou o touro;Porém, tanto sua vontade é selvagem quanto ingovernável é o seu poder!Às vezes, anda empertigado num platô. Que vemos?Perde-se novamente na bruma impenetrável do desfiladeiro da montanha.

Dá-se um longo percurso onde, depois de seguidas as pegadas, o vaqueiro agarrae domina o touro, a saber, o objeto de sua busca. Toda conquista requer força e energiahaja vista que ambos, touro e vaqueiro, precisam ser domados. É difícil manter o tourosob controle quando este sente saudades do campo selvagem. Ao vaqueiro, é difícilmanter-se sob controle, quando desejos e dúvidas o dividem.

Por isso a necessidade da ciência e do exercício, bem como do empenho e dadisciplina que perduram até o momento em que o objeto da busca é conquistado, asaber, dominado e controlado. Após travar dura luta, o vaqueiro vence e, de posse dotouro, volta para casa. Ele colhe, por assim dizer, o resultado de um aprendizado. Saberé poder! Agora sim o vaqueiro sabe!

Montado no animal, ele finalmente está de volta para casa.Onde o touro não está mais; o homem está sentado sozinho, serenamente.Apesar do sol vermelho alto no céu, ele ainda está calmo, sonhando,Sob um telhado coberto de palha repousam, imóveis, o chicote e a corda.

Uma vez em casa, não há mais o que procurar. Assim, o touro desaparece enquantoobjeto de uma busca, e o vaqueiro se vê sozinho. Tal solidão, contudo, não significa

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propriamente ausência. O touro está presente, bem como o chicote e a corda. Essapresença, contudo, dá-se não mais a modo de objetificação. O próprio vaqueiro nãomais se vê como sujeito-agente de uma busca, uma entidade separada e existente em si.

Tudo está vazio – o chicote, a corda, o homem e o touro:Quem poderá pesquisar a vastidão do universo?Sobre a fornalha ardendo em chamas, nem um floco de neve pode cair:Quando este estado de coisas é obtido, manifesto é o espírito do antigo mestre.

Onde toda distinção é posta de lado e vige a serenidade (Gelassenheit), aí tudo é.Enquanto transformamos tudo e a nós mesmos em objetos de busca, amor, crença ouuso, nunca vemos a nós mesmos e às coisas, mas tão-somente representações para nós.Com ciência e filosofia não há bois, nem homens, nem coisa alguma. Por isso o conviteda fenomenologia de Heidegger de retorno zur Sache selbst.

Retornar às coisas elas mesmas e deixá-las ser é o modo de quem está em casa.Quando o vaqueiro está em casa, o boi não está mais. Ele próprio não está mais. “Tudoestá vazio – o chicote, a corda, o homem e o touro”. E nesse vazio é que eles aparecemcomo são, é que eles se mostram a si mesmos de imediato e não mais mediatizados poralgo que não eles, isto é, representados.

Com o peito nu e os pés descalços, chega ao mercado;Todo sujo de lama e cinza, com que alegria sorri!Não precisa dos poderes milagrosos dos deuses,Tudo em que ele toca... Vejam! As árvores mortas estão florindo.

O vaqueiro está em toda parte em casa. Uno com todas as coisas, sereno eimpassível, ele nada sabe e nada pode. O peito nu e os pés descalços dizem do vazioperfeito. E nós, filhos da ciência e da filosofia, que tanto sabemos e podemos, quandoestamos em casa? Onde ao homem moderno é dado, hoje, morar? Escreve Heidegger:

Ao perguntarmos pela morada do homem moderno em nossa época,perguntamos: Há ainda um brilhar da natureza? Há ainda um aparecer? O brilharda natureza está obstruído e o seu aparecer lhe é vedado – enquanto vivemosnuma época em que o que é presente só é presente na forma do que amaquinação humana produz e encomenda. O homem de hoje pensa que se faza si mesmo e às coisas à sua volta (HEIDEGGER, 2000, p.716).

E continua:

É assim que acontece: o homem moderno não pode ver e muito menos perguntaronde mora; se lhe retrai aquilo a que está exposto; mais ainda: nem lhe é possívelfazer a experiência desse retraimento. Ele não pode pensar nem perguntar setalvez esse retraimento da paragem da sua morada não efetua algo em que aele, ao ser humano, algo superior está retido – essa retenção não sendo umnada vazio, mas a única realidade de todo fazer e empreender pretensamenterealista (HEIDEGGER, 2000, p.717).

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De fato, todo agir e não agir na modernidade ocidental-européia é caracterizadopor uma relação fundamentalmente metafísico-objetivante do homem consigo mesmoe com o todo do mundo. Essa determinada experiência do mundo e do ser, que seestende desde os gregos (filosofia) até a modernidade (ciência e técnica) vige, hoje, portoda parte, atingindo não somente a Europa e os Estados Unidos, mas também a Chinae o Japão.

Mas, uma vez afirmado que o Japão como tal surgiu de uma determinadaexperiência do pensamento radicalmente distinta da ocidental-européia, não se incorreagora numa contradição? Necessariamente não, porque nada impede que, não obstantesua origem, o mundo japonês tenha sido aprisionado pela objetividade metafísica e suasuperfície ter se tornado igualmente européia e americana.

Junta-se a isso a impressão, não isenta de um certo espanto, de que, nos dias dehoje, a maquinação humana mediante o desenvolvimento científico e tecnológico tenhaatingido seu ápice com maior rapidez justamente no Japão moderno. E que o auge daspossibilidades do Ocidente se dê propriamente em terras orientais, isso não deixa de seralgo paradoxal.

Com o intuito de apreender o caráter paradoxal dessa imagem, a saber, de umJapão moderno à imagem e semelhança da Europa, e deixar aparecer o contraste destecom uma abordagem livre da objetividade metafísica, cumpre prestar ouvidos a umtexto publicado por Fernando Pessoa em 1914, na revista O Raio, e que traz como títuloCrônica Decorativa (PESSOA, 1986, vol. II. Prosa).

Antes de se abordar propriamente o texto, cumpre atentar para o modo comonós próprios nos colocamos ao fazê-lo. Nesse sentido, se partimos da consideração deque Fernando Pessoa é poeta, isso implica que somente quando lido poeticamente é queseu pensamento se torna acessível. Porque singular, a existência poética é radicalmentediversa da existência científica ou filosófica.

Não basta abrir a janelaPara ver os campos e o rio.Não é bastante não ser cegoPara ver as árvores e as flores.É preciso também não ter filosofia nenhuma.Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.Há só cada um de nós, como uma cave.Há só uma janela fechada, e todo mundo lá fora;E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,Que nunca é o que se vê quando se abre a janela (PESSOA, 1978, p.169).

O que significa propriamente esse ver, para o qual não basta não ser cego? O quevemos nós que não sejam objetos ou idéias? Nem filósofo nem cientista, quem é, então,o poeta? Nem objeto de pesquisa nem produto abstrato, o que é, então, a poesia?Como havemos nós de penetrar, pois, no espaço que é o próprio da poesia e da arte?

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Mas só tal como o próprio poeta se torna senhor e servo da poesia, a saber, poruma luta, é que ganhamos, para além do poema existente, o espaço da poesia.A luta pela poesia no poema é a luta contra nós próprios, na medida em que, natrivialidade quotidiana do ser-aí, estamos expulsos da poesia, estamos sentadosna praia cegos, coxos e surdos e não vemos nem ouvimos nem sentimos aondulação do mar (HEIDEGGER, 1979a, p.30).

A experiência de ver, ouvir e sentir a ondulação do mar só nos é dada quando nosdecidimos a sair da praia, deixar de ficar somente à margem, e entrar no mar. De modoanálogo, o texto do poeta Fernando Pessoa só pode ser apreendido se o lemos a partirda disposição que lhe é própria, a saber, o seu humor. Ele não é um tratado filosóficomas, antes, um simples poema. Ouçamos, pois, o texto.

A circunstância humana de eu ter amigos fez com que me acontecesse vir aconhecer o Dr. Boro, professor da Universidade de Tóquio. Surpreendeu-me arealidade quase evidente da sua presença. Nunca supus que um professor daUniversidade de Tóquio fosse uma criatura, ou sequer cousa, real.

E continua:

O Dr. Boro – sinto que me custa doutorá-lo – pareceu-me escandalosamentehumano e parecido com gente. Trajava à européia e, como qualquer mero professorexistente da Universidade de Lisboa, tinha o casaco por escovar. Ainda assim, pordelicadeza, dei-me por ciente, durante duas horas, da sua presença próxima.

Ao receber a visita de um professor japonês, o poeta se surpreende. Mas quesurpresa pode haver num evento tão corriqueiro como a visita de um professor? Suasurpresa tem origem no estranhamento quando da constatação da realidade quaseevidente da presença do japonês. Que um japonês seja algo, uma coisa, gente, é motivode estranhamento para o poeta.

Isso não porque japoneses não tenham existência, mas porque a exposiçãoexacerbada da realidade, a saber, o privilégio de seu aparecimento enquanto presençacoisal, física e real, é uma modalidade da existência típica do Ocidente, nunca do Oriente.A existência japonesa privilegia a exposição velada e o retraimento, o que é atestadotanto nas artes como nos costumes orientais.

Mas o professor Boro é sólido, tem sombra – várias vezes fiz com que o meuolhar o verificasse – e além de falar e falar inglês, coloca idéias e noçõescompreensíveis dentro das suas palavras. A circunstância de que as suas idéiasnão comportam nem novidade nem relevo apenas o aproxima dos professoreseuropeus, pavorosamente europeus, que conheço.

E continua:

Além disso, o professor Boro tem movimento, desloca-se, não sei como, de umlado para o outro, o que, feito perante quem sempre teve o Japão por umanação de quadro, parada e apenas real sobre transparência de louça, érequintadamente ordinário e desiludidor.

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Fica patente a decepção de Fernando Pessoa com o alto grau de europeização doProf. Boro e com “a construção de um Japão à imagem e semelhança da Europa, destatriste Europa tão excessivamente real”. Mas, não seriam essa decepção e estranhamentofrutos de um preconceito por parte do poeta? Não estaria ele preso a uma idéia pordemais romântica do espírito japonês e, a partir da mesma, julgando?

É possível que não. Pois, se atentarmos, como exposto anteriormente, que a falado poeta é poética, isto é, diferente de uma fala judicativa e crítica, o texto de FernandoPessoa não faz julgamento algum. Antes ele fala de uma admiração e de uma surpresa!Suas considerações são artísticas, não antropológicas ou sociológicas. O texto refere-seà existência mesma e não a uma avaliação sobre ela.

Com seu olhar de artista, o poeta admira no Dr. Boro como a não-existência própriado pensamento e da existência japonesa sucumbe perante a existência evidente emetafísica-objetificante do Ocidente. Globalizado, todo o mundo é então uniformizadoe padronizado. Elimina-se, assim, qualquer possibilidade de se estabelecer diferenças oumesmo distâncias.

O resto da minha vida, doravante, será escrupulosamente dedicado a esquecer oProf. Boro e que ele – impronunciável absurdo! – se sentou na cadeira que estáagora, na realidade de madeira defronte de mim. Um japonês verdadeiro aqui, afalar comigo, a dizer-me cousas que nem mesmo eram falsas ou contraditórias:não! Ele chama-se José e é de Lisboa. Falo simbolicamente, é claro. Porque elepode chamar-se Macwhisky e ser de Inverness. O que ele não era decerto erajaponês, real, e possível visitante de Lisboa. Isso nunca.

Se não no Dr. Boro, que solapa a diferença, onde podemos encontrar o próprio daexistência japonesa? O que, para nós ocidentais, há de real no Japão? Escreve o poeta:

A primeira cousa real que há no Japão é o facto de ele estar sempre longe denós, estejamos nós onde estivermos. Não se pode lá ir, nem eles podem vir aténós. Concedo, se me forçarem a isso, que existam um Tóquio e um Iokoama.Mas isso não é no Japão, é apenas no Extremo Oriente.

O acesso ao Japão e o pensamento japonês implica, pois, na guarda da distânciae da diferença, na consideração do Japão como de algo que está sempre longe de nós.Mas essa distância, bem como essa diferença, não se refere aqui a conceitos espaço-temporais. Não se trata de geografia ou de história.

O acesso ao lugar e o modo de ser propriamente japonês nunca se dá a modometafísico, a saber, em termos de ciência e de filosofia. Mas, então, como havemos defazer se desde o seu início nos compreendemos como filosofia e ciência? E se é assim,“que não se pode lá ir, nem eles podem vir até nós”, é possível falar propriamente de umencontro entre Ocidente e Oriente?

Tal questão diz justamente da aporia em que reside o “como” de todo encontroradical, isto é, que desce às raízes das próprias possibilidades de pensar um encontro doOcidente com o pensamento japonês, o que é justamente a temática e o interesse dapresente investigação.

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Que havemos, pois, de fazer? Antes ainda: há o que se fazer? Não seria maissensato, então, ao invés de nos precipitarmos em logo fazer algo atropelando-nos a nósmesmos, nos dispormos a nada fazer? Mas há de se compreender esse “nada” de modoa não cairmos nem num niilismo absurdo nem numa passividade estéril, ambos ressentidose incapazes de qualquer criatividade?

Em outras palavras: em que consiste a virtude do nada fazer? Não consiste elajustamente na capacidade de simplesmente esperar? Mas esperar o quê, se nada se sabe?Esperar o inesperado! Porque assim diz, ainda na aurora do Ocidente, o pensador Heráclitode Éfeso: “Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontronem vias de acesso” (OS PENSADORES ORIGINÁRIOS, 1991, Fragmento 18, p.63).

Talvez a meditação deste fragmento de Heráclito nos possa orientar. Isso porqueele fala de uma espera paciente, quase que diríamos: oriental. Uma espera que, já deinício, logra nossa ânsia ocidental de avanço apressado e controle, de progresso edesenvolvimento. Uma espera que nada faz porque nada sabe de antemão, mas tão-somente concentra-se em escutar, ponderar, retornar zur Sache selbst!

Essa atitude de esperar o inesperado é a marca característica do pensamento deMartin Heidegger, haja visto que ele se interessou pelo Japão sem nunca perder a idéiada distância do Japão. Assim, é nítida a evidência de que “o Japão está sempre longe denós, estejamos nós onde estivermos” e por isso mesmo “sem caminho de encontro nemvias de acesso”. Essa distância originária, contudo, permanece velada ao Ocidentedeterminado pela ciência e pela técnica.

Todo distanciamento no tempo e todo afastamento no espaço estão encolhendo.O homem está superando as longitudes mais afastadas no menos espaço detempo. E, no entanto, a supressão apressada de todo distanciamento não lhetraz proximidade. O que acontece quando, na supressão dos grandesdistanciamentos, tudo se torna igualmente próximo igualmente distante? O queé esta igualdade em que tudo não fica nem distante nem próximo, como sefosse sem distância? (HEIDEGGER, 2001, p.143)

Essa constatação de que tudo está recolhido à monotonia e uniformidade do quenão tem distância, Fernando Pessoa já a havia percebido quando na visita do Prof. Boro.

Quando tudo se dispõe em intervalos calculados e justamente em virtude dacalculação ilimitada de tudo, a falta de distância se espraia e isso sob a forma deuma recusa da proximidade de uma vizinhança dos campos do mundo. Na faltade distância, tudo se torna in-diferente em conseqüência da vontade deasseguramento e apoderamento uniforme e calculador da totalidade da terra.Todas as referências entre todas as coisas se convertem na ausência calculável dedistância. Isso constitui a desertificação do en-contro face a face dos quatrocampos de mundo, a recusa da proximidade (HEIDEGGER, 2003, p.168).

Nos dias de hoje, a falta de distância se espraia e faz com que não só o Prof. Boro,mas todo o Japão se torne por demais próximo. Não se guardando a diferença, reina a

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indiferença que aniquila qualquer possibilidade de diálogo e que desertifica qualquerpossibilidade de um encontro face a face. Nesse sentido, Heidegger é o pensador ocidentalque toma a sério a advertência de Nietzsche no fim da metafísica: “O deserto cresce. Masai daquele que semeia desertos”.

A filosofia começou na Grécia e, embora não tenha começado como metafísica,se configurou como metafísica, esquecida de sua origem. Assim, a luz que luziu naorigem é ocultada no esquecimento do Ser. Esquecida da sua origem, a filosofia caminhapara seu fim enquanto metafísica na teoria nietzscheana da vontade de poder: o domínioda técnica mediante a objetivação científica do mundo.

Técnica é vontade de asseguramento e apoderamento uniforme e calculador datotalidade da terra que tudo objetiva. Assim,

para nossos hábitos representacionais, circunstanciados em toda parte pelo cálculotécnico-científico, o objeto do conhecimento pertence ao método. O métodocientífico segue a degradação e aberração mais extrema do que seja um caminho(HEIDEGGER, 2003, p.154).

Nesse contexto, como, então, há ainda de se falar propriamente em caminho?Dando um passo atrás, zur Sache selbst! É aí que se apresenta a possibilidade de umpensamento que não é mais metafísico, mas sim um pensar e falar não objetivante.Escreve Heidegger:

Enquanto co-respondência, o pensamento do ser é uma causa muito errante eassim muito indigente. O pensamento talvez seja um caminho inevitável, quenão pretende elevar-se a uma via de salvação nem trazer uma nova sabedoria. Ocaminho é, quanto muito, um caminho pelo campo, que não apenas fala derenúncia mas que já renunciou à pretensão de uma doutrina autorizada ou deuma produção cultural válida ou ainda à pretensão de um grande feito do espírito(HEIDEGGER, 2001, p.162).

E continua:

Tudo repousa no passo atrás (Schritt zurück), ele mesmo muito errante, em direçãoao pensamento, que cuida da virada do esquecimento do ser, a qual se prenunciano destino do ser. O passo atrás, que se dá a partir do pensamento representadorda metafísica, não rejeita esse pensamento, mas entreabre a distância, que dálugar ao apelo da verdade do ser, na qual se coloca e acontece o co-responder(HEIDEGGER, 2001, p.163).

Pensamento, caminho e caminho do pensamento se mostram necessariamenteapenas num falar não objetivante. Nisso a importância de se colocar a questão pelalinguagem. O que significa propriamente falar?

Segundo a tradição ocidental, a determinação da essência do homem diz que ohomem é aquele vivente que tem a fala (zoon logon echon), expressão gregaposteriormente traduzida por animal rationale. Logo, na questão da linguagem decide-se, por assim dizer, a questão pela existência do homem e sua determinação. O queacontece quando, na definição ocidental do homem, se traduz o lógos grego por ratio,razão (lógica)?

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Já mencionamos anteriormente que a palavra-guia do Oriente, segundo Lao-Tsé,é tao (em japonês: do), que significa propriamente caminho. Mas o Ocidente insiste emtraduzir tao por razão, assim como insiste em traduzir lógos também por razão. Coloca-se, pois, a questão: qual o sentido e o alcance dessa insistência? Ela corresponde àessência do que se nomeia propriamente por linguagem?

Em 1959, Heidegger publicou A caminho da linguagem. Esta obra traz um textonomeado De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um perguntador,onde se investiga a possibilidade de se fazer uma experiência pensante com a linguagem,bem como de um diálogo com o Oriente. O diálogo foi escrito por ocasião de uma visitado Prof. Tezuka Tomio. Diz Heidegger:

Não vejo se o que eu tento pensar como essência da linguagem satisfaz tambéma essência da linguagem oriental. Igualmente ainda não vejo se o que na verdadeseria o começo pode chegar a uma experiência pensante de um vigor delinguagem capaz de garantir, tanto ao dizer ocidental-europeu quanto ao dizerasiático-oriental, a possibilidade de uma conversa, que pudesse jorrar de umaúnica fonte (HEIDEGGER, 2003, p.77).

Ao que completa o Prof. Tezuka: “Mas que se mantivesse oculta a ambos osmundos”.

Esse começo a que se refere diz da proveniência que é sempre por-vir. Proveniênciae por-vir se evocam mutuamente: tal o modo originário do caminho do pensamento.Pois, “no pensamento, o que permanece é o caminho. E os caminhos do pensamentoguardam consigo o mistério de podermos caminhá-los para frente e para trás, trazematé o mistério de o caminho para trás nos levar para frente” (HEIDEGGER, 2003, p.81).

Não é difícil perceber que tais considerações soam incompreensíveis, e atéirracionais, a ouvidos lógico-técnico-científicos. Mas esse modo que deixa indeterminadojustamente aquilo a que se visa, e até mesmo o deixa recolhido no indeterminável, é oque justamente possibilita o êxito de toda conversa entre pensadores. Ele evoca a esperado inesperado que se mostra não no fim, mas tão-somente ao longo da caminhada.

Nesse sentido, certa ocasião, escreveu um mestre zen:

A montanha azul é o pai da nuvem branca. A nuvem branca é o filho da montanhaazul. O dia todo eles dependem um do outro, sem que um seja dependente dooutro. A nuvem branca é sempre a nuvem branca. A montanha azul é sempre amontanha azul (SUZUKI, 1994, p.29).

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PPPPPascal: Apolascal: Apolascal: Apolascal: Apolascal: Apologia em Fogia em Fogia em Fogia em Fogia em Fragmentosragmentosragmentosragmentosragmentos

PPPPPascal: Apolascal: Apolascal: Apolascal: Apolascal: Apology In Fogy In Fogy In Fogy In Fogy In Fragmentsragmentsragmentsragmentsragments

Jaime Spengler*

ResumoResumoResumoResumoResumo

Pascal é autor que encanta e desafia. Encanta pela beleza de algunsde seus textos; as Provinciais, por exemplo, são marcadas pelobelo estilo e pela ironia; alguns de seus Pensamentos sãoconhecidos e citados a memória. Desafia, pois, a forma escolhidapara expressar muitas de suas intuições, a forma do fragmento.Além do mais, esses fragmentos foram forjados em vista de umprojeto maior: uma apologia do cristianismo. Nosso objetivo aquié realizar uma apresentação da pessoa de Blaise Pascal; buscarcompreender o que seja a apologia; lançar algumas indicaçõespara uma possível inauguração de leitura dos Pensamentos.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: apologia; fragmento; pensamento; Pascal.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

Pascal is an author that dazzles and challenges. Dazzles for thebeauty of some of his texts; the Provincials, for example, arenoticeable for its beautiful style and irony; some of his Penséesare known and cited by memory. The challenge comes from theway chosen to express many of his intuitions that of fragments.Besides that, these fragments were forged seeking a greaterproject: an Apology to Christianity. Our objective here is to presentBlaise Pascal; seek to comprehend what is the apology; to offerindications for a possible inauguration for the reading of Thoughts.

KKKKKey Wey Wey Wey Wey Wordsordsordsordsords: apology; fragments; thought; Pascal.

* Professor do curso de Filosofia da FAE

- Centro Universitário [email protected].

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28 SPENGLER, Jaime. Pascal: apologia em fragmentos

Pascal (1623-1662), pensador francês, se tornou célebre especialmente por suaobra intitulada “Pensamentos”, publicada depois de sua morte. Desde sua publicação,essa obra gozou de grande prestígio. Ela é fruto de um projeto maior, ou seja, apresentaruma “apologia do cristianismo”. O que temos hoje sob o titulo de “Pensamentos” é, naverdade, uma coleção de fragmentos elaborados e conservados pelo próprio Pascal, eque seriam usados na construção dessa projetada obra maior, jamais levada a termo.

Inaugurar uma leitura dessa obra nem sempre é tarefa fácil. O desafio nasce dascaracterísticas da obra, e daquele preconceito difuso de que Pascal seria um escritor religiosoe não propriamente filósofo. Por isso, nosso objetivo aqui é antes de tudo propor algumas– poucas – indicações para quem se dispõe a penetrar na obra pascaliana. Pretendemos,antes de tudo, oferecer algumas indicações sobre a gênese da obra “Pensamentos”; emseguida procuraremos buscar uma compreensão em torno do que seja uma apologia, e nonosso caso apologia do cristianismo; por fim propomos algumas considerações em tornodas características daquele gênero literário denominado “fragmento”.

Sabemos que Pascal se dedicou por longo tempo à construção de uma apologia docristianismo; por quanto tempo exatamente, é impossível determinar. Sabe-se também quemuitos dos fragmentos foram escritos pelo próprio Pascal; outros foram por ele ditados.

Quando morreu, Pascal deixou a apologia no estado de um conjunto de fragmentosrecolhidos, em parte, em maços. A primeira coisa que se fez então, segundo EtiennePèrier, foi copiá-los como estavam.

Em 1670 surgiu a primeira edição dos Pensamentos, denominada até hoje como“Edição de Port-Royal”, seguindo as propostas de um grupo de pessoas designadas paratal fim. Para este grupo de estudiosos, era necessário evitar o reacender das disputasteológicas a que a paz da Igreja pusera fim em 1668. Por isso, a obra não podia apresentaracenos de jansenismo que pudessem ser relacionados aos contatos de Pascal com Port-Royal. Esse grupo não hesitou em suprimir um ou outro fragmento, ou trecho defragmento, do manuscrito e modificar outros de forma a dar ao texto maior formalidadee não deixando suspeitas de heterodoxia.

Em 1776, Condorcet publicou uma nova edição dos Pensamentos, pondo em relevoos argumentos da impotência da razão, da incerteza necessária da religião, das dificuldadesdas profecias e milagres. Surgiu assim um Pascal cético que se impôs por aproximadamentecem anos à imaginação dos românticos e do racionalismo de cunho positivista.

Em 1842 Victor Cousin se ocupou da necessidade de reler os manuscritos dosPensamentos que jaziam na Biblioteca Real de Paris. Nasceu assim a edição de ProsperFaugère (1844). A partir de então foram introduzidas melhorias ao texto das novas edições,fruto de estudos críticos e filológicos realizados sobre os manuscritos.

Em 1897 surgiu a clássica edição de L. Brunschvicg dos “Pensamentos eOpúsculos”1, seguida da publicação dos Pensamentos em três volumes com amplas notas

1 PASCAL, B. PPPPPensées et opusculesensées et opusculesensées et opusculesensées et opusculesensées et opuscules (Paris, 1897; última edição, Paris, 1976).

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e comentários críticos, oferecendo assim ao público a possibilidade de ler “todo o Pascale somente Pascal”. Esta edição foi seguida por outras também importantes tais comoChevalier2 (Paris, 1925, 1936, 1949), Stewart (Londres, 1950), Guersant (Paris, 1954),Mesnard (Paris, 1964).

Ao longo destes dois últimos séculos, esta obra de Pascal continuou a suscitarinteresse, admiração, respeito; e isto com uma perseverança que nada desanima a decifraro sentido dessa obra; de fato, de uma parte têm-se os conceitos filosóficos e teológicos, daoutra, a forma estilística e figurativa permeada de um profundo sentimento religioso, quefazem da mesma uma obra-prima da literatura francesa e por que não dizer ocidental?!

Encontra-se nesta obra uma feliz harmonia entre conteúdo e forma do pensamento.O conteúdo agarrou o autor de tal modo que a forma dada torna-se a única possível paradescrever a verdade3. A força de expressão e a profundidade intelectual acompanhadas deum desejo de perfeição concedem a esta obra um tom de genialidade; ela reflete ummundo repleto de vigor e de profundidade extraordinária, demonstrando que a qualidadede uma obra não se deixa medir tanto pelo desenvolvimento ordenado de sua temática,quanto pela profundidade e força intuitiva que revela4.

IIIIIIIIII

Quando ouvimos falar de “apologia do cristianismo”, quase que instintivamentenos vem à mente a representação de uma defesa apaixonada ou de uma justificativa docristianismo. Tal representação tem sua razão de ser e sua verdade. Certamente o momentohistórico vivido pelo próprio Pascal se prestava a esse tipo de empenho.

Entretanto, é possível entrever na expressão “apologia” uma latência toda própria,e que, talvez, escape ao nosso modo, às vezes, apressado de avaliar um autor ou umadeterminada obra. Até porque, não raramente, os dados da historiografia e mesmo doacademicismo acabam por rotular ou classificar a partir de considerações apressadas aprodução filosófica. Não é nossa intenção entrar aqui nessa polêmica. Interessa-nos,sim, oferecer alguns elementos – poucos –, para uma leitura, talvez mais vigorosa dosPensamentos de Pascal.

O termo “apologia” é encontrado já na grecidade antiga. O lexema “apolog-” indicauma relação com o dizer, com a palavra, com a razão. A palavra grega que subjaz a esselexema é “lógos”; “lógos” é um substantivo relacionado ao verbo “legein”, que significa“palavra”, “discurso”, “linguagem”, “razão”; o verbo significa “ler”, “dizer”, “anunciar”,

2 PASCAL, B. Oeuvres complétesOeuvres complétesOeuvres complétesOeuvres complétesOeuvres complétes (Paris, 1925; última edição, Paris, 1954). Quanto a questão da tradução para oportuguês, seguimos a tradução de Sérgio Milliet: PASCAL, B. Pensamentos. São Paulo, 1973.

3 ROMBACH, H. Substanz, System, StrukturSubstanz, System, StrukturSubstanz, System, StrukturSubstanz, System, StrukturSubstanz, System, Struktur II. Freiburg/München, 1966. p.197.

4 RUIZ, F. ‘Reflexiones en torno a Pascal’. Augustinus 27-28 (1962). p.416.

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30 SPENGLER, Jaime. Pascal: apologia em fragmentos

“declarar”, como também “juntar”, “ajuntar”, “colher”, “escolher”. Já o prefixo “apo” é naverdade uma preposição, cujo significado é “de”, “vindo de”, “a partir de”, “a causa de”.Usualmente se interpreta a expressão “apologia” como defesa, elogio, justificação,enaltecimento. O termo indicaria uma relação fundamental com o dizer e com a causa emrazão da qual a palavra é proferida5. A partir dessa ilustração do termo, podemos compreendero empreendimento de Pascal, isto é, uma apologia do Cristianismo, como esforço enormepara defender o cristianismo ou justificar o cristianismo diante de “ameaças” exteriores, quena aurora da modernidade estariam começando a se tornar mais intensas. Assim, Pascal teriadecidido empenhar toda a sua genialidade na construção de uma obra que pudesse dealgum modo servir de defesa ao cristianismo.

Certamente tal compreensão da apologia não está errada; ela certamente tem suavalência. No entanto, seria conveniente buscar sondar uma possibilidade mais ampla decompreender não só o que justificaria uma obra apologética – como pode ser visto oempreendimento de Pascal –, mas também sondar a compreensão, talvez, aí latente dopróprio Cristianismo.

Pascal foi homem de uma experiência fundamental capaz de fazer saltar todos ossistemas. Essa experiência, ele a viveu na aurora da modernidade, a partir da qual o serhumano passa a ser visto e compreendido como estando situado diante do infinitamentegrande, sem ponto de referência algum. Ao mesmo tempo, esse mesmo ser humano,começa a perceber a possibilidade de construir um saber a partir de si mesmo, apoiadona força da razão calculadora e sobre a base do experimento. Pascal se deixa conduzirpelas interrogações desse novo horizonte, pelas exigências dessa nova época, assume osdesafios que as “razões sólidas” (fr. 259) do existir humano impõem àqueles que são“homens do futuro”6. Pascal empreendeu um caminho por meio do qual estavaconvencido ser possível à modernidade ver as infinitas possibilidades que se lhe estavamsendo abertas, e ao mesmo tempo, revelar ao sujeito pensante sua identidade profunda.Em seu caminho não procurou certezas baratas. Como homem de ciência que era, estavafascinado pelas inúmeras possibilidades que essa ofereciam. Ao mesmo tempo, porém,foi capaz de perceber a impotência da razão científica diante da necessidade de superara compreensão vigente das contradições presentes no ser humano.

Certamente, o olhar humano tem um alcance relativo. De fato, “quantos astros aslunetas nos descobriram, que não existiam para os filósofos de outrora” (fr. 266). Assim, oque o ser humano pode perceber desse “mundo visível é apenas um traço perceptível naamplidão da natureza, que nem sequer nos é dado conhecer mesmo de um modo vago.[...] Esta é uma esfera infinita, cujo centro se encontra em toda parte e cuja circunferêncianão se acha em nenhuma” (fr. 72). Por isso, o ser humano de todos os tempos é convidadoa “considerar o que é, diante do que existe; [...] que, da pequena cela onde se acha preso,

5 BOSETTI, E. Apologia. In. Dicionário de teologia fundamentalDicionário de teologia fundamentalDicionário de teologia fundamentalDicionário de teologia fundamentalDicionário de teologia fundamental. Petrópolis: Vozes – Aparecida: Santuário, 1994. p.84.

6 Cf. LECCLERC, E. PPPPPascalascalascalascalascal. Immensitá e finitudine dell´uomo. Milão: S. Paolo, 1996. p.10.

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isto é, do universo, aprenda a avaliar em seu valor exato a terra, os reinos, as cidades e elepróprio” (fr. 72). Também o tempo convida o ser humano a considerar sua condição:“Quando penso na pequena duração da minha vida, absorvida na eternidade anterior e naeternidade posterior, no pequeno espaço que ocupo, e mesmo que vejo, fundido naimensidade dos espaços que ignoro e que me ignoram, aterro-me e assombro-me...” (fr.205). Tanto o infinitamente grande, quanto o infinitamente pequeno representam, segundoPascal, um convite para o ser humano refletir sobre sua condição. Tanto um aspecto,quanto outro do universo apontam para o fato de que este se situa muito além de suacapacidade intelectiva. Daí a necessidade de um horizonte característico a partir do qual oser humano possa realizar uma experiência originária do conhecer. A esse horizonte Pascaldenomina coração, o qual possui uma gama de significações, que vibra em diversasdimensões da existência humana; o próprio termo coração possui uma caracterizaçãooriginária em aberta polêmica diante do mero racionalismo filosófico. O coração é, segundoa perspectiva pascaliana, fonte real de conhecimento. A idéia essencial que a temática docoração inspira é aquela de um referencial a partir do qual os diversos aspectos que tocamo espaço de decisões estão unidos. O coração indica uma dimensão da vida, onde nadapermanece verdadeiramente oculto, mas também não cai sob o domínio público.

As razões do coração e o coração da razão, como empenho demonstrativo daspossibilidades últimas da razão, representam o impulso do sentido, método e objetivoda “apologia do cristianismo”. Poder-se-ia, portanto, afirmar que o projeto da “apologia”adquire vitalidade a partir de um estudo detalhado do coração humano, comopossibilidade de abertura a uma compreensão autêntica e vigorosa do ser homem, dasua dignidade e possibilidades, pois é o coração que possibilita ao ser humano perscrutarsua origem (cf. fr. 278).

Assim sendo, o projeto da “apologia” não seria aquele de construir uma defesaapaixonada do cristianismo compreendido como sistema de dogmas, crenças e ritos,mas esforço por trazer à fala a condição do ser humano diante dos “espaços infinitos”,e por mostrar “quanta aparência há de que existe outra coisa além do que vejo” [vemos](cf. fr. 693). O cristianismo que Pascal pretende apresentar nada tem a ver com omovimento histórico, com implicações políticas, sociais e culturais; trata-se, sim, daapresentação de uma existência na fé, referida a Cristo e compreendida a partir dapossibilidade de participação naquilo que ele tem de mais característico, capaz de orientaro ser humano de todos os tempos na tarefa de assumir as próprias contradições. E acaracterística do cristianismo se expressa no mistério da cruz e do Crucificado (cf. fr.826). Nesta perspectiva, o projeto da apologia ganha novo vigor. Esse projeto consistiriaem buscar uma fenda, uma brecha por onde possa, talvez, ser aberta – e mostrada –uma dimensão que desperte o ser humano para o frescor de uma visão originária dotodo. A cruz e o Crucificado seriam essa brecha, essa fenda a partir donde é possívelforjar um novo modo de existir para quem se “percebe limitado em tudo... incapaz desaber com segurança e de ignorar totalmente” (cf. fr. 72), mas destinado a construir a simesmo como sujeito.

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32 SPENGLER, Jaime. Pascal: apologia em fragmentos

Pascal cultivou um relacionamento todo próprio com essa realidade denominadafé cristã, cristianismo, pois, segundo ele, por meio de Jesus Cristo é possível conhecernão só o mistério de Deus, mas também aquele do ser humano (cf. fr. 548). Esterelacionamento não foi certamente fruto de uma decisão da própria subjetividade, masexpressão de algo que o tocou, que o tomou por inteiro, e ao qual ele somente poderiacorresponder. A isto denominamos “experiência”, isto é, um modo característico de oser humano existir enquanto humano. Nisto consiste a história desse homem, o horizonte,a dimensão a partir do qual tudo adquire sentido próprio; esse horizonte determina seurelacionamento com toda a realidade existente.

IIIIIIIIIIIIIII

Pascal nos legou alguns fragmentos que seriam usados na obra a ser levada a termo,denominada “apologia”. Estes fragmentos passaram por várias tentativas de ordenamento7;cada uma delas orientada por uma perspectiva pré-definida. No entanto, ao que tudoindica, nenhuma dessas edições conseguiu encontrar um fio condutor que satisfizesseplenamente os estudiosos de Pascal.

A característica dessa obra, expressa como fragmentos, apresenta não poucasdificuldades e, portanto, desafios para quem se decide a pensar o pensamento de Pascal. Opróprio termo “fragmento” já traz em si um problema, remetendo para algo de fragmentário,quebrado, fraturado. Com isso pode-se facilmente pensar que, por não possuirmos o tododa obra, mas somente fragmentos, se tornaria impossível realizar um estudo sério,aprofundado, amplo da obra pascaliana. Possuímos fragmentos, mas não conhecemos suaunidade. Diante desse fato, somos tentados a pensar que se possuíssemos a obra denominada“apologia” na sua integralidade e unidade, seriam mais fáceis e claras, a leitura, reflexão epossível interpretação da obra; poderíamos com maior facilidade e tranqüilidade seguir opensamento do pensador Pascal. Será que essa impressão é verdadeira? Será mesmo que, sepossuíssemos a obra na sua unidade e integralidade, tal trabalho seria realmente facilitado?Será que tal impressão não traz em seu bojo um equivoco? Se assim o for, então precisamostrazer à fala a característica dessa obra e ao mesmo tempo o equívoco latente na impressãoacima expressa.

Antes de tudo, precisamos compreender a característica desse “gênero literário”fragmento. O fragmento pode ser visto como uma proposição incisiva, simples oucomposta, podendo também ser em si uma composição breve e conclusa. Este gêneroliterário, e também filosófico, se contrapõe à construção demonstrativa, caracterizada

7 As mais conhecidas são: a Edição de Port-Royal (1670), Condorcet (1776), Prosper Faugère (1844), Brunschvicg(1897), Chevalier (1925, 1936, 1949), Stewart (1950), Guersant (1954), Mesnard (1964).

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pelos princípios da continuidade e sistematização8. O fragmento, como também oaforismo, apresenta de forma concisa o resultado de observações e reflexões pessoais;carrega em si uma grande potência de expressão, exprimindo um pensamento rico econciso. A concisão e riqueza são, geralmente, as razões principais da dificuldade deleitura desse gênero.

Os Pensamentos de Pascal foram concebidos dentro de um horizonte maior.Verdade é que o que chegou até nós permaneceu na forma de fragmentos devido aoslimites impostos pela vida mesma de Pascal. Isto não representa um acaso, pois doençae morte são parte integrantes do de-correr da vida mesma. Os fragmentos, portanto,representam um caminho; é possível colher a sua intensidade filosófica e vital, lançando-se na sua reflexão e seguindo a não simples dinâmica da origem dos mesmos9, comofruto de um intenso itinerário existencial. À base dos fragmentos está “uma pintura dohomem como ele é; eles não são fragmentos desligados, mas formam um conjuntounitário e orgânico em torno ao tema do indivíduo e de Deus”10. Dilthey descreve muitobem o significado deste gênero literário e filosófico:

“Nas obras dos poetas, nas reflexões sobre a vida expostas por grandes pensadorescomo Sêneca, Marco Aurélio, Agostinho, Maquiavel, Montaigne ou Pascal estácontida uma compreensão do homem, da sua inteira efetualidade, umacompreensão no tocante à qual qualquer psicologia explicativa não consegueaproximar-se. Mas em toda esta literatura de reflexões que quereria recolher aplena efetualidade do homem, se nota até agora, ao lado da superioridade deconteúdo, a incapacidade de exposição sistemática. Sentimo-nos impressionadospelas singulares reflexões até o mais íntimo do coração! Parece abrir-se nessas, aprofundidade da vida mesma!11“

Pascal conduz sua reflexão de forma crítica. De um lado, apresenta, de formacontundente, os aspectos “negativos” da condição existencial do homem. Do outro, osaspectos positivos ou a sua dignidade. Nessa dinâmica reflexiva, mesmo a aparentedesorganização dos Pensées – obra pensada em voz alta, mas que não chegou a alcançara sistematização almejada12 – oferece a possibilidade de, por meio de diferentes conexões,encontrar, implícita ou explicitamente, um sentido indicado. A obra Fragmentos adquire,

8 É interessante notar o que Pascal afirma no fragmento 71/373 a respeito da sistematização ou ordem para tentariluminar a difícil questão da ordem dos fragmentos: “Escreverei aqui meus pensamentos sem ordem, não talvez emuma confusão sem objetivo: esta é a verdadeira ordem, que marcará sempre meu fim pela própria desordem. Dariaexcessiva importância a meu assunto se o tratasse com ordem, porquanto quero mostrar que é incapaz de ordem”.E continua Pascal no fragmento 70/61: “De bom grado teria seguido esse discurso de ordem da seguinte maneira:para mostrar a vaidade de todo gênero de condições, mostrar a das vidas comuns e depois a das vidas filosóficaspirrônicas, estóicas; mas não conservaria a ordem. Sei um pouco de que se trata e quão pouca gente a entende...”

9 ROMBACH, H. Substanz, System, StrukturSubstanz, System, StrukturSubstanz, System, StrukturSubstanz, System, StrukturSubstanz, System, Struktur, id. p.197.

10SCIACCA, M. P P P P Pascalascalascalascalascal. Milão: Marzorati Editore, 1962. p.118.

11DILTHEY, W. PPPPPer la fondazione delle scienze dello Spiritoer la fondazione delle scienze dello Spiritoer la fondazione delle scienze dello Spiritoer la fondazione delle scienze dello Spiritoer la fondazione delle scienze dello Spirito. Milão: Franco Angeli, 1985. p.363-364.

12ALONSO A. M., ‘El estilo de Pascal’. AugustinusAugustinusAugustinusAugustinusAugustinus 27-28 (1962), p.376.

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então, um vigor único, difícil, talvez, de ser alcançado num primeiro contato13. Daí, anecessidade de um manuseio intenso e constante da obra, em vista de uma frutuosaleitura. Tal exigência contradiz, talvez, um modo difuso de pensar a obra chamada“Pensamentos”. E porque não possuímos a obra sistematicamente organizada, o autor é,talvez, visto como alguém obscuro. Mas será que esta característica de obscuridade nãoseria antes um rótulo imposto pela “publicidade”, e que impede perceber o que é claro?

Mas com o que foi dito até aqui, ainda não esclarecemos o que seja a característicado fragmento. Em abordando essa marca dos escritos de Pascal, talvez fosse interessanterecordar o fato de ele ter passado por uma “noite de fogo”14. O que foi essa experiência?Certamente não foi algo de pouca valia. Trata-se, sim, de algo que o traspassou, que omarcou decidida e profundamente; marcou-o com e como fogo. E isso Pascal guardou

13Esta dificuldade de leitura que caracteriza uma obra como os PPPPPenséesenséesenséesenséesensées de Pascal é característica de obras que possuemo estilo de fragmentos ou aforismos. O fragmento (pensamento) ou o aforismo apresenta de forma concisa o resultadode observações e reflexões pessoais; carrega em si uma grande potência de expressão, exprimindo um pensamentorico e conciso. A concisão e riqueza são, geralmente, as razões principais da dificuldade de uma obra composta deaforismos ou fragmentos. Poderíamos ainda caracterizar o aforismo como sendo mais completo que um fragmento,embora a delimitação entre um e outro represente uma tarefa de difícil realização.

14Trata-se de uma experiência vivida por Pascal na noite de 23 de novembro de 1654. A síntese desse fato, Pascalcarregou por escrito consigo, costurada no interior de seu casaco, e que só veio a público depois de sua morte. Asíntese escrita desse fato recebeu o título de memorial; diz o texto:

FEU.«DIEU d’Abraham, DIEU d’Isaac, DIEU de Jacob»non des philosophes et des savants.Certitude. Certitude. Sentiment. Joie. Paix.DIEU de Jésus-Christ.Deum meum et Deum vestrum.«Ton DIEU sera mon Dieu.»Oubli du monde et de tout, hormis DIEU.Il ne se trouve que par les voies enseignées dans l’Évangile.Grandeur de l’âme humaine.«Père juste, le monde ne t’a point connu, mais je t’ai connu.»Joie, joie, joie, pleurs de joie.Je m’en suis séparé:Dereliquerunt me fontem aquae vivae.«Mon Dieu, me quitterez-vous?»Que je n’en sois pas séparé éternellement.«Cette est la vie éternelle, qu’ils te connaissent seul vrai Dieu, et celui que tu as envoyé, Jésus-Christ.»Jésus-Christ.Jésus-Christ.Je m’en suis séparé; je l’ai fui, renoncé, crucifié.Que je n’en sois jamais séparé.Il ne se conserve que par les voies enseignées dans l’Évangile:Renonciation totale et douce.Soumission totale à Jésus-Christ et à mon directeur.Éternellement en joie pour un jour d’exercice sur la terre.Non obliviscar sermones tuos. Amen.

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para si, distante de olhares indiscretos. Porque dessa atitude? Não sabemos! No entanto,podemos supor que ele quisesse, assim agindo, resguardar a própria experiência doolhar curioso. Tal experiência indicaria que o olhar público não se inclina, e nem mesmoestá interessado na possibilidade de perceber o que se mostra num olhar para além; talpossibilidade significaria reconhecer o valor da «fantasia» e da invenção. Além disso, oolhar público não está preparado para a possibilidade de manifestação do discreto, domodesto, do simples, do pouco evidente. E o pouco evidente ao olhar público, só podeser dito fragmentariamente; ou ainda, por ser a experiência da noite de fogo algo quetocou Blaise no seu âmago, tornou-se isso para ele algo de essencial; e o essencial excluiou releva o que permanece no nível do entendimento comum. Por isso, os fragmentosdeixados por Pascal não são algo sem sentido, vago ou obscuro; são, antes, expressão dealgo que ultrapassa o plano do entendimento comum; que está para além do que já ésempre «longe demais» para o «homem racional»15.

Qualquer esforço para tentar ler essa obra de Pascal há de levar em consideraçãoessa característica. O que Pascal nos legou são muito mais que “simples” fragmentos semuma aparente unidade. Trata-se, na verdade, sim de fragmentos; mas de fragmentos escritospor alguém marcado pelo fogo – e, portanto, são palavras de fogo; são palavras de alguémque se via diante de uma “Presença” viva e abrazadora, na presença de uma “Pessoa”16.Por isso, a reflexão em torno dos mesmos é algo de desafiador, senão perigoso, pois umpasso em falso e tudo pode se tornar sem sentido. É, talvez, a partir dessa característica daobra, que se mantém aquela tendência a considerar Pascal mais como um pensador religiosodo que propriamente como filósofo. Por outro lado, poder-se-ia também dizer que somenteo trabalho dedicado do pensamento por sondar a experiência do essencial, subsumidopelas palavras que compõem os fragmentos, será capaz de trazer à fala o que o autor dosmesmos nos legou. Assim sendo, a busca de uma possível ordem dos fragmentos e queocupou críticos ao longo de muitos anos, se mostra uma obra que, certamente, pode serrelegada a um segundo plano – senão desnecessária, supérflua.

Assim, essa obra de Pascal, na sua característica, estaria apontando para algomuito simples. Cada fragmento é expressão do todo em vista do qual a obra foi concebida.O fato de não possuirmos muitos elementos a respeito da pretendida estrutura da obraprojetada, o contexto a partir do qual cada fragmento foi forjado, a intenção do autorno momento em que ia pondo um e outro fragmento no papel, a possível ordem dosfragmentos não são determinantes para a compreensão dos mesmos. Fundamental nesseempreendimento é, no esforço por ler esses fragmentos, auscultar o sentido do todopelo qual cada um foi concebido, foi pensado. Assim, cada fragmento, longo ou curto,bem articulado ou não gramaticalmente, passível de ser aproximado de outro ou não,torna-se possibilidade à disposição do leitor de todos os tempos, para buscar, sondar acompreensão daquilo que estava orientando Pascal na constituição daquilo quedenominou “apologia do cristianismo”.

15HEIDEGGER, M. HeráclitoHeráclitoHeráclitoHeráclitoHeráclito. Rio do Janeiro: Relume Dumará, 2000. p.46.

16LECLERC, E. PPPPPascalascalascalascalascal: immensità e finitudine dell’uomo. Milano: S. Paolo, 1996. p.81-82.

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artigos

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Uma Reflexão AntropológicaUma Reflexão AntropológicaUma Reflexão AntropológicaUma Reflexão AntropológicaUma Reflexão Antropológicada Violência a Pda Violência a Pda Violência a Pda Violência a Pda Violência a Partir dasartir dasartir dasartir dasartir dasAtividades Liberativas daAtividades Liberativas daAtividades Liberativas daAtividades Liberativas daAtividades Liberativas daFilosofia de SchopenhauerFilosofia de SchopenhauerFilosofia de SchopenhauerFilosofia de SchopenhauerFilosofia de Schopenhauer

An Anthopological ReflectionAn Anthopological ReflectionAn Anthopological ReflectionAn Anthopological ReflectionAn Anthopological Reflectionabout Violence Stemming fromabout Violence Stemming fromabout Violence Stemming fromabout Violence Stemming fromabout Violence Stemming fromthe Liberative Activities ofthe Liberative Activities ofthe Liberative Activities ofthe Liberative Activities ofthe Liberative Activities ofSchopenhauer’s PhilosophySchopenhauer’s PhilosophySchopenhauer’s PhilosophySchopenhauer’s PhilosophySchopenhauer’s Philosophy

Osmar Ponchirolli*

ResumoResumoResumoResumoResumo

O objetivo deste artigo é verificar a importância da concepção filosóficade Schopenhauer como fundamento antropológico do fenômeno daviolência. O método que caracteriza esta pesquisa é a revisão bibliográfica,com utilização de fontes múltiplas de evidências. Os dados foram obtidosmediante uma profunda investigação bibliográfica. A análise dos dadosfoi efetuada de forma descritivo-interpretativa. Utilizaram-se a análise deconteúdo e a análise documental. A violência vem ocupando um grandeespaço na literatura nos últimos anos. Como resposta ao fenômeno daviolência, surgem no cenário político propostas que privilegiam oendurecimento das políticas de combate à criminalidade, reformas nosistema penitenciário e reestruturação policial, com o objetivo de controlare reduzir a violência. Tem-se a necessidade de buscar o fundamento daviolência com base na filosofia. Neste sentido, procura-se analisar aviolência a partir da contribuição da antropologia filosófica deSchopenhauer, do mundo como vontade e representação.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: violência; o mundo como vontade e representação;arte; compaixão; justiça.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

The main objective of this article is to verify the importance of thephilosophical conception of Schopenhauer as a anthropological basis ofthe phenomenon of violence. The method used in this research was thereview of bibliography, utilizing multiple sources of evidence. The data wasextracted after extensive bibliographical review. Data analysis was undertakenin a descriptive-interpretative manner. Content analyzes and analyzes ofdocuments were employed. Violence has occupied a large chunk of theliterature recently. As a response to the phenomenon of violence, it hasemerged in the political arena proposals to harden the policies to fightcrime, reforms in the jail system, and restructuring of the police, all seekingto control and reduce violence. There is the need to seek the fundamentalsof violence stemming from philosophy. In this manner, we seek to analyzeviolence starting from the contribution of Schopenhauer’s philosophicalanthropology of the world as will and representation.

KKKKKey Wey Wey Wey Wey Wordsordsordsordsords: violence; the world as will and representation; art;compassion; justice.

* Filósofo, teólogo, especialista emdidática do ensino superior,licenciatura plena em história,psicologia, sociologia, mestre edoutor pela UFSC. Professor adjuntodo curso de filosofia da FAE - CentroUniversitário Franciscano eprofessor pesquisador do programade mestrado em organizações edesenvolvimento da FAE.

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IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

O presente artigo tem como base a obra principal do filósofo Arthur Schopenhauer,O mundo como vontade e representação, que contém a síntese de todo o seu pensamento,e dele tenta-se destacar os elementos antropológicos com o intuito de elucidar acompreensão filosófica da violência. Os diversos tipos de violência intrigam a sociedadee têm despertado na comunidade em geral, especialmente acadêmica, a procura porexplicações para a violência de uma maneira geral, na tentativa de instrumentalizareducadores, familiares e demais agentes na sua interpretação e prevenção. Os índices deatos infracionais apresentam um crescente alarmante e uma mudança de paradigma nomodus operandi das infrações; outrora se registravam atos contra o patrimônio, hoje seregistram atos contra a vida. A filosofia de Schopenhauer servirá de base teórica parailuminar esta reflexão sobre a violência.

O ponto de partida da filosofia de Schopenhauer é a distinção kantiana entrefenômeno e noumeno, mas ele descreve esta distinção em sentido diverso dogenuinamente kantiano. Para Kant, o fenômeno é a realidade, a única possível para oconhecimento humano, e o noumeno o limite intrínseco deste conhecimento. ParaSchopenhauer, o fenômeno é aparência, ilusão, sonho, e o noumeno é a realidade quese oculta atrás do sonho e da ilusão.

Kant considerava inacessível o noumeno, e Schopenhauer (1974, p.213) descobreesta via de acesso:

[...] não saímos do conhecimento objetivo da representação, nem podemos passardo fenômeno, nos encontramos reduzidos ao aspecto exterior das coisas, sempoder penetrá-las para ver o que são em si mesmas. Até aqui, de acordo comKant, porém a partir deste ponto coloco como contrapeso esta outra verdade:que não somos unicamente sujeitos do conhecer, senão também objetos, coisasem si, e que, em conseqüência, para penetrar na essência própria e imanentedas coisas, nas quais são podemos chegar desde fora, se abre uma via que partedo interior [...].

Com Kant, Schopenhauer afirma que a intuição nos proporciona um conhecimentodos fenômenos, mas vai mais além, dizendo que isto se aplica a todos os conhecimentos,menos ao do nosso próprio querer, que não é intuitivo nem vazio, mas é mais real doque qualquer outro. Na realidade, o nosso querer é o único dado que não se dá narepresentação e é também a única forma de compreender a interioridade de qualqueroutro fato.

Partindo de fora, não se pode chegar à interioridade, à essência das coisas. Dequalquer maneira que nos atenhamos a elas, obteremos apenas imagens e nomes. Sópartindo daquilo que conhecemos imediatamente, ou seja, de nós mesmos, podemosconhecer as outras coisas. Seria impossível encontrar a significação do mundo que énossa representação do sujeito cognocente em qualquer outra coisa, se o homem fossepuro sujeito do conhecimento. Ele, porém, também tem suas raízes neste mundo, aí se

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encontra como indivíduo, e seu conhecimento, condição e apoio do mundo comorepresentação, tem o seu corpo como condição de sua intuição do mundo. ParaSchopenhauer (1974, p.214), é o nosso querer o único “Datum” de validade que podeesclarecer todas as coisas e nos conduzir à verdade.

Nem mesmo este conhecimento interior de nossa própria vontade nos permite oconhecimento propriamente dito da coisa em si, porque ele não é imediato. A vontadenecessita, para suas relações com o mundo exterior, do corpo e com ele a inteligênciaque a vontade cria. Por meio dela, se reconhece como tal vontade em sua consciênciaíntima. Mesmo neste conhecimento interior, a coisa em si, ainda que despojada emparte de seus véus, não se apresenta totalmente nua.

O artigo estrutura-se em quatro itens. Uma introdução, onde se justifica a temáticadeste artigo. O segundo item está relacionado ao conceito de vontade, onde se buscacompreender a violência a partir da concepção de vontade de Schopenhauer. No terceirobusca-se uma colocação antropológica, e por último as considerações finais.

O item a seguir abordará a concepção de vontade a partir do pensamento deSchopenhauer. A violência apresenta-se como impulso cego e irresistível que se objetivano fenômeno.

1 A vontade1 A vontade1 A vontade1 A vontade1 A vontade

Sempre que um ato voluntário sai das profundezas obscuras de nosso interior,penetrando na consciência do sujeito que conhece, o que surge é a coisa em si, que nãoestá submetida ao tempo. O ato voluntário nada mais é que a manifestação mais imediatae visível da coisa em si. Daí se deduz que, se todos os demais fenômenos pudessem serconhecidos tão intimamente como o nosso ato voluntário, os reconheceríamos comoidênticos àquilo que em nós é a vontade. Schopenhauer (1974, p.215) afirma que “esteé o sentido de minha doutrina, quando digo que a essência de todas as coisas é avontade e a chamo de coisa em si”.

Para Mira y Lopes (1972), não é somente nos fenômenos semelhantes em tudoaos do próprio homem que se encontra esta mesma vontade como essência íntima. Umareflexão mais demorada levará a reconhecer que a universalidade dos fenômenos, apesardas variadas representações, tem uma só essência, a mesma que só o homem conheceintimamente, imediatamente e melhor do que qualquer outra coisa. Aquela que, enfim,em sua mais aparente manifestação traz o nome de vontade.

Esta vontade está presente na força que faz medrar a planta, cristalizar o minerale que dirige a agulha imantada para o norte. Encontrar-se-á também nas afinidadeseletivas dos corpos e até na gravidade que age. A própria explicação fisiológica do ciclovital do ser em toda a sua extensão, por mais completa que seja dada, não poderá abalareste fato certo: que a vida e todo o seu desenvolvimento é igualmente um fenômeno davontade. Vontade que, considerada puramente em si, é um impulso inconsciente, cego,

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irresistível. Assim a vemos nos seres inorgânicos e vegetais, em suas leis; na própria vidavegetativa do homem. No homem, pela incorporação do mundo da representação, avontade adquire a consciência do seu querer e daquilo que quer, que nada mais é queeste mundo, a vida tal como se nos apresenta.

O que a verdade quer é sempre a vida, dizer vontade de viver é dizer vontade.Todo o universo é uma manifestação dessa vontade, não causa dos fenômenos, masobjetivação de si mesma. Partindo da observação dos fenômenos em geral, Schopenhauer(1974) analisa as teorias físico-biológicas existentes e afirma que, apesar de tudo, anatureza íntima do fenômeno e sua multiplicidade permanecem sempre inexplicáveis. Avontade é um impulso cego e irresistível que se objetiva no fenômeno.

A vontade, como coisa em si, é onipotente e tudo pode. Ela é livre. O mundo, comtoda a multiplicidade de suas partes e de suas figuras, é o fenômeno, a objetividade de umúnico querer viver. A vontade de viver é eterna, pois está fora do tempo e é no homem queela adquire consciência. A atividade é essencial na vontade que nunca deixa de querer.

A vontade se objetiva pluralmente nas coisas e no tempo, sem que por isso percaa sua indivisibilidade. A diferença entre as coisas do espaço só está em sua objetivação(grau). Cada grau de objetivação da vontade contende com outro na matéria, no espaçoe no tempo, implicando, por isso, luta, batalha e, alternadamente, vitória. A vontadeestá toda tanto numa pedra como num vegetal ou no homem, de tal maneira que, sepudéssemos destruí-la numa pequena partícula de poeira, destruiríamos o mundo.

No próximo ponto procura-se, a partir de Schopenhauer, fazer uma reflexãoantropológica com o objetivo de demonstrar que é também no homem que a vontadealcança a sua maior individuação.

2 T2 T2 T2 T2 Tentativa de uma colocação antropológicaentativa de uma colocação antropológicaentativa de uma colocação antropológicaentativa de uma colocação antropológicaentativa de uma colocação antropológica

Schopenhauer repete que o seu sistema explica o mundo pelo homem e não ohomem pelo mundo e neste sentido ele mesmo chama seu sistema de ummacroantropismo, pois coloca o centro do universo na consciência do homem.

O homem, como todos os outros fenômenos da matéria viva ou bruta, é vontadee representação e no seu extrato mais profundo se apreende como vontade de viver.Porque a vontade é a “coisa em si”, o conteúdo interior, a essência do mundo e o mundovisível é o fenômeno, o espelho da vontade, a vida acompanhará inseparavelmente avontade; onde há vontade, há vida. Schopenhauer diz ser um pleonasmo “vontade deviver”. A vontade de viver tem assegurada para si a vida. Continuando, afirma que osujeito é o suporte do mundo, a condição constante sempre subentendida de tudo oque é perceptível, de todo objeto, porque tudo quanto existe, existe para um sujeito. Omundo é minha representação, um princípio evidente para Schopenhauer. Todo homemé este sujeito, mas somente enquanto conhece e não enquanto é objeto de conhecimento.Seu próprio corpo é objeto. Deste ponto de vista ele é igualmente representação, porque,

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o corpo é um objeto entre os objetos submetidos às leis dos objetos, portanto submetidosàs formas de todo o conhecimento que são: tempo e espaço. A vontade é aquilo queconhecemos imediatamente.

A ação do corpo é o ato da vontade objetivada e ambos são uma só e mesmacoisa, que nos vêm de sua maneira diferente, de uma vez imediatamente e outra pelaintuição e conhecimento. É no homem também que a vontade alcança a sua maiorindividuação, devido a um sem-número de personalidades, e é nele que ela se apreendecomo vontade de viver. A vida está presa ao querer viver e, enquanto este existir nohomem, ele não deverá se inquietar com sua vida e com sua morte.

Segundo Schopenhauer (1974, p.501), a vontade de viver tem sempre asseguradaa vida, e enquanto ela nos alentar não devemos nos preocupar por nossa existência, nemmesmo ante o espetáculo da morte. Vemos o indivíduo nascer e morrer, mas o indivíduonão é mais que o fenômeno. Só existe pelo conhecimento submetido ao princípio derazão que é o princípio de individuação, por isso o indivíduo recebe a vida como umpresente. Sai do nada, sofre logo pela morte a perda do dom da vida e volta ao nada deonde saiu.

O nascimento e a morte, por pertencerem ao fenômeno da vontade e, porconseguinte, à vida, não atingem a vontade em nada nem atingem o sujeito doconhecimento. É atributo essencial da vida aparecer em criaturas individuais, manifestandofugazmente no tempo o que em si não conhece tempo e deve precisamente manifestar-se sob esta forma, a fim de poder objetivar sua verdadeira natureza. O nascer e o morrersão pólos do fenômeno total da vida.

Para Schopenhauer (1974), a mais sábia de todas as mitologias, a indiana, expressaeste mesmo pensamento dando por atributo a Siva, o deus da destruição e da morte, ocolar de caveiras e, ao mesmo tempo, o Lingan, símbolos da geração e da morte que secompensam reciprocamente.

A morte de um indivíduo não afeta a natureza, que nada mais é que a realizaçãoda vontade de viver. Sendo o homem a própria natureza em seu supremo grau deconsciência de si, e sendo a natureza vontade de viver objetivada, nada mais natural queo homem se console com sua própria morte e a dos seus, lançando olhos para a vidaimortal da natureza que é ele mesmo. A forma do fenômeno da vontade é tempo, espaçoe causalidade. A forma do tempo é sempre o presente e não o futuro ou o passado. Estessó existem pela abstração, pelo encadeamento do conhecimento submetido ao princípiode razão. Só o presente é propriedade de toda a vida, propriedade segura, e nada,jamais, pode arrebatá-lo.

Para Schopenhauer (1974), o próprio passado, mesmo o mais próximo, o dia queacaba de escoar-se, não é mais do que um inútil sonho e outra coisa não é o passado deoutros milhões de seres. Eu sou definitivamente dono do presente que me acompanharápor toda uma eternidade como minha sombra; por isso não me espanta nem perguntode onde procede este presente e por que precisamente neste instante.

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Só a manifestação individual da vontade é que começa e acaba, mas isto não aafeta, já que ela é eterna. A vontade em si e o sujeito puro do conhecimentoexistem fora do tempo e não conhecem nem a permanência, nem a destruição.Por isso, o egoísmo do indivíduo não pode valer-se disto para apagar sua sedede imortalidade, pois não pode alimentar a certeza que depois de sua morte omundo continuará existindo (SCHOPENHAUER, 1974, p.509).

O homem só enquanto fenômeno difere dos outros objetos, mas também é vontadeque se manifesta em tudo. A morte faz desvanecer a ilusão de que sua consciência édistinta da consciência universal, e nesta não há destruição, nisto consiste sua eternidade.

Todas as ações do homem são a manifestação reiterada do caráter inteligível,apenas ligeiramente modificada em sua forma. A indução resultante da soma dessasações é o caráter empírico. O caráter adquirido, que vem juntar-se depois ao inteligível eao empírico, se forma na medida em que se vive em contato com o mundo, através doconhecimento claro e abstrato do próprio caráter empírico.

Quando elogiamos ou censuramos alguém devido ao seu caráter, estamos nosreferindo ao caráter adquirido. Se poderia pensar que, sendo o caráter empírico, enquantofenômeno do inteligível, é invariável e conseqüente consigo mesmo. Como todo fenômenonatural, também o homem deveria aparecer sempre igual a si mesmo e não ter necessidadede formar artificialmente seu caráter por força de experiência e reflexão. Não é isto, porém,o que sucede. O homem, ainda que sempre permaneça idêntico, nem sempre se entendea si mesmo. Muitas vezes ele se desconhece até que alcance certo grau de conhecimento.

Querer e ambicionar são a essência do homem. Querer significa desejar, e o desejoimplica a ausência daquilo que se deseja. Desejo é privação, deficiência, indigência e,conseqüentemente, dor. A vida parece lançada num esforço incessante de afastar a dor,esforço que se mostra vão no preciso momento em que chega ao seu termo. Com asatisfação do desejo e da necessidade surge um novo desejo e uma nova necessidade. Asatisfação jamais será definitiva e positiva. O prazer é a cessação da dor e tem, portanto,um caráter negativo e transitório. Na falta de objetos a desejar, quando uma satisfaçãofacilmente chega, apodera-se do homem um vazio espantoso, o tédio, que ainda é maisinsuportável que a dor.

Quando satisfizer todas as suas aspirações, sente um vazio aterrador, o tédio, querdizer, em outros termos, que a existência se converte numa carga insuportável. Avida oscila, como um pêndulo, constantemente entre dor e tédio, que são, narealidade, seus elementos constitutivos (SCHOPENHAUER, 1974, p.511).

A vida de todo homem é uma história de todos. De forma geral, cada existência éuma série contínua de desgraças, que cada um tenta ocultar da melhor maneira possível,por que sabe que os outros não se interessam ou lastimam, mas, ao contrário, geralmentesentem satisfação ante o relato das dores das quais estão livres naquele momento.

Se fizéssemos com que o mais obstinado dos otimistas visitasse hospitais,lazarentos, cárceres, senzalas, câmaras de tortura, campos de batalha; se ofizéssemos penetrar em todos os sombrios redutos de miséria, acabaria porentender qual a natureza deste mundo (SCHOPENHAUER, 1974, p.555).

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Para Schopenhauer (1974), a história é um manifestar-se da incansável vontadede viver, que repete sempre a mesma tragédia ou comédia, ainda que mudem ospersonagens. A negação da vontade de viver sobrevém quando o conhecimento aniquilaa vontade, porque então os fenômenos da percepção não agem mais como estímulossobre a vontade; pelo contrário, na concepção das idéias que refletem a essência domundo, encontra um calmante, um aquietador, que a serena e a impulsiona a anular-sea si mesma, espontaneamente.

Isto acontece apenas através de outras atividades próprias do homem, que sãogradativamente liberativas: a arte, a justiça e a compaixão. No último capítulo busca-se,como conclusão, explicitar essas atividades liberativas como forma de entender a violência,tendo como base a antropologia filosófica de Schopenhauer, apontando-as como viasde suspensão da violência.

Considerações FinaisConsiderações FinaisConsiderações FinaisConsiderações FinaisConsiderações Finais

A partir do pensamento filosófico de Schopenhauer, pode-se apontar, mesmoque precariamente, algumas vias para a suspensão da violência. Num primeiro momento,temos a contemplação artística. A contemplação desinteressada das idéias seria um atode intuição artística e permitiria a contemplação da vontade em si mesma, o que, porsua vez, conduziria ao domínio da própria vontade. Na arte, a relação entre vontade e arepresentação inverte-se, a inteligência passa à posição superior e assiste à história desua própria vontade; em outros termos, a inteligência deixa de ser atriz para serespectadora. A atividade artística revelaria as idéias eternas através de diversos graus,passando sucessivamente pela arquitetura, escultura, pintura, poesia lírica, poesia trágicae finalmente pela música.

Em Schopenhauer, pela primeira vez na história da filosofia, a música ocupa o primeirolugar entre todas as artes. Liberta de toda a referência específica aos diversos objetos davontade, a música poderia exprimir a vontade em sua essência geral e indiferenciada,constituindo um meio capaz de propor a libertação do homem, face aos diferentes aspectosassumidos pela vontade, dentre os quais a violência. Constitui o elemento do artista, olado puramente cognoscível do mundo e a reprodução do mesmo numa arte. O artista écativado pela contemplação do espetáculo da vontade em sua objetivação.

O homem comum é capaz de elevar-se à contemplação, ainda que sem gênio,caso contrário ele não apreciaria as obras de arte. A diferença que existe entre ele e ohomem de gênio é que o segundo, possuindo em grau muito maior esta capacidade decontemplação, consegue reproduzir, numa obra arbitrária, o assim conhecido, reproduçãoque é a obra de arte. Para Schopenhauer (1980, p.23), é a arte, a obra do gênio. Enquantopara o homem comum sua faculdade de conhecer é a lanterna que ilumina seu caminho,para o homem de gênio é o sol que revela o mundo. A música, que às vezes eleva nossoespírito a tal altura que parece nos transportar a outros mundos, nada mais faz do quealargar nossa vontade de viver.

A música vai além das idéias, é completamente independente do mundo fenomenal.A música fala do ser. Ela é uma objetivação, uma cópia tão imediata de toda a vontade

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como é o mundo, como o são as próprias idéias. Cultivar a arte é uma forma de entendera superação da violência. Necessita-se da arte para consolidar o processo de humanizaçãodo homem. Mais importante que prevenir a violência é entendê-la filosoficamente.

Fica o desafio para as políticas públicas na contemporaneidade de investir nasartes como forma de tornar o homem mais humano, mais próximo de si. A supressão daviolência pode se tornar realidade a partir de uma educação integral do ser humano,onde a arte não é ignorada. A injustiça é a condição da vontade de viver, dividida ediscordante, que existe no diversos indivíduos. Para ela, só existe um remédio: oconhecimento da vontade como unidade fundamental em todos os seres e,conseqüentemente, o reconhecimento dos outros, por sua vez, como sujeitos.

O homem mau não é apenas o que atormenta, mas é também o atormentado. Oque faz com que ele se sinta separado dos outros ou da dor nada mais é que o produtode um sonho ilusório. É a obscura consciência da unidade da vontade, que existe emtodos os homens, o que provoca o aparecimento do remorso e da angústia junto com amaldade. Toda maldade é injustiça, é o desconhecimento dessa unidade. Toda bondadeé justiça, é conhecimento da vontade una, da ilusória multiplicidade resultante do princípioda individuação.

A justiça é o primeiro grau de reconhecimento. Em relação à violência, observam-se diversas crises na sociedade: crise na família, crise na relação de gênero, crise urbana,crise dos direitos humanos, crise social e crise na justiça criminal. Porém, a maior crise, éa crise da falta de conhecimento da vontade como unidade fundamental em todos osseres e, conseqüentemente, do reconhecimento dos outros, por sua vez, como sujeitos.O resgate de uma teoria da justiça na contemporaneidade é essencial para uma sériadiscussão sobre a violência na contemporaneidade.

Outra via de superação da violência é o amor. O amor, cuja origem está noconhecimento, e que vai além do princípio de individuação, conduz à redenção, aoabandono completo da vontade de viver, ou seja, de toda volição em geral. O que nosleva a realizar boas ações e obras de caridade é o conhecimento da dor alheia, nascidode nossa própria experiência e considerado como nosso. Por isso, o amor puro (caritas)é por natureza piedade e é indiferente qual a dor que mitiga, já que entendemos comodor toda necessidade ou aspiração não satisfeita. Todo verdadeiro amor é piedade etodo amor que não é piedade é egoísmo. A compaixão é o sentimento ético fundamental.Sem ética, a sociedade continua mergulhada na violência. Entender a violência é entendero significado da ética para a humanidade.

O pensamento de Schopenhauer se apresenta como um grande sistema metafísico.A intenção do artigo foi fazer uma aproximação da obra O mundo como vontade derepresentação e propor uma reflexão antropológica da violência a partir das atividadesliberativas. Esta reflexão, embora precária, constitui-se num projeto aberto para novasreflexões. Portanto, o entendimento das atividades liberativas, apresentadas porSchopenhauer, é uma das formas de suspensão da violência, tendo como base aantropologia filosófica.

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Reflexões sobre a Obra de ArteReflexões sobre a Obra de ArteReflexões sobre a Obra de ArteReflexões sobre a Obra de ArteReflexões sobre a Obra de Arte - - - - - umaumaumaumaumaanálise do texto “análise do texto “análise do texto “análise do texto “análise do texto “A Origem da ObraA Origem da ObraA Origem da ObraA Origem da ObraA Origem da Obrade Arte” de Martin Heideggerde Arte” de Martin Heideggerde Arte” de Martin Heideggerde Arte” de Martin Heideggerde Arte” de Martin Heidegger

Reflections about the WReflections about the WReflections about the WReflections about the WReflections about the Work ofork ofork ofork ofork ofart - an analysis of the text “Theart - an analysis of the text “Theart - an analysis of the text “Theart - an analysis of the text “Theart - an analysis of the text “TheOrigins of the WOrigins of the WOrigins of the WOrigins of the WOrigins of the Works of Art” byorks of Art” byorks of Art” byorks of Art” byorks of Art” byMartin HeideggerMartin HeideggerMartin HeideggerMartin HeideggerMartin Heidegger

Solange Aparecida de Campos Costa*

ResumoResumoResumoResumoResumo

Esse artigo examina a questão da proveniência da arte, tendo porbase o texto de Heidegger: “A origem da obra de arte”. Essaabordagem reflete os questionamentos que norteiam a disciplinade filosofia da arte, ou seja, o que o texto pretende é tratar dequestões fundamentais sobre o nascimento da obra de arte e decomo a filosofia se coloca no horizonte dessa experiência. Oobjetivo das questões tratadas neste artigo é possibilitar umadiscussão inicial sobre o tema que permita o estudo acadêmicoda estética ou filosofia da arte.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: obra de arte; origem; mundo; terra; verdade.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

This article investigates the issue of the origins of art, having as abasis the text by Heidegger: “The origins of the works of art”. Thisinvestigation reflects the questionings that guide Philosophy ofArt, in other words, the text aims to deal with fundamental issuesabout the birth of the work of art and how philosophy is placedin the horizon of this experience. The objectives of the questionsaddressed in this article is to allow for a initial discussion aboutthis theme that is conducive of the academic study of aestheticsor the philosophy of art.

KKKKKey Wey Wey Wey Wey Wordsordsordsordsords: work of art; origin; world; Earth; truth.

* Graduação em Filosofia pelaUniversidade Federal do Paraná(1999) e Mestrado em Letras pelaUniversidade Federal do Paraná(2007). Trabalha na área daeducação desde 1998 e no ensinoSuperior desde 2002. Atualmente éprofessora titular do curso defilosofia da FAE - Centro UniversitárioFranciscano e do Instituto Radial deEnsino e Pesquisa. Tem experiênciana área de Filosofia, com ênfase emFilosofia Alemã.

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Primeiras questõesPrimeiras questõesPrimeiras questõesPrimeiras questõesPrimeiras questões

Este artigo emerge da tentativa de indagar sobre o que ocorre no processo decriação para que a obra de arte surja. Para tanto, recorreu-se à análise de A origem daobra de arte, de Martin Heidegger.

As questões que se pretendem desenvolver são: como nasce e para que aponta aarte? O que se mostra através da arte? Qual a relação da vida e da obra de arte? Por que éfundamental para o homem se indagar sobre isso?

Para pôr-se no horizonte de tais questões far-se-á o seguinte percurso:

- A obra e a origem: A obra e a origem: A obra e a origem: A obra e a origem: A obra e a origem: Como nasce a obra de arte? A primeira questão ao abordara obra é a pergunta pelo seu fundamento: o que faz a obra ser obra? Ou seja,indaga-se pela sua proveniência, por aquilo que torna a obra tal como ela é.Assim, a discussão sobre a obra de arte deve fundar-se na pergunta pela origem.Para entender o que emerge no ato de procriação artística é necessário antesrevelar o que fornece à obra o seu caráter de obra, abordar em que medida aorigem está vinculada à obra, e como esta pode manifestá-la.

- Obra de arte e realidade. Mundo e terra: Obra de arte e realidade. Mundo e terra: Obra de arte e realidade. Mundo e terra: Obra de arte e realidade. Mundo e terra: Obra de arte e realidade. Mundo e terra: O que se mostra através da arte?Tendo anteriormente perguntado pela origem, isto é, desvelado o cerne daobra, pode-se então investigar para o que a obra de arte aponta. Portantobuscar-se-á inquirir, neste item, sobre o que visa a obra de arte, examinando arelação entre o que ela manifesta e a realidade – o que a obra de arte permiterevelar, e qual a relação entre o que ela revela e a efetividade. A partir dessasquestões, descobre-se que a obra abre um mundo e produz terra. Nesse pontoserá trabalhado em que sentido aparecem mundo e terra na obra e qual a suarelação com o acontecer do real.

- Obra de arte: desocultação e ocultação:Obra de arte: desocultação e ocultação:Obra de arte: desocultação e ocultação:Obra de arte: desocultação e ocultação:Obra de arte: desocultação e ocultação: A obra indica, manifesta algo quenão está imediatamente visível. Ela é via de acesso para a desocultação demundo e terra. Nessa tarefa de desvelamento ela também assume a ocultaçãocomo necessária à própria existência. Como ocorre a desocultação, por que aarte assume essa tarefa, e de que forma ela também pode ser ocultação são asprincipais questões a serem trabalhadas nesse tópico.

Faz-se necessário explicitar, ainda, que este artigo não pretende respondercompletamente todas as questões propostas, mas apontar a relevância de se trabalharcom tais questões. O esforço é por tornar inteligível a indispensável tarefa de pensar aarte. A indagação fundamental que deriva de todas as questões acima propostas e,portanto, permeia este artigo enquanto reflexão sobre a obra é: se a obra de arte mostraalgo que tem vínculo com a realidade e, assim, de certa forma, chama a atenção para aessência do real; como acontece a manifestação desta pela obra; e por que este é ummodo privilegiado de sua aparição.

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A obra de arte e a origemA obra de arte e a origemA obra de arte e a origemA obra de arte e a origemA obra de arte e a origem

Para alcançar o que a obra de arte é, ou seja, o que acontece na obra, um caminhofundamental baseia-se na pergunta pela origem. Ao indagar-se pela obra, em verdade,busca-se sua origem, ou seja, o que garante à obra sua existência enquanto tal. Entretanto,origem não é aqui tomada como ponto de partida, como início que permanece em umpassado longínquo, mas como fundamento, aquilo que fornece às coisas sua identidade,a unidade essencial que impulsiona sua existência. Quando dizemos que a janela é, aorigem da janela constitui-se como o “é”, o que a torna janela e não outra coisa. Assim,assegura-se por ela a identidade da coisa consigo mesma. Essa unidade que revela à coisasua força própria, Heidegger denomina essência. “Origem significa aqui aquilo a partir doqual e através do qual uma coisa é o que é, e como é. Ao que uma coisa é como é,chamamos a sua essência. A origem de algo é a proveniência da sua essência” (HEIDEGGER,1999, p.11). A essência é o instante que inaugura a abertura da realidade e que a permeia.

A unidade fundamental do existente (origem), a essência como movimento de vir-à-existência, os gregos denominavam hypokeímenon. O hypokeímenon enquantototalidade se resguarda, não aparece completamente, mas é o alicerce de todo o aparecer,é a essência que projeta o que se mostra na realidade. Portanto, ele se faz como o ser dacoisa, a ação de ser e vir-a-ser o que se é. No entanto, o que aparece é desde o já reveladoe conhecido, o hypokeímenon só é acessível pelo seu aparecimento em um entedeterminado. A origem só se mostra nas coisas, ou seja, embora o fundamento em suatotalidade que permite essa revelação nos escape, sua presença se faz visível1.

O ser do ente, o hypokeímenon, foi traduzido pelos romanos por subjectum. Apartir dessa tradução, o modo de compreensão grego se perdeu. Entende-se, a partir deentão, substância como algo velado por detrás das aparências. A tarefa do homem, dentrodessa compreensão, seria atingir a substância; ele alcançaria o auge da sua existênciaencontrando o substrato sobre o qual repousa toda a realidade. A essência, assim, se tornao objetivo, a meta a ser atingida pelo homem e não mais a origem que projeta e governaa realidade. Por esse caminho, abandonamos a experiência grega da essência como origem.

1 Lembremos o pensamento platônico. Nos diálogos, todas as indagações procuram a essência. Busca-se a virtude, acoragem, o belo em si mesmos, e não suas características. A pergunta platônica aspira a desvelar a origem, a promovera revelação do ser sendo, que garante a identidade das coisas. Tenta ver o que é a virtude que está na atitude virtuosa,mas que não se limita a apenas uma propriedade. A ação virtuosa só é possível porque se determina desde a virtudecomo essência. Exemplifiquemos: No diálogo Teeteto, Sócrates pergunta a Teeteto o que é conhecimento (146 c), eeste lhe responde que o conhecimento é a geometria, o artesanato e todas as demais artes. Essas artes têm comoorigem o conhecimento; no entanto, não são o conhecimento em si mesmo. O conhecimento perpassa cada umadelas, mas não podemos limitá-lo a uma arte. De outro modo: é pelo conhecimento que o sapateiro faz os sapatos,mas o conhecimento não está somente no fazer sapatos do sapateiro, nem na capacidade de cálculo do geômetra,e por isso dizer que o conhecimento se resume a essas artes não responde a pergunta. As artes são modos que oconhecimento toma para se manifestar, vias de acesso para sua presença, mas não são o conhecimento enquanto tal.

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Uma outra compreensão distorcida da origem é a que a define como um princípiogerador limitado ao tempo. Desse modo, afirma-se que ela é semente originária, causaque principia um processo e não mais se vincula a ele. No entanto, faz-se necessárioperceber que, a origem não está apenas no início, mas em todo o acontecer da obra, elanão é algo que já se perdeu em um começo preso ao pretérito, mas o acontecer quesalva a obra do esquecimento (que é a verdadeira perda). A origem constitui-se como omovimento que torna a obra obra. “A pergunta pela origem da obra de arte indaga a suaproveniência essencial” (HEIDEGGER, 1999, p.11). A essência da obra de arte se mostrano ser obra da obra, ou seja, pelo movimento através do qual ela se torna obra de arte.

A arte é a origem da obra e do artista, por meio dela eles afirmam sua existência.Dessa forma, é pela arte que artista e obra tornam-se possíveis. A arte traça, então, ovínculo entre artista e obra; só na presença da arte é que a obra se manifesta, só sendotomado pela arte é que o artista cria.

Deparamo-nos, agora, com um paradoxo: perguntamos pela obra desde a suaorigem (essência) e chegamos à arte, que, por sua vez, só se manifesta na obra pois aobra é a efetivação da arte. Achamo-nos em um círculo: de um lado parte-se da obra echega-se à arte, de outro, indaga-se pela arte e volta-se para a obra. Para não utilizarmosesse círculo como pretexto para encerrarmos nossa reflexão, ao contrário, lancemo-nostotalmente para o interior dessas questões; assim é possível conquistar o movimento docírculo escavando a relação entre obra e arte, de forma a continuar o caminho para aobra. Para isso faz-se necessário perguntar o que a obra nos revela a partir da origem e,qual o vínculo entre a essência da obra e o real.

Obra de arte e realidade: mundo e terraObra de arte e realidade: mundo e terraObra de arte e realidade: mundo e terraObra de arte e realidade: mundo e terraObra de arte e realidade: mundo e terra

A pergunta pela origem da obra, feita no intuito de encontrar a sua essência, oque garante à obra a existência enquanto tal se revela no acesso à arte, logo, a arte semostrou como núcleo originário da obra. Ambas mantêm entre si um vínculo fundamental,mas esse vínculo por si só não nos permite sua compreensão. Para buscar umentendimento da obra, é preciso antes pôr-nos no horizonte do seu caminho, ou seja,embrenhar-nos na via de acesso pela qual ela se mostra. Assim sendo, a primeira indagaçãoa se fazer é a seguinte: através do que a obra se patenteia para nós? Pela realidade, ouseja, é no movimento de vir-à-luz, de existir, ao qual todos pertencemos, que a arte semanifesta. Cabe-nos, então, a tarefa de buscar a compreensão da obra a partir de suasrelações com a realidade. E assim, ao mesmo tempo, poderemos avistar a sua essência.O caminho da pergunta pela origem da obra converte-se na indagação pelo aparecer daobra na realidade. Tendo em vista que a obra se insere no âmbito do real, se funda nele,perguntemos primeiramente o que ela expõe no seu aparecer. O que os quadros, apoesia, a escultura, enquanto obras de arte querem mostrar? O que há neles para que osdesignemos por obras? Para pôr-nos no sentido da indagação, será útil pensarmos apartir de uma obra propriamente dita.

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Concorda-se que a obra nos remete a algo, nos oferece algo. Esse “algo” é a própriarealidade, pois a obra se faz como abertura para que a realidade se evidencie. Esse “mostrar”ultrapassa o modo corriqueiro de observar o real, como algo parado e estático, inserindo-se no próprio movimento de acontecer do real.

Heidegger, para mostrar a obra como abertura para a realidade, se utiliza doexemplo de um quadro de Van Gogh que permite ver os sapatos de uma camponesa.Empreguemos o mesmo exemplo; o quadro de Van Gogh como obra não é tão-somenteo artefato, ou o adorno, que se pendura na parede (se bem que pode ser tomado, porum longo tempo, sendo isso o que não desmerece nem apaga seu caráter de obra – namedida em que o instrumento é um dos modos possíveis como a obra pode aparecer,mas não aponta para a obra enquanto tal – nem é este modo que nos propomos ainvestigar, perguntando pelo que faz a obra ser obra). O quadro de Van Gogh, ao mostraros sapatos da camponesa, torna visível o mundo da camponesa. Aqueles sapatos gastospresentes no quadro trazem consigo a presença da própria lavoura, do peso do trabalhoárduo, da manhã que se inicia no caminho para o campo, do suor da lida, do sol quenteno verão, do inverno rigoroso etc. Pelo quadro que exibe apenas um par de sapatosvelhos faz-se conhecer todo o mundo ao qual ele pertence. A obra constitui-se comoabertura para o ente, como janela que deixa ver o que na cotidianidade se vela. O par desapatos contido na obra torna patente o lugar de onde ele recebe sua existência, e esselugar só é visível pela obra. No entanto, se o par de sapatos se referir apenas a um objetoindividual, se ele aparecer somente como aquele par de sapatos dado, então, o quadroabandonará o seu caráter de obra, pois não abrirá para nada além do instrumento. Elesó se constitui enquanto obra pelo abrir-se da essência do ser-sapato, que remete aomundo da camponesa. “Na obra, não é de uma reprodução do ente singular, que cadavez está aí presente, que se trata, mas sim da reprodução da essência geral das coisas”(HEIDEGGER, 1999, p.28)2.

Essa abertura que a obra propicia é o lugar próprio da revelação do ente. Utilizemosoutro exemplo heideggeriano que comprova a afirmação acima, tornando nítida tambéma obra enquanto abertura para a realidade: o templo grego. Segundo Heidegger, os gregos

2 Nietzsche, na obra O nascimento da tragédia, ao abordar a lírica grega, afirma que ela é poesia na medida em quenão parte de um subjetivismo, ou seja, a lírica grega não trata do indivíduo, enquanto sujeito singular, mas toca onúcleo que torna possível toda e qualquer individualidade, isto é, a essência enquanto fundamento do aparecer,unidade que reúne os indivíduos. O poeta lança mão de sua individualidade para imergir no ser, fazendo de sicaminho e meio para atingir o “verdadeiramente existente (Seiende)”. O poeta lírico é poeta porque através dele aessência, o ser sendo, se patenteia. Esse núcleo que o artista deixa aflorar através da obra (neste caso a poesia lírica),Nietzsche chama de Ichheit (eudade). “O gênio lírico precisa dizer ‘eu’: só que essa ‘eudade’ não é a mesma que a dohomem empírico real, desperto, mas sim a única ‘eudade’ verdadeiramente existente e eterna, em repouso no fundodas coisas, mediante cujas imagens refletidas o gênio lírico penetra com o olhar até o cerne do ser” (NIETZSCHE, 1992,p. 45). Da mesma forma que Nietzsche ao tratar da lírica grega, Heidegger apresenta uma compreensão de arte quetranscende o objeto e o indivíduo, aliás é a própria arte que fundamenta a existência deles. A arte atinge a “essênciageral das coisas” que é o que permite o nascimento do indivíduo, do “ente singular”.

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não viam o templo como obra de arte, o viam como presença do Sagrado, como lugar dadivindade que os governava e fortificava. Através do templo, eles se viam a si mesmos,porque ali existia um sentido próprio que lhes falava. O templo, no seu estar ali, traziaconsigo o deus. Assim, ele é obra na medida em que revela através de si um sentidohistorial (geschichtlich), desde sua origem: o lugar do sagrado3. Por expor ao homem apresença do deus e tornar visível (a si mesmo) o seu lugar, o templo se faz obra e, no seufazer-se obra ilumina tudo que congrega o seu existir (isto é, mundo). Assim o templodeixa ver o vento que passa por suas colunas, dá dimensão às colunas que o circunda e fazaparecer toda a paisagem que o cerca e a que pertence. O templo enquanto obra não está,portanto, somente na figura arquitetônica que lhe dá contorno, mas no mundo que orodeia e que através dele se exibe. Assim, ele não se resume ao amontoado de pedras queo compõe; antes utiliza a pedra para se erguer e como tal faz a pedra ser pedra.

O templo, ao mesmo tempo em que torna visível o emergir do mundo que ocerca, conferindo-lhe sentido (a presença do sagrado), também oferece ao homem o seulugar. O mundo aberto pela obra mostra ao homem sua tarefa. Isto é, assim como otemplo faz ver o azul do céu, a montanha, o vento, e traz consigo o advento do deus, eletambém concede ao homem a descoberta do seu próprio. Portanto, o templo comoobra permite ao homem ver a realidade e reconhecer o seu lugar próprio na essência doreal. “O templo no seu estar-aí (dastehen) concede primeiro às coisas o seu rosto e aoshomens a vista de si mesmos” (HEIDEGGER, 1999, p.33).

O fazer vir à luz próprio da obra de arte é um modo de ser da physis, e o que assimaparece é o mundo. A terra dá-se como lugar (khóra) que abriga o que a obra ilumina. Aobra, quer como o quadro da camponesa, quer como templo grego, evidencia um mundoe o depõe sobre a terra. Mundo e terra abrem e resguardam o ser-obra da obra. Masantes de abordar o que mundo e terra expõem, busquemos qual o sentido deles naconstituição da obra de arte.

A obra instala um mundo, isto é, ela faz-se como clareira aberta para o advento doente. Então, o mundo não é um objeto que pode ser tomado a priori, mas se realiza, somente,no caminho pelo qual os entes se desvelam, ele se constitui na ação de tornar visíveis osentes. A obra consagra um mundo, isto é, põe a tarefa do homem em seu horizonte, odefronta com seu destino. E, no erigir um mundo, ela mostra ao homem as coisas em suagênese própria. Desse modo, o mundo oferece ao homem a abertura do ente, isto é, apossibilidade de ser si mesmo, de pôr-se a caminho do próprio, da origem. Nesse caminho ascoisas aparecem desde uma abertura do fundamento. Por exemplo: no quadro dos sapatosda camponesa, o mundo é o que o sapato permite ver, mas não se resume ao sapato,

3 Da mesma forma que o templo é o lugar onde o deus advém, as estátuas dos deuses não apenas lembram o divino, maso manifestam. Não são meras representações erigidas com o intuito de lembrá-los, mas são a sua própria existência. Aestátua evoca o deus à presença; nela o deus advém. Semelhantemente, o mito não se constitui como simples história,uma fábula cristalizada no tempo, mas torna vivenciável o que conta. Quando conta-se um mito, no dizer se erige,renasce o que se está falando, isto é, no aberto da arte advém o que ela indica pela reprodução do seu surgimento.

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embora garanta a ele seu lugar enquanto tal; o trabalho na lavoura, o suor do cansaço, ocaminho para o campo... é o mundo que os sapatos fazem visível. No entanto esse mundonão é algo pronto para o qual a obra aponta, mas é somente com o erigir-se dele que a obrafaz ver os sapatos da camponesa no mundo da camponesa. Logo, a obra mostra o trabalhoda camponesa em seu acontecer, junto com seu cansaço, com o sol quente, com a paisagemque a cerca. Ao erigir-se a obra, tudo o que faz parte do mundo no qual os sapatos dacamponesa têm sentido aparece desde o seu movimento próprio de vir à luz. Em outrostermos, a obra instala um mundo; ou seja, no quadro a tinta é cor, no templo a pedra se“pedrifica”, na poesia a palavra conquista o dizer. O mundo é assim aquilo que deixa sobressaira vocação para a qual se destina cada coisa na sua existência. “Mundo nunca é um objeto,que está ante nós e que pode ser intuído. O mundo é o sempre inobjetal a que estamossubmetidos enquanto os caminhos de nascimento e da morte, da benção e da maldição nostiverem lançados no Ser” (HEIDEGGER, 1999, p.35).

Ao mesmo tempo em que a obra instala um mundo como via de acesso para oente, apontando o destino de cada coisa, ela resguarda o seu caráter de obra. O templo,na abertura de um mundo deixa a pedra ser pedra, o quadro deixa a cor colorir, mas a obranão se limita nem à cor, nem à pedra: ela se guarda na terra. Enquanto a obra funda apossibilidade de deixar-ser através do mundo, ela também recolhe a obra da matéria e aabriga na terra. Portanto, a terra se constitui como plena possibilidade do ente, comolugar do ente na totalidade. Assim, a terra resguarda a totalidade do ser-obra da obra. Elase faz como aquele limite que não se ultrapassa, o que não aparece; a terra constitui omistério do ente na totalidade que permanece imperscrutável. Por exemplo: observando osol, sente-se o calor que ele produz, vê-se a claridade que dele emana; sabe-se que eleilumina, mas o “iluminar” não se faz apreensível, continua impenetrável repousando nummistério. Esse fechar-se, ocultar-se, é próprio da terra, na medida em que ela resguarda atotalidade do ente deixando aparecer no aberto do mundo o ente como algo determinado4.O resguardar próprio da terra não é uma privação, ou seja, a terra não oculta algo quepode vir a ser desvendado, mas deixa o mundo ser num modo de ser posto pelorecolhimento. Assim, o fechar-se da terra é um modo de proporcionar um caráter semprerenovado da obra, e sempre de novo fazer renascer o mundo.

Ao produzir terra, a obra deixa algo ser para o recolhimento de todas as suaspossibilidades. Assim, a obra, na terra, mantém o que se presentifica com a própriaocultação, ao modo do recolhimento – o sol continua a iluminar, ainda que esse iluminarnão se torne apreensível, pois o iluminar só é possível no seu retirar-se à compreensão.

4 A questão da relação entre terra e mundo converte-se na pergunta fundamental da filosofia, a da diferença ontológica(ser e ente) que aparece em Heidegger de forma especial em Ser e tempo. A história da filosofia se debruça sobre essarelação, pois ela promove a realidade. Em Nietzsche, em O nascimento da tragédia, a “diferença ontológica” apareceno vínculo entre impulso apolíneo e dionisíaco, é da relação conflituosa essencial entre eles que a realidade vem à luz.Na verdade, pode-se observar que, tanto como mundo e terra, o apolíneo e o dionisíaco não falam de duas coisascompletamente diversas, mas advêm de uma unidade; o apolíneo só é no e pelo dionisíaco. Assim como o ser sóaparece no e pelo ente. “Todo ente é no ser” (HEIDEGGER, 1979, p.17).

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Afirmou-se anteriormente que mundo e terra se originam, de um modo privilegiado,na obra de arte. A obra instala um mundo, que, ao mesmo tempo em que resguarda,produz terra. Como essa relação ocorre? Como o abrir-se de um mundo se vincula como recolhimento que a terra promove? Esses dois modos de ser da obra não se destroempela sua oposição aparente?

Ainda que mundo e terra mantenham uma oposição fundamental, um comoabertura, a outra como recolhimento, é essa contraposição que garante a sua existênciarecíproca. Mundo e terra são diferentes, mas se mantêm pela harmonia que criam emobra. São opostos que guardam um vínculo originário. Assim sendo, essa relação advémde um combate, pois um almeja sobrepujar o outro; o mundo como pura abertura nãoadmite a terra, embora tenha as raízes nela. A terra deseja fechar em si também o abertodo mundo. Ambas sustentam o conflito que instiga a origem da obra. Há que se considerarque um embate nem sempre acarreta um aniquilamento destruidor, o seu resultado nemsempre são danos, pois dele pode emergir algo novo e do confronto de forças antagônicaspode proceder algo criador. Neste caso, da luta entre mundo e terra provém a força daauto-afirmação de cada um, dando vazão à obra de arte. Mundo e terra conservam umaligação necessária, pois pelo duelo que devém da sua relação, um leva o outro a conquistara força da sua autenticidade, isto é, no embate um impele o outro a ser si mesmo, aultrapassar tudo que impede a obtenção do seu próprio. Ver-se-á que são os momentosde tensões que revelam com mais intensidade a essência; no calor da disputa, afirmam-se a origem e o caráter próprio de cada um. Deste modo, terra e mundo, um se funda noe pelo outro, e deste mútuo fundar-se advém a obra. A obra, ao instalar um mundo eproduzir terra, faz nascer o confronto entre eles; é ela que instaura esse entrave e nelevige a essência da obra. “O ser-obra da obra consiste no disputar do combate entremundo e terra. [...] Na intimidade do combate é que a quietação da obra, em si mesmarepousando, tem a sua essência” (HEIDEGGER, 1999, p.39).

Abordamos até o momento o fundamento ontológico da obra, o combate entremundo e terra. Antes dissemos que a obra aponta para algo, fazendo ver a realidade.Para isso, utilizamos os exemplos do quadro de Van Gogh e do templo grego; contudo,o sentido da obra como abertura e deixar-ser não ficou completamente claro, pois énecessário referir-se à obra também como um modo de desvelamento da verdade.

Obra de arte: ocultação e desocultaçãoPartindo do fundamento da obra, isto é, da relação entre mundo e terra, em que

medida a obra pode expor a verdade? Em outros termos: Pensada a partir de seu fundamentoontológico (combate entre mundo e terra), em que sentido é possível dizer que a obra dearte é verdadeira?

A verdade aparece aqui no sentido da essência, ou seja, a verdade do ente pertenceao ser, aquele “é” que o sustenta. Então, a verdade se constitui como núcleo essencial apartir do qual o ente é; nela se determina a possibilidade do real. “Em que consiste aessência essencial de algo? Provavelmente consiste naquilo que o ente é na verdade. Aessência verdadeira de uma coisa define-se a partir de seu ser verdadeiro, a partir daverdade do respectivo ente” (HEIDEGGER, 1999, p.40).

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Ao dispor-se no aberto, a obra de arte faz visível a origem, ou seja, a essência doseu existir. Ela deixa ver a origem. No entanto, nesse mesmo processo, a obra tornapatente o ente enquanto mistério, isto é, ao mesmo tempo em que a obra assume atarefa de desocultação, ela traz à tona a ocultação do ente. Nesse sentido a verdade semostra como a exposição do ente no aberto, através do seu velamento e desvelamento.Portanto, o velamento do ente é um modo de ser da verdade.

O ente na sua totalidade é ser, que só se faz visível através de uma forma determinada.Assim, o ser só se revela no ente, que, por sua vez, é ao mesmo tempo encobrimento. “Odesvelamento do ente enquanto tal é, ao mesmo tempo e em si mesmo, a dissimulação doente em sua totalidade” (HEIDEGGER, 1999, p.143). O ente só é ente na medida em que seexpõe na clareira e, ao mesmo tempo, se vela, recusa um aparecimento total, vigora comomistério. Toda sua possibilidade pertence ao prestar-se ao recolhimento. É preciso perceber,portanto, que a ocultação do ente não se constitui como uma falta ou uma impossibilidade,ao contrário – a ocultação não é o oposto –, mas um modo da própria efetivação da verdade.Esse encobrimento do ente é não-verdade, mas não como algo que se contrapõe à verdade,não se faz como falso, mas como aquilo que se realiza ao modo do mistério.

Todo o movimento do real está desde o início lançado nessa dupla possibilidadedo ente. Com isso, faz-se necessário compreender que o homem está desde sempredentro desse movimento de ocultação e desocultação da verdade, aliás sua própriaexistência advém dessa relação.

Cabe ao homem, portanto, a tarefa de assumir a verdade do ente, de compreendero mistério como possibilidade necessária, como caminho para a ação de ser. Assim, aforma como o ente advém na clareira, quer velando-se, quer desvelando-se, faz ver oente enquanto tal. “A clareira em que o ente assoma é em si simultaneamente ocultação”(HEIDEGGER, 1999, p.42). O ente só é acessível neste jogo no qual não há escassez ouprivação, mas apenas a manifestação da verdade (que pode ser sob a face da não-verdade – a não-verdade é a verdade existindo desde outra forma de ser). Ao ocultar-se,o ente também se presentifica pelo movimento que garante existência à realidade naqual ele emerge. Por conseguinte, seu aparecimento dá-se constantemente, aliás todamanifestação da realidade é um modo como o ente advém na clareira. No entanto,assumir o destino do homem como possibilidade de ser no encoberto causa espanto.Entregar-se a essa tarefa requer esforço. Por isso, fazem-se necessárias a arte e a filosofiacomo modos de aparecimento da verdade, que chamam o homem à sua tarefa, desvelamsua origem, impõem-lhe seu destino. Assim sendo, a obra de arte é um modo de comoo ente advém na clareira; ela aponta o aparecer do ente.

Retomemos as questões anteriores: como o ente se expõe no aberto? O queconstitui o aberto?

O aberto é a clareira criada pelo embate fundamental entre mundo e terra. Essadisputa ocorre permanentemente; é ela que dispõe a realidade. Essa relação de combateentre mundo e terra põe em movimento a vida como enraizamento ontológico da finitude.

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Então, através da clareira, a verdade do ente se patenteia como desocultação e ocultação,como desvelamento e velamento. A verdade se expõe (dispõe) ao homem de algunsmodos especiais como, por exemplo, pela filosofia e a arte. O confronto entre mundo eterra faz emergir a realidade, o seu embate coloca o mundo em movimento, abrindo oente na clareira e, do aberto disposto pelo entrave fundamental entre mundo e terra,advém a verdade (enquanto aparecimento e encobrimento). Um modo pelo qual a verdadesurge na clareira é a arte.

A terra só irrompe através do mundo, o mundo só se funda na terra, na medida emque a verdade acontece como combate original entre clareira e ocultação. Mas comoé que a verdade acontece? Respondemos: acontece em raros modos essenciais. Umdos modos como a verdade acontece é o ser-obra da obra. Ao instituir um mundoe produzir terra, a obra é o travar desse combate no qual se disputa a desocultaçãodo ente na sua totalidade, a verdade (HEIDEGGER, 1999, p.44).

A arte se constitui, então, como um modo pelo qual a verdade surge, ou seja, averdade toma a arte como meio de instauração de si. Assim, a origem da obra, a sua essência,é a revelação da verdade. Em outros termos; a arte é um modo de ser desde a clareira quemostra a verdade do ente no seu movimento de ser, emerge como uma forma que o adventoda verdade assume. Ela faz-se como caminho que promove a abertura do ente em suatotalidade, possibilitando um acesso especial, privilegiado, para a existência fática.

Por ser um modo privilegiado de pôr o homem em relação com a verdade daorigem, mostra-se imprescindível buscar compreender a arte no seu acontecer. Esse artigobuscou dispor aqui as questões relevantes que emergem ao se abordar esse tema. Noentanto, não objetivava solucionar inteiramente todas elas, mas indicar a importância desua abordagem e estudo.

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TTTTTrabalho e si mesmo. Reflexões arabalho e si mesmo. Reflexões arabalho e si mesmo. Reflexões arabalho e si mesmo. Reflexões arabalho e si mesmo. Reflexões apartir de Heinrich Rombachpartir de Heinrich Rombachpartir de Heinrich Rombachpartir de Heinrich Rombachpartir de Heinrich Rombach

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Enio Paulo Giachini*

ResumoResumoResumoResumoResumo

Este artigo procura refletir sobre algumas indicações de H.Rombach, relacionadas com o tema do trabalho e suasimplicações. Trabalho, para ele, não é uma mera atividade humanacomo meio de produção e sustento, mas um processo deconfronto com as possibilidades exteriores de um si-mesmo; essaspossibilidades dizem respeito a cada um, representam o aguilhãode embate e a chance de autoconcreção. Trabalho estrutural visasempre melhoramento do todo, elevação do si mesmo. Só nessaconcretização é possível dar-se autêntica alegria, que ele chamade êxtase. Trabalho, enquanto estrutural, é um processo deconstante libertação, irrupção para novas possibilidades.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: trabalho; melhoramento; liberdade; êxtase;concreção; si-mesmo; estrutura.

.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

This article aims to reflect upon some indications of H. Rombachrelated with work themes and its implications. Work, forRombach, is not a mere human activity as a means of productionand survival, but a confrontational process with the exteriorpossibilities of a human being; and these possibilities are relatedto each individual, they represent the battle and the possibilitiesof self-realization. Structural works always seek the improvementof the whole, self-elevation. Only in this concretization it ispossible to have true happiness, that the author calls ecstasy.Work, while structural, is a process of continuous liberation,movement towards new possibilities.

KKKKKey Wey Wey Wey Wey Wordsordsordsordsords: work; improvement; freedom; ecstasy; own-self.

* Mestrado e doutoramento emfilosofia pelo IFCS-UFRJ. Filósofo epesquisador do Instituto de FilosofiaSão Boaventura (IFSB) e do InstitutoFranciscano de Antropologia eHumanidades (IFAN).

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IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Concebe-se, de pronto, trabalho como processo de produção e transformação debens. Trabalho é meio para a produção. O trabalho resulta em produtos.

Assim é concebido em nosso mundo usual. Sua importância e o interesse nele estãofocados num de seus elementos, no produto. “Aquilo que visas como fim em tua obra, issoé a obra.” E uma vez que o interesse está fixo ali, o trabalho é ainda apenas tolerado comoum mal necessário em vista de um bem necessário. O trabalho é assim comércio de troca.Todo o esforço da técnica moderna em buscar substituir o empenho do trabalho humanopor máquinas, mesmo sob a fachada de “melhoramento” das condições gerais de vida, nãopassa de uma corporificação dessa tolerância. A tolerância do trabalho se torna máquina.

Hoje, quando tentamos argumentar contra essa concepção, dizendo que o trabalhohumano implica igualmente um “trabalhar-se”, parece não fazermos outra coisa queincluir mais um produto na lista dos bens gerados pelo trabalho: a idéia de pessoahumana perfeita.

Vamos sondar essas nossas idéias usuais em confronto com algumas indicações depensamento de Rombach (Strukturontologie. Eine Phänomenologie der Freiheit. Freiburg/Munique: Karl Alber, 1971, p.245-262). Rombach diz que “o fenômeno do trabalho é o projetode exterioridade da estrutura”1. Definição estranha. Vamos ficar de olho, sondando a ver sesurpreendemos a direção de indicação dessas palavras: exterioridade, estrutura, trabalho.

De outro lugar, ele apresenta um outro indicativo do mesmo: “Trabalho significa queuma multiplicidade de significações é trazida para o nexo de uma sucessão, e quiçá de talmodo que o processo se estabelece e se firma em seu próprio desempenho”. Logo, o “produto”do trabalho não passa de um dos membros dessa corrente sucessória, visto que o produtodos produtos é a estrutura ou o próprio processo do trabalho. Todos os produtos e todos osmomentos do trabalho são apenas intermediários, em vista do próprio desempenho daestrutura. O desempenho dos momentos do trabalho é a exterioridade da estrutura.

Se bem compreendemos o texto, a exterioridade tem a ver com condições préviasdo trabalho. Exterior, porque não é interior. Há portanto um interior e um exterior daestrutura. A estrutura projeta-se para um exterior, como que para reunir as condições desua própria existência. Reunir essas condições possibilita seu existir. Seu existir é o subsumir(Aufarbeitung) essas condições de existência. O exterior é o estranho. O interior é o“intranho”. Não há intranho sem embate e sub-com-sumação do estranho. Mas o que seconstitui em estranho para a estrutura e tarefa do trabalho, e que pertence ao “intranho”,possui sua estranheza do dado prévio, que deve ser transformado em dado próprio,

1 Uma estrutura pode manifestar-se como um estado, uma pessoa, uma comunidade, uma ciência ou seja o que for. Étudo que se organiza com vida própria e pode desenvolver um processo de melhoramento. Na definição de Rombach,“estrutura caracteriza-se pela autogênese, pela auto-edificação, que possui sua irrupção, sua auto-estruturação exstática,seu ponto alto e seu declínio. Chamamos a esse processo de ‘vida’, não é porém só a forma de acontecimento dos‘seres vivos’, mas o ‘ente’ no seu todo” (ROMBACH, H. Die WDie WDie WDie WDie Welt als lebendige Strukturelt als lebendige Strukturelt als lebendige Strukturelt als lebendige Strukturelt als lebendige Struktur. Probleme und Lösungen derStrukturontologie. Freiburg in Breisgrau: Rombach Verlag, 2003, p.16).

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apropriado. É desse modo que se dá existência: Estrutura que se projeta para exterioridadede suas condições prévias, subsume-as, delas se apropria.

O universo do estranho ao si mesmo provoca a esse para um labor de apropriação.Não é um processo que se dá de modo direto e imediato, mas um processo deaproximação, que tem seu tempo próprio. No sermão 9, de Sermões alemães de MestreEckhart, tiramos um exemplo que nos pode ajudar a visualizar esse embate-trabalho.

De igual modo, como quando o fogo quer tomar a madeira e ser por sua veztomado pela madeira, encontra primeiro a madeira como o que não lhe [aofogo] é igual. Por isso, é preciso tempo. O fogo começa por aquecer e fazerarder <a madeira>, fazendo-a depois fumegar e estalar, porque esta lhe <amadeira ao fogo> é desigual; e então, quanto mais quente se tornar a madeira,tanto mais silenciosa e calma ela se torna, e quanto mais se tornar igual ao fogo,tanto mais se torna pacífica, até tornar-se toda e inteira fogo. Se o fogo deveassumir em si a madeira, então toda desigualdade deve ser expulsa2.

Apropriação se dá quando a madeira se “tornar toda e inteira fogo”. O exercíciodo empenho com a exterioridade busca desinstalar a estranheza e deixar se instaurar aigualdade onde antes não havia. Trata-se de um processo que implica “trabalho”. Não éum desempenho que vai por si e espontaneamente. Há um encontro e embate com odesigual. Não há fogo sem madeira; todavia são desiguais. O trabalho exerce um processode transformação da própria estrutura. Implica Aufarbeitung (trabalho de acolhimento,subsunção), Einarbeitung (trabalho de ruminação e incorporação, apropriação)Ausarbeitung (trabalho de esgotamento, de levar até o fim, toda multiplicidade significativada estrutura) e Umarbeitung (trabalho de trans-formação). No caso do fogo: aquecer,fazer arder, fazer fumegar, estalar... Significa um verdadeiro agir artesanal. O embatecorpo-a-corpo com a exterioridade, com as condições prévias, implica o auto-exercíciodaquele que executa o trabalho. Há implicações de toda ordem que aos poucos, com odesenrolar-se do embate, vão ganhando o direcionamento próprio da convocação dotrabalho: o adestramento dos movimentos elementares, a disponibilização e cordializaçãodo ânimo, o afinamento do tato e do tino na escuta da convocação da tarefa, o exercícioda paciência e fortalecimento da espera, o experimentar a alegria etc. O estranho nãoestá fora do movimento do trabalho, mas está dentro do círculo de seu a-fazer. É umtrabalho de limpidificação exterior e interior, de justo harmonizar interior e exterior. Trata-se de um real processo de aprendizagem. Muitos processos de ida e volta são necessáriosaté que aos poucos a madeira/matéria começa a se tornar mais quente, mais silenciosa ecalma, tornando-se por fim em fogo (fogo/madeira, madeira/fogo). “É quando a estruturaacolhe internamente o que lhe é estranho e até o faz como o seu mais próprio”. Aoacolher totalmente a madeira, tanto fogo quanto madeira já não são fogo e madeiranem madeira e fogo mas um entre-fogo-madeira. Essa consumação de uma apropriação

2 MESTRE ECKHART. Sermões alemãesSermões alemãesSermões alemãesSermões alemãesSermões alemães. Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006. v. 1. Sermão 11, p.98.

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não esgota seu a-fazer nessa batalha, pois exterior e interior se encobrem e se ocultamnovamente para dentro de seu próprio mistério, remetendo o si mesmo novamente aoestranhamento e à tarefa de re-criação.

Esse embate é próprio de todo e qualquer trabalho, de toda e qualquer profissão. É oprocesso por excelência da arte. Mas talvez arte seja o modus faciendi de todo e qualquerfazer. Arte é por excelência o movimento da estrutura e é o núcleo de toda profissão autêntica.

Segundo Rombach, aqui há níveis de pego (Ausgriff) da estrutura. Essa apropriaçãoe interpretação feita pela estrutura não é “livre”, mas obedece a condições prévias. Querdizer que uma estrutura é finita e limitada. Quem se organiza como estrutura não escolhepor si suas condições prévias. Todavia, essa finitude não é uma restrição mas um dom,no sentido de prender a um condicionamento, justo para dar condições de progredir. Ocondicionamento é a própria possibilidade de avanço e se faz presente do começo aofim do processo. A gravidade nos prende ao chão, mas é isso que nos possibilita caminhar.Não há fogo sem material, como não há profissão sem desempenho.

O grave da finitude e do limite das condições enfrentadas pelo trabalho do dia-a-dia carrega uma sombra de vislumbre da finitude e limite extremo, a morte. Rombachafirma que “a estrutura humana só pode ser considerada como alcançada com sucesso,quando ruminou (integrando) a morte, a qual lança suas sombras em todos os nossosdias como o ‘grave do trabalho’”. Poderíamos dizer que todo empenho acertado desuperação do limite imposto pelas condições estranhas da estrutura, ou seja, todo trabalhoé superação da morte. Como se dizia acima, reunir as condições da estrutura possibilitaexistência. Viver é integrar a morte.

TTTTTrabalho e melhoramentorabalho e melhoramentorabalho e melhoramentorabalho e melhoramentorabalho e melhoramento

O trabalho consolida a existência da estrutura. Ele visa a “melhora, melhoramento(Meliorisation). Melhoramento é o sentido fundamental do acontecer”. Será que podemosdizer: todo acontecer, enquanto é acontecer, é um direcionamento em vista de melhora?O acontecer é um melhorando? Do contrário não há acontecimento. Será esse o sentidoda parábola dos talentos, do Evangelho? Os talentos nos são dados sob responsabilidade,a cada um diversamente, de modo único e intransferível. O trabalho promove a melhora.Ao estabilizar-se, o processo de melhora dos talentos nada acontece, acontece o nada,se instaura a Unfuge, o desajuste, a piora, a decadência.

Nesse sentido nada é bom, e tudo precisa tornar-se melhor. O avançar torna-se umimperativo, mas não como um adiante e adiante insensato. Se o movimento se estabiliza,há um pioramento (Pejorisation), aquilo que foi alcançado se desfaz, sofre um enrijecimentoe se torna o contrário de si mesmo.

O adiante e adiante desatinado é sempre unilinear, chapado e raso. No sentido daestrutura, o avanço implica muitas vezes um recuo, a retomada, a reelaboração, oredirecionamento, até porque adiante e acima não tem caráter temporal e espacial,

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quantitativo, mas estrutural. Poderíamos dizer, é aprofundamento e ampliação da sintoniada própria estrutura. Quanto mais Aufarbeitung (trabalho de acolhimento, subsunção),Einarbeitung (trabalho de ruminação e incorporação, apropriação) Ausarbeitung (trabalhode esgotamento, de levar até o fim, toda multiplicidade significativa da estrutura) eUmarbeitung (trabalho de trans-formação), mais elevação, ou seja, mais interioridade,maior intensificação da vida própria da estrutura.

Rombach afirma: “Melhoramento é elevação. Um acontecimento se modifica logoem acontecimento estrutural quando se encontra uma possibilidade de elevação”. Elevaçãoé um verdadeiro achado (Findung) um achado originário, uma invenção (Erfindung) daestrutura por si mesma.

Achado, invenção, descoberta, carregam o encanto da surpresa, do novo inusitado,mas de algum modo aguardado. É o próprio empuxo velado do trabalho da estrutura.

Esse processo de melhorização que se dá na elevação é o movimento estruturantecaracterístico dos sermões eckhartianos. Sempre que fala de elevar-se acima de tempo ede lugar, Eckhart está falando desse movimento. Não é um processo de elevação dentrode uma ordenação sistemática pré-estabelecida, em graus e degraus, até alcançar oúltimo e sumo ente. Nos faz desconfiar ser um processo imanente à experiência humanade superação e elevação, a cada vez total, pois também aqui mora o divino.

Vejamos:

“Coloca-te no portal!” Os membros de quem ali se encontra estão coordenados.Essa palavra quer dizer que a parte suprema da alma deve estar erguida,firmemente disposta. Tudo o que está ordenado deve ordenar-se sob o que estáacima de si... Por isso a alma deve recolher-se e elevar-se e ser um espírito3.

Os membros estarem coordenados, a alma estar erguida, sob o que está acima desi... o fluxo do acontecer, enquanto acontecer, é essa elevação. O que não alcança esseelevar-se não acontece, des-acontece, é nada.

Se nos elevarmos acima de todas as coisas e tudo que está em nós for tambémelevado, nada então nos oprime. O que está abaixo de mim não me oprime. Se eubuscasse puramente só a Deus, a modo de nada haver acima de mim a não serDeus, nada então me seria pesado e eu não me perturbaria tão rápido. SantoAgostinho diz: Senhor, quando me volto para ti, me é retirado todo peso, sofrimentoe tribulação. Quando damos um passo para além do tempo e das coisas temporais,somos livres e alegres todo o tempo, e assim se dá a “plenitude do tempo”4.

TTTTTrabalho e êxtaserabalho e êxtaserabalho e êxtaserabalho e êxtaserabalho e êxtase

No começo, falávamos de trabalho como meio de produção. Afazer árduo etrabalhoso, pesado e difícil. É o trabalho em vista de... um bem; este em vista de... outracoisa... numa remissão sem con-tenção, sem con-tentamento. É quando trabalho e êxtaseparecem ser contrários.

3 MESTRE ECKHART. Op. cit., sermão 19, p.133.

4 MESTRE ECKHART. Op. cit., sermão 11, p.98.

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64 GIACHINI, Enio Paulo. Trabalho e si mesmo. Reflexões a partir de Heinrich Rombach

“O homem ama tanto trabalhar bem como mal... e até acredito que a primeira

maneira lhe é muito mais agradável, como é mais em conformidade com sua natureza...

E, no entanto, quanto mais feliz seria a humanidade se o trabalho em vez de ser castigo

fosse a finalidade!”5.

Adentrar um trabalho exige preparação, ordenar os membros a uma elevação.

Adentrando num trabalho, seja físico ou espiritual, esse desenvolve uma dinâmica que

nos toma e nos carrega. “Ele desenrola garras e passos, ‘leva consigo’ o factível; assim

‘flui’ e avança ‘alegremente’”.

Os antigos usavam o termo “complacência” para caracterizar o que Rombach

chama de êxtase. O êxêxêxêxêxtase, estar fora, além, traz referência ao dar-se de um evento que

empurra o sistema de condições prévias para uma nova luz, para uma nova configuração.

Visto de fora, esse processo só pode ser caracterizado negativamente como nãonãonãonãonão-estático,

foraforaforaforafora do estático, alémalémalémalémalém-do-estacionário. Esse novo satisfaz porque vê a si mesmo reafirmado

numa reverberação.

O trabalho dimensiona o aspecto de sentido da realidade, traz sentido, vivifica o

real. É só depois disso que ele cria os meios para “viver”. Com isso se dá uma composição

de interior e exterior; o interior se abre ao estranhamento das condições que o invocam,

adota, elabora, se apropria, e solta novamente essas condições, ou antes, esse “exterior”

se ausenta novamente, de volta, para dentro do estranho. Assim prossegue o movimento

de familiarização-estranhamento, dimensionados numa disposição de sentido. O

marceneiro que prepara a madeira para confeccionar um utensílio se vê às voltas sempre

de novo com o material indeterminado da madeira para novas elaborações. Junto com

“a madeira vêm todos os condicionamentos do selvagem, tosco e sem forma – material.

Reerguer a si mesmo para a dinâmica e disposição para esse afazer, ordenando todo seu

ser para isso, pertence também ao movimento de retomada do estranho. Ver-se às voltas

sempre de novo é o aguilhão de pertença a esse estranhamento. Perfaz o sentido de

mundo do marceneiro. Quando esse trabalho não é acolhimento mas desprezo do exterior,

o estranhamento se torna alienação, e o si mesmo, o interior, torna-se o “exterior do

exterior”. Rombach parece estar descrevendo aqui algo decisivo para o mundo do trabalho.

Quando o trabalho atinge a sua vocação verdadeira, atina e acerta com seu destino e lhe

corresponde, se dá uma disposição e composição entre si mesmo-estranhamento que

sempre de novo renova e reafirma a si mesmo. O trabalho alimenta a si mesmo da

alegria da reafirmação. Ele faz sentido. Caso contrário, o si mesmo se vê impelido a

recolocar-se na fuga de ser apenas o “exterior do exterior”, é uma reconvocação para

uma re-escuta e recolocação do si mesmo.

5 RODIN, A. A arteA arteA arteA arteA arte. Diálogos com Paul Gsell. São Paulo: Chrayon, p.78.

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artigos

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TTTTTrabalho e totalidaderabalho e totalidaderabalho e totalidaderabalho e totalidaderabalho e totalidade

Nesse sentido, todo e qualquer trabalho, profissão tem sua razão de ser. Prestarcontas corresponde a essa escuta. Não há exteriormente um trabalho mais nobre queoutro. Ou, melhor dizendo, trabalho não se refere mais a um tipo de atividade mas a ummodo de ser dentro de uma atividade, um modo de perfazer a atividade. Todos os demaisqualificativos do trabalho, como útil, produtivo, inútil, improdutivo estão colocados numainterpretação que coloca como o determinante do trabalho um elemento do mesmo, oproduto. Mas como medir a fecundidade do trabalho? “Tomado fenomenologicamente,trabalho consiste também na rentabilidade dos mais extremados âmbitos exteriores e daauto-relação com os mesmos.” Assim, o mínimo feito está aberto e em sintonia com otodo. Na medida em que se dá abertura, estranhamento e elevação, a existênciaexperimenta a vitalidade de si mesma. É a dinâmica do pouco, passo a passo, vagaroso,que recoloca todo feito na dinâmica do afazer. É quando pela atividade e atuação umaexistência cresce em intensidade da própria vida e não em quantificação do saber e dopoder. Assim, o trabalho tem sua própria dinâmica de repercussão, rentabilidade eprodutividade. É a própria estrutura que remete sua auto-realização para seus âmbitosde convivência, e na medida de sua autenticidade essa reverberação se torna inteira emtodos os níveis e direcionamentos que lhe dizem respeito. O processo de tornar-se inteiroé experimentado cada vez como libertação.

TTTTTrabalho e liberdaderabalho e liberdaderabalho e liberdaderabalho e liberdaderabalho e liberdade

Segundo Rombach, liberdade não é um estado, mas uma “categoria de passagem”.O que significa, liberdade só existe como libertação, “emancipação”. Como no processode melhoramento, ao estabilizar-se, a liberdade decai e torna-se em aprisionamento.Voltada para o futuro, a estrutura, o si mesmo só experimenta liberdade no movimentode irrupção. Seu confronto e embate com as condições exteriores invoca e convoca paraa consumação do novo, “topar com novas possibilidades”. Repercute aqui o que se diziaantes a respeito de trabalho e totalidade. “O descobrimento de um novo futuro é sempreo descobrimento de um novo passado”. A descoberta de novas condições externas estápari passu com a descoberta de nova interioridade. O que significa que não se dá umabandono do passado ou das condições antigas do si mesmo mas uma retomada pelaelevação. A vida do passado não é um depósito já estacionado e pronto, ido. É sempre abagagem do si mesmo na direção de reinventar a própria vida, reinventar a si mesmo. Éo que se diz no texto com o conceito de coerência. “A liberdade está ligada à condiçãoda coerência”. Não se dá uma libertação, por saltos, por sobre, passando ao largo daprópria história. Mas como libertação das potencialidades da história própria. A liberdadepersiste na sondagem e aproveitamento das possibilidades de melhoramento. Os caminhoshumanos, por mais difíceis, jamais estão fechados. Vida é a possibilitação do aberto.

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66 GIACHINI, Enio Paulo. Trabalho e si mesmo. Reflexões a partir de Heinrich Rombach

Seja qual for o conteúdo emprestado a essas possibilidades, a esperança que cada pessoaencontra em sua vida denuncia essa possibilidade para o aberto e novo. Denunciaigualmente uma identidade com esse novo, visto que a esperança sempre vemacompanhada de alegria. Esse movimento coerente não pode ser, não é privilégio dealguns, de um grupo, de uma facção. Enquanto coerente, seu direcionamento visa otodo, seja de um indivíduo, de um grupo ou de uma sociedade. O movimento de libertaçãoé igualmente movimento de totalização, inteirização.

TTTTTrabalho e concretizaçãorabalho e concretizaçãorabalho e concretizaçãorabalho e concretizaçãorabalho e concretização

Nessa dinâmica de melhoramento e alavancamento ou elevação do todo do simesmo, na busca de inteirização, é im-portante o processo de correção. Melhoramentosó surge através de redirecionamento, reorientação. Está implícita aqui e assumida apossibilidade do erro. “Os erros possuem um caráter indicativo, são chances de experiência,e na realização das possibilidades de experiência, sua função é transformada por assimdizer em positiva.” Não é possível aplicar uma “moral” ao si mesmo, à estrutura, queprovenha de fora. A moralidade do si mesmo é a busca da concreção, concretização.Orientação, medida, comparação, autocorreção redirecionamento devem provir semprede uma escuta do si mesmo. Mas como evitar que aqui não se dê uma confirmação dosubjetivismo, intimismo, um fazer o que bem se entende, o que dá na telha? Se não hápadrão de medida exterior...? O conceito de coerência implica novamente essa dificuldadeainda mais desafiadora de atinar para a convocação e o movimento de concreção do simesmo. Esse deve ser sempre um movimento de totalidade, uma libertação da e rumo àtotalidade, a inteireza. Levar à efetivação o projeto da própria existência. É precisamentepor isso que se torna em autêntico movimento de libertação do subjetivismo. Osubjetivismo não é superado pela adoção de conceitos, idéias, ideais mais elevados, dasociedade, da religião, da filosofia..., mas pela concreção do si mesmo. É só essa quepode abrir para o novo, para o futuro de novas possibilidades e possibilidades novas.

A título de conclusão desse apanhado de idéias/indicações, essa estória melhorilustra o pouco que se quis dizer. Todos os títulos/conceitos/indícios mal elaborados acima,aparecem melhor trabalhados abaixo.

Destrinchando um boiDestrinchando um boiDestrinchando um boiDestrinchando um boiDestrinchando um boi

O cozinheiro do Príncipe Wen Hui estava destrinchando um boi.Lá se foi uma pata; pronto, um quarto dianteiro.Ele apertou com um dos joelhos, o boi partiu-se em pedaços.Com um sussurro, a machadinha murmurou como um vento suave.Ritmo! Tempo!Como uma dança sagrada, como “a floresta de arbustos”.Como antigas harmonias!

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”Bom trabalho”!, exclamou o Príncipe.”Seu método é sem falhas”!”Método?”, disse-lhe o cozinheiro, afastando a sua machadinha.”O que eu sigo é o Tao, acima de todos os métodos!

Quando primeiro comecei a destrinchar bois, via diante de mim o boi inteiro.Tudo num único bloco.

”Depois de três anos, nunca mais vi este bloco.Via as suas distinções.

”Mas, agora, nada vejo com os olhos.Todo o meu ser apreende.Meus sentidos são preguiçosos.O espírito livre para operar sem planos segue o seu próprio instinto,Guiado pela linha natural, pela secreta abertura, pelo espaço oculto.Minha machadinha descobre seu caminho.Não corto nenhuma articulação, não esfacelo nenhum osso.

”Todo bom cozinheiro precisa de um novo facão, uma vez por ano – ele corta.Todo cozinheiro medíocre precisa de um novo cada mês – ele estraçalha!”Eu uso a mesma machadinha há dezenove anos.Cortou mil bois.Sua lâmina é tão fina como se fosse afiada há pouco.

”Não há espaços nas articulações;A lâmina é fina e afiada:Quando sua espessura encontra aquele espaço,Lá você encontrará todo o espaço de que precisava!Ela corta como uma brisa!Por isso tenho esta machadinha há 19 anos, como se fora afiada há pouco!

”Realmente, há, às vezes, duras articulações.Vejo-as aparecendo, vou devagar, olho de perto,Seguro a machadinha atrás, quase não movo a lâmina, e, vapt!A parte cai como um pedaço de terra.

”Então retiro a lâmina, fico de pé, imóvel,E deixo que a alegria do trabalho penetre.Limpo a lâmina e ponho-a de lado”.

Disse o Príncipe Wan Hui:”É isso mesmo! Meu cozinheiro ensinou-me como devo viver a minha própria vida!”.6

6 MERTON, T. A via de Chuang TzuA via de Chuang TzuA via de Chuang TzuA via de Chuang TzuA via de Chuang Tzu. 8.ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p.62-64.

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ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

ECKHART, Mestre. Sermões alemãesSermões alemãesSermões alemãesSermões alemãesSermões alemães. Tradução e introdução de: Enio Paulo Giachini.Bragança Paulista: EDUSF; Petrópolis: Vozes, 2006.

MERTON, T. A via de Chuang TzuA via de Chuang TzuA via de Chuang TzuA via de Chuang TzuA via de Chuang Tzu. 8.ed. Petrópolis: Vozes, 1986.

RODIN, A. A arteA arteA arteA arteA arte: dialogos com Paul Gsell. São Paulo: Chrayon [s.d.]

ROMBACK, H. Substanz, system, strukturSubstanz, system, strukturSubstanz, system, strukturSubstanz, system, strukturSubstanz, system, struktur: die Ontologie des Funktionalismus und derphilosophische Hintergrund der modernen Wissenschaft. Freiburg: K. Albert, 1965.

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A Ética Kantiana e o PrimadoA Ética Kantiana e o PrimadoA Ética Kantiana e o PrimadoA Ética Kantiana e o PrimadoA Ética Kantiana e o Primadoda Autonomiada Autonomiada Autonomiada Autonomiada Autonomia

Kantiana Ethics and the PriorytyKantiana Ethics and the PriorytyKantiana Ethics and the PriorytyKantiana Ethics and the PriorytyKantiana Ethics and the Priorytyof Autonomyof Autonomyof Autonomyof Autonomyof Autonomy

Ítalo Kiyomi Ishikawa*

ResumoResumoResumoResumoResumo

No presente artigo tem-se por objetivo apresentar a ética de Kant eressaltar seus princípios metafísicos, e visa-se demonstrar, também,os fundamentos racionais do Direito e do Estado. A ética deontológicade Kant estabelece o princípio formal do imperativo categórico, estesomente é possível através da autonomia da vontade humana, que étranscendentalmente livre, capaz de determinar a si mesma. A moralcristã, através de sua progressão ininterrupta a um reino inteligível, évalidada pelo projeto kantiano, pois ambos os sistemas constitueméticas do merecimento, uma vez que o sujeito moral merece ser feliz,embora a ética não seja uma doutrina da felicidade. O Direito e oEstado possuem um fundamento metafísico, a idéia universal enecessária de proteção e garantia das liberdades individuais. A éticade Kant culmina na necessidade de paz universal entre as nações, naformação de uma federação internacional; tal aspiração pela pazconstitui uma exigência moral da razão.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: Immanuel Kant; autonomia; liberdade;esclarecimento; direito; estado; paz.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

The present article seeks to present Kant’s ethics and to highlight itsmetaphysical principles, and seeks to demonstrate also the rationalfundamentals of Law and State. The Deontological ethics of Kantestablished the formal principal of categorical imperative, this is onlypossible through the autonomy of the human will, which istranscendentally free, capable of self determination. The Christianmorals, through continuous progression to and intelligible kingdom,is validated by the kantian project, because both systems make upethics of deserving, because the moral subject deserves to be happy,although the ethics is not one of ultimate happiness. The Law andthe State have metaphysical fundamentals, the universal and necessaryidea of protection and guarantee of individual liberties. Kant’s ethicsculminate with the need for universal peace among nations in theformulation of international federation, this aspiration for peace makeup a moral pre-requisit of reason.

KKKKKey Wey Wey Wey Wey Wordsordsordsordsords: Immanuel Kant; autonomy; freedom; enlightenment;right, state, peace.

* Licenciado em filosofia pela FAE -Centro Universitário Franciscano,aluno de pós-graduação emfundamentos de ética pela PUC-PR.O presente artigo foi elaboradooriginalmente a partir trabalho deconclusão de curso apresentado àentão Faculdade de Filosofia SãoBoaventura da FAE - CentroUniversitário Franciscano.e-mail: [email protected][email protected]

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70 ISHIKAWA, Ítalo Kiyomi. A ética kantiana e o primado da autonomia

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

A construção da filosofia transcendental de Immanuel Kant erigiu uma éticafundada no valor da liberdade da vontade humana. O homem é capaz de dar a si mesmosuas próprias leis, e a moralidade é conferida pela universalização racional da máxima daação. Agir moralmente é um dever dado universal e necessariamente pela razão.

No projeto filosófico de Kant a moral cristã é validada: Deus, imortalidade da almae liberdade, embora não possam ser conhecidos teoricamente, são assumidos comoexigências racionais da ética. A deontologia da ética kantiana a exime de contemplar afelicidade como finalidade da ação moral, a ética é antes um merecer ser feliz.

O Estado e o Direito, como foram concebidos por Kant, possuem fundamentosmetafísicos, isto é, da razão pura. O contrato social, através do qual acontece a passagemdo estado de natureza para o estado civil, é concebido como uma idéia da razão onde oconsenso é dado sobre a limitação e a defesa das liberdades individuais. Kant oferecepressupostos para o Estado Liberal ao conceber a liberdade como o direito naturalfundamental, e o Estado Civil legitima-se a partir de sua proteção.

A saída do estado de natureza é analogamente válida entre os países: o cume daética de Kant é a necessidade moral de paz entre as nações livres. Para que a guerra sejaefetivamente evitada, deve-se criar uma confederação internacional que legitime asrelações entre os povos.

No presente trabalho, apresenta-se a ética de Kant como uma teoria e prática daliberdade, uma ética do esclarecimento, do uso da maioridade no pensamento. Éticaque somente é possível pela liberdade metafísica do ser humano, este, mediante a puraespontaneidade de sua vontade, é capaz de determinar e escolher a si mesmo.

1 A herança da filosofia teórica1 A herança da filosofia teórica1 A herança da filosofia teórica1 A herança da filosofia teórica1 A herança da filosofia teórica

A obra Crítica da razão pura (1781) de Immanuel Kant (1724-1804) operou aRevolução Copernicana do conhecimento: através da construção da filosofiatranscendental, Kant erige a subjetividade como o centro do conhecimento humano.Examinando as possibilidades e limites do conhecimento, chega à conclusão de que a"razão conhece segundo um projeto seu" (KANT, 1997a, p.xx). Através da distinção feitaentre fenômeno e noumenon, a metafísica não pode ser aceita como ciência, pois asproposições metafísicas extrapolam os limites da experiência, suas proposições nãocontemplam o viés sintético a priori do conhecimento verdadeiro. Porém, na Dialética darazão pura, nas aporias transcendentais em que a razão se encontra, Kant encontra umhorizonte onde a metafísica pode ser pensada, embora não possa ser conhecida.

A terceira antinomia da razão pura possui uma tese e uma antítese: a tese asseveraque a liberdade humana, puramente transcendental, pode iniciar por si mesma umasérie de fenômenos. A antítese, da esfera do entendimento, afirma que tudo na natureza

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está associado à ordem de causa e efeito. A razão pura não pode estabelecer a realidade

da liberdade, pois só é real o que concorda com as condições materiais da experiência.

Tampouco pode provar as possibilidades da liberdade, pois esta depende das condições

formais da experiência. A conclusão de Kant, a partir da via teórica, é de que a liberdade

não é impossível, isto é, não está em contradição com o determinismo material. Se não

é possível comprovar a realidade da liberdade, ao menos é possível pensar sua existência

(cf. KANT 1997a, p.406-427). É a partir da liberdade transcendental do homem que será

fundada a ética de Kant: a vontade humana, como pura espontaneidade, é capaz de

determinar a si mesma e iniciar uma série de causas.

A liberdade só é possível de ser pensada a partir da teoria do duplo caráter do

homem: a tese da terceira antinomia é verdadeira em relação à razão, a partir de sua

liberdade transcendental; a antítese é verdadeira em relação ao entendimento, a partir

do caráter empírico do homem. Este, entre as coisas a serem conhecidas, aparece como

fenômeno na natureza, mas em nível de ética é sempre noumenon, inteligível, sujeito

transcendental, ou seja, capaz de agir segundo a não-causalidade da vontade.

1.1 O princípio da boa vontade e o dever

A fim de sistematizar a ética apenas apontada pela Crítica da razão pura, Kant

publica a Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), a Crítica da razão prática

(1788) e a Metafísica dos costumes (1797). Preliminarmente, na Fundamentação, Kant

reconhece que a ética "não se deve buscar em nenhuma outra parte senão numa filosofia

pura" (KANT, 1997b, p.17), isto é, trata-se de uma metafísica dos costumes, pois a

metafísica, incapaz de ser conhecida no projeto teórico, é encontrada como fundamento

da ética no sujeito da ação. "A metafísica dos costumes deve investigar a idéia e os

princípios duma possível vontade pura, e não as acções e as condições do querer humano

em geral" (KANT, 1997B, p.17). A investigação pelos fundamentos da ética é a busca

pelo "bom sem limitação" (KANT, 1997B, p.21) da ação moral. Este princípio supremo é

encontrado na boa vontade.

A ética de Kant é deontológica, isto é, sua preocupação recai sobre os princípios da

ação moral, ou seja, seus motivos: a boa vontade não possui outro fundamento

determinante, mas ela mesma é capaz de determinar a escolha. A boa vontade expressa a

"incondicionada indeterminação humana" (HECK, 2004, p.508). A vontade humana, porém,

é contingente; ao lado de um querer bom, há outros interesses, a vontade humana é

afetada por inclinações, e, somente onde a vontade humana é contingente, a boa vontade

se configura como dever. Através desta, a moralidade é constituída "na forma de

mandamento, do desafio, do imperativo" (HÖFFE, 2005, p.193). Na interpretação de Höffe:

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Só se pode falar de dever onde há, ao lado de um apetite racional, ainda impulsosconcorrentes das inclinações naturais, onde há, ao lado de um querer bom,ainda um querer ruim ou mau. Esta circunstância é o caso em todo ente racionalque é dependente também de fundamentos determinantes sensíveis. Tal enteracional sensível ou finito é o homem. Na medida em que Kant elucida amoralidade com a ajuda do conceito de dever, ele persegue o interesse decompreender o homem como ente moral (HÖFFE, 2005, p.193).

Há três possibilidades de agir a partir do dever (cf. KANT, 1997B, p.27-28). Aprimeira forma é agir conforme ao dever; tal ação não é moral, porque o motivo da açãoestá em quaisquer outros interesses menos na vontade do sujeito. A segunda forma éagir conforme ao dever motivado por uma inclinação subjetiva, e tal ação ainda não émoral, porque o móvel está em outra coisa que ainda não é ação por si mesma. A açãomoral, finalmente, é aquela assumida simplesmente por dever, sem motivação externaou inclinação subjetiva. Para a ética de Kant, o valor da ação moral não está na meta aque se possa pretender, mas somente na motivação, na máxima que a determina. A éticadepende "...unicamente do princípio do querer, segundo o qual a ação foi produzida,sem tomar em conta nenhum dos objetos da faculdade apetitiva" (KANT, 1997b, p.30).

Entre o ilimitadamente bom da vontade boa e a ação por dever deve haver umterceiro termo para mediar sua união: o sentimento de respeito. De fato, o homemnecessita de um móvel para agir, e nenhum móvel tomado da sensibilidade pode serqualificado como ético; não resta, portanto, "outro móvel para a ação de quem queiraagir por dever senão o respeito à lei que lhe ordena cumprir o dever" (PASCAL, 2005,p.122). Em nota, Kant esclarece que não se trata de algo obscuro, embora seja umsentimento. O respeito não é recebido por influência externa ao sujeito; ao contrário, é"um sentimento que se produz por si mesmo através de um conceito da razão" (KANT,1997B, p.32), portanto muito distinto da inclinação e do medo.

1.2 O aspecto imperativo da ética

A ética trata de "princípios íntimos que não se vêem" (KANT, 1997B, p.40), e amoralidade nunca pode ser apreendida a partir da experiência, pois esta jamais poderiaconferir a universalidade e a necessidade que a moral exige. Se, por um lado, não sepode "prestar pior serviço à moralidade do que querer extraí-la de exemplos", por outro,"a razão por si mesma e independentemente de todos os fenômenos ordena o que deveacontecer" (KANT, 1997b, p.41).

Diante de uma vontade humana contingente, o dever se apresenta, junto comsuas leis morais objetivas e derivadas de princípios racionais, como obrigação. "Arepresentação de um princípio objectivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se imperativo" (KANT,1997b, p.48). O princípio objetivo do dever universal, representado diante de uma vontadecontingente, assume o caráter de mandamento, de imperativo. Uma vontade que fosse

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plenamente racional, uma vontade perfeita, não se poderia representar como obrigadaa agir conforme ao ideal prático da razão. Os imperativos são fórmulas "para exprimir arelação entre leis objectivas do querer em geral e a imperfeição subjectiva deste ou daqueleser racional, da vontade humana, por exemplo" (KANT, 1997b, p.49).

Kant conceitua o imperativo categórico na oposição e superação aos imperativoshipotéticos. Esses também são mandamentos da razão, mas possuem uma finalidadefora de si mesmos, movem-se a partir da máxima que reza que "aquele que quer os finsquer os meios".

O imperativo hipotético apresenta a necessidade prática de uma ação que visaatingir uma finalidade. O imperativo hipotético é a inclinação prática que determina avontade em direção a algo. "Os (imperativos) hipotéticos representam a necessidadeprática de uma ação possível como meio para se alcançar qualquer coisa que se quer (ouque é possível que se queira)" (KANT, 1997b, p.50). Nos imperativos hipotéticos, sejameles de destreza (busca de fins contingentes) ou de prudência (busca da felicidade), adeterminação da vontade se inclina em direção a algo, a racionalidade é nesses casosparcial e contingente.

Kant demonstra a impossibilidade de fundar, num nível transcendental, a moralsobre os imperativos ditos hipotéticos, eles não comportam a universalização necessáriapara o projeto kantiano.

O imperativo categórico marca a superação dos imperativos hipotéticos, pois

só a lei traz consigo o conceito de uma necessidade incondicionada, objectiva econseqüentemente de validade geral, e mandamentos são leis que têm de seobedecer, quer dizer que se têm de seguir mesmo contra a inclinação (KANT,1997, p.53).

A natureza do imperativo categórico é sintética a priori, pois seu fundamento estána razão pura e se constitui na experiência: a máxima é dada pela razão, mas somentena ação ele pode se constituir.

A formulação do imperativo categórico é: "Age apenas segundo uma máxima talque possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal" (KANT, 1997B, p.59).Trata-se de um princípio objetivo incondicionado, isto é, aquilo a que todo agente racional,independentemente de seus desejos e fins particulares, obedeceria necessariamente se arazão tivesse completo controle sobre suas paixões e inclinações. O imperativo categóricosó se configura como tal porque é universalizável, tem de ser válido para todos os agentesracionais, possui um caráter objetivo. O imperativo categórico não determina "conteúdos"morais, mas preocupa-se tão-somente com a forma da obrigação moral. Entre a leimoral da razão e a ação do sujeito, Kant introduz a máxima, que é o

princípio subjetivo da ação, aplicável não somente a uma situação, mas adiferentes situações da mesma espécie. A máxima tem um aspecto material porconsiderar as circunstâncias, os fins e as conseqüências das ações individuais,mas deve apresentar a forma da universalidade. Quer dizer, sua validade depende

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da possibilidade dela transformar-se em lei universal. Pelo conteúdo ou matéria,conhecemos o lado concreto da moral e pela sua forma, há uma proximidade damáxima com a lei moral como tal (GUIMARÃES, 2004, p.522-523).

A pergunta "como é possível um imperativo categórico?" é respondida através daliberdade e da autonomia. Aqui se chega ao escopo da ética de Kant, pois o "citadoprincípio da autonomia é o único princípio da moral" (KANT, 1997b, p.85-86).

2 Liberdade e autonomia: os fundamentos da ética2 Liberdade e autonomia: os fundamentos da ética2 Liberdade e autonomia: os fundamentos da ética2 Liberdade e autonomia: os fundamentos da ética2 Liberdade e autonomia: os fundamentos da ética

O imperativo categórico só é possível porque entre vontade, que "é uma espéciede causalidade dos seres vivos enquanto racionais" (KANT, 1997b, p.93) e dever, que é "anecessidade objectiva de uma acção por obrigação" (KANT, 1997b, p.84) tem que haverum terceiro termo: a liberdade. Liberdade é, pois, a capacidade da vontade de iniciaruma causalidade "independentemente de causas estranhas que a determinem" (KANT,1997b, p.93). Tal definição de liberdade da vontade por enquanto só se apresenta emseu aspecto negativo, ou seja, da liberdade da vontade não ser determinada por qualquercoisa exterior a ela. Tal conceito de liberdade é puramente a priori. Para Kant, "a definiçãode liberdade que acabamos de propor é negativa e portanto infecunda para conhecersua essência; mas dela decorre um conceito positivo desta mesma liberdade, que é tantomais rico e fecundo" (KANT, 1997b, p.93), ou seja, uma definição sintética.

Analiticamente, o conceito de causa implica um efeito; esse conceito de causalidadese configura como lei. Ora, a liberdade enquanto capacidade da vontade de iniciar por simesma uma causalidade traz em si uma espécie de lei, pois uma vontade absolutamentelivre seria um absurdo (cf. KANT, 1997b, p.94). As leis da liberdade da vontade não sãoqualquer tipo de lei, dadas de fora do sujeito, mas "que outra coisa pode ser, pois, aliberdade da vontade senão autonomia, isto é a propriedade da vontade de ser lei para simesma?" (KANT, 1997b, p.94). Se se afirma que "a vontade é, em todas as acções, umalei para si mesma" (KANT, 1997b, p.94), e uma vontade boa sem limitação "caracterizaapenas o princípio de não agir segundo nenhuma outra máxima que não seja aquelaque possa ter-se a si mesma por objecto como lei universal" (KANT, 1997b, p.94), conclui-se que tal definição de liberdade da vontade é a mesma do imperativo categórico: "Ageapenas segundo uma máxima que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne leiuniversal" (KANT, 1997b, p.59). Para Kant, portanto, "vontade livre e vontade submetidaa leis morais são uma e a mesma coisa" (KANT, 1997b, p.94).

Resumidamente e em outros termos, os pressupostos teóricos lançados na Críticada razão pura continuam válidos na filosofia prática. Kant estabeleceu que só é possívelconhecer o fenômeno, que começa na experiência. Fazer experiência da liberdade seriaatribuir-lhe uma causa, o que comprometeria os princípios do projeto moral, um princípioque tem de ser incondicionado. Ora, a liberdade não pode ser "conhecida" no viés teóricoda Crítica da razão pura, mas tão-somente conhecida na prática moral. O resultado

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dessa construção conceitual é que a liberdade não pode ser provada teoricamente, mastem que ser pressuposta na prática moral. O homem tem que pressupor-se como livrepara que sejam possíveis os imperativos categóricos. O princípio de que a vontade é leipara si mesma é uma proposição sintética a priori; a ligação entre vontade pura e vontadeempírica, isto é, entre uma vontade absolutamente boa e uma vontade afetada pelasinclinações só é possível por meio da liberdade.

Por fim, se o imperativo categórico é possível mediante o conceito positivo daliberdade, a pergunta pela possibilidade desse mesmo imperativo é imperscrutável, pois arazão metafísica é superior ao entendimento, e tal questionamento extrapola os limites doconhecimento: "como seja possível esse pressuposto mesmo (a autonomia), isso é o quenunca se deixará jamais aperceber por nenhuma razão humana" (KANT, 1997b, p.114).

2.1 Felicidade e virtude

Para Kant, a ética não pode ser uma doutrina da felicidade, assim como Aristótelesa concebeu, mas a ética é um merecer ser feliz. Kant chega a afirmar que "o exato opostodo principio da moralidade é tornar o princípio da felicidade própriaprópriaprópriaprópriaprópria fundamentodeterminante da vontade [...]" (KANT, 2002, p.58).

A lei moral está muito acima da máxima que busca a felicidade pessoal, o amor desi ou a prudência: "A máxima do amor de si (prudência) apenas aconselha aconselha aconselha aconselha aconselha; a lei damoralidade ordenaordenaordenaordenaordena. Há, porém, uma grande diferença entre aquilo que nos aconselhaaconselhaaconselhaaconselhaaconselha eaquilo para o qual somos obrigadosobrigadosobrigadosobrigadosobrigados" (KANT, 2002, p.60). A razão prática e suas leis sãosuperiores à máxima da felicidade porque a ação moral está na eminente possibilidadede todos: todos os homens podem agir moralmente aqui e agora, enquanto que a buscada felicidade não está na eminente possibilidade de todos, e tampouco a felicidadegeral, como visto acima, tem um único objetivo entre os homens (cf. KANT, 2002, p.61).

Através de sua ética, Kant valida a moral cristã; com efeito, a forma moral dospreceitos evangélicos é a mesma da ética Kantiana: ambos os sistemas fundam-se sobrea autonomia da vontade e aspiram ao progresso moral ininterrupto, rumo ao infinito.Para Kant, a lei moral "concorda perfeitamente com a possibilidade de um tal mandamento:ama a Deus acima de tudo e teu próximo como a ti mesmoama a Deus acima de tudo e teu próximo como a ti mesmoama a Deus acima de tudo e teu próximo como a ti mesmoama a Deus acima de tudo e teu próximo como a ti mesmoama a Deus acima de tudo e teu próximo como a ti mesmo" (KANT, 2002, p.134). Kantreconhece que é impossível amar a partir da exigência de uma lei, mas, na compreensãode Kant, a proposição evangélica refere-se a um amor prático, que tenciona que secumpram os mandamentos divinos de bom grado (cf. KANT, 2002, p.134).

Os princípios da razão prática pura se conformam com a moral do Evangelhoporque esta não é restritiva quanto aos conteúdos, mas erigi-se apenas numa forma queaspira a progressão ao infinito. O homem, possuidor de vontade contingente, vê-se, porum lado, determinado a agir moralmente pela influência da lei moral; e, por outro lado,se vê submetido aos apetites e inclinações da sensibilidade. A moral evangélica é válidaporque valoriza a disposição: mesmo que não seja plenamente atingida, a perfeiçãomoral não pode ser renunciada.

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Portanto aquela lei de todas as leis, como todo o preceito moral do evangelho,apresenta a disposição moral em toda a sua perfeição, do modo como elaenquanto ideal de santidade não é atingível por nenhuma criatura; contudo é oarquétipo do qual devemos aspirar aproximar-nos e, em um ininterrupto masinfinito progresso, aspirar a ela igualar-nos (KANT, 2002, p.134-135).

No projeto teórico da Crítica da razão pura, a razão se encontrou em questõesmetafísicas em que não obteve soluções: Deus, imortalidade da alma e liberdade nãopodem ser conhecidos. Mas o que fora antinomia agora se converte em postulado:Deus, imortalidade da alma e liberdade são exigências da razão prática pura sob o idealdo sumo bem. A razão, portanto, "procura a totalidade incondicionada do objeto darazão prática pura sob o nome de sumo bemsumo bemsumo bemsumo bemsumo bem" (KANT, 2002, p.176).

A lei moral é a condição suprema do conceito de sumo bem, que se configuracomo único objeto que determina a vontade, pois o conceito de sumo bem já estáincluído e pensado numa vontade pura:

Mas é evidente que, se no conceito de sumo bem a lei moral já está compreendidacomo condição suprema, então o sumo bem não é simplesmente objetoobjetoobjetoobjetoobjeto, mastambém o seu conceito e a representação de sua existência possível mediante anossa razão prática são ao mesmo tempo o fundamento determinantefundamento determinantefundamento determinantefundamento determinantefundamento determinante davontade pura; porque então a lei moral – já efetivamente incluída e pensadaconjuntamente nesse conceito – e nenhum outro objeto determina a vontadesegundo o princípio da autonomia (KANT, 2002, p.179).

Através dos postulados da razão prática pura, Kant concebe uma fé racional (cf.KANT, 2002, p.203). Os postulados não são necessários na construção do projeto moral,mas tornam-se exigências desta mesma razão quando esta se torna objetiva.

Importante observar a intenção kantiana de contemplar e validar a moral cristã. Aética não pode ser uma doutrina da felicidade; Deus, imortalidade da alma e liberdade seconvertem em exigências da razão prática pura; logo, a ética é um merecer a felicidade,pois assim como o Evangelho busca a progressão moral ininterrupta, rumo ao infinito, ohomem ético é aquele que merece uma felicidade sem fim que não pode ser dada nomundo fático.

A Crítica da razão prática tem o seu desfecho com um testemunho de Kant: "Duascoisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre nova e crescente, quanto maisfreqüente e persistente a reflexão ocupa-se com elas: o céu estrelado acima de mim e ao céu estrelado acima de mim e ao céu estrelado acima de mim e ao céu estrelado acima de mim e ao céu estrelado acima de mim e alei moral em mimlei moral em mimlei moral em mimlei moral em mimlei moral em mim" (KANT, 2002, p.255). Embora a metafísica tenha sido eliminada naprimeira crítica, Kant a encontra e a admite numa outra esfera de conhecimento: a moral.Através dela, os preceitos cristãos são validados: é moralmente bom crer em Deus easpirar o merecimento ininterrupto dos justos. Na frase citada acima é possível intuiruma certa religiosidade sobre a moral, o que para Kant é uma fé racional.

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3 Justiça, liberdade e paz3 Justiça, liberdade e paz3 Justiça, liberdade e paz3 Justiça, liberdade e paz3 Justiça, liberdade e paz

O Direito distingue-se da ética porque se configura como uma moral empírica, istoé, age-se legalmente porque o motivo da ação não está no sujeito, mas na força da lei. Maso Direito, para Kant, não pode ser desconsiderado, e a investigação da Metafísica doscostumes (1797) busca os fundamentos puramente racionais, isto é, metafísicos do Direito.

Os filósofos jusnaturalistas consideram a fundação do Estado civil a partir dasuperação do estado de natureza, Kant situa-se entre os jusnaturalistas, porém, alterasubstancialmente a tese de O contrato social: se para Hobbes e Rousseau o direito naturalfundamental a ser defendido é a vida, o direito natural inalienável para Kant, aquele quedeve legitimar o Estado, é a liberdade. O Estado e o Direito se constituem na medida emque garantem a liberdade dos indivíduos.

Em Kant pode-se fazer uma tríplice caracterização do Direito: pertence às relaçõeshumanas, se constitui na relação entre arbítrios e sua função é de prescrever as formas eas condições para a coexistência entre as liberdades. Para Kant,

O Direito é, portanto, a soma das condições sob as quais a escolha de alguémpode ser unida à escolha de outrem, de acordo com uma lei universal de liberdade(KANT, 2003, p.76).

Dessa definição Kant deriva o postulado universal do Direito, da seguinte formadefinida: "Age externamente de modo que o livre uso do teu arbítrio possa coexistir coma liberdade de acordo com uma lei universal" (KANT, 2003, p.77).

A preocupação do Direito em Kant é a defesa da liberdade: somente as relaçõesentre os homens podem ser jurídicas, e o objeto do Direito não é prescrito previamente,mas deve ocupar-se com as condições formais para que a coexistência entre arbítrios sejaassegurada. Pode-se ver em Kant a ereção de grandes fundamentos do Estado Liberal. Ajustiça, nesse horizonte, é compreendida negativamente: justo é o ato que permite acoexistência de todas as liberdades segundo uma lei universal (KANT, 2003, p.77).

3.1 À paz perpétua

O opúsculo, de 1795, A paz perpétua: Um projecto filosófico é concebido, no presentetrabalho, como o escopo da ética de Kant. Essa pequena obra fora de atualidade tremenda:em meio à violência da Revolução Francesa, Kant formulou um tratado de paz internacionalque visa erigir as condições para que os países estabeleçam uma confederação internacionalque legitime suas relações. As exigências de saída do estado de natureza no interior doEstado valem analogamente entre as nações: a falta de um Direito que assegure a liberdadeentre os países é um estado de natureza, um estado de constante ameaça e violência quenecessita ser superado através de uma confederação internacional que busque a efetivapaz entre os países. Tal confederação não pode tornar-se um superestado (um Estado

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federal), mas todos os seus membros devem estabelecer uma relação entre iguais e seeximir de interferir em qualquer assunto interno de outro Estado.

Primeiramente Kant estabelece seis condições negativas para a paz: 1) "Não sedeve considerar como válido nenhum tratado de paz que se tenha feito com a reservasecreta de elementos para uma guerra futura" (KANT, [s/d], p.120); 2) "Nenhum estadoindependente (grande ou pequeno, aqui tanto faz) poderá ser adquirido por outromediante herança, troca, compra ou doação" (KANT, [s/d], p.121); 3) "Os exércitospermanentes (miles perpetuus) devem, com o tempo, desaparecer totalmente" (KANT, [s/d], p.121); 4) "Não se devem emitir dívidas públicas com assuntos de política exterior"(KANT, [s/d], p.122); 5) "Nenhum Estado deve imiscuir-se pela força na constituição e nogoverno de outro Estado" (KANT, [s/d], p.123); 6) "Nenhum Estado em guerra com outrodeve permitir tais hostilidades que tornem impossível a confiança mútua na paz futura[...]" (KANT, [s/d], p.124).

Além dos artigos preliminares, de caráter negativo, Kant propõe três artigosdefinitivos, de caráter positivo. O primeiro, "a constituição civil em cada país deve serrepublicana" (KANT, s/d, p.127), estabelece o ideal do republicanismo como a forma degoverno onde o poder executivo está separado do poder legislativo, ou seja, não cabe aogovernante estabelecer se deve ou não haver guerra, mas tal decisão tem de recair sobreo povo. O republicanismo é o único modelo político que erige como fundamento aautonomia, na Resposta à pergunta: o que é esclarecimento? lê-se: "[...] a pedra detoque está na questão de saber se um povo poderia ter ele próprio se submetido a tal lei"(KANT, 1974, p.115). É à vontade pública que pertence o poder legislativo, e a constituiçãorepublicana, segundo A paz perpétua, é a única "em que se deve fundar toda a legislaçãojurídica de um povo" (KANT, s/d, p.128).

O segundo artigo, "o direito das gentes deve fundar-se numa federação de Estadoslivres" (KANT, [s/d], p.132), assevera que não basta que os países sejam republicanos,mas para que a paz seja efetiva ela tem de ser garantida pela criação de uma confederaçãode Estados livres. Nesse artigo Kant concebe um Direito internacional que assegure aliberdade entre as nações e que torne possível a paz.

O terceiro artigo afirma que "o direito cosmopolita deve limitar-se às condições dahospitalidade universal" (KANT, [s/d], p.137). Kant concebe um direito de visitaçãointernacional, onde os homens são cidadãos do mundo e têm o direito de visitar qualquerlocalidade do mundo sem serem hostilizados por motivo de sua presença. Há limitesclaros para a hospitalidade: pode-se rejeitar o estrangeiro se este cometer atos hostiscontra o Estado hospedeiro. Através desse artigo, Kant critica a prática colonialista doseuropeus e sua conduta inospitaleira; "causa assombro a injustiça que eles revelam navisita a países e povos estrangeiros (o que para eles se identifica com a conquista dosmesmos)" (KANT, [s/d], p.138). O Direito cosmopolita opõe-se assim a um direito deestabelecimento e a uma prática de abuso sobre o território de um outro povo. O filósofotem em mente, ao escrever o terceiro artigo, os países vitimados pelo colonialismo europeu,como a América, a África e países orientais.

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Ao final de A paz perpétua, Kant escreve um artigo secreto onde afirma: "As máximas

dos filósofos sobre as condições de possibilidade da paz pública devem ser tomadas em

consideração pelos Estados preparados para a guerra" (KANT, [s/d], p.149). A filosofia tem

de ser uma atividade pública, e o filósofo, por força de sua atividade, não pode se calar

diante de situações em que a razão está obscurecida. Os filósofos, pelo caráter de seu

ofício, assim como todos os intelectuais e demais pessoas que usam de sua razão, têm

algo a dizer aos governantes: estes não podem deter arbitrariamente o destino da

humanidade, este deve depender do uso da razão acima de quaisquer interesses.

ConclusãoConclusãoConclusãoConclusãoConclusão

O texto, de 1784, Resposta à pergunta: o que é esclarecimento?, ao modo de

conclusão do presente trabalho, indica a passagem da menoridade para a maioridade no

uso da razão. Menoridade que é "a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem

a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a

causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem

de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem" (KANT, 1974, p.100).

A essa categoria de pessoas que vivem na menoridade, Kant chama de "gado

doméstico". "É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da

menoridade, que para ele se tornou quase uma natureza" (KANT, 1974, p.102). Sair

dessa condição pode ser difícil, mas se ao homem "lhe for dada a liberdade, é quase

inevitável" (KANT, 1974, p.102). A única maneira de possuir a liberdade é tendo coragem

e autonomia de fazer uso do próprio pensamento, e esse espírito racional constitui, para

Kant, o "próprio valor" e a "vocação de cada homem" (cf. KANT, 1974, p.102). E mais,

"para este esclarecimento, porém nada mais se exige senão liberdade" (KANT, 1974, p.104).

A moral da autonomia é do uso esclarecido da razão, a ética kantiana é uma ética

da liberdade e da responsabilidade: o homem é o agente das leis que a si mesmo impõe.

Tornar-se maior, tornar-se sujeito das próprias ações, marca a suprema dignidade humana.

A lição imortal legada por Kant é o valor do homem como fim em si mesmo e

jamais como meio para algo. "Diante de um homem humilde e cidadão comum, no qual

percebo uma integridade de caráter [...], meu espírito se curva" (KANT, 2002, p.125);

através da ética o homem eleva sua grandeza, e o heroísmo, nas palavras de Kant, a

"disposição moral em luta" (KANT, 2002, p.137), torna-o merecedor da felicidade. Tal

ética pode ser compreendida idealisticamente, e essa crítica fora, de fato, feita muitas

vezes. Mas há de se admitir, no entanto, o valor de seus princípios "universalmente

necessários", o que no entendimento de Kant os justificaria por si mesmos.

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80 ISHIKAWA, Ítalo Kiyomi. A ética kantiana e o primado da autonomia

O grande mérito da filosofia do Direito e do Estado concebidas por Kant consiste

em sua exigência de universalização de critérios que permitem a coexistência entre os

homens, isto é, seu mérito reside na exigência moral de paz. Sua filosofia do Estado

continua atual, porque a paz ainda não foi alcançada, esta, mesmo que distante, não

pode ser abdicada pelos filósofos e por todos aqueles que não podem justificar a violência

e o horror na história.

Enfim, a metafísica que não pode ser conhecida pelo entendimento é encontrada

como o fundamento incondicionado da razão pura prática: apesar de ser fenômeno

entre os fenômenos do mundo, a liberdade humana é noumenon, o homem é

transcendentalmente livre, ser capaz de determinar e construir a si mesmo.

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Utilitarismo NegativoUtilitarismo NegativoUtilitarismo NegativoUtilitarismo NegativoUtilitarismo Negativo

Negative UtilitarismNegative UtilitarismNegative UtilitarismNegative UtilitarismNegative Utilitarism

Leonardo Aureliano dos Reis T. dos Santos*

ResumoResumoResumoResumoResumo

Tendo como fundamento a epistemologia falseabilista, apresenta-sea proposta popperiana de um utilitarismo negativo como alternativaà versão clássica. A adoção de um princípio de minimização dosofrimento seria decorrente da assimetria moral e lógica existenteentre dor e prazer análoga àquela existente entre verificabilidade efalseabilidade. Defende-se aqui a coerência desta proposta com opensamento de Popper e com uma crítica à epistemologia milleana,possibilitando uma aproximação do utilitarismo com a moral comume combatendo os possíveis efeitos perversos de uma políticadirecionada para o incremento do bem-estar.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: utilitarismo; crítica; teleologia; assimetria;sofrimento; falseacionismo.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

Having as a basis the falseabilist epistemology, we present thepopperian proposal of a negative utilitarism as an alternative tothe classic version. The adoption of a principal of minimizingsuffering would come from the moral and logic asymmetriesexisting between pain and pleasure, similar to that of truenessand falsehood. We defend the coherence of this proposal withthe thought of Popper and with criticism of the mileanepistemology, allowing for an approximation of utilitarianism withthe common moral and fighting the possible negative effects ofpolicies directed towards increasing well-being.

KKKKKey Wey Wey Wey Wey Wordsordsordsordsords: utilitarianism; critic; theology; asymmetry; suffering.

* O presente artigo foi elaboradooriginalmente a partir do trabalhode conclusão de curso apresentadoà Faculdade de Filosofia SãoBoaventura do Centro UniversitárioFranciscano do Paraná (FAE).Graduado em filosofia pelo Institutode Filosofia São Boaventura.Atualmente cursa teologia no ITF –Instituto Teológico [email protected]

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84 SANTOS, Leonardo Aureliano dos Reis T. dos. Utilitarismo negativo

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

A idéia de um utilitarismo que fosse negativo vem da proposta que Karl Popper

aponta em Conjecturas e refutações: um princípio mais modesto e realista para substituir

o princípio clássico do utilitarismo. – Esta concepção apareceu pela primeira vez em A

sociedade democrática e seus inimigos, em duas notas de rodapé. Em 1958, Popper

recebeu uma crítica de R. N. Smart, no artigo Negative utilitarianism, onde o autor, ao

mesmo tempo em que nomeava a tese de Popper, estabelecia a crítica que posteriormente

tornou-se a mais conhecida.

Este artigo é uma revisão bibliográfica, tanto dos textos de Popper quanto de

comentadores, a fim de analisar a coerência do utilitarismo negativo (doravante UN) em

relação às teses fundamentais da epistemologia popperiana. Ao mesmo tempo, estabelece-

se uma comparação da versão negativa do utilitarismo com a clássica.

Para tanto, apresentar-se-á na primeira parte uma introdução ao utilitarismo, a

partir de Bentham e Mill. Outros referenciais poderiam ser apresentados, mas a brevidade

não o permite. Segue-se, então, uma crítica àquilo que neste trabalho é chamado de

utilitarismo clássico. O fundamento desta crítica é a epistemologia popperiana,

particularmente presente na Lógica da pesquisa científica, e também com embasamento

na crítica de Popper ao historicismo. A seguir, há uma contraposição entre o que seriam

as versões clássica e negativa do utilitarismo, tangida pela crítica decorrente de dois

aspectos do pensamento de Karl Popper: a crítica de cunho lógico ao positivismo e a

crítica ao historicismo, apesar de em alguns pontos haver coincidência entre ambas. Para

a crítica à proposta popperiana de um UN, são tomados dois referenciais: Roderick Ninian

Smart, para quem o UN implicaria na destruição de toda a humanidade, e Martin Diego

Farrell, defendendo a tese de que a proposta em questão não toca nenhum dos problemas

fundamentais do utilitarismo.

O que se segue é, portanto, uma discussão acerca da proposta popperiana de

reformulação do utilitarismo a partir da obra do próprio Popper com especial atenção

para as interpretações de Bermudo e Farrell.

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1 A versão clássica do utilitarismo1 A versão clássica do utilitarismo1 A versão clássica do utilitarismo1 A versão clássica do utilitarismo1 A versão clássica do utilitarismo

Jeremy Bentham é o primeiro grande sistematizador do que se conhece porutilitarismo. Para ele, a natureza teria colocado o ser humano sujeito a dois senhores,que determinariam toda a vida: o prazer e a dor. O princípio da utilidade seria a utilizaçãodeste duplo senhorio como fundamento para uma ética conseqüencialista1, que primepela busca do prazer e pela fuga da dor, definida nos seguintes termos:

Por princípio da utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprovaqualquer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidadeda pessoa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outrostermos, segundo a tendência de promover ou a comprometer a referida felicidade(BENTHAM, 1974, p.10).

Para Bentham, há seis princípios que fundamentam a moral e a legislação. Pordiversas vezes, leituras unilaterais comprometeram a coerência de seu pensamento. Aseguir, tem-se a apresentação dos seis princípios (P) do utilitarismo com as respectivasregras (R) morais:

I Princípio de utilidade:

P1. Todo ser humano busca sempre o maior prazer possível.

R1. Busque sempre o prazer e fuja da dor.

II Princípio da identidade de interesses:

P2. O fim da ação humana é a maior felicidade de todos aqueles cujos interessesestão em jogo. Obrigação e interesse estão ligados por princípio.

R2. Aja de forma que sua ação possa ser modelo para os outros.

III Princípio da economia dos prazeres:

P3. A utilidade das coisas é mensurável e a descoberta da ação apropriadapara cada situação é uma questão de aritmética moral.

R3. Faça o cálculo dos prazeres e das dores e defina o bem em termos numéricos.

1 Por ética conseqüencialista entenda-se o mesmo que ética teleológica. Neste modo de abordar a ética verifica-se asubordinação do conceito de justo ao télos, que é a finalidade, o bem. O justo é, pois, definido como o que conduzo homem ao bem. Os adversários desta abordagem costumam iniciar seus ataques argumentando, com base emcasos hipotéticos, que para haver incremento de bem-estar dever-se-ia necessariamente violar uma regra moral. Aresposta dos que defendem uma ética conseqüencialista segue uma das formas seguintes: 1. Ética teleológica nãorequer, necessariamente, violação de alguma regra moral (esta parece ser a resposta da maior parte dos utilitaristasclássicos); 2. Ética conseqüencialista pode, eventualmente, requerer violação de alguma regra moral, mas tal violaçãopode ser justificada pelos próprios fundamentos da moral, como nos casos em que o indivíduo se vê entre duasopções, sendo que ambas hão de violar a moral, e escolhe a que lhe acarretará o menor mal (este argumento, noséculo XX, foi defendido por F. C. Sharp e J. J. C. Smart) (cf. OLSON, 1967, p.88).

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IV Princípio das variáveis concorrentes:

P4. O cálculo moral depende da identificação do valor aritmético de sete variáveis:intensidade/duração/certeza/proximidade/fecundidade/pureza/extensão.

R4. Procure maximizar a objetividade e exatidão de suas avaliações morais.

V Princípio da comiseração:

P5. O sofrimento é sempre um mal. Ele só é admissível para evitar um sofrimentomaior.

R5. Alivie o sofrimento alheio.

VI Princípio da simetria:

P6. Prazer e dor possuem valores simétricos, pois a eliminação da dor sempreagrega prazer.

R6. Escolha sempre a ação que resulta na maior quantidade de prazer, agregandoo prazer da eliminação de sofrimento (PELUSO, 1998, p.24-25).

De acordo com a listagem acima, tanto a partir do princípio da comiseração quantodo princípio da simetria, é possível, pois, admitir que em Bentham há consideração dosofrimento, ainda que este seja apenas o negativo da dor.

O utilitarismo de Mill, por seu turno, é uma versão mais refinada do que o deBentham (Cf. CARVALHO, 1997, p.3). Algumas idéias que este julgou claras o suficiente,apesar de não o serem, aquele procurou tornar mais evidentes. A versão milleana doutilitarismo é conhecida como liberalismo utilitarista (Cf. SIMÕES, 2005, p.77-78), poisMill traz para a reflexão utilitarista a ênfase na liberdade como fator primordial para oincremento do bem-estar. Em Utilitarismo, ele afirma que o princípio da maior felicidade,o que Bentham defendera, exerceu papel preponderante na formulação até mesmo dasdoutrinas morais que o rejeitam (Cf. MILL, 2000, p.180-181).

E afirma ainda que o mesmo princípio da utilidade estaria a designar não o quecontrastasse com o prazer, mas o prazer em si mesmo e a ausência de sofrimento. ParaMill, que parece ter sido o primeiro a usar o termo “utilitarismo” para denotar a moralfundada no princípio da utilidade, o conceito de utilidade coincide com aqueleapresentado por Bentham, pois o utilitarismo é?

O credo que aceita a utilidade ou o princípio da maior felicidade como a fundaçãoda moral sustenta que as ações são corretas na medida em que tendem apromover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o contrário dafelicidade. Por felicidade se entende prazer e ausência de dor; por infelicidade,dor e privação do prazer (MILL, 2000, p.187).

A diferença considerável surge quando se trata daqueles dois senhores que Benthamjá havia apresentado, pois, segundo Carvalho (1997, p.3-4), Mill não identificaria a merasatisfação com o prazer. Bentham, ao que tudo indica, não aceitaria também o disparate deidentificar os prazeres de alguém culto aos de um néscio, apesar de não ter desenvolvido taldistinção. Mill ainda retoma mais um elemento proposto por Bentham em um dos princípiosda moral, mais precisamente no quarto; fazendo isso, Mill valoriza mais os prazeres mentais.

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É preciso admitir, entretanto, que em geral os escritores utilitaristas reconhecem asuperioridade dos prazeres mentais sobre os corpóreos principalmente pela maiorpermanência, maior segurança, pelo menor custo etc., dos primeiros por suasvantagens circunstanciais, mais que por sua natureza intrínseca (MILL, 2000, p.188).

O critério apresentado por Mill para a escolha de determinados prazeres é aunanimidade da escolha, isto é, havendo um que seja preferido por todos, sem ainterferência de uma obrigação moral ou qualquer sentimento, ele deve ter umasuperioridade qualitativa.

Afirmou-se acima que o princípio da utilidade supõe o incremento da felicidade ea diminuição do sofrimento. É mister, contudo, lembrar que Mill defende que: “nem asdores nem os prazeres são homogêneos entre si, e a dor e o prazer são sempreheterogêneos” (MILL, 2000, p.193). A heterogeneidade entre ambos, porém, não significaassimetria moral, de fato continua-se a descontar do prazer a dor nele eventualmenteengendrada. Isto torna patente a preocupação de Mill com o sofrimento, pois sua definiçãode moralidade tem grande consideração até mesmo pelos animais.

Assim, é possível definir a moralidade como as regras e os preceitos da condutahumana, cuja observação permitiria que uma existência tal como a descrita fosseassegurada, na maior medida possível, a todos os homens; e não apenas a eles,mas também, na medida em que compõem a natureza das coisas, a todos osseres sencientes da criação (MILL, 2000, p.194-195).

A existência de que Mill faz alusão é aquela que seja isenta, o máximo possível, dador e do sofrimento e rica em prazeres. A partir de tais questões já se entrevê que apreocupação com a problemática do sofrimento sempre esteve presente na obra de Mill.Há alguns pontos de sua obra em que tal preocupação aparece de maneira bastantelúcida, inclusive dando algum aceno para a versão negativa do utilitarismo.

[...] uma vez que a utilidade inclui não somente a busca da felicidade, comotambém a prevenção ou mitigação da infelicidade; e se o primeiro desses fins forquimérico, o último abrirá campo de ação mais amplo, responderá a necessidadesmais imperativas, enquanto a humanidade julgar conveniente a vida [...] (MILL,2000, p.195).

A solução apontada por Mill é muito próxima da de Popper, pois para ele oobstáculo real para a realização da felicidade na vida da maioria das pessoas é a “deploráveleducação e os deploráveis arranjos sociais” (MILL, 2000, p.196). Pode-se perceber aíalguma aproximação com a mecânica social fragmentária2 que Popper propõe.

2 Em La miseria del historicismo, Karl Popper apresenta, como alternativa ao modo historicista de propor transformaçõesna sociedade, a tecnologia social fragmentária e sua aplicação, a engenharia fragmentária. A tecnologia fragmentária,ou gradual, tem como tarefa fundamental, coerente com a metodologia da pesquisa científica, destacar o que nãopode ser levado a cabo. São chamados de tecnologia social fragmentária os métodos mais afortunados na solução deproblemas no campo da sociologia. Segundo Popper (1973, p.72), haveria algum risco no uso do termo “tecnologia”,pois este remeteria a alguns modelos que culminam na planificação. O adjetivo “fragmentária” tem assim duplafunção: afastar a associação com modelos que culminem na planificação econômica e expressar a idéia da valorização

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A atenção de Mill para com o sofrimento, entretanto, não isenta o utilitarismodas críticas. O ponto a seguir apresenta uma breve introdução ao pensamento de Popperseguida da apresentação da crítica popperiana à epistemologia milleana, de modo que acrítica ao utilitarismo clássico partirá de uma crítica epistemológica.

2 A proposta popperiana2 A proposta popperiana2 A proposta popperiana2 A proposta popperiana2 A proposta popperiana

2.1 Racionalismo crítico

O pensamento de Popper repousa sobre uma constatação: aprende-se com os erros.Eles fornecem as maiores certezas, certezas negativas que delineiam por onde a pesquisanão poderá prosseguir e, conseqüentemente, mantêm abertas muitas sendas aoconhecimento que progride, estabelecendo afirmações provisórias sobre a realidade, ouconjecturas. Há uma desconfiança para com a certeza que a ciência moderna procura,conforme a compreensão usual de ciência baseada na indução, um problema que Popper(1975, p.13-40) afirma ter sido criticado por David Hume3. É a solução a este problemaque norteará todo o desdobramento da filosofia de Popper: o conhecimento conjectural.“Esta solução tem sido extremamente frutífera, capacitando-me a resolver bom número deoutros problemas filosóficos” (POPPER, 1975, p.13). Nenhuma série de observações de

da particularidade necessária à metodologia proposta por Popper à pesquisa científica. Segue-se daí que a análisecrítica dos problemas particularizados conduzirá a um maior êxito na investigação e, mesmo que não haja sucesso,evitará erros maiores. Os problemas tecnológicos no campo da ciência social podem ser de caráter teórico ou prático,sendo que os primeiros podem ser públicos ou privados. Apesar de a tecnologia social fragmentária parecer focadaexclusivamente em problemas práticos, pode suscitar numerosos e importantes problemas teóricos, contudo oscritérios de clareza e experimentação, como falseamento através do modus tollens, permanecem válidos. A melhorproposta para sanar problemas sociais seria, criticamente, aplicar soluções parciais. Este processo é chamado deengenharia social fragmentária. Segundo Popper, a engenharia social fragmentária é parecida com a engenhariafísica que considera que os fins estão fora do campo da tecnologia, pois o que é possível à tecnologia afirmar é aadequação ou compatibilidade entre tecnologia e fim esperado. Da mesma maneira que o engenheiro físico projetamáquinas e as remodela para pô-las em funcionamento, também o engenheiro social fragmentário deve projetar,reconstruir e manejar as instituições que já existem (Cf. POPPER, 1973, p.79). Para planejar a ação o engenheirodeverá tratar as instituições desde seu caráter funcional ou instrumental. As instituições são os meios a serviço decertos fins, estariam mais próximas das máquinas do que dos organismos. Porém a eficácia das máquinas sociais élimitada, elas não são infalíveis. Uma característica da engenharia social fragmentária é que, ainda que os fins sejamconcernentes à sociedade como um todo, é impossível alcançá-los de uma só vez, de maneira global. Diante dequaisquer fins, ajustes contínuos e correções controladas são, isto é certo, mais lentos, porém mais seguros.

3 É questionável se o que Hume discute seria principalmente o problema da indução. Segundo o professor João PauloMonteiro, a interpretação que Popper e Russell fazem de Hume – afirmando que o que estaria em jogo seria aindução e, no caso de Popper, estabelecendo dois problemas, um lógico e um psicológico – é um exagero que rumaao extremo oposto daquilo que Hume de fato propunha no problema da inferência causal. Para o professor Monteiro,Hume estaria tratando de três problemas: O primeiro é o do papel da associação de idéias; o segundo diz respeito aoverdadeiro papel da indução, apenas como conseqüência de sua análise da inferência causal; o terceiro problemaseria a definição de costume e hábito (Cf. MONTEIRO, 2005, p.111-128).

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enunciados singulares oferece, pois, base segura para a formulação de algum enunciadogeral, como deve ser uma teoria científica. Assim como formular um enunciado geral apartir de enunciados particulares é ilegítimo, também procurar a comprovação empíricade enunciados gerais também o será, dada a extensão destes. Contudo, se é impossível acomprovação empírica de uma teoria, é perfeitamente possível falseá-la. A saída racional é,pois, submeter todas as conjecturas a testes severos para falseá-las com o uso do modustollens, uma forma dedutiva da lógica tradicional que opera em direção indutiva. Nisto severificaria uma assimetria lógica4 entre verificabilidade e falseabilidade resultante da relaçãológica entre as teorias e os enunciados básicos (Cf. POPPER, 1972, p.290).

A partir daí, isto é, a partir das principais idéias gestadas na Lógica da pesquisacientífica, toma corpo todo o pensamento de Karl Popper, que passou a ser chamadoposteriormente de racionalismo crítico. É a partir da crítica de Popper à epistemologiapositivista que se estabelecerá a crítica ao utilitarismo, tendo sempre presente a assimetriaentre verificabilidade e falseabilidade.

2.2 Crítica ao utilitarismo clássico

Aqui se critica fundamentalmente a base epistemológica do utilitarismo clássico,aquela que aparece de maneira mais clara no Sistema de lógica de John S. Mill. Aí seencontra a principal tese que haveria de fundamentar todo o seu trabalho: a regularidadena natureza. Esta seria para Mill a premissa que está oculta em qualquer raciocínio indutivo.Sua metodologia depende de uma lei de causação universal: “Cada evento ou o início dequalquer fenômeno deve ter uma causa, algum antecedente, de que é, invariável eincondicionalmente, uma conseqüência” (MILL apud HEGENBERG, 1976, p.180). E paraa determinação das causas, há os quatro procedimentos a seguir:

1) concordância – a causa de um dado efeito será a propriedade que se fizerpresente em todas as ocasiões em que esse feito se manifestar;

2) diferença – a causa de um dado efeito será a propriedade que se fizer presenteem todas as ocasiões em que esse feito se manifestar e estiver ausente emtodas as ocasiões em que esse feito não se manifestar;

3) variação concomitante – a causa de um dado efeito é a combinação daspropriedades que crescem de intensidade quando o efeito cresce de intensidadee decrescem de intensidade quando o efeito decresce de intensidade.

4) dos resíduos – retire-se de um dado fenômeno aquilo que sabidamente é efeitode certos antecedentes; o resíduo será efeito dos antecedentes remanescentes(HEGENBERG, 2001, p.172).

4 A assimetria lógica entre verificabilidade (neste trabalho, correspondente ao que defende o Círculo de Viena) efalseabilidade está presente até mesmo em enunciados simples como “todos os cisnes são brancos”. Dado queverificá-lo dependeria de observar todos os cisnes e falseá-lo dependeria apenas de encontrar um cisne que não fossebranco, é muito mais simples e correto, do ponto de vista lógico, submeter o enunciado a teste. No caso da ciência,os enunciados presentes em leis descritivas e teorias seriam parcialmente decisíveis, isto é, somente podem ser falseáveis(Cf. POPPER, 1972, p.344). Estabelece-se assim também o critério de demarcação entre ciência e não-ciência.

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A admissão de uma lei universal de causação não é ponto pacífico, e uma críticaacurada, como a de Hume, é suficiente para demonstrar a fragilidade do argumento. É oque se pode verificar nas teses fundamentais da Lógica da pesquisa científica,principalmente quando se trata da assimetria entre verificabilidade e falseabilidade. Já,em La miséria del historicismo, Popper critica a aplicação da metodologia defendida porMill no estudo da sociedade e da história. Para Mill as leis históricas de sucessãodeterminariam uma seqüência de acontecimentos na ordem em que realmente ocorrem.O método milleano consiste em

intentar, por el estudio y análisis de los hechos generales de la historia, eldescubrimiento... de la ley del progresso; la cual, uma vez determinada debepermitirnos la predicción de acontecimientos futuros, de la misma forma quedespués de unos cuantos términos de una serie algebraica infinita podemos descubrirel principio de regularidad en su formación y predecir el resto de la serie hastacualquier número de términos que queramos (MILL, apud POPPER, 1973, p.132).

Não se trata de seqüências matemáticas simples, isto seria atribuir uma rigidezmuito grande à história. Mill defende a existência de leis de sucessão na história que,para Popper, inexistem. Convém ressaltar, porém, que alguns fenômenos ligados àsociedade parecem seguir uma tendência de caráter dinâmico, tese que, segundo Popper,seria ratificada pelo próprio Mill ao descrever sua lei histórica de progresso como umapropensão a um estado de coisas melhor, no qual haja mais felicidade (Cf. POPPER,1973, p.133). Popper também defende esta idéia, mas não acredita que haja leis regendoa história, pois o curso da história está fortemente influenciado pelo crescimento doconhecimento, e qualquer formulação de lei que almeje prever o curso da história partirásempre do conhecimento já previamente existente. A tese milleana das leis históricas desucessão é pouca coisa além de uma coleção de metáforas mal aplicadas (Cf. POPPER,1973, p.134).

2.3 O utilitarismo negativo: adoção de um princípio deminimização do sofrimento

O fato de o utilitarismo ter surgido como uma ética adaptada ao contexto do séculoXIX, assumindo a filosofia empirista, a metodologia positivista e as concepções naturalistasimpostas à filosofia pela ciência moderna, caracteriza sua impostura teórica: apoiar-se emuma teoria empirista da natureza humana, para ditar um princípio ético normativo eaparentemente oposto aos ditames naturais (Cf. BERMUDO, 1992, p.35-36).

Deste modo, o raciocínio que norteia a proposta de adoção de um princípio deredução do sofrimento é análogo à posição popperiana no campo da epistemologia.Seria muito mais simples procurar agir nos problemas que eventualmente se encontrassemem uma sociedade do que procurar incrementar a felicidade dos indivíduos.

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De maneira que uma ação seria moralmente aceita à medida que promovesse o

bem estar do maior número de seres humanos, daí a derivação do Justo do Bem. De

fato, poder-se-ia afirmar que a promoção do bem-estar não supõe a minimização do

sofrimento, contudo Mill admite que o implemento da felicidade (utilidade) implica

necessariamente na diminuição da dor.

O que incita Popper a formular sua variação do utilitarismo é a exigência moral de

igualdade, liberdade e ajuda aos necessitados (POPPER, 1972, passim). Sendo assim, sua

fórmula utilitária segue, de certa forma, o rumo já seguido na epistemologia: o da negatividade.

Acho que há certa espécie de analogia entre esta concepção da ética e a concepçãoda metodologia científica que defendi em minha obra Logik der Forschung. Serámais claro, no campo da ética, formularmos nossas exigências em forma negativa,isto é, reclamando a eliminação dos sofrimentos em vez da promoção dafelicidade. Similarmente, é útil formular a tarefa do método científico como aeliminação das teorias falsas (dentre as várias tentativas apresentadas para prova),em vez do alcance de verdades estabelecidas (POPPER, 1959, p.601).

Se na epistemologia o critério de demarcação é a falseabilidade, ou a possibilidade

de refutação de uma teoria que passa pela procura do erro, da refutação oriunda de ao

menos um caso particular que refute uma afirmação universal; no caso das políticas

públicas, a negatividade está no alvo, no sofrimento que deve ser minimizado.

Popper reconhece que toda premência moral tem sua base na premência do

sofrimento, por isso intenta

substituir a fórmula utilitária “aspiremos à maior quantidade de felicidade parao maior número de pessoas”, ou mais sinteticamente “felicidade ao máximo”,pela fórmula: “a menor quantidade possível de dor para todos”, ou, em resumo,“dor ao mínimo”. Esta fórmula tão simples pode-se converter, creio, num dosprincípios fundamentais (por certo que não o único) da política pública. (Oprincípio da “felicidade ao máximo” parece tender, pelo contrário a produzirditaduras benevolentes.) É mister compreender, além disso, que do ponto devista moral não podemos tratar simetricamente a dor e a felicidade; isto é, que apromoção da felicidade é, em todo caso, muito menos urgente que a ajudaàqueles que padecem e a tentativa de prevenir sua dor (POPPER, 1959, p.546).

Podem-se destacar dois pesquisadores atuais que tratam da tese popperiana: Martin

Diego Farrell (1994, p.210), para quem a tese de Popper não foi aprofundada

adequadamente, e Jose Manuel Bermudo Ávila (1992, passim), que defende a proposta

popperiana como alternativa viável aos problemas do utilitarismo. O que é necessário,

porém, é verificar a coerência da tese basilar do UN: a premência moral da dor sobre o

prazer, que está implícita na idéia basilar do sofrimento mínimo.

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2.3.1 Premência da dor sobre o prazer

Já em Jeremy Bentham observa-se que o princípio da comiseração representa umapreocupação considerável com o sofrimento alheio. O que Popper eventualmente propõenão é o mesmo princípio, mas uma assimetria que torna o sofrimento premente sobre oprazer. Isto é o mesmo que afirmar que o principal fundamento da moralidade é o sofrimento.

Não há simetria, do ponto de vista ético, entre sofrimento e felicidade, ou entredor e prazer. Tanto o princípio da felicidade máxima dos utilitários como o princípiode Kant – “promover a felicidade dos demais” – (parecem-me pelo menos emsuas formulações) fundamentalmente errados neste ponto, que, entretanto, nãoé de argumento racional [...]. É meu parecer de que o sofrimento humano fazum direto apelo por auxílio, ao passo que não há tal apelo para que se aumentea felicidade de um homem que de qualquer modo vá indo muito bem (POPPER,1959, p.601).

O que ocorre, pois, com a tese popperiana não é somente a colocação da assimetriamoral, mas lógica, porque defender a minimização do sofrimento não é apenas invertera antiga máxima utilitarista. O que ocorre de fato é uma assimetria lógica, dado que nãose sabe como tornar as pessoas felizes, mas são bem conhecidos os meios para minimizaro sofrimento de boa parte da humanidade (MAGEE, 1976, p.85).

Implícita à tese popperiana está a idéia de que a defesa dos utilitaristas clássicosde um saldo único seria insuficiente para dar conta de todos os problemas que surgiriamem uma sociedade. Aumentar a felicidade não equivale a diminuir a dor.

2.4 Os três princípios

Bermudo (1992, p.133-140), ao tratar da nota 6, detém-se na análise de trêsparadoxos que se afiguram nos três princípios fundamentais do UN, o princípio datolerância limitada, o da legalidade suficiente e o do sofrimento mínimo.

O princípio da tolerância limitada baseia-se na paradoxal posição de não sertolerante com os intolerantes. Subjaz a tal princípio a defesa necessária da tolerância.Segundo Popper:

A tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância. Seestendermos a tolerância ilimitada até aqueles que são intolerantes; se nãoestivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataquesintolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância(1959, p.579).

Pode-se supor já de antemão que, para Popper, a tolerância não pode sercompreendida como valor em si, posição bastante lúcida para alguém que prime maispelas conseqüências das ações do que pelos meios adotados para efetivar as mesmas.Por isso, o primeiro princípio do UN deve ser entendido como regra utilitária. Então, a

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proposta da intolerância para com os intolerantes tem em vista a redução do sofrimento.Quando se trata do paradoxo da intolerância, surgem outros dois paradoxos fundamentaispara que haja clareza sobre a questão da tolerância: o paradoxo da democracia, quepermite limitar o poder do governante, e o da liberdade, que tende à autodestruiçãoquando ilimitada (Cf. POPPER, 1959, p.579). Esta proposta seria um mecanismo deautodefesa da sociedade – isto se coaduna perfeitamente com a tese de que a tolerâncianão é um bem em si e que também o intolerante não o é, não se persegue o mal moral,só se combatem seus efeitos (BERMUDO, 1992, p.135).

O princípio da legalidade suficiente assevera que é melhor depositar a defesa dosdireitos e interesses não nas mãos de governantes benevolentes, mas nas instituições enas leis: “a luta contra a tirania, ou, em outras palavras, a tentativa de salvaguardar osoutros princípios pelos meios institucionais de uma legislação em vez de pela benevolênciados que estejam no poder” (POPPER, 1959, p.546).

Semelhante idéia é aceitável somente tendo-se consciência que, para Popper,

a democracia não se baseia no princípio de que a maioria deve governar, mas,antes, no de que diversos métodos igualitários para o controle democrático, taiscomo o sufrágio universal e o governo representativo, devem ser consideradoscomo simplesmente salvaguardas institucionais de eficácia comprovada pelaexperiência, contra a tirania, repudiada de modo geral como forma de governo. Eestas instituições devem ser susceptíveis de aperfeiçoamento (POPPER, 1959, p.143).

Configura-se assim mais uma aplicação à política da metaciência de Popper naqual o caráter eminentemente crítico é patente. As instituições e as leis estão, neste caso,como as teorias científicas, abertas à constante reformulação.

O princípio do sofrimento mínimo é o mais importante, porque é a sua aceitaçãoque determinará o UN. É a conseqüência da adoção da “fórmula: ‘a menor quantidadepossível de dor para todos’, ou, em resumo, ‘dor ao mínimo’” (POPPER, 1959, p.546).Segundo Popper, haveria três vantagens na adoção de tal princípio: a eliminação do riscode ditaduras benevolentes, um maior fundamento natural e coerência com a moral comum.

3 Críticas ao utilitarismo negativo3 Críticas ao utilitarismo negativo3 Críticas ao utilitarismo negativo3 Críticas ao utilitarismo negativo3 Críticas ao utilitarismo negativo

Roderick Ninian Smart (1958, p.542-543), na revista Mind, ao criticar os argumentosde substituição ao utilitarismo clássico propostos por Popper, formulou também o nomeque é aqui utilizado, UN. Sua crítica continuou sendo muito utilizada por diversos teóricos.Smart formula a situação hipotética de um possível governante que detenha uma armacom o poder de destruir toda a humanidade sem lhe causar dor. Caso o dito governante adestruísse, o ato seria justo a partir das bases do UN, já que a morte de todos implicaria naeliminação de toda e qualquer possibilidade de sofrimento, na verdade usar a arma seriaaté necessário, já que a máxima “minimizai o sofrimento” o exigiria.

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A partir do UN, atos que reduzam o sofrimento são necessariamente bons, oujustos – Smart estende isto à possível prevenção de sofrimento futuro. Desde que ohomicídio fosse indolor, a vítima seria beneficiada, pois não poderia mais sofrer. Há,entretanto, algumas implicações. A primeira, que há de subdividir-se em duas, diz respeitoao sofrimento das pessoas próximas à vítima. Sendo irreparável a perda de alguém, atristeza resultante da morte de um ente querido deve ser contabilizada como sofrimentoe seria um ponto contrário ao homicídio indolor. A segunda conseqüência da primeiraimplicação é o possível sofrimento resultante de privar-se uma família da pessoa que lhegarante o sustento. A segunda implicação diz respeito à sociedade como um todo: estapoderia tornar-se caótica e as vidas humanas, miseráveis (Cf. SMART, 1958, p.542).

De antemão, a tese de que o UN implicaria a destruição da raça humana éextravagante (Cf. BERMUDO, 1992, p.128). Não obstante, há um problema: Smart seprende à máxima do sofrimento mínimo, mas desconsidera os outros dois princípios doUN. Acabar com o sofrimento não é necessariamente acabar com qualquer possibilidadede sofrimento. Em todo caso, a proposta de Smart parece cabível apenas em casos emque o indivíduo não tenha perspectiva de ter seu sofrimento aliviado. Nos casos marginaisda ética, isto parece ser de grande importância; casos como a eutanásia, o aborto e osdireitos dos animais sofreriam algumas alterações, quiçá tornando legítimas ações queatualmente não o são e rechaçando outras atualmente aceitas.

Uma conseqüência da não consideração dos princípios da legalidade suficiente eda tolerância limitada é direcionar toda a argumentação para casos individuais, aindaque seja a soma de todos os indivíduos que esteja em questão como propõe Smart. Aênfase de Popper nas instituições, vale lembrar, parece indicar qual seja o seu alvo.

Ainda assim seria pertinente a crítica de Smart. A destruição global, como ele aapresenta, é um ato governamental, de modo que não se refere apenas a decisõesindividuais. Tal ato seria correto se, e somente se, não se considerasse o que o princípioda legalidade suficiente assevera – a saber: a questão fundamental da política não é“quem deve governar?”, mas “qual o poder deve ser depositado nas mãos dosgovernantes?” – somado à falta de clareza quanto à mensuração do sofrimento.

Farrell, por sua vez (1994, p.210), reconhece que se trata do estabelecimento deum princípio importante de uma ética humanitária. Mas ataca a proposta em três pontos:1. nunca existiu um utilitarismo exclusivamente positivo; 2. Popper é impreciso ao defendera assimetria entre dor e prazer. 3. Farrell critica também as possíveis conseqüências daproposta popperiana.

A defesa do UN, segundo Farrell, passa pela afirmação de que realmente tenhahavido uma versão exclusivamente positiva. Se a versão negativa seria uma tentativa dereforma, qual utilitarismo Popper estaria tentando reformar? Certamente nem Benthamnem Mill são aptos a receber tal crítica (Cf. FARRELL, 1994, p.211). Ambos teriam osofrimento em conta, quando elaboram suas teorias.

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Mill, segundo Farrell (1994, p.212), é mais claro que Bentham ao determinar a correçãodo agir pela sua capacidade de promover o prazer e de reduzir o sofrimento. A dor seriaprazer negativo. Então, promover a felicidade seria, necessariamente, reduzir o sofrimento.

Farrell admite que Popper poderia ter razão ao defender um utilitarismoestritamente negativo. É isto que ocorre, esta é a conseqüência da assimetria do pontode vista moral entre a dor e o prazer. Neste ponto, Farrell, critica a fragilidade da tesepopperiana, mais precisamente o ponto em que afirma “a promoção da felicidade é, emtodo caso, muito menos urgente que a ajuda àqueles que padecem e a tentativa deprevenir sua dor” (POPPER, 1959, p.546). O trecho citado é a seqüência da afirmação daassimetria entra dor e prazer, Popper estaria aí – desconsiderando-se a idéia de que dore prazer sejam assimétricos – sustentando um ponto de vista incompatível com as formasusuais de utilitarismo. No entanto, sua tese da prioridade na redução do sofrimentoseria perfeitamente cabível em qualquer teoria utilitarista (Cf. FARRELL, 1994, p.213).

Admitida a possibilidade de assimetria entre dor e prazer, Farrell estabelece quePopper não aprofunda de maneira adequada esta tese: não haveria precisão nosargumentos. O UN continuaria com os mesmos problemas de comparação interpessoalde sofrimento (no caso das versões clássicas esta comparação seria de utilidade) dasversões que pretende suplantar (Cf. FARRELL, 1994, p.215).

Outro ponto a receber críticas de Farrell é uma conseqüência da propostapopperiana. Já que Popper supusera que a forma positiva “aumentemos a felicidade”poderia produzir ditaduras benévolas, a forma negativa seria um antídoto que levaria auma forma democrática e liberal de governo. Farrell, para refutar tal afirmação, citaBentham e Mill novamente, pois ambos apoiaram a democracia de forma decisiva enenhum utilitarista jamais apoiou qualquer regime totalitário (Cf. FARRELL, 1994, p.216).A tese de Popper é, pois, infundada ao supor que a versão “positiva” tende à ditadura.Mas há mais um ponto em que ela é falha: a formulação negativa não conduznecessariamente à democracia.

Imaginemos ahora un estado que ponga en práctica el utilitarismo negativo dePopper: el objetivo es la disminución del dolor, y no el aumentar la felicidad delos súbditos. ¿Por qué deberia seguir-se de este solo propósito la adopción de lademocracia como forma de gobierno? Alguien podria sostener que un dictadorbenévolo es el indivíduo más capacitado para aliviar el dolor de su pueblo. Escuando experimentan grandes calamidades que los pueblos se volven hacia undictador, como lo recuerda la historia alemana de la década del treinta (FARRELL,1994, p.217).

Para Farrell, portanto, o UN não resolve nenhum dos problemas que afetam outilitarismo. Os problemas atribuídos por Popper à versão clássica não se verificariam eos benefícios esperados na adoção da formulação negativa da máxima utilitarista nãoseriam certos.

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Considerações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finais

Entre as diversas críticas que o utilitarismo clássico recebeu, o fato de permanecerdistante da moral comum é uma constante ao lado do problema de ser fundamentado emuma epistemologia de cunho positivista que carrega consigo sérios problemas para aquiloque oferece comumente a base para o discurso ético, a saber a antropologia. Parece que éa estes problemas que Popper intenta solucionar. É inegável, ainda, que Popper escreveumuito pouco sobre a proposta de adoção de um princípio de minimização do sofrimento.Assim, qualquer estudo acerca do UN é dificultado pela escassez bibliográfica.

A proposta central deste trabalho: da coerência entre o UN e a epistemologia dePopper, pode-se afirmar, é ponto pacífico, uma vez que ele mesmo propõe tal coerência.Além disso, a idéia de uma ética teleológica que priorize a minimização do sofrimento éparte integrante do pensamento político apresentado, sobretudo, em A sociedadedemocrática e seus inimigos e em La miseria del historicismo. De modo que, reformuladaa base epistemológica, é mister reestruturar também a proposta ética. A tese basilar doUN, o sofrimento mínimo, é a necessária alternativa quando se percebe que produzirriqueza não equivale a diminuir a dor. Já a idéia de que o UN eliminaria o risco,presumivelmente engendrado na versão clássica, de propiciar ditaduras benevolentes édiscutível. Popper parece estar criticando os rumos seguidos por diversas nações, levadasa isso pela máxima “aumentai a felicidade”. Contudo, as ditaduras, sejam quais forem,não se coadunam com o utilitarismo clássico, principalmente se o referencial tomado forJohn S. Mill (defende-se aqui uma interpretação mais recente de Mill que procuracompreender seu Utilitarianism à luz do que é proposto em On Liberty).

O UN, portanto, diferente do que afirma Farrell, resolve pelo menos dois dosproblemas da versão clássica: a base epistemológica e a distância da moral comum. Umavez que a versão estritamente negativa implica em uma reorganização dos pressupostose conceitos fundamentais do utilitarismo, tornando-o mais próximo da moral comum erevitalizando um traço que, em Bentham, era marcante: o humanismo.

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* Fragmentos extraídos de PASCAL,B. PPPPPenséesenséesenséesenséesensées. Texte de l’éditionBrunschvicg. Paris: Librairie GarnierFrères, 1948, p.87-93, 131.Tradução de Enio Paulo Giachini.

[Frag. 72] Que o homem contemple pois a naturezainteira em sua majestade elevada e plena, que ele afasteseu olhar dos objetos baixos que estão ao seu redor. Queolhe para essa luz cintilante, postada como uma lâmpadaeterna para alumiar o universo, que a terra lhe pareça comoum ponto do vasto curso descrito por esse astro, e que seadmire de que esse vasto curso não é ele próprio mais queum ponto muito débil frente ao curso abrangido pelosastros que giram no firmamento.

Mas se nossa vista se detém ali, que a imaginação aultrapasse; é mais fácil ela cansar-se de conceber do que anatureza de lhe fornecer. Todo esse mundo visível não passade um traço imperceptível no amplo seio da natureza.Nenhuma idéia pode se aproximar de tal. Podemos muitobem inflar nossas concepções além dos espaçosimagináveis, não vamos conceber mais que átomos darealidade das coisas. É uma esfera cujo centro está em todolugar, e a circunferência em parte alguma. Enfim, é a maiorcaracterística sensível do total-poder de Deus, de tal modoque nossa imaginação se perde nesse pensar.

Tendo voltado a si, que o homem considere o que eleé frente àquilo que é; que observe a si como desgarradonesse cantão afastado da natureza; e dessa pequena celaonde se acha instalado, quero dizer, o universo, que aprendaa avaliar e estimar a terra, os reinos, as cidades e a si mesmo,em seu justo preço. O que é um homem no infinito?

Mas a fim de apresentar-lhe um outro prodígioigualmente desconcertante, que ele procure pelas coisas asmais delicadas naquilo que ele conhece. Que uma lêndea lheoferece na pequenez de seu corpo partes incomparavelmentemenores, pernas com articulações, veias nas pernas, sanguenas veias, humores no sangue, gotas nesses humores, vaporesnessas gotas; e que, dividindo ainda essas últimas coisas, ele

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Blaise Pascal

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esgote suas forças para concebê-las, e que o último objeto ao qual consegue alcançar sejaobjeto de nosso discurso agora; possivelmente imaginará estar diante da pequenez extremada natureza. Quero fazer-lhe ver ali dentro, porém, um novo abismo. Quero pintar-lhe nãoapenas o universo visível, mas a imensidão que podemos conceber da natureza, na clavedessa fenda do átomo. Que ele veja ali uma infinidade de universos, cada um dos quaistendo seu firmamento, seus planetas, sua terra, na mesma proporção que o mundo visível;nessa terra, animais, e por fim lêndeas nas quais irá encontrar aquilo que esses primeirosderam; e encontrando ainda nos outros a mesma coisa sem fim e sem repouso, que ele seperca nessas maravilhas, tão desconcertantes por sua pequenez como as outras por suaextensão; pois quem não se admirará de nosso corpo, que há pouco não era perceptível nouniverso, imperceptível ele mesmo no seio do todo, seja ora um colosso, um mundo, ou,antes, um todo frente ao nada onde se pode chegar.

Quem assim se considerar se assustará de si mesmo, e considerando que estásuspenso na massa que a natureza lhe deu, entre os dois abismos do infinito e do nada,tremerá diante da visão dessas maravilhas; e mudando sua curiosidade em admiração,estará mais disposto a contemplá-las em silêncio do que procurá-las com presunção.

Pois, afinal, o que é o homem na natureza? Um nada frente ao infinito, um todofrente ao nada, um meio entre nada e tudo. Infinitamente distante de compreender osextremos, o fim das coisas e seu começo estão invencivelmente escondidos dentro deum segredo impenetrável, igualmente incapaz de ver o nada donde foi retirado e oinfinito que o engole.

Que fará ele, então, a não ser perceber [alguma] aparência do meio das coisas,num desespero eterno de não conhecer seu princípio nem seu fim? Todas as coisassaíram do nada e são levadas até o infinito. Quem seguirá essa marcha estonteante. Oautor dessas maravilhas as compreende. Todo e qualquer outro não o pode fazer.

Sem terem contemplado esses infinitos, os homens puseram-se temerariamente ainvestigar a natureza, como se tivessem qualquer proporção para com ela. É estranhoeles terem querido compreender os princípios das coisas e a partir dali alcançar conhecero todo, por uma presunção tão infinita quanto seu objeto. Com efeito, é impossívelformar tal desígnio sem uma presunção ou uma capacidade infinita como a natureza.

Quando se é instruído, compreende-se que, tendo a natureza gravado sua imageme a de seu autor em todas as coisas, todas essas contêm, quase todas, algo de sua duplainfinidade. Vemos assim que todas as ciências são infinitas na extensão de sua investigação,pois quem duvida por exemplo que a geometria tem uma infinidade de infinidades deproposições a expor? São infinitas tanto na multidão quanto na debilidade de seus princípios;com efeito, quem não percebe que aquelas que propomos como as derradeiras não sesustentam a si mesmas, apoiando-se em outras, que tendo ainda outras como apoio,jamais admitem o último? Mas nós estabelecemos últimos que parecem ser à razão, comofazemos nas coisas materiais onde chamamos de indivisível a um ponto além do qualnossos sentidos nada mais percebem, embora infinitamente divisível e por natureza.

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Desses dois infinitos das ciências, aquele infinito da grandeza é bem mais sensívele é por isso que um bocado de pessoas pretendeu poder conhecer todas as coisas. “Voufalar de todas as coisas”, dizia Demócrito.

Mas o infinito em pequenez é bem menos visível. Preferentemente os filósofospretenderam ali chegar, e é ali onde todos tropeçaram. Foi o que deu lugar a esses títulostão comuns: os princípios das coisas, os princípios da filosofia e semelhantes, emborapareçam modestos, são na realidade tão faustosos como esse outro que nos mostra semnos deixar ver: De omni scibili.

Cremos naturalmente sermos mais capazes de alcançar o centro das coisas do queabraçar sua circunferência; a extensão visível do mundo nos ultrapassa visivelmente; mascomo somos nós que ultrapassamos as coisas pequenas, cremos sermos mais capazes depossuí-las, e todavia, não é preciso de menos capacidade para ir até o nada do que para irao todo: ela deve ser infinita, tanto para um quanto para o outro, e parece-me que quemcompreendeu os princípios últimos das coisas poderia também alcançar conhecer o infinito.Um depende do outro, e um conduz ao outro. Essas extremidades se tocam e se reúnemem virtude de terem se distanciado, e se reencontram em Deus e em Deus somente.

Conheçamos pois nosso alcance; somos alguma coisa e não somos tudo; isso quetemos de ser nos priva do conhecimento dos primeiros princípios que nascem do nada;e o pouco que temos de ser nos oculta a vista do infinito.

Na ordem das coisas inteligíveis, nossa inteligência ocupa o mesmo nível quenosso corpo na extensão da natureza.

Delimitados em todo gênero, este estado que ocupa o meio entre dois extremosse encontra em todas as nossas capacidades. Nossos sentidos nada percebem de extremo,muito barulho nos ensurdece, muita luz nos cega, distância muito grande ou muitopequena nos impede a vista, um discurso muito longo ou muito breve torna-se obscuro,muita verdade nos assombra (conheço pessoas que não conseguem compreender quetirando 4 de 0 resta 0), os primeiros princípios têm evidência demasiada para nós, prazerdemasiado incomoda; na música, muitas consonâncias acabam desagradando; muitosbenefícios irritam, queremos ter com que pagar a dívida. [Beneficia eo usque laeta suntdum videntur exsolvi posse; ubi multum ante venere, pro gratia odium redditur1]. Nãosentimos nem o extremo calor nem o frio extremo; as qualidades excessivas são nossasinimigas, e não são sensíveis; não as sentimos, sofremo-las. Demasiada juventude edemasiada velhice impedem o espírito, muita ou muito pouca instrução; enfim, paranós, as coisas extremas são como se não fossem, e em sua perspectiva nós não somos;elas nos escapam, ou nós a elas.

Eis aí nosso verdadeiro estado; é o que nos torna incapazes de saber certamente ede ignorar absolutamente. Vagueamos sobre um vasto meio, sempre incertos e flutuando,empurrados de um lado ao outro. Qualquer forma à qual pensemos em nos prender,

1 TÁCITO, citado por Montaigne, XXX, 8.

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afirmando-nos, isso começa a oscilar e nos deixa; e se a seguimos, escapa à nossa captura,escorrega e foge numa fuga eterna. Nada se detém para nós. É o estado que nos énatural, e no entanto o mais contrário à nossa inclinação; ardemos de desejo por encontrarum assento firme e uma base última e constante para ali edificar uma torre que se eleveao infinito, mas todo nosso fundamento se rompe, e o solo se fende até o abismo.

Não procuremos, portanto, ponto de segurança e de firmeza. Nossa razão édesiludida constantemente pela inconstância das aparências, nada pode fixar o finitoentre os dois infinitos que o abarcam e dele fogem.

Uma vez tendo bem compreendido isso, creio que nos manteremos em repouso,cada um no estado onde a natureza o colocou. Se esse é o meio que nos foi legado,estando sempre distantes dos extremos, que importa então que o homem tenha umpouco mais de inteligência das coisas? Se ele a tem, ele as tomará de modo um poucomais elevado. Ele não está infinitamente distante do fim, e a duração de nossa vida nãoestá infinitamente [distante] da eternidade, mesmo que dure dez anos a mais?

Frente a esse infinito, todos os finitos são iguais; e não vejo razões para assentarsua imaginação antes num do que no outro. A simples comparação que fazemos de nóse do finito nos deixa acabrunhados.

Se se esforçasse para estudar o primeiro veria como é incapaz de alcançar o outro.E como poderia uma parte conhecer o todo? Mas talvez ele aspirasse a conhecer, pelomenos, as partes com as quais tem certa proporção. Mas as partes do mundo têm todasuma tal remissão e um tal encadeamento mútuo que me parece impossível conheceruma sem a outra e sem o todo.

O homem por exemplo está remetido a tudo que ele conhece. Precisa de lugarpara o conter, de tempo para durar, de movimento para viver, de elementos que ocomponham, de calor e de alimentos para (se) nutrir, de ar para respirar; ele vê a luz,sente o corpo; enfim, tudo recai sob sua aliança. Para conhecer o homem, portanto, épreciso saber donde vem que ele precisa de ar para subsistir, e para conhecer o ar, sabercomo ele tem essa remissão com a vida do homem etc. A chama não subsiste sem o ar;de modo que para conhecer um é preciso conhecer o outro.

Ora, uma vez que todas as coisas são causadas e causadoras, auxiliadas eauxiliadoras, mediatas e imediatas, e todas se entretêm por um liame natural e insensívelque liga as mais distanciadas e as mais diferentes, julgo ser impossível conhecer as partessem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem conhecer particularmente aspartes. [A eternidade das coisas, em si mesmas ou em Deus, deve assombrar ainda nossapequena duração. A imobilidade fixa e constante da natureza, em comparação com atransformação contínua que se processa em nós, deve causar o mesmo efeito.]

E o que completa nossa incapacidade de conhecer as coisas é que elas são simplesem si mesmas e que nós somos compostos de duas naturezas opostas e de gênero diverso,de alma e de corpo. Com efeito, é impossível que a parte que em nós pensa seja outra coisaque espiritual; e se pretendem que sejamos simplesmente corpóreos, isso nos excluiria

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ainda mais do conhecimento das coisas, e nada seria mais inconcebível do que afirmar quea matéria conhece a si mesma; não nos é possível saber como ela se conheceria.

E, assim, se [somos] simplesmente materiais, nada podemos conhecer, e se somoscompostos de espírito e matéria, não podemos conhecer com perfeição as coisas simples,espirituais ou corpóreas.

É por isso que quase todos os filósofos confundem as idéias das coisas, falandode coisas corpóreas espiritualmente, e de coisas espirituais corporalmente. Com efeito,afirmam ousadamente que os corpos tendem para baixo, que aspiram a alcançar seucentro, que fogem da destruição, que temem o vácuo, que possuem inclinações, simpatias,antipatias, coisas essas que pertencem todas só aos espíritos. E ao falarem dos espíritos,consideram-nos como estando num lugar, atribuem-lhes movimento de um lugar paraoutro, coisas essas que pertencem todas só aos corpos.

Em vez de receber as idéias dessas coisas puras, nós as tingimos com nossas qualidades,impregnando com nosso ser composto todas as coisas simples que contemplamos.

Ao nos ver compondo todas as coisas de espírito e de corpo, quem não acreditariaque essa mistura nos é bem compreensível? Todavia, essa coisa é a que menoscompreendemos. Por ele mesmo, o homem é o mais prodigioso objeto da natureza;visto que não pode conceber o que seja corpo, ainda menos o que seja espírito, e menosque qualquer coisa, como um corpo pode estar unido com um espírito. Ali está sua maiselevada dificuldade, e no entanto é seu próprio ser: Modus quo corporibus adhaerentspiritus comprehendi ab hominibus non potest, et hoc tamen homo est...

[Frag. 205] Quando considero a pequena duração da minha vida, absorvido naeternidade precedente e posterior, o pequeno espaço que ocupo e mesmo que vejo, abismadona infinita imensidão dos espaços que ignoro e que me ignoram, me assombro e fico perplexode ver-me aqui e não lá, pois não há razão alguma para que esteja aqui em vez de lá, viverpresentemente e não em outro momento. Quem me colocou aqui? Por ordem e orientaçãode quem me foram destinados esse lugar e esse tempo? Memoria hospitis unius dieipraetereuntis (a lembrança de hóspede de um dia que passa. Sabedoria, V,15).

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