6
1 toque Uma viagem literária o acervo da vida contado pelo voluntariado “Clara manhã, obrigado. O essencial é vi- ver”. Assim o escritor e poeta Carlos Drum- mond de Andrade salda a vida. Não viver sozinho, não se isolar, celebrar através da literatura. Isso é muito mais é o que ofe- rece o acervo da Biblioteca Pública Luiz de Bessa, pertencente ao Circuito Cultural Praça da Liberdade. Embarcar na aventura proposta é a oportunidade de conhecer e dividir experiências. “Só o fato de pessoas doarem uma parte do seu dia para me ajudar, é indício de que são pessoas com quem se vale a pena conviver”, conta emocionado o deficiente visual Luis Chaves, a respeito dos volun- tários de leitura do Setor Braille. Com 25 anos e apenas 10% da visão, Chaves conse- gue amenizar suas limitações diárias graças a pessoas que toda semana fazem leitura para grupos de deficientes visuais. Nos versos de um livro qualquer: um coração e um ouvido A mística viagem que envolve o acesso à literatura pelos lábios e ouvidos de uma relação além de voluntária Imagem: acervo revista Toque

Revista Toque - revista para cegos

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Matéria de capa da revista piloto

Citation preview

Page 1: Revista Toque - revista para cegos

1to

que

Um

a vi

agem

lite

rária

o a

cerv

o da

vid

a co

ntad

o pe

lo v

olun

tari

ado

“Clara manhã, obrigado. O essencial é vi-ver”. Assim o escritor e poeta Carlos Drum-mond de Andrade salda a vida. Não viver sozinho, não se isolar, celebrar através da literatura. Isso é muito mais é o que ofe-rece o acervo da Biblioteca Pública Luiz de Bessa, pertencente ao Circuito Cultural Praça da Liberdade. Embarcar na aventura proposta é a oportunidade de conhecer e dividir experiências.

“Só o fato de pessoas doarem uma parte do seu dia para me ajudar, é indício de que são pessoas com quem se vale a pena conviver”, conta emocionado o deficiente visual Luis Chaves, a respeito dos volun-tários de leitura do Setor Braille. Com 25 anos e apenas 10% da visão, Chaves conse-gue amenizar suas limitações diárias graças a pessoas que toda semana fazem leitura para grupos de deficientes visuais.

Nos versos de um livro qualquer: um coração e um ouvido

A mística viagem que envolve o acesso à literatura pelos lábios e ouvidos de uma relação além de voluntária

Imag

em: a

cerv

o re

vist

a To

que

Page 2: Revista Toque - revista para cegos

Luís e seu irmão nasceram com 30% da visão, e por muito tempo não tiveram consciência de que eram deficientes. Somente na ado-lescência ambos descobriram que havia algo errado. A partir de então, as limitações pas-saram a se apresentar rotineiramente. Andar a noite e usar o computador passaram a ser atividades inviáveis. Na época, Chaves cursa-va Direito e teve que desenvolver outros mé-todos para conseguir concluir a faculdade.

Hoje, formado, ele estuda para concursos públicos e tem na leitura o maior de seus de-safios. Além do braille, faz o uso de diversas ferramentas para deficientes visuais, como, lente de aumento para textos e aparelhos que digitalizam arquivos para leitura-áudio, em computadores.

Todos podem ser voluntários, desde crianças até idosos. O revezamento é para orientar os deficientes em pesquisas e os inserir no mundo da literatura. E, ao contrário do que se imagina, não é só quem ouve que ganha com o vínculo que se estabelece na relação.

Há três anos, o aposentado Renato Barbosa da Silva, 73, é voluntário e vai à biblioteca para fazer as leituras. “Quando conheci o tra-balho me surpreendi, e a cada semana é um novo aprendizado”, diz ele. Renato mora em um bairro distante da biblioteca, mas conta que tenta realizar o trabalho com regularida-

toqu

eU

ma

viag

em li

terá

ria o

ace

rvo

da v

ida

cont

ado

pelo

vol

unta

riad

o2

Page 3: Revista Toque - revista para cegos

toqu

eU

ma

viag

em li

terá

ria o

ace

rvo

da v

ida

cont

ado

pelo

vol

unta

riad

o3

de. Ele explica que o caráter e o esforço dos deficientes é o que faz com que ele esqueça a idade que tem e se mova em prol dos que necessitam do serviço. “A determinação des-sas pessoas em superar suas dificuldades é incrível, enquanto nós, que enxergamos tão bem, não damos valor a isso”, explica.

Amizade Iiterária

Além de despertar o prazer pela leitura e ficar com a sensação de estar cumprimen-to seu papel social, os frequentadores do Setor Braille mantêm uma amizade que é selada pelas discussões, promovidas pelas obras que são lidas e pela troca de experi-ências em comum. Sorrindo, Luis fala que boa parte de suas amizades veio desses grupos, e explica que as relações ali estabe-lecidas são muito ricas, já que, segundo ele, quem participa são pessoas com alto nível moral e cultural.

Na época em que cursava a 5ª série, Luis se esforçava para estudar sozinho. Além de ler com muita dificuldade, fazia as mesmas pro-vas que eram aplicadas para todos os outros alunos. Ao lembrar do desgaste que tinha, ele revela – “Posso dizer que as pessoas mais im-portantes da minha vida conheci nos grupos de leitura voluntária da biblioteca”.

Imag

em: a

cerv

o re

vist

a To

que

Page 4: Revista Toque - revista para cegos

Deficiência estrutural

Em Belo Horizonte não há editoras que pu-blicam livros em linguagem braille, por isso, o espaço de leitura tem grande carência de obras transcritas na linguagem. Hoje, o acervo desse departamento tem cerca de 5.600 vo-lumes, adquiridos por doações de instituições que trabalham com pessoas com deficiência visual. Além disso, o setor tem uma impresso-ra que realiza as traduções dos títulos. “Mas tudo ocorre com pequena escala de produ-ção e, por isso, não conseguimos atender às demandas de forma contínua e vasta como gostaríamos que fosse”, conta Viviane Pereira, coordenadora do Setor Braille.

toqu

eU

ma

viag

em li

terá

ria o

ace

rvo

da v

ida

cont

ado

pelo

vol

unta

riad

o4

Imagem: acervo Biblioteca Municipal Luiz de Bessa

Além das leituras em grupo, há voluntários que fazem leitura viva-voz em um estúdio que fica dentro da própria biblioteca. No local são rea-lizadas gravações em áudio-livros que podem ser feitas por aqueles que têm menos tempo de frequentar os grupos. “Tudo é um somatório de um serviço para ajudar os deficientes com suas barreiras diárias”, explica Viviane.

Com desafios, tanto por parte das limitações dos deficientes visuais quanto pelo atendimen-to, a única que coisa faz com que essa relação se mantenha é a determinação dos dois lados. A cada dia, voluntários e beneficiados buscam maior absorção do conhecimento: “Aqui mais aprendo do que repasso informações, todo dia é uma emoção diferente”, comemora Viviane.

Page 5: Revista Toque - revista para cegos

Um

a vi

agem

lite

rária

o a

cerv

o da

vid

a co

ntad

o pe

lo v

olun

tari

ado

5to

que

#seliga

O acervo é composto por literatura infantojuvenil, literatura brasileira e estrangeira, periódicos, livros informativos e dicionários. Os visitantes também podem acessar os arquivos em áudio, sendo mais de 200 deles referentes ao curso de Direito.

Atualmente, 401 leitores cadastrados utilizam os serviços de empréstimo domiciliar, que conta com livros transcritos para o sistema braille e audiolivros (livros falados compostos por arquivos de som no formato MP3, gravados e estruturados de forma a facilitar a navegação). O espaço também disponibiliza acesso à internet por meio de computadores com sintetizador de voz (JAWS) para as pessoas cegas; ampliador de tela (MAGIC) e lupa eletrônica para leitores com baixa visão.

As visitas podem ser feitas na sede da Biblioteca, na Praça da Liberdade, de segunda à sexta-feira, de 8h às 18h, e nos sábados até o meio-dia. Outras informações pelo telefone (31) 3269-1218.

Page 6: Revista Toque - revista para cegos

toqu

eU

ma

viag

em li

terá

ria o

ace

rvo

da v

ida

cont

ado

pelo

vol

unta

riad

o6

Esse artigo foi produzido com o apoio das netas de Arnaldo, Letícia e Ana Paula. A versão feita por elas pode ser lida no blog Trem da História.

Arn

aldo

Mar

ches

otti No contexto histórico da Itália em 1918, a gripe espanhola, varia-

ção da gripe comum que devastou a Europa, matando, em nú-meros imprecisos, entre 20 e 50 milhões de pessoas. No contexto político, o Fascismo, doutrina totalitária de origem italiana que ganhou terreno com a chegada de Mussolini ao poder, em 1922.

Ines e Ricardo, casal italiano, viviam na cidade de Como, nos arredores de Milão. Ele, especialista em montagem e conserto de motores e bombas hidráulicas, ofício muito prestigiado na I Guerra Mundial, em que combateu. Ela, como a maior parte das mulheres da época, dona de casa e mãe de quatro filhos, que acreditava que a vida iria melhorar depois da guerra.

Os eventos que iniciam essa história foram determinantes na trajetória da família. Já abalados pela devastação que a gripe causou, os italianos que se opunham ao regime totalitarista eram radicalmente perseguidos. Esses dois fatos fizeram que a famí-lia se mudasse para o Brasil onde os irmãos de Ricardo haviam montado uma fábrica de tecido. Mas a gripe deixou marcas pro-fundas: o velho Ricardo foi desenganado, a filha, Ângela, ficou com deformação nos membros inferiores e o caçula, Arnaldo, perdeu totalmente a visão aos 18 meses de vida.

Desembarcando no porto de Santos em 1926, a escolha por Belo Horizonte para que a família se estabelecesse levou em conside-ração as necessidades de Arnaldo, filho que se despontava como talento musical, apesar das barreiras visuais. A presença do pro-fessor de música, Pedro de Castro, no Instituto São Rafael, foi um dos fatores que levaram a escolha.

Assim começa a história de sucesso de um dos maiores pianistas do mundo. Aos nove anos se apresentou no Teatro Municipal de São Paulo e aos onze no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sempre com grande repercussão na mídia ressaltando sua genia-lidade. Em Belo Horizonte, concluiu seus estudos em 1932, como o primeiro pianista cego a diplomar-se no Brasil.

Apresentou-se em mais de 150 cidades brasileiras, todas as capi-tais, Estados Unidos e América Latina. Realizou atividades radio-fônicas tocando na Rádio Inconfidência desde sua fundação até aposentar-se em 1968, na Rádio Ministério da Educação, Jornal do Brasil, Rádio Educadora Paulista, além de audições na TV Ita-colomi e na TV Tupi. Foi crítico musical na Folha de Minas e lecio-nou no Instituto São Rafael por 30 anos.

Leituras em braile, estudo de idiomas (o músico falava seis lín-guas) e exercícios diários ao piano faziam parte de sua rotina diária. Até que um dia, em 1979, Arnaldo entrou no seu salão de música, tocou piano e não mais saiu. A morte por um tiro na boca nunca foi totalmente esclarecida, mas é certo que nem ela pode calar as notas do mestre.

Sent

a qu

e lá

vem

his

tóri

a...