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Revista Trimestral de Jurisprudência volume 221 julho a setembro de 2012

Revista Trimestral de Jurisprudência · Revista Trimestral de Jurisprudência volume 221 julho a setembro de 2012. ... (19‑12‑2011) COMPOSIÇÃO DAS TURMAS PRIMEIRA TURMA Ministro

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  • Revista Trimestral de Jurisprudência

    volume 221julho a setembro de 2012

  • Disponível também em:

    Secretaria ‑Geral da Presidência Anthair Edgard de Azevedo Valente e Gonçalves

    Secretaria de Documentação Janeth Aparecida Dias de Melo

    Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência Andreia Fernandes de Siqueira

    Equipe técnica: Gil Wadson Moura Júnior, José Carlos Bezerra de Siqueira Júnior (estagiário), Priscila Heringer Cerqueira Pooter e Valquirio Cubo Junior

    Diagramação: Roberto Hara Watanabe

    Revisão: Amélia Lopes Dias de Araújo, Divina Célia Duarte Pereira Brandão, Patrícia Keico Honda Daher e Rochelle Quito

    Capa: Núcleo de Programação Visual

    (Supremo Tribunal Fe deral — Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)

    Revista Trimestral de Jurisprudência / Supremo Tribunal Federal. – V. 1,n. 1 (abr./jun. 1957) ‑ . – Brasília : STF, 1957‑ .

    v. ; 22 x 16 cm.Trimestral.Título varia: RTJ.Repositório Oficial de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.Nome do editor varia: Imprensa Nacional / Supremo Tribunal Federal,

    1957 a 2001; Editora Brasília Jurídica, 2002 a 2006; Supremo TribunalFederal, 2007‑ .

    Disponível também em formato eletrônico a partir de abr. 1957:http://www.stf.jus.br/portal/indiceRtj/pesquisarIndiceRtj.asp.

    ISSN 0035‑0540.

    1. Tribunal supremo, jurisprudência, Brasil. 2.  Tribunal supremo,periódico, Brasil. I.  Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF).Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência. II. Título: RTJ.

    CDD 340.6

    Solicita ‑se permuta. Pídese canje. On demande l’échange. Si richiede lo scambio. We ask for exchange. Wir bitten um Austausch.

    Seção de Distribuição de Edições Maria Cristina Hilário da SilvaSupremo Tribunal FederalAnexo II ‑A, Cobertura, Sala C ‑624 Praça dos Três Poderes 70175‑900 – Brasília ‑DF [email protected] Fone: (061) 3217‑4780

  • Su PRE mo TRIBuNAL FEDERAL

    Mi nis tro Carlos Augusto AyRES de Freitas BRITTO (25‑6‑2003), PresidenteMi nis tro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25‑6‑2003), Vice ‑PresidenteMi nis tro José CELSO DE MELLO Filho (17‑8‑1989)Mi nis tro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13‑6‑1990)Mi nis tro GILMAR Ferreira MENDES (20‑6‑2002)Mi nis tro Antonio CEZAR PELUSO (25‑6‑2003)Mi nis tro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (16‑3‑2006)Mi nis tra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha (21‑6‑2006)Ministro José Antonio DIAS TOFFOLI (23‑10‑2009)Ministro LUIZ FUX (3‑3‑2011)Ministra ROSA Maria WEBER Candiota da Rosa (19 ‑12 ‑2011)

    COMPOSIÇÃO DAS TURMAS

    PRIMEIRA TURMA

    Ministro José Antonio DIAS TOFFOLI, PresidenteMinistro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias MelloMinistra CÁRMEN LÚCIA Antunes RochaMinistro LUIZ FUXMinistra ROSA Maria WEBER Candiota da Rosa

    SEGUNDA TURMA

    Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI, PresidenteMinistro José CELSO DE MELLO FilhoMinistro GILMAR Ferreira MENDESMinistro Antonio CEZAR PELUSOMinistro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes

    PROCURADOR‑GERAL DA REPÚBLICA

    Doutor ROBERTO MONTEIRO GURGEL SANTOS

  • COMPOSIÇÃO DAS COMISSÕES

    COMISSÃO DE REGIMENTO

    Mi nis tro MARCO AURÉLIOMi nis tro JOAQUIM BARBOSAMi nis tro RICARDO LEWANDOWSKIMi nis tro LUIZ FUX – Suplente

    COMISSÃO DE JURISPRUDÊNCIA

    Mi nis tro GILMAR MENDESMi nis tra CÁRMEN LÚCIAMi nis tro LUIZ FUX

    COMISSÃO DE DOCUMENTAÇÃO

    Mi nis tro CELSO DE MELLOMinistro DIAS TOFFOLIMinistra ROSA WEBER

    COMISSÃO DE COORDENAÇÃO

    Mi nis tro CEZAR PELUSOMi nis tro GILMAR MENDESMinistro DIAS TOFFOLI

  • SumÁRIo

    Pág.

    ACÓRDÃOS .................................................................................................................... 9

    ÍNDICE ALFABÉTICO ........................................................................................... 637

    ÍNDICE NUMÉRICO .............................................................................................. 649

  • ACÓRDÃOS

  • AÇÃo DECLARATÓRIA DE CoNSTITuCIoNALIDADE 29 — DF

    Relator: O sr. ministro Luiz Fux

    Requerente: Partido Popular Socialista  — Interessados: Presidente da República e Congresso Nacional

    Ações declaratórias de constitucionalidade e ação direta de inconstitucionalidade em julgamento conjunto. LC 135/2010. Hipóteses de inelegibilidade. Art. 14, § 9º, da Constituição Federal. moralidade para o exercício de mandatos eletivos. Inexistência de afronta à irretroatividade das leis: agravamento do regime jurídico eleitoral. Ilegitimidade da expectativa do indivíduo en‑quadrado nas hipóteses legais de inelegibilidade. Presunção de inocência (art. 5º, LVII, da Constituição Federal): exegese aná‑loga à redução teleológica, para limitar sua aplicabilidade aos efeitos da condenação penal. Atendimento dos princípios da ra‑zoabilidade e da proporcionalidade. observância do princípio democrático: fidelidade política aos cidadãos. Vida pregressa: conceito jurídico indeterminado. Prestígio da solução legisla‑tiva no preenchimento do conceito. Constitucionalidade da lei. Afastamento de sua incidência para as eleições já ocorridas em 2010 e as anteriores, bem como e para os mandatos em curso.

    1. A  elegibilidade é a adequação do indivíduo ao regime jurídico  – constitucional e legal complementar  – do processo eleitoral, razão pela qual a aplicação da LC  135/2010 com a consideração de fatos anteriores não pode ser capitulada na retroatividade vedada pelo art. 5º, XXXV, da Constituição, mercê de incabível a invocação de direito adquirido ou de autoridade da coisa julgada (que opera sob o pálio da cláusula rebus sic stanti‑bus) anteriormente ao pleito em oposição ao diploma legal retro

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    mencionado; subjaz a mera adequação ao sistema normativo pre‑térito (expectativa de direito).

    2. A razoabilidade da expectativa de um indivíduo de con‑correr a cargo público eletivo, à luz da exigência constitucional de moralidade para o exercício do mandato (art. 14, § 9º), resta afastada em face da condenação prolatada em segunda instância ou por um colegiado no exercício da competência de foro por prerrogativa de função, da rejeição de contas públicas, da perda de cargo público ou do impedimento do exercício de profissão por violação de dever ético ‑profissional.

    3. A  presunção de inocência consagrada no art.  5º, LVII, da Constituição Federal deve ser reconhecida como uma regra e interpretada com o recurso da metodologia análoga a uma re‑dução teleológica, que reaproxime o enunciado normativo da sua própria literalidade, de modo a reconduzi ‑la aos efeitos próprios da condenação criminal (que podem incluir a perda ou a suspen‑são de direitos políticos, mas não a inelegibilidade), sob pena de frustrar o propósito moralizante do art. 14, § 9º, da Constituição Federal.

    4. Não é violado pela LC 135/2010 o princípio constitucional da vedação de retrocesso, posto não vislumbrado o pressuposto de sua aplicabilidade concernente na existência de consenso bá‑sico, que tenha inserido na consciência jurídica geral a extensão da presunção de inocência para o âmbito eleitoral.

    5. o direito político passivo (ius honorum) é possível de ser restringido pela lei, nas hipóteses que, in casu, não podem ser consideradas arbitrárias, porquanto se adequam à exigên‑cia constitucional da razoabilidade, revelando elevadíssima carga de reprovabilidade social, sob os enfoques da violação à moralidade ou denotativos de improbidade, de abuso de poder econômico ou de poder político.

    6. o princípio da proporcionalidade resta prestigiado pela LC  135/2010, na medida em que: (i) atende aos fins moraliza‑dores a que se destina; (ii) estabelece requisitos qualificados de inelegibilidade e (iii) impõe sacrifício à liberdade individual de candidatar ‑se a cargo público eletivo que não supera os benefí‑cios socialmente desejados em termos de moralidade e probidade para o exercício de referido munus publico.

    7. o exercício do ius honorum (direito de concorrer a cargos eletivos), em um juízo de ponderação no caso das inelegibilidades previstas na LC  135/2010, opõe ‑se à própria democracia, que pressupõe a fidelidade política da atuação dos representantes populares.

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    8. A LC 135/2010 também não fere o núcleo essencial dos direitos políticos, na medida em que estabelece restrições tempo‑rárias aos direitos políticos passivos, sem prejuízo das situações políticas ativas.

    9. o cognominado desacordo moral razoável impõe o pres‑tígio da manifestação legítima do legislador democraticamente eleito acerca do conceito jurídico indeterminado de vida pre‑gressa, constante do art. 14, § 9º, da Constituição Federal.

    10. o  abuso de direito à renúncia é gerador de inelegibi‑lidade dos detentores de mandato eletivo que renunciarem aos seus cargos, posto hipótese em perfeita compatibilidade com a repressão, constante do ordenamento jurídico brasileiro (v.g., o art. 53, § 6º, da Constituição Federal e o art. 187 do Código Civil), ao exercício de direito em manifesta transposição dos limites da boa ‑fé.

    11. A inelegibilidade tem as suas causas previstas nos §§ 4º a 9º do art. 14 da Carta magna de 1988, que se traduzem em con‑dições objetivas cuja verificação impede o indivíduo de concorrer a cargos eletivos ou, acaso eleito, de os exercer, e não se confunde com a suspensão ou perda dos direitos políticos, cujas hipóteses são previstas no art. 15 da Constituição da República, e que im‑porta restrição não apenas ao direito de concorrer a cargos eleti‑vos (ius honorum), mas também ao direito de voto (ius sufragii). Por essa razão, não há inconstitucionalidade na cumulação entre a inelegibilidade e a suspensão de direitos políticos.

    12. A extensão da inelegibilidade por oito anos após o cum‑primento da pena, admissível à luz da disciplina legal anterior, viola a proporcionalidade numa sistemática em que a interdição política se põe já antes do trânsito em julgado, cumprindo, me‑diante interpretação conforme a Constituição, deduzir do prazo posterior ao cumprimento da pena o período de inelegibilidade decorrido entre a condenação e o trânsito em julgado.

    13. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga improcedente. Ações declaratórias de constitucionalidade cujos pedidos se julgam procedentes, mediante a declaração de constitucionalidade das hipóteses de inelegibilidade insti‑tuídas pelas alíneas c, d, f, g, h, j, m, n, o, p e q do art. 1º, I, da LC 64/1990, introduzidas pela LC 135/2010, vencido o relator em parte mínima, naquilo em que, em interpretação conforme a Constituição, admitia a subtração, do prazo de oito anos de inelegibilidade posteriores ao cumprimento da pena, do prazo de inelegibilidade decorrido entre a condenação e o seu trânsito em julgado.

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    14. Inaplicabilidade das hipóteses de inelegibilidade às eleições de 2010 e anteriores, bem como para os mandatos em curso, à luz do disposto no art. 16 da Constituição. Precedente: RE 633.703, rel. min. Gilmar mendes (repercussão geral).

    ACÓRDÃO

    Vistos, relatados e discutidos este autos, acordam os ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, sob a presidência do ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, em julgar procedente a ação.

    Brasília, 16 de fevereiro de 2012 — Luiz Fux, relator.

    RELATÓRIO

    O sr. ministro Luiz Fux: Trata ‑se de julgamento conjunto das ADC 29 e 30 e da ADI 4.578.

    Requer ‑se na ADC 29 a declaração de constitucionalidade, com pedido de medida cautelar, de normas contidas na LC 135, de 4 de junho de 2010, que alte‑rou a LC 64, de 18 de maio de 1990, diploma legal que, editado em observância do art. 14, § 9º, da Constituição de 1988, estabelece hipóteses de inelegibilidades. Estes os dispositivos legais em apreço:

    Art. 2º A Lei Complementar n. 64, de 1990, passa a vigorar com as seguintes alterações:

    Art. 1º (...)I – (...)c) o Governador e o Vice ‑Governador de Estado e do Distrito Federal

    e o Prefeito e o Vice ‑Prefeito que perderem seus cargos eletivos por infrin‑gência a dispositivo da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término do mandato para o qual tenham sido eleitos;

    d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;

    e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou pro‑ferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:

    1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;

    2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de ca‑pitais e os previstos na lei que regula a falência;

    3. contra o meio ambiente e a saúde pública;4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade;

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    5. de  abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública;

    6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;7. de  tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terro‑

    rismo e hediondos;8. de redução à condição análoga à de escravo;9. contra a vida e a dignidade sexual; e10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando;f) os que forem declarados indignos do oficialato, ou com ele incompa‑

    tíveis, pelo prazo de 8 (oito) anos;g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou fun‑

    ções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão compe‑tente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando ‑se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;

    h) os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder eco‑nômico ou político, que forem condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes; (…)

    j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou pro‑ferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recur‑sos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição;

    k) o Presidente da República, o Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito, os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais, que renun‑ciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura;

    l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena;

    m) os que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético ‑profissional, pelo prazo de 8 (oito) anos, salvo se o ato houver sido anu‑lado ou suspenso pelo Poder Judiciário;

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    n) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou pro‑ferida por órgão judicial colegiado, em razão de terem desfeito ou simulado desfazer vínculo conjugal ou de união estável para evitar caracterização de inelegibilidade, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão que reconhecer a fraude;

    o) os que forem demitidos do serviço público em decorrência de pro‑cesso administrativo ou judicial, pelo prazo de 8 (oito) anos, contado da de‑cisão, salvo se o ato houver sido suspenso ou anulado pelo Poder Judiciário;

    p) a pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações eleitorais tidas por ilegais por decisão transitada em julgado ou pro‑ferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão, observando ‑se o procedimento previsto no art. 22;

    q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem apo‑sentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos; (...)

    § 4º A inelegibilidade prevista na alínea e do inciso I deste artigo não se aplica aos crimes culposos e àqueles definidos em lei como de menor po‑tencial ofensivo, nem aos crimes de ação penal privada.

    § 5º A renúncia para atender à desincompatibilização com vistas a can‑didatura a cargo eletivo ou para assunção de mandato não gerará a inelegibi‑lidade prevista na alínea k, a menos que a Justiça Eleitoral reconheça fraude ao disposto nesta Lei Complementar.

    Postula o Partido Popular Socialista o reconhecimento da validade jurí‑dica da aplicação das hipóteses de inelegibilidade instituídas pela LC 135/2010 aos casos em que os atos ou fatos passíveis de enquadramento tenham ocorrido anteriormente à edição da lei em comento. Para tanto, invoca o art. 14, § 9º, da Constituição Federal, com redação introduzida pela Emenda Constitucional de Revisão 4/1994, verbis:

    § 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os pra‑zos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimi‑dade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

    Argumenta ‑se que a expressa referência constitucional ao exame da vida pregressa do candidato é bastante para autorizar a previsão, pelo legislador com‑plementar, de hipóteses de inelegibilidades que tomem em consideração fatos já passados e que raciocínio oposto esvaziaria o conteúdo da lei.

    Sustenta ‑se, ademais, que a inelegibilidade não constitui pena, mas uma restrição do direito de ser votado (ius honorum). Por essa razão, afastar ‑se ‑ia a aplicação da regra constitucional de irretroatividade das leis penais no tempo, questão que, segundo seu relato, já teria sido objeto de enfrentamento na juris‑prudência do Tribunal Superior Eleitoral.

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    Afasta ‑se, ainda, eventual óbice do princípio constitucional da segurança jurídica, pela afirmativa de que a verificação das condições de elegibilidade se dá no momento de registro da candidatura, sendo que não haveria direito “inato e inalienável” à candidatura.

    O arguente anexou à peça vestibular, para fins de comprovação da con‑trovérsia jurisprudencial relevante idônea a autorizar o ajuizamento da ação declaratória de constitucionalidade, decisões do Tribunal Superior Eleitoral e do Tribunal Regional Eleitoral do Estado de Sergipe (SE).

    Pela relevância social da questão, foi determinada por esta relatoria a apli‑cação analógica do procedimento abreviado previsto no art. 12 da Lei 9.868/1999. Antes, porém, assinalou ‑se que o exame do caso envolveria, à luz da teoria da causa petendi aberta, pelo que foi determinado ao requerente que, em nome do contraditório, aditasse a exordial para oferecer manifestação quanto à eventual incidência não apenas das normas constitucionais por ele invocadas, como tam‑bém do princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII), abor‑dagem que se faria necessária, considerando o julgamento da ADPF 144 (rel. min. Celso de Mello).

    O requerente apresentou petição em que afirma não ter discorrido sobre a constitucionalidade dos dispositivos legais em face da presunção de inocência por não haver identificado controvérsia jurisprudencial relevante sobre a ques‑tão. De todo modo, reitera os argumentos expendidos na exordial e afirma haver debate doutrinário sobre o tema, salientando que o estabelecimento de hipóteses de inelegibilidade decorrentes de decisão colegiada, ainda que não definitiva, é compatível com a ordem constitucional vigente.

    Nesse diapasão, sustenta que a previsão do art. 14, § 9º, relativamente à observância da vida pregressa do candidato denotaria o propósito do constituinte reformador de ampliar os casos de inelegibilidade para além das condenações definitivas. Demais disso, salienta a distinção entre a inelegibilidade e a perda ou a suspensão dos direitos políticos, que alcançam também o direito de votar. Assim, não faria sentido que a lei complementar restringisse a inelegibilidade às condenações transitadas em julgado, sob pena de inocuidade, uma vez que a própria Constituição Federal, no art. 15, III, determina a suspensão dos direitos políticos em virtude de sentença penal condenatória.

    A ADC 29, ora em foco, foi distribuída por prevenção, considerada, para tanto, sua vinculação com a ADI  4.578. Nesta, a Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL) requer a declaração de inconstitucionalidade do art. 1º, I, m, da LC 64/1990, inserido pela LC 135/2010.

    Nesta ação direta de inconstitucionalidade, alega a requerente que o dis‑positivo legal está inquinado de inconstitucionalidade formal, pois confere aos conselhos profissionais competência em matéria eleitoral, ao admitir que a vio‑lação a regimentos internos elaborados por esses conselhos possa ocasionar a imposição de sanções de cunho eleitoral. Afirma, ainda, a inconstitucionalidade material, traduzida em violação do princípio da razoabilidade, ao equiparar

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    decisões administrativas de conselhos profissionais a decisões colegiadas do Poder Judiciário para fins de imposição de inelegibilidades. Determinou ‑se a aplicação do procedimento do art. 12 da Lei 9.868/1999 também a este feito.

    Prestaram informações a Excelentíssima Senhora presidenta da República, o Excelentíssimo Senhor presidente do Senado Federal e o Excelentíssimo Senhor presidente da Câmara, todos pela constitucionalidade do art. 1º, I, m, da LC 64/1990, introduzido pela LC 135/2010.

    Opinou a Advocacia ‑Geral da União no sentido do não conhecimento da ação direta de inconstitucionalidade, por ausência de impugnação especificada – caracterizando inépcia da inicial  – e por ausência de pertinência temática da CNPL. Eventualmente superadas as preliminares, pugnou pela improcedência do pedido.

    A ambas as ações foi apensada a ADC 30, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Postula ‑se nesta a declaração de constitu‑cionalidade de todos os dispositivos da LC 135/2010, o que se faz tendo em vista “a existência de divergência nos diversos Tribunais Regionais Eleitorais (...), não obstante as manifestações do eg. Tribunal Superior Eleitoral”, demonstrada pelas transcrição parcial e anexação de acórdãos do TSE e dos TREs de Sergipe e Minas Gerais. A estes a requerente adiciona as manifestações desta Corte no julgamento do RE 633.703, no intento de demonstrar a existência de controvérsia judicial relevante, capaz de ocasionar incerteza e insegurança jurídica quanto à aplicabilidade da LC 135/2010 às próximas eleições.

    São repisados na ADC 30 vários dos argumentos que lastreiam a ADC 29, com ênfase na questão da aplicabilidade da LC 135/2010 com referência a fatos ocorridos anteriormente à sua edição, especialmente por força da distinção entre a inelegibilidade – à qual se recusa caráter sancionatório – e a suspensão ou perda de direitos políticos, bem como na restrição da presunção constitucional de ino‑cência à esfera penal e processual penal. Concluir em sentido diverso, afirma ‑se na exordial, tornaria inócua a menção à vida pregressa do candidato no art. 14, 9º, da Constituição Federal. Alega ‑se, ainda, que a Lei de Inelegibilidades ten‑ciona a depuração do sistema político ‑partidário e o fortalecimento do regime democrático.

    A requerente sustenta, então, a adequação da LC 135/2010 ao princípio da proporcionalidade, e invoca o elemento histórico de interpretação do art. 14, § 9º, da Constituição Federal, em particular quanto ao acréscimo das expressões “pro‑bidade administrativa” e “moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato”, para assinalar o propósito do constituinte refor‑mador de produzir a transformação dos costumes éticos e políticos.

    Salienta ‑se a inaplicabilidade do art. 5º, LVII, da Constituição da República à questão das inelegibilidades, argumentando ‑se que as previsões da LC 135/2010 são de natureza eleitoral e não sancionatória; defende, ainda uma compreensão harmônica do art. 14, § 9º, da Carta Magna com o princípio constitucional da

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    presunção de inocência, de modo que o mesmo ceda espaço ao princípio da moralidade administrativa.

    Frisa, por fim, que a própria LC 135/2010 ofereceu solução apropriada para a defesa do direito individual, ao inserir na LC 64/1990 o art. 26 ‑C, que permite a atribuição de efeito suspensivo ao recurso contra a decisão colegiada que reco‑nhece a inelegibilidade do candidato.

    A ação também é instruída com cópias de decisões dos Tribunais Regionais Eleitorais dos Estados de Tocantins e de Sergipe, confrontadas com acórdãos do Tribunal Superior Eleitoral.

    A Procuradoria ‑Geral da República emitiu parecer no sentido do conheci‑mento das ações e da procedência dos pedidos na ADC 29 e na ADC 30, bem como da improcedência do pedido na ADI 4.578, com a declaração da constitu‑cionalidade da LC 135/2010 em sua integralidade.

    É o relatório.

    VOTO

    O sr. ministro Luiz Fux (relator): Preliminarmente, conheço da ADI 4.578, porquanto já reconhecida a legitimidade da Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL) para a propositura de ação direta de inconstituciona‑lidade, na forma do art. 103, IX, da Constituição Federal, em precedentes desta Corte (v.g., ADI 1.590, rel. min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19 ‑6 ‑1997). Afigura ‑se presente, ademais, a pertinência temática, uma vez que se vislumbra a relação entre as finalidades institucionais da mencionada Confederação e o teor do art. 1º, I, m, da LC 64/1990, introduzido pela LC 135/2010, norma impugnada na ação direta de inconstitucionalidade em apreço.

    De igual maneira, hão de ser conhecidos os pedidos de ambas as ações declaratórias de constitucionalidade ora em julgamento, mesmo porque ajuiza‑das por entidades expressamente referidas no art. 103 da Carta Magna e dotadas de legitimação universal, mas, quanto à ADC 30, apenas em parte. As exordiais atendem às exigências do art. 14, III, da Lei 9.686/1999, especialmente no que concerne à demonstração da existência de controvérsia judicial relevante sobre os dispositivos legais que constituem objeto da ação. De fato, há efetiva diver‑gência jurisprudencial entre Tribunais Regionais Eleitorais e o Tribunal Superior Eleitoral quanto à aplicabilidade da LC 135/2010 em amplitude maior do que a examinada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 633.703 (rel. min. Gilmar Mendes).

    Naquela oportunidade, esta Corte limitou ‑se a pacificar a jurisprudência no que dizia respeito à inaplicabilidade das hipóteses de inelegibilidades previstas na LC 135/2010 às eleições de 2010. Observe ‑se, por outro lado, que a contro‑vérsia judicial demonstrada cuida exclusivamente das hipóteses de inelegibili‑dade introduzidas nas alíneas c, d, e, f, g, h, j, k, l, m, n, o, p e q do art. 1º, I, da

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    LC 64/1990, por força da LC 135/2010. Não há demonstração dessa controvérsia para os demais dispositivos da LC 135/2010.

    Vê ‑se que o pedido formulado na ADC 30 é de declaração de constitucio‑nalidade “da Lei Complementar n. 135/10”, o que poderia sugerir que se pre‑tende atingir a totalidade do diploma legal em comento. No entanto, não foram declinados na peça vestibular da ADC 30 os fundamentos jurídicos do pedido de declaração de constitucionalidade de outros dispositivos da LC 135/2010 que não dizem respeito especificamente à previsão de novas hipóteses de inelegibili‑dades, com o que, relativamente a estes, não foi atendido o disposto no art. 14, I, da Lei 9.868/1999. Portanto, considerada a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não se há de conhecer da questão concernente à constitucionalidade dos demais dispositivos da LC 135/2010.

    Cabe, então, passar ‑se ao exame de mérito, posto cuidar ‑se de exame de magnitude consideravelmente maior do que aquele submetido ao exame da Corte no julgamento do referido RE 633.703.

    Há três questões a responder neste julgamento, quais sejam: (1) se as ine‑legibilidades introduzidas pela LC  135/2010 poderão alcançar atos ou fatos ocorridos antes da edição do mencionado diploma legal e (2) se é constitucional a hipótese de inelegibilidade prevista no art. 1º, I, m, da LC 64/1990, inserido pela LC 135/2010. Sucede que o exame dessas questões demanda, previamente, (3) a própria fiscalização abstrata de constitucionalidade de todas as hipóteses de inelegibilidade criadas pela LC 135/2010, que podem ser divididas, basicamente, em cinco grupos, a saber:

    (i) condenações judiciais (eleitorais, criminais ou por improbidade admi‑nistrativa) proferidas por órgão colegiado;

    (ii) rejeição de contas relativas ao exercício de cargo ou função pública (necessariamente colegiadas, porquanto prolatadas pelo Legislativo ou por Tribunal de Contas, conforme o caso);

    (iii) perda de cargo (eletivo ou de provimento efetivo), incluindo ‑se as apo‑sentadorias compulsórias de magistrados e membros do Ministério Público e, para os militares, a indignidade ou incompatibilidade para o oficialato;

    (iv) renúncia a cargo público eletivo diante da iminência da instauração de processo capaz de ocasionar a perda do cargo; e

    (v) exclusão do exercício de profissão regulamentada, por decisão do órgão profissional respectivo, por violação de dever ético ‑profissional.

    Primeiramente, é bem de ver que a aplicação da LC  135/2010 com a consideração de fatos anteriores não viola o princípio constitucional da irre‑troatividade das leis. De modo a permitir a compreensão do que ora se afirma, confira ‑se a lição de J. J. Gomes Canotilho (Direito constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2001. p. 261 ‑262), em textual:

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    Retroactividade consiste basicamente numa ficção: (1) decretar a validade e vigência de uma norma a partir de um marco temporal (data) anterior à data da sua entrada em vigor; (2) ligar os efeitos jurídicos de uma norma a situações de facto existentes antes de sua entrada em vigor.(Os grifos são do original.)

    O mestre de Coimbra, sob a influência do direito alemão, faz a distinção entre:

    (i) a retroatividade autêntica: a norma possui eficácia ex tunc, gerando efeito sobre situações pretéritas, ou, apesar de pretensamente possuir eficácia meramente ex nunc, atinge, na verdade, situações, direitos ou relações jurídicas estabelecidas no passado; e

    (ii) a retroatividade inautêntica (ou retrospectividade): a norma jurídica atribui efeitos futuros a situações ou relações jurídicas já existentes, tendo ‑se, como exemplos clássicos, as modificações dos estatutos funcionais ou de regras de previdência dos servidores públicos (v. ADI 3.105 e ADI 3.128, rel. p/ o ac. min. Cezar Peluso).

    Como se sabe, a retroatividade autêntica é vedada pela Constituição da República, como já muitas vezes reconhecido na jurisprudência deste Tribunal. O mesmo não se dá com a retrospectividade, que, apesar de semelhante, não se confunde com o conceito de retroatividade mínima defendido por Matos Peixoto e referido no voto do eminente ministro Moreira Alves proferido no julgamento da ADI 493 (julgamento em 25 ‑6 ‑1992): enquanto nesta são alteradas, por lei, as consequências jurídicas de fatos ocorridos anteriormente – consequências estas certas e previsíveis ao tempo da ocorrência do fato –, naquela a lei atribui novos efeitos jurídicos, a partir de sua edição, a fatos ocorridos anteriormente. Repita‑‑se: foi o que se deu com a promulgação da Emenda Constitucional 41/2003, que atribuiu regimes previdenciários diferentes aos servidores conforme as respecti‑vas datas de ingresso no serviço público, mesmo que anteriores ao início de sua vigência, e recebeu a chancela desta Corte.

    A aplicabilidade da LC 135/2010 a processo eleitoral posterior à respectiva data de publicação é, à luz da distinção supra, uma hipótese clara e inequívoca de retroatividade inautêntica, ao estabelecer limitação prospectiva ao ius honorum (o direito de concorrer a cargos eletivos) com base em fatos já ocorridos. A situa‑ção jurídica do indivíduo – condenação por colegiado ou perda de cargo público, por exemplo – estabeleceu ‑se em momento anterior, mas seus efeitos perdurarão no tempo. Esta, portanto, a primeira consideração importante: ainda que se con‑sidere haver atribuição de efeitos, por lei, a fatos pretéritos, cuida ‑se de hipótese de retrospectividade, já admitida na jurisprudência desta Corte.

    Demais disso, é sabido que o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal pre‑serva o direito adquirido da incidência da lei nova. Mas não parece correto nem razoável afirmar que um indivíduo tenha o direito adquirido de candidatar ‑se, na medida em que, na lição de Gabba (Teoria della Retroattività delle Leggi. 3. ed. Torino: Unione Tipografico ‑Editore, 1981. v. 1, p. 1), é adquirido aquele direito

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    (...) que é consequência de um fato idôneo a produzi ‑lo em virtude da lei vigente ao tempo que se efetuou, embora a ocasião de fazê ‑lo valer não se tenha apresentado antes da atuação da lei nova, e que, sob o império da lei vigente ao tempo em que se deu o fato, passou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu.(Tradução livre do italiano.)

    Em outras palavras, a elegibilidade é a adequação do indivíduo ao regime jurídico – constitucional e legal complementar – do processo eleitoral, consubs‑tanciada no não preenchimento de requisitos “negativos” (as inelegibilidades). Vale dizer, o indivíduo que tenciona concorrer a cargo eletivo deve aderir ao estatuto jurídico eleitoral. Portanto, a sua adequação a esse estatuto não ingressa no respectivo patrimônio jurídico, antes se traduzindo numa relação ex lege dinâmica.

    É essa característica continuativa do enquadramento do cidadão na legisla‑ção eleitoral, aliás, que também permite concluir pela validade da extensão dos prazos de inelegibilidade, originariamente previstos em três, quatro ou cinco anos, para oito anos, nos casos em que os mesmos encontram ‑se em curso ou já se encerraram. Em outras palavras, é de se entender que, mesmo no caso em que o indivíduo já foi atingido pela inelegibilidade de acordo com as hipóteses e prazos anteriormente previstos na LC 64/1990, esses prazos poderão ser estendi‑dos – se ainda em curso – ou mesmo restaurados para que cheguem a oito anos, por força da lex nova, desde que não ultrapassem esse prazo.

    Explica ‑se: trata ‑se, tão somente, de imposição de um novo requisito nega‑tivo para a que o cidadão possa candidatar ‑se a cargo eletivo, que não se con‑funde com agravamento de pena ou com bis in idem. Observe ‑se, para tanto, que o legislador cuidou de distinguir claramente a inelegibilidade das condenações – assim é que, por exemplo, o art. 1º, I, e, da LC 64/1990 expressamente impõe a inelegibilidade para período posterior ao cumprimento da pena.

    Tendo em vista essa observação, haverá, em primeiro lugar, uma questão de isonomia a ser atendida: não se vislumbra justificativa para que um indiví‑duo que já tenha sido condenado definitivamente (uma vez que a lei anterior não admitia inelegibilidade para condenações ainda recorríveis) cumpra período de inelegibilidade inferior ao de outro cuja condenação não transitou em julgado.

    Em segundo lugar, não se há de falar em alguma afronta à coisa julgada nessa extensão de prazo de inelegibilidade, nos casos em que a mesma é decor‑rente de condenação judicial. Afinal, ela não significa interferência no cumpri‑mento de decisão judicial anterior: o Poder Judiciário fixou a penalidade, que terá sido cumprida antes do momento em que, unicamente por força de lei  – como se dá nas relações jurídicas ex lege  –, tornou ‑se inelegível o indivíduo. A coisa julgada não terá sido violada ou desconstituída.

    Demais disso, tem ‑se, como antes exposto, uma relação jurídica continua‑tiva, para a qual a coisa julgada opera sob a cláusula rebus sic stantibus. A edi‑ção da LC 135/2010 modificou o panorama normativo das inelegibilidades, de

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    sorte que a sua aplicação, posterior às condenações, não desafiaria a autoridade da coisa julgada.

    Portanto, não havendo direito adquirido ou afronta à autoridade da coisa julgada, a garantia constitucional desborda do campo da regra do art. 5º, XXXVI, da Carta Magna para encontrar lastro no princípio da segurança jurídica, ora compreendido na sua vertente subjetiva de proteção das expectativas legítimas. Vale dizer, haverá, no máximo, a expectativa de direito à candidatura, cuja legiti‑midade há de ser objeto de particular enfrentamento. Para tanto, confira ‑se a defi‑nição de expectativas legítimas por Søren Schønberg (Legitimate Expectations in Administrative Law. Oxford: Oxford University Press. 2003, p. 6):

    Uma expectativa é razoável quando uma pessoa razoável, agindo com dili‑gência, a teria em circunstâncias relevantes. Uma expectativa é legítima quando o sistema jurídico reconhece a sua razoabilidade e lhe atribui consequências jurídicas processuais, substantivas ou compensatórias.(Tradução livre do inglês.)

    Questiona ‑se, então: é razoável a expectativa de candidatura de um indiví‑duo já condenado por decisão colegiada? A resposta há de ser negativa. Da exi‑gência constitucional de moralidade para o exercício de mandatos eletivos (art. 14, § 9º) se há de inferir que uma condenação prolatada em segunda instân‑cia ou por um colegiado no exercício da competência de foro por prerrogativa de função, a rejeição de contas públicas, a perda de cargo público ou o impedimento do exercício de profissão por violação de dever ético ‑profissional excluirão a razoabilidade da expectativa. A rigor, há de se inverter a avaliação: é razoável entender que um indivíduo que se enquadre em tais hipóteses qualificadas não esteja, a priori, apto a exercer mandato eletivo.

    Nessa linha de raciocínio, é de se pontuar que, mesmo sob a vigência da redação original da LC 64/1990, o indivíduo que, condenado em segunda ins‑tância ou por órgão colegiado, por exemplo, teria, ao menos, a perspectiva de, confirmando ‑se a decisão em instância definitiva ou transitando em julgado a decisão desfavorável, de, no futuro, tornar ‑se inelegível e, caso eleito, perder o mandato. Razoável, portanto, seria a expectativa de inelegibilidade e não o contrário, o que permite distinguir a questão ora posta daquela examinada no RE 633.703 (rel. min. Gilmar Mendes), em que havia legítimas expectativas por força da regra contida no art. 16 da Constituição Federal, que tutelava, a um só tempo, o princípio da proteção da confiança e o princípio democrático.

    Sob a mesma justificativa, a presunção constitucional de inocência não pode configurar óbice à validade da LC 135/2010. O debate demanda a análise dos precedentes desta Corte, dentre os quais o da ADPF 144 (rel. min. Celso de Mello) é certamente o mais adequado ao exame, sem prejuízo de outros julgados em que o STF reconheceu a irradiação da presunção de inocência para o direito eleitoral (v.g., o RE 482.006, rel. min. Ricardo Lewandowski).

    Naquela oportunidade, o STF, por maioria, julgou improcedente o pedido formulado na arguição de descumprimento de preceito fundamental, que se

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    prestava ao reconhecimento da inconstitucionalidade  – rectius, da não recep‑ção – de parte das alíneas d, e, g e h do inciso I do art. 1º da LC 64/1990, naquilo em que exigiam a irrecorribilidade ou definitividade das decisões capazes de ensejar a inelegibilidade. Conforme a profunda análise do eminente ministro Celso de Mello, a arguição de descumprimento de preceito fundamental não poderia ser acolhida porque, em síntese:

    (i) propunha ‑se, na verdade, a criação de novas hipóteses de inelegibili‑dades, ao arrepio da exigência constitucional de lei complementar para tanto; e

    (ii) violava ‑se o princípio constitucional da presunção de inocência, dotado de eficácia irradiante para além dos domínios do processo penal, conforme já se havia estabelecido na jurisprudência do STF.

    O primeiro aspecto, com a edição da LC 135/2010, encontra ‑se superado.

    Já o tema da presunção de inocência merece atenção um pouco mais detida. Anota Simone Schreiber (Presunção de Inocência. In: TORRES, Ricardo Lobo et al. (org.). Dicionário de princípios jurídicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2001. p. 1004 ‑1016) que dito princípio foi consagrado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, refletindo uma concepção do processo penal como instrumento de tutela da liberdade, em reação ao sistema persecutório do Antigo Regime francês, “(...) no qual a prova dos fatos era produzida através da sujeição do acusado à prisão e tormento, com o fim de extrair dele a confissão”. Sua recepção no ordenamento jurídico brasileiro, particularmente na jurispru‑dência deste STF, vinha tratando como sinônimos as expressões presunção de inocência e não culpabilidade.

    Por outro lado, o percuciente exame do ministro Celso de Mello na ADPF 144 buscou as raízes históricas da norma em apreço, resgatando o debate que vicejou na doutrina italiana para salientar o caráter democrático da previsão constitucional da presunção de inocência na Carta de 1988, sobretudo na supera‑ção da ordem autoritária que se instaurou no País de 1964 a 1985, e para afirmar a aplicação extrapenal do princípio.

    Não cabe discutir, nestas ações, o sentido e o alcance da presunção constitucional de inocência (ou a não culpabilidade, como se preferir) no que diz respeito à esfera penal e processual penal. Cuida ‑se aqui tão somente da aplicabilidade da presunção de inocência especificamente para fins eleitorais, ou seja, da sua irradiação para ramo do direito diverso daquele a que se refere a literalidade do art. 5º, LVII, da Constituição de 1988. Em outras palavras, é ree‑xaminar a percepção, consagrada no julgamento da ADPF 144, de que decorreria da cláusula constitucional do Estado Democrático de Direito uma interpretação da presunção de inocência que estenda sua aplicação para além do âmbito penal e processual penal.

    Assinale ‑se, então, que, neste momento, vive ‑se – felizmente, aliás – quadra histórica bem distinta. São notórios a crise do sistema representativo brasileiro e o anseio da população pela moralização do exercício dos mandatos eletivos no País. Prova maior disso é o fenômeno da judicialização da política, que

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    certamente decorre do reconhecimento da independência do Poder Judiciário no Brasil, mas também é resultado da desilusão com a política majoritária, como bem relatado em obra coletiva organizada por Vanice Regina Lírio do Valle (Ativismo Jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Juruá, 2009). O salutar amadurecimento institucional do País recomenda uma revisão da juris‑prudência desta Corte acerca da presunção de inocência no âmbito eleitoral.

    Propõe ‑se, de fato, um overruling dos precedentes relativos à matéria da presunção de inocência vis ‑à ‑vis inelegibilidades, para que se reconheça a legitimidade da previsão legal de hipóteses de inelegibilidades decorrentes de condenações não definitivas.

    De acordo com as lições de Patrícia Perrone Campos Mello (Precedentes: o desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 233 et seq.), o abandono de precedentes jurispru‑denciais nos sistemas de common law se dá, basicamente, em virtude de incon‑gruência sistêmica ou social. Nesta última hipótese, a possibilidade de overruling pode advir de obsolescência decorrente de mutações sociais. In verbis:

    A incongruência social alude a uma relação de incompatibilidade entre as normas jurídicas e os standards sociais; corresponde a um vínculo negativo entre as decisões judiciais e as expectativas dos cidadãos. Ela é um dado relevante na revogação de um precedente porque a preservação de um julgado errado, injusto, obsoleto até pode atender aos anseios de estabilidade, regularidade e previsibilidade dos técnicos do direito, mas aviltará o sentimento de segurança do cidadão comum.

    Este será surpreendido sempre que não houver uma convergência plausí‑vel entre determinada solução e aquilo que seu bom senso e seus padrões morais indicam como justo, correto, ou, ao menos, aceitável, à luz de determinados ar‑gumentos, porque são tais elementos que ele utiliza, de boa ‑fé, na decisão sobre suas condutas. Para o leigo, a certeza e a previsibilidade do direito dependem de uma correspondência razoável entre as normas jurídicas e as normas da vida real. Em virtude disso, embora para os operadores do Direito, justiça e segurança jurídica possam constituir valores em tensão, para os jurisdicionados em geral, devem ser minimamente convergentes.(Os grifos são do original.)

    A mesma lógica é aplicável à ordem jurídica brasileira e, com ainda maior razão, ao presente caso. Permissa venia, impõe ‑se considerar que o acórdão pro‑latado no julgamento da ADPF 144 reproduziu jurisprudência que, se adequada aos albores da redemocratização, tornou ‑se um excesso neste momento histórico de instituições politicamente amadurecidas, notadamente no âmbito eleitoral.

    Já é possível, portanto, revolver temas antes intocáveis, sem que se incorra na pecha de atentar contra uma democracia que – louve ‑se isto sempre e sem‑pre – já está solidamente instalada. A presunção de inocência, sempre tida como absoluta, pode e deve ser relativizada para fins eleitorais ante requisitos qualifi‑cados como os exigidos pela LC 135/2010.

    Essa nova postura encontra justificativas plenamente razoáveis e aceitá‑veis. Primeiramente, o cuidado do legislador na definição desses requisitos de

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    inelegibilidade demonstra que o diploma legal em comento não está a serviço das perseguições políticas. Em segundo lugar, a própria ratio essendi do princípio, que tem sua origem primeira na vedação ao Estado de, na sua atividade persecu‑tória, valer ‑se de meios degradantes ou cruéis para a produção da prova contra o acusado no processo penal, é resguardada não apenas por esse, mas por todo um conjunto de normas constitucionais, como, por exemplo, as cláusulas do devido processo legal (art. 5º, LIV), do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV), a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI) e a vedação da tortura – à qual a Constituição Federal reconheceu a qualidade de crime ina‑fiançável (art. 5º, XLIII) – e do tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III).

    Demais disso, é de meridiana clareza que as cobranças da sociedade civil de ética no manejo da coisa pública se acentuaram gravemente. Para o cidadão, hoje é certo que a probidade é condição inafastável para a boa administração pública e, mais do que isso, que a corrupção e a desonestidade são as maiores travas ao desenvolvimento do país. A este tempo em que ora vivemos deve cor‑responder a leitura da Constituição e, em particular, a exegese da presunção de inocência, ao menos no âmbito eleitoral, seguindo ‑se o sempre valioso escólio de Konrad Hesse (A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 20), em textual:

    Quanto mais o conteúdo de uma Constituição lograr corresponder à natureza singular do presente, tanto mais seguro há de ser o desenvolvimento de sua força normativa.

    Tal como acentuado, constitui requisito essencial da força normativa da Constituição que ela leve em conta não só os elementos sociais, políticos, e econô‑micos dominantes, mas também que, principalmente, incorpore o estado espiritual (geistige Situation) de seu tempo. Isso lhe há de assegurar, enquanto ordem ade‑quada e justa, o apoio e a defesa da consciência geral.(Os grifos são do original.)

    Em outras palavras, ou bem se realinha a interpretação da presunção de inocência, ao menos em termos de direito eleitoral, com o estado espiritual do povo brasileiro, ou se desacredita a Constituição. Não atualizar a compreensão do indigitado princípio, data maxima venia, é desrespeitar a sua própria constru‑ção histórica, expondo ‑o ao vilipêndio dos críticos de pouca memória.

    Por oportuno, ressalte ‑se que não pode haver dúvida sobre a percepção social do tema. Foi grande a reação social ao julgamento da ADPF 144, oportu‑nidade em que se debateu a própria movimentação da sociedade civil organizada em contrariedade ao entendimento jurisprudencial até então consolidado no Tribunal Superior Eleitoral e nesta Corte, segundo o qual apenas a condena‑ção definitiva poderia ensejar inelegibilidade. A  Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), autora da ADPF 144, já fazia divulgar as chamadas listas dos “fichas sujas”, candidatos condenados por decisões judiciais ainda recorríveis, fato ao qual, inclusive, foram dedicadas considerações na assentada de julga‑mento daquela arguição de descumprimento de preceito fundamental.

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    Na oportunidade, diante da manifestação da Corte no sentido de que não se poderiam criar inelegibilidades sem a previsão em lei complementar, foi intensa a mobilização social que culminou na reunião de mais de dois milhões de assi‑naturas e a apresentação do Projeto de Lei Complementar 518/2009. Este, com outros projetos similares a que foi apensado, foram submetidos ao debate parla‑mentar, do qual resultou a LC 135/2010.

    Sobreveio, então, o pronunciamento desta Corte no julgamento do RE 633.703 (rel. min. Gilmar Mendes), no qual, por maioria de votos, foi afas‑tada a aplicação da LC 135/2010 às eleições de 2010, a teor do que determina o art. 16 da Constituição Federal (“A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.”). Mais uma vez, a reação social contrária foi considerá‑vel, retratada em fortes cores pela crítica impressa de todo o país.

    A verdade é que a jurisprudência do STF nesta matéria vem gerando fenô‑meno similar ao que os juristas norteamericanos Robert Post e Reva Siegel (Roe Rage: Democratic Constitutionalism and Backlash, disponível no sítio papers.ssrn.com/abstract=990968) identificam como backlash, expressão que se traduz como um forte sentimento de um grupo de pessoas em reação a eventos sociais ou políticos. É crescente e consideravelmente disseminada a crítica, no seio da sociedade civil, à resistência do Poder Judiciário na relativização da presunção de inocência para fins de estabelecimento das inelegibilidades.

    Obviamente, o Supremo Tribunal Federal não pode renunciar à sua con‑dição de instância contramajoritária de proteção dos direitos fundamentais e do regime democrático. No  entanto, a própria legitimidade democrática da Constituição e da jurisdição constitucional depende, em alguma medida, de sua responsividade à opinião popular. Post e Siegel, debruçados sobre a expe‑riência dos EUA  – mas tecendo considerações aplicáveis à realidade brasi‑leira –, sugerem a adesão a um constitucionalismo democrático, em que a Corte Constitucional esteja atenta à divergência e à contestação que exsurgem do con‑texto social quanto às suas decisões.

    Se a Suprema Corte é o último player nas sucessivas rodadas de interpreta‑ção da Constituição pelos diversos integrantes de uma sociedade aberta de intér‑pretes (cf. Häberle), é certo que tem o privilégio de, observando os movimentos realizados pelos demais, poder ponderar as diversas razões antes expostas para, ao final, proferir sua decisão.

    Assim, não cabe a este Tribunal desconsiderar a existência de um descom‑passo entre a sua jurisprudência e a hoje fortíssima opinião popular a respeito do tema “ficha limpa”, sobretudo porque o debate se instaurou em interpretações plenamente razoáveis da Constituição e da LC 135/2010 – interpretações essas que ora se adotam. Não se cuida de uma desobediência ou oposição irracional, mas de um movimento intelectualmente embasado, que expõe a concretização do que Pablo Lucas Verdú chamara de sentimento constitucional, fortalecendo a legitimidade democrática do constitucionalismo. A sociedade civil identifica ‑se

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    na Constituição, mesmo que para reagir negativamente ao pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria.

    Idênticas conclusões podem ser atingidas sob perspectiva metodológica diversa. A presunção de inocência consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição Federal deve ser reconhecida, segundo a lição de Humberto Ávila (Teoria dos princípios. 4.  ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005), como uma regra, ou seja, como uma norma de previsão de conduta, em especial a de proibir a impo‑sição de penalidade ou de efeitos da condenação criminal até que transitada em julgado a decisão penal condenatória. Concessa venia, não se vislumbra a exis‑tência de um conteúdo principiológico no indigitado enunciado normativo.

    Sendo assim, a ampliação do seu espectro de alcance operada pela juris‑prudência desta Corte significou verdadeira interpretação extensiva da regra, segundo a qual nenhuma espécie de restrição poderia ser imposta a indivíduos condenados por decisões ainda recorríveis em matéria penal ou mesmo adminis‑trativa. O que ora se sustenta é o movimento contrário, comparável a uma redu‑ção teleológica, mas, que, na verdade, só reaproxima o enunciado normativo da sua própria literalidade, da qual se distanciou em demasia.

    Como ensina Karl Larenz (Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005. p. 556), a redu‑ção teleológica pode ser exigida “pelo escopo, sempre que seja prevalecente, de outra norma que de outro modo não seria atingida”. Ora, é exatamente disso que se cuida na espécie: a inserção, pela Emenda Constitucional de Revisão 4/1994, da previsão do art. 14, § 9º, atualmente vigente estabeleceu disposição constitu‑cional – portanto, de mesma hierarquia do art. 5º, LVII – que veicula permissivo para que o legislador complementar estabeleça restrições à elegibilidade com base na vida pregressa do candidato, desde que direcionadas à moralidade para o exercício do mandato.

    Nessa ordem de ideias, conceber ‑se o art.  5º, LVII, como impeditivo à imposição de inelegibilidade a indivíduos condenados criminalmente por decisões não transitadas em julgado esvaziaria sobremaneira o art. 14, § 9º, da Constituição Federal, frustrando o propósito do constituinte reformador de exigir idoneidade moral para o exercício de mandato eletivo, decerto compatível com o princípio republicano insculpido no art. 1º, caput, da Constituição Federal.

    Destarte, reconduzir a presunção de inocência aos efeitos próprios da con‑denação criminal se presta a impedir que se aniquile a teleologia do art. 14, § 9º, da Carta Política, de modo que, sem danos à presunção de inocência, seja pre‑servada a validade de norma cujo conteúdo, como acima visto, é adequado a um constitucionalismo democrático.

    É de se imaginar que, diante da perspectiva de restrição, pela LC 135/2010, do alcance da presunção de inocência à matéria criminal, seja eventualmente invocado o princípio da vedação do retrocesso, segundo o qual seria inconsti‑tucional a redução arbitrária do grau de concretização legislativa de um direito fundamental – in casu, o direito político de índole passiva (direito de ser votado).

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    No entanto, não há violação ao mencionado princípio, como se passa a explicar, por duas razões.

    A primeira delas é a inexistência do pressuposto indispensável à incidên‑cia do princípio da vedação de retrocesso. Em estudo especificamente dedicado ao tema (O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2007), anota Felipe Derbli, lastreado nas lições de Gomes Canotilho e Vieira de Andrade, que é condição para a ocorrência do retrocesso que, anteriormente, a exegese da própria norma constitucional se tenha expandido, de modo a que essa compreensão mais ampla tenha alcan‑çado consenso básico profundo e, dessa forma, tenha radicado na consciência jurídica geral. Necessária, portanto, a “sedimentação na consciência social ou no sentimento jurídico coletivo”, nas palavras de Jorge Miranda (Manual de direito constitucional, tomo IV: direitos fundamentais. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. p. 399).

    Ora, como antes observado, não há como sustentar, com as devidas vênias, que a extensão da presunção de inocência para além da esfera criminal tenha atingido o grau de consenso básico a demonstrar sua radicação na consciência jurídica geral. Antes o contrário: a aplicação da presunção constitucional de inocência no âmbito eleitoral não obteve suficiente sedimentação no sentimento jurídico coletivo – daí a reação social antes referida – a ponto de permitir a afir‑mação de que a sua restrição legal em sede eleitoral (e frise ‑se novamente, é apenas desta seara que ora se cuida) atentaria contra a vedação de retrocesso.

    A segunda razão, por seu turno, é a inexistência de arbitrariedade na res‑trição legislativa. Como é cediço, as restrições legais aos direitos fundamentais sujeitam ‑se aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e, em espe‑cial, àquilo que, em sede doutrinária, o ministro Gilmar Mendes (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitu‑cional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 239 et seq.), denomina de limites dos limites (Schranken ‑Schranken), que dizem com a preservação do núcleo essen‑cial do direito.

    Partindo ‑se da premissa teórica formulada por Humberto Ávila (op. cit., 2005, p. 102 et seq.), que distingue razoabilidade e proporcionalidade, observem ‑se as hipóteses de inexigibilidade introduzidas pela LC  135/2010 à luz da chamada razoabilidade ‑equivalência, traduzida na equivalência entre medida adotada e critério que a dimensiona: são hipóteses em que se preveem condutas ou fatos que, indiscutivelmente, possuem altíssima carga de reprovabi‑lidade social, porque violadores da moralidade ou reveladores de improbidade, de abuso de poder econômico ou de poder político.

    São situações que expõem a crise do sistema político representativo brasi‑leiro, bem exposta em dissertação de Fernando Barbalho Martins (Do direito à democracia: neoconstitucionalismo, princípio democrático e a crise no sistema representativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 133), que, com propriedade, assinalou, verbis:

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    Embora a presunção de inocência pudesse indicar a legitimidade das hipó‑teses de inelegibilidade, o § 9º do art. 14 estende os princípios da moralidade e da probidade à regulação da matéria, razão pela qual avulta a incoerência do fato do acesso a cargos de natureza administrativa, cuja liberdade para disposição da coisa pública é incomparavelmente menor do que aquela detida por agente político, possa ser restringido por inquérito policial, medida de todo louvável na maioria dos casos, enquanto parlamentares e chefes do Executivo possam transitar pela alta direção do Estado brasileiro com folhas corridas medidas aos metros.

    A verdade é que o constituinte reformador modificou, ainda em 1994, o texto constitucional para que fosse expressamente admitida a previsão, por lei complementar, de hipóteses em que, tendo em vista a vida pregressa do indiví‑duo, fosse ‑lhe impedida a candidatura a cargos públicos eletivos, de modo a que se observassem os princípios da moralidade e da probidade administrativa, bem como a vedação ao abuso do poder econômico e político.

    O difundido juízo social de altíssima reprovabilidade das situações des‑critas nos diversos dispositivos introduzidos pela LC 135/2010 demonstram, à saciedade, que é mais do que razoável que os indivíduos que nelas incorram sejam impedidos de concorrer em eleições. Há, portanto, plena equivalência entre a inelegibilidade e as hipóteses legais que a configuram.

    Por seu turno, também se vislumbra proporcionalidade nas mencionadas hipóteses legais de inelegibilidade – todas passam no conhecido triplo teste de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Confira ‑se.

    Do ponto de vista da adequação, não haveria maiores dificuldades em afirmar que as inelegibilidades são aptas à consecução dos fins consagrados nos princípios elencados no art. 14, § 9º, da Constituição, haja vista o seu alto grau moralizador.

    Relativamente à necessidade ou exigibilidade  – que, como se sabe, demanda que a restrição aos direitos fundamentais seja a menos gravosa pos‑sível –, atente ‑se para o fato de que o legislador complementar foi cuidadoso ao prever requisitos qualificados de inelegibilidade, pois exigiu, para a inelegibili‑dade decorrente de condenações judiciais recorríveis, que a decisão tenha sido proferida por órgão colegiado, afastando a possibilidade de sentença proferida por juiz singular tornar o cidadão inelegível – ao menos em tese, submetida a posição de cada julgador à crítica dos demais, a colegialidade é capaz de pro‑mover as virtudes teóricas de (i) reforço da cognição judicial, (ii) garantia da independência dos membros julgadores e (iii) contenção do arbítrio individual, como bem apontou Guilherme Jales Sokal em recente obra acadêmica (O pro‑cedimento recursal e as garantias fundamentais do processo: a colegialidade no julgamento da apelação. 2011. 313 f. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. p. 73 et seq.).

    Frise ‑se também: a tão só existência de processo em que o indivíduo figure como réu não gerará, por si só, inelegibilidade, diversamente do que determinava

  • R.T.J. — 221 31

    o art. 1º, I, n, da LC 5/1970, vigente ao tempo do governo militar autoritário, que tornava inelegíveis os que simplesmente respondessem a processo judicial por crime contra a segurança nacional e a ordem política e social, a economia popular, a fé pública e a administração pública, o patrimônio ou pelo direito pre‑visto no art. 22 desta lei complementar, enquanto não absolvidos ou penalmente reabilitados.

    Ademais, o legislador também foi prudente ao admitir a imposição da inelegibilidade apenas na condenação por crimes dolosos, excluindo expressa‑mente as condenações, mesmo que transitadas em julgado, pela prática de cri‑mes cometidos na modalidade culposa (art. 1º, § 4º, da LC 64/1990, incluído pela LC 135/2010).

    Nos casos de perda (lato sensu) de cargo público, são decisões administra‑tivas que, em muitos casos, são tomadas por órgãos colegiados (como é o caso de agentes políticos, magistrados, membros do Ministério Público e oficiais militares) e, em qualquer caso, resultantes de processos que deverão observar o contraditório e a ampla defesa. E, mesmo nos casos dos servidores públicos efetivos  – em geral, demitidos por ato de autoridade pública singular  –, cui‑dou o legislador de prever expressamente a possibilidade de o Poder Judiciário anular ou suspender a demissão, com o que ficam plenamente restabelecidas as elegibilidades.

    A mesma lógica foi aplicada aos indivíduos excluídos do exercício profis‑sional por decisão do órgão ou conselho profissional competente. Além de, em regra, as decisões serem colegiadas, restou expressamente consignado em lei que apenas as exclusões por infração ético ‑profissional poderão ensejar a inelegibi‑lidade e que, em qualquer caso, o Poder Judiciário poderá suspender ou anular a decisão.

    Note ‑se bem que, nesta e na hipótese anterior, o juízo singular, de pri‑meira instância, obviamente estará autorizado a suspender os efeitos da perda do cargo – e, portanto, a inelegibilidade –, mas o contrário, como antes visto, não ocorre. Vale dizer, o Judiciário pode restabelecer a elegibilidade de um candi‑dato por decisão cautelar de juízo singular, mas, para decretar a inelegibilidade, somente o poderá fazer por decisão em colegiado (de segunda instância ou, nos casos de competência por prerrogativa de função, em instância única).

    Resta evidente, portanto, que são rígidos os requisitos para o reconheci‑mento das inelegibilidades, mesmo que não que haja decisão judicial transitada em julgado. Mais ainda, foi prudente o legislador ao inserir expressamente a possibilidade de suspensão cautelar da inelegibilidade por nova decisão judi‑cial colegiada. Não haveria meio menos gravoso de atender à determinação do art. 14, § 9º, da Constituição Federal.

    Não há objetar que a dicção original da LC  64/1990 seria suficiente ao atendimento do art. 14, § 9º, da Carta Política ao demandar condenações defini‑tivas para a caracterização das inelegibilidades, pois, permissa maxima venia, é raciocínio que não resiste a uma análise apurada.

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    A interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais impõe que seja a mencionada norma cotejada com o art. 15, III e V, que trata dos casos de suspensão e perda dos direitos políticos, envolvendo não apenas o ius honorum (direitos políticos passivos, isto é, o direito de candidatar ‑se e eleger ‑se), como também o ius sufragii (direitos políticos ativos – em síntese, o direito de ele‑ger). A inelegibilidade tem as suas causas previstas nos §§ 4º a 9º do art. 14 da Carta Magna de 1988, que se traduzem em condições objetivas cuja verificação impede o indivíduo de concorrer a cargos eletivos e, portanto, não se confunde com a suspensão ou perda dos direitos políticos.

    Ora, se é certo – como, de fato, é – que a inelegibilidade contempla apenas o ius honorum e não o ius sufragii, por que teria cuidado o constituinte reforma‑dor de permitir ao legislador complementar instaurar hipótese de inelegibilidade em que se considerasse a vida pregressa do candidato, se o art. 15 já prevê a suspensão de direitos políticos em virtude de condenação definitiva em processo criminal ou por improbidade administrativa?

    Nessa ordem de ideias, impende concluir que o art. 14, § 9º, em sua redação hoje vigente, autorizou a previsão legal de hipóteses de inelegibilidade decorren‑tes de decisões não definitivas, sob pena de esvaziar ‑lhe o conteúdo.

    Ademais, a própria LC 135/2010 previu a possibilidade de suspensão cau‑telar da decisão judicial colegiada que ocasionar a inelegibilidade, ao inserir na LC 64/1990 o art. 26 ‑C, em textual:

    Art.  26 ‑C. O  órgão colegiado do tribunal ao qual couber a apreciação do recurso contra as decisões colegiadas a que se referem as alíneas d, e, h, j, l e n do inciso I do art. 1º poderá, em caráter cautelar, suspender a inelegibilidade sempre que existir plausibilidade da pretensão recursal e desde que a providência tenha sido expressamente requerida, sob pena de preclusão, por ocasião da interposição do recurso.

    Resta, ainda, a apreciação da LC 135/2010 à luz do subprincípio da propor‑cionalidade em sentido estrito e, mais uma vez, a lei responde positivamente ao teste. Com efeito, o sacrifício exigido à liberdade individual de candidatar ‑se a cargo público eletivo não supera os benefícios socialmente desejados em termos de moralidade e probidade para o exercício de cargos públicos, sobretudo porque ainda são rigorosos os requisitos para que se reconheça a inelegibilidade.

    Ademais, não estão em ponderação apenas a moralidade, de um lado, e os direitos políticos passivos, de outro. Ao  lado da moralidade está também a própria democracia, como bem alerta o já mencionado professor Fernando Barbalho Martins (ob. cit., p. 150 ‑151), verbis:

    A exteriorização do atendimento aos parâmetros de moralidade e probidade são condições essenciais de manutenção do Estado democrático, não sendo raros os exemplos de ditaduras que se instalam sob o discurso de moralização das práticas governamentais. A  relação íntima entre Moralidade Administrativa, que alcança indubitavelmente a atuação parlamentar, e princípio democrático é inegável, já que a efetivação deste implica necessariamente a fidelidade política da atuação dos

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    representantes populares, como bem assinala Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Mais do que isso, a confiança depositada pela sociedade em sua classe governante é elemento indeclinável da consecução da segurança jurídica erigida como um dos fundamentos da República.(Os grifos são do original.)

    A balança, no caso, há de pender em favor da constitucionalidade das hipóteses previstas na LC 135/2010, pois, opostamente ao que poderia parecer, a democracia não está em conflito com a moralidade – ao revés, uma invalidação do mencionado diploma legal afrontaria a própria democracia, à custa do abuso de direitos políticos.

    Por sua vez, também não existe lesão ao núcleo essencial dos direitos polí‑ticos, porque apenas o direito passivo – direito de candidatar ‑se e eventualmente eleger ‑se – é restringido, de modo que o indivíduo permanece em pleno gozo de seus direitos ativos de participação política.

    Cuida ‑se, afinal, de validar a ponderação efetuada pelo próprio legisla‑dor, ao qual Konrad Hesse, em outro ensaio (La interpretación constitucional. In: Escritos de derecho constitucional. Trad. Pedro Cruz Villallón. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983), reconhece posição de primazia na interpretação da Constituição. Essa posição privilegiada do legislador – direta‑mente ligada ao conhecido princípio hermenêutico da presunção de constitucio‑nalidade das leis – é ainda mais clara quando a norma constitucional é composta de conceitos jurídicos indeterminados como “vida pregressa”, confiando ao órgão legiferante infraconstitucional a sua densificação.

    Correto concluir, pois, que se trata de caso no qual é válida a interpreta‑ção da Constituição conforme a lei, na esteira da lição sempre valiosa de Luís Roberto Barroso (Interpretação e aplicação da Constituição. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 195), verbis:

    Há um último ponto digno de registro. Toda atividade legislativa ordinária nada mais é, em última análise, do que um instrumento de atuação da Constituição, de desenvolvimento de suas normas e realização de seus fins. Portanto, e como já assentado, o legislador também interpreta rotineiramente a Constituição. Simétrica à interpretação conforme a Constituição situa ‑se a interpretação da Constituição conforme a lei. Quando o Judiciário, desprezando outras possibilidades interpre‑tativas, prestigia a que fora escolhida pelo legislador, está, em verdade, endos‑sando a interpretação da Constituição conforme a lei. Mas tal deferência há de cessar onde não seja possível transigir com a vontade cristalina emanada do Texto Constitucional.(Os grifos não são do original.)

    Como visto acima, não se pode considerar que é vontade cristalina ema‑nada da Constituição a absoluta presunção de inocência em matéria eleitoral – ao revés, se não se puder reconhecer a prevalência, entre os vários intérpretes da Constituição, da visão oposta, indisfarçável será, ao menos, o dissenso. Nesse caso, impende prestigiar a solução legislativa, que admitiu, para o preenchimento

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    do conceito de vida pregressa do candidato, a consideração da existência de con‑denação judicial não definitiva, a rejeição de contas, a renúncia abusiva ou perda de cargo.

    É de se concluir, pois, pela constitucionalidade da instituição, por lei com‑plementar, de novas hipóteses de inelegibilidades para além das condenações judiciais definitivas, inclusive no que diz respeito à sua aplicabilidade nas situa‑ções em que as causas de inelegibilidade por ela introduzidas tenham ocorrido antes da edição do diploma legal apreciado. Entretanto, há aspectos no texto da LC 135/2010 que demandam análise mais minuciosa e, como se verá, atividade interpretativa mais apurada.

    Primeiramente, a leitura das alíneas  e e l do art.  1º, I, da LC  135/2010 poderia conduzir ao entendimento de que, condenado o indivíduo em decisão colegiada recorrível, permaneceria o mesmo inelegível desde então, por todo o tempo de duração do processo criminal e por mais outros oito anos após o cum‑primento da pena, similar ao que se vê na alínea l, em textual:

    l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriqueci‑mento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena;

    Em ambos os casos, verifica ‑se que o legislador complementar estendeu os efeitos da inelegibilidade para além do prazo da condenação definitiva, seja criminal ou por improbidade administrativa, durante o qual estarão suspensos os direitos políticos (art. 15, III e V, da Constituição Federal).

    Ocorre que a alteração legislativa provocou situação iníqua, em que o indi‑víduo condenado poderá permanecer inelegível entre a condenação e o trânsito em julgado da decisão condenatória, passar a ter seus direitos políticos inteira‑mente suspensos durante a duração dos efeitos da condenação e, após, retornar ao estado de inelegibilidade por mais oito anos, independentemente do tempo de inelegibilidade prévio ao cumprimento da pena.

    Impende, neste ponto, recorrer ao elemento histórico de interpretação, em que se faça a comparação entre a redação original da LC 64/1990 e aquela atual‑mente vigente, determinada pela LC 135/2010. A redação original do art. 1º, I, e (não havia correspondente ao atual inciso l) enunciava, verbis:

    e) os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em jul‑gado, pela prática de crime contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de 3 (três) anos, após o cumprimento da pena;

    A extensão da inelegibilidade para além da duração dos efeitos da conde‑nação criminal efetivamente fazia sentido na conformação legal que somente permitia a imposição da inelegibilidade nos casos de condenações transitadas em julgado. Agora, admitindo ‑se a inelegibilidade já desde as condenações não

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    definitivas – contanto que prolatadas por órgão colegiado –, essa extensão pode ser excessiva.

    Em alguns casos concretos nos quais o indivíduo seja condenado, por exemplo, a pena de trinta anos, a impossibilidade de concorrer a cargos públicos eletivos pode estender ‑se, em tese, por mais de quarenta anos, o que certamente poderia equiparar ‑se, em efeitos práticos, à cassação dos direitos políticos, expressamente vedada pelo caput do art. 15 da Constituição. Observe ‑se que não há inconstitucionalidade, de per si, na cumulação da inelegibilidade com a sus‑pensão de direitos políticos, mas a admissibilidade de uma cumulação da inele‑gibilidade anterior ao trânsito em julgado com a suspensão dos direitos políticos decorrente da condenação definitiva e novos oito anos de inelegibilidade decerto afronta a proibição do excesso consagrada pela Constituição Federal.

    A disciplina legal ora em exame, ao antecipar a inelegibilidade para momento anterior ao trânsito em julgado, torna claramente exagerada a sua exten‑são por oito anos após a condenação. É algo que não ocorre nem mesmo na legis‑lação penal, que expressamente admite a denominada detração, computando ‑se, na pena privativa de liberdade, o tempo de prisão provisória (art. 42 do Código Penal).

    Recomendável, portanto, que o cômputo do prazo legal da inelegibili‑dade também seja antecipado, de modo a guardar coerência com os propósi‑tos do legislador e, ao mesmo tempo, atender ao postulado constitucional de proporcionalidade.

    Cumpre, destarte, proceder a uma interpretação conforme a Constituição, para que, tanto na hipótese da alínea e como da alínea l do inciso I do art. 1º da LC 64/1990, seja possível abater, do prazo de inelegibilidade de oito anos poste‑rior ao cumprimento da pena, o período de inelegibilidade já decorrido entre a condenação não definitiva e o respectivo trânsito em julgado.

    Por fim, outra questão exige atenção especial. Assinale ‑se o que dispõe a novel alínea k do art. 1º, I, da LC 64/1990, inserida pela LC 135/2010, verbis:

    k) o Presidente da República, o Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito, os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais, que renunciarem a seus manda‑tos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura;

    A instituição de hipótese de inelegibilidade para os casos de renúncia do mandatário que se encontre em vias de, mediante processo próprio, perder seu mandato é absolutamente consentânea com a integridade e a sistematicidade da ordem jurídica. In casu, a renúncia configura típica hipótese de abuso de direito, lapidarmente descrito no art. 187 do Código Civil como o exercício do direito

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    que, manifestamente, excede os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa ‑fé ou pelos bons costumes.

    Longe de se pretender restringir a interpretação constitucional a uma leitura civilista do direito, é certo atentar para o fato de que, assim como no âmbito do direito civil, é salutar – e necessário – que no direito eleitoral também se institua norma que impeça o abuso de direito, que o ordenamento jurídico pátrio decerto não avaliza. Não se há de fornecer guarida ao mandatário que, em indisfarçável má ‑fé, renuncia ao cargo com o fito de preservar sua elegibilidade futura, subtraindo ‑se ao escrutínio da legitimidade do exercício de suas funções que é próprio da democracia.

    A previsão legal em comento, aliás, acompanha a dicção constitucional estabelecida desde a Emenda Constitucional de Revisão 6/1994, que incluiu o § 4º do art. 55, de modo a que, no que concerne ao processo de perda de mandato parlamentar, restasse estabelecido, verbis:

    § 4º A renúncia de parlamentar submetido a processo que vise ou possa levar à perda do mandato, nos termos deste artigo, terá seus efeitos suspensos até as deli‑berações finais de que tratam os §§ 2º e 3º.

    Vale dizer, a própria Constituição Federal determina que o processo de perda de mandato parlamentar prossiga mesmo após a renúncia, justamente com o propósito de tornar ineficaz o abuso de direito à renúncia. Nesse caso, a inele‑gibilidade é secundum eventum litis, ou seja, a parte renuncia, mas se o resultado do processo não tiver nenhuma consequência, aquela renúncia não implica inele‑gibilidade; se o processo tiver consequência, a inelegibilidade tem procedência, porque há uma dissonância entre a realidade normativa e a realidade prática. Pela mesma razão, uma vez engendrada a renúncia antes da instauração de pro‑cesso que possa gerar a perda dos direitos políticos, este não prossegue, e deveria prosseguir.

    Mas, de toda maneira, este voto é permeado por uma ideologia, que é a da higidez da “Lei da Ficha Limpa”. Portanto, deve ‑se prestigiar a vontade do legis‑lador para declarar ‑se também a constitucionalidade da alínea k, à semelhança do que antes foi pronunciado.

    Por oportuno, é de se salientar que, mesmo diante da constitucionalidade parcial da LC 135/2010, resta a mesma inaplicável às eleições de 2010 e ante‑riores e, por conseguinte, aos mandatos em curso, como já reconhecido por esta Corte no julgamento do RE 633.703 (rel. min. Gilmar Mendes), com repercussão geral. É aplicar, como naquela ocasião, a literalidade do art. 16 da Constituição Federal, de modo a que as inelegibilidades instituídas pela nova lei sejam aplicá‑veis apenas às eleições que ocorram mais de um ano após a sua edição, isto é, a partir das eleições de 2012.

    Diante de todo o acima exposto, conheço integralmente dos pedidos for‑mulados na ADI 4.578 e na ADC 29 e conheço em parte do pedido deduzido na

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    ADC 30, para votar no sentido da improcedência do pedido na ADI 4.578 e da procedência parcial do pedido na ADC 29 e na ADC 30, de modo a:

    a) declarar a constitucionalidade das hipóteses de inelegibilidade instituí‑das pelas alíneas c, d, f, g, h, j, k, m, n, o, p e q do art. 1º, I, da LC 64/1990, intro‑duzidas pela LC 135/2010; e

    b) declarar parcialmente inconstitucional, sem redução de texto, o art. 1º, I, alíneas e e l, da LC 64/1990, com redação conferida pela LC 135/2010, para, em interpretação conforme a Constituição, admitir a dedução, do prazo de oito anos de inelegibilidade posteriores ao cumprimento da pena, do prazo de inelegibili‑dade decorrido entre a condenação e o seu trânsito em julgado.

    É como voto.

    ESCLARECIMENTO

    O sr. ministro Luiz Fux (relator): Apenas para destacar que, naquela opor‑tunidade, que hoje foi aqui rememorada, nós discutimos apenas a constitucio‑nalidade da Lei da Ficha Limpa – assim considerada –, com os acréscimos da LC 135/2010, porquanto ela entrara em vigor no mesmo ano das eleições, como aqui destacou o ministro Marco Aurélio. Então, o art. 16 impedia que as regras do jogo fossem modificadas; o artigo era da Constituição; o Supremo Tribunal Federal é guardião da Constituição Federal; então, não era possível entrar em vigor no mesmo ano da eleição.

    O sr. ministro Marco Aurélio: Entrou em vigor em 2010. Antes, a Constituição previa que passava a vigorar um ano depois. Vigorou imediata‑mente, não sendo aplicável, no entanto, às eleições que se realizassem até um ano após.

    O sr. ministro Luiz Fux (relator): Mas não podia ser aplicada no mesmo ano. A hipótese aqui é outra, e eu peço vênia para sintetizar.

    EXPLICAÇÃO

    O sr. ministro Marco Aurélio: Ministro Luiz Fux, Vossa Excelência entende que a vida irreprochável pregressa o é em relação à lei.

    O sr. ministro Luiz Fux (relator): Entendo que sim.

    O sr. ministro Marco Aurélio: Vossa Excelência se referiu muito ao princí‑pio da inocência, e a Carta encerra o da não culpabilidade, inviabilizando, por‑tanto, a execução da pena antes do trânsito em julgado da decisão condenatória.

    O sr. ministro Luiz Fux (relator): No âmbito penal. Vossa Excelência tem toda razão.

    O sr. ministro Marco Aurélio: Agradeço o aparte concedido.

    O sr. ministro Luiz Fux (relator): É sempre um prazer.

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    PEDIDO DE VISTA

    O sr. ministro Joaquim Barbosa: Senhor presidente, se os colegas não se importarem, eu gostaria de antecipar o pedido de vista em virtude do adiantado da hora.

    DEBATE

    O sr. ministro Dias Toffoli: Senhor presidente,