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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS - UNIMONTES PREFEITURA MUNICIPAL DE MONTES CLAROS SECRETARIAS MUNICIPAIS DE CULTURA, EDUCA˙ˆO E MEIO AMBIENTE ISSN 1806-6764 Revista Verde Grande Montes Claros v.1 p. 1-146 dez./fev.-2005 n.3

Revista Verde Grande _ Numero 3

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1REVISTA VERDE GRANDE 3

UNIVERSIDADE ESTADUAL DEMONTES CLAROS - UNIMONTESPREFEITURA MUNICIPAL DE MONTES CLAROSSECRETARIAS MUNICIPAIS DE CULTURA, EDUCAÇÃO EMEIOAMBIENTE

ISSN 1806-6764

Revista Verde Grande Montes Claros v.1 p. 1-146 dez./fev.-2005n.3

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2 REVISTA VERDE GRANDE 3

Revista Verde Grande / Universidade Estadual de Montes Claros -Unimontes, Prefeitura Municipal de Montes Claros, SecretariasMunicipais de Cultura, Educação e Meio Ambiente. � Vol. 1, n.3(dez./fev. 2005)- . - Montes Claros, MG : Ed. Unimontes, 2005.v. 1, n. 3, 146 p. : 26 cm.

TrimestralISSN 1806-6764

1. Cultura 2. Educação 3. Meio Ambiente I. Universidade Estadual deMontes Claros. II. Prefeitura Municipal de Montes Claros, (MG).Secretaria Municipal de Cultura. Secretaria Municipal de Educação.Secretaria Municipal de Meio Ambiente. III. Título

CDD 306 � Cultura370 � Educação304.2 � Meio Ambiente

Catalogação elaborada por Maria Gorete J. C. Cordeiro, CRB�6 1.932

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

REITORProfessor Paulo César Gonçalves de Almeida

VICE-REITORAProfessora Tânia Marta Maia Fialho

PRÓ-REITOR DE EXTENSÃOProfessor Geraldo Antônio dos Reis

DIRETOR DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃOGiulliano Vieira Mota

COORDENADOR DA IMPRENSA UNIVERSITÁRIAHumberto Velloso Reis

PREFEITURA MUNICIPAL DE MONTES CLAROS

PREFEITOAthos Avelino Pereira

VICE-PREFEITOSued Kennedy Parrela Botelho

SECRETÁRIO MUNICIPAL DE MEIO AMBIENTEPaulo Ribeiro

SECRETÁRIO MUNICIPAL DE CULTURAJoão Rodrigues

SECRETÁRIO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃOGilmar Ribeiro dos Santos

CONSELHO EDITORIALAnelito de OliveiraCarlos DayrellFelipe GabrichIvo das ChagasJoão Batista Almeida CostaMaria Helena de Souza IdeMaria Ivete Soares de AlmeidaNestor Sant’annaRaquel Mendonça

CONSELHO EXECUTIVOGiulliano Vieira MotaMaria Helena de Souza IdePaulo César Júnior

COORDENAÇÃO EDITORIALJoão Batista de Almeida Costa

DIREÇÃO DE ARTEJoão Rodrigues

PROJETO GRÁFICOMaria Rodrigues Mendes

O conteúdo dos artigos ora publicados é de responsabilidadeexpressa dos autores, não sendo, portanto, deresponsabilidade dos Conselhos Editorial e Executivoeventuais conceitos e opiniões que possam ser aquitransmitidos.

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S UMÁR IO

ORAÇÃO DE SÃO FRANCISCOPaulo Ribeiro; Paulo César JúniorCULTURA, NATUREZA E POPULAÇÕES TRADICIONAIS: O NORTE DEMINAS COMO SÍNTESE DA NAÇÃO BRASILEIRAJoão Batista de Almeida CostaO CERRADO É MINHA INSPIRAÇÃO: A VIOLA, O VIVER E A POESIATéo AzevedoNARRANDO O ENREDAMENTO DAS POPULAÇÕES DO SERTÃONORTE-MINEIRO E DO CAA: UMA TRAJETÓRIA DE 20 ANOSCarlos Dayrell; Helen Santa RosaUMA ALIANÇA DO SERTÃO NORTE-MINEIRO COM OS POVOS DOCERRADO EM DEFESA DE SEUS TERRITÓRIOSHelen Santa RosaPRODUÇÃO SUSTENTÁVEL: UMA ESTRATÉGIA DE CONSERVAÇÃODonald SawyerDO FRUTO DO VERÃO DO CERRADOMaria Helena de Souza IdeSALUZINHO E A LUTA PELA TERRA NO NORTE DE MINASLuiz Antônio ChavesTRANSPOSIÇÃO DO SÃO FRANCISCO: ATÉ ONDE O GOVERNO VAILEVAR ESSA INSENSATEZ?Leonardo MattosCARTA AO PRESIDENTE LULADom Luiz Flávio CappioA ARQUIDIOCESE DE MONTES CLAROS E A TRANSPOSIÇÃO DOVELHO CHICODom Geraldo Majela de CastroRIO SÃO FRANCISCO: ÁGUA E VIDANestor Sant�anna; Guiomar MurtaO ANDARILHO DO SÃO FRANCISCODário Teixeira CotrimA PELEJA DO VELHO CHICO CONTRA O VAMPIRO DA TRANSPOSIÇÃORogaciano OliveiraSOBRE OS AUTORES

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m vida, São Francisco nun-ca roeu pequi. Não se temnotícia d�algum momentoque ele tenha pelo menos

Nenhum Santo talvez tenha recebido tantashomenagens como São Francisco. O Tio Sambatizou uma das maiores cidades norte-ame-ricanas de San Francisco. Se os monges sãobeneditinos, os padres são franciscanos. Asandália do pobre, que hoje é moda entre osricos, sempre foi a franciscana. Chico Bento,que, ao lado de Rosinha, sempre chora quan-do seca o ribeirão, é o mais lindo personagemda história das histórias em quadrinhos.

Qual foi será a reação do nosso herói, ládo céu, quando recebeu a notícia de que

seu harmônico nome batizaria o rio mais es-pecial do planeta Terra? E, anos mais tarde,quantos pulos de alegria ele não deve ter dadoentre as nuvens quando esse rio, carinhosa-mente, passou a ser chamado de Velho Chico?

Ah, São Francisco! Quem dera tivéssemostodos um coração tão bom para merecer umahomenagem dessas. Melhor que qualquermedalha de ouro. Melhor que o beijo da eter-na namorada. Melhor que rapadura molhada.Quem dera tivéssemos um coração tão bom.

ORAÇÃODESÃOFRANCISCO

PAULO RIBEIROPAULO CÉSAR JÚNIOR

Ebeirado o Brasil, rolado no Cerrado ou mesmonadado n�algum rio de água doce em terrastupiniquins. Amante dos animais, São Francis-co talvez tenha até amado os bichos brasilei-ros também, mas, até pela distância � os tem-pos eram outros � , nunca viu qualquer espé-cie da nossa fauna, muitos menos da nossaavifauna. São Francisco não teve acesso aavião. Nem à televisão. Tampouco à internet.

Mesmo sem o amarelo do pequi entre os den-tes, São Francisco, porém, tem um quê desertanejo. Privilegiou os pobres. Abraçoucom todo afeto a natureza e rezou pelos bi-chos. Se tivesse conhecido, São Franciscocertamente teria amado Baleia nos seusflagelos de Morte e Vida e Severina. E seEuclides da Cunha, em seu tempo, parassepara rabiscar alguma coisa sobre o nobre San-to, talvez concluiria: �São Francisco é antesde tudo um forte�.

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O rio que leva seu nome, São Francisco, é,junto com o pequi, a jóia do Cerrado. O Cer-rado é, pra nós, sertanejos como o senhor, oucomo você � talvez sua simplicidade até pre-fira assim �, o mais importante bioma brasi-leiro. Só que o Cerrado, sem gíria, está lenhado,tratorado, massacrado, arrasado.

Veja o senhor, ou melhor, veja você, que de-pois de terem derrubado quase todos ospequizeiros coloridos, estão querendo sugaras águas do seu rio, do nosso rio, num projetomegalomaníaco, que nas capitais tem recebi-do o nome de transposição. O nosso rio, SãoFrancisco, precisa é ser revitalizado.

Nesta terceira edição da REVISTA VER-DE GRANDE, este terceiro pequi que ro-emos em nossa tigelinha eco-cultural deeducação ambiental, vamos falar, quase queexclusivamente � nada é exclusivo � do Cer-rado, já que estamos em plena 16ª Festa Na-cional do Pequi. Uma festa nacional que erasó de Montes Claros desde o início, mas quea partir deste ano é uma festa nacional re-gional, com o incremento do Expresso

Pequi a espalhar, em 2005, a cultura doCerrado por mais sete municípios do Nortede Minas: Matias Cardoso, Grão Mogol,Engenheiro Navarro, Capitão Enéas, Jaíba,Francisco Sá e, é claro, São Francisco.Quem dera até 2007, nos 150 anos de Mon-tes Claros, seja esta uma festa nacional pelomenos estadual, para que depois disso te-nhamos a possibilidade de organizar emnossa Moc uma festa nacional mesmo!

Para falar de Cerrado, buscamos, em especial, o apoio da equipe do Centro de Agri-

cultura Alternativa, o CAA, que em 2005 co-memora 20 anos de lutas, histórias e pesqui-sas. Mas, principalmente, buscamos o apoiodos que levam a vida na poesia e fazem decada novo dia, realmente, um novo dia.

Fiquemos, como São Francisco sempre quis,em paz. E lembremos sempre: só amando,seremos amados. Só preservando, seremospreservados. É dando que se recebe. De mãosjuntas, vamos preservar o Cerrado, nem queseja na marra. São Francisco, lá de cima, comcerteza, está fazendo a parte dele.

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Daniel Mansur

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lidação de uma idade do ouro, posta sempreno futuro e, dessa forma, desvalorizando ariqueza construída em sua historicidade.

Diversidade ambiental: uma questão de naturezaou de cultura?

Na geografia regional o ambiente natural secaracteriza pela existência de uma diversida-de de nichos ecológicos distintos entre si, quepara Dayrell,

puede ser explicada por el hecho de la región estarsituada en un área de contacto de distintosecosistemas, que se ínter penetran en una ampliafaja de transición, correlacionadas con diferentesformas de relieve y con una gradiente decrecientede precipitaciones anuales (1998, 64).

Em uma área de 120.000 km2, o territórionorte-mineiro, do ponto de vista

ambiental, é composto pela interpenetraçãodos Cerrados, da Caatinga, da Mata Seca e da

CULTURA,NATUREZAEPOPULAÇÕES TRADICIONAIS:

JOÃO BATISTA DE ALMEIDA COSTA

No Norte de Minas como síntese da nação brasileira1

o médio São Francisco,zona de transição entreecossistemas diversos,estruturou-se e organi-zou-se uma sociedade

com características próprias, em que o eixocrucial consiste na articulação de diversida-des culturais, de identidades contrastivas, deracionalidades díspares, mas complementares,e de projetos civilizatórios construtores da ci-vilização brasileira, que permitem pensar oNorte de Minas como a síntese de nossa na-cionalidade. Essa complexidade social, cul-tural, civilizatória e política tem sidoobliterada ao longo de sua trajetória históricapelo lugar subalterno ocupado no interior dasociedade mineira, que se diz o locus dabrasilidade, ao mesmo tempo em que a con-formação da estrutura cultural regional desli-za para a articulação entre o nativo e o es-trangeiro o papel fundamental para a conso-

1 Agradeço a Simone Narciso Lessa as conversações sobre a questão que abordo neste artigo, como também sobrediversas outras questões. Nossas conversas permitem clarear algumas idéias e interpretações. Entretanto, afirmo que aresponsabilidade pelo texto é minha.

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Elisa Cotta

Flor de mangaba na beira da chapada �Minas Novas �MG

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Mata Atlântica entre si. Não sou ambientalistae o meu objetivo é discutir questões culturaise por isto deixo a questão do aprofundamentodestas discussões ecológicas para quem dedireito. Apenas quero caracterizar, minima-mente, esses quatro nichos ecológicos queconformam oNorte deMinas como uma zonade transição ambiental.

Odomínio dos Cerrados2 é composto pordiversos ambientes que as populações

regionais classificam como sendo cerradão,gerais (categoria que contém as diversas for-mas de cerrado classificadas pelos botânicos),vazante (florestas galerias), veredas, barran-cos (as matas das margens dos rios) e caatin-ga. É necessário enfatizar a transição destedomínio com o da Caatinga, mas a populaçãonorte-mineira não compreende os dois comobiomas distintos, são regionalmente vistoscomo parte de uma totalidade ambiental.Depois volto a esta questão, a questão danatureza ou da cultura? No Brasil, como umtodo, os Cerrados destacam-se como unida-des fitofisionômicas pela sua grandeexpressividade quanto ao percentual de áreasocupadas. Dependendo do seu adensamentoe condições edáficas, podem apresentar mu-danças diferenciadas denominadas decerradão, campo limpo e cerrado, entremeadaspor formações de florestas, várzeas, camposrupestres e outros.

O domínio da Caatinga, regionalmente, pos-sui duas formações vegetais, a caatinga arbóreasituada no vale do Rio Verde Grande e a caa-tinga arbustiva situada, no mesmo vale, já nafronteira com o estado da Bahia e em algu-mas áreas pontuais. Esse domínio tem umafisionomia de deserto, com índicespluviométricos muito baixos, em torno de 500a 700 mm anuais. A temperatura se situa en-

tre 24 e 26 graus e varia pouco durante o ano.Além dessas condições climáticas rigorosas,a região das Caatingas está submetida a ven-tos fortes e secos, que contribuem para a ari-dez da paisagem nos meses de seca. Nesteperíodo, o sol forte acelera a evaporação daágua das lagoas e rios que, nos trechos maisestreitos, secam e param de correr. Quandochega o verão, as chuvas encharcam a terra eo verde toma conta da área deste domínio.Na longa estiagem, os sertões são, muitas ve-zes, semi-desertos e nublados, mas sem chu-va. A vegetação adaptou-se ao clima para seproteger. As folhas, por exemplo, são finas,ou inexistentes. Algumas plantas armazenamágua, como os cactos, outras se caracterizampor ter raízes praticamente na superfície dosolo, para absorver o máximo da chuva.

O domínio da Mata Seca, existente apenas noNorte de Minas em todo o Planeta Terra, en-contra-se situado na região onde se localiza omunicípio de Montes Claros, mas não está res-trito a este município, ampliando-se por outrasáreas municipais. Esse domínio é, muitas ve-zes, situado como parte dos Cerrados. Apre-senta-se como um tipo de formação florestalnão associada a cursos d�água e apresenta di-ferentes índices de deciduidade durante a es-tação seca que conformam diferenças no inte-rior deste domínio, ou seja, há a Mata SecaSempre-verde, a Mata Seca Semidecídua e aMata Seca Decídua. Os dois primeiros tiposde formação ocorrem sobre solos desenvolvi-dos, por um lado, em rochas básicas de altafertilidade, ou seja, sobre terra roxa estruturadae, por outro lado, em áreas de média fertilida-de, ou seja, em locais onde ocorre latossolovermelho-escuro. A Mata Seca Decídua emgeral ocorre sobre afloramentos de rochascalcárias. O estrato arbóreo apresenta alturaque varia entre 15 e 25 metros.

2 Na gramática cultural norte-mineira esse bioma é nomeado no plural em decorrência das diversas formações que neleexistem e que a população regional distingue, enquanto na gramática científica sua nomeação é singular.

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O domínio da Mata Atlântica localiza-seem área lindeira ao Rio São Francisco em

sua margem direita na região dos municípios deJanuária, Itacarambi e Manga. Essa formaçãovegetal se expreme entre o leito do rio e a for-mação cárstica por meio do qual o solo se elevanesta área norte-mineira. A formação florestalrecebe várias denominações: floresta latifoliadatropical úmida de encosta, que indica tratar-sede floresta sempre verde, cujos componentesem geral possuem folhas largas, que é vegeta-ção de lugares onde há bastante umidade o anotodo, e, finalmente, que é vizinha da costa ouacompanha a costa. A segunda denominação,mata pluvial tropical, informa a existência defloresta cujos componentes têm folhas largas,situa-se nos trópicos úmidos e vive em encos-tas. E, finalmente, mata atlântica, denominaçãomais geral, indica sua vizinhança com o Ocea-no Atlântico. E desta vizinhança decorre a umi-dade transportada pelos ventos que sopram domar. Como conseqüência dessa umidade surgea possibilidade de terem seus componentes, namaioria, folhas largas. E, ainda, esta umidadeconstante aliada às altas temperaturas garante ocaráter de vegetação perenifólia, ou seja, exis-tência de folhas que não caem antes de as no-vas estarem já desenvolvidas. Portanto, por re-ceber muita energia radiante e pelo alto índicede pluviosidade, trata-se de uma floresta exu-berante, de crescimento rápido, e sempre verde,ou seja, as folhas não caem.

Mas voltemos à questão que ilumina esta se-ção, ou seja, o entendimento da populaçãonorte-mineira da existência de uma totalida-de ambiental. Na antropologia, há a compre-ensão de que a natureza não é natural, mascultural. Para Durkheim e Mauss (1981), aclassificação da natureza é homóloga à for-ma como a sociedade se vê discursivamente,

então posso afirmar, também, que o conteú-do gramatical que informa o meio ambiente éreplicado a partir do conteúdo gramatical decomo a própria sociedade vê a si mesma e serepresenta. Para Lévi-Strauss (1986), as coi-sas sociais3 são boas para pensar a própriasociedade, ou, dizendo de outra forma, comoa sociedade norte-mineira vê o ambiente ondese encontra localizada é a forma como vê a simesma, ou seja, como uma totalidadeambiental, por um lado e, por outro, ela éuma sociedade integrada e uma cultura espe-cífica. Isto não quer dizer que nessa socieda-de a cultura construída seja homogênea. Adiversidade é uma marca indelével na vidasocial e cultural norte-mineira.

Passemos a olhar a sociedade norte-mineiradesde dentro considerando o evento que seconsidera aquele que lhe dá fundação.

As diversidades culturais antes dos bandeirantes

No território onde se localiza a sociedadenorte-mineira existiram diversas socieda-

des indígenas. Em seu livro sobre a terra minei-ra, Nelson de Senna (1926, 51 e passim) apre-senta as sociedades indígenas que existiam nes-sa área, dentre elas, os Abatirá, na margem di-reita do São Francisco; os Amoipira, que vin-dos de Pernambuco e Bahia se localizaram namargem esquerda; os Acoroá, que no séculoXVII vieram de Goiás para as margens dos riosParacatu e Urucuia; os Bokeré, que viveram nasmatas do Jequitinhonha, em suamargemesquer-da, até fins do século XIX; os Canacan, que vin-dos da Bahia pelo Rio Pardo de Minas faziamcorrerias e assaltos durante o século XVIII e co-meços do século XIX; os Kariri, que desceramdo Ceará e em Januária se misturaram com osKayapó, vindosdoMatoGrossonos anos 17204 ;

3 A natureza e a sua classificação é uma coisa socialmente construída.4 O descimento dos Kariri ocorreu algum tempo após a derrota para o exército comandado por Mathias Cardoso deAlmeida, que lutou contra sociedades indígenas confederadas sob a liderança dos Kariri, evento denominado nahistoriografia comoGuerra dos Bárbaros ou Confederação dos Kariri.

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Mulher e pote � buscada de água � Salinas � MG

Elisa Cotta

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os Catiguaçu, que viviam entre os rios São Fran-cisco e o Jequitinhonha; os Catolé, situados en-tre os rios Pardo e Verde Grande; os Dendy,que se localizavam nas chapadas da Serra Ge-ral; os Goiano; os Guayba, que viviam em ilhasdo Rio São Francisco em frente à cidade de SãoRomão; os Kiriri, que desceram do Ceará apósderrota dos confederados e se localizaram naárea entre a cidade de Januária e o Rio Urucui;osKraó, vivendono sertãodoUrucuia; osKrixá,vindos de Goiás com os Xakriabá na segundadécada do século XVIII, e que se localizaramnas margens do Urucuia5 ; os Pataxó, que fazi-am correrias entre os rios São Francisco eJequitinhonha e depois dirigiam-se para o lito-ral; os Piripiri, que viviam na foz do RioGorutuba; os Rodela e os Tupinaen, que en-contravam-se estabelecidos nas margens do RioSão Francisco6 . Não é possível fazer descriçãode seus modos de vida porque não foram estu-dados por ninguém. Sabe-se, apenas, por infor-mações em documentação colonial, que na ba-cia do médio São Francisco localizavam-se es-tas sociedades indígenas.

Entretanto, é possível dizer, baseado emestudos em outras áreas onde ocorria a

presença de mais de uma sociedade indígena7 ,que as mesmas não se encontravam isoladas

umas das outras, mas se articulavam em tota-lidades sociais hierárquicas ou simbióticas. Issonão quer dizer, contudo, que houvesse a pre-sença de uma sociedade ou de um grupo quese caracterizasse como politicamente superi-or, propiciando a constituição de uma organi-zação em que o Estado se originasse8 . Por so-ciedade hierárquica, Ramos (1980) quer dizerda existência de relações assimétricas de statusem oposição e relações de classe, em que ocor-rem relações de sujeição e dominação. E porsociedade simbiótica essa mesma autora infor-ma a ocorrência de complementariedade derelações entre as etnias vinculadas em condi-ções de igualdade.

E, finalmente, a historiografia paulista e baiana,por meio das quais é possível compreender ahistória da raiz9 da sociedade norte-mineira,constituída com a chegada de bandeiraspaulistas, nos informa a existência de uma ou-tra característica societária no interior da ba-cia do médio São Francisco: a presença de pe-quenos agrupamentos de africanos e seus des-cendentes que, fugindo da escravidão, deramorigem a quilombos. Nada mais além de se sa-ber sobre a presença dos mesmos, porque de-veriam ser exterminados, pode ser encontradona documentação colonial.

5 Como os Kayapó, os Krixá, os Kraó e os Xakriabá emergem na história da sociedade do médio São Francisco nasegunda década do século XVIII quando fugiram à penetração colonial em seu território na região deMato Grosso.6 Como é possível se ver pela denominação das etnias indígenas que existiam noNorte deMinas, não há nenhum grupotapuia, apesar da informação histórica e da memória regional da presença dos mesmos no território norte- mineiro.Estudos antropológicos e lingüísticos sobre as sociedades tupi-guarani evidenciaram que com o termo �tapuia� essesindígenas queriam informar a existência de homens bravios. Em seu estudo sobre os índios do Brasil, Melatti (1983)informa que os tapuias eram grupos vinculados ao tronco lingüísticoMacro-Jé de conformação social guerreira e que, porisso mesmo, viviam em conflitos permanentes com os indígenas do tronco lingüístico tupi-guarani.7 Vide os estudos de Ramos (1980) sobre articulações entre grupos indígenas que formavam hierarquias ou estavamsimbioticamente relacionados entre si.8 Clastres (2003) estudando a SociedadeGuaiaquil informa a impossibilidade da emergência doEstado devido a esse povoindígena, naquela perspectivamarxista de que a infra-estrutura determina a superestrutura, ter como aspecto crucial de suavida a própria sociedade.Quandoocorriam conjunturas emque começava-se a emergir umgrupoorganizando-se politica-mente para se constituir comoEstado, apareciam profetas pregando a necessidade da busca da �terra semmales�, isto é,sem a presença do Estado. Desta forma, para o etnógrafo francês, os grupos indígenas brasileiros não constituíramorganizações políticas superiores porque sempre optarampela supremacia das relações sociais sobre quaisquer outras.9 Utilizo uma categoria social recorrentemente encontrada nas comunidades rurais norte-mineiras por onde tenhoandado em meus estudos e em meus trabalhos desde os anos 1980. Com essa categoria são relatados os primórdiosdessas comunidades, quando algum parente deu fundação ao mundo social em que seus membros vivem.

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Como no caso das sociedades indígenas,entretanto, os estudos sobre os

quilombos podem nos lançar alguma luz so-bre a vida dessa população. Ela se localizou,principalmente, mas não exclusivamente, nointerior da floresta de caatinga arbórea exis-tente no vale do rio que, posteriormente, pas-sou a ser denominado como Verde Grande.

Os quilombos foram localizados a partir deduas dinâmicas distintas. Por um lado, os es-cravos fugidos não queriam nenhum contatocom a sociedade escravocrata e, para tanto,percorreram o território que viria a ser brasi-leiro em busca de lugares que fossem áreasque os índios não habitassem. Por outro lado,os escravos fugidos queriam manter algumaforma de contato com a sociedadeescravocrata, mas buscavam áreas que osportugueses e seus descendentes recusavampor alguma razão, mesmo que estivessem pró-ximas às povoações. A essas duas dinâmicasse conceituou como barreiras estruturais, ouseja, ocorria algum impedimento para o esta-belecimento de relações desde fora, seja porquestões naturais, como a existência de ma-lária, de corredeiras e cachoeiras, serras ín-gremes, furnas ou vãos, �nos cafundós doJudas�, dentro de florestas, etc, ou seja porquestões sociais, terras que não tinham ne-nhum valor econômico, principalmente.

Nesses locais, os africanos e seus descenden-tes constituíram pequenas comunidades comalgum tipo de produção agrícola, pecuária,extrativista, mineratória e, em poucas, comopraça de guerra. As diversas pequenas comu-nidades mantinham entre si vínculos sociaispara proteção do território negro. Esses vín-culos estruturavam redes de parentesco nointerior de quilombos, também chamados democambos ou calhambos.

No caso dos africanos e seus descendentesvivendo no vale do Rio Verde Grande, emdecorrência da presença de um grande núme-

ro de lagoas formadas nas dolinas no interiorda floresta de caatinga arbórea, devido à umi-dade, havia o cultivo de produtos agrícolas,notadamente, mandioca, milho, arroz, feijãoe fava, banana, dentre outros produtos, nasmargens dessas lagoas, regionalmente conhe-cidas como furados. Assim, as comunidadesquilombolas construíram uma agricultura defurado que propiciava fartura de alimentos noperíodo da seca e que, nas grandes secas regi-onais, propiciava fornecer alimentos para aspovoações brancas vivendo nas encostas dasserras que circundam o vale do mesmo rio oumesmo que se situavam nas chapadas dessasmesmas serras. O gado bovino era criado sol-to no interior da floresta, possibilitando, pos-teriormente, dar origem a diversas localida-des com denominação de Gado Bravo, GadoVelhaco, Barreiro do Rio Verde, Barreiro daRaiz, dentre outras.

Estudando os Xacriabá, Santos (1997) in-forma a ocorrência de contatos entre an-

tigos membros dessa sociedade indígena e denegros aquilombados no interior da florestade caatinga arbórea existente no vale do RioVerde Grande. Essa informação nos permiteafirmar a existência de alguma forma de vín-culo entre indígenas e quilombolas, muitomais numa perspectiva de simbiose do quenuma perspectiva hierárquica. Nesse sentido,Costa Silva (1998), estudando o quilombo deRio das Rãs, situado no território baiano, nasproximidades de Bom Jesus da Lapa, e cons-tituinte da mesma formação negra do valeverdegrandense, informa a existência devinculações entre populações não-brancas,conformando uma imensa sociedade comuma racionalidade, baseada na reciprocidadee na solidariedade, onde a competição e aconcorrência entre grupamentos étnicos dis-tintos não se verificava.

Em resumo, podemos dizer que antes da che-gada dos portugueses e seus descendentes,existia na área média da bacia do Rio São

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Francisco uma sociedade multicultural emultiétnica, organizada pelos princípios dereciprocidade e solidariedade, com relaçõessociais articuladas fortemente por parentes-co e, possivelmente, por casamentointerétnico, por ser esta uma característica dassociedades indígenas brasileiras10. Assim, con-solidou-se nesta área sanfranciscana uma so-ciedade de encontros e de liberdade, que nãoera tardia, porque verificada na prática sociale cuja característica é legada à sociedade quese forma com a presença dos brancos.

A articulação de projetos civilizatórios no cenárioregional

Apartir dos anos 1610, conforme Taunay(1948) em seus estudos sobre a história

geral das bandeiras paulistas, o vale do RioSão Francisco começou a ser percorrido porbandeiras anônimas, sendo que uma dela sefixou em sua parte média e deu partida ao po-voamento dessa área. Nesse período, por umlado, o território da margem esquerda estavavinculado à Capitania da Bahia até às cabe-ceiras e percurso do Rio Vaihum11 e, por ou-tro, o território da margem direita era parteda Capitania de Pernambuco até as cabecei-ras e percurso do Rio Paracatu. Com o iníciodo povoamento e a introdução da pecuária,essa área passou a ser conhecida como Cur-rais da Bahia e Currais de Pernambuco. Em seusestudos sobre o Norte de Minas, o intelectualregional Simeão Ribeiro Pires (1979) infor-ma a impossibilidade dos currais baianos epernambucanos se localizarem em área quenão o médio vale sanfranciscano, devido à

ausência de vegetação propícia para ocriatório bovino fora dessa área.

A chegada da bandeira anônima paulista capi-taneada por Mathias Cardoso de Almeida12constitui-se, pois, como o evento fundante dasociedade pastoril situada no atual Norte deMinas13. Antes de entrar na argumentação so-bre a formação dessa sociedade, gostaria decolocar uma questão, crucial para os norte-mineiros, cujos historiadores locais, com ex-ceção dos moradores da cidade de Matias Car-doso, ao construírem historiografias focaliza-das em seusmunicípios, cindem a bandeira quepovoou o território regional e colocam toda aação apenas na figura de um de seus membros,obliterando, assim, o papel da bandeira comouma organização social. O que era uma ban-deira? Para Cassiano Ricardo (1956), as ban-deiras eram grupos sociais organizados porparentesco e compadrio e mantidos vincula-dos por relações de solidariedade e reciproci-dade. Cada grupo social constituía-se como umcorpo de guerra em luta contra sociedades in-dígenas e grupos quilombolas que se recusa-vam ao aprisionamento. Os vínculos por pa-rentesco e por relações de solidariedade e reci-procidade propiciaram eficácia na consecuçãoda obra de ocupação e povoamento dos terri-tórios invadidos, apesar de suas armas de fogo,que não faziam parte do arsenal dos inimigos.Como os vietnamitas frente aos Estados Uni-dos, indígenas e quilombolas conheciam o ter-ritório e usufruíam do saber que possuíam parase deslocar e se esconder, não apenas paraemboscadas como, também, para interstíciosentre batalhas.

10Levis-straussianamente pode-se dizer da existência de um comércio demulheres nestas relações interétnicas, propiciandoo estabelecimento de alianças, tanto entre sociedades indígenas como entre sociedades indígenas e comunidadesquilombolas.11 Simeão Ribeiro Pires (1979) informa tratar-se do Rio Paraopeba, que nasce nas cercanias deOuro Preto e deságua noRio SãoFrancisco.12 Para facilitar o entendimento do leitor faço a grafia do nome do bandeirante com �th� (Mathias) e da cidade semo �h�,ou seja, Matias.13 Paul Ricoeur (1997), ao discutir Tempo e Narrativa, argumenta que as coisas propriamente sociais possuem ummomento de fundação que ele considera como o evento fundante dessas mesmas coisas sociais.

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Tronco de Cagaita � Rusticidade � Turmalina �MG

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Cada bandeirante fundador de uma povoação norte-mineira não veio para a re-

gião sozinho. Ele era parte da bandeira capi-taneada por Mathias Cardoso de Almeida. Osoutros membros eram seus irmãos, cunhadose alguns compadres, além dos escravos indí-genas e negros.

Localizados inicialmente nas margens do RioVerde Grande, quase em sua foz com o RioSão Francisco, os membros da bandeira tra-varam lutas contra as sociedades indígenasaqui existentes, objetivando escravizar os seusmembros para comercializar os indivíduos emSalvador ou na Vila de São Paulo. Nessesmesmos locais, ao entregarem pares de ore-lhas salgados, eram pagos com cabedais, por-que nesse período às administrações só inte-ressava a morte dos africanos e seus descen-dentes que viviam em quilombos. Entretan-to, devido à uma enchente do Rio VerdeGran-de, abandonaram o local e se fixaram nasmargens do Rio São Francisco, onde aindahoje existe o Arraial do Meio, no municípiode Matias Cardoso. Por alguma razão que ne-nhum historiador informa, houve a mudançados mesmos para outra área onde fundaram oArraial de Morrinhos, onde hoje se localiza acidade que homenageia o fundador do Nortede Minas. Esse arraial foi também conhecidocomo Arraial de Mathias Cardoso ou deJanuário Cardoso, o seu único filho legítimo14 .Em uma ida a São Paulo no ano de 1674,quando deveria acompanhar Fernão DiasPaes, iniciava a sua busca das esmeraldas, quenão passavam de turmalinas. Mathias Cardo-so de Almeida trouxe consigo algumas cabe-

ças de gado, por compreender a riqueza ali-mentar que a vegetação da área propiciavaao gado bovino15.

Neste mesmo período, Antônio Guedes deBrito, que fizera parte de uma JuntaGovernante da Capitania da Bahia e do Go-verno Geral do Brasil, assumiu o compromis-so de lutar contra indígenas e quilombolas quevinham atacando a zona açucareira doRecôncavo e recebeu, para tanto, a famosasesmaria de 160 léguas do Morro do Chapéuaté as nascentes do Rio Vaihum, dando for-mação à Casa da Ponte. Enquanto percorriaas terras de sua sesmaria, foi acometido dedoença e retornou antes que chegasse às mar-gens do Rio das Velhas. Nesse seu périplo,encontrou os criadores de gado que tinhamsido bandeirantes sob as ordens de MathiasCardoso de Almeida. Esse é um fato históri-co da maior importância: o encontro dospaulistas que subiram e se fixaram no médioSão Francisco e a subida dos baianos que, aose depararem com os criadores de gado, esta-beleceram relações. Um fruto desta relação,alguns anos mais tarde, é o casamento do ir-mão caçula do líder da bandeira, SalvadorCardoso de Oliveira com Maria da Cruz.

Logo após retornar ao seu arraial, quandodeixou um grupo de seus homens com FernãoDias Paes, e após a morte deste, foi chamadoà Vila de São Paulo para acompanhar DomRodrigo Del Castel Blanco, espanhol respon-sável pela administração da colônia brasileiradurante a vinculação de Portugal ao Reino deEspanha. Enquanto viajou com o mesmo,

14 Em um artigo a ser publicado brevemente na revista Humanidades, da Funorte, apresento uma argumentação maiscomplexa sobre o processo de ocupação e povoamento do Norte de Minas. Ao trabalhar com a historiografia e amemória da população da cidade de Matias Cardoso, onde fiz uma pesquisa que foi base para a minha tese dedoutoramento, pude desanuviar o cenário de algumas passagens nebulosas sobre a �história da raiz� norte-mineira.15 Informo que todas as informações que utilizo para descrever o início do povoamento da região norte-mineira e deformação da sociedade que aí se construiu estão baseadas na obra de Afonso de Taunay (1948), Capistrano de Abreu(2000), Francisco Carvalho Franco (1940), Pedro Taques de Almeida Paes Leme (1980), Urbino Viana (1935), Luís dosSantos Vilhena (1969), Simeão Ribeiro Pires (1979), Salomão de Vasconcellos (1944), Brazilino Brás (1977) e AlbertoVieira de Araújo (1970).

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aprendeu táticas de guerra que, posteriormen-te, serão de grande valia para o seu grupo.

Enquanto as fazendas fundadas nasmargens dosrios São Francisco, Verde Grande, Gorutuba,das Rãs, Preto, Urucuia e Pardo se consolida-vam, os paulistas, já vinculados com baianos epernambucanos, iniciaram a comercialização dogado e de gêneros alimentícios, além de cacha-ça, na zona açucareira do Recôncavo e na cida-de de Salvador, ao mesmo tempo em que leva-vam avante o objetivo inicial da bandeira: aprearíndios para serem vendidos como escravos eexterminar quilombos. De certa forma, deramcontinuidade à missão assumida pelo chefe daCasa da Ponte.

Nos anos 1680, devido à fama que granjeou no apreamento de índios, em de-

corrência do início dos conflitos da Confe-deração Kariri, ou Guerra dos Bárbaros contraos portugueses e seus descendentes, MathiasCardoso de Almeida foi solicitado pelo Go-verno Geral a coordenar a contra-ofensiva fi-nanciada pela Administração Colonial. Apósacordo, torna-se o Governador Absoluto daGuerra, tendo sob sua liderança toda a forçamilitar das Capitanias do Ceará, do Rio Gran-de do Norte, de Pernambuco e da Bahia, con-segue constituir seu arraial como vila e fundara primeira paróquia em território que posteri-ormente passou a pertencer a Minas Gerais.

Os conhecimentos sobre táticas de guerraadquiridos com Dom Rodrigo Del CastelBlanco foram de suma importância para a suacondução nos conflitos. Formou um exércitode 1200 homens divididos em dois batalhõessob sua coordenação, sendo que o primeirosaiu da Vila de São Paulo e parou em seu ar-raial enquanto esperava o segundo, que sejuntou ao primeiro um ano depois. Nesse ín-terim, enviou um grupo de vanguarda visan-

do informar à população que encontrasse atéo destino, fazer plantios agrícolas que alimen-tariam o exército no percurso até a área emconflito e, no próprio local da guerra, estabe-lecer o local do acampamento central.

Após se fixar na região de Açu, Mathias Car-doso de Almeida deu início à guerra. Após

diversas batalhas e a morte de um filho ilegítimo,quase no final dos conflitos, quando já havia con-seguido estabelecer um tratado de paz com osindígenas que foram aprisionados, oGovernadorda Guerra decidiu retornar ao seu arraial. Entre-tanto, enviou umgrupo de seus homens para aju-dar a Domingos Jorge Velho a vencer a guerracontra os negros aquilombados na Serra da Bar-riga, o famoso quilombo de Palmares.

Ao retornar em 1695, Mathias Cardoso deAlmeida recebeu da Coroa Portuguesa, em reco-nhecimento pelo seu feito, uma sesmaria das ca-beceiras dos rios Pardo e Doce ao Rio São Fran-cisco, além da autonomia administrativa por duasgerações. Essa é uma informação pouco comen-tada, a não ser pelo historiador das bandeiraspaulistas, Afonso de Taunay. O que significava aautonomia administrativa nesse período? Os cri-adores de gado dos Currais da Bahia não precisa-vam se reportar à administração de nenhuma ca-pitania e nemmesmo do governo geral. Creio serpossível afirmar que, neste período, teria havidouma Colônia São Francisco no sertão da ColôniaBrasil, assim como houve a Colônia Grão-Paráao norte e a Colônia Cisplatina ao sul.

Em 16 de julho de 1696, é encontrado ouro dealuvião em um local de um ribeirão nas cercani-as do Pico do Itacolomi, que recebeu o nomede Mata Cavalos no curso do Ribeirão de Nos-sa Senhora do Carmo. A descoberta do ouro dáfundação à sociedade mineradora, situada emuma região que veio a se chamar, posteriormen-te, Minas Gerais, devido à quantidade de lavrase minas existentes na área16 . Imediatamente, os

16 OnomeMinasGerais para uma áreamaior que a da exploração aurífera só ocorreu em1720, com a criação daCapitaniadeMinas Gerais. Antes a região era conhecida comoMinas doOuro ouMinas de São Paulo.

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Banda de Taquara � Comunidade de Bem Posta � Minas Novas � MG

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bandeirantes que andavam à procura do ouro ede pedras preciosas lançaram-se na mineração,entretanto, conforme informação de Antonil(1997), tiveram que abandonar a exploraçãoaurífera em decorrência da falta de alimentação.Esse é um evento que se repete em 1698, 1700e só não acontece novamente em 1702, porqueem 1701 os membros da sociedade pastoril dosCurrais da Bahia, que deixaram de comercializargêneros alimentícios com o Recôncavo e comSalvador, passaram a direcionar o comércio coma zona de mineração.

Se o ouro foi o evento que fundou as Minas Gerais, o estabelecimento de comér-cio entre as sociedades pastoril e mineradoraconstitui-se a fundação e consolidação da so-ciedade mineira. Nesse sentido, o historiadormineiro Salomão de Vasconcelos (1944), ape-sar de narrar os fatos ao contrário conformeTaunay (1948), nos informa que

no particular, portanto, da Casa Mineira (...) oprecursor dos caminhos, o povoador ancestral,foi, incontestavelmente, o vaqueiro do norte, acujo esforço, conjugado logo depois com o dobandeirante do sul, devemos precipuamente os alicer-ces da independência econômica, da ocupação territorial eda civilização do planalto (1944, 22, grifos meus).

Os vínculos entre as duas sociedades forampropiciados pela dependência de gêneros ali-mentícios de uma e pela oferta, com fartura,da outra. Mafalda Zemella (1990), ao estu-dar o abastecimento da Capitania de MinasGerais nos anos 1800, evidencia essa articu-lação primacial entre mineradores e pastores,até que a emergência da administração colo-nial, visando o monopólio da vida econômi-ca na zona mineradora, instaura uma rupturanesse processo, levando a região dos Curraisda Bahia ao que se considera isolamento. Aqui,uma jóia regional, não considerada por suas

elites, que confere ao Norte de Minas o po-der simbólico de constituir-se como socieda-de fundadora e agente da consolidação dasociedade mineira.

Mas voltemos à questão do isolamento regio-nal. A razão dessa ação por parte dos funcio-nários da Coroa Portuguesa se fundamenta noque esses mesmos funcionários consideraramcomoo �contrabando� do ouro. LendoAntonil(1997), Simeão Ribeiro Pires (1979) nos infor-ma que o contrabando, verdadeiramente, era atroca de gêneros alimentícios por ouro. Nesseperíodo, uma vaca em pé custava dois quilosde ouro e um cavalo, como animal de carga,custava três quilos de ouro. A demanda poralimentos e por animais para o transporte eraimensa e, para os mineradores, havia tantoouro que o mesmo, na zona de mineração, per-deu seu valor frente ao valor, simbólico e físi-co, dos alimentos17.

Para colocar um fim no �desvio� do ouro,a administração colonial criou a Capita-

nia de Minas Gerais, anexando parte dos Cur-rais da Bahia em seu território. Assim, essaregião passou a denominar-se Norte de Mi-nas. Dois fatos de extrema importância estãovinculados a este momento. O primeiro é aperda da autonomia que Mathias Cardoso deAlmeida e o seu filho Januário Cardoso deAlmeida tinham em decorrência da pacifica-ção do Nordeste. O segundo é a mudança nacobrança de impostos. Até esse período, oscriadores de gado pagavam o dízimo, anual-mente, a partir do que declaravam ter sidosua produção, mas, com a vinculação à novaCapitania, passaram a pagar o quinto, ou seja,por exemplo, a cada 100 vacas que conduzis-sem à região das Minas Gerais, tinham quedeixar 20 cabeças nas fazendas de contagens

17 Há uma teoria mercantilista que diz: �quantomais há umamercadoria e há a ausência de outra, tanto mais a primeiraé desvalorizada e a segunda passa a ter valor maior do que usualmente em decorrência da carência da mesma�, mesmoque a primeira seja ouro e a segunda, gêneros alimentícios. Nesse período, osmineradores tinham ouro em abundância,mas eram carentes e necessitados de gêneros alimentícios e os criadores de gado tinham comida em abundância.

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20. Tanto um fato quanto o outro foram gol-pes na sociedade pastoril norte- mineira.

Decorre deste momento, creio, o desejode autonomia norte-mineira. Conforme

pesquisa de sociólogo sobre criação de esta-dos no Brasil, essa região já processou, ao lon-go de sua história, 36 tentativas de separa-ção18 . Há um incômodo no norte-mineiro emestar englobado à sociedade mineira e o so-nho da autonomia pode ser compreendido pelofato de que nenhum município da região te-nha a sua fundação comemorada, mas sim omomento de sua emancipação. A única exce-ção da regra é Montes Claros, que comemorao ano em que foi elevada à cidade, por umprocesso de invenção de tradição (Hobsbawne Ranger, 1997) coordenado por Hermes dePaula19 . Em 2007, a sociedade montes-clarense estará comermorando osesquicentenário da cidade, mas não estarácomemorando o tricentenário de sua funda-ção, que ocorre no mesmo ano. Uma outrainterpretação é possível. Como a elite mon-tes-clarense é quase toda ela descendente dosmineiros que para esta cidade vieram quandoda introdução da estrutura de estado no Ar-raial das Formigas, eles quiseram evidenciara atuação mineira na constituição da socie-dade norte-mineira, obliterando o papel dospaulistas, dos baianos e dos pernambucanosno mesmo processo.

Mas, voltemos à descrição do processo histó-rico. Após a anexação, Januário Cardoso de

Almeida, até então governador da Colônia SãoFrancisco, desenvolve intensa correspondên-cia com a Coroa Portuguesa, visando manter aautonomia administrativa da região. Em de-corrência dos vínculos com o governo daCapitania da Bahia e com o Governo Geral,há a solidariedade dos mesmos no pleito dofilho de Mathias Cardoso de Almeida, que fa-lecera em 1707. Apesar das tentativas, em1736, o Conselho Ultramarinho informa queos antigos Currais da Bahia não sedesmembrariam da Capitania de Minas Gerais.

Em resposta, diversos membros da socie-dade pastoril planejam um ataque à Vila

Rica e a independência da região, mas, por des-cuidos de ummembro dessa sociedade, a revol-ta, denominada pela administração colonial epelos historiadores mineiros como �motins dosertão�, e por historiadores norte-mineiros como�Conjuração Sanfranciscana�, não se realizou.Fruto da atuação da milícia colonial em SãoRomão, diversos membros da sociedade norte-mineira em seus primórdios foram presos e jul-gados. Maria da Cruz foi presa, mas depois pas-sou a residir em Salvador. Seu filho Pedro Car-doso ficou preso na Ilha das Cobras, no Rio deJaneiro. André Gonçalves Figueira, filho deAntônioGonçalves Figueira, foi deportado paraa África, e, Domingos do Prado também ficoupreso na Ilha das Cobras.

Com esse evento, começa o desmantelamentoda organização política que existia na região,centralizada em Morrinhos, atual cidade de

18 Hebert ToledoMartins defendeu tese de doutoramento sobre a criação de estados no Brasil, entretanto, não tratou docaso norte-mineiro, mas ao fazer levantamento de dados no Arquivo Público Mineiro e nos Anais da Câmara dosDeputados e no SenadoBrasileiro, encontrou informações sobre essas tentativas de separações. Seu conhecimento sobrea questão foi-me repassado em conversa pessoal.19 Essa é uma questãomais política que histórica. Diversos acadêmicos, estudiosos da vida norte-mineira, têm colocado ofato de que o centenário de emancipação de Montes Claros ocorrera de fato em 1931. Entretanto, a comemoração docentenário de elevação da vila a cidade, fato que no período colonial significava apenas uma honorabilidade, foi propícia àelite local em expressar, performaticamente, amodernidade da sociedade.Nesse período, a elitemineira construía o plane-jamento do desenvolvimento estadual, sendo que a região norte-mineira não estava contemplada nesse processo. Comoevento, uma tradição inventada, os montes-clarenses queriam dizer à elite mineira que o Norte de Minas estava emcondições de se desenvolver. Fato que só ocorreu quando o Governo Federal assumiu o processo de desenvolvimentoregional e anexou a região à área de atuaçãoda SUDENEe, efetivamente, financiou todoodesenvolvimento norte-mineiro.

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Matias Cardoso, e a transferência do poderpara a Vila Risonha, hoje cidade de SãoRomão.

Desculpe o leitor os saltos que darei na mi-nha argumentação a partir daqui, mas inte-ressam-me, apenas, algumas conjunturas, paradar fundamentação à minha interpretação.

Nos anos 1831, creio, em decorrência danecessidade de apoio político dos de-

putados e senadores mineiros, após a abdica-ção de Dom Pedro I e a emergência da Re-gência Trina, como forma de conseguirgovernabilidade ao país20, se dá início ao pro-cesso de estruturação do Estado no sertãosanfranciscano. Nesse período, famílias minei-ras se deslocam para a região como funcioná-rios do império e os arraiais são transforma-dos em vilas com legislativo, tendo o poderexecutivo e organismos militares � coletor ejudiciário. Dessa forma, os mineiros penetramna sociedade norte-mineira até então paulista,baiana e pernambucana.

Em fins do século XIX, com a chegada daOrdem Premonstratense, conhecida regional-mente como os padres de batina branca, dá-se partida ao processo de civilização dos nor-te-mineiros21 , quando os sacerdotes introdu-zem modos de comportamento definidoscomo civilizados pelos europeus. Nesse mo-mento, são criadas escolas, hospital, grupo deteatro, casa de caridade, asilo, banda de mú-sica e jornais.

Por esse mesmo período, imigrantes italianosse fixaram nos sopés da serra do Espinhaço,

na região de Porteirinha, Mato Verde, RioPardo de Minas e Riacho dos Machados, eintroduziram uma racionalidade bastante di-ferenciada das racionalidades das populaçõesdas camadas inferiores da sociedade norte-mineira existentes na região. A vinda dosmesmos ocorreu no escopo das migraçõesestrangeiras para embranquecer a populaçãobrasileira, diante do medo apregoado peloConde Gabineau de que os brasileiros esta-vam fadados ao desaparecimento, por teremassumido o padrão miscigenador como nor-ma nas relações entre as etnias que aqui seencontraram22.

Nos anos 1960, fruto do processo dedesenvolvimentismo brasileiro, a região,

ao ser anexada à área de atuação daSUDENE, passa por estruturação de infra-estrutura de apoio ao capital, por moderniza-ção das fazendas, que se transformam emempresas, e por expansão das relações capi-talistas de produção. Há um intenso êxodorural, em decorrência das terras terrasmercantilizáveis, e início do crescimento dascidades regionais, com migração da popula-ção rural expulsa do campo após perder, vio-lentamente, as suas terras, e de trabalhadoresqualificados para assumirem lugares nas in-dústrias que se instalaram em Montes Claros,Bocaiúva, Pirapora, Várzea da Palma e Capi-tão Enéas. Há, ainda, a implantação dos pro-jetos de irrigação em Pirapora, Porteirinha eManga, dando origem ao agrobusiness que seinstala na região.

Finalmente, meu principal argumento nesta

20 Esse é um velho processo de se buscar a governabilidade, que, no momento atual, tem sido considerado como�mensalão�.21 Utilizo a conceituação que Elias (1994) faz sobre civilização. Ao estudar o processo civilizatório, tomando aAlemanhae a França, esse autor analisa a história dos costumes, concentrando-se nasmudanças das regras sociais e nomodo comoo indivíduo as percebiam, modificando comportamento e sentimentos.22 A teoria racial evolucionista na qual esse teórico e embaixador francês afirmava que cada raça separadamente possuíasuas qualidades, mas que as misturas entre elas as enfraqueciam e estavam fadadas ao desaparecimento enquanto povo.Opavor da elite brasileira conduziu a umapolítica de incorporaçãodepopulações brancas para elevar opadrãopopulacionalbrasileiro, embranquecendo-o. Assim, havia uma política e, ainda há, uma ideologia do embranquecimento.

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seção. No Norte de Minas, os principais pro-cessos civilizatórios que constituíram a na-ção brasileira se articularam23 . Inicialmente,indígenas, africanos e seus descendentes, ca-racterizados por uma organização social ba-seada na reciprocidade e solidariedade e naconstituição de uma territorialidade baseadaem relações de parentesco e compadrio, quejá se encontravam articulados entre si. Emseguida, os paulistas, com seu caráterexpropriador e nômade, que, ao se fixarem nomédio São Francisco, encontraram-se combaianos e pernambucanos, com seu carátersedentário e patriarcal. Das articulações e ali-anças conjuntas deram formação à elite regi-onal inicial, principalmente. Essas três cor-rentes civilizatórias consolidaram uma socie-dade específica com cultura própria e umaidentidade singular que fazem os norte-minei-ros �uma espécie diferente de gente�, únicano Planeta, reconhecida a partir do seu sota-que, do seu comportamento e sentimentos,bem como pela pertença a essa região.

Mais de 150 anos depois chegam os mineiros com seu caráter cartorialista, ou

seja, estruturador do Estado, assumindo omando político de cada um dos arraiais trans-formados em vilas e se fazendo a elite de cadauma dessas povoações e da região como umtodo. Ao final do século XIX, chegam os pa-dres belgas para civilizar as sociedades locaise os imigrantes italianos para embranquecera população regional. E, finalmente, osdesenvolvimentistas, que ao se articularemcom os norte-mineiros já civilizados pelospremonstrateneses, processam o desenvolvi-mento regional.

A articulação e o imbricamento dessas váriascorrentes civilizadoras conferem ao Norte de

Minas a condição de síntese da nacionalida-de brasileira. Essa é a maior jóia regional nocontexto nacional, que lhe confere um podersimbólico ainda não usufruído pelas elitesregionais.

As populações tradicionais e as elites regionais: con-jugação de lógicas diferenciadas

Nesta seção, gostaria de retomar uma ques-tão, para ampliá-la, que tratei em minha lei-tura sobre a cultura sertaneja (Costa, 1997) eque posteriormente vi referendada no grupode estudos formado na Universidade deBrasília devotado ao entendimento do signosertão e que diz respeito à coexistência delógicas distintas de produção de espaços so-ciais e de territorialidades diversas. Nesse gru-po de estudos contestou-se o imaginário quefazia dos sertões lugares de brancos. No seuestudo da dominação branca e da subordina-ção dos não-brancos vigentes no sertão, Cos-ta Silva informa que, além da própria lógicada expansão colonial, ocorria a produção deum espaço social branco nessa região mental.No �interior dessa lógica, o território e o es-paço social do �outro�, da alteridade radicaldo branco, eram considerados virtualmenteadstritos à etnia superior, eramembranquecidos, eram etnicizados� (1998: 3).O autor afirma ainda que, �para resistir a estalógica de agressão e violência, os �outros�, osíndios e os negros, opuseram uma lógica deresistência semelhante, mas oposta, constru-tora de uma territorialidade e de um espaçosocial não-brancos� (id.: 4). Informando, as-sim, os sertões como espaços de não-bran-cos, apesar da lógica territorial branca.

Essa argumentação dos estudiosos do sertãoproporciona-nos interpretar a atualização da

23 Devo a compreensão desse processo a Luiz Tarlei Aragão (2000), que pretendia desenvolver uma teoria doBrasil tendooNorte deMinas como o locus onde os projetos civilizatórios que constituíram a nação brasileira se articulam, dando àregião a condição de síntese de nossa nacionalidade. A ele rendo a minha homenagem, colocando em circulação suainterpretação, já que, tendo falecido, não poderá desenvolvê-la.

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Flor de Pana � Comunidade de Olhos D�água � Montes Claros � MG

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Fabrico de rapadura � Comunidade Debaixo da Lapa �Minas Novas �MG

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Barriguda � Barragem de Setúbal � Chapada do Norte �MG

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sobreposição de lógicas produtoras de espaçossociais e de territorialidades na região norte-mineira. No período colonial, a expansãoverificada, apesar da produção doembranquecimento e da etnicização do sertão,não conseguiu realizá-la plenamente, devido àresistência oposta e semelhante dos outros,principalmente os negros que ocuparam histo-ricamente uma ampla área do território regio-nal, como já informado em seção anterior, ede outras populações tradicionais que se cons-tituiriam como realidades diversificadas no in-terior da sociedade norte-mineira24 . Nos anos1960, no processo de modernização da agri-cultura brasileira, as relações capitalistas deprodução se expandiram por toda a região, asterras se mercantilizaram e as relações de tra-balho assentadas até então em reciprocidade �troca de serviço e de favores � se transforma-ram em assalariamento compagamento emnu-merário. Entretanto, a eficácia da lógica capi-talista de produção de espaço social e territorialnão conseguiu por um termo nas lógicas vivi-das pelas populações tradicionais, apenas tor-nou-se hegemônica, subsumindo a lógica con-trária. Assim, sobrevivem em complemen-taridade e, às vezes, em oposição lógicas cons-trutoras de territorialidades e de espaços soci-ais distintos.

Ao discutir os processos civilizatórios quese interpenetraram e se imbricaram, ao

longo da trajetória histórica regional, carac-terística que possibilita interpretar o Norte deMinas como a síntese da nacionalidade brasi-leira, procurei evidenciar as características decada espécie de sociedade ou de grupamentohumano que fixou-se noNorte deMinas e que

contribuiu para dar à essa sociedade e à suacultura a sua singularidade que a faz única noconjunto das sociedades que compõem a hu-manidade. Gostaria de discutir as populaçõestradicionais que se construíram com culturase identidades especifícas e contrastivas e quecompõem o mosaico identitário regional.

Há aspectos construídos secularmentepela gente miúda vivendo invisível no

interior das sociedades nacionais, que têm sidoconsiderados como cruciais para se compre-ender as populações tradicionais. Para Dieguese Arruda (2001), populações tradicionais sãogrupos culturalmente diferenciados que emsua trajetória histórica construíram e atuali-zam seu modo particular de vida e de relaçãocom a natureza, considerando a cooperaçãosocial entre seus membros, a adaptação a ummeio ecológico específico e um grau variávelde isolamento. Esses mesmos autores apon-tam como populações tradicionais no Brasilos povos indígenas e povos não-indígenas,como quilombolas, extrativistas, ribeirinhos,pescadores artesanais, caiçaras, sitiantes eroceiros25.

As características que esses dois autores con-sideram como definidoras das populações tra-dicionais são uma interdependênciasimbiótica entre a natureza, os ciclos e os re-cursos naturais com os quais constroem seusmodos de vida; um profundo conhecimentoda natureza e de seus ciclos, transmitido oral-mente intragerações e construído a partir deestratégias de uso e de manejo dos recursosnaturais; uma apropriação do espaço consi-derado como território onde a vida é

24 Para maior aprofundamento sobre o quilombo de Brejo dos Crioulos, vide Costa (1999), (2001) e (2005).25 Como membros da academia brasileira, o conhecimento sobre a realidade nacional desses autores está baseado emestudos e pesquisas que se transformam emdissertações demestrado e teses de doutoramento, assim, seu conhecimen-to das populações tradicionais está reduzido àquelas populações que foram estudadas por estudantes em iniciaçãocientífica ou pesquisas de mestrado e doutorado. Como as populações tradicionais norte-mineiras ainda não foramestudadas considerando o arcabouço teórico que permite compreendê-las como tal, apesar do estudo deDonald Pierson(1972), e, principalmente, porque a abordagem da gente miúda vivendo invisível no interior do Pais é historicamentedatada a partir da Constituição de 1988.

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reproduzida social e economicamente; umvínculo ao território desde que o mundus des-sas populações foi constituído nas origens dassuas histórias26 ; um sistema produtivo volta-do para a satisfação das necessidades de cadafamília, em particular, e da comunidade comoum todo, ainda que possa ocorrer uma rela-ção com o mercado com a venda do exceden-te; uma acumulação de capital reduzida; umaorganização social baseada na família e nacomunidade por meio de relações de paren-tesco e compadrio que são atualizadas nasatividades econômicas, sociais e culturais;uma vida cultural intensamente simbólica emitológica, que se expressa em rituais vincu-lados às atividades de caça, pescas eextrativismo; um impacto limitado sobre omeio ambiente devido à tecnologia utilizada,assim como uma divisão técnica e social dotrabalho, reduzida em decorrência do domí-nio sobre todo o processo produtivo; umaausência de conexões com o poder político,por situarem-se à margem da vida política; e,por último, uma auto-identificação ou identi-ficação constrastiva, tendo a cultura comodefinidor das diferenças27.

As populações tradicionais norte-mineirassão reconhecidas pelas pessoas, pois,

com freqüência, como afirma Dayrell, elas sereferem �a otras e a ellas mismas, como siendovazanteiros, barranqueiros, caatingueiros ogeraizeiros� (1998, 70). Esse conhecimentonão é dado apenas para as pessoas do Nortede Minas, já que diversos autores têm infor-mado a existência das populações tradicionaisque aqui existem secularmente. Em seu estu-do sobre o homem no vale de São Francisco,

Pierson (1972) informa sobre os veredeiros eos geralistas ou geraizeiros. Mas outras popula-ções, além destas, foram reconhecidas porLadeira (1951 apud Dayrell, 1998). Para esteestudioso da vida regional, há no interior dasregiões do vale do São Francisco pequenosnúcleos de populações com denominaçõesespeciais, conforme a região habitada. Paraele, há os chapadeiros, que vivem nas chapadasregionais, o campineiro, gente que habita ascampinas, os barranqueiros ou vazanteiros, quevivem e produzem nas barrancas ou vazantesdo Rio São Francisco28 .

Fruto do trabalho desenvolvido no Centro deAgricultura Alternativa entre as populaçõesrurais da região da Serra Geral, Carlos Dayrell(1998) informa a existência, também, doscaatingueiros e distingue os barranqueiros dosvazanteiros, porque, assim, são regionalmentereconhecidos. Enquanto os primeiros vivemnas margens sanfranciscanas, os segundos sãogrupos de gente habitando as vazantes dosoutros rios regionais. Em minha pesquisa quefoi base para a minha dissertação de mestrado,já informava a existência dessas populaçõestradicionais e optei por uma delas, oscaatingueiros, por ser um grupo social e cultu-ral vivendo no Norte de Minas que, ainda,não conhecia. Ao definir a comunidade deBrejo dos Crioulos, na divisa dos municípiosde São João da Ponte e Varzelândia, para de-senvolver o meu estudo, descobrir ser oscaatingueiros uma população negra que habi-ta o vale do Rio Verde Grande, no interior deuma floresta de caatinga arbórea, desde antesda chegada da bandeira de Mathias Cardosode Almeida que ocupou, povoou o território

26 Woortmann (1995), ao estudar sitiantes nordestinos, afirma que, após migração por algum acontecimento trágico, aspopulações rurais instauram um novo mundus, através do trabalho do homem, que persiste enquanto os seus descen-dentes permanecem vivendo no mesmo sítio onde o construíram.27 Para um maior aprofundamento sobre as questões inerentes às populações tradicionais vide Barreto Filho (2002),Vianna (1996), Cunha e Almeida (2001), Little (2005) e Oliveira (2005).28 Desenvolvomais profundamente uma interpretação sobre as populações tradicionais norte-mineiras, em sua interfacecom o ambiente, em artigo a ser publicado brevemente no livroTantos Cerrados, pela editora da Universidade Federal deGoiás.

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regional e consolidou, inicialmente, a socie-dade norte-mineira.

Entretanto, os imigrantes de italianos quese fixaram nos sopés da serra do

Espinhaço, na região da Serra Geral, tambémsão reconhecidos pelos geraizeiros da regiãode Rio Pardo de Minas, que comercializamsua produção na feira de Porteirinha, comocaatingueiros. Dado que as populações negrastêm sido reconhecidas, desde que iniciou aaplicação do Artigo 68 dos Atos das Disposi-ções Constitucionais Provisórias fixados naConstituição de 1988, como quilombolas, otermo caatingueiro tem sido utilizado regio-nalmente para distinguir os descendentes dosimigrantes italianos.

Todas essas identidades são construídas apartir do nicho ecológico em que grupos depopulações rurais fundaram os seus mundus econstituíram-se como comunidades. Identida-des são sempre auto-identificações, mas, elasse dão constrastivamente. Somente se sabeque há caatingueiros, por exemplo, porquepessoas assim identificadas se encontram econvivem com pessoas que são identificadaspor elas como geraizeiros que, por sua vez,os identificam como caatingueiros.

Onde se situam essas populações tradicionaisno território norte-mineiro? Os veredeiros, oschapadeiros, os campineiros e os Xakriabálocalizam-se na margem direita do Rio SãoFrancisco. Os geraizeiros e vazanteiros namargem esquerda do mesmo rio, enquanto osquilombolas concentram-se no vale do RioVerde Grande, mas, também, em diversasoutras áreas do território regional. Oscaatingueiros estão nos sopés da serra doEspinhaço, na região da Serra Geral. Osbarranqueiros vivem nas margens do Rio SãoFrancisco.

Cada uma dessas populações tradicionais éidentificada a partir de um aspecto de sua cul-tura, que é transformado em diacrítico que lhesconfere uma diferença em relação às popula-ções que se situam nas circunvizinhanças dosseus territórios.

Os veredeiros, ou gente das veredas, são con-trastados, porque convivem com oscampineiros e os chapadeiros29 . Estas duasúltimas populações reconhecem na agriculturade vereda e na utilização do buriti, palmeiraexistente ao longo dos cursos de água deno-minados veredas, um sem número de usos quelhes permitem usufruir de uma condição devida mais confortável. Alguns estudiosos de-senvolveram pesquisas entre com a gente dasveredas na região da trijunção dos estados deMinas Gerais, Bahia e Goiás, onde as vere-das são mais freqüentes. Para Jacinto (1998),outro aspecto importante, mas que julgo re-corrente com as outras populações tradicio-nais norte-mineiras, é o fato de possuírem umsentimento de localidade e de pertença queoperacionaliza a vida destas pessoas, princi-palmente, em virtude de ser por meio dele quese dá a diferenciação no contexto mais ime-diatamente regional em que se encontram si-tuados.

Por sua vez, Correia (2002) nos informaque a categoria tempo do carrancismo,

operacionalizada como um referente a partirdo qual o tempo presente é lido, por articulardiversos valores, constitui-se uma caracterís-tica dos veredeir os. Para ele, o tempo docarrancismo é uma categoria temporal por meioda qual os membros das comunidades queestudou narram sua história, uma história �quetraz em si uma série de valores do passadoquase não existentes mais nos dias atuais�(2002, 48). Esse tempo é narrado como umaépoca de revoltas, como a da Coluna Prestes

29 Como não há estudos específicos sobre campineiros e chapadeiros (creio serem semelhantes aos geraizeiros), nãodesenvolverei nenhuma leitura sobre essa população tradicional.

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que passou pela região, como a de AntônioDó contra os processos de divisões de terra,nos quais os sertanejos de menores condiçõessociais perdiam suas terras, mas, também,como uma época de festas, como as de San-tos Reis, a de Santo Antônio na Serra dasAraras, em que se vivia festivamente a cole-tividade local e a coletividade micro-regional.Além desses conteúdos, o tempo docarrancismo informa, ainda, o sistema produ-tivo tradicional em que o manejo das vere-das, com o �esgotamento� ou drenagem dosbrejos e veredas, a queimada em tempo certoda seca e a caçada necessária para suplemen-tar a alimentação eram praticados por todos.

No tempo do carrancismo, a terra era livre eapropriável. Para esse mesmo autor, �nemtodas as terras eram de fazendas, e os poucosfazendeiros, ou donos, que existiam, permiti-am que as pessoas morassem nas suas terrasdurante vários anos sem pagar pela área ocu-pada, ou seja, quem tinha terra morava, quemnão tinha morava� (Correia, 2002: 51). Comose pode ver, essa é uma categoria temporalque ultrapassa os limites dos veredeiros, por-que recorrente entre as populações norte-mi-neiras.

E, por fim, em estudo que fiz em uma comunidade veredeira que foi transferida

de seu lugar de origem para um assentamentodevido, à implantação do Parque NacionalGrande Sertão Veredas, os veredeiros são as-sim reconhecidos porque os mesmos têm nasveredas o eixo crucial de suas vidas (Costa,2005 b). O solo da área em que se encontramsituados é muito arenoso e com baixíssimaquantidade dematerial orgânico que fosse pro-pício para o desenvolvimento da agriculturae, por isso mesmo, passaram a utilizar estra-tégias de uso e manejo das veredas paraviabilizar a reprodução da vida de cada famí-lia e da comunidade como um todo. Atual-mente, devido à implantação da UnidadeNacional de Conservação, os representantes

dessa população rural, devido a presença deórgãos ambientalistas fiscalizando o Parquee as populações do seu entorno, estão sendoforçadas a se transformar em chapadeiros.Eles, que sempre foram os guardiões das ve-redas, sofrem ao perceber que o uso daschapadas poderá impactar as veredas que se-cularmente lhes propiciaram a vida.

O signo identitário dos geraizeiros está vinculado àquela formação a que se deno-

mina gerais, ou seja, os planaltos, as encostase os vales das regiões de cerrados, com suasvastidões que dominam as paisagens do biomaCerrados. O aspecto que os diferencia é umaforma singular de apropriação da natureza,regida por um sistema peculiar de representa-ções, códigos e mitos (Dayrell, 1998). Com oplantio de lavouras diversificadas em espéciese variedades, essa população tradicional cons-trói seus sistemas de produção. Para que osmesmo garantam suas reproduções, os Cerra-dos, com seus tabuleiros, espigões e chapadas,fazem parte da estratégia produtiva, fornecen-do, por meio do extrativismo, forragem para ogado, caça, madeira, frutos, folhas, mel e me-dicamentos.

Na percepção dos nativos, esse imenso ge-rais é recortado por, pelo menos, quatro gran-des unidades ecológicas: a chapada, os tabu-leiros, os carrascos e as vazantes.

A lógica daocupaçãodos terrenospelos geraizeirossegue uma estratégia de multi-usos das diferen-tes unidades da paisagem, explorando suaspotencialidades, mas respeitando, também, osseus limites. A apropriação é realizada aprovei-tando-se a fertilidade e a umidade das vazantespara as culturas mais exigentes. Nos tabuleirosconstroem suas moradas, plantam os quintais,criam os pequenos animais e cultivam plantasadaptadas. Das chapadas e dos carrascos provémo complemento fornecido pela diversidade de fru-tíferas nativas, óleos, fibras, forragempara o gado,lenha, madeira para diversos fins. A interação écomplexa e a manutenção da vitalidade dosecossistemas é fundamental para a sobrevivênciadas famílias (Dayrell e outros, 2005: 64).

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Assim, o aspecto da vida dessa populaçãovivendo nos gerais que é transformado

em diacrítico que a diferencia diante de outrosgrupos sociais que a circundam é a lógica daocupação do terreno e o manejo nele desen-volvido, além de uma comunalidade na apro-priação do território de cada comunidade.

Os caatingueiros possuem como aspecto queos diferenciam dos geraizeiros e dosquilombolas da Jahyba, principalmente, o fatode estarem vinculados à Caatinga. Como jádisse, os caatingueiros são descendentes demigrantes portugueses, desde o início do po-voamento regional, e de italianos, que a par-tir de fins do século XIX deram constituiçãoa uma cultura distinta das existentes até en-tão no território norte-mineiro. Ela se consti-tui de agricultores familiares, tipo campone-ses, conforme informa D�Angelis Filho(2005), possuindo uma racionalidade econô-mica que permanentemente os vincula aomercado. Considerando que na conceituaçãodo camponês sempre se deve considerar suasubordinação30 , desde a expansão das relaçõescapitalista noNorte deMinas a partir dos anos1970, os caatingueiros se aliaram aos progra-mas de governo coordenados pela Emater, quepassou a vincular seu sistema produtivo a fa-tores externos � dinheiro para investimento ecusteio, máquinas, implementos agrícolas eagrotóxicos, além de assistência técnica �,advindos do sistema financeiro e do sistemaindustrial, e à assistência técnica de organis-mos do Estado, para realizar sua reproduçãofísica e social.

A mesma é reconhecida como agriculturacaatingueira, que, além da produção de carnee alimentos básicos, incorporou o cultivo doalgodão em seus sistemas diversificados de

produção de alimentos. Tradicionalmente cul-tivando para auto-abastecimento familiar, oscaatingueiros incorporaram a cultura algodo-eira, com seu caráter nitidamente comercial,do final do século XIX até meados do séculoXX, sendo que esta atividade algodoeira per-maneceu circunscrita em municípios do Nor-te de Minas, associada aos sistemas produti-vos diversificados dos agricultores da Caatin-ga. Em 1925, o algodão era a cultura maisexportada da região.

A partir de meados da década de 1950, ocor-reu uma intensificação da produção do algo-dão herbáceo no Norte de Minas, com a in-trodução de novas variedades melhoradas, queofereciam a vantagem de uma maior produti-vidade por hectare, devido à introdução denovas tecnologias, como o controle das pra-gas através do uso de agrotóxicos e a traçãomotorizada, sendo que a monocultura do al-godão começou a substituir os sistemas di-versificados de produção de alimentos e fi-bras, associada à criação extensiva de gadobovino. Os recursos subsidiados facilitarama difusão do pacote tecnológico vinculado àmodernização conservadora da agriculturabrasileira.

Com a derrocada da agricultura algodoeira, apenas as comunidades caatingueiras

que resistiram ao avanço da racionalidade eco-nômica capitalista e mantiveram seus siste-mas tradicionais diversificados, destinados àprodução de fibras, alimentos e criação de ani-mais, associados com o aproveitamento ali-mentar e medicinal da flora nativa, puderamcontinuar dedicados à agricultura. Aquelesque se modernizaram foram forçados a mi-grar e empobreceram. Uma das poucas alter-nativas que restou aos agricultores familiares,

30 Pereira deQueiroz (1976) eWoortman (1987) discutem, numa perspectiva antropológica, a possibilidade da utilizaçãodesse conceito para a compreensão de comunidades rústicas e de agricultores no Brasil. Transformada em categoriapolítica, ela dominou a cena brasileira e penetrou no campo acadêmico, mas tem sido considerada, atualmente, comocategoria para a luta política, por ser incapaz de informar a diversidade de populações tradicionais existentes no campoagrário nacional.

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do tipo camponês, que possuíam uma glebade terra um pouco maior, passou a ser a pe-cuária.

Devido à migração, os caatingueiros articu-lam um novo espaço de comercialização nasperiferias de São Paulo, onde vivem milharesde famílias originárias dos sertões nordestinoe norte-mineiro. As vindas de parentes de SãoPaulo em períodos de férias, nas festas e emcomemorações de suas comunidades de ori-gem, propiciam, no retorno, a ida de uma di-versidade de produtos e preparados culinári-os da tradição cultural dos caatingueiros. Es-tes descobrem, então, através desta �rede deparentagem�, que existe uma grande deman-da pelos produtos culturais de suas regiõesde origem.

A população tradicional de maior incidência no território norte-mineiro, os

quilombolas, emergiu no cenário socialhodierno, devido ao Artigo 68 dos Atos dasDisposições Constitucionais Transitórias daConstituição de 1988, através do TerritórioNegro da Jahyba, conforme Costa (2005 a).O mesmo se constitui por um conjunto degrupos negros localizados em margens de la-goas, ribeirões e rios que formam a bacia doRio Verde Grande. Suas relações, além depercorrerem todo o vale deste rio, eramestabelecidas com povoações ao longo dabacia do Rio São Francisco, notadamente,Brejo do Amparo,Morrinhos eMalhada, e nosaltiplanos com Contendas, São José doGurutuba, Porteirinha e Tremendal.

Diversos grupos de quilombolas se articulam emum movimento de reconhecimento social e dereapropriação de seus territórios ancestrais, masprincipalmente o de Brejo dos Crioulos, nasmargens do Rio Arapuim, divisa dos municípi-os de São João da Ponte e Varzelândia e osGurutubanos, comunidade negra estabelecida

ao longo do Rio Gorutuba, abaixo da cidadede Janaúba. Essas duas comunidades são re-presentativas de outras dezenas que vivem nasplanícies sanfranciscanas. Comunidades quedialogam com os vazanteiros do São Francis-co e com os remanescentes dos Xakriabá, quevivem no município de São João das Missões.São comunidades que mantém aspectos signi-ficativos de sua cultura, de sua reprodução so-cial, enraizados na diversidade ecossistêmicapresente nas planícies sanfranciscanas e quehoje, em efervescência social, se apresentamcomo grupos sociais, oportunizando a possi-bilidade da construção de um viver pautadoem suas características socioculturais e econô-micas específicas.

Diversos estudos têm sido feitos sobre essapopulação negra vivendo no imenso territó-rio negro da Jahyba, como as comunidadesde Brejo dos Crioulos, situada na divisa dosmunicípios de São João da Ponte e Varzelândiae formada pelos grupos locais Arapuim,Araruba, Cabaceiros, Caxambu, Conrado eFurado Seco31 , e, o quilombo do Gurutuba, for-mado por diversos grupos locais que formama comunidade rural negras dos Gurutubanos,conforme D�Angelis Filho e outros (2003).Nesses grupos locais foram mantidas inten-sas relações com um território mais amplo aoseu redor, estruturado em vínculos de paren-tesco e estratégias de reprodução social e eco-nômica, compartilhando a ocupação e domí-nio dos lugares.

A partir dos anos 1960, há umahierarquização dessas comunidades em

vista de sua proximidade ou afastamento daracionalidade urbana, que se torna hegemônicaem todo o Norte de Minas, conforme análisede Brito e outros (2003), estudando a comu-nidade negra de Maravilha. Com a chegadados �brancos� e do �desenvolvimento� pro-movido pelos gestores governamentais, dos

31 Vide Costa (1999), (2001) e (2005 a) sobre esse quilombo norte-mineiro.

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anos 1970 em diante, a paisagem foi subita-mente alterada, impactando os recursos na-turais e comprometendo os sistemasagroalimentares das comunidades negras doterritório da Jahyba.

O povo Xakriabá, conforme Oliveira (2003),é formado por uma população de 6.442 indi-víduos, habitando território demarcado nosertão sanfranciscano, numa região em queocorre a transição entre o Cerrado e a Catin-ga, com espécies nativas dos dois domínios.Essa população tradicional norte-mineira che-gou à região no início do século XVIII e, emacordo feito com Januário Cardoso deAlmeida, estacionou em uma área onde foiposteriormente aldeada, a Aldeia de São JoãoBatista das Missões. Posteriormente, passoua constituir mão-de-obra, às vezes escraviza-da, no processo de formação das fazendas degado abertas às margens do Rio São Francis-co. O aldeamento de São João das Missões,por ter sido abandonado desde o final do sé-culo XVIII pelos padres e administradores, epelo fato de os índios ali permanecerem emprocesso de miscigenação com as populaçõesbranca, pobre, negra e, sobretudo, retirantesnordestinos que fugiam das secas, passou aser reconhecido como terra de caboclos e foi,por longo tempo, ocupado por índios, possei-ros e retirantes estabelecidos, em regime deuso condominial das áreas de cultivo (San-tos, 1997). A miscigenação dos indígenas noBrasil, conforme pode ser visto em DarcyRibeiro (1986) no seu estudo sobre os índiose a civilização, foi fruto de políticas governa-mentais visando incorporá-los como brasilei-ros e esvaziá-los de suas etnicidades, trans-formando-os em índios genéricos.

Omodo de uso Xakriabá sobre seu território se estabeleceu nos moldes da eco-

nomia regional, sertaneja e cabocla, e suas ati-vidades produtivas constituem-se basicamen-te da plantação de roças, da criação de ani-mais e da coleta extrativista destinadas ao

auto-consumo. Dessas atividades vinha pra-ticamente tudo de que precisavam, com al-guns poucos produtos sendo adquiridos nocomércio regional.

Como uma sociedade indígena, legitima-da pelo estado brasileiro, os Xakriabá

têm em sua etnicidade o diacrítico que os fa-zem diversos dos povos mestiços que os cir-cundam e que podem ser caracterizadas comochapadeiros, veredeiros ou campineiros.

Nas ilhas e barrancas do Rio São Francisco enas margens de outros grandes rios que exis-tem no Norte de Minas existem os vazanteiros.Estudando localidades nas áreas inundáveisdas margens e ilhas sanfranciscanas, Luz deOliveira (2005) afirma que os vazanteiros secaracterizam por um modo de vida específi-co, construído a partir do manejo dosecossistemas sanfranciscanos, combinando,nos diversos ambientes que constituem o seuterritório, atividades de agricultura de vazan-te e sequeiro com a pesca, a criação animal eo extrativismo, numa perspectivatransumante. O ciclo natural do rio � seca,enchente, cheia e vazante � sempre possibili-tou a essas populações o acesso a terras peri-odicamente fertilizadas pela matéria orgâni-ca ou �lameiro� depositado em longas exten-sões das suas margens e nas ilhas, além deum farto suprimento de peixes que se repro-duziam nas lagoas marginais. Nas grandescheias do São Francisco, segundo relatos deviajantes do século XIX, apresentados porPierson (1972), as áreas planas das margens,principalmente no trecho médio da bacia, fi-cavam cobertas por camadas d�água de ummetro e meio a três metros e a inundação atin-gia até dez quilômetros de largura, a partir dacalha do rio.

A formação cultural dos vazanteiros, além delegados da cultura indígena e da cultura ne-gra, recebe influências da vida social ribeiri-nha de todo o Rio São Francisco, particular-

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mente no período de intensa mobilidade pro-piciada pela navegação rumo ao Nordestebrasileiro. Segundo Neves (1998, citado porLuz Oliveira, 2005), não se pode perder devista a existência de componentes culturaiscomuns ao homem do médio São Francisco eaos nordestinos de um modo geral. Esta au-tora cita a linguagem e a literatura popular,os hábitos alimentares e medicinais, comolegados das migrações para a integração cul-tural dessa população.

Os estudos de Luz Oliveira (2005) sobreos vazanteiros apontam a diversidade

de ambientes no complexo de uma paisagemque se mostra aparentemente monótona euniforme aos nossos olhos, e que, sob o olhardos vazanteiros, toma significados de grandedensidade, onde se faz complexas associaçõesentre gênese, qualidade e restrições de uso nasdiferentes unidades da paisagem. A energiade deslocamento das águas durante as enchen-tes vai moldando e dando fisionomia a estapaisagem, onde os solos são mais frescos queos da �terra-firme�. A sobrevivência dosvazanteiros é garantida por múltiplas ativida-des, formas de uso e apropriação dos diver-sos ambientes (Luz de Oliveira, 2000).

Essa autora identifica em seu estudo três gran-des unidades da paisagem manejadas pelosvazanteiros � o complexo �terra-firme� e ocomplexo ilha, interligados pela terceira uni-dade, o complexo rio, cujo ciclo define as di-nâmicas ecológicas e, por conseguinte, as es-tratégias de manejo de cada uma delas.

O sistema de trabalho dos vazanteiros e suascondições financeiras definem o local de mo-radia da família, que pode ser na ilha, na mar-gem do rio ou nas cidades ribeirinhas. A vidadas famílias é sempre marcada pela mobilida-de do local de trabalho emoradia, que se adap-ta aos ciclos do rio � seca, enchente, cheia evazante. As áreas preferenciais para construircasas são na beira-rio ou na ilha. É aí que osvazanteiros estabelecem moradias e constro-

em os sistemas de quintais ao redor da casa,com o plantio de frutíferas e a criação de pe-quenos animais. Estes são criados em peque-nos cercados ou amarrados para não causarprejuízo nas lavouras, nem perturbar os vizi-nhos. Para além dos quintais, são feitos osroçados. Alguns elementos arbóreos, remanes-centes da vegetação nativa, associados apolicultivos, plantados em pequenas clarei-ras, recortam e quebram a monotonia da pai-sagem, que se apresenta talhada apenas pelaságuas do rio. Essas formações denunciam,para quem �espia de fora�, que a toponímia eflorística do rio não são moldadas apenas pe-los ciclos das águas, mas igualmente pelasmãos dos vazanteiros, que dele fazem parte.

Em períodos de grandes enchentes, as ca-sas são abandonadas, quando o rio co-

bre as ilhas, inundando a beira do rio, o bar-ranco e as lagoas criadeiras. É para as Caatin-gas e, em outras situações, para os Cerrados,que os vazanteiros migram para se protegerdos ciclos de enchentes. Levam consigo, quan-do possível, mantimentos e alguns objetos,como colchões, vasilhas e roupas, além dascriações. Pesca-se em toda parte. Com o re-cuo das águas das enchentes, formam-se�alagadiços� e pequenas lagoas em toda abeira-rio. Com o abaixamento do nível da águae a desconexão com a calha do rio, os peixesali depositados viram presa fácil � são forma-dos inúmeros pesqueiros.

O processo recente de ocupação da região porgrandes fazendas, além de restringir o acessodessa população ao território tradicional, põeem risco as lagoas e a reprodução dos peixes.São inúmeros os caso de lagoas que foramdrenadas para plantio do capim �bengo� ecapineiras. A extensão e proporção dos im-pactos é de tal brutalidade que o que se regis-tra é uma redução drástica da oferta de pes-cados em toda a região.

Os circuitos de acesso e comunicação, a ati-vidade da pesca, os ciclos ecológicos e a rela-

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ção com omundomítico configuram uma ter-ceira unidade da paisagem � o complexo rio.A pesca é uma atividade central no sistemade produção e consumo dos vazanteiros, in-dependente do registro como pescadores pro-fissionais e do vínculo com a colônia de pes-cadores. A pesca é realizada no período demarço a novembro e é considerada a ativida-de mais lucrativa entre os vazanteiros. O pes-cado menor é utilizado para o auto-consumoe o maior é comercializado.

A unidade territorial é ampla e tem um lastro mítico para os vazanteiros. Os mitos

integram a cosmografia vazanteira. A nature-za e a sociedade fazem parte de uma totalida-de, na qual agem também seres mitológicos ouos �encantados� do rio. Esse sistema de repre-sentações constitui um referencial para osvazanteiros agirem sobre o seu território, ma-nejando os diversos ambientes que o compõem.

Os sistemas de classificação e uso dos recursosestão presentes no seu modo de vida e são no-ções fundantes que demarcam seu território edefinem as formas diversificadas de apropria-ção do mesmo. Para Luz de Oliveira (2005), ossistemas classificatórios integram o patrimôniocultural dessas populações. Sua argumentaçãobaseia-se em conversas com os vazanteiros,com quem conviveu durante período de coletade dados. Segundo eles, ocorriammúltiplos usose formas de apropriação do ambiente, o quegarantiu uma vida farta até a década de 1960,quando a situação começou a mudar drastica-mente, com restrições cada vezmaiores de aces-so aos recursos. A reprodução agroalimentar dosvazanteiros se apoiava em estratégias sensíveise combinadas de manejo dos três complexos �terra-firme, rio e ilhas. Assim, a restrição nascondições de acesso e de interação com cadaum dos complexos promove o rompimento deuma estrutura ecológica e social, definida pelarelação particular que essa população tradicio-

nal mantém com seu território. É possível afir-mar, então, que esses elementos compõem umcampo no qual natureza e sociedade são repre-sentadas num universo unitário.

Como se pode ver ao longo desta seção, a lógicaque orienta essas populações tradicionais émarcada pela existência de um regime agráriocoletivo, de relações de trabalho que seestruturam pela reciprocidade entre membros deuma mesma coletividade. Se há uma lógica capi-talista embranquecida e etnicizada do território edo espaço social regional hodierno, opõe-se a ela,resistindo com lógica semelhante, um território eum espaço social não-capitalistas e não-brancos,permitindo aos trabalhadores rurais reafirmaremsuas autonomias, ainda que em condições míni-mas e descontínuas, frente à dominação impos-ta. O recurso à migração sazonal para fora dapropriedade ou posse, como mão-de-obra paraempresas agropecuárias, propicia a atualização dopadrão produtivo familiar, como forma de resis-tência ao sistema produtivo vigente hegemônico,assim como realizaram seus antepassados.

A lógica desenvolvimentista emergiu nocenário regional, incipientemente, nos

anos 1940, com a criação das sociedades ru-rais em algumas cidades norte-mineiras, masaprofundou-se a partir dos anos 1970, com aimplantação da modernização da agricultura.O governo federal, principal interventor naregião, com seus financiamentos subsidiadose seus incentivos fiscais, não levou em contaas populações que aí viviam secularmente,privilegiando as oligarquias tradicionais e ossetores industriais e agroindustriais da socie-dade. As áreas de terras devolutas, ou seja,terras de ninguém, mas de apropriação cole-tiva pelas populações tradicionais, foram con-sideradas pelos governos federal e estadualcomo terras �inteiramente desocupadas einaproveitadas�32 , situadas no domínio doEstado. Nessas terras de ocupação tradicio-

32 Conforme RURALMINAS, s.d. Documento II - Histórico e resumo dos contratos sobre distritos florestais, 7 p.

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Subida no pau de sebo � Festa do Rosário dos Homens Pretos de Minas Novas � Minas Novas � MG

Elisa Cotta

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nal, principalmente dos geraizeiros, ergueu-se uma floresta exótica de eucalipto e pinuspara subsidiar o pólo siderúrgico mineiro e amaior planta de celulose do mundo. Essa po-lítica estava afinada com o pensamento dageopolítica dos militares no período da dita-dura, onde, em nome da segurança nacional,propugnava-se a ocupação dos espaços con-siderados �vazios econômicos�.

O que se viveu a partir desse período foia constituição de uma nova paisagem,

que afetou os pilares de sustentação da agri-cultura familiar tradicional, construídos emséculos de convivência com os ecossistemase com os seus limites agroambientais. Acen-tuaram-se os desníveis socioeconômicos en-tre as camadas sociais norte-mineiras e, poroutro lado, os recursos naturais �biodiversidade, solos e água � entraram emum rápido processo de deterioração.

A história das territorialidades dessas popula-ções tradicionais traz em si experiências de lutae organização da sociedade civil para a conser-vação da natureza e pelo seu uso de forma sus-tentável. As populações tradicionais, de umaforma geral, têm necessidade de incorporar téc-nicas que causem menos impactos nos cultivos� agora mais intensivos devido à restrição dasterras e da oferta de água, além da perda dabiodiversidade. A convivência estreita entrehomem e natureza nessas áreas tem promovidoa percepção de que as populações tradicionaissejam �guardadoras� da biodiversidade.

O lugar das populações tradicionais tem sidoo lugar da biodiversidade no Norte de Minas,por necessidade e estratégia de sobrevivên-cia, tendo como princípio estruturante a di-versificação para as suas reproduções física esocial. A resistência, baseada sempre na ne-

gociação política, tem propiciado o seu reco-nhecimento como preservadores fundamen-tais da biodiversidade dos Cerrados, Caatin-ga, Mata Seca e Mata Atlântica e da culturatradicional regional. Essas comunidades cons-truíram o seu saber tradicional e a cultura ser-taneja como aspecto político de suas identi-dades, a partir das quais enunciam sua con-tribuição para a manutenção do equilíbrioecológico brasileiro, requerido pelas socieda-des nacional e internacional.

Para dar abertura à seção final, gostaria deafirmar que a sociedade norte-mineira é

mais amplamente compreendida se se leva emconsideração o fato de estar situada no terri-tório sertanejo. Como parte do sertão, essa so-ciedade regional pode ser entendida, também,a partir dos caracteres que fazem da socieda-de sertaneja um caso especificamente brasi-leiro, uma sociedade em situação de frontei-ras. Compreender o sertão como a margemdo Brasil é possível ao se levar em considera-ção o fato de que esse espaço social ocupalugar significativo para a construção da na-ção brasileira. A nacionalidade brasileira per-de sentido se se retira dela o sertão, já que omesmo é um elemento significativo que lhedá sentido. O sertão tem uma historicidadeque só é reconhecível se o entendem comoparte de um constructo discursivo que cons-trói a nação brasileira. Entretanto, esse espa-ço é construído como um vazio de cultura,civilização e sociedade, mesmo sabendo queele é o lugar do encontro, porque é assim queos construtores do discurso sobre a nação ofazem. O estado brasileiro jamais pretendeuconstituir-se como imperialista para além desuas fronteiras. Ele o fez internamente, cons-tituindo o sertão como a fronteira sobre a quala nação deveria expandir-se33.

33 Devo essa compreensão a Rita Laura Segatto, antropóloga daUniversidade de Brasília, que em uma seção de disciplinaque cursei sob sua orientação discutiu com alguns alunos a temática do sertão. A agradeço publicamente as possibilida-des de entender o Brasil ao discutir a Argentina e os Estados Unidos comparativamente.

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O projeto civilizatório nacional, por excelência, consiste em culturalizar e

homogeneizar a realidade nacional como umtodo. Os grandes planos de desenvolvimentoimplementados no país têm sua fonte de ins-piração nesse projeto de civilização brasilei-ra. Sendo o sertão vazio, os construtores dosplanos que modernizaram o Brasil não preci-savam pensar nas populações, nos sistemasprodutivos, nas culturas, nas etnias e nasidentidades específicas, que fazem a realida-de brasileira multicultural e multiétnica, por-que a nação é pensada como una, mesmo emse reconhecendo as diversidades regionais.Mas essa unicidade é construída e afirmadapelas elites e não pela gente miúda de carne eosso desse país de mil e tantas misérias, comoafirmado na obra roseana que inventa o Bra-sil. Entretanto, diante do fracasso do projetoiluminista de modernização do mundo, ape-sar da globalização da economia, cada vezmais, o caráter local se insere na totalidade edá suas caras. Em nosso país, fruto da pre-sença cidadã da população brasileira duranteo processo constituinte, a partir de 1988, asociedade brasileira deixa de ser vista comouna e é definida como diversa, em todos osaspectos da vida social e cultural da nação.Desde então, vem se formando um cenáriopropício, nacional e internacionalmente, paraque as diversidades culturais e étnicas, de sis-temas produtivos não-capitalistas se tornemvisíveis e, com a emergência por politizaremsuas identidades, constituam-se sujeitos dedireito, imprimindo ao retrato do Brasil a suaverdadeira face e reafirmando-se como sujei-tos coletivos atuantes na vida nacional.

No argumento a seguir, afirmo que o Nortede Minas se constitui uma sociedade em fron-teira, como parte do sertão, mas tambémcomo margem da cultura, identidade e socie-

dade, mineira por um lado e baiana por outro.

Sociedade em fronteira, lugar de encontros, trânsitoe liberdade

Culturalmente, a sociedade norte-mineirase caracteriza e é reconhecida nacional e

internacionalmente como sertaneja, em decor-rência do escritor JoãoGuimarães Rosa (1986)ter localizado no território regional o desen-volvimento da história contada no romanceGrande Sertão: Veredas. Mas sua condição departe constitutiva do sertão não é uma cons-trução Roseana. Ela foi cunhada ao longo dahistória e da percepção da paisagem nacio-nal, cindida entre litoral e sertão34.

Os estudos sobre os campos semânticos des-sas duas paisagens mentais da nossa naciona-lidade informam uma antinomia entre as mes-mas. Por um lado, o litoral tem como signifi-cação o fato de ser considerado cultura, civi-lização, presença do Estado e o sertão com asignificação de natureza, barbárie, não-estruturação do Estado. Pensada como umpar de oposição, a paisagem nacional trazsubjacente a ela o projeto das elites de trans-formar o interior do país sob o escopo do li-toral. A negatividade do sertão ante apositividade do litoral conduzia os sertane-jos, até meados do século XX, a deslizarem oespaço sertanejo sempre mais à frente e nun-ca no lugar em que se estava procurando reti-rar de si o estigma de ser sertanejo.

Essa condição inferior começa a serdesconstruída com Euclides da Cunha(2000) em sua obra Os Sertões quando afir-ma que o cerne da nação se encontra distan-ciado do litoral. A redefinição dessa paisa-gem interna processa-se, ainda, como a obraroseana, principalmente, Grande Sertão: Ve-redas. Nesse sentido, há uma leitura da obra,

34 Neste sentido, veja a discussão de Vidal e Souza (1997) sobre a geografia pátria. A autora baseia sua interpretação emautores do Pensamento Social Brasileiro e em relatos dos viajantes europeus que no século XIX percorreram o país.

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informando que o seu autor tinha como ob-jetivo construir uma leitura do Brasil a par-tir do sertão, que fosse distinta da leituraeuclidiana, que situou sua narrativa no ser-tão baiano, aquele da geografia da Guerra deCanudos. Nessa perspectiva, o autor procu-rou construir uma visão histórica e não pi-toresca da sociedade sertaneja como cons-trutora de uma brasilidade específica. ParaBolle (2000), Guimarães Rosa se propõe aoferecer uma visão da sociedade sertanejaem toda a sua escala social. Ele quis �apre-sentar uma multidão viva, diferenciada emsubgrupos� (idem: 221). O próprio autor dasaga de Riobaldo colocou na voz do narradorda história que a sociedade sertaneja se ca-racteriza como sendo

um país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente � dá susto de saber� e nenhuma se sossega: todos nascendo, cres-cendo, se casando, querendo colocação de empre-go, comida, saúde, riqueza, ser importante, que-rendo chuva e negócios bons... (1986: 8).

Diversos pesquisadores da área das ciências sociais, em fins dos anos 1980, se

debruçaram sobre o Pensamento Social Bra-sileiro para compreender o sertão e, em finsdos anos 1990, desenvolveram pesquisas emcomunidades sertanejas, procurando compre-ender as suas identidades, os seus modos devida e suas formas de organizações sociais.Como resultado desses esforços, evidenciou-se que o sertão, por um lado, é a interface dolitoral e, por outro lado, constitui-se comouma sociedade em fronteira, um lugar de en-contros, trânsito e liberdade.

Nos estudos feitos no Norte de Minas, comoparte das pesquisas sobre o sertão, verificou-se que a identidade norte-mineira é específi-ca, construída nas fronteiras da identidademineira e baiana e, por isso mesmo, engloba-da na mineiridade. Como tal, a identidade

norte-mineira ocupa um lugar ao mesmo tem-po fora e dentro da identidade e da ideologiaque os mineiros construíram para si mesmos.Essa ambigüidade tem sido desconfortantepara os norte-mineiros que, mesmo diante danegatividade contrastiva que os mineiros co-locam em sua identidade regional, reafirmamseu orgulho de pertencimento à cultura e àidentidade norte-mineira35 .

Outra característica vinculada às sociedadesem fronteiras, e o Norte de Minas como umexemplo, consiste no fato das estruturas cul-tural e social estarem abertas para o além,ou para o outro. Essa perspectiva foi perce-bida por mim em Matias Cardoso ao encon-trar o lugar do estrangeiro como umchegante, ou seja, alguém que é sempre bemaceito e incorporado, preferencialmente, pormeio de casamento ou outro tipo de aliança,e como forasteiro, ou seja, alguém que ape-nas passa e não se fixa nem na localidade,nem na região. Em seu estudo sociológicosobre as raízes do Brasil, Holanda (1997)afirma que, como forasteiro, o estrangeiro éalguém fora da rede de relações de uma so-ciedade, vivendo uma situação de descon-forto e sujeito à violência. No Norte de Mi-nas, como se evidenciou em minhas pesqui-sas, o forasteiro é sempre bem recebido,mesmo que não seja incorporado na rede derelações sociais.

Essa abertura para o além ou para o outroé o aspecto mais evidenciado do modo

de ser matiense e que, argumento, pode servisto como uma característica norte-mineirae das sociedades em fronteira. A abertura parao outro, ou chegante, e para a valorização dadiversidade/inovação, para a mudança sem-pre em processo, é aceita como estruturanteda vida local. E que creio seja o aspecto maisimportante para se entender o ethos e o eidos

35 Para maior aprofundamento sobre esta questão, vide a minha tese de doutoramento, Costa (2003).

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das localidades e dessa região36 . As transfor-mações que vão ocorrendo em sua trajetóriahistórica são vistas como um ganho que pos-sibilita, ao sujeito regional e à sociedade nor-te-mineira irem se constituindo, como o serdiverso que são.

O que levou o norte-mineiro, historicamente a ver no outro, pessoa ou ação,

alguém ou algo capaz de inovar/mudar a vidacontemporânea, alçando-o para um outro pa-tamar de vida? Compreende-se que todas astransformações que ocorreram na trajetóriahistórica das localidades e da região foramdecorrentes da ação de homens e instituiçõesque, vindas de fora, possibilitaram a chegadade elementos de mudança nas condições devida. Mas essa abertura para o outro não querdizer necessariamente a negação irrestrita dascaracterísticas que fazem o matiense, em par-ticular, e o baianeiro, em geral37, um ser, cujacultura privilegia o encontro, característico desociedades vivendo situações de fronteira,como afirmado por Bhabha (1998). Em seulivro Um Caso Antes dos Noventa, AntônioTeixeira permite essa compreensão ao cote-jar o mineiro da região do ouro com o norte-mineiro. Ele diz que

estaMinas acidentada demontanhas escarpadas evales férteis e profundos, de ínvios caminhos,estaMinas capixaba, de homens soturnos, fecha-dos, silenciosos, é diferente da nossaMinas baianade homens palradores, comunicativos.Minas daschapadas estéreis a perder de vista, amplos hori-zontes, onde o homem corre e o pensamentovoa (1975: 85).

A noção de abertura para o além ou para ooutro remete-nos para situações de encontrosentre indivíduos, entre culturas e tempo-ralidades diferenciadas que se mesclam umasnas outras, seja num processo de absorção deelementos que são reelaborados, seja numprocesso de choque entre paradigmas sociaisdiferenciados. Mas esse privilégio do encon-tro com o outro, pessoa ou ação, não apagaaqueles aspectos estruturantes do ethos e eidoslocal. Como um habitus, noção primordial naconcepção de Pierre Bourdieu (1982), nacosmovisão norte-mineira, a abertura para ooutro/valorização da diversidade não só es-trutura o modo de ser nessa sociedade, quese dissemina para o corpo social e reflete nomodo de agir de cada indivíduo aí vivente. Aabertura para o outro é também estruturanteda cosmovisão, permanentemente mescladapor camadas de culturas que se encontram eque amalgamam o modo de vida e acosmovisão regional, num processo históricode hibridação.

Sendo o sujeito em fronteira um ser híbri-do, por estar situado em um terceiro espa-ço, como discutido por Bhabha (1998), o quelhe é recorrente, é o trânsito incessante entreuma e outra margem de duas ou mais socie-dades/culturas que se tocam, criando entreelas uma outra realidade que dissolve qual-quer elemento para os que aí vivem. Cadamargem com uma cosmovisão, uma cultura euma identidade distinta da outra, ao ser tocadapelos indivíduos que as experienciam, propi-cia mesclar as dimensões da vida cultural e

36 Em sua conceituação de cultura,Geertz (1989, 103-104) afirma para a compreensão domodode vida de umgrupamentohumano a eficácia de se trabalhar com os conceitos de ethos e eidos. Para esse autor, o ethos de um povo constitui-se comosendo o tom, o caráter, a qualidade de vida, mas, também, seu estilo e disposições morais e estéticas, enquanto o eidos,ou sua visão demundo como sendo o quadro que fazem do que são as coisas na sua simples atualidade, suas idéias maisabrangentes sobre a ordem.37 Na contrastividade dessa denominação regional pejorativa, como discutirei no último capítulo, os mineiros permitemao norte-mineiro, pela discriminação e estigmatização, ver-se distinto e oposto na identidademineira, o que lhe propiciasubjetivações construtoras de consciência identitária diferenciada. Creio ser a denominação �baianeira�mais pertinenteparamarcar a inclusão e a exclusão vivenciadas.

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social, gerando um ethos e eidos específico, umaidentidade misturada, um lugar não definido,pois aberto, receptível a muita coisa, ou seja,um entre-lugar. Pode-se perceber aí quase a ne-gação da afirmação de identidade, pois o su-jeito que vive em processos de subjetivaçãoencontra-se, constantemente, recompondo suaidentidade. Um modo de vida e umacosmovisão, assim construídos, são propíciosa que o sujeito vivendo em fronteira se veja eseja visto como um ser híbrido, sempre emcontato com o que lhe é diferente de uma eoutra margem social ou cultural. Esse terceiroespaço é estruturante da abertura para o outro,para o que vem de um e outro lugar e até mes-mo de outros lugares, mas também permite acontrastividade identitária, pois, não sendo fixa,é algo em permanente movimento.

Há, incessantemente, um absorver de inovações, o que não oblitera o passado,

mas que lança as expectativas sociais e indi-viduais para o futuro, para a realização dodesejo coletivo de sintonia com o mundo. Arealização da idade do ouro no futuro é resul-tante da atuação conjunta do nativo norte-mineiro e do chegante. Creio poder afirmarque essa interpretação foi construída juntocom os matienses, que vêem a idade do ourocomo um acontecimento futuro, que vejopossível ser considerada uma característicaregional. Como um acontecimento futuro,encontra-se uma concepção de uma visãomessiânica do tempo.

Em Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro (1995), aodiscutir o Brasil sertanejo, afirma que o mitodo sebastianismo, conhecido por ele em suainfância norte-mineira, é estruturante de umasociedade messiânica que acredita no retor-no de um tempo de glórias e de riquezas.Amparado por essa compreensão é plausívelinterpretar a concepção de tempo em que omesmo se tensiona para o futuro. Não estoudizendo que o sebastianismo continua sendoatualizado como um discurso ou uma práti-

ca, mas que, de alguma forma, ele persiste,por meio da noção que se tem do tempo. EmO Mito do Eterno Retorno, Eliade (1988) afir-ma que a história, vista numa concepçãocíclica do tempo, concretiza-se pelo retornodas mesmas formas políticas e de uma ordemdeterminada. Não estou afirmando aqui quena concepção norte-mineira ocorrerá o retor-no das mesmas formas políticas e da ordemvigente no início dos tempos, mas sim a ins-tauração de uma realidade econômica e soci-al, que tem algum vínculo com os tempos pri-mordiais da vida social local, sobretudo portransformá-la em um locus articulador de ou-tras realidades regionais, quase que replican-do os tempos de origem.

Nessa concepção de tempo, conforme in-terpreto, vejo, ainda, a ocorrência de

duas vertentes distintas de compreensão des-sa categoria de entendimento. Para PaulRicoeur (1979), os filósofos gregos interpre-taram o tempo como vinculado ao mythos e aologos. Sendo que a primeira concepção se apóiaem uma ordem da natureza, por sua visãocosmológica, enquanto a segunda, por serconcebida no plano ético-político, é funda-mentada pela ordem humana, que lhe propi-cia ser algo em movimento. Subjacentes a es-sas duas concepções, temos as noções de tem-po linear, vetorialmente tendido para a suairreversibilidade, e tempo cíclico, aqui a si-multaneidade temporal situa os fenômenosem um mesmo plano. Inicialmente, o tempoé apreendido pela consciência como simul-taneidade de temporalidades e de planos,onde os mitos e os heróis civilizadores atuali-zam-se, por meio de rituais. Posteriormente,com o desenvolvimento da filosofia, a noçãode tempo, retirada da ordem da natureza einserida na ordem humana, passa a ser elabo-rada como sucessão de acontecimentosvetorialmente tendidos para a suairreversibilidade. Daí derivaria a noção cristãdo tempo � vivido como processoescatológico em que Deus, em sua eternida-

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de, cria o tempo terrestre que tem princípio,meio (a encarnação do logos no mundo huma-no) e fim � e a sua imagem científica, consi-derada como duração pura, segmentada emigual tamanho e valor equivalente. A perspec-tiva escatológica do tempo não é exclusivado cristianismo, pois outras cosmovisões,como a judaica, compreendem a vinda de al-guém a instaurar o paraíso, que perdido nopassado será encontrado no futuro. EmMatias Cardoso, assim como no Norte deMinas, o tempo é vivido e pensado como otempo messiânico (linear e tendido para ofuturo), em cuja trajetória a cidade e a regiãoalcançarão sua idade do ouro.

Em resumo, nesta seção procurei discutir asociedade norte-mineira como uma soci-

edade em situação de fronteira estruturante e

estruturada a partir de alguns aspectos cruciaisque propiciam a sua construção nesta perspec-tiva. Como disse, a abertura para o além oupara o outro, organizando as relações sociais ea incorporação do estrangeiro, considerandoum chegante, na rede de relações sociais decada localidade e da região como um todo. Aarticulação da ação do nativo e do cheganteproduz e produzirá transformações e mudan-ças na vida social que, no futuro, propiciará àregião sua entrada em sua idade do ouro. Mas,também, procurei evidenciar a sociedade e acultura regional como um locus de encontro deculturas, de gentes, de coisas, como um espa-ço de trânsito, fazendo o sujeito norte-mineiroum ser híbrido, por situar-se em um terceiroespaço, em um entre-lugar distanciado dasmargens que se tocam e fazem da sociedadenorte-mineira uma sociedade em fronteira.

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Tronco de pequizeiro � Alimento e remédio � Minas Novas � MG

Elisa Cotta

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Anciã �Depositário da cultura oral das populações tradicionais

Elisa Cotta

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47REVISTA VERDE GRANDE 3

Aroeira �Mata Seca �GrãoMogol �MG

Elisa Cotta

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O CERRADO ÉMINHA INSPIRAÇÃO:

Na pescada de um martim-pescadorNa malícia que tem o carcaráNo uivado manhoso do guaráNa elegância que tem o beija-florNo carro de boi que é cantadorO candeeiro puxando lá na guiaNa água que canta melodiaNo repente folclórico da cançãoO Cerrado é a minha inspiraçãoA viola, o viver e a poesia

Na caatinga que tem o ribançãNo trinado vibrante do ferreiroNo aboio dolente do vaqueiroNo agouro do pio acauãNo orvalho que nasce na manhãNa coruja mateira que só piaNa benção de ramo a simpatiaNo esquipado suave do alazãoO Cerrado é a minha inspiraçãoA viola, o viver e a poesia

Na pelota que vira tatu-bolaNo pandeiro de um emboladorNo verso que diz o cantador

TÉO AZEVEDO

N

a viola, o viver e a poesia

a beleza que reina noCerradoNo vento que sopra abrisa quenteNo sol que desponta na

nascenteNo arroz cacheando no banhadoNa cantiga de um sapo embarreiradoNo miolo da doce melanciaNa beleza que tem a cotoviaNa mudança de um camaleãoO Cerrado é a minha inspiraçãoA viola, o viver e a poesia

No sabor do tão gostoso do pequiNo buraco cavado por tatuNo bote que tem o urutuNo passo manhoso do quatiNa couraça que tem o jabutiNa mulher popular que é MariaNo fuso de renda que ela fiaNo cantar mavioso do azulãoO Cerrado é a minha inspiraçãoA viola, o viver e a poesia

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No improviso tirado da cacholaNo sonoro ponteio da violaNa disputa que tem uma porfiaNa beleza que tem a cantoriaNo martelo, galope ou quadrãoO Cerrado é a minha inspiraçãoA viola, o viver e a poesia

Na sustança que tem nosso panã

No aroma gostoso do araçáNa cantiga que tem o sabiáRespondendo na mata o jaçanãNo fogo pagou da ribançãNa grandeza que tem um novo diaNo vaqueiro aboiando melodiaNo forró de latada o poeirãoO Cerrado é a minha inspiraçãoA viola, o viver e a poesia

Inauguração Centro Comunitário Quilombola � Comunidade Taperinha � Pai Pedro � MG

Elisa Cotta

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Espreitando pela janela � Barragem de Calhauzinho � Araçuaí �MG

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Alunos � Escola de Taperinha � MG

Elisa Cotta

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NARRANDOOENREDAMENTODASPOPULAÇÕES DO SERTÃONORTE-MINEIRO EDO CAA:

O s 20 anos do Centro deAgricultura Alternativa doNorte de Minas (CAA-NM) são muito mais doque 20. Muitas mãos e so-

CARLOSDAYRELLHELEN SANTA ROSA

nhos vêm possibilitando a caminhada deconstrução do CAA. Não vamos falar aquida entidade, mas de um processo vivo deconstrução de um projeto para o Norte deMinas, que se insere em uma elaboração so-cial onde o sertão dialoga com o Brasil, como mundo, onde o CAA passou a se consti-tuir em um lugar privilegiado, no dizer deJoão Batista Costa, �de fala dos subalternos e,ao mesmo tempo, de subversão da subalternidade(D�Angelis, 2005).

O CAA-NM surge na esteira dos conflitosprovocados pelo processo desenvolvi-mentista que adentrou o sertão norte-minei-ro, principalmente entre as décadas de 1960e 1980, desestruturando as economias locais,ecossistemas e uma diversidade de sistemasculturais de produção associados aos Cerra-dos, Caatingas, Mata Seca e vazantes do São

Francisco. À violência explicita da expulsãode milhares de camponeses de suas terras,uma outra silenciosa, mas não menos vio-lenta, quase invisível, ocorria quando estes,encurralados pelo latifúndio, pelasreflorestadoras, endividados, com os terre-nos desgastados, ou contaminados por umsem número de agrotóxicos, deixavam o seulugar e migravam em busca das luzes das ci-dades à procura de dias melhores, acesso àsaúde ou estudos para os seus filhos.

Camponeses, organizações sociais, lide-ranças locais e técnicos se unem em tor-

no desta preocupação. Laços ligam o Nortede Minas com pessoas e organizações de ou-tros estados da federação que também ti-nham essa mesma preocupação. De um se-minário realizado em Montes Claros, no anode 1985, surge a primeira proposta do queviria a ser o CAA. Uma história que vamoscontar a partir da contribuição de algumaspessoas que ajudaram e vêm ajudando na suaconstrução. Na verdade, uma parte da his-tória porque foram muitos os seus

uma trajetória de 20 anos

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Flor de cagaita salpica de branco o sertão �Montes Claros �MG

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idealizadores, os seus construtores, os seusapoiadores1, nem todos citados, nem todosentrevistados. A quem pedimos que rele-vem2 .

Optamos por organizar este texto entre-meando as entrevistas com os docu-

mentos enviados pelos colaboradores, to-mando a liberdade de entrecortá-las de acor-do com os diversos tempos que vieram con-formando a história do CAA. Uma históriacom muitos olhares, percepções e sentimen-tos diferenciados.

Alvimar3 : No início, a gente chamava era deCTA4 . Iniciou com mais ou menos 120 traba-lhadores em um seminário regional. Participa-ram deste processo, na época, 1985, oFUNDAJU, técnicos da Secretaria do Trabalho,pessoas que tinham questionamento de como aEMATER trabalhava e queriam ummodelo di-ferente. Na realização, eu participei mais na ques-tão de infra-estrutura. Rosely, Luiz Chaves,Carlinhos e Celso trabalharam mais nametodologia. Padre Justino esteve presente nacriação do que veio a ser o CAA. Os trabalhostodos foram na perspectiva de se discutir umnovo modelo de agricultura para o Norte deMinas.

Os primeiros funcionários foram Albano5 ,Mide6 e Mazzan7 , que iniciaram em 1987, como apoio de Eduardo Ribeiro8 e de Rosely9. Elesfaziam visitas de intercâmbio, algumas vezes aténo Fusca da casa de pastoral. No início, nós ce-

demos a infra-estrutura para funcionar. Marcou-me o contexto político da época que o CAA co-meçou e trouxe esse novo jeito de trabalhar nomeio agrário. Omanejo do cisco, a matéria orgâ-nica, foi ummarco. O povo tinha resistência paranão queimar. O debate da sustentabilidade sem-pre foi muito forte. No início, existia umentrosamento maior, mais troca, maiorafetividade, talvez tambémpelo trabalho e a equi-pe ser menor, com menos áreas de atuação. Otrabalho do CAA entrelaçou-se com o da CEBse fez uma parceria muito boa, porque o povo sepolitizava e se organizava enquanto comunida-de e o CAA vinha e trabalhava com esse mesmopovo na formação para a prática da agriculturasustentável.

Rosely10: De Centro de Tecnologias Alter-nativas de Montes Claros ao CAA

Enquanto depender de mim, os campos ficarãolá. Enquanto depender de mim, os Cerradosficarão lá. Porque tenho medo de que, se elesforem destruídos, a minha alma também o será.Ficarei como as florestas de pinus, úteis e mor-tas. Ficarei como as plantações rendosas, úteis evazias de mistérios (Rubens Alves)

Desde que recebi o pedido para escrever al-gumas linhas sobre a história da construçãodo CAA no Norte de Minas, idéias, lembran-ças, emoções emergiram de uma forma gos-tosa e confusa. Saudades, imagens da primei-ra sede atrás da Catedral, das reuniões, àsvezes tensas, às vezes esperançosas, ques-

1 Ao longo de sua trajetória, muitas organizações colaboraram ou continuam colaborando, seja viabilizando projetosinstitucionais, seja contribuindo comprojetos a grupos ou temas específicos. Entre elas podemos citar: Misereor e PPM(as primeiras colaboradoras), CESE, CERIS, FASE, HEKS, Cáritas, IMS, Fundação Kellogs, Embaixada Italiana,Fundação Banco do Brasil, etc.2 Principalmente às que deram entrevistas, mas que não chegaram a tempo e não puderam ser incluídas neste texto.3 Alvimar Ribeiro, assessor da Comissão Pastoral da Terra �Diocese deMontes Claros. Sempre acompanhou de pertoo trabalho da entidade, contribuindo tanto no Conselho Diretor quanto no Conselho Fiscal.4 Centros de Tecnologias Alternativas. Esta era uma proposta que o Projeto TA da FASE (RJ) tinha para contribuir comas regiões que iniciavam um processo organizado de questionamento e de busca de alternativas aos impactos provoca-dos pela chamada �Revolução Verde�.5 AlbanoMachado, sociólogo.6 Elmides Veloso, secretária.7 Carlos Eduardo Mazzetto, agrônomo.8 Economista e consultor.9 Rosely Carlos Augusto, da Casa de Pastoral Comunitária da Diocese de Montes Claros.10 Psicóloga social, participou da criação do CAA, como agente pastoral, assessora da CPT e coordenadora da Casa dePastoral Comunitária de Montes Claros. Hoje leciona psicologia social e presta assessorias a entidades, pastorais emovimentos sociais do campo e cidade.

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tões com as quais nos debatíamos.

Logo vacilei em escrever em tão poucotempo e sem antes pesquisar velhas ano-

tações e agendas. Acabei por decidir me dei-xar levar pelas emoções que tomaram contade meu coração e da minha mente.

A história do CAA se confunde com a histó-ria dos movimentos e pastorais sociais doNorte de Minas. Frutos dos ventos dos no-vos movimentos sociais e da �Teologia daLibertação�, que agitaram os campos e ascidades do Brasil e de toda a América Lati-na, nos anos 1980.

Nesse contexto, nasceu a idéia do �Centrode Tecnologias Alternativas de Montes Cla-ros�, como resposta, já implantada em ou-tras partes do Brasil pela FASE Nacional,com o seu �Programa PTA� (Projetos deTecnologias Alternativas), às demandas co-locadas pelos �pequenos produtores rurais�da região11. O que é �pequena produção�?De quem exatamente estamos falando noNorte de Minas? Como vivem, como enfren-tam as adversidades? O que �se esconde�por trás da categoria �trabalhadores rurais�,que o sistema sindical tentava impor comounidade de representação? Foram questõesconstantemente debatidas e colocadas naimplantação do CAA. Demandas como ga-rantia de preço para os produtos rurais, cré-dito subsidiado, alternativas para a seca queficava cada vez mais constante e longa, paraa �terra cansada�, para o aumento das �pra-gas� e para acabar com o �atravessador�, vi-nham sendo colhidas nos encontros de CEBSe CPT, nas reuniões dos pequenos projetos

comunitários ou alternativos, nas assembléi-as dos STRs e plenárias sindicais da região.Foi no bojo do �Projeto da Casa de PastoralComunitária da Diocese de Montes Claros�que esta idéia foi ganhando corpo e se fa-zendo sonho entre trabalhadores, comunida-des rurais, técnicos e agentes de pastoral12.Contando, então, com o apoio do Projeto deTecnologias Alternativas da FASE Nacional,que estava se implantando em Minas Gerais,realizou-se em Montes Claros, em 1985, umEncontro Regional de �Pequenos Produto-res�, com uma participação expressiva de li-deranças sindicais, posseiros envolvidos naluta pela terra e pela reforma agrária, técni-cos e agentes pastorais, quando se selou com-promisso e idéia com a construção de um�centro de experimentação e de articulaçãode lutas e tecnologias alternativas e apropri-adas à pequena produção regional�. Já aí secontava com o compromisso da Misereor deapoiar a concretização da idéia, através daCasa de Pastoral Comunitária e se buscou,ainda, um financiamento na FINEP do Mi-nistério de Ciência e Tecnologia. Podemosrecordar de pessoas e nomes que foram im-portantes e decisivos na criação desse �cen-tro de experimentação�, naquele momento,como: Luiz Chaves, coordenador da Casa dePastoral Comunitária; Edmar Gadelha, doProjeto FASE/ASPTA em Minas Gerais;Jean Marc e Maria Emília, da FASE Nacio-nal; Celso Marcatto, e, lideranças sindicais ecomunitárias de Januária, Rubelita, Mirabela,Montes Claros, Barra do Pacuí, Coração deJesus, Brasília de Minas, Manga, Salinas,Taiobeiras, São Sebastião do Paraíso, Jura-mento, Bocaiúva, São Francisco, Francisco

11 Denominação genérica utilizada entre as décadas 1950 e 1980, dada por estudiosos, Estado e entidades sindicais parase referir àqueles �trabalhadores rurais� que lutavam por preço, assistência técnica, crédito, infra-estrutura, tecnologia deprodução, água, etc.12 O projeto da Casa de Pastoral Comunitária remete a convênio firmado pela Diocese deMontes Claros com a agênciade cooperação internacionalMisereor, desde 1984, com duas linhas básicas de ação: suporte à ação das pastorais sociais,como CPT, Pastoral Operária e da Juventude, e um �fundo� de financiamento de pequenos projetos econômicoscomunitários contra a seca noNorte deMinas, apelidado de �Fundaju�, nos seus primeiros anos de existência.

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Sá, Janaúba, Jequitaí, Varzelândia eCachoeirinha. Não vou ousar citar os nomestodos com medo de errar, mas não poderiadeixar de citar Antonio Inácio, de Januária;Valdeci, de Varzelândia; Braulino e Zé Valdo,de Montes Claros; Juarez, de Bocaiúva, e, asmulheres, Nem, de Mirabela; Rosário, deBocaiúva; Mirasônia, de Riacho dos Macha-dos e outras. Alguns desses fizeram e fazemparte ainda da direção do Centro.

Comodizemos teóricos de grupo, nenhumgru-po ou organização nasce ou se mantém semum projeto comum idealizado, carregado deilusões e certezas que formem um sistema decrenças, forças convergentes e onipotentes,onde não cabem questionamentos e a percep-ção de incoerências com relação a sermos os�portadores de verdades, certezas e dos senti-mentos mais justos e válidos� (Enriquez, E,1994). Por isso, não é de se estranhar que, aosolhos de hoje, muitas vezes digamos a nósmesmos: �puxa vida, se fossemos menos ingê-nuos e tivéssemos a consciência clara da com-plexidade, da natureza e do tamanho daqueleprojeto, não tínhamos nos metido nele�.

Tomados dessa idealização, para algunsapenas utopia ideológica e, para outros,

carregada também de motivação de fé, o pro-jeto ganhou o nome de �Centro deTecnologias Alternativas de Montes Claros�,até à primeira assembléia de fundação, noinício de 198913, quando, fruto de ampla dis-cussão e divergências de concepções, apro-vou-se a substituição do nome para �Centrode Agricultura Alternativa do Norte de Mi-nas�. Com certeza, as discussões em tornodo nome do Centro expressavam um mo-mento muito significativo na construção dosmovimentos de lutas no campo, em que nãosó as disputas de projetos entre o modeloagrícola da �Revolução Verde� e a constitui-

ção de um outro modelo alternativo ganha-vam visibilidade, mas também, que marcavao avanço e a consolidação das idéias no inte-rior do próprio movimento instituinte de umnovo modelo de agricultura e de sociedade,baseado na reforma agrária e na viabilidadeda �pequena produção�. Tendo marcado isso,não vou mais me estender nesse ponto, quefoge ao objetivo imediato desse texto.

Participei do movimento de criação doCAA desde a gestação de sua idéia e fiz

parte, com Luiz Chaves, do primeiro mandatodo �Conselho Diretor�, que foi eleito, provi-soriamente, por apenas um ano, no intuito dese amadurecer as propostas, concepções e di-vergências levantadas pela assembléia de fun-dação. Participei, ainda, do próximo mandatopara dois anos. E fui sócia até 1994. O Conse-lhoDiretor era composto de 11membros, novetrabalhadores rurais e dois técnicos. Grandesquestões estavam colocadas pela equipes téc-nica contratada nos primeiros anos (CarlosEduardo Mazzeto, Albano e Carlinhos, comotécnicos, e Mide, como apoio administrativo)e o Conselho Diretor, como:

�Qual a natureza e a metodologia de trabalho deum Centro que se propõe ser �de estudos, de ex-perimentação e formaçãopara apequenaproduçãorural, na área deAgricultura alternativa�, comodizo seu primeiro estatuto? (Estatuto Social, 1989)

� Tendo uma abrangência regional, por ondecomeçar? Por onde já existe trabalho de base daCPT, dos STRs? Fazer assessoria para entidadese lideranças multiplicadoras ou trabalho de basedireto nas propriedades? Áreas de agricultoresde subsistência ou onde os agricultores já estãomais inseridos no mercado? Em áreas de gran-des projetos governamentais, como o Jaíba e oGorutuba, ou em áreas de posseiros?

� Como se legitimar diante das demandas dostrabalhadores regionais, já que, como entidade deformação e experimentaçãopara a pequenaprodu-ção regional, o Centro não havia sido criado pelos

13 Encontrei, entre os documentos guardados, uma versão do queme parece ser uma primeira dos Estatutos do Centro,datada de 04/03/1989 , discutida na assembléia de fundação.

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próprios trabalhadores?

�Até se construir uma �área de experimentação�,qual estratégia de demonstração construir? Naspróprias propriedades?Mas, temos condições ob-jetivas e subjetivas para propor aos agricultores esuas organizações alternativas de produção nãoconhecidas ainda?

�Quais as tecnologias apropriadas para o Cerra-do? E como mudar a mentalidade regional deque o Cerrado �não dá nada, a não ser com gran-des projetos de irrigação� ou que �só serve paraa grande produção de boi�?

� Quais os mecanismos de gestão possibilitari-am uma efetiva participação dos trabalhadores ea democracia interna?

Todos esse temas foram muitas vezes dis-cutidos em reuniões e assembléias. Mas,

realmente marcaram os primeiros mandatos,com certeza, as tensões de gestão entre aequipe técnica e a organização dos trabalha-dores no interior da entidade. O documentode avaliação14 do primeiro ano de mandatomarca bem as divergências que vão perdu-rar, talvez, pelos primeiros dez anos da enti-dade. Alguns propunham e investiam na for-mação para a ampliação e efetiva participa-ção dos trabalhadores na gestão da entida-de, outros acreditavam que não havia, ain-da, na região, agricultores com um nível deorganização e politização suficiente para darà direção e que, dessa forma, esses deveri-am compor um Conselho Consultivo e nãode direção da entidade. Como o primeiroestatuto não previa um Conselho Fiscal naestrutura da associação, outra avaliaçãoapontada, naquele momento, foi a de que oConselho Diretor havia se sobrecarregadocom as funções política, administrativa e fis-cal do CAA e que os trabalhadores, não ti-nham, de fato, formação para nenhuma des-

sas atribuições previstas. Porém alguns pon-tos de avanços foram também apontados:

� cresceu a participação dos trabalhadores nodesenvolvimento do CAA;

� o rodízio de diretores para acompanhar as vi-sitas de campo dos técnicos ajudou no cresci-mento do Conselho Diretor e do CAA;

� �CAA já conhecido e valorizado por entidades,órgãos públicos e pelos próprios trabalhadores daregião� (documentode avaliação1990).

Braulino15: Primeiro, quando a gente começou,foi justamente aquele grupo, a CPT, que é a Pas-toral da Terra, e a FASE. Aí começou essa dis-cussão pra gente contrapor aquele modelo capi-talista que tinha aí. Na época, a expansão da Re-volução Verde pelo Governo, essa discussão co-meçou. Veio o pessoal da FASE, o Edmar, aíeles resolveram fazer uma contratação de doisprofissionais pra gente começar a discutir o tra-balho. Foi na época que eles começaram. Eu,nessa época, estava sendo o diretor do Sindicatodos Trabalhadores Rurais de Montes Claros ecomecei a reunir com eles lá em casa. Começa-mos a fazer experimentação naquela área quehoje é da Fazendinha do Menor16. Depois, nóssaímos e fomos para a base, começar a fazer otrabalho. Aí, começamos a juntar as pessoas nascomunidades, o pessoal da igreja, as pastorais,junto com o sindicato. A gente discutia, fazia odiagnóstico. A gente estava no primeiro estágio,aquele trabalhozim da curva de nível, da agricul-tura orgânica. Aí começou a mudar, fazendo aexperimentação, o manejo do cisco, a caldabordalesa. Isso foi bem no início. Após essetrabalho, começou a concentrar em algumaspropriedades e eles foram lá em casa, na comu-nidade de Abóboras, na Ermidinha, proprieda-de do Arnaldo. A gente foi lá em Afonso, nasLaranjeiras17, e também em Francisco Sá. Essetrabalho começou mesmo em 1987, 1988. Aífoi ampliando... O trabalho na Catarina18 ... Otrabalho no Riachinho19 ... A experimentaçãocom os campos de sementes, e aí foi juntandomais gente, incorporando mais pessoas.

14 Textomimeografado de autoria do ConselhoDiretor e equipe técnica do CAA de avaliação do primeiromandato, de04/03/89 a 04/03/90.15 Braulino Caetano � camponês da Comunidade de Abóboras, Montes Claros, diretor e um dos fundadores do CAA.16 Na época pertencia aoMinistério da Agricultura, que havia cedido de comodato para a Diocese deMontes Claros.17 Município deMirabela.18 Município de Bocaiúva.19 Município de Montes Claros.

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Gongadeiro do Batieiro � Festa do Rosário dos Homens Pretos de Minas Novas � Minas Novas � MG

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Rosa singelo - Comunidade de Poções

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Oscarino20 : Olha, vou falar primeiro o porquêda criação do CAA.Naquela época, a gente viviano tempo da monocultura que era o gado, oalgodão em Porteirinha, aí também chegou oeucalipto na região. Isso foi nos anos 1970, nocomeço dos anos 1980. A gente vivia que numtinha uma assistência técnica que viesse a ajudaro agricultor a remediar, mas só vinham com amonocultura do algodão. Nem mesmo tinhasuporte para conservar os solos. Os solos esta-vam sendo degradados demais. O Rio do Sítiosecou. Tinha também a aplicação de inseticidasmuito violentos e nós achamos também de sen-tar para ver uma proposta que visse amenizaresses problemas. Aí a gente achou interessantecriar uma instituição que viesse atender a neces-sidade da agricultura, no caso uma agriculturafamiliar, ou seja, uma agricultura sustentável. Agente queria voltar ao estudo para saber ondeestariam as nossas sementes crioulas, onde esta-riam mesmo as próprias raízes da agricultura.Nós começamos meio tímidos, visitando, fa-zendo os curso de conservação dos solos, oscursos de inseticida caseiro para o controle daspragas. Inclusive, nós fizemos um curso lá emMontes Claros sobre a historia da agricultura noBrasil. Isso foi muito interessante.A gente fezum resgate de nossa história desde o tempo dosíndios, até a chegada no momento damonocultura. Isso aí deu varias lideranças e acoisa num andou muito, porque a pessoa parafazer, lutar contra a estrutura que foi implantadapelo governo militar na época... Você está dooutro lado da moeda! Tinha muita dificuldade,mas, graças a Deus, fizemos algumas experiên-cias. E foi andando...

Braulino: A Igreja ajudou muito. Teve esse pri-meiro projeto21, depois o governo cortou. Tive-mos a visita do pessoal da Misereor22, bem nes-sa época, então esse projeto internacional foi as-sinado pelo bispo. O pessoal da CPT deu umgrande apoio, o pessoal da CEBs também. Teveum grupo que trabalhou com a gente, foi umaparceria boa. Em 1988, 1989, a gente começou adiscutir a entidade jurídica, aí, em 1990, a gente

formou a primeira assembléia para fundação doCAA e a gente fez a discussão. Na época, era oCTA, Centro de Tecnologia Alternativa, e teveuns dois grupos, uma divergência grande, foiuma discussão muito forte. Depois, a gente tor-nou a desmanchar. Aí, nós pensamos bem eachamos melhor ir discutindo. Foi um consen-so quando fundamos com o nome de Centrode Agricultura Alternativa23.

Uns dois anos a gente veio discutindo queprecisava de uma área para desenvolverme-

lhor algumas experimentações, para formação dostrabalhadores, e aí foi o caso que nasceu aAEFA24,foi mais ou menos em 1990. Tinha o Grupo deApoio, em cada região que trabalhava, tinha o nú-cleo para ajudar a implantar os experimentos naÁrea (AEFA). Foram vários grupos trabalhando.E aí começamos a discutir a parceria, discutir o tra-balho junto com o sindicato. Tinha a experimen-tação e o povo já começava a discutir também omercado. Se você faz o trabalho orgânico e tiverumaboa produção, vai fazer o quê?Mas aí era umaresistência muito grande, se isso aí seria umamis-são nossa. A gente trabalhou por vários proces-sos, teve muitas experimentações, aquelasmicrocisternas, a bomba rosário, também as pe-quenas barragens, barragens de saco. A gente dis-cutia a preservação da água, por exemplo, discutiaesses projetos de reflorestamento.Naquela época,a questão das monoculturas do eucalipto come-çou a entrar e a gente visava tudo que ia acontecercomas águas.Dificilmente vocêpegavaoprojeto eo povo acreditava. A gente sentia o impacto, oimpacto político. Assim, dumaprodução que numgastava muito. Eles não aceitavammuito o CAA.Eles viam com um olho assim, que era coisa decomunista.Naquela época que a gentemexia tinhao impacto violento. Esses órgãos, você discute al-guma coisa, qualquer discussãopolítica que a gentetinha era umabriga.Agente previa o que ia aconte-cer com esse exemplo daRevoluçãoVerde...

Oscarino: O CAA avançou muito para enfren-tar isso aí. Principalmente nas articulações, por-que o agricultor, em si, só sabia ir no banco pe-

20 Oscarino Aguiar, lavrador, poeta e diretor do STR de Porteirinha.21 O primeiro projeto do CAA contou com o apoio da FINEP �Ministério da Ciência e Tecnologia.22 Organização de cooperação da Alemanha.23 Braulino faz um comentário sobre um debate de fundo então no CAA: se a entidade a ser criada deveria ter umcontorno de açãomais técnico � então o nome de CTA, ou se deveria ser de assessoriamais geral aosmovimentos rurais� então como nome deCentro deAssessoria. Os debates ocorridos levaram ao cancelamento da primeira assembléia doCAA e em seguida foi-se chegando ao consenso de que o campo de atuação da entidade deveria não ser tão limitado nemtão genérico, optando então pelo nome de Centro de Agricultura Alternativa24 AEFA - Área de Experimentação e Formação emAgroecologia, também chamada de Área.

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gar o financiamento. O CAA começou diferenteda EMATER, começou amostrar como elemes-mo poderia melhorar a sua agricultura, comopoderia buscar parceria. Ate os próprios recur-sos fora do banco a gente conseguiu paracapacitação, para produção, produzir sem gastardemais. Nós desenvolvemos a caixa deferrocimento25, é uma coisa muito interessanteque estava iniciando, o CAA implantou na re-gião. Espalhamos cursos para todos os lados.Aí houve um grande crescimento, muita gentepassou a trabalhar nesta tecnologia, até que che-gou a caixa d�água chamada de cisterna de placas.Quer dizer, o CAA tem colaborado muito comessas facilidades para o agricultor sobreviver naterra, que é a questão de convivência no semi-árido, foi o maior avanço que nós fizemos. Por-que a gente vê a nossa condição de vida aqui e oque émelhor? A região de inverno? A gente pen-sa que aqui é ruim, mas é melhor o calor do queo frio que faz na Europa. A gente aprendeu isso,a valorizar o que é nosso. Nós não podemoscombater a seca, mas aprendemos a convivermelhorando o solo, melhorando a nossa roça, ater um horário de trabalhar. Nós aprendemosfazer isso tudo. A questão do inseticida, que agente investia muito alto, a gente pode regularela, ter menos intensidade, então, isso foi o mai-or avanço que nós tivemos.

Hoje, graças a Deus, o agricultor que não gosta-va de ouvir as propostas do CAA hoje está pro-curando o sindicato para dar curso. As nossasáreas dos agricultores está sendo procurada paraser área de intercâmbio de experiências, de siste-mas de plantação, de criação de pequenos ani-mais. Também hoje nós já contamos com ome-lhoramento das hortas. Tivemos algumas ex-periências também no campo de produção desementes. Isso aí começou a despertar que onosso milho crioulo teria uma posição melhordo que essas sementes de milho que apareceu,de secretaria. E que essa propaganda de não sepoder plantar na mesma terra, nós provamosrealmente que é coisa das multinacionais. Po-rém, tem que tomar cuidado com a própria se-mente. Isso foi um avanço muito grande. Nósconseguimos fazer melhoramento e tambémbuscar apoio junto à EMBRAPA, algumas se-mentes que dariam bem aqui. Plantamos muitosorgo aqui na região de Porteirinha. Até o sorgonós desenvolvemos também uma semente cri-oula, melhor dizer, de variedade melhorada. E

aí, graças a Deus, nós trabalhamos muito bem osorgo e hoje nós temos, de duas variedades ini-ciais, nós já temos quatro variedades. Tudo isso,esse suporte que o CAA nos deu. A gente temtido curso de como trabalhar com os pequenosanimais. Nós fizemos vários cursos para me-lhorar a criação de galinha, a maneira prática deevoluir melhor, e aí a gente tivemos um tipo depreparo de ração. Uma coisa também que foiinteressante foi o preparo do sal mineral quenós desenvolvemos aí para os animais. Nós com-pramos juntos esses ingrediente e preparamossal de acordo com a eficiência que tem o nossosolo. Graças a Deus, nós somos vistos aqui noNorte de Minas como modelo diferente.

Braulino: Nesse começo tivemos também anossa contribuição com omovimento sin-

dical. A gente tinha o grupo da Igreja, esses gru-pos organizados diretamente com os sindica-tos. A gente trabalhava com sindicato deBocaiúva, trabalhava com o de Porteirinha,Varzelândia, Coração de Jesus, Francisco Sá eJequitaí. Politicamente, sentava e planejava. Eramos grupos mais organizados. Teve lideranças deassociações, treinamento para todo mundo queacompanhava as atividades. Mas, essas associa-ções mesmo não andaram muito, porque a as-sociação é muito local. A gente teve dificuldadecom o poder público. Tinha a ligação com o pes-soal da EMATER, teve várias dificuldades. Àspastorais a gente teve mais ligado e às outrasredes. Agora, o movimento sindical num foimuito, não foi uma ligação direta com todo omovimento, tem pessoas, grupos. Naquela épo-ca, teve pelo menos dois sindicatos que pega-ram a bandeira de luta aqui, foi o Sindicato dosTrabalhadores Rurais de Varzelândia e o Sindi-cato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha. Osindicato de Porteirinha, por exemplo, lá tinhauma diretoria bem capitalista e aí esse grupo quetrabalhava com nós, com a CPT, conseguiu ga-nhar a eleição e, assim, politicamente é um dosmelhores sindicatos dos agricultores, foi o mu-nicípio que mais formou lideranças, o municí-pio de Porteirinha. EmVarzelândia teve um tra-balho muito bom politicamente, o pessoal fi-cou politizado, mas só que na verdade eles, decomeço, num avançaram muito na questão daprodução, que é uma questão política. Mas napolítica eles desempenharam bem e, após algumtempo, eles desenvolveram muito bem.

25 Caixa de armazenamento de água feita com um sistema que gasta menos materiais e é de simples confecção.

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Euacho assim: nós sempre fomos uma meiaoposição no movimento sindical, porque

o movimento sindical como um todo semprenão pegou mesmo a bandeira. Eles pegavam aprodução sem a preocupação de destruir. Elesnunca pegaram a bandeira da preservação. Elesiam fazer reforma agrária, mas não tinham pro-posta para não desmatar, não acabar com tudo.Eu era diretor do sindicato nesse começo doCAA. Aí eu saí do sindicato e até hoje nós nãotivemos nada ainda, continua assim meia opo-sição.

Alvimar: Houve também grandes embates en-tre Conselho Diretor e equipe técnica,discordância de funcionamento da sede, unsachavam que devia ser na AEFA, outros no cen-tro. Eu mesmo defendi que tinha que ser naAEFA, mas depois compreendi que precisavater uma referência na cidade, para chamar a aten-ção. A partir daí, o Conselho Diretor começa aparticipar das questões internas, com uma preo-cupação muito grande de que a equipe não sedistanciasse da base.

Braulino: Quando começou, a gente começoucom dois técnico e uma assessora, que era asses-sora de comunicação e administração. Depoisentrou o que veio trabalhar com a questão agrá-ria. Depois a equipe ficou com cinco mais oumenos. Nessa época, os técnicos também fa-ziam parte do Conselho Diretor, o que ajuda-va muito na discussão política. Tinha a Pasto-ral, tinha a Rosely, o Paulo, a Solange, cada umnuma época. Tinha uma discussão tambémdo pessoal da Pastoral da Criança, acompa-nhou um tempo. Então, essa formação aju-dava nas discussões políticas e a gente foi in-corporando o pessoal da assembléia geral doCAA. Desde a primeira assembléia que eu soudiretor. Nessa época, era mais ou menos meioa meio, até que os agricultores tomaram con-ta. Tinha o Luiz Chaves, que trabalhava nomovimento naquela época. Ele fez parte doConselho também. Ele ajudava muito. Tinhaessa compartilhação. Assim, nós chegamos decinco técnico, depois três, dois, um técnico..,E os agricultores foram crescendo...Cinco, dez,até chegar no que está hoje.

Agente via que o processo na região, quandochegou o CAA, tinha muita gente ecologis-

ta que chegava, criticava omodelo, mas não davaalternativa, e oCAAcomeçou a crítica e começoua mostrar a realidade, que tinha possibilidade demudar. A gente discutia e fazia a prática, pelomenos. Essa questão, que é a possibilidade de

você ter um outro modelo, diferenciado desseque está aí, ele criticava e mostrava o outro ladoda moeda, e isso que era a questão mais políticaque tinha.

No começo, a gente trabalhava direto nas pro-priedades. Na propriedade de uma pessoa vocêreunia o grupo ali, fazia o trabalho numa pro-priedade. Depois nós conseguimos a Área(AEFA), aí nós trazíamos vários grupos de fora.Aí começamos a fazer o trabalho junto, capaci-tando o pessoal com pouca experiência. A Áreaficou com destaque porque começou amelhoraro sistema da criação dos animais, começou amelhorar a roça, a melhorar as hortas, o sistemadas sementes com o banco de germoplasma.Tudo isso que tinha na propriedade tinha lá naÁrea, virou destaque. O destaque foi bemmaiordo que essa questão que vinha das faculdades.Outros grupos começaram a incorporar fazen-do a visita. E começaram a criar outras experiên-cias. Os agricultores, o grupo de estudantes, ogrupo de técnicos, até os políticos, político as-sim da prefeitura essas coisas, muitas visitas. Láfoi ponto de aprendizagem. Aí começou os cur-sos de formação de jovens. Começamos assim,formando três turmas de jovem. Depois, a gen-te mudou o aspecto. Num foi só filho de agri-cultor. Aí foi jovens e adultos, todo mundo, eisso deu muito avanço, formou várias lideran-ças. Hoje, naquela área, é destaque em cima des-sa questão da formação dos agricultores. Temgente então do Norte de Minas todo. Está es-parramado aí. Uns já estão nos acampamentos,outros já estão em outros lugares, mas, na ver-dade, a metade vingou. Índios também. Na-quela época, num tinha quilombos e não for-mou e num tinha começado a trabalhar ainda,mas outras populações, aqueles pessoalvazanteiro, caatingueiro, geraizeiro, indígena...

Se nesta época tinha essa discussão degeraizeiro, de caatingueiro? É que foi mu-

dando os nomes, porque tinha o pessoal queera da caatinga e eles sempre discutiam nos gru-pos. Nós somos mais resistentes nisso, somosmais sensíveis naquilo, e aí foi, o nome nasceumesmo foi assim. Depois do trabalho do CAAque sofreu essa transformação. Os jovenscaatingueiros, os jovens geraizeiros, foi uma ca-minhada à escola. E também foi muito impor-tante a questão dos estágios dos estudantes.Passarammuitos estudantes pelo CAA e váriosestudantes, que depois foram trabalhar em ou-tras ONG�s, hoje estão ocupando outros espa-ços no Brasil todo, a mentalidade deles está maisprogressiva. Hoje, sabemos que tem vereador,

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secretário em Prefeitura. Eu não sei se tem al-gum prefeito.

João Altino26 : Eu conheci o CAA foi através daparticipação da gente na associação da comuni-dade de Córregos. Foi através das irmãs que naépoca tinham um trabalho lá na comunidade.Convidaram os jovens para fazer parte do cursode formação na Área do CAA27 . Então, nós, dacomunidade de Córregos, procuramos os jovens.Que se diz jovens tem até 25 anos, como eutinha mais de 30 anos na época, mas eles meescolheram para ir fazer o curso, representar acomunidade. Então, foi através das irmãs e daassociação da comunidade que eu conheci oCAA,tem uns dez anos aqui atrás.

Foi um ano de curso. Depois do curso eu come-cei a fazer as curvas de nível na roça, aprendi decomo resolver o problema da água construindocaixa e revestindo com ferro e cimento. Apren-demos também a construir a caixa de placa. Ar-rumamos recursos e a gente conseguiu cons-truir manilhas de ferrocimento, perfuramos cis-ternas, instalamos bomba rosário, então a gentecomeçou a levar para a prática, começou a resol-ver o problema da água que era muito antigo naépoca. A gente conseguiu ter água em casa.

A partir do momento do curso, a gente começou a ter conhecimentos da curva de ní-

vel, do plantio consorciado com o Cerrado, as-sim de também ficar aproveitando as frutas doCerrado.Quando faz o plantio consorciado (como Cerrado), você está conseguindo evitar o usode adubo, de veneno químico. Você não vai ficardependente de usar adubo e veneno por causadamatéria orgânica. Você está conseguindo adu-bar sem ter que desembolsar. Você consegue afu-gentar os insetos, porque quando os insetos têmuma coisa ou outra para comer, ele não cometodas as plantas, ele não prejudica. O plantio daroça, consorciado com o Cerrado, a gente fazplantando tudo na mesma área, fazendo curvade nível. Aí, você planta o milho, feijão, mandi-oca, urucum, abacaxi e manga, abacate, capim decorte, andu, feijão de porco, a banana, a cana,tudo plantado nomeio da roça, já deixando tam-bém as arvores que tem no Cerrado, fazendo apoda, e o resultado é isso: numa roça que seplanta nesse consórcio, você nunca perde a roça

toda. Se perde uma, ganha outra. E tem tam-bém as coisa que produz mais rápido, outrosque produz com um prazo maior. As plantasmesmos vão adubando, sem precisar estar com-prando adubo.

Com o plantio da roça consorciado com oCerrado, você está ajudando oCerrado, por-

que ele está sendo destruído. E a gente, na ver-dade, tem que começar a plantar, porque senãovai chegar um momento em que não vai ter es-sas plantas. O caso do pequi, a gente planta asemente direta no local que irá de ficar. Então, jáplantei pequi, que já vem produzindo, mas eutenho plantado também o coquinho azedo, amangaba, o articum, que são plantas nativas.Tem também as plantas medicinais do Cerrado.Por enquanto, ainda num plantei, mas, quandoa gente coleta, tem aquele cuidado de estar cui-dando dessas plantas, extrair de maneira que nãovai acabar. Porque tem muita planta que servepara alimentação, outras para estar vendendo,então dá para comprar outras coisas. Assim, agente tem o pequi, o panã, a mangaba, a cagaita,o coquinho azedo. São também muitos os re-médios: o carapiá, o pau terra, a barrigudinha, obraço forte ... Muitas plantas são remédios que agente usa e não precisamos então de ficar com-prando na farmácia. E tem também essas coisasque ajuda muito na alimentação.

Elmyr28: Eu nasci na comunidade de VeredaFunda, no município de Rio Pardo. Venho deuma família bem grande. Em casa, somos 15irmãos. Muitos morreram e só tem eu de ho-mem agora. Com uns 16 anos, trabalhando nogrupo de jovens na comunidade, eu conheci oFrei Paulo, que era pároco em Salinas e estavafazendo trabalho na comunidade deVereda Fun-da. Em uma das idas lá, ele falou de um cursono CAA, um curso de formação de jovens emagroecologia, isso foi no ano de 1994. Aí eleconvidou os jovens de Vereda Funda e eu inte-ressei e fui fazer esse curso. O curso terminouem 1995 e, com esse curso, já tava participandoda Pastoral da Criança. Primeiro, fizemos diver-sos trabalhos na comunidade, conservando ossolos, recuperando as águas, recuperando as chá-caras de café sombreado. Mas, nós tínhamosmuitas dificuldades. Só podíamos usar as grotas,as chapadas estavam tomadas de eucalipto. Com

26 João Altino Neto, geraizeiro que nasceu em Riacho dosMachados e hoje é assentado no Assentamento Americana.27 CursodeFormaçãodeMonitoresemAgroecologia�programadeformaçãodoCAAquefoidesenvolvidoentre1993a1997.28 Elmyr Pereira Soares, geraizeiro da Comunidade deVereda Funda/Rio Pardo deMinas �diretor do STR de Rio Pardode Minas.

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o curso, eu interessei a participar do sindicato.Conheci o sindicato da cidade e aí, em 1997, euentrei na diretoria do sindicato. E de um tempopra cá, como acompanhamento técnico doCAA,nós aqui do município, a gente faz um trabalhoem diversas comunidades, participamos daCáritas de Janaúba e hoje estou aqui no CRG(Centro de Referencia Geraizeira). Estou aquino CRG, trabalhando na diretoria do sindicato,e, na comunidade de Vereda Funda, nós estamoscom um projeto de reconversão damonoculturado eucalipto.

Aparecido29: Eu sou um caatingueiro, lá daregião de Porteirinha, lá no pé da Serra Geral,e nosso sistema é diferente dos gerais. Osmeus pais, a origem deles é de lá mesmo, dePorteirinha, naquela região. Nasci lá e sempretrabalhei junto com os meus pais. Depois eucasei e comecei, desde 1986, um trabalho, ini-ciando na Pastoral da Juventude. A genteengajou num grupo de jovens e começamos adesenvolver trabalhos junto a CEBs. Come-çamos, também, a participar mais da vida po-lítica e entramos no Sindicato dos Trabalha-dores Rurais de Porteirinha, isso em 1989. Em1991, eu comecei, assim, a envolver em traba-lho de formação. E foi em 1992 que eu fiqueiconhecendo o CAA, através do sindicato. Agente tinha uma preocupação com a questãoda monocultura do algodão na região dePorteirinha e chamamos o CAA para nos aju-dar em um projeto diferenciado, principalmen-te pr�aquela região, onde que a gente via umdesastre muito grande, muita degradação, des-gaste dos solos, uso muito abusivo de vene-nos, de adubos químicos. Muitas famílias es-tavam prejudicadas e a gente precisava pensaruma outra alternativa de sobrevivência naque-la região. Então, foi nesse meio aí que a gentecomeçamos com o trabalho com o CAA.

A gente já tinha muitos resultados com produção agroecológica, formaçãodemonitores,

e, em 1998, o CAA demandou uma contribuiçãodos agricultores no trabalho com a região. E aí, apartir de 1998, eu fui lá praÁreadoCAA(AEFA) elá a gente veio trabalhando,mudando essa caracte-rística. Eu, que vivia numa região da caatinga, lá noCAAeu já passei a umoutro climaque éoCerrado.

Então foi ali que eu comecei a conhecer mais umpouco sobre oCerrado, sobre as plantas doCerra-do, e o meu trabalho foi muito nessa questão depensar aproduçãoe tambéma formaçãodeagricul-tores dentro dessa visão do trabalho com aagroecologia. Foi uma experiência muito rica, masassim, mesmo eu trabalhando lá na Área do CAA,eu sempre tinha esse sonhode conseguir uma terra,de conseguir umpedaçode terra.Então eupassei aingressar na luta pela terra e aí hoje eu estou aqui noAssentamentoAmericana30. Foi desse períodoqueeu tive lá na Área do CAA que passei a apaixonarpelo Cerrado, pela sua diversidade, pelo clima doCerrado e assim, depois que vim para o assenta-mento, a desenvolver um trabalho aqui noCerrado.

João Altino: Eu sou um geraizeiro porque nas-ci e criei no gerais e convivo até hoje no gerais.Então, a historia dos geraizeiros tem muito aver com o lugar onde vivemos. O povo fala as-sim: de uma farinha boa, fala que é dos gerais; setiver uma rapadura boa, fala que é dos gerais. Adiferença entre gerais e caatinga é porque os ge-rais têm a diversidade de plantas, de espécies deárvores e bichos, que é diferente da caatinga.Além da vegetação, tem a questão da água, por-que no gerais é mais fácil � o pessoal fala queágua boa é água dos gerais. Os geraizeiros têm atradição de plantar mandioca, cana, o arroz, omilho e o feijão. Uma tradição de plantio maisconsorciado. A história dos geraizeiros temmuito a ver com a feira de Porteirinha, porque,na verdade, se diz assim, que a maior parte dascoisas dos gerais vão para o mercado dePorteirinha, de Riacho dos Machados, Rio Par-do, Fruta de Leite... O pessoal leva para as feiras,não leva para o CEANORTE31.

O que tem afetado muito a vida dos geraizeirosé essa questão das empresas que vêm se dizen-do que estão reflorestando, mas, na verdade,estão é degradando o ambiente. O plantio deeucalipto foi o que mais afetou, porque vem li-mitando a vida das pessoas que nasceram, cria-ram e vivem nos gerais. Eu criava o gado lá sol-to. Só tinha uma novilha presa numa manga.No mais, o restante do gado era criado solto amaior parte do tempo.O gado era na solta. Vocêtirava uma madeira que se precisasse, fazia umaroça, num tinha esses limites que tem hoje. A

29 Aparecido Alves de Souza � Nasceu emPorteirinha, foi diretor do STR de Porteirinha, posteriormente coordenadorda AEFA e hoje é assentado no PA Americana, município de Grão Mogol e diretor da Cooperativa AgroextrativistaGrande Sertão.30 Localizado no município de Grão Mogol.31 CEANORTE � Central de Abastecimento doNorte deMinas, fica localizado emMontes Claros.

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pessoa vivia mais livre pra criar o gado, para cole-tar as frutas, as madeiras. Quando tinha a épocaque chovia pouco no período das águas, duran-te a seca o pessoal tinha aquela opção de procu-rar o brejo. Tinha muito brejo na época. O pes-soal ia mexer com roça onde tinha brejo, até che-gar o período chuvoso novamente. Depois, coma chegada das firmas, daRIMA, daValeRioDoce,mudou tudo. O pessoal muitas vezes não temágua, não tem onde criar o gado na solta, nãotem mais essa liberdade de estar apanhando amadeira, nem fazendo a roça onde quiser, con-forme era antes. Então, o que mais afeta a vidados geraizeiros é essa questão dos eucaliptos,das terras tomadas pelos eucaliptos. É a piorcoisa que existe, a gente discute, mas, infeliz-mente, não são todos que têm o conhecimentodisso para estar defendendo conosco.

Elmyr: Vendo a realidade na comunidadede Vereda Funda, quando eu conheci, quan-

do eu comecei a entender, no final da década de1970, ela era uma comunidade bem isolada, in-clusive daqui de Rio Pardo de Minas. A gentetinha transporte de Rio Pardo para Vereda Fun-da uma vez por mês. Para Salinas tinha maistransporte, mas a comunidade era muito isola-da. Lá tinha seu sistema de vida próprio e seproduzia de tudo: feijão, café, produzia bastan-te café, farinha, grande produção de farinha,muito boa, que era vendida em Salinas,Porteirinha e aqui mesmo em Rio Pardo.

No final da década de 1970 e no início de 1980,chegaram as firmas e foi plantado amonoculturado eucalipto. E como o plantio de eucalipto to-mou quase toda a terra da comunidade, na partealta, nas chapadas, praticamente tomou contade tudo. Aqui era uma região com muita água,inclusive tinha várias fabriquetas de cachaça, defarinha, tudo movido a água. O meu pai mes-mo tinha uma de farinha que era tratada comágua. E com o plantio do eucalipto, as águas nasnascentes começaram a secar e hoje a situaçãomudou toda: pouca produção de agricultura, asterras estão todas ressecadas, a situação de águamuito ruim.

Naverdade, o pessoal damaior parte domu-nicípio ocupava as terras, mas não fazia os

documentos. Naquela época não tinha orienta-ção ou necessidade de fazer os documentos. Opessoal registrava uma pequena área, mas, naverdade, as famílias tinham o domínio de umaárea muito maior, mas, no documento registra-do em cartório, cada família tinha muita poucaterra. Mas esse terreno era todo usado. Na

chapada, soltava o gado, colhia as frutas. Mas aío governo pegou essa terra até aonde as máqui-nas conseguiram passar. O governo pegou essaterra e repartiu com as reflorestadoras, como jáfalei. E essa terra passou a ser �terra do Esta-do�. A terra que era da comunidade, das pesso-as dali, passou a ser considerada �terra do Esta-do�. E aí o Estado foi fazendo os contratos dearrendamento de nossas terras para a planta doeucalipto, contratos com até 23 anos e foi feitoassim, desse jeito, e desde o ano de 2000 oscontratos vêm vencendo.

Do município de Rio Pardo, por exemplo, qua-se todo tem gente, muitas e muitas famílias, eesse arrendamento do Estado tem algumas ex-ceções. Só ali onde tinha muita serra, porque eradifícil , não tinha como o pessoal dasreflorestadoras estar trabalhando na serra. Alieles ficaram de fora, mas, aonde tinha terra dechapada...

A comunidade de Vereda Funda, desde quandoeu fiz o curso de formação de jovem emagroecologia, os técnicos do CAA começaram aacompanhar, a visitar a comunidade, e começa-ram a desenvolver alguns trabalhos e, nesse pro-cesso, que já vem de dez anos, a gente vem dis-cutindo qual a problemática ambiental da co-munidade, os problemas que impediam a co-munidade para ela se desenvolver. A gente des-cobriu que um dos principais problemas era afalta de terra, pouca terra para as famílias, umaquestão que não existia antes, e a degradaçãocausada pelo plantio de eucalipto.

Então, nos começos, definimos que essas áre-as onde tinha eucalipto, que passou a ser con-siderada �terra do Estado�, era, na verdade,�terra da comunidade�. O Estado tinha pega-do essas terras, essas terras tinham que voltarpara a comunidade e, com essa volta, aí as fa-mílias teriam condições. A comunidade é maisde cem famílias, teriam condições de estaremsobrevivendo. Esperamos o contrato que oEstado tinha com a firma vencer e aí a comu-nidade começou a fazer negociação. Um pou-co ainda antes de vencer fomos em uma reu-nião em Belo Horizonte, no ITER. Eles pe-diram um projeto, nós fizemos. Fomos decasa em casa, fizemos muitas reuniões. O CAAajudou. Vimos que poderia recuperar as ter-ras, produzir muito mais que o eucalipto pro-duz, recuperar as águas. Só então é que fomosdesconfiando que eles num queriam devolveras terras de volta. Eu achava que era um pro-cesso mais fácil, mas aí a gente viu que o Esta-

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Interior � Lajotas e brilhos � Chapada do Norte � MG

Elisa Cotta

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do num tinha esse interesse. Então fizemoso acampamento32.

Desde dois anos para cá a comunidade vemdiscutindo a fazer a luta para poder reaver

essa terra de volta, essa terra nossa que oGover-no deMinas arrendou para a Florestaminas, paraa Gerdau, e que ficou plantada de eucalipto de-pois que eles assinaram o contrato, contrato quejá terminou. Hoje tem um acampamento lá nachapada. Parte do pessoal que vivia nas grotas foilá para o acampamento. Uma boa parte das famí-lias que não foi para o acampamento está tam-bém participando da luta para ver se pega essasterras de volta, para poder ir recuperando a ques-tão ambiental, a questão das águas e poder tam-bém estar melhorando o sistema de produçãoaqui na comunidade. Estamos lá, não estamossozinhos. Estamos junto com o Sindicato, coma Via Campesina.

João Altino: Nossa questão não era muito dife-rente em Riacho dos Machados. Nós tambémestávamos ali encurralados pela Vale33. Nós co-meçamos a cuidar da grota, cuidar da terra, daágua, mas vimos que não dava conta. Para usar achapada não dava, porque tinhamuita imposiçãodo fiscal da firma. A gente pegava lenha porquenão tinha jeito. O fiscal reclamava a gente diretopara não pegar. Tinha hora que encontrava a gen-te com a lenha e recriminava. Junto com o CAA,nós fizemos uma proposta de um assentamentodiferenciado, namesma comunidade deCórregos,que a gente não conseguiu assim nenhum objeti-vo. Fomos no INCRA, no ITER, tivemos oapoio da CPT, do sindicato, a gente entrou naluta, mas não conseguimos. Ficamos acampadosna estrada, depois a gente foi convidado a partici-par da ocupação da Americana, que é nomunicí-pio de Grão Mogol, vizinho à comunidade, e aífoi onde a gente pulou, ocupamos a fazenda34. Ea gente está chegando a esse ponto, estamos as-sentados, não está tudo ainda deliberado, mas aterra já está desapropriada, parcelada, nós jáestamos plantando, criando, coletando. Já estamoschegando quase na reta final.

Anossa proposta, não de todos, é um assen-tamento agroextrativista, é uma agricultura

junto com a natureza, é um sistema de agricultu-ra consorciado comoCerrado, então por isso quefala agroextrativista. Extrativista por que nós ex-traímos as coisas do Cerrado, as plantas nativas �remédios, frutas � e é por isso que dá o nome deagroextrativista. Pois, a partir desse curso foi quea gente passou a conhecer ainda mais a natureza,a importância do homem na natureza estaremjuntos. Na verdade, a gente passou a respeitarmais a natureza em si, porque a gente fala meioambiente e tal. Muitas vezes a gente fala e a gentenum está levando para a prática. E, a partir dessemomento, a gente está de fato tentando viverjuntos, o homem e a natureza, a importância quetem o homem e a natureza juntos, que na verda-de sempre foi o nosso sistema, mas a gente numentendia.

Braulino: O CAA, para chegar nesta fase, foi as-sim: teve uma fase, essa historia do acompanha-mento mais direto junto às comunidades, pas-sando a fazer um trabalho que levamais seguran-ça na propriedade. Depois, começou com a ques-tão do diagnóstico da comunidade para se sabero que tem naquela comunidade, o potencial quetinha a comunidade. Aí, de uma propriedade secomeça para mais famílias. Então, em vez de fa-zer o trabalho em apenas uma propriedade, sefazia na comunidade, na associação, com gruposorganizados que tinham interesse. Foi onde co-meçou a crescermais, a aprender e a crescer.

Depois começamos a trabalhar em trêsmunicípi-os, em quatro, em cinco, e aí foi aumentando... Sesaiu das propriedades e começou a trabalhar comgrupos maiores, assim como se fosse ummicro-território. Primeiro,se trabalhava no preparo dossolos. Assim você ia até a questão ambiental. En-tão, a questão da produção vai nascendo muitoforte. E se você tinha que produzir, tinha quecomercializar. Então saiu a demanda dacomercialização, a gente tinha quemostrar o ou-tro lado, até que nasceu a cooperativa.

Desde o nascimento do CAA, batia muito forteque a Área (AEFA) tinha que ser não só de for-mação, ela tinha que ser auto-sustentável, pois,provavelmente, depois de um certo tempo, elanão teriamais financiamento. Ela tinha que expe-rimentar, produzir e ser auto-sustentável. Tam-

32 A comunidade contou com o apoio da Via Campesina para constituir o acampamento então denominado de�Mártires da Terra Prometida�, em alusão aomassacre ocorrido em Felisburgo.33 Florestas Rio Doce, então subsidiária da Cia Vale do Rio Doce e que era responsável pelas áreas de reflorestamentomonoculturais.34 Fazenda Americana. O INCRA desapropriou os 18.000 ha da fazenda da Floresta RioDoce após um longo processode negociação que resultou na elaboração de uma proposta de assentamento diferenciado.

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bém, nas propriedades, se tinha um produto or-gânico, como é que fica essa situação, se vai vendercomo? Aí foi nascendo essa discussão, chegaramtambém outros técnicos de cabeça mudada, elesentraramna discussão, começamos a visitar, a gen-te foi em várias partes por aí, visitando, experi-mentando esse negócio de comercialização.

Então nós fizemos uma rodada de discussãopara ver como começava: se por uma associ-

ação, por uma cooperativa. Por causa da legislaçãoa gente teve uma dificuldademuito grande e, nes-se ponto, era uma discussão política e tambémjurídica, até que chegou em um ponto: vamosfazer uma experimentação. Conseguimos umprojeto e resolvemos começar com uma micro-empresa. Foi sacrificado o nome de quatro agri-cultores, inclusive eu fui um deles. Dei o nome,criamos umamicro-empresa e saímos experimen-tando.Você pregava que oCerrado, ele é sustentá-vel, só que você precisa provar que ele é sustentá-vel, porque os produtos do Cerrado não erambeneficiados, eram vendidos in natura, todomundo vendia, mas ninguém agregava valores.

Durante dois anos funcionou como micro-em-presa, trabalhando com a produção de polpas.Esta foi outra fase, até que nasceu a cooperativa.No primeiro ano, nós produzimos 500 kg depolpa congelada em saquinhos de 100 gramas.Depois, atingimos cinco toneladas, 25 toneladase, no ano passado, quando inauguramos oficial-mente, atingimos 90 toneladas. Agora tem umaprevisão de chegar a 150, 200 toneladas. Hoje so-mos 700 famílias.

Foi um ponto muito importante para as comu-nidades. Primeiro você está conservando é o nos-so ecossistema.O nosso ecossistema está conser-vado e, ao mesmo tempo, você está produzindo,agregando valores. Isso é uma consciência parapoder discutir com esse modelo que está aí, sódestruindo, para você ter prova concreta. Hoje te-mos um capital de giro da cooperativa em tornode quase ummilhão de reais. Se ele estivesse emuma grande empresa, a exportação sairia toda parafora, o capital sairia todopara fora.Para vocêver, sóem Porteirinha, em um instantim atingimos essatonelada de frutas. Esse dinheiro foi levado para amão do agricultor pela mão do extrativista. O di-nheiro foi gasto na cidade. É o capital de giro quefica nas comunidades, por isso eu acho que a coo-perativa, ela é muito importante. Além se ser im-portante politicamente, você está agregando valorpara a questão ambiental, para o meio ambiente.Você está preservando o Cerrado, evitando a de-vastaçãodoCerrado.Você está tendo a experiência

de que você pode ir recuperando as áreas degrada-das, consorciando a produção comoCerrado.

Hoje, o CAA, junto com a cooperativa, conse-guiu criar uma rede nacional e internacional que agente trabalha comoobjetivodapreservação.Essaarticulação da rede do extrativismo tem outraslinhas também, como a questão da saúde alterna-tiva, das plantas medicinais do Cerrado. Tivemosa oportunidade de conhecer várias experiências devários biomas e isso é fundamental, essa oportu-nidade de sair do território para estar conhecendooutros sistemas, e aí você volta com uma visãomuito mais rica. Politicamente isso é muito rico.

Aparecido: O que nós estamos vendo hojeno Cerrado, principalmente aqui no Norte

deMinas e emoutras regiões, comonoMaranhão,no Piauí, regiões que a gente tem contato, a genteestá vendo o nosso Cerrado acabando. Aqui nanossa região, amonocultura do eucalipto, as gran-des empresas vêm desestruturando os sistemasde produção dos agricultores, os recursos natu-rais do Cerrado.Quando a gente chega emoutrasregiões, a gente vê a soja tomando conta tambémdas chapadas, acabando com essas riquezas tãograndes que nós temos. É uma realidade muitotriste. Os agricultores que estão perdendo o aces-so às áreas de Cerrado e, junto, vêm acabandocom os recursos naturais, com as águas, acaban-do comas nascentes e com as veredas, como jeitode trabalhar. Um grande desafio é pensar em al-ternativas de sobrevivência pra estas populaçõesfrente a todos estes problemas.

Uma contribuição que o CAA vem dando, junta-mente com outros aliados, e que tem mostradoresultado junto aos geraizeiros e também na pre-servação dos recursos naturais, é esse trabalho deresgate dos territórios geraizeiros, principalmen-te sobre as terras que foram tomadas pelas em-presas, retornar isso novamente para as comuni-dades, para que elas possam fazer uso.

Outro trabalho que o CAA tem incentivado é ouso dos recursos naturais como, por exemplo, odas frutasnativas, e que conta tambémcomoapoiodos sindicatos, da UNIMONTES, da UFMG eoutras instituições emovimentos. Isso vem crian-do uma consciência das populações de preservar oCerrado e, ao mesmo tempo, fazer uso daquilocomo uma estratégia econômica também. Então,hoje temum trabalho bastante amplo coma ques-tão dos frutos nativos, produção de polpas, deóleos, plantasmedicinais. Isso temdado uma con-tribuiçãomuito importante para essas populaçõespara que elas continuem vivendo noCerrado.

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Oscarino: Todo trabalho para começar é umpouco tímido. A adesão dos agricultores e

das agricultoras é um pouco baixa, mas quando agente vai fazendo as experiências, de que é possí-vel um outro tipo de produção, então começa ater mudanças. Veja um exemplo: a gente fez ex-periência de que os insetos não precisavam sercombatidos com veneno. Usamos extratos bio-lógicos, depois a gente mostrou que a própriaplanta precisa de outros animais, de outros inse-tos, dos vermes, e a gente foi mostrando na prá-tica que é melhor conviver com o inseto do quecom o veneno. O próprio consumidor está sa-bendodisso.Onosso tomate, a nossa alface, quan-do nós produzimos, ele é mais procurado, não étanto o valor nutritivo, mas é a questão do vene-no que a gente está evitando que o pessoal procu-ra mais.

Em Porteirinha, nós temos um contato socialmuito bom, do sindicato com o CAA. A gentevaloriza muitos os nossos parceiros, as lide-ranças, as associações. Nós aumentamos a pro-dução, produtos de boa qualidade. Não era maisa monocultura do algodão. Quando nós acha-mos por bem, tivemos a dificuldade nacomercialização. A cooperativa veio dar o su-porte político para o nosso produto, tanto naindustrialização quanto na comercialização, va-lorizando os agricultores que trabalham comprodutos agroecológicos. O acesso ao mercadofoi um avanço muito grande.

O agricultor hoje está sendo valorizado diantedesta extensão da cooperativa em parcerias comos sindicatos. Foi o maior avanço que nós tive-mos. A nossa semente crioula está sendo valori-zada, está sendo vendida por um preço muitobom. Graças a esse aprendizado, nós sabemosproduzir a nossa semente. Estamos valorizandoo nosso umbu. Este ano foi um avanço muitogrande com a entrega de 40 toneladas de matériaprima daqui. E não foi nem 20% do que temospossibilidade de produzir. O mesmo aconteceucom o maracujá nativo, que só o gado comia.Hoje nós estamos aproveitando. As mulheresaproveitammais. Enquanto cuida da casa, ela saie pega uma saca demaracujá e isso dá uma grandeajuda na agricultura da família. Esse dinheiro fi-cou na família, na comunidade.

Alvimar: Hoje eu vejo a grande abrangência doCAA, fato bastante positivo. A origem das gran-des lideranças que o CAA tem, veio das CEBs,que tinha espaços muito bons de formação comametodologia do ver, julgar e agir, dentro de umcontexto social unindo a fé e a vida. Eu fui um

grande defensor do trabalho na Tapera. Havia di-vergências entre os técnicos sobre a importânciada Tapera e hoje a gente percebe o quanto esteassentamento é modelo em tanta coisa, desde aquestão das sementes, articulando a produçãocom a educação. Tem sido uma referência comoum assentamento agroextrativista no Norte deMinas. Eu fico muito feliz com isso.

Percebo, de vez em quando, que algumas pessoasdeixam transparecer que não há reunião periódicapara troca de experiências. O pessoal questiona arelação com o dinheiro. Se não tem projeto, nãogarante uma presença mais constante. Se o CAAnão estabelecer as áreas, definir as prioridades,pode ser espelho de muitas críticas. Precisa terclareza sobre o momento de entrada e saída nacomunidade, observando os objetivos e metas,avaliando com a comunidade e dando assistênciaconstante. A entidade afastou da Catarina e hou-ve grandes críticas. Na Laranjeiras, emMirabelatambém. Por que os conflitos? Afastou sem dis-cutir os conflitos. Lá na Americana tem críticaquanto ao monitoramento dos projetos. O tra-balho fica restrito só ao grupo que aceita os prin-cípios e começa a priorizar.

Hoje eu percebo que houve grandedistanciamento entre CPT e CAA, talvez

pelo crescimento, dentro dessa troca de experiên-cia. O Norte de Minas tem muita religiosidadepopular, onde tem trabalho de CEBs, pasto-rais, aí o CAA encontra uma base boa. Por issotemos que caminhar juntos nesse projeto, cons-truir juntos.

Fazendo critica ao Estado, o CAA sempre foiuma referência na discussão de um outro mo-delo, sempre provocou outras discussões e pos-sibilidades além da produção. Nesse projeto derevitalização do São Francisco, vão surgir proje-tos e a CPT e o CAA precisam se articular paradiscutir com os agricultores. O nosso campoprecisa discutir o modelo de reforma agrária di-ferenciado do que está aí.

João Altino: O CAA está junto com a gentena discussão de querer a terra e como viver naterra, cultivar as plantas que são cultivadas etambém com o nativo, de ter muito cuidadocom as plantas nativas, o seu aproveitamento,as frestas onde elas estão. Então, a preocupa-ção maior que eu tenho hoje é com isso: lutarpor um pedaço de terra. A gente vê a voz dosjovens, até gente adulta, dizer que estudar em-prega. Mas a pergunta que eu fico fazendo éessa: emprego aonde?

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Eles falam que a cidade está crescendo. Na verdade, a cidade não está crescendo, está in-

chando, porque, com a chegada do agricultor, dojovem, saindo da roça por falta de terra para tra-balhar, ou falta de apoio para ficar na roça, a gentevê que a cidade está é inchando. Porque a cidade,quandocresce financeiramente, temcondições.Masir para a favela na cidade... Ela não está crescendo!O que eu mais preocupo hoje é a questão do ho-mem do campo e essa luta por uma terra. Temgente que tem medo de lutar por um pedaço deterra, mas, como, se não tem emprego para todomundo?Não tem governo nenhum que dá contade resolver essa questão do desemprego. É a reali-dade. Só vai resolver essa questão o dia que tiverum governo que lutar mesmo de fato para quetodo mundo que tem vontade de ter um pedaçode terra possa ter acesso a terra para trabalhar.

Outra coisa importante é esta contribuição, é essadivulgação que hoje tem oGrande Sertão, a coo-perativa, que está aí fazendo um trabalho coletivocom as frutas. Pega do agricultor, vende. Depoisreparte para os agricultores o dinheiro, não éatravessador. Pega os produtos, vende e depoisrepassa. Outra coisa importante é a questão doconhecimento, a luta para que o pessoal tenhavida digna no campo, a luta pela terra, ou porágua, ou por escola. Amaior dificuldade é o povoentender, conhecer, o povo ter interesse.

Para resolver todos os problemas é difícil e com-plicado, mas tem um ditado que diz: �água moleem pedra dura tanto bate até que fura�. A verda-de é não desistir, continuar fazendo o trabalho,mesmo diante de tanta crítica. Dizer que a gentesabe resolver os problemas 100%, nós sabemosque num vai ser resolvido, mas, aos poucos, agente vai conscientizando o pessoal. Voltandoumpouco atrás, quando eu estava fazendo o cur-so, a gente via o pessoal falando: �deve ter muitodinheiro, ir um ano na reunião para fazer o cur-so�. Mas é questão de não ter conhecimento. Eufui, hoje eu tenho uma participação na comuni-dade, represento a associação, a gente trabalha comum grupo de produção, participa da Pastoral daCriança, da Pastoral do Batismo, então, atravésdesses conhecimentos é que a gente vai engajandona luta. Então, a gente sabe, se a pessoa não co-nhece uma coisa é difícil se adaptar, vai só olhar aluta. Mas não podemos desistir, é muito difícil,mas a gente tem que continuar.

Aparecido:Ograndedesafio ainda é comoagente

pode difundir mais esse trabalho que vem sendofeito, poder fortalecer esse trabalho aqui, a partirdo local, e articular isso com outras redes maio-res, onde que a gente possa ter uma rede bastantefortalecida com esse trabalho com a agroecologia.A gente sabe que é um desafio muito grande. Éum processo, nem todo mundo consegue aderirao projeto. Então, o desafio aí é como a gentepode fazer essas articulações, estas experiênciasteremmaior impacto, para contrapor aos grandesprojetos que temos aqui na região, as grandesmonoculturas de eucaliptos, e a gente mostrarque o Cerrado está aí e que a população precisaviver do Cerrado. Temos tido um companheiroaí, oDr.Walter35, ele disse que só se vai conseguirsalvar o Cerrado o dia que a população que vivenele realmente conseguir se posicionar nesse sen-tido.

Então, toda essa articulação com as outras organizações, junto ao próprio governo fede-

ral, é muito importante. O Encontro dos Povosdo Cerrado, que aconteceu aqui noNorte deMi-nas, nos ajudou a visualizar um pouco dos pro-blemas que o Cerrado vem enfrentando. A feirafoi um momento muito rico, muito importante,onde que a gente reuniu basicamente quase todasas populações que vivem no Cerrado, tanto aquino Norte de Minas como em outras regiões doBrasil. O Encontro foi um grande passo e agoravem colocando na pauta a bandeira de luta pelamoratória do Cerrado, porque a moratória doCerrado é que vai dar a garantia pra que oCerradocontinue empé.OCerrado vem sendo destruído,e a gente pode garantir e barrar as grandes empre-sas e toda essa destruição que está sendo feita noCerrado. Acho que a Feira dos Povos do Cerradotrouxe à tona a bandeira. Agora ela está levantadae a gente tem que garantir e segurar essa bandeirapara que a moratória seja feita e a gente consigacolocar o Cerrado na pauta. Este foi um lugar deavanço.

Oscarino: O que mais mudou foi minha auto-estima. A gente vivia emuma época que o agricul-tor num tinha muito valor, que a gente não tavacom nada, a gente só fazia o que o governo que-ria, o �pacote do governo�. Aprendi a conhecermelhor a natureza, a maneira prática de ensinartambém. Por causa de todo esse conhecimento,nós tínhamosmuita rejeição. No caso da própriaEMATER, desculpa dizer, mas a princípio foidifícil entender nosso trabalho. Hoje eles já falam

35 CarlosWalter, geógrafo da Universidade Federal Fluminense e que assessora os extrativistas dos cerrados.

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com bons olhos, eles dizem: �nós temos umacolega que faz parte, foi uma diretora do CAA�.Hoje já tem muitos que querem sentar conoscopra viabilizar os trabalhos, tanto os produtores,quanto os consumidores. Hoje nós estamos co-lhendo os frutos, muitos querem os nossos tra-balhos. O próprio governo quer ingressar, teminteresse em trabalhar junto.

Dernivaldo : Para nós, do Quilombo doGurutuba, desde o início da descoberta nossa, oCAA e o sindicato de Porteirinha foram uns dosdescobridores. A aproximação iniciou quando elecomeçou a trabalhar noAssentamentoCalifórnia.Então, ele participou de todas as fases de nossapesquisa, na busca de nossos direitos e na organi-zação política que temos hoje. Ajudou no reco-nhecimento do Povo Quilombola Gurutubanoe não parou por aí: vem apoiando a produção,ajudando a organizar as comunidades na luta pelareconquista do nosso território, e tem feito umacompanhamento direto à associação.Todos pe-garammesmocomamor o trabalho. Agente senteque tem carinho muito grande com a gente.Semdúvida, é um dos parceiros mais importantes. Amelhora de vida do povo aqui se deve muito aesse esforço de ajudar a gente a acordar para osnossos direitos e conquistar as melhorias.

Rosely: Olhando o CAA, hoje e à distância,parece-me que muitas das tensões e ques-

tões foram enfrentadas. A organicidade, a partici-pação dos agricultores na gestão e na defesa �or-gulhosa� da missão e concepção ideológica doCAA se tornou realidade e é visível. Ao lado dis-so, o CAA conseguiu incorporar uma práticaidentificada com a biodiversidade ecológica e cul-tural local. Deixou de ser um �sujeito estrangei-ro� na relação com a população local.

Difundiu a proposta agroecológica com �alma deCerrado�, como diria Rubens Alves. Alguns fa-tores internos parecem ter contribuído com isso:a realização do primeiro seminário demetodologias participativas em 1988, que deuconsistência, aprofundou o conhecimento sobrea dinâmica econômica e política regional e produ-ziu um rico material coletivo sobre o projeto demetodologia e diagnóstico participativo; o pro-grama de formação dos jovens; a criação e conso-lidação da AEFA e da Cooperativa Grande Ser-tão; a defesa e produção de conhecimentos sobrea sustentabilidade de uma agricultura no Cerra-do; a prioridade pela atuação em áreas de assenta-mentos de RA e comunidades tradicionais, além

de outros fatores externos como a �caminhadade peregrinação doRio São Francisco �RioMor-to/povomorto�, realizada entre outubro de 1993e outubro de 1994; o avanço da luta pela terra epela reforma agrária na região; a participação naconstruçãodaRedeCerradoedaArticulaçãoPacari;a consolidação da rede de centros de tecnologiasalternativas em Minas Gerais e a construção daAMA36. Talvez nesse momento, após 20 anos decaminhada, a grande questão que se coloca émes-mo a de articulação em redes das diferentes açõesregionais de luta pela terra e na terra que existemna região, potencializando o esforço de se cons-truir uma real alternativa de desenvolvimento re-gional sustentável, como políticas públicas mu-nicipais, estadual e nacional.

Braulino: Eu olho assim o CAA. Num primeiro ponto, para mim, contribuiu demais.

Lá em casa eu produzo, não é grande a produção,mas eu preservo, coleto, crio sem uma grandedegradação. A propriedade é pequena, não temjeito, degrado um pouco porque a propriedade épequena. Você tem de sobreviver de dentro, maslá em casa não existe agrotóxico. Osmeninos fo-ram criados lá dentro, um bocado deles vive de lá,uma pequena produção. Temos uma consciênciaque os produtos são sadios. Eu não uso produ-to químico, agrotóxico. Faço um tipo de manejosilvipastoril. Eu num destruo a natureza. Consi-go sobreviver comessemanejo do pasto, em voltatemmuita degradação. Em casa tem uma preocu-pação de um manejo sem degradar, cuidado emtirar um pau, uma lenha, além da fauna. Se fossecomo eu, teria lá um monte de animal, e essa é aminha consciência, hoje eu tenho visão. Não pos-so nem comparar commeus filhos, eles têm umavisão política, uma visão tranqüila. Eles tambémpensam na vida daqui a 20, 50, 100 anos. Pensamde segurar a propriedade para um filho, um neto,um bisneto. Não é só para mim lucrar com ela eacabar com ela, para amanhã não servir paramaisnada, eu tenho essa consciência hoje e meus fi-lhos têm essa consciência também. Hoje eu soufeliz demais porque eles criaram uma educaçãodiferenciada.

Noutro ponto, a gente vê que o CAA tevevários estágios, ele teve num estágio bem

mais pé-no-chão, hoje ele está em um estagio demaior programação. Trabalhou muito para den-tro, trabalhava em muitos locais, aí eu vejo quedepois ele foi coagindo e hoje tem hora que setoma até choque quando se vê na abrangência em

36 ArticulaçãoMineira de Agroecologia.

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que está envolvendo. Ele está nesta questão daluta pelos territórios. Osmonitores-técnicos vãosendo muitos. Então você fica assim com o péatrás todomomento, você vai crescendo, vai en-volvendo, a gente não tinha o costume de traba-lhar com projetos do governo, e hoje tem essaligação, trabalhando em consórcio, eu fico pen-sando: é importante, mas a gente não sabe atéquando, o governo vai e volta toda hora...

Eu vejo o CAA com abrangência e assim essaentidade, politicamente, ela é respeitada, porqueeu estou vendo um trabalhão sério, sério e coe-rente, e ele é respeitado, e, mesmo com os adver-sários, nós respeitamos pelo trabalho.

O CAA tem muitos projetos, tem projetos deuma grande abrangência e dimensão, como é ocasodoP1MC37 . São recursos que devem ser apli-cados commuita transparência.Hoje ele temumaresponsabilidade de uma dimensão muito gran-de, um respeito nacionalmente, por exemplo, aministra Marina Silva (doMeio Ambiente) reco-nhece o CAA como um dos representantes dobioma Cerrado, por causa que a gente tem o res-paldo, a gente sabe do trabalho feito pelo Cerra-do, as mobilizações, as lutas que temos feito jun-tos pelo Cerrado, pela Caatinga, pelos biomasCerrado e Caatinga.

Hoje eu posso dizer que minha vida é o CAA,independente de ser diretor. Eu tenho o CAAcomo umpatrimônio, uma construção que apos-tamos todas as cartas em cima de uma constru-ção, vou continua até o final da vida. Eu voutrabalhar para isso.

IrmãMônica: Eu não sei se o nome �Centro deAgricultura Alternativa� diz tudo para mim. OCAA é um grande formador de opinião em pri-meiro lugar. E o fato de ir concretizando esse Paísé uma herança. Quando foi criado aquele núcleode formação dos filhos dos agricultores, que sãoaqueles que vêm levantando e mantendo essabandeira estendida até hoje, eu lembro muitodeles, o Zé Leles, o Cido, é uma turma que... Eunão queria esquecer de outros, mas é uma turmaque esta aí porque são frutos desse trabalho. De-pois, é até difícil de a gente padronizar ou per-guntar, o que ele é? Pois, em ummomento ele éformador de opinião, em outro ele é umagroecologista, depois é aquele que levanta a ban-deira do direito civil do cidadão em busca deme-

lhor qualidade de vida. É um grande agregadorde valores, de forças vivas. Uma agregação de va-lores distinta, pois a agregação de valores doCAA,ela vem da força viva que é o agricultor e o seumeio. Então isso, pra mim, me marca demais. Eele vem criando um corpo que é uma verdadeirarede, não só os agricultores de agroextrativismodo nosso querido Cerrado, que vem sendo quei-mado e ameaçado.

Os geraizeiros, os caatingueiros, tanta mu-lher agricultora, tantos jovens, tantos pais

de família. A questão da conservação dabiodiversidade que pesa tanto na constituição daformaçãodesenvolvida peloCAA.Então, ele, paramim, é um redentor, vamos assim dizer, dosvalores culturais e das políticas ambientais doNorte de Minas. E ele começou muito pequeni-ninho, como que uma pedrinha que se joga numpequeno lago e você vai vendo as ondas se mo-vendo, movendo, movendo. Era muito peque-nininho, tudo era muito pequeno, mas tudomuito consistente na filosofia de organização. Ea caminhada foi se abrindo e agregando valoresde tal forma que hoje a gente vê o CAA, não oCentro de Agricultura Alternativa como eu faleino início, mas como uma Rede que foi lançadapor muitas e muitas pessoas, entidades e ambi-entes: são as pessoas ligadas à educação, às uni-versidades e, principalmente, aos nativos da re-gião. Hoje nós temos o CAA entrelaçado na li-bertação dos quilombolas, entrelaçado nos valo-res culturais dos geraizeiros e caatingueiros, en-trelaçado com as políticas públicas regionais, en-trelaçado com a segurança alimentar, e só Deussabe o que é quando a gente fala segurança ali-mentar.

Eume alegrei muito hoje de ver que a Pacari estáentrelaçada com o CAA. Que é a saúde comple-mentar do meio ambiente e dos seus habitantes,do nosso querido Cerrado. É amaneira de valori-zar as plantas medicinais do Cerrado. Então, eu,sinceramente, se tivesse que dizer alguma coisa,eu diria: se for pra gente se separar ou ter que fazeruma seleção de valores, a gente ia entrar em con-flito. Porque a gente não sabe. A gente sabe queteve um começo, teve uma certeza da clareza deuma idéia, de uma filosofia de prática. Porém, agente não sabe até onde isso vai combinar. Agente sabe que isso está combinando em novasidéias, em um novo jeito da agricultura, um novo

37 Projeto UmMilhão de Cisternas � que vem sendo elaborado e executado por organizações que fazem parte da ASA�Articulação do Semi-árido.

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jeito de pensar o ser humano no seu habitat, nasua região, com o seu apostar na história de umpovo. Então, eu espero que o CAA continue sa-bendo que ele é o caminho, que não está só, quetemos muito a caminhar. Eu não falo do CAAseparado não. Eu já me sinto também CAA eassim são muitos.

Se eu pudesse dizer aqui uma figura, eu iriatomar Ben Hur, aquele que morreu lutando,o sangue da libertação aconteceu. Eu acredito queé uma briga muito forte que o Norte de Minasestá propondo, e está dando certo. Nós não va-mos vencer pela arma, mas nós vamos, sim, ven-cer pelo sentimento de fraternidade comoCerra-do, um solo de vida melhor, não tirando vida,mas proporcionando vida. É a Grande Sertão, éum duelo de um pequenino negócio com oagronegócio. O pequenino negócio de vida, por-que o pequenino negócio é você ser oagroextrativismo, o zelo comoCerrado, a preser-vação das nascentes, o respeito pela cultura tradi-cional, o cuidado com a pessoa onde ela nasceu evive. Quando eu faço esse raciocínio, eu choro,por queme dói muito quando eu vejo as nascen-tes dos rios secando, e os �desertos verdes�38 cres-cendo, ameaçando. Eu não tenho medo que aCooperativaGrandeSertão eoCAAnãovãoavan-

çar. Como religiosa eu digo: eles gritam contra adevastação provocada pelo deserto verde. Vamosfazer valer o nossoCerrado, cuidado,Deus quer asalvação do nosso chão.Não podemos abrir mãodessa cultura, desse entrelaço com toda essa ri-queza, um dia curvado ou sem curvar, esse deser-to verde vai ser derrubado pela sequidão que vaitrazer e o fogo que vai destruir,mas quem tiver umpunhadinho de água na raiz de uma mangabeira,na raiz de uma jaqueira, é que vai poder refrescareste calor ardente. Esse é um calormais ardente, oagronegócioesquentaosbancos internacionais como dólar, com o euro e a gente pergunta: onde estáa vida humana?Ela está na plantinha que se chamaextrativismo, que é um cuidado de viver com anatureza. Um dia esse povo vai pedir socorro deuma gota d�água e a gente precisa cuidar dessa gotad�água, que eles vão gritar socorro e não vãoencontrá-la. Cuidemos, mas cuidemos commui-to carinho com a pobreza, com a singeleza, comocantar dos pássaros, com o frescor da sombra deum pequizeiro, com o nosso Cerrado que faz anossa caixa d�água. A gente luta umano, dois anos,seis anos para construir uma história, mas a gentevai ficar na história, porque eumalino nosmeus 67anos e eu ainda não vi omal vencer o bem, mas obem sempre vence omal39.

38 Referindo-se às grandes extensões demonoculturas de eucalipto e pinus, também denominadas de �desertos verdes�.39 IrmãMônica termina cantarolando: CAA, CAA nos ajuda o cerrado salvar.

Referências

ALVES, Rubens �Campos e Cerrados�, In O Retorno eTerno: Crônicas, Campinas, Papirus, 1995.

D�Angelis Filho, J.S. �Políticas Locais para o �Dês-Envolvimento� no Norte de Minas: uma análise dasarticulações local & supralocal� Tese de Mestrado,

Universidade Católica de Temuco. Temuco, Chile, 2005.

Documento de avaliação primeiro mandato provisório.

ENRIQUEZ, Eugéne. �O vínculo grupal�, In:Psicossociologia - Análise social e intervenção. Org. Machado,MaríliaN.daM. et al., Petrópolis, RJ, Vozes, 1994, p.56 -69.

Estatutos Sociais do CAA, 1989.

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Pau de sebo � Festa do Rosário dos Homens Pretos de Minas Novas

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Avó e neto � Comunidade de Bem Posta � Minas Novas � MG

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UMAALIANÇADOSERTÃONORTE-MINEIROCOMOSPOVOSDOCERRADOEMDEFESADE SEUSTERRITÓRIOS

E

HELEN SANTA ROSA

Os dois eventos citados foram realizados esteano no Norte de Minas Gerais. Em comum, ariqueza da sociodiversidade norte-mineira ebrasileira, expressa nas partilhas de experiên-cias, lutas, articulações, debates, redes e pro-dutos. O grande tema em discussão foi o usoda biodiversidade, o destino de suasociodiversidade, ambas impactadas mortal-mente pela expropriação dos territórios, peloavanço acelerado do agronegócio no bojo deum projeto insustentável de desenvolvimen-to da agricultura brasileira, comprometendoo destino e a preservação do patrimônio ge-nético e cultural construídos secularmentepelas populações que abrigam, vivem e con-vivem nestes ecossistemas.

Esses dois encontros mostraram que, embo-ra os Cerrados brasileiros estejam caminhan-do rapidamente para o fenecimento, as popu-lações que aí vivem estão dispostas a impedir

m abril deste ano, seuNicolau, do povo Xakria-bá, levou para a I Feira daAgrobiodiversidade, reali-

zada em Porteirinha, castanha de Donato, co-lher de pau, calojinha, papagaio, sementes demilho e feijões de diversos tipos. No mês desetembro, Lorena, jovem artista, veio deGoiânia para Montes Claros, para participar doIVEncontro e Feira dos Povos do Cerrado. Delá, trouxe artesanato típico do Cerrado goiano,feito com sementes, frutos, pedaços de cascade coco e pigmentos naturais. Seu Epami-nondas, do município de Lassance, no I En-contro Norte-Mineiro de Agrobiodiversidadeparticipou, no Quilombo do Gurutuba, da ofi-cina sobre Populações Tradicionais eBiodiversidade. Néri Amaral, da aldeia LimãoVerde, município de Amambaí/MS, tambémdiscutiu as populações tradicionais no Encon-tro dos Povos do Cerrado.

�O Sertão é muita coisa, pensar no sertão é pensar emser muito,em ser tão..

Ser tão do sertãoSer da Caatinga, caatinga do sertãozão

Ser tão cheiroso feito o pequiSer tão lutador feito o povo Xacriabá, quilombola,

geraizeiro e caatingueiroSer tão biodiversidade...�

(Ser tão � Ana Amélia Cordeiro, apresentada no IEncontroNorte-Mineiro de Agrobiodiversidade �

Porteirinha, MG)

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A sala de receber � Comunidade Batieiro � Chapada doNorte �MG

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este biocídio, que significará o etnocídio des-sas mesmas populações. Oportunidades emque traçou-se uma ampla aliança, acreditan-do �estarmos em um momento crucial para os desti-nos dos Cerrados brasileiros e de suas populações�.Pois, ao lado do expansionismo do agronegóciosobre os Cerrados e áreas de transição com aAmazônia e Caatinga, também florescem cen-tenas de iniciativas de uso sustentável dosrecursos naturais. Iniciativas que não têm portrás as grandes corporações transnacionais,nem a bancada ruralista, nem sociedades deagribusiness, nem fartos recursos governamen-tais. São populações tradicionais, entidadespopulares e agroecológicas, ambientalistas,pesquisadores independentes e outros quequerem mostrar que é possível não tratar oCerrado comomero suporte de produção sujade mercadorias globais, mas sim em fonte deriqueza social, cultural, econômica e ecológi-ca permanente para os povos do Cerrado, osprincipais perdedores desse modelo. Para es-ses povos, o Cerrado é a sua casa, o seuhabitat, lugar de vida, não de morte. Comouma de suas principais bandeiras, propuseramuma imediata �Moratória para o Cerrado�, ouseja, �proibir de imediato qualquer desmatamentoque vise a expansão do agronegócio, até que se tenhaum projeto discutido com a sociedade civil organiza-da e com os povos que o habitam, com vistas ao con-trole maior no seu uso e ocupação, garantindo assimconservação do que resta do bioma�.

I Encontro Norte-Mineiro de Agrobiodi-versidade � �Toda vida que há no Cerra-do e na Caatinga�

OIEncontroNorte-Mineiro deAgrobiodiver-sidade reuniu no município de Porteirinha,entre os dias 27 e 30 de abril de 2005, 300participantes, incluindo representantesXakriabá, quilombolas, geraizeiros, caatin-gueiros, barranqueiros, vazanteiros e trabalha-dores sem terra e sem água, procedentes de37 municípios da região. O objetivo principalfoi fortalecer os espaços de diálogo e inter-

câmbio de experiências de uso e manejo dabiodiversidade, contribuindo para o reconhe-cimento e valorização da sociodiversidadepresente nos Cerrados e Caatingas do Nortede Minas Gerais.

A programação do encontro incluiu visi-tas a comunidades da região, trabalhos

de grupo e plenária, com ativa participaçãodos presentes. As visitas possibilitaram umadiscussão prática das diversas realidadesvivenciadas no Norte de Minas. Na Feira daAgrobiodiversidade, realizada no MercadoMunicipal de Porteirinha, cerca de 350 agri-cultores e agricultoras expuseram seus pro-dutos e sementes vindos da microrregião daSerra Geral e demais microrregiões do Nortede Minas. O intercâmbio de experiências esementes foi o ponto forte, junto com apremiação �Guardiões da Agrobiodi-versidade�, oferecida a um representante decada município presente. Apresentações cul-turais de artistas da terra deram o tom de va-lorização da arte e cultura, elementos impor-tantes da diversidade norte-mineira.

A violência aos direitos territoriais foi um dos te-mas mais levantados nos debates. Osguardiões da agrobiodiversidade externaramas seguintes denúncias e proposições na Car-ta de Porteirinha.

Carta de Porteirinha

Nós, membros de 37 municípios e comuni-dades norte-mineiras, Guardiãs daAgrobiodiversidade do Cerrado e da Caatin-ga, participantes do I Encontro Norte-Minei-ro de Agrobiodiversidade, e entidades deapoio às suas lutas, reunidos em Porteirinhaentre os dias 27 e 30 de abril de 2005, apósintercâmbio, oficinas, discussão em plenáriae visitas a comunidades tradicionais, acam-pamentos e áreas de assentamentos de refor-ma agrária, reafirmamos a riqueza culturalregional, fruto de uma ampla articulação das

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Gongadeira do Batieiro � Festa do Rosário dos Homens Pretos de Minas Novas � Minas Novas � MG

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diversidades, de seus modos de vida e deintegração com a natureza em suas expres-sões regionais � Cerrado e Caatinga, frente àsua desvalorização a partir da introdução domodo de produção capitalista centralizador econcentrador dos meios de produção eexcluidor de amplas parcelas da população dosbenefícios gerados pela sociedade, conduzin-do-as a uma condição de vida não condizen-te com a dignidade humana. Também reafir-mamos os direitos inerentes à vida em todosos seus aspectos, culturais, sociais, políticos,ambientais e econômicos e nos posicionamospara continuarmos a luta, a defesa e a con-quista desses direitos. Reafirmamos, ainda,que nos constituímos como defensores da sin-gularidade cultural regional em suas diversasformas de expressão, ou seja, como sertane-jos, geraizeiros, Xakriabá, quilombolas,caatingueiros, barranqueiros, vazanteiros etrabalhadores sem terra e sem água, no con-junto da humanidade.

Uma questão é comum a todas as comu-nidades presentes: a violenta agressão a

que têm sido submetidos os seus membrosdiante dos processos de territorialidade decada uma dessas comunidades. Diante daconstatação dessa realidade ultrajante, por-que submete cidadãos à perda de direitos, daterra, da condição de reprodução material esocial, bem como da riqueza cultural vivida,denunciamos:

� A empresa de reflorestamento Italmagnésioe seu proprietário de origem italiana, senhorTricanato, na região do Alto Rio Pardo deMinas, pela ampliação indiscriminada do plan-tio de eucalipto, destruindo o Cerrado, emregeneração, usado pelos membros das comu-nidades em suas estratégias de reprodução;pela apropriação de terras públicasinviabilizando a utilização coletiva e a pre-servação da agrobiodiversidade tradicional-mente manejada pelos geraizeiros dessa área;lavagem de notas fiscais para escoamento de

carvão nativo como carvão de eucalipto; acooptação da Justiça local pela empresa, quetem sistematicamente perseguido os membrosdas comunidades de Mocambo e Bom Jesusem seus conflitos jurídicos contra a referidaempresa, e, pela implantação de uma indús-tria de álcool e cachaça sem possuir nenhumpé de cana plantado, colocando em risco asfabriquetas da tradicional pinga norte-minei-ra e a possibilidade de reprodução de vidamaterial e social das comunidades dessamicrorregião;

� O cercamento do território ancestral da co-munidade quilombola de Brejo Grande, nomunicípio de Indaiabira, por advogadobelorizontino, Pedro Henrique Costa, que visaa especulação imobiliária com a terra que,constitucionalmente, deveria permanecercomo patrimônio da nação brasileira, emmãosdos quilombolas, bem como pelo trabalhoescravo forçado a que os legítimos donos daterra são submetidos;

� As ameaças e violências que os quilombolasde Brejo dos Crioulos e dos Gurutubanos têmsofrido por parte de especuladores imobiliá-rios que se dizem fazendeiros, desde que re-tomaram parcelas do território de acordocom o Artigo 68 dos Atos das DisposiçõesConstitucionais Transitórias e com a decisãoda Justiça de que a propriedade da terra sejacomprovada com título legal;

� As contínuas ameaças e perseguições polí-ticas às lideranças das comunidades e mem-bros das entidades comunitárias e sociais,militantes de movimentos de luta pela terra,geradas pelas empresas de monocultura deeucalipto, representantes e empregados deempresas vinculadas ao agronegócio;

� A articulação dos prefeitos de Alto Rio Par-do de Minas com o Governador do Estadode Minas Gerais para a expropiação de 750famílias de geraizeiros dos municípios deBerizal, Indaiabira, Rio Pardo de Minas, São

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João do Paraíso, Taiobeiras e Vargem Grandedo Rio Pardo, para a implantação da barra-gem de Berizal;

� As tentativas de maquiagem dos impactossociais e ambientais promovidos pelamonocultura do eucalipto através dacertificação florestal, como as que vêm ocor-rendo com a Plantar, VM Florestal, Gerdau,inclusive com a habilitação de projetos sub-sidiados pelo �Mecanismo deDesenvolvimen-to Limpo � créditos de carbono�;

� A carência de políticas públicas sociais deprefeituras municipais, impossibilitando o de-senvolvimento sustentável das comunidadese favorecendo a concentração de renda e depoder em mãos de aliados políticos;

� O descaso e morosidade do aparelhamentoestatal, federal e estadual, para a resoluçãodos conflitos agrários e para a implantaçãoda reforma agrária no Norte de Minas, comoo caso, dentre outros, do acampamento Al-vorada, em Pintópolis, que aí se encontra ins-talado desde 2001;

� A truculência na ação da Polícia Militar, porocasião do despejo de camponeses do MST,no acampamento de Eldorado dos Carajás,em Uberlândia, e o descaso e conivência doPoder Judiciário que concedeu habeas corpusao fazendeiro Adriano Chafik, comandante dachacina no acampamento Terra Prometida,em Felisburgo, em 20 de novembro de 2004.

Durante estes três dias vimos que aagrobiodiversidade presente nos siste-

mas culturais de produção, tradicionais eagroeocológicos, encontra-se sob ameaça pelaexpansão do agronegócio da monocultura deeucalipto e da criação do gado bovino que pre-tende atingir todos os rincões do sertão norte-mineiro. Remanescentes de Cerrado e Caatin-ga onde vivem estas populações estão sendopostos ao chão e transformados em carvão; aságuas estão sendo represadas ou sendo utiliza-

das intensivamente para a irrigação, contami-nando, secando rios e nascentes e expulsandomilhares de famílias de camponeses; as segui-das tentativas de comercialização de nossosprodutos culturais, como queijo, requeijão, fa-rinha, goma e aguardente, em outros centrosurbanos, como São Paulo e Belo Horizonte,são implacavelmente perseguidas pelos órgãosda Fazenda estadual e federal, pelos órgãos dedefesa sanitária e pela Polícia Rodoviária, queapreendem os ônibus, taxam de forma abusivae classificam, pejorativamente, nossos produ-tos como clandestinos.

Vimos também uma riqueza de experiências e de ações concretas que estão sen-

do conduzidas pelas nossas comunidades,pelas nossas organizações, que estão estimu-lando a preservação e o uso sustentável daagrobiodiversidade e dos recursos hídricos noacesso ao mercado, na alimentação saudável,na medicina preventiva e popular, no acessoà terra e na conquista de territórios expropri-ados pelos fazendeiros e empresasreflorestadoras, sinalizando que outro modode produção e de vida é possível, com a ga-rantia da segurança alimentar e da reprodu-ção material e social de nossas comunidades,nos levando a reivindicar aos poderes públi-cos municipais, estadual e federal as propos-tas que apresentamos a seguir:

Movimento dos Encurralados pela Monoculturado Eucalipto

1. Suspender o avanço da monocultura doeucalipto e promover a reconversãoagroextrativista dos terrenos devolutos queforam arrendados de forma criminosa peloGoverno do Estado deMinas Gerais aos gran-des grupos econômicos associados ao carvãoe celulose, transformando estas áreas em uni-dades de conservação de uso sustentável ebeneficiando as famílias geraizeiras sem terraou com pouca terra que vivem em seu redor;

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2. Penalizar imediatamente as empresasreflorestadoras responsáveis por crimesambientais e sociais no sentido de reparar osdanos provocados e introduzir medidas deconservação dos solos, das águas e da vege-tação nativa;

3. Suspender o fornecimento de crédito pú-blico destinado ao fomento da monoculturado eucalipto, entre eles o do Pronaf Flores-tal, que está sendo estimulado pela Emater,IEF, Banco do Nordeste e Banco do Brasil,com aquiescência da Secretaria deBiodiversidade e Florestas do Ministério doMeio Ambiente;

Movimento pela Reapropriação de Territórios dosQuilombolas do Norte de Minas Gerais

4. Promover a identificação, o reconhecimen-to e demarcação de territórios de dezenas decomunidades quilombolas que vivem nas re-giões da baixada sanfransciscana e nas áreasde gerais no Norte de Minas;

5. Promover a desapropriação imediata dasfazendas que estão no interior dos territóriosdas comunidades quilombolas de Brejo dosCrioulos e dos Gurutubanos;

6. Promover ações imediatas de políticas afir-mativas que garantam os direitos humanosbásicos, como o acesso a água, energia, ali-mentação, educação diferenciada, infra-estru-tura social e produtiva;

Movimento de Luta pela Terra

7. Destinar recursos para a reforma agrária,agilizando os processos de desapropriação eimplantação de assentamentos rurais, bene-ficiando imediatamente as cerca de 5.000 fa-mílias sem terra acampadas no Norte de Mi-nas;

8. Destinar recursos para dotação de infra-estruturas sociais (entre eles o para abasteci-mento de água nas parcelas familiares), cré-

ditos produtivos e contratação de assistênciatécnica e social para todos os assentamentosde reforma agrária do Norte de Minas;

Movimento Indígena

9. Ampliar o território do povo Xacriabá, in-corporando todas as famílias de desaldeados;

10. Implantação do ensino superior indígenae garantia de reserva de vagas e condições deestudo nas universidades da região, entre elasUFMG e UNIMONTES;

11. Garantir o acesso a projetos de promoçãosocial, cultural, ambiental e da segurança ali-mentar que beneficiem a comunidadeXacriabá como um todo;

Agricultura Familiar, Agroecologia e SegurançaAlimentar

12. Reconhecer a diversidade cultural queconstitui a agricultura camponesa e indígena,valorizando os seus saberes, os seus produ-tos culturais, suas estratégias agroalimentares,contextualizando a educação escolar, os pro-gramas de acompanhamento técnico e de se-gurança alimentar;

13. Fortalecer o processo de valorização denossas sementes e mudas, apoiando o proces-so de melhoramento participativo e de inter-câmbio entre as comunidades de agricultorese populações tradicionais, com a revisão dalegislação que permitiu a legalização de umaforma vergonhosa das sementes transgênicas;

14. Promover o desenvolvimento da agroe-cologia nas unidades de ensino e pesquisa daUFMG, UNIMONTES, Epamig e Embrapa,inserindo os movimentos sociais e ONGs emseus projetos e programas;

15. Apoiar ações que dêem visibilidade às ex-periências, garantindo recursos para visitas eintercâmbio de experiências entre as comuni-dades, assentamentos, estudantes, professo-

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res e técnicos de instituições governamentaise não-governamentais;

16. Apoiar o desenvolvimento de programasde convivência com o semi-árido, envolven-do organizações de agricultores familiares,ONGs e instituições de pesquisa e de ensino;

17. Desburocratizar o acesso aos créditos,com o financiamento de projetos que aten-dam a demanda das famílias de agricultores eagricultoras;

18. Promover o desenvolvimento e aprimo-ramento de experiências de uso sustentávelda biodiversidade (frutos do Cerrado e Caa-tinga, plantas medicinais e oleíferas);

19. Promover o aprimoramento da produçãoartesanal, garantindo a qualidade e manten-do as suas características culturais, adequan-do a legislação sanitária e fiscal e viabilizandoo acesso aos mercados locais e dos centrosurbanos;

20. Apoiar programas populares de saúde va-lorizando a utilização de plantas medicinais ea alimentação sertaneja, estimulando a cria-ção de farmácias vivas;

21. Que a Segurança Alimentar e Nutricionalse constitua como uma política pública per-manente e unificada, que não fique à mercêde vontades políticas do Poder Executivo, àexemplo do que vem acontecendo com o PSAe Prosan, ou ações pouco transparentes comoo Minas Sem Fome, gerido pela Emater;

22. Que o programa de Segurança Alimentarda Conab seja fortalecido e ampliado;

Sobre a revitalização do Rio São Francisco

23. Que o projeto de transposição do Rio SãoFrancisco seja imediatamente cancelado, porentendermos que o mesmo não resolverá osproblemas reais de acesso à água da popula-ção nordestina, pelo contrário, atenderá aosinteresses dos mesmos grupos que sempre se

apropriaram das políticas públicas construídaspara a região;

24. Que a revitalização do Rio São Franciscose apóie no investimento nas populações queaí vivem, construindo com elas os projetosque melhorem suas condições de vida e demanejo dos recursos, e que seja revisto omodo de ocupação e uso dos Cerrados pelosconglomerados econômicos associados aoagronegócio como a soja, eucalipto, café ecana.

IV Encontro e Feira dos Povos do Cerrado� �Cuidadores do território, da cultura eda biodiversidade�

Moratória do Cerrado � proibir qualquerdesmatamento que vise a expansão do

agronegócio, até que se tenha um projeto dis-cutido com a sociedade civil organizada e comos povos que o habitam, com vistas ao con-trole maior dos usos e conservação do bioma.Esta foi a principal reivindicação dos partici-pantes do IV Encontro e Feira dos Povos doCerrado, realizado em Montes Claros de 14 a18 de setembro de 2005. Com o tema central�Povos do Cerrado: cuidadores do território,da cultura e da biodiversidade�, várias ativi-dades possibilitaram a discussão das grandesproblemáticas sentidas pelas populações quehabitam o Cerrado brasileiro.

12 oficinas debateram os temas: Transposiçãoe Águas do Cerrado; Política Nacional de Plan-tas Medicinais e Fitoterápicas; Populações Tra-dicionais, Biodiversidade, Gênero e Preserva-ção do Cerrado; Agroextrativismo, Redes Soli-dárias de Comercialização e Certificação; So-berania Alimentar, Segurança Alimentar eNutricional, Cultura e Culinária do Cerrado;Educação Contextualizada e Ambiental, Ter-ritório e Cultura; Estratégias de Comunicaçãona Luta pela Conservação e Uso Sustentáveldo Cerrado; Agroecologia e Reforma Agráriaversus Agronegócio; Impactos Socioambientais

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no Cerrado: Monoculturas, Carvão e TrabalhoEscravo; Artesanato do Cerrado: Geração deRenda e Identidade Cultural; Interpretação Pic-tórica do Cerrado: Produção de Pigmentos deUtilização de Suportes Alternativos, e, Cons-trução de Grandes Barragens no Cerrado.

Participaram cerca de 1.200 pessoas. Represen-tantes das populações que habitam o bioma.Indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco,geraizeiros, raizeiros, extrativistas, vazanteiros,sem terra, representantes das populações tradi-cionais dos 12 estados que extraem do Cerradosua subsistência se reuniram em Montes Clarospara um grande momento de intercâmbio e tro-ca de experiências, denúncia e articulação delutas. A ministra doMeio Ambiente, Marina Sil-va, que pela segunda vez veio a Montes Claros,atendendo pedido dos agricultores e agricultorasda região, participou de mesa política, oportu-nidade em que recebeu a Carta de Montes Cla-ros, construída durante as oficinas e trabalhosde grupo, contendo denúncias e propostas parao uso sustentável do Cerrado brasileiro.

A Feira dos Povos do Cerrado, realizadade 16 a 18 de setembro, reuniu toda a

diversidade de culturas e de produtos extraí-dos do Cerrado. Além da venda dos produ-tos, possibilitou maior visibilidade e promo-ção das iniciativas de uso sustentável do Cer-rado brasileiro, mostrando as diversas formaspossíveis de utilização.

O Grito do Cerrado foi o momento no qualos participantes levaram para as ruas todasas denúncias e preocupações quanto à reali-dade do Cerrado brasileiro. Momento dealertar a sociedade brasileira sobre o crescen-te processo de degradação do Cerrado e aameaça aos seus povos, e para a urgência naimplementação de ações voltadas para a con-servação e uso sustentável do bioma.

A Carta de Montes Claros, elaborada duranteo IV Encontro/Feira, propõe uma reflexão ao

poder público e sociedade em geral quanto opotencial do Cerrado brasileiro e à ausênciade políticas de conservação. Explicita o cla-mor dos povos do Cerrado Brasileiro.

Carta de Montes Claros

Nós, membros dos povos dos Cerrados,cuidadores do território, da cultura e da

biodiversidade, participantes do IV Encontro/Feira dos Povos do Cerrado, reunidos emMon-tes Claros, Minas Gerais, de 14 a 18 de setem-bro de 2005, após o intercâmbio, oficinas, dis-cussão em plenária e visitas a comunidades tra-dicionais, acampamentos e áreas de assentamen-tos de reforma agrária, reafirmamos, através daCarta de Montes Claros, a riqueza cultural dosCerrados, fruto de uma ampla articulação dasdiversidades de seus modos de vida e deintegração com a natureza frente à sua desvalo-rização a partir da introdução do modo de pro-dução capitalista centralizador e concentradordos meios de produção e excluidor de amplasparcelas da população dos benefícios geradospela sociedade, conduzindo-as à uma condiçãode vida não condizente com a dignidade huma-na. Também reafirmamos os direitos inerentesà vida, em todos os seus aspectos, culturais,sociais, políticos, ambientais e econômicos, enos posicionamos para continuar a luta, a defe-sa e a conquista desses direitos.

Os Cerrados brasileiros se constituem numafisionomia de savana única, portadora de 5%da biodiversidade do planeta. Essa diversi-dade é condicionada por sua posição centralno continente sul-americano, colocando-o emcontato com os principais biomas brasileirose seus domínios � a Floresta Amazônica, aMata Atlântica, a Caatinga, o Pantanal, asMatas de Cocais do Maranhão e Piauí. Se con-siderarmos todas essas áreas de transição eainda as ilhas de Cerrado na Amazônia(Amapá, Roraima e Pará), chegamos a umtotal de 315 milhões de hectares, ou 37% dasuperfície de nosso país, onde vivem mais de

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Aventurando-se na cheia � Rio Araçuaí �Minas Novas �MG

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37 milhões de pessoas. Há que considerar,ainda, que o Cerrado é o grande reservatóriohídrico onde nascem e se alimentam as prin-cipais bacias hidrográficas sul- americanas. Esão as suas longas e planas chapadas as áreasde recarga que conformam esse reservatório.

Ao longo de 12.000 anos de ocupação hu-mana, essa diversidade ecológica propi-

ciou a diversidade de modos de vida e de es-tratégias de uso dos recursos e de convivên-cia com a natureza. Essa sociodiversidade estárepresentada em nós, povos dos Cerrados, ca-racterizados pelo agroextrativismo: popula-ções indígenas, quilombolas, geraizeiros,veredeiros, quebradeiras de coco, vazanteiros,chapadeiros, varjeiros, retireiros, pantaneirose diversas outras identidades locais.

Queremos afirmar que, por tudo isto, os Cer-rados são ricos e não podem estar subordina-dos à simples lógica mercantil contida na no-ção de agronegócio. Para nós, o valor dosCerrados é, antes de tudo, o valor da vida detodos os seres e elementos que o constituem,que nele habitam e que dele dependem: ho-mens, mulheres, os bichos, as plantas, a ter-ra, as águas, os minerais.

Depois da destruição da Mata Atlântica noBrasil, é sobre os Cerrados que pesa o papelda continuidade da produção de commoditiesbaratas para alimentar a desigualdade do sis-tema mundial de produção de mercadorias ecapitais.

Hoje, nossas populações se encontram lite-ralmente encurraladas pela apropriação daschapadas pelos latifúndios produtivos doagronegócio, que não só concentram poder eriqueza como desestabilizam os ciclos e flu-xos ecológicos que eram sustentados pelabiodiversidade e pela função de caixa d�águaexercida pelas chapadas. Como unidade eco-lógica fundamental para a reprodução dosmodos de vida e produção das populações dosCerrados, as chapadas eram e são áreas de uso

comum, ricas em recursos do extrativismo,cujo manejo tradicional propiciou a sua con-servação e uso sustentável durante séculos.

Estamos, pois, diante do confronto de doismodelos de uso dos recursos naturais nosCerrados:

1. O dos povos dos Cerrados, que maneja osrecursos naturais conservando a biodivers-idade e a água, fundamentais não só para nóscomo para toda a humanidade e o planeta,que sabe que a sobrevivência de todos e decada um depende da conservação da fertili-dade natural da terra;

2. O do agronegócio, que beneficia poucos,sendo que a maioria sequer habita a região eque, exatamente por isso, não respeita os lu-gares, sua natureza e sua cultura, colocandoem risco todo esse patrimônio natural e cul-tural.

Enquanto sujeitos sociais que fazem dosCerrados seu lugar de viver e existir, nos

sentimos responsáveis e com autoridade paradizer não à grilagemde terras, à etnobiopirataria,à contaminação de nossa gente e da água detodos, ao processo de modernizaçãohomogeneizante, à erosão dos solos e aoassoreamento dos rios, e reivindicamos um am-plo processo de diálogo entre sociedade e Esta-do onde, desde já, assumimos nosso compro-misso de contribuir para garantir, ao conjuntoda sociedade brasileira, a segurança alimentar,a conservação da biodiversidade para a fertili-dade dos solos, além de sermos verdadeirosguardiões da água, contribuindo, assim, para asustentabilidade social, cultural e ambiental.

É no sentido de democratização das políticaspúblicas e reconhecimento das especificidadesdos modos de vida diferenciados, mesmo en-tre nós, que defendemos uma moratória queimpeça a abertura de novas áreas peloagronegócio nos Cerrados, até que se tenhaum plano de conservação e uso sustentável eum modelo de desenvolvimento não subor-

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dinado a interesses externos e de gruposoligárquicos. Que este modelo incorpore e sealicerce em uma noção de sustentabilidade,enraizada nas nossas territorialidades,fortalecedora e potencializadora dos modosde vida e de produção daqueles que não con-seguem existir sem os Cerrados e são os ver-dadeiros guardiões de toda sua riqueza eco-lógica e cultural.

Nesse sentido, nós, povos do Cerradodirigimo-nos às autoridades e órgãos

competentes dos poderes públicos municipais,estaduais e federais, para reivindicar:

1. Moratória para todo desmatamento asso-ciado à expansão do agronegócio nos Cerra-dos brasileiros até que se elabore, com a par-ticipação ativa da sociedade civil organizadae dos povos dos Cerrados, um plano de con-servação e uso sustentável dos Cerrados;

2. Mudança na política econômica do Gover-no Federal de incentivo aos monocultivos e àmercantilização da água (o hidronegócio);

3. Mudança da legislação de acesso e uso dosrecursos hídricos, inclusive com a elaboraçãode leis municipais de iniciativas popularessobre o patrimônio hídrico;

4. Mudança na política siderúrgica, que sus-tenta o monocultivo de eucalipto e ocarvoejamento;

5. Maior rigor na fiscalização sobre mono-cultivos e grandes projetos implantados emárea de Cerrado;

6. Imediata paralisação do processo de trans-posição do Rio São Francisco, seguida pelapromoção de um amplo debate público sobreo tema;

7. Estímulo à adoção de alternativas energéticas,de baixo impacto ambiental e social;

8. Garantia de acesso das populações tradi-cionais à água e demais direitos básicos, como

saúde, saneamento e habitação;

9. Formulação e implementação de políticaspúblicas que garantam a inclusão social daspopulações tradicionais;

10. Regularização fundiária dos territórios daspopulações tradicionais em área de Cerrado;

11. Incentivo público à agricultura familiar,com especial atenção para a produçãoagroecológica e agroextrativista;

12. Apoio à consolidação das experiências deagroecologia e agroextrativismo no Cerrado,por meio de políticas públicas de assistênciatécnica, crédito e acesso a mercados;

13. Fortalecimento e valorização das feiras emercados, como incentivo à produção ecomercialização local;

14. Inserção de produtos agroecológicos eagroextativistas na merenda escolar;

15. Incentivo à preservação de sementes cri-oulas;

16. Incentivo à recomposição de matas ciliarese à adoção de técnicas de conservação do soloe da água;

17. Desenvolvimento de pesquisas sobre oturismo, que permitam desenvolver critériosde sustentabilidade ambiental e social à ati-vidade, reduzindo especialmente os seus im-pactos sobre as populações tradicionais;

18. Promoção da capacitação de grupos co-munitários sobre o conteúdo da Medida Pro-visória 2186-16, relativa ao acesso àbiodiversidade e aos conhecimentos tradici-onais associados, com o uso de metodologiasparticipativas e de linguagem acessível;

19. Realização de seminários, com ampla par-ticipação de representantes comunitários,para discutir o projeto de lei que irá substituira Medida Provisória 2186-16;

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20. Participação de representantes de gruposcomunitários, com direito a voto, no Conse-lho Nacional de Gestão do Patrimônio Ge-nético;

21. Retomada, urgente, da tramitação da Po-lítica Nacional de Plantas Medicinais eFitoterápicos no Congresso Nacional;

22. Garantia de ampla participação de repre-sentantes comunitários na elaboração da Po-lítica Nacional de Plantas Medicinais eFitoterápicos;

23. Criação do Comitê Nacional de PlantasMedicinais e Fitoterápicos, que irá monitorara implementação da Política Nacional de Plan-tas Medicinais e Fitoterápicos, com amplaparticipação de representantes comunitários;

24. Garantia do acesso à informação atravésde veículos de comunicação, adequados à re-alidade das comunidades (rádios comunitári-as, jornais, panfletos e outros) e a diversifica-ção das estratégias de comunicação;

25. Promoção de campanhas de conscien-tização e sensibilização da opinião públicabrasileira sobre a importância ecológica doCerrado e a riqueza de sua sociodiversidade;

26. Promoção de uma educação contextua-

lizada (para e no Cerrado), alicerçada numaperspectiva do território e voltada à criaçãode autonomia dos sujeitos;

27. Inclusão da perspectiva de gênero nas po-líticas públicas dirigidas às populações tradi-cionais no Cerrado;

28. Fortalecimento das organizações de mu-lheres;

29. Formação de educadores e educadoras docampo e da cidade;

30. Financiamento da educação do campo;

31. Promoção do resgate e valorização da cul-tura e costumes dos Povos do Cerrado;

32. Fortalecimento das organizações sociaisatuantes no Cerrado e do Encontro e Feirados Povos do Cerrado, como espaço de maiorexpressão da diversidade sociocultural, deintercâmbio e articulação política em favorda conservação e uso sustentável do bioma.

33. Transformação do Cerrado e da Caatingaem patrimônio nacional, a exemplo da Flo-resta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica,a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense ea Zona Costeira (§ 4º, Art. 225 da Constitui-ção Federal), a fim de garantir a sua conser-vação e uso sustentável.

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Irmã � Comunidade São Vicente � Minas Novas � MG

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PRODUÇÃOSUSTENTÁVEL:

P

DONALD SAWYER

de rápida descaracterização do Cerrado.

Como se sabe, nesse bioma vivem comuni-dades extrativistas, indígenas, quilombolas ede pequenos produtores agroextrativistas,dentre outras que têm efetivamente conser-vado grandes áreas naturais por gerações egerações. Para essas populações é vital man-ter em pé a fonte do seu sustento. Asquebradeiras de coco babaçu, por exemplo,em sua tarefa diária de coleta, vigiam essaspalmeiras e impedem a sua derrubada.

A expansão da fronteira agrícola é anta-gônica à atividade extrativa, uma vez que

necessita de substituição completa da cober-tura vegetal. Por isso, a pequena produção fa-miliar e o extrativismo são, por excelência, ali-ados da conservação e celebram a diversida-de da vida no Cerrado. Mais do que formasdiferenciadas de uso do solo, são práticas cul-turalmente enraizadas nas quais estão conti-dos conhecimentos sobre os recursos da faunae da flora.

Os saberes tradicionais são produzidos de

ressionada pela velocida-de com que a paisagemdo Cerrado vem se con-vertendo em áreas comfinalidades agrícolas, a

sociedade brasileira começa a discutir estraté-gias para conservá-lo. A solução clássica temsido criar áreas protegidas federais, estaduais,municipais e particulares. Essa solução, alémde cara, isoladamente tem-se mostrado inefi-caz. Afinal, exige fiscalização constante e con-serva apenas as partes mais expressivas de de-terminada região.

Na última década, essa visão tem se amplia-do, de forma a considerar as unidades de con-servação e seu entorno. Procurando tornarparceiras as populações que vivem nos arre-dores, tem-se empreendido uma série de ini-ciativas, que incluem educação ambiental,convite à gestão compartilhada, implantaçãode corredores de biodiversidade e apoio a ati-vidades produtivas sustentáveis. Mesmo as-sim, essas estratégias continuam focalizandoespaços geográficos restritos numa realidade

uma estratégia de conservação

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forma coletiva, com base em ampla troca deinformações, e transmitidos oralmente atra-vés das gerações. Junto ao acervo de plantas,animais e minerais coexistem processos com-provados pela tradição de uso desses recur-sos. Isso constitui um patrimônio cultural ecientífico de grande relevância que precisa serigualmente conservado.

Estimular e valorizar o uso sustentável daagrobiodiversidade do Cerrado constitui,

portanto, estratégia fundamental. O Progra-ma de Pequenos Projetos Ecossociais (PPP-Ecos) tem se dedicado a apoiar iniciativas deconservação voltadas para o desenvolvimen-to de meios de vida sustentáveis no bioma.Por meios de vida sustentáveis entendem-seas formas de produção e de geração de rendacapazes de conciliar a conservação ambiental,o desenvolvimento socialmente eqüitativo ea revalorização cultural do conhecimento tra-dicional.

Além de beneficiar diretamente as populaçõespobres e marginalizadas, a concretização demeios de vida sustentáveis estimula a perma-nência dos pequenos agricultoresagroextrativistas no campo, criando-se umasituação alternativa à tradicional migraçãopara as cidades ou para novas fronteiras agrí-colas. Essas populações tendem a se tornar�guardiãs� do Cerrado, porque são as primei-ras a sofrer os impactos de sua degradação.

Em seus dez anos de atividades no bioma, oPPP-Ecos apoiou 156 projetos ecossociais,que combinam a conservação de ecossistemase a geração de renda monetária e não-mone-tária, para alcançar maior qualidade de vida esegurança alimentar e nutricional. Cerca de100 dessas iniciativas dizem respeito a pro-dução e comercialização de produtos agríco-las e extrativos.

Uma das lições aprendidas pelo PPP-Ecosrefere-se à necessidade de facilitar acomercialização da produção agroextrativista,

como forma de estimular a sustentabilidadeeconômica nas atividades apoiadas. Algunsprodutos gerados em 20 desses projetos cres-ceram em importância nas localidades em queestão inseridos, ganhando, em alguns casos,mercados mais longínquos. Representam umapequena vitrine das possibilidades que o Cer-rado tem a oferecer.

A esperança é de que esses produtos sirvampara encorajar outros empreendimentos a per-correrem o mesmo caminho, em busca de ummodelo mais sustentável para o Cerrado, comaumento da renda, profissionalização das or-ganizações de pequenos produtores e, espe-cialmente, ampliação dos espaços protegidos.

Organizações de produtores do Norte de MinasGerais �

Cooperjap

A força do extrativismo do pequi

Japonvar, no Norte de Minas Gerais, orgu-lha-se de ser a capital nacional do pequi.Nas matas da região, além da grande quanti-dade de pequizeiros, encontram-se condiçõespropícias para a produção de frutos superio-res em qualidade da polpa, textura, coloraçãoe sabor. Antigamente todo o pequi era extra-ído e comercializado in natura. Visando valo-rizar e diversificar a produção, a Cooperativados Produtores Rurais e Catadores de Pequi(Cooperjap) está produzindo pequi em con-serva.

Cerca de 250 famílias, em 30 organizações deprodutores, entre elas a Associação dos Peque-nos Produtores Rurais da Cabeceira doMangai(Aprocam), participam do empreendimento eprocessam o pequi em núcleos comunitáriosde despolpa. Com isso, o extrativismo está setransformando na principal fonte de renda dosprodutores locais. Os produtos têm uma gran-de aceitação no mercado e estuda-se a expor-tação para Estados Unidos e Alemanha.

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92 REVISTA VERDE GRANDE 3

Fachada � Expressão de apreço e devoção �Minas Novas �MG

Elisa Cotta

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93REVISTA VERDE GRANDE 3

Contato:

Cooperativa dos Produtores Rurais eCatadores de Pequi (Cooperjap)Tel.: (38) 3231.3137 / 9307 (Adilson)E-mail: [email protected]

Movimento do Graal no Brasil

Cesta biodiversa

Amarca Chico Fulô foi desenvolvida paraa comercialização de produtos gerados

nas comunidades urbanas e rurais dos muni-cípios de Buritizeiro e Pirapora, no Norte deMinas Gerais. Essas comunidades produzemuma extensa lista de itens da �Cesta de Pro-dutos do Cerrado�, que dá nome ao projetodesenvolvido com apoio do PPP-Ecos.

Esta lista é composta por doces, geléias, lico-res, polpada, doce em barra, paçoca, compo-tas, bombons e panetones, que utilizam emsua composição frutos do Cerrado comojatobá, murici, buriti, cabeça-de-negro,gravatá, ananás, cagaita, mangaba, umbu.

O trabalho é coordenado pelo Movimento doGraal no Brasil, que tem por objetivo a cons-trução da soberania alimentar dos pequenosprodutores da agricultura familiar, além depromover a economia solidária e incentivar ouso sustentável do Cerrado.

Contato:

Movimento do Graal no BrasilRua 21 de abril, 1393CEP 39280-000 � Buritizeiro � MGTel.: (38) 3742.2224E-mail: [email protected]@intepira.com.br

Minas Sempre-Viva

A guinada empreendedora

As sempre-vivas, flores típicas dos campos rupestres brasileiros, têm sofrido ex-

portação descontrolada. Visando encontrarformas de conservá-las, a Fundação Serra doCipó desenvolveu, a partir de 1998, o projetoMinas Sempre-Viva. Iniciou-se, dessa forma,um trabalho com a comunidade de Galheiros,em Diamantina, composta por 44 famílias co-letoras, no entorno do Parque Nacional dasSempre-Vivas.

Em vez de apenas extraírem e venderemas plantas aos atravessadores, essas fa-

mílias começaram a produzir o seu próprioartesanato e a comercializá-lo em terras daregião e de Belo Horizonte, por meio da As-sociação de Artesãos Sempre-Viva. Para isso,o projeto capacitou a comunidade em design,gestão de negócios e empreendedorismo. Como visível aumento da renda familiar, os 29 as-sociados assumiram os rumos da iniciativa econstruíram a Oficina de Galheiros para aprodução das peças.

Contato:

Tel.: (38) 9969.1105 (Nete)(38) 9985.3293

E-mail: [email protected] (Maristela)

Riacho D�Anta

Óleo de macaúba na mesa e no carro

Nacomunidade RiachoD�Anta, emMon-tes Claros, Norte de Minas Gerais, o

PPP-Ecos apóia a implantação da unidade deprodução de óleos, com ênfase no óleo demacaúba, palmeira abundante na região. Essetrabalho é fruto da mobilização dos produto-res, assessorados pelo Centro de AgriculturaAlternativa do Norte de Minas (CAA-NM) epela Cooperativa Grande Sertão. A fábrica temcapacidade para produzir 17.000 litros de óleode polpa e 6.500 litros de óleo da castanha demacaúba, além de 30 toneladas de carvão dacasca do coco.

O óleo da amêndoa da macaúba é comparávelao azeite de oliva em textura e possui excelen-

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te paladar. A torta da polpa serve como raçãoanimal e a torta da semente pode ser usada nacomposição de granola, doces e outras formasde consumo humano. Além disso, a macaúbarepresenta uma das plantas com melhor po-tencial para a produção de biodiesel, especial-mente nessa região do Cerrado, marcada pelagrande quantidade de palmeiras.

Na comunidade de Riacho D�Anta, vivemcerca de 40 famílias agroextrativistas. Para quea fábrica funcione plenamente, será necessá-rio envolver outras 62 comunidades da regiãono fornecimento de macaúba. Além dos óle-os, a fábrica processará pequi em conserva,como forma de otimizar a estrutura e ampliara geração de renda.

Contato:

Fazenda Santa CruzComunidade Riacho D�AntaCEP 39400-000Montes Claros � MGTel.: (38) 3226.1000 (Valdomiro)

Cooperativa Grande Sertão

Produtos nativos conquistam mercados de Minas

A Cooperativa Grande Sertão, em MontesClaros, Norte de Minas Gerais, foi criada hácerca de dois anos por 30 agricultores locais,resultado de oito anos de trabalho com o Cen-tro de Agricultura Alternativa do Norte deMinas (CAA-NM). A cooperativa planeja pro-

duzir cerca de 90 toneladas de polpa conge-lada em 2005, a partir da produção de cercade 700 famílias agroextrativistas que vivemem 17 municípios da região. O objetivo mai-or é criar condições para inserir no mercadoos produtos nativos da região e a produçãodos pequenos agricultores.

As máquinas da fábrica foram compradas comfinanciamento do Programa de Pequenos Pro-jetos Ecossociais (PPP-Ecos) e produzempolpas de 15 sabores, sete deles nativos daregião: panã, cagaita, maracujá nativo, umbu,mangaba, araçá e coquinho azedo. A linha deprodutos inclui, ainda, óleo de pequi, pequicongelado, rapadurinha e mel. A produção évendida na própria região e abastece tambémos restaurantes populares de Belo Horizonte.Dessa forma, a Grande Sertão gera iniciati-vas e oportunidades nas próprias comunida-des por meio do manejo e da otimização dosrecursos agroextrativistas direcionados paraa segurança alimentar e a produção comerci-al sustentável.

Contato:

Cooperativa dos Agricultores Familiares eAgroextrativistasGrande SertãoR. �H� Andersen, 400Distrito Industrial � 39404-005Montes Claros � MGTel.: (38) 3223.2285E-mail: [email protected]

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Família Atingida � Barragem de Setúbal � Chapada do Norte � MG

Elisa Cotta

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DO FRUTODOVERÃODO CERRADO

n

MARIAHELENA DE SOUZA IDE

os montes claroso verão tarde, quando, se vai,mais muito quas�semprepermanece

rasga cores, cortinastira brilho das pedrasextrai umidades orgânicasentra finometalflecha

olhos adentrona maior efervescência

cai o fruto de sua transcendência vegetalamarelo-hemorrágico em fina polpaquentura de óleosnas bocas e peles todaspelo qual nos derretemosnos lambuzamosnos rendemos.

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Fachada - Chapada doNorte �MG

Elisa Cotta

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SALUZINHO E A LUTA PELATERRA NONORTE DEMINAS

E

LUIZ ANTÔNIOCHAVES

por ser franzino e de pequena estatura. Fre-qüentou a escola apenas seis meses porque nãohavia professor no lugar. O único professor queensinava a todos naquela região, Antonio Co-elho Cavalcanti, fora assassinado a mando dafamília do fazendeiro Antônio Antunes. Jamaisforam esclarecidos os motivos desse crime. Aescola fechou as portas e Saluzinho aprendeuapenas a escrever o nome. Foi a primeira vitó-ria do latifúndio sobre aquela pobre figura queacabava de ingressar na escola da vida, masnão tardou a entender a diferença que existeentre a classe dominante e a classe dominada.

Ainda jovem, foi atraído pelas noticias quevinham do Sul do País. Diziam que no

Estado do Paraná tinha terra em abundância ede boa qualidade para quem quisesse trabalhar.Para lá se foi Saluzinho, em busca de um so-nho � o de ter melhores condições de vida. Nomunicípio de Loanda, no Noroeste do Paraná,pela orientação de alguns amigos, instalou-senuma pequena posse de terras. Depois de al-guns anos de trabalho duro, deu para construiruma pequena casa e constituir família.

ram cinco horas da manhã, maisou menos. Eu já estava levantan-do quando ouvi um batido de ani-mal e alguém chamando do ladode fora. Abri a porta um tiquinho

e olhei. Eu estava nu da cintura pra cima. Erauma turma de homens a cavalo. O que estava nafrente perguntou:

� Você é o tal Saluzinho?

� Sim, tá falando com ele mesmo.

Daí eu só ouvi o barulho. Pulei pra trás e foiaquele pipoco só. O pau da porta ficou todoesbagaçado...� (SALUZINHO, 1967).

Assim começa uma das mais incríveis histó-rias de grilagens de terras no Norte de Minase também a heróica resistência de um lavra-dor que ousou enfrentar o poder do latifún-dio. A sua luta emocionou. E ele virou umaespécie de lenda no sertão das Minas Gerais.

Salustiano Gomes Ferreira, filho de posseiropobre, nasceu no ano de 1917, no lugarejo deLimoeiro, próximo de Campo Redondo, entãodistrito de Varzelândia, Minas Gerais. Desdemuito cedo ganhou o apelido de �Saluzinho�,

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Porém, quando parecia tudo tranqüilo, alguémreivindicava a posse daquelas terras. Esse al-guém, segundo ele, era muito poderoso, por-que este nunca apareceu naquele lugar, man-dava sempre jagunços e policiais trazendorecados e ameaças. Até que um dia, nãoagüentando mais as humilhações e os desafo-ros, decidiu reagir, acertando dois jagunços.Posteriormente descobriu que um deles erapolicial. Cumpriu quatro anos de cadeia noEstado do Paraná. Quando foi libertado, nãoencontrou mais nada do que possuía. Toma-ram-lhe tudo. Desiludido do Sul, sem nada,decidiu voltar para a terra natal e retomar aesperança.

A caça aos comunistas

Aochegar nas terras de seu pai, Saluzinhodescobriu que as coisas não andavam

bem. Seu pai tinha acabado de falecer e a suaterra estava parcialmente invadida por um�grileiro� conhecido como José Milo. Essecidadão, que desempenhava também a fun-ção de agrimensor, já havia expulsado e seapropriado das terras de diversas famílias deposseiros nos municípios de Itacarambi eManga. Além disso, corria o boato de queaquela região estava infestada de comunistas.Todomundo tinhamedo do comunismo, mes-mo sem saber o que isso significava.

Vale lembrar que nos anos 50 do século passa-do, na vasta região do Jaíba, Norte de MinasGerais, um território de difícil acesso, as terrasdevolutas do governo atraíam centenas de pos-seiros pobres que procuravam se estabelecernos terrenos públicos. A solidariedade que exis-tia entre eles intrigava os poderosos.

Em Brasília, nos anos 1960, os militares co-mandavam o governo commão-de-ferro, apósterem expulsado do país o presidente JoãoGoulart. O clima estava tenso, nada favorá-vel para os posseiros pobres. Entre osruralistas, o clima era de festa. Os grandes

fazendeiros, que haviam apoiado o golpe mi-litar, se proclamavam vitoriosos na luta con-tra o comunismo. Em princípio, todo possei-ro pobre era visto como subversivo.

Bem pertinho da Jaíba, em Cachoeirinha, hojeVerdelândia, o coronel Georgino Jorge deSouza, então comandante do 10º Batalhão dePolicia Militar de Montes Claros, defendendointeresses seus e de outros grileiros, haviaconsumado uma das maiores e mais violen-tas expulsões de posseiros de que se tem co-nhecimento em Minas Gerais. Cumprindouma polêmica ordem de despejo prolatada porum juiz de paz da cidade de São João da Pon-te, conhecido como Juquinha da Ponte, fo-ram cometidas diversas atrocidades contramais de duzentas famílias de posseiros, na suamaioria negros, que viviam historicamenteentre as margens dos Rios Arapuim e VerdeGrande, nos municípios de São João da Pon-te e Varzelândia.

Foi justamente em setembro de 1964 queo folclórico Juquinha da Ponte, cujo

nome de batismo era José Fernandes Aguiar,pôs bizarramente sua assinatura ao proces-so número 114, do cartório do segundo ofí-cio daquela comarca. A ação de manuten-ção de posse favorecia aos �fazendeiros� Se-bastião Alves da Silva e Manoelito MacielSales, dois cidadãos que jamais tiveram umpedaço de terra na fazenda Arapuá. Nessapropriedade viviam os posseiros, que forambarbaramente expulsos e alguns até assassi-nados.

O principal líder dos posseiros, o �preto ve-lho� Martim Fagundes, foi o primeiro a sereliminado, na cidade de Janaúba, quando sedeslocava para pedir apoio na capital do Es-tado. Martim foi fuzilado friamente por umpistoleiro capixaba, em troca de quinze milcruzeiros, pagos pelo fazendeiro Valdir AlvesCoutinho. O pistoleiro chegou a ser preso,porém, fugiu alguns dias depois.

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Todavia, foi precisamente em 1967 que seconsumou no Norte de Minas o grande des-pejo de posseiros sob o comando da PoliciaMilitar do Estado de Minas Gerais. Foi mon-tado um verdadeiro aparato de guerra. Jipesda corporação foram utilizados para destruiros casebres, que, em seguida, eram incendia-dos, juntamente com todos os pertences. Amultidão de escorraçados atravessou o RioVerde, onde permaneceu acampada debaixode árvores, apenas com a roupa do corpo.

Cerca de cinqüenta crianças morreram emdecorrência de um surto de sarampo, sem

qualquer atendimento médico. As terras per-tencentes a essas famílias foram, posterior-mente, divididas entre diversos fazendeirosda região, inclusive, o próprio coronelGeorgino Jorge de Souza, advogado e execu-tor da malfadada ordem de despejo.

Em 1983, por pressão de um grupo de pos-seiros de Cachoeirinha, encorajados pela novaordem política e pelo fim da ditadura militar,o governador Tancredo Neves desapropria aFazenda Caitité, localizada na margem es-querda do Rio Verde, de propriedade do co-ronel Georgino Jorge de Souza. O imóvel foidevolvido aos verdadeiros donos, cerca de 40famílias de posseiros, que deram à proprieda-de o nome de �Nova União�.

Na mesma época, do outro lado do RioArapuim, na região de Morro Preto, o fazen-deiro Abelard Câmara, proprietário da fazen-da Bom Jardim, no município de São João daPonte, expandia seus domínios sobre as ter-ras de diversas famílias de antigos posseirosdescendentes de escravos. Os que tentaramresistir foram brutalmente espancados por umbando, misto de policiais e jagunços, coman-dado pelo capitão José Hilton, da Polícia Mi-litar. A denúncia foi feita através de carta as-sinada pelos posseiros espancados: JoséFerreira da Silva, Joaquim Ferreira Lima eJuvêncio Fernandes de Souza. A mesma car-

ta foi enviada ao jornal �Diário de MontesClaros�, em outubro de 1967.

Um líder nato

Saluzinho não se conformava com o que ha-via acontecido com as terras do seu pai e deseus amigos da fazenda Arapuá. Sabia que nãopodia fazer muita coisa, pois não tinha a quemrecorrer, muito menos possuía recursos paraviajar até a capital do estado para denunciaro que estava ocorrendo naquele longínquo einóspito lugarejo. Apesar de ser um homemsimples, era esclarecido e conhecedor de seusdireitos. Seus comentários chegavam com fa-cilidade e credibilidade aos ouvidos dos pos-seiros e dos fazendeiros. Colhia a simpatia dospobres e o ódio dos latifundiários.

A situação dos pequenos trabalhadores rurais da região, que já não era das melho-

res, agravou-se ainda mais quando Saluzinhodecidiu tomar as dores do posseiro ManoelTeço, que reclamou do fazendeiro OswaldoAntunes o fato de que sua pequena posse es-tava sendo invadida por empregados dele. Porcausa disso, Manoel Teço foi brutalmente es-pancado pelo jagunço de nome Jerônimo, �va-queiro� do fazendeiro. Até mesmo o filho e amulher de Manoel Teço, que saíram em seusocorro, foram pisoteados e chicoteados pelojagunço. Naquele dia, Jerônimo mandou umrecado para Saluzinho. A próxima vítima se-ria ele, que tinha fama de valente e defensorde comunistas. Vários posseiros da área jáhaviam �perdido� suas terras. Saluzinho sa-bia que a qualquer hora também poderia acon-tecer a mesma coisa com ele.

De fato, isso não tardou a ocorrer.

Naquela madrugada de outubro de 1967, otempo ainda escuro, quando Saluzinho abriu aporta de seu barraco para atender a quem cha-mava, foi recebido à bala por misteriososchegantes. Instintivamente, ele se protegeu nobeiral da porta do rancho, que ficou todo esti-

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lhaçado por vários disparos seguidos. Ao al-cance da mão do posseiro, atrás da porta, esta-va a sua garrucha de dois canos, �papo amare-lo�, carregada de chumbo para enfrentar qual-quer emergência das atividades campesinas.Não teve dúvida. Abriu fogo na direção dosagressores e, mesmo sem firmar pontaria, acer-tou o braço de quem estava à frente do grupo.Com o segundo tiro quase simultâneo, acertououtro indivíduo, que caiu do cavalo. Nessa hora,a sorte parecia estar do seu lado, pois um re-vólver calibre 38 de um dos agressores acaba-va de cair aos seus pés, na entrada da porta.Imediatamente, puxou o gatilho da arma. Foio suficiente para que os desafetos saíssem emdebandada, alguns a pé, socorrendo os que es-tavam feridos.

Cessado o tiroteio, e já sob o clarão do dia,Saluzinho avistou dois cavalos arreados

pastando perto de sua casa. Apossou-se dosanimais e mandou entregá-los ao delegado depolícia �ad hoc� do distrito de Jaíba, solici-tando providências contra os bandidos que oatacaram. Horas depois, no distrito de Jaíba,vários posseiros davam a noticia de queSaluzinho havia atingido um pistoleiro conhe-cido como João Brejeiro, empregado da fa-zenda, e um policial militar conhecido comoCabo Barral.

Os posseiros puseram-se em oração, enquan-to Saluzinho, são e salvo, procurava uma es-tratégia de defesa, pois tinha certeza de queos agressores não tardariam a voltar. Pensouaté em aguardar o enfrentamento no mesmobarraco, mesmo sabendo que não teria chancealguma. Sem tempo a perder, aconselhado poroutros posseiros, decidiu ficar de tocaia numagruta existente nas proximidades e aguardaro novo ataque.

A tortura

Não passaram 24 horas e os agressoresretornaram à casa de Saluzinho. Só que, des-ta vez, todos eles estavam vestidos com a far-

da da Policia Militar e fortemente armados.No local, não encontraram ninguém. A mu-lher e os dois filhos do posseiro haviam sedirigido para a casa de um vizinho. A Políciafoi prendendo quem encontrasse pela frente,sob a alegação de que todos os posseiros eramsubversivos. Alguns deles foram espancados,simplesmente porque não sabiam onde esta-va Saluzinho. 16 trabalhadores foram detidose conduzidos para o 10º Batalhão de MontesClaros.

Não demorou muito tempo para que a mulhere os filhos de Saluzinho fossem encontradosna casa onde se refugiaram. Os �militares�deram início, então, à operação mais brutal. Napresença dos filhos e de alguns posseiros, qui-seram obrigar a mulher a dizer onde o seu ma-rido estava escondido. Por ordem do tenentePetrônio, ela foi despida e pendurada de cabe-ça para baixo, em um pé de umbuzeiro. Emseguida, com uma vara de feijão andu, ela foiaçoitada barbaramente até sangrar, enquantoseus filhos pequenos eram obrigados a comerfeijão misturado com terra.

Sem conseguir arrancar da mulher uma pa-lavra sequer, os �militares� partiram paraa tortura ainda mais repugnante e covarde.Queimaram a ponta dos seus seios com ci-garro e introduziram a ponta de uma vara emseu ânus. Neste momento, um dos posseirosdetidos, não suportando assistir à cena, in-formou aos policiais onde se encontrava a�fera� procurada. Meses depois do triste epi-sódio, em conseqüência das torturas de quefoi vítima, dona Dúlcia, com apenas 42 anosde idade, faleceu nas mãos do doutor PedroMartins, último médico que a atendeu.

A heróica resistência

Saluzinho levou para dentro da gruta agarrucha com alguma munição, o revólver 38,com apenas duas cápsulas, e uma cabaça cheiad�água. O esconderijo, distante aproximada-

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mente 500 metros do rancho, não era muitoespaçoso, porém, o suficiente para que umapessoa oferecesse alguma resistência. A che-gada da tropa foi com gritaria e rajadas de me-tralhadoras para dentro da caverna. A ordemeramatar exemplarmente aquele comunista queousava desfiar o poder do latifúndio.

As balas ricocheteavam na rocha e esti-lhaçavam as pedras, sem que houvesse

qualquer sinal de resistência vindo de dentro.A primeira baixa de Saluzinho foi a cabaçad�água, que não resistiu aos estilhaços de ba-las. Sem nenhuma reação do encurralado, os�militares� imaginaram que ele já poderia es-tar morto. O próprio tenente Petrônio foi secertificar disso, acompanhado pormais dois po-liciais, com lanternas e armas em punho. An-tes de adentrarem, mais uma forte rajada debalas foi disparada para dentro da cavidade.

Ao primeiro passo dos �militares� dentro dagruta, Saluzinho respondeu com um tiro degarrucha, acertando em cheio o pescoço dotenente Petrônio. Correria total no local, poisa �fera� estava viva. A notícia corria entre osque ficavam do lado de fora, informando queo perigoso bandido havia feito mais uma víti-ma e se encontrava encurralado pela polícianuma toca de pedras. O tenente Petrônio, dodestacamento de Manga, ferido, foi conduzi-do para Montes Claros, de onde foi solicitadoreforço policial, além de barracas de lonas earmas de grosso calibre.

Enquanto isso, gasolina era derramada den-tro da gruta e incendiada, produzindo muitafumaça e chamas de grandes proporções. Anteo silencio que vinha de dentro da caverna, acada nova tentativa de aproximação dos po-liciais, ouvia-se um disparo de garrucha: erasinal de que Saluzinho ainda estava vivo.

Passaram-se dois dias e duas noites quandochegou o reforço policial de Montes Claros,trazendo um arsenal ainda mais pesado, in-clusive, várias bananas de dinamite. O �fe-

roz comunista� deveria ser sepultado dentrodaquela tumba de pedras, para que servissede exemplo aos demais, era essa a determina-ção dada aos policiais. As explosões provo-cavam estrondos que se ouviam a longas dis-tâncias. As paredes da gruta resistiram, quaseintactas, mas os tímpanos de Saluzinho, não.Apesar disso, ele continuava sobrevivendo.

Ante essa inexplicável resistência humana, aordem do comando do grupo de policiais,então, era para não deixar o acuado dormir. Acada instante, tiro eram disparados para den-tro da gruta. O forte aparato policial utiliza-do na operação já chamava a atenção da im-prensa nacional e a opinião pública, a estaaltura, queria saber quem era aquele homemencurralado. De Belo Horizonte, no quintodia de cerco, foi destacado um comando es-pecial do DOPS para atender a uma solicita-ção de ajuda feita pela Policia Militar de Man-ga, dando da existência de uma perigosa cé-lula comunista, que estaria implantando a re-sistência armada na região Norte e enfrentan-do as forças públicas. Para acompanhar ocaso, foi deslocado um grupo de aproximada-mente quarenta homens, chefiado pelo entãodelegado Thacir de Menezes Sia.

Com este delegado, veio também umlançador de bombas de gás, a arma que

todos os policiais esperavam. Várias bombasde gás foram lançadas para dentro da gruta,para forçar a saída do inimigo. Nem mesmoessa estratégia surtiu efeito, pois ainda se ou-viam disparos vindo do interior da gruta. Di-ante da repercussão da operação junto à opi-nião pública, contando já com a presença daimprensa no local, por determinação do dele-gado do DOPS foram iniciadas as negocia-ções para que Saluzinho se entregasse vivo.

De posse de um megafone, o Capitão Perei-ra, um dos comandantes da operação, solici-tou que o posseiro depusesse as armas e saís-se da gruta com as mãos para o alto. Novo

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disparo indicou que ele não confiava na Poli-cia Militar e não estava disposto a morrer semluta. Em seguida, já por volta do meio-dia, odelegado Thacir Menezes Sia, de megafoneem punho, apresentou-se para Saluzinho, di-zendo que estava ali por ordem do governoespecialmente para salvar a vida dele e queele podia sair com as mãos para cima, semarmas, pois garantiria a sua integridade físi-ca. Menezes repetiu a mensagem por mais deuma vez, afirmando que havia assumido ocomando da operação.

Depois de longo silêncio, o momento tãoesperado pelos que assistiam ao episó-

dio do lado de fora, aconteceu. Saluzinhoapareceu na porta da gruta, esquelético, de-bilitado pelas noites sem dormir, pela fome epela sede. De branco, somente sobressaía emseu rosto a borda dos olhos, pois estava to-talmente coberto de fumaça e fuligem de car-vão. A �fera humana� estava, finalmente, cap-turada e indefesa, assustada diante de tantasarmas que eram apontadas em sua direção.Um médico que se aproximou para examinarSaluzinho quase vomitou com o cheiro de gásque exalava de seu corpo. Perguntado se es-tava sentindo alguma coisa, o posseiro res-pondeu prontamente que sentia fome e sede.

A notícia da prisão de Saluzinho se espalhourapidamente e despertou a curiosidade da po-pulação. Por onde passava o comboio escol-tando a presa para Montes Claros, o povo seaglomerava nas ruas para ver a cara do homem.Estava definitivamente consumada mais umavitória do latifúndio. Com Saluzinho preso, nãohavia mais obstáculos para a consolidação dasgrandes grilagens que selaram a história da ocu-pação de terras no Norte de Minas.

O longo calvário nas prisões

Terminada a resistência, começaram os interrogatórios e uma longa história de so-

frimento pelas cadeias do Estado de Minas

Gerais. Inicialmente, Saluzinho ficou quasequatro meses numa cela do 10º Batalhão deMontes Claros. No Décimo, o posseiro foi in-terrogado por diversas �autoridades�, pois aopinião pública queria saber se �aquele co-munista� pertencia a algum grupo subversi-vo organizado. Ao interrogatório feito pelopromotor Luiz Gonzaga de Barros, Saluzinhorespondeu da seguinte forma:

�Osenhor está consciente? Sabe o que é consci-ência?

�Minha consciência está limpa.

�O senhor está preocupado?

� Muito preocupado. Com as crianças, com amulher, com a roça, com os bichos.

�O senhor sabe o que é IBRA?

�Não, senhor.

�Osenhor sabe a diferença entre crime doloso eculposo?

�Não, senhor.

�O senhor sabe o que é comunismo e subver-são?

�Não, senhor.

�O senhor atira bem?

�Sou caçador desdemenino.

� Como é que o senhor tinha tantas armas?

�Eu tinha uma garrucha que comprei por trintacontos. Hoje tá valendo uns quarenta.

�O senhor sabe em quem atirou lá de dentro dagruta?

�Não, senhor.

�O senhor sabe que atirou em policial?

�Não, senhor.A cor dele era igual a do Jerônimo.

Após os inúmeros interrogatórios em MontesClaros, Saluzinho foi conduzido para a cadeiapública de São João da Ponte, onde permane-ceu por mais de dois anos, sem comunicaçãoalguma com a sua família, nem com advoga-dos. Quando esperava ser libertado devido ao

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bom comportamento que mantinha na prisão,apareceu um sargento que se chamava Afonsoque, por duas vezes, atentou contra a sua vida.O posseiro levou o fato ao conhecimento dojuiz da Comarca que, por sua vez, prometeutransferi-lo para Januária. Temendo ser ataca-do enquanto dormia, Saluzinho preparou um�chucho� com o cabo de seu inseparável rádiode pilhas e omanteve escondido dentro da cela.

Um dia, provocado pelo referido sargentocom um forte tapa no rosto, e perceben-

do a intenção do homem, atracou-se com eleem luta corporal, furando-o na região da bar-riga. Salvo por pessoas que ajudaram a apar-tar a briga, o posseiro foi imediatamente trans-ferido para a cela número um do DOPS, emBelo Horizonte, onde estavam trancafiadosdiversos presos políticos, 18 ao todo.

Um habeas corpus impetrado no Tribunal de Jus-tiça, em Belo Horizonte, foi negado pelodesembargador Laire Santos, que, coinciden-temente, havia sido juiz de Direito em MontesClaros e era amigo declarado do fazendeiroOswaldo Antunes. Saluzinho deveria ser jul-gado pela Justiça Militar, na 4ª Região Militarde Juiz de Fora, pois seu �crime� foi enquadra-do como sendo de natureza política.

No DOPS, Saluzinho não demorou a fazeramizade com os colegas de cela. Os presos,em sua maioria, de formação superior, nutri-am por ele uma profunda simpatia e respeito.Os �detentos� ficavam encantados com ashistórias do campesino e sua luta pelo direitoà terra. Não entendiam porque estava alicomo preso político, quando deveria estar soba custódia da justiça comum. De qualquerforma, todos procuravam algum meio de aju-dar Saluzinho, inclusive, no desenvolvimen-to da escrita e da leitura.

O primeiro livro que Saluzinho leu, com a aju-da dos companheiros de cela, foi �GrandeSertão Veredas�, de Guimarães Rosa. Ficouencantado, como se estivesse dentro do pró-

prio livro. Após essa leitura não se separoumaisdos livros. Fazia muitas perguntas a respeitodo que lia e do que ouvia pelo rádio, e nuncaficava sem resposta. Com isso, Saluzinho am-pliou em muito seus conhecimentos e adqui-riu formação política.

Um dos presos, à época, o acadêmico daUFMG, José Afonso Alencar, presidente doCentro Acadêmico Afonso Pena, então mili-tante da AP, conseguiu se comunicar com umadvogado, através de recado levado por umpolicial, informando-lhe de que na cela umestava preso uma pessoa extremamente inte-ressante e que no seu entendimento não setratava de preso político comum. Relatou,ainda, que Saluzinho era um homem absolu-tamente íntegro, honesto, probo, e que viviade acordo com os ditames de sua consciên-cia. Segundo o acadêmico, mesmo iletrado,Saluzinho sabia - por intuição e inteligência -até onde ia o direito dele e começava o direi-to dos outros; seu sentido de justiça ele trans-mitia a todos os presos.

Alguns reclusos, ao serem transferidos doDOPS, choravam ao se despedir de

Saluzinho; dentre eles, José Carlos da MataMachado (morto posteriormente em tortura),Antônio Joaquim Gomes (desaparecido), oestudante de medicina Carlos Melgaço. Nou-tra cela, estavam o jornalista Tito Guimarãese o deputado cassado Dazinho, dentre outros.

Atendendo a pedido dos presos � amigos e cli-entes -, o advogado Flávio Antonio CarneiroCarvalho decidiu interceder por Saluzinho. Ini-cialmente, o profissional teve grande dificul-dade de se comunicar com o posseiro, devidoao seu alto grau de surdez. No entanto, perce-beu de pronto que se tratava de um preso co-mum, uma pessoa de raro valor e que estavasofrendo horrores naquela prisão.

Nos tribunais, o advogado concluiu que oprocesso de Saluzinho estava totalmente �vi-ciado� e sem qualquer andamento. Imediata-

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mente, ingressou com novo pedido de habeascorpus junto ao Supremo Tribunal Federal. Emuma semana, o advogado recebeu um telexde Brasília informando do deferimento do seupedido. No entanto, ao apresentar o telex aodiretor do DOPS, Davi Azan, este se recusoua liberar o preso, informando que o faria so-mente mediante a apresentação de um alvaráde soltura. O alvará foi então requerido juntoao Tribunal de Justiça, de Belo Horizonte,sendo lavrado o competente termo, imedia-tamente, por determinação do próprio presi-dente do Tribunal, Erotides Diniz.

Saluzinho está vivo

Enquanto permaneceu preso, incomunicávelcom seus familiares, o próprio fazendeiroOsvaldo Antunes e alguns policiais se encar-regaram de divulgar em toda a região queSaluzinho havia morrido. Para que a ganân-cia do latifúndio se consolidasse, era neces-sário apagar da memória dos demais possei-ros, a figura daquele que era a principal lide-rança dos pequenos proprietários e que ou-sou questionar a nova ordem política no país.

Lembro-me de que, em meados de 1980,quando me interessei pela história de

Saluzinho, as pessoas com quem eu conver-sava afirmavam que ele havia morrido. Mes-mo aqueles que fizeram uma bela e justa ho-menagem a ele, através da música, os mem-bros do saudoso grupo Agreste, afirmavam asua morte. Para as crianças, espalhou-se a idéiade que Saluzinho era mau. Não raras vezes seouvia uma mãe dizer para o filho entrar paradentro de casa �porque Saluzinho poderiaaparecer�.

Saluzinho foi transformado em um fantasmamaligno. Até mesmo o ilustre jornalista FelipeGabrich, que teve a coragem de levantar avoz através de poucas letras publicadas no�Diário de Montes Claros�, no momento emque Saluzinho permanecia encurralado, tinha

dúvida sobre o seu destino. Gabrich desafiouo latifúndio ao questionar a brutal repressãosobre aquele humilde trabalhador que só que-ria ter o direito de amanhar a terra.

Todavia, após sair da prisão, Saluzinhoperambulou pelo Norte de Minas, abso-

lutamente sem possuir coisa alguma. Estabe-leceu-se numa pequena posse de terrasdevolutas, às margens do Rio São Francisco,no município de Itacarambi. Não tardou mui-to tempo, chegou à sua �fazendinha� o lati-fundiário-grileiro conhecido comoAlmerindo,que �tomou-lhe� a posse, juntamente comtoda a madeira que acabara de tirar para ven-der e para construir a sua moradia.

Novamente sem nada, Saluzinho abrigou-seno sitio do seu amigo Osmar, próximo à cida-de de Itacarambi, onde plantou uma pequenalavoura. Estava com uma bela roça de milho,arroz e mandioca, até que o fazendeiro, JoãoMartins, conhecido como Martinzão, decidiuengordar o seu gado na lavoura dos outros.Cortou a cerca e repontou o gado para dentroda área, destruindo toda a lavoura plantadapor Saluzinho.

Após a reconstrução da cerca, apareceu na�fazenda� um jagunço do Martinzão, dizen-do que ele próprio iria cortar o arame nova-mente, cumprindo ordem do �Patrão�. Hou-ve discussão e, ante o ataque do agressor comum facão, Saluzinho atingiu-lhe com um tirode espingarda, ferindo-lhe o braço. Após quasedois meses, foi preso e conduzido para a ca-deia pública de Januária, onde permaneceurecluso, complemente abandonado.

Um belo dia, surgiu na cadeia o advogadoAristeu, que ali fora visitar um cliente detido,tendo reconhecido a pessoa de Saluzinho.Comovido, impetrou um habeas corpus em fa-vor daquele homem, a esta altura já velho edebilitado. E conseguiu, desta vez, sua últi-ma liberdade.

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Após esse fato, Saluzinho ainda viveu alguns anos entre as cavernas do Rio

Peruaçu na região de Fabião, em Januária,retirando madeira para cercas e vendendopara alguns fazendeiros. Foi nesse local queconsegui encontrar-me com Saluzinho, mui-to desconfiado e totalmente surdo, em mea-dos dos anos 80. Hoje, essa região compõe oParque Nacional do Peruaçu. Saluzinho tra-balhou ainda, precariamente, nos últimos anosde vida para o fazendeiro José de Paula, emItacarambi. Velho e doente já não assustava

mais ninguém. Recebeu ainda em vida umahomenagem da Câmara Municipal de MontesClaros, proposta pelo Vereador José Paulo.

Morreu em Itacarambi, no dia 13 de fevereirode 1990, na miséria, sem terra e sem nada,levando consigo o sonho da reforma agrária.No mesmo mês, morria também o �Jornal deMontes Claros�, de propriedade do seu maioralgoz. Avisado de sua morte, o saudoso �Jor-nal do Norte� prestou-lhe uma merecida ho-menagem, mais uma vez, das mãos do jorna-lista Felipe Gabrich.

Coquinho azedo

Elisa Cotta

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Criança gurutubana da comunidade de Taperinha � Pai Pedro �MG

Elisa Cotta

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TRANSPOSIÇÃODO SÃO FRANCISCO:

A

LEONARDOMATTOS

que é resultante de vários fatores combinadoscomo adoção de políticas inapropriadas,clientelismo, latifúndios, analfabetismo, e nãosimplesmente de falta d�água. Por outro lado,ao contrário do que afirma o governo, nada ga-rante que o povo será beneficiado pelo projeto.

O professor Anthony Hall, da LondonSchool of Economics, autor do livro

�Drought and Irrigation in Northeastern Brazil�(ainda não traduzido para o Português), aler-ta para dois efeitos tradicionalmente decor-rentes desse tipo de projeto (Folha de S. Pau-lo, 6/ 10/2005): o aumento do preço das ter-ras nas regiões beneficiadas, aumentando aconcentração fundiária, e a necessidade deatrair produtos de alto valor agregado paratornar economicamente viáveis gastos dessamagnitude. Ou seja: serão privilegiados osagronegócios � como frutas tropicais paraexportação � e não as populações locais.

Por outro lado, a transposição vai absorverum dinheiro que poderia ser destinado a obrasde distribuição da água existentes no Ceará,na Paraíba e no Rio Grande do Norte � essas,

proveitando-se da boa fédos brasileiros, menospre-zando os alertas deambientalistas e estudio-

sos, desrespeitando leis e desprezando as con-seqüências irreversíveis, o presidente Lulasegue irredutível para concretizar o que antesde ser governo seu grupo político tanto criti-cou: a transposição do Rio São Francisco.

Nem o exemplo das fracassadas obras faraôni-cas nacionais ou do bom senso de governantesque desde o Império cogitaram e abandona-ram a idéia de transposição como solução parao Nordeste Setentrional, nem mesmo as expe-riências negativas de obras similares em ou-tros países são capazes de arrefecer o Gover-no Federal em sua determinação de colocar emprática o falacioso discurso de que subtraindoágua de um rio que precisa de socorro, será au-tomaticamente solucionado o problemamilenar da fome no Nordeste.

A transposição do Rio São Francisco não iráresolver os problemas da pobreza nordestina,

até onde o governo vai levar essa insensatez?

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sim, destinadas à população pobre.

Relatório recentemente concluído peloBird afirma que a maior parte da deman-

da por água pode ser atendida até 2012, semnecessidade de transposição, e questiona aconcepção da obra.

O projeto estabelece a construção de doiscanais, num total de 703 quilômetros, com25 metros de largura e 5 metros de profundi-dade na maior parte de sua extensão. Bombe-ada para chegar aos rios e de lá aos açudes, aágua cortará o sertão no eixo Norte, a partirde Cabrobó (PE), ultrapassando a Chapadado Araripe, com seus 180 metros de altura, eo Eixo Leste, a partir da barragem de Itaparica,precisando subir a uma altitude de 500metros.Em alguns trechos, bombas movidas a ener-gia elétrica terão de elevar as águas a uma al-tura de até 300 metros. Para a construção,serão utilizados 1,1 milhão de metros cúbi-cos de concreto, 390.000 toneladas de cimen-to e 71.000 toneladas de aço.

Toda essa grandiosidade para nenhuma garantia desolução!

Como as chuvas do Nordeste Setentrionalacompanham a incidência de chuvas do bai-xo e médio São Francisco, fica sem resposta aquestão do abastecimento quando as águasestiverem faltando nas regiões doadoras.

Também ficam no ar questões relaciona-das à evaporação. Embora no Nordeste

as chuvas sejam até mais intensas que emmui-tas regiões do planeta onde não falta água, láas chuvas se concentram em poucos mesesdurante o ano e caem num subsolo rochoso,o que impede sua penetração na terra. Ex-posta a ventos fortes e um calor enorme, aágua é facilmente evaporada.

Soberania, conflitos e ameaças

A Sociedade Brasileira para o Progresso da

Ciência (SBPC) já alertou a nação para osperigos que esse tipo de obra podem causarentre fronteiras, caso não sejam muito bemequacionados os conflitos de interesse dasregiões doadoras e receptoras das águas. En-tre o México e os Estados Unidos, um graveconflito se prolongou por anos a fio.

No Brasil já estão divididas as posições dosestados envolvidos. Os governadores LúcioAlcântara (Ceará), Cássio Cunha Lima(Paraíba), Wilma de Faria (Rio Grande doNorte) e Jarbas Vasconcelos (Pernambuco)são a favor, enquanto os governadores AécioNeves (Minas Gerais), Paulo Souto (Bahia),João Alves (Sergipe) e, recentemente, RonaldoLessa (Alagoas) são contra a transposição.

O projeto não prevê o pacto entre os estados,como se exige em obras dessa natureza. Im-pactos, compensações e acordos entre as uni-dades da federação não estão previstos. O go-verno impinge a transposição, desconsiderandoa autonomia dos estados, desrespeitando opacto federativo e joga sobre os ombros dosquatro estados beneficiados o custo dos inves-timentos, que serão necessários após a con-clusão da primeira etapa da obra.

Ao Governo Federal caberá um gasto estimado de R$ 4,5 bilhões para infra-es-

trutura, canais de concreto, bombeamentos ereservatórios; o restante da obra � a opera-ção do projeto e sua manutenção � estará acargo dos estados, um valor previsto para2025 em R$ 127 milhões. Mas será que osestados nordestinos terão condições de arcarcom o montante?

Os estados terão de enfrentar também a con-vivência com custos extremamente diferen-ciados pela água da transposição. Como o pre-ço da energia está incluído no custo da ope-ração e seis das nove estações debombeamento estão no eixo leste, a água doCeará e Pernambuco será mais cara que a daParaíba e Rio Grande do Norte. A ANA

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(Agência Nacional das Águas) divulgou do-cumento mostrando que enquantoPernambuco pagará, em 2010, R$ 26,8 mi-lhões, o Rio Grande do Norte arcará no mes-mo ano com R$ 6,7 milhões. Como será aconvivência com essas disparidades? Os es-tados do Ceará, Pernambuco, Paraíba e RioGrande do Norte já falaram em repassar oscustos através da cobrança de tarifas pelo usoda água, o que é mais uma prova da inverdadedo ministro da Integração Nacional, CiroGomes, quando apregoa que a água da trans-posição será gratuita para os pobres.

Além dos conflitos interestaduais, a transposição já causa forte reação nas tribos

indígenas ribeirinhas, que definem a obra como�a maior de todas as aberrações do homembranco�. A índia truká Maria de Lourdes San-tos avisou: �se quiserem levar esse projeto adi-ante, as águas serão banhadas de sangue�.

Recentemente, o bispo Dom Luiz FlávioCappio, que dedica sua vida ao trabalho depastoral junto às populações ribeirinhas, fezuma greve de fome durante dez dias, na tenta-tiva de impedir o início da implantação do pro-jeto. Encerrando a greve com vagas promes-sas do Governo Federal, o bispo (autor de umlivro sobre o Rio São Francisco) deixou regis-trado e deu publicidade ao absurdo ou má féda imposição da mega obra da transposição.

A sociedade civil tem intensificado a realizaçãode atos públicos, enterros simbólicos dospropositores da transposição, concentrações,passeatas e grandes reuniões com participaçõesde ONGs e governantes estaduais e municipais.

Na Justiça, liminares desfavoráveis ao proje-to e ao processo de condução da transposi-ção, suspensão de licença prévia para iníciodas obras e recebimentos de protestos e re-querimentos se sucedem.

Na Câmara Federal, neste momento, estãotramitando 14 proposições, entre PDC, PFC,

RIC e requerimentos, todos desfavoráveis aoprojeto governamental para Nordeste Seten-trional.

A Frente Salve o Rio São Francisco,lançada por este deputado, em março de

2005, durante reunião de comissão que anali-sa a transposição e a integração das baciashidrográficas para a região do semi-árido, rea-lizou várias ações políticas e legislativas: en-caminhou representação propondo que atos ad-ministrativos e procedimentos licitatórios re-lativos ao projeto sejam submetidos à avalia-ção e análise da Comissão de Fiscalização eControle da Câmara, com participação do Tri-bunal de Contas da União; análise de todas aslicitações, inclusive as com passagem pela Co-missão Permanente de Fiscalização; divulga-ção de manifesto contra a transposição e emfavor da revitalização da bacia; visitas a go-vernadores e estados em apoio à causa do SãoFrancisco; participação de reuniões promovi-das por ONGs; visita ao bispo em greve defome e solicitação de audiência com o presi-dente da República (ainda não respondida).

Auditoria do TCU apurou que no edital decontratação das empresas que realizarão a obrahá um superfaturamento de R$ 406 milhões.Muitas foram as irregularidades encontradas:erros grosseiros nos cálculos do Ministério daIntegração; falta de comprovação dos cálculospara determinação do custo de terraplenagem;erros nos cálculos dos valores da construçãode rodovias pavimentadas para acesso aos ca-nais; margens de lucro para empreiteiras aci-ma das usuais no mercado; sobrepreço na es-cavação, carga e movimentação de terra; cál-culo incorreto dos itens de composição do con-creto; contratação de pessoal com valores su-periores aos de mercado; duplicidade no cál-culo do preço por serviços de construção demuretas laterais nos canais, entre outros.

Apenas com o sobrepreço embutido, calcula-do pelo TCU, seria possível construir 22 milcasas populares.

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Pela revitalização

A revitalização da Bacia do São Francisco interessa não apenas a todas as co-

munidades diretamente a ela ligadas, mas atodos os brasileiros que não podem esquecerque o rio é o único totalmente brasileiro. Issoo coloca numa posição estratégica, em razãoda importância da água doce para a sobrevi-vência da espécie humana (e de todas as es-pécies do planeta).

E o que está acontecendo é que o rio, em vá-rios trechos, está apenas sobrevivendo, ne-

cessitando urgente de medidas para sua recu-peração.

A revitalização exige o reflorestamento dasmargens e recomposição das matas ciliares,desassoreamento, implantação de estações detratamento de água nos rios e afluentes, recu-peração das lagoas marginais, envolvendo arestauração de cerca de 18 mil hectares depequenas várzeas perdidas na região da foz,o controle dos 504 núcleos urbanos respon-sáveis pela poluição do rio e a proteção dafauna, especialmente dos peixes.

Festa na roça � Comunidade de Bem Posta � Minas Novas � MG

Elisa Cotta

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�Senhor,Fazei de mim um instrumento de vossa paz!...�

Daniel Mansur

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�...Onde houver ódio, que eu leve o amor...�

Daniel Mansur

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CARTA AO PRESIDENTE LULA

B

DOMLUIZ FLÁVIO CAPPIO

Francisco, fomos críticos acirrados deste pro-jeto. Desde então acentuamos a necessidadeurgente de revitalização do rio e de ações quegarantam o verdadeiro desenvolvimento paraas populações pobres do Nordeste: uma polí-tica de convivência com o semi-árido, para to-dos, próximos e distantes do rio.

Esperávamos do senhor um apoiomaior emfavor da vida do rio e do seu povo. Espe-

rávamos que, diante de tantos e consistentesquestionamentos de ordem política, ambiental,econômica e jurídica, o governo revisse suadisposição de levar a cabo este projeto quecarece de verdade e de transparência.

Quando cessa o entendimento e a razão, aloucura fala mais alto. Emmeu gesto não exis-te nenhuma atitude anti-Lula neste momentodelicado da vida nacional. Pelo contrário.Quem sabe seja uma maneira extrema deajudá-lo a entender pelo coração aquilo que arazão não alcança.

Tenha certeza, é um profundo testemunho deamor à vida.

arra, 26 de setembro de 2005

Senhor Presidente,

Paz e Bem!

Quem lhe escreve é Dom Frei Luiz FlávioCappio, OFM, bispo diocesano de Barra, naBahia. Tive a oportunidade de conhecê-lo porocasião da passagem do senhor por Bom Jesusda Lapa, na Caravana da Cidadania pelo SãoFrancisco, em 1994. Isto aconteceu pouco tem-po depois que fizemos uma peregrinação peloRio São Francisco, da nascente à foz, com ob-jetivo de conscientizar o povo ribeirinho so-bre a importância do rio para a vida de todos ea necessidade de preservá-lo. Fui-lhe apresen-tado por meu professor de teologia, Frei Leo-nardo Boff.

Sempre fui seu admirador. Participei ativamen-te em todas as campanhas eleitorais do PT, ali-mentando o sonho de ver o povo no poder.

Desde que oGovernoFernandoHenrique apre-sentou a proposta de transposição do Rio São

O bispo Dom Frei Luiz Flávio Cappio, em 26 desetembro último, quando resolveu pela greve de fomecontra a transposição do Rio São Francisco, enviou uma

carta aberta ao presidente da República, Luiz InácioLula da Silva, e uma declaração, registrada em cartório,

expondo suas razões.

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Minha vida está em suas mãos.

Receba minha saudação fraterna e amiga.

Uma Vida pela Vida

Em nome de Jesus Ressuscitado que vence amorte pela Vida plena, faço saber a todos:

1. De livre e espontânea vontade assumo opropósito de entregar minha vida pela vidado Rio São Francisco e de seu povo contra oProjeto de Transposição, a favor do Projetode Revitalização.

2. Permanecerei em greve de fome, até amorte, caso não haja uma reversão da deci-são do Projeto de Transposição.

3. A greve de fome só será suspensa median-

te documento assinado pelo Exmo. Sr. Presi-dente da República, revogando e arquivandoo Projeto de Transposição.

4. Caso o documento de revogação, devi-damente assinado pelo Exmo. Sr. Presiden-te, chegue quando já não for mais senhordos meus atos e decisões, peço, por carida-de, que me prestem socorro, pois não dese-jo morrer.

5. Caso venha a falecer, gostaria que meusrestos mortais descansassem junto ao BomJesus dos Navegantes, meu eterno irmão eamigo, a quem, com muito amor, doei todaminha vida, em Barra, minha querida diocese.

6. Peço, encarecidamente, que haja um pro-fundo respeito por essa decisão e que ela sejaobservada até o fim.

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�...Onde houver ofensa, que eu leve o perdão...�

Daniel Mansur

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�...Onde houver discórdia, que eu leve a união...�

Daniel Mansur

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A ARQUIDIOCESEDEMONTES CLAROS E A TRANSPOSIÇÃO

DOVELHO CHICO

O

DOMGERALDOMAJELA DE CASTRO

nas águas do Rio São Francisco e na vida so-frida do povo do semi-árido. Há mais de 30anos, exerce seu sacerdócio no médio SãoFrancisco, tornando-se um verdadeiro�barranqueiro�, companheiro humildade daspopulações ribeirinhas, que o tem em alta es-tima de homem de Deus. Entre 1993 e 1994,com alguns companheiros, realizou a Peregri-nação do São Francisco, caminhando por umano da nascente à foz, chamando a atençãoda sociedade e do poder público para a de-gradação do rio e a necessidade de suarevitalização. O profetismo e autenticidadede seu gesto, portanto, são comprovados porsua longa trajetória de defesa do Rio São Fran-cisco e serviço às populações ribeirinhas.

Atransposição do Rio São Francisco é umprojeto muito complexo. Além do alto

custo financeiro, estimado em quase cincobilhões de reais, causará grande impactoambiental e social e não se tem uma garantiasegura dos supostos benefícios que poderápropiciar à população do semi-árido. Por tudoisso, o projeto exige um amplo e profundo

grande educador Paulo Freiredisse certa vez que

os profetas são aqueles ou aquelas que se mo-lham de tal forma nas águas da sua cultura e dasua história, da cultura e da história de seu povo,dos dominados do seu povo, que conhecem oseu aqui e o seu agora e, por isso, podem prevero amanhã que eles mais do que adivinham, rea-lizam.

Nestes últimos dias, estamos acompanhandoo gesto profético do nosso irmão no Episco-pado, Dom Frei Luiz Flávio Cappio, Bispo daDiocese de Barra, Bahia. Com o intuito desensibilizar o governo brasileiro para suspen-der o projeto de transposição das águas doRio São Francisco e apressar o projeto de suarevitalização, colocou-se em greve de fome,desde o dia 26 de setembro, disposto a darsua vida pela vida do �Velho Chico�. Embo-ra não concordemos com esta atitude extre-mada, uma vez coloca a vida em risco, enten-demos e respeitamos a sua decisão e reconhe-cemos a nobreza de seu propósito.

Dom Frei Luiz Cappio deixou-se encharcar

Carta escrita pelo ArcebispoMetropolitano deMontesClaros, DomGeraldoMajela de Castro, em 6 de

outubro de 2005, emmanifestação sobre a greve defome de Dom Frei Luiz Flávio Cappio e o projeto de

transposição das águas do Rio São Francisco

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debate com a sociedade e com os especialis-tas. Infelizmente, não é isso que temos visto.Pelo contrário, as populações que sempre con-viveram com o rio, as ONGs e os movimen-tos sociais, que há muito tempo vêm atuandono sentido de revitalizar o São Francisco, es-tão sendo ignorados.

Segundo o Governo, o objetivo principal datransposição é levar água ao semi-árido. Obvi-amente, que não somos contra este propósito.Entretanto, a grande pressa em iniciar as obras,prescindindo de um diálogo profundo com acomunidade, nos deixa em dúvida quanto aoseu real objetivo. A impressão que temos é oque o calendário eleitoral está em primeiro pla-no... Além disso, existem outras alternativassustentáveis para o convívio com o semi-ári-do. O �Projeto Um Milhão de Cisternas�, que

consiste na construção de cisternas de placasa baixo custo, é um exemplo disso. Graças aeste projeto sustentável e de eficácia compro-vada, fruto da iniciativa da sociedade civil,milhares de famílias que vivem no chamadopolígono da seca estão tendo acesso a água deboa qualidade e à cidadania.

Por estas e outras razões, apoiamos a in-tenção da atitude de Dom Frei Luiz

Cappio, qual seja, a suspensão do projeto detransposição para continuar o processo deescuta da sociedade, principalmente, das po-pulações diretamente envolvidas. Aproveita-mos a ocasião para convidar o povo de Mon-tes Claros a se solidarizar com meu queridoirmão no episcopado e rezar para que suamensagem e seu gesto profético alcancem seuobjetivo. Que São Francisco, padroeiro do�Velho Chico�, interceda a Deus por nós.

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�...Onde houver dúvida, que eu leve a fé...�

Daniel Mansur

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�...Onde houver erro, que eu leve a verdade...�

Daniel Mansur

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RIO SÃO FRANCISCO:

E

NESTOR SANT�ANNAGUIOMARMURTA

Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Fizeram 737celebrações, 464 encontros com estudantesde todos os níveis, 296 com crianças, jovens,sindicatos, grupos ecológicos, colônias de pes-cadores e tribos indígenas, 46 encontros comcâmaras de vereadores, 35 com prefeiturasmunicipais, 15 com empresas, entrevistas para38 emissoras de rádio, 15 canais de televisão,45 jornais.

A mensagem era uma só: o Rio São Francisco está morrendo e é preciso lutar por

sua vida, pelas vidas de milhões de brasilei-ros que vivem de suas dádivas.

4 de outubro de 1993. Os peregrinos cumpri-ram 2.700 quilômetros de caminhada e feste-jaram o final da jornada numa celebração nopontal da barra, arrodeados de centenas denovos seguidores que a eles se foram ajun-tando em sagrada e ecológica procissão.

Os escritos da viagem, organizados por FreiLuiz, Adriano e Renato Kirchner compuse-ram o livro �RIO SÃO FRANCISCO � UmaCaminhada Entre Vida e Morte�.

m São Roque de Minas, noalto do Chapadão da Zagaia,na Serra da Canastra, fiéiscelebraram sua crença na

vida, na vida do rio, e dele se fizeram peregri-nos. Era 4 de outubro de 1992 e Frei Luiz Flá-vio Cappio, missionário franciscano � hojeDom Luiz, bispo da diocese de Barra, no cen-tro-oeste da Bahia, à margem esquerda do SãoFrancisco, onde o Rio Grande deposita suaságuas claras �, acompanhado da Irmã Concei-ção Tanajura de Menezes, educadora emissionária, de Orlando Rosa de Araújo, la-vrador e sindicalista, e de Adriano Martins,ativista ecológico, se puseram a caminhar rioabaixo, Brasil acima, ajuntando povo, dizendomissa, cantando benditos e contando lamen-tos de uma vida minguante.

Mãos e bolsos vazios, sua bagagem era umtestemunho de fé, uma imagem também pe-regrina do Santo de Assis.

Por 365 dias percorreram mais de 300 comu-nidades beiradeiras em Minas, Bahia,

água e vida

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Nele, os peregrinos deixaram, como mensa-gem, um rosário de contas que refletem,franciscanamente, convite e apelo a ummutirão de fé e trabalho pela vida do Rio eseu povo.

Em cada conta, um lamento e uma exortação, que sugerem fraterna comunhão

com a natureza, na perfeita interação de seuselementos semeadores da vida.

Juntam-se as contas no mistério de achar orumo, a nova direção para políticas e práti-cas educacionais de erradicação do analfa-betismo e eliminação da miopia de olharesdistanciados do verdadeiro sentimento ser-tanejo, promovendo, simultaneamente, com-preensão da realidade e valorização da cul-tura regional.

No louvor final, concentrado ato de fé peloexercício da cidadania e o cumprimento daspromessas de relação sadia, responsável eequilibrada com o meio ambiente.

�O Rio São Francisco está morrendo...� é cla-mor, é denúncia que está na visão dos bea-tos, nos poemas de Drummond e no ABCdos cordéis. Está na alma do povo moradorou viandante, no sofrer dos ribeirinhos. Odelato do rio é um retrato do Brasil. Nossaterra generosa, de natureza tão pródiga pe-los caminhos da história, se descuidou de en-sinar. Não clamou pelo cuidado que é devi-do a cada um pelos bens que são de todos,seja rua ou seja estrada, seja rio ou seja mar.Não preveniu os seus filhos quanto ao riscodo desrespeito pelo que é público ou geral;não criou obstáculo ao lixo pelas ruas e ter-renos, despejado nos esgotos, a deslizar paraos rios; não valorizou, na medida conveni-ente, o serviço sanitário, ostensivo só nascrises, falhando na prevenção. Foi o povoacostumado ao desprezo à coisa pública e àcausa de sanear. Não se entendeu que sujei-ra, correndo valas e sanjas, penetrava pelasveias e artérias do nosso chão. A água, san-

gue da terra, contaminou nossos rios, adoe-ceu nossa gente desavisada.

Se a história faz o povo, faz o povo a suahistória quando decide assumir. Há tempode reverter nosso jeito de ser gente, nossagente no seu jeito de se assombrar com amorte, reaprendendo viver. Se �o Rio SãoFrancisco está morrendo�, que venha o so-corro ecológico, a reza de quem tem fé, co-ragem de quem confia. Há de se ouvir umbendito cantado na voz do povo, na simpli-cidade capaz de fazer milagres, de chovertransformação.

O curso abençoado

Da Canastra, ele sai. Brota em fonte cristali-na, no berço verde da serra, entre veios, água,vida, preparando seu caminho que a naturezatraçou. Faz-se o curso, nasce o rio peregrino,cumpre nome de batismo, abre a força do seuleito, criando margens e história.

Santo rio, o São Francisco vai seguindo, prece e bênção, nos barrancos do caminho,procurando o seu destino: busca o norte, fer-tiliza o sertão, viaja manso e gigante até tom-bar ao leste para o destino domar. Segue unin-do terra e gente, vira rede e ajunta povo deVargem Bonita a Três Marias, de Pirapora atéa Lapa, de Barra ao Pontal do Peba, queren-do desassombrar o rosário de necessidades dacarência ribeirinha.

Se o rio pede defesa, sua sede dói em nós.Engatinhando em São Roque, se atira emCasca D�Anta, vira adulto, quer ser forte, maslhe roubam seu sossego... Vem garimpo, vemmudança no seu curso, vem entulho pelasmargens e vem mais: o triste desmatamentoceifando sua valentia.

Sorve nas águas que colhe, gosto de mataspassantes, sede das gentes sofridas que nasmargens plantam fé. Marginais lhe chegamatos, mais que fatos... São promessas e proje-

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tos que se gastam em intenções, mas não ga-rantem seu leito, não defendem seus peixes enem resguardam seu povo, tão distante dopoder.

São Francisco é franciscano no milagre dagrandeza, no ser próximo dos pobres, nacantilena da força, no simples de vocação.

Sendo o rio da unidade, sofre em cada con-tenção pelos tropeços dos homens, faz-se tris-te de águas turvas, poluídas, sem o transluzirperfeito que a nascente preparou.

Desde a nascente, tem apelo e encantamento, criando lendas, contando histó-

rias, mostrando ser predestinado. Tem prote-ção de padrinho, do irmão da natureza, dobom Santo de Assis, no seu berço, na Canas-tra, em imagem protetora, em visagem sob alua, em aparição contada... Tem o veio prote-gido, mas seu corpo é mutilado por minério epor desmate, nas margens onde a ganânciatransforma a mata em carvão. Treme exorci-zando o medo de mais perdas, novos erros,como a recobertura vegetal monótona e fo-rasteira, que afugenta os passarinhos e vairessecando seu chão.

Não chora o rio por si, chora as mágoas doseu povo aquinhoado de pouco, pelo peixeescasseado, pelo trabalho que falta, sofrendopor menos água, menos vida, menos sorte nosertão. Crianças de olhos tristonhos ouvemhistórias dos velhos, da fartura de bons tem-pos dos soberbos surubins. Querem tambémter direito às aventuras e casos, entrelaçandoraízes à realidade de um tempo que ainda podeacontecer.

Pelo sertão segue o rio, no amedronto dasbeiradas de belezas destruídas, seja no alto,médio ou no baixo, entre afluentes mirradose contaminados, esbarrando em Três Mariasque, dificultando a piracema, faz conter a for-ça viva do seu milagre de peixes, sua multi-plicação. Cantam benditos suas águas, pela

Barra de Urucuia, onde o povo, comungan-do, reparte o peixe e o pequi.

Crescem coroas de areia que são tumores noleito, revelando à flor das águas seu mal quepede socorro para garantir sua gente, livrar opovo da fome, botar pirão de sustância pelospratos de farinha.

OVelho Chico pergunta, como andarilho can-sado, onde estão suas veredas, cenários deTatarana, o palco de Guimarães. Questionan-do certo progresso, São Francisco lacrimeja,ouvindo sobre recursos ambientais e progra-mas que se escasseiam nos rumos, se enfra-quecem nos meandros das definições estéreise resvalam do seu leito.

Ele é um rio de fé.Não lhe bastasse o seu nome,não cumprisse o seu destino, seria ainda bommestre dando aula para os simples: ABC depescadores, tabuada de mulheres que somamfilhos e netos multiplicando esperança.

É rio de profecias, de beatos e poetas, deagouros, juras e votos, de caboclos e car-rancas, conjugando o fraseado em verso,prosa e cantigas, colhidos do sentimento ali-nhavado do povo que, no acanhado da fala,diz também suas verdades, fragmentandolições. �Quem na beira do Rio São Francis-co viver, rico não há de ser, de fome e sedenão há de morrer e mais de uma camisa nãohá de ter�. É isto que o rio pede a cada um,pede a nós, tão pouco: a sobrevivência. Tãomuito: a sustentação do direito conferidode unidade nacional.

Chega o rio à sua foz, enfraquecido na força, como sente e diz o povo no seu mo-

desto falar. Quase exaurido de fato, seu volu-me disponível se revela preocupante e se de-nuncia em sinais. Triste, o Arraial do Cabeçochora sua praça perdida onde o farol, velhomarco, se inclina ao sabor do mar. Salgadaságuas invadem seu espaço a obrigar o recuodo seu povo pela margem, rio acima, sem

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querer perder suamarca, mesmo perdendo seuchão.

Declaração Universal dos Direitos da Água

1

A água faz parte do patrimônio do planeta. Cadacontinente, cadapovo, cadanação, cada região, cadacidade, cada cidadão éplenamente responsável aosolhos de todos.

2

A água é a seiva do nosso planeta. Ela é a condi-ção essencial de vida e de todo ser vegetal, animalou humano. Sem ela não poderíamos concebercomo são a atmosfera, o clima, a vegetação, a cul-tura ou a agricultura. O direito à água é um dosdireitos fundamentais do ser humano: o direitoà vida, tal qual é estipulado noArt. 30 daDeclara-ção Universal dos Direitos do Homem.

3

Os recursos naturais de transformação da águapotável são lentos, frágeis e muito limitados.Assim sendo, a água deve ser manipulada comracionalidade, precaução e parcimônia.

4

O equilíbrio e o futuro de nosso planeta depen-dem da preservação da água e dos seus ciclos.Estes devem permanecer intactos e funcionandonormalmente, para garantir a continuidade da vidasobre a Terra.

Este equilíbrio depende, em particular, da preser-vação dos mares e oceanos por onde os cicloscomeçam.

5

A água não é somente uma herança dos nossos

predecessores, ela é sobretudo um empréstimoaos nossos sucessores. Sua proteção constituiuma necessidade vital, assim como uma obriga-çãomoral doHomem para com as gerações pre-sentes e futuras.

6

A água não é uma doação gratuita da natureza,ela tem um valor econômico; é preciso saber queela é, algumas vezes, rara e dispendiosa e quepode muito bem escassear em qualquer regiãodo mundo.

7

A água não deve ser desperdiçada, nem poluída,nem envenenada. De maneira geral, sua utiliza-çãodeve ser feita comconsciência e discernimento,para que não se chegue a uma situação de esgota-mento ou de deterioração da qualidade das reser-vas atualmente disponíveis.

8

A utilização da água implica o respeito à lei. Suaproteção constitui uma obrigação jurídica paratodo o homem ou grupo social que a utiliza.Esta questão não deve ser ignorada nem peloHomem nem pelo Estado.

9

A gestão da água impõe um equilíbrio entre osimperativos de sua proteção e as necessidades deordem econômica, sanitária e social.

10

O planejamento da gestão da água deve levar emconta a solidariedade e o consenso em razão desua distribuição desigual sobre a Terra.

(Histoire de L´Eau, George Ifrah, Paris, 1992)

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�...Onde houver desespero, que eu leve a esperança...�

Daniel Mansur

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�...Onde houver tristeza, que eu leve a alegria...�

Daniel Mansur

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�...Onde houver trevas, que eu leve a luz !...�

Daniel Mansur

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�...Consolar, que ser consolado...�

Daniel Mansur

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epois de participar doprojetoPalavras e Idéi-as, evento patrocinadopela Secretaria Munici-

O ANDARILHODO SÃO FRANCISCO

DÁRIO TEIXEIRACOTRIM

Dpal de Cultura, que teve como figura central ailustre escritora Amelina Chaves, senti umainvulgar necessidade de reler o seu livro: oAndarilho do São Francisco. A sensação que te-mos é que uma segunda leitura do livro é mui-to mais cativante do que a do primeiro conta-to. Nela há outras expectativas, tanto excitan-tes quanto as primeiras e que nos leva degus-tar as suas páginas de uma só investida. Talvezseja por isso que o cantador de viola, Teo Aze-vedo, venha admitir que �ela mistura isso aí cumuma tal ficção e o trem fica bão demais�. A verdadeé que essa ficção não seria de estranhar numaescritora acostumada pelo sentimento da sau-dade de uma infância perdida no tempo. Porisso a sua irresistível vocação de escritora rea-liza-se no melhor momento de sua vida.

Amelina Chaves é uma romancista que nãopode ser classificada com rótulos de qualqueruma das escolas literáriasmodernas. Como tan-

tos os grandes escritores de nossa contempo-raneidade, na sua obra não há imitações deestilos e nem de modismos, ela é solta e inde-pendente. É independente porque é única. Ésolta porque somente o coração de mãe assimo faz. O estilo é rebuscado, porém a expressãopoética é realmente notável. Vejamos esta in-teressante expressão: �A lamparina de luz morti-ça desenhava figuras estranhas na parede�. Quantasvezes, solitário num quarto de dormir, a gentevisualizava essas figuras aos quatro cantos daparede! Quantas vezes!

Éprecisamente essa capacidade de ser elamesma que a sua obra oAndarilho do São

Francisco varou todas as barreiras de precon-ceitos, motivou procedimentos diversos namaneira de ser e produziu momentos eróti-cos. A obra de Amelina Chaves é uma belezaidealizada em si mesmo. Evidentemente comum único objetivo: o de denunciar as desi-gualdades sociais e morais sobre os viventesda beirada do majestoso Rio São Francisco.Afinal, necessário se faz um grito de alerta.

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Uma das abordagens mais impressionan-tes e enriquecedoras do seu livro é quan-

do a escritora recupera a presença negra comotema central de suas histórias, não obstantetorná-lo um andarilho maltrapilho e viciadoem sexo. Por outro lado o melodrama enfeiti-çado que envolve o casebre durante uma noi-te de velório, transporta o leitor para ummun-do distante de sua realidade. Somente quemviveu situações análogas como esta é quepode descrever, com tanta firmeza e riquezade detalhes, o desespero de uma família po-bre encravada neste sertão de meu Deus.Nesse mesmo segmento disse o Turista comespanto:

Essa escritora deve ser muito pobre para conhe-cer tanta miséria. Como pode uma mulher des-crever tão bem essa realidade? Puxando pela me-mória que guardava tudo, tentou lembrar seunome: Amelina Chaves.

O mais instigante, entretanto, fica por contada união de raças e das classes sociais. O amorde Clarice (clara; branca e rica) e Bento(benedictus; São Benedito; negro e pobre) forma asdiferentes raças entre as suas famílias. Com asabedoria que lhe é peculiar, Amelina Cha-ves narra numa história humana, atenta àscomplexidades coletivas e individuais doambiente em que vive o homem sertanejo.Tudo que ela escreve, escreve sempre compaixão. Os detalhes são apenas migalhas de

vida. De sua vida comum. Quando ela falaque �o sol entrava por uma falha da janela de cai-xote�, é porque já viu de perto uma janela decaixote. Coisas tão comuns nos casebres amon-toados ao longo das margens do Rio São Fran-cisco.

Trata-se, na verdade, de uma história roma-nesca onde o Rio São Francisco é parte inte-grante dos fatos. O Rio abraça o personageme fala com ele de seus sentimentos. Por suavez, o personagem dialoga com o Rio em seusmomentos de angustias e sofrimento, supli-cando-lhe proteção. Esse diálogo lembra-noso livro Rosinha, minha canoa, do escritor JoséMauro de Vasconcelos, onde a natureza temvoz e vez; onde a natureza é amada e respei-tada e onde a natureza é vida!

Em resumo: o Andarilho do São Francisco éum romance que, ao longo dos tempos,

veio sofrendo pressões das classes sociais e pre-conceitos nos meios acadêmicos. Além dessestemas também é explorado o misticismo-religio-so. Mas com perspicácia e muito libido, suaautora conseguiu viver plenamente as tormen-tas das letras, não recusando nem mesmo aochamado vício do sexo, fato determinante doseu outro livro, intitulado: O Câncer da Vingan-ça. Finalmente, as portas fechadas para o amorse abrem para o leitor pelas mãos hábeis deAmelina Chaves. Benza Deus!

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A PELEJADOVELHOCHICOCONTRAOVAMPIRODATRANSPOSIÇÃO

O

ROGACIANOOLIVEIRA

Edificações modernasQue guardam água da chuvaCom instalações externas

Não cansa tanto as pernasA mulher e a criançaAndando pra pegar águaQuando a hora já avançaCom a água na cisternaTem saúde e esperança

Para acontecer mudançaNum sistema morimbundoÉ preciso ter bom sensoE sentimento profundoUsar racionalmenteOs recursos deste mundo

Desde D. Pedro segundoNo poder imperialJá falavam em transportarA bacia fluvialDas águas do São FranciscoUm grande manancial

sertão vai virar marO mar vai virar sertãoAssim falou ConselheiroCom toda convicção

Mas, deram à profeciaOutra interpretação

Dizem que a transposiçãoDo São Francisco é que vaiTrazer água �pro� sertãoQue do atraso não saiSó um mar de água doceO desenvolvimento atrai

Porém, a chuva que caiNão é nem aproveitadaEsta água, dádiva de DeusDeveria ser usadaEm grandes reservatóriosDevia ser captada.

Deveira ser guardadaEm tanques e em cisternasTem países que constroem

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E a idéia centralDa grande transposiçãoDas águas do São FranciscoQuem quer sua execuçãoDiz que vai salvar a vidaDo povo deste sertão

Dizem que a regiãoÉ seca e só tem misériaPorque não existe águaCorrendo nesta artériaSó com a transposiçãoResolveria a matéria

Porém, a coisa é mais sériaNão basta a água jorrarE ser mal aproveitadaSem potencializarSeu uso, sua gestãoPra nova vida gerar

Trazer água pra irrigarE produzir com venenoFrutas para exportaçãoDegradar o solo amenoNão muda a vida do povoE esta prática eu condeno

O agricultor pequenoProdutor familiarNeste sistema é vítimaDe exploração secularO grande se apropriaDo que o pobre plantar

E não vai adiantarAs águas do São FranciscoCorrendo pelo sertãoFazendo na terra um riscoO pobre não pode usarDesta água nem um trisco

É melhor mudar o discoDeixar de demagogiaDas riquezas naturais

O grande se apropriaA terra, o crédito e a águaO pequeno só �espia�

Se acontecer um diaEssa tal transposiçãoDo sofrido velho ChicoVítima de degradaçãoOs ricos se aproveitamPra fazer exploração

Digo isso com razãoPois todo grande projetoQue é feito no BrasilO rico lucra diretoEnquanto que para o pobreSobra a lama e o dejeto

Cimento, cal e concretoMuito dinheiro presenteNas tais obras faraônicasOnde o povo fica ausenteSem falar na agressãoAo nosso meio ambiente

O ministro, o presidenteQuerem a transposiçãoJustificam que é importantePara nossa regiãoDas bacias hidrográficasFazer interligação

Acham ser a soluçãoPara os problemas geraisDizendo que causariaTransformações sociaisPorém, pouco se discuteImpactos ambientais

Ninguém agüenta maisProjetos sem dimensãoQue agride o ambienteDesmatamento, erosãoA quem interessa mesmoFazer a transposição?

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Projetos de irrigaçãoCom muita água a jorrarExistem pelo nordesteProdução para exportarMas, o povo continuaNuma miséria sem par

É certo questionarQuem usará esta águaTirada do São FranciscoEm outro canal desaguaPopulações ribeirinhasSem ela sentirão mágoa

Hoje no Brasil a águaÉ produto de mercadoQualquer recurso existenteÉ logo privatizadoPoder, riqueza e rendaÉ por alguém concentrado

Eu estou desconfiadoPortanto, não fico omissoAs riquezas produzidasJá têm o seu compromisso:As mesmas grandes empresasÉ que lucrarão com isso

E os empresários nissoFazem da sua maneiraQuem lucra com grandes obrasÉ construtora e empreiteiraE o povo continuaCom fome na ribanceira

Atitude verdadeiraSeria aproveitarÁgua de tantos açudesQue enchem até sangrarE toda água sem usoPerto de salinizar

É fácil localizarAçudes pelo sertãoSem muita utilidade

Sem uso e sem funçãoQuando bem aproveitadosDesenvolvem a região

Investir na construçãoDe cisternas e barreirosE barragens sucessivasCom sentidos verdadeirosDemocratizando a águaPelos sertões brasileiros

Sem gastar muito dinheiroÉ possível transformarA vida no semi-áridoSem um rio transportarCom compromisso políticoAções locais implantar

É fácil aproveitarOs açudes existentesGrandes, médios e pequenosE também seus afluentesPara cultivar vazantesCom plantações diferentes

Pode-se plantar conscienteBatata doce e fruteiras,Hortaliças, melancia,Feijão pra vender nas feirasE na revência capinsPara as vacas leiteiras

Também tem outra maneiraDe aproveitar a estruturaDe açudes existentesPra fazer pisciculturaCriar peixes variadosPara a geração futura

Podemos fazer farturaCom pequena irrigaçãoCom cautela, com cuidadoUsando micro-aspersãoOu manejando a águaCom o uso de um sifão

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Fazendo captaçãoDa água para beberPara dentro da cisternaÉ possível conviverNeste sertão semi-áridoSem de longe água trazer

Basta o governo fazerAçudes de pedra e calBarragens subterrâneasA mandala é idealE as cisternas de placasTem impacto social

Para se viver legalNo campo e na cidadeExistem alternativasMas, depende da vontadePolítica e do sentimentoDe sustentabilidade

E não há necessidadeDe fazer transposiçãoDas águas do São Francisco

Pra melhorar o sertão;Mas, pensar como fazerSua revitalizaçãoPois é a concentraçãoDe água, riqueza e terraDesigualdade e injustiçaQue atrasa e que emperraA vida no semi-áridoOnde o povo sofre e berra

Mas, se o povo que se ferraSe organiza pra lutarCom certeza seus direitosConseguirão conquistarLiberdade e autonomiaA vida vai melhorar

E se democratizarTerra e água com certezaA vida vai melhorarCom a redução da pobreza.Um outro mundo é possívelMais humano, mais plausívelRespeitando a natureza

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�...Compreender, que ser compreendido...�

Daniel Mansur

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�...Amar, que ser amado...�

Daniel Mansur

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�...Pois é dando, que se recebe...�

Daniel Mansur

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�...Perdoando, que se é perdoado e...�

Daniel Mansur

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�...é morrendo, que se vive para a vida eterna!�

Daniel Mansur

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JOÃO BATISTA DE ALMEIDA COSTA é doutor em Antropologia pelaUNB (Universidade de Brasília), professsor/pesquisador do Departamentode Ciências Sociais e do Mestrado em Desenvolvimento Social daUNIMONTES. Membro do Conselho Editorial da REVISTA VERDEGRANDE. E-mail: [email protected]

TÉO AZEVEDO é mineiro de Alto Belo, distrito de Bocaiúva, e adquiriucelebridade pelo volume de cordel publicado, por sua obra de repentista epela grande quantidade de discos que produziu, revelando para o cenáriomusical nacional artistas como Jackson Antunes e Caju & Castanha. É, atual-mente, o principal representante da chamada cultura de resistência do �Brasilcom S�.

CARLOS DAYRELL, membro do Conselho Editorial da REVISTA VER-DE GRANDE, é pesquisador, mestre em Agroecologia e DesenvolvimentoRural Sustentável pela Universidade de Andaluzia, Espanha. Engenheiro agrô-nomo, compõe a equipe técnica do Centro de Agricultura Alternativa doNortede Minas (CAA/NM), do qual é fundador, coordenando o ProgramaAgrobiodiversidade. Atua, ainda, no Programa Gestão Territorial e DireitosHumanos. E-mail: [email protected]

HELEN SANTA ROSA é jornalista. Assessora de comunicação e mem-bro da equipe técnica do CAA/NM. Acompanha as comunidades doQuilombo do Gorutuba, assessorando-as no processo de organização so-cial. E-mail:[email protected]

BRENO GONÇALVES é administrador, especializando em Gestão Estra-tégica pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).Membro da equipe técnica do CAA/NM, assessora a Cooperativa GrandeSertão na área de Gestão e Comercialização. E-mail: [email protected]

DÁRIO TEIXEIRA COTRIM é Historiador do Instituto Histórico e Geo-gráfico de Minas Gerais e membro da Academia Montes-clarense de Letras.

DONALD SAWYER é coordenador nacional do Programa de Pequenos Pro-jetos Ecossociais, no âmbito do Instituto Sociedade, População e Natureza �ISPN.

INFORMAÇÕES DOS AUTORES

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MARIA HELENA DE SOUZA IDE é membro dos Conselhos Editorial eExecutivo da REVISTA VERDE GRANDE. Doutora em Educação, inte-gra o corpo docente do Mestrado em Desenvolvimento Social daUNIMONTES. Entre outras funções, atuou como gerente de AdministraçãoEscolar da Secretaria Municipal de Educação de Montes Claros. E-mail:[email protected]

LUIZ ANTÔNIO CHAVES é advogado, diretor-geral do Instituto de Terrasde Minas Gerais (Iter-MG). E-mail: [email protected]

LEONARDO MATTOS é o primeiro deputado federal eleito pelo PV deMinas Gerais. Coordenador da Frente Parlamentar �Salve o São Francis-co�, é membro titular da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmarados Deputados. Autor do projeto que institui a Política Nacional de Resí-duos Sólidos e que cria a Certidão Negativa de Débito Ambiental.E-mail:[email protected]

DOM LUIZ FLÁVIO CAPPIO é bispo da Diocese de Barra, Bahia. Nasceu nodia 4 de outubro, Dia da Ecologia, mesma data em que Américo Vespúcio, em1501, batizou o mais importante rio do Brasil com o nome de São Francisco.

DOM GERALDO MAJELA DE CASTRO é Arcebispo Metropolitano deMontes Claros. Presidente do Conselho Editorial da �Revista Católica�.

NESTOR SANT�ANNA é jornalista. Membro do Conselho Editorial daREVISTA VERDE GRANDE. Presidente da Fundação Rádio Inconfidên-cia de Minas Gerais. E-mail: [email protected]

GUIOMAR MURTA é assistente social, professora universitária e, principal-mente, escritora. Entre outros, escreveu os livros Deus na Intimidade, Patchuli,Musmê, Conto Histórias de Vida, Velho Chico 500 anos, Maratiá e Genésio de MeloPereira: Sem Pedestal.

ROGACIANO OLIVEIRA é titular absoluto da sessão de cordéis da ASA �Articulação no Semi-Árido Brasileiro. Escreveu Água no Semi-Árido, Convivên-cia com o Semi-Árido, Cistena de Placas: Importância e Cuidados, Segurança Alimentare A Articulação no Semi-Árido vai mudar o Sertão.

ELISA COTTA é fotógrafa e agrônoma. Compõe a equipe técnica do CAA/NM. Atua no Programa Produção Agroecológica e no DesenvolvimentoInstitucional. Segue registrando expressões das populações tradicionais noVale do Jequitinhonha e Norte de Minas. E-mail: [email protected]

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Arte, Impressão e MontagemImprensa Universitária Unimontes

Campus Universitário Professor Darcy RibeiroTelefone: (38)3229-8221/3229-8222/3229-8223

E-mail: [email protected]

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