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VÍRUS #8 — JANEIRO/FEVEREIRO 2010 “DEMOCRACIA E SERVIÇOS PÚBLICOS” - ENCONTRO DA AULA MAGNA ECONOMIA JORGE BATEIRA, JOSÉ CASTRO CALDAS, ANDRÉ FREIRE, ALEXANDRE AZEVEDO PINTO, JOSÉ REIS E JOÃO RODRIGUES EDUCAÇÃO ANTÓNIO AVELÃS, CECÍLIA HONÓRIO, JORGE MARTINS, LICÍNIO LIMA, NUNO DAVID, PAULO SUCENA SAÚDE JOÃO SEMEDO, MÁRIO JORGE NEVES TRABALHO ELÍSIO ESTANQUE, MARIANA AIVECA CIDADES PEDRO BINGRE, FERNANDO NUNES DA SILVA, MANUEL CORREIA FERNANDES ENCERRAMENTO ANA DRAGO, ROSÁRIO GAMA FOTOGALERIA ANDRÉ BEJA

Revista Virus #8

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Nesta edição: "Democracia e Serviços Públicos" - Encontro da Aula Magna. Economia: Jorge Bateira, José Castro Caldas, André Freire, Alexandre Azevedo Pinto, José Reis e João Rodrigues Educação: António Avelãs, Cecília Honório, Jorge Martins, Licínio Lima, Nuno David e Paulo Sucena Saúde: João Semedo e Mário Jorge Neves Trabalho: Elísio Estanque, Mariana Aiveca Cidades: Pedro Bingre, Fernando Nunes da Silva, Manuel Correia Fernandes Encerramento: Ana Drago, Rosário Gama Fotogaleria: André Beja

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VÍRUS#8 — JANEIRO/FEVEREIRO 2010

“DEMOCRACIA E SERVIÇOS PÚBLICOS” - ENCONTRO

DA AULA MAGNAECONOMIA JORGE BATEIRA, JOSÉ CASTRO

CALDAS, ANDRÉ FREIRE, ALEXANDRE AZEVEDO PINTO, JOSÉ REIS E JOÃO RODRIGUES

EDUCAÇÃO ANTÓNIO AVELÃS, CECÍLIA HONÓRIO, JORGE MARTINS, LICÍNIO LIMA, NUNO DAVID,

PAULO SUCENA

SAÚDE JOÃO SEMEDO, MÁRIO JORGE NEVES

TRABALHO ELÍSIO ESTANQUE, MARIANA AIVECA

CIDADES PEDRO BINGRE, FERNANDO NUNES DA SILVA, MANUEL CORREIA FERNANDES

ENCERRAMENTO ANA DRAGO, ROSÁRIO GAMA

FOTOGALERIA ANDRÉ BEJA

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VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2010 [2] EDITORIAL

ESTE NÚMERO DA VÍRUS PUBLICA ALGUNS dos textos produzidos a partir das intervenções pro-feridas no encontro da Aula Magna sobre “Serviços Públicos e Democracia” (14 de Dezembro de 2008). Relembramos o objectivo primeiro da respectiva Co-missão Promotora: “o fórum da Aula Magna será esse espaço de reflexão aberta de quem entende que a defesa dos serviços públicos modernos de qualidade é um valor essencial da responsabilidade da Repúbli-ca”. Assim, a Vírus solicitou aos autores autorização para publicar os textos e aqui estão os que ou esta-vam escritos ou puderam ser escritos a tempo, com a versão final que cada autor ou autora lhes quis dar. Assim, nada comprometem senão as diversas opini-ões que são as destas vozes e pensamentos.

Todos os textos têm data e circunstância. Alguns estão aparentemente mais situados do que outros, particularmente no que se refere à Educação, dada a enorme preocupação existente na altura sobre a

política educativa do primeiro governo Sócrates e o embate contra os professores, mas os princípios que lhes estão subjacentes permanecem de uma rigorosa actualidade. De um modo geral, pressente-se uma at-mosfera de «fim de ciclo» político.

Não por acaso o mote deste encontro centrou-se na questão da “democracia e serviços públicos”. Um avanço substantivo face ao fórum da Trindade onde se quebrou o tabu sobre a possibilidade de conver-sar e convergir à esquerda. Aqui há já uma agenda: os serviços não transaccionáveis como cerne de uma democracia de qualidade, como fundamento mesmo da própria democracia. O projecto, enfim, de justiça na sociedade e na economia enquanto direcção mo-dernizadora em tudo oposta ao desmantelamento neoconservador do espaço público.

Na verdade, como as páginas seguintes tão bem ilustram, a alternativa não está entre a privatização e a prestação de serviços medíocres. Ao invés, o desin-

vestimento sistemático na rede de serviços públicos surge, precisamente, como legitimação perversa de uma intenção predatória sobre os recursos comuns. A singularidade do capitalismo rentista português ilustra com intensidade a socialização por parte do Estado dos riscos e prejuízos dos grandes grupos económicos, ao mesmo tempo que progressivamente lhes entrega os domínios de lucro garantido e fácil, particularmente aqueles onde a procura é inelástica.

A actual crise sistémica do capitalismo avançado mostra à saciedade a “alma” dos mercados na ortodo-xia do ajustamento orçamental: privatizar ao limite; deflação salarial como estímulo ao crescimento; au-mento do desequilíbrio entre salários e lucros; corte nas despesas públicas e no investimento do Estado; pacto político conservador. Perante a “irritação” dos mercados, os habituais pruridos deixam de fazer sen-tido e percebe-se, de uma assentada, que o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia (o

UMA ESQUERDA PARA AQUI E AGORA

EDITORIAL | JOÃO TEIXEIRA LOPES

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VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2010 [3] EDITORIAL

eixo franco-alemão zurzindo a ameaça do colapso do euro e apontando-nos a porta de saída da integração europeia) e as fantasmagóricas “agências de rating” (as mesmas que premiram o gatilho da crise ao cre-dibilizarem e disseminarem o “lixo tóxico” – para quando a sua transformação, como sugere Nuno Teles, em agências públicas internacionais, sem fins lucrativos, cujos modelos de avaliação sejam transpa-rentes?!) querem uma coligação profunda entre o PS, o PSD e o CDS.

As esquerdas que nestas páginas debatem o país e o mundo recusam o dogma de que os mercados de-cidem pelas pessoas. Não se encontrará aqui propa-ganda sobre a construção próxima e estereotipada do socialismo... Traçam-se antes linhas de conver-gência que não escondem diferentes grelhas de lei-tura da realidade. É esta a “esquerda máxima”: a que não foge ao debate e que, na diversidade, encontra caminhos concretos de combate pela urgência de um outro mundo.

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VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2010 [4] DEMOCRACIA E SERVIÇOS PÚBLICOS – ECONOMIA

EM DEFESA DO PÚBLICO NOS SERVIÇOS PÚBLICOSJORGE BATEIRA, JOSÉ CASTRO CALDAS, ANDRÉ FREIRE, ALEXANDRE AZEVEDO PINTO, JOSÉ REIS E JOÃO RODRIGUES

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VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2010 [5] DEMOCRACIA E SERVIÇOS PÚBLICOS – ECONOMIA

PARTICIPÁMOS NO PAINEL SOBRE ECONOMIA do encontro “Democracia e Serviços Públicos”. O debate tornou claro que o pluralismo das esquerdas não tem de ser sinónimo de falta de diálogo e de cooperação. Este encontro demonstra que há muita gente (nos partidos de esquerda e independentes) que entende que a excepção portuguesa da incomunicabilidade e da ausência de coo-peração entre as esquerdas não é um problema insuperá-vel. As convergências fazem-se com diálogo aberto sobre os pontos de concórdia e discórdia. Entre as esquerdas, o pluralismo é positivo e enriquecedor, desde que sem sec-tarismos. Mais, muitos como nós pensam que a resposta política para boa parte dos problemas com que hoje o nosso país está confrontado passa por entendimentos entre as diferentes correntes da esquerda.

No âmago da divisão entre esquerda e direita está a valorização da igualdade das condições e oportunidades de vida. Isto não significa que todas as direitas sejam necessariamente inigualitárias. Mas há uma direita para quem a única igualdade seria a igualdade perante a lei que, rejeitando a acção política para promover a igualiza-ção das condições e oportunidades de vida, prefere con-fiar fundamentalmente no mercado. As esquerdas, pelo contrário, olham para o Estado como um instrumento crucial da promoção da igualização das condições e das oportunidades de vida.

Não se trata de defender o predomínio do Estado so-bre os indivíduos. Do que se trata é de defender um papel fundamental para o Estado na área dos serviços públi-

cos (saúde, educação e segurança social) e também em sectores estratégicos da economia, nomeadamente nos chamados “monopólios naturais”. Não se trata apenas de melhor servir o desiderato da igualdade. O que está em causa é também um modelo de desenvolvimento: o investimento privado é uma componente central da eco-nomia, devendo ser fortemente apoiado nos sectores que produzem bens e serviços transaccionáveis, não apoiado nos sectores protegidos da concorrência internacional, e indesejável nos serviços públicos e nos monopólios naturais.

No processo de privatização da provisão de serviços públicos, o Estado transforma-se no que já foi designa-do de ‘Estado Predador’ - uma coligação de interesses económicos rentistas que prosperam no quadro de um regime de acumulação baseado na expropriação dos recursos públicos. O caso português é ilustrativo. Na sequência do processo de privatizações (re)constituíram-se em Portugal grupos económicos que se caracterizam precisamente pelo acantonamento na produção de bens não transaccionáveis e pela penetração crescente na es-fera da provisão de serviços públicos.

As consequências de tudo isto estão à vista nos países onde o processo foi levado mais longe: fractura social entre os que têm acesso (à saúde, ao ensino e à protecção face aos riscos de desemprego) e os que não têm. Onde o processo ainda vai a meio é patente o aumento do custo e a degradação da qualidade dos serviços (anteriormente) públicos. Em Portugal, que de há décadas a esta parte

continua a situar-se entre os campeões das desigualda-des na distribuição de rendimentos em toda a UE e onde os salários continuam tão baixos que um terço dos be-neficiários do “rendimento social de inserção” trabalha, a qualidade e a universalidade dos serviços públicos está também sob pressão.

Contrariando uma certa imagem construída pelos seus adversários, de que as esquerdas socialistas seriam um movimento “bota-abaixista” desprovido de propos-tas exequíveis, o debate permitiu identificar acordos em torno de algumas linhas de política:

O reconhecimento da centralidade do papel do Estado. Esta centralidade não deve ser confundida com o papel que o Estado actualmente desempenha na socialização das perdas do sector financeiro. A designação “Estado estratega” foi já utilizada para caracterizar o que agora, em contexto de crise, mais do que nunca é necessário: um Estado que em nome do interesse público reassume o controlo de sectores estratégicos, se responsabiliza pela provisão de serviços públicos e pela gestão do território, e utiliza os meios de que dispõe para incentivar e enqua-drar o investimento privado.

Valorização do serviço público. Em desacordo com as teorias e as práticas da “nova gestão pública”, que tão influente se tornou entre nós dando origem a mais con-flitos do que reformas, subscrevemos o que um de nós afirmou: “O nosso País não está condenado a escolher entre serviços decadentes e burocratizados, de um lado, e a erosão do Estado conduzida segundo a ideologia ges-

EM DEFESA DO PÚBLICO NOS SERVIÇOS PÚBLICOSJORGE BATEIRA, JOSÉ CASTRO CALDAS, ANDRÉ FREIRE, ALEXANDRE AZEVEDO PINTO, JOSÉ REIS E JOÃO RODRIGUES

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tionária da modernização, do outro”. Existem formas de modernizar a administração pública que, não reduzindo os servidores do Estado à condição de oportunistas e egoístas, podem nutrir os valores e os significados ca-racterísticos da ética de serviço público. Os funcionários podem e devem ser mobilizados para garantir o sucesso de quaisquer reformas.

Combate à desigualdade pela valorização do trabalho. A direita procura reduzir o combate à desigualdade à provisão de mínimos de subsistência para os que não podem trabalhar, ou a uma redistribuição do rendimento compensatória. O caso português é ilustrativo das limi-tações das políticas sociais meramente reparadoras. Para a direita, a determinação do valor do trabalho deveria ser deixada ao mercado. Em alternativa, entendemos ser necessário promover a desmercadorização do tra-balho através de regras que protejam os trabalhadores, combatam a precariedade, e garantam salários dignos. O desemprego deixou já de ser o principal mecanismo gerador de pobreza, o próprio sistema produtivo voltou a produzir, a par de mercadorias, trabalhadores pobres.Queremos acreditar que estes debates foram o primeiro passo de um processo que dê aos portugueses razões para enfrentarem o futuro com mais confiança.

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DO ESTADO PREDADOR AO ESTADO ESTRATEGA

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ESTRADAS, PRISÕES, AEROPORTOS, MATAS nacionais, rede eléctrica, património histórico, áreas protegidas, hospitais. A lista não tem fim. A progressiva canibalização da esfera pública é assegurada através de engenharias políticas, envolvendo opacas privatizações e parcerias público-privadas, complexas subcontratações ou dispendiosos subsídios e incentivos fiscais. Entrega-se, desta forma, o controlo de equipamentos e de infra-estruturas públicas à voragem de interesses capitalistas cada vez mais predadores.

A especialização dos grupos económicos nos sectores dos bens não-transaccionáveis, menos exposto à con-corrência internacional, deve-se, em parte, a políticas públicas erradas que abrem aos privados áreas onde os lucros estão politicamente garantidos porque, dada a im-portância dos bens e equipamentos em causa para a vida da comunidade, o Estado acaba sempre por ter de assu-mir os riscos do “negócio”. O esvaziamento do Estado, associado ao atrofiamento da provisão e do controlo pú-blico, avança a par da inserção cada vez mais dependente da economia portuguesa. Esta traduz-se numa balança comercial muito desequilibrada e num endividamen-to externo crescente e deve-se, em parte, ao défice de investimento no sector dos bens transaccionáveis para exportação, em especial nos sectores tecnologicamente mais avançados, onde as virtudes empreendedoras po-dem ser testadas. No entanto, quem quererá investir em bens e serviços para exportação quando pode controlar a Brisa, a Lusoponte ou a REN, empresas onde, dada a

natureza da actividade, os lucros, ou melhor, as rendas, estão praticamente garantidas?

Como sublinhou recentemente Nuno Teles, a finan-ceirização da economia portuguesa, associada ao poder do sector financeiro, cujo crescimento desmesurado foi activamente promovido pelas políticas públicas neolibe-rais, deixou um rasto de sobrendividamento das famílias, de especulação fundiária e financeira e contribuiu para aprofundar ainda mais a funesta aposta económica pri-vada em sectores de bens não-transaccionáveis como a construção de habitação a preços empolados1.

Estes processos avançaram a par de um esforço político para aumentar a discricionariedade do poder empresarial privado e para assegurar que este conse-gue transferir mais custos para os trabalhadores. Disso são exemplos a complacência face ao brutal aumento da precariedade – desde 2005 que o número de trabalhado-res precários, que auferem em média 73% do salário dos trabalhadores com contratos sem termo, cresceu mais de duas centenas de milhar – e as gravosas alterações ao código de trabalho – que vão da redução dos custos salariais por via de adaptabilidade de horários à dupli-cação do chamado período experimental, passando pelo esfarelamento da contratação colectiva. Estas opções traduzem uma recusa política em fixar regras exigentes que assegurem um maior equilíbrio nas relações labo-rais e que aumentem os incentivos para a modernização da estrutura produtiva, a partir do momento em que os sectores mais retrógrados do patronato sabem que não

podem mais prosperar através da transferência siste-mática de custos para os trabalhadores sob a forma dos baixos salários, das relações laborais autoritárias ou da precariedade.

O atrofiamento do espaço público, a financeirização da economia, agora em crise, e um modelo de relações laborais que atribui mais liberdade aos patrões, o que tem como contrapartida necessária a maior vulnerabi-lidade dos trabalhadores, traduzem a consolidação do que o economista norte-americano James Galbraith de-signou por “Estado predador”, ou seja, uma “coligação de interesses económicos reaccionários” que prosperam através de políticas públicas neoliberais de esvaziamento do Estado democrático que protegia o interesse público e os trabalhadores2. Esta ideia, pensada para a economia norte-americana, aplica-se que nem uma luva às políticas públicas dominantes da “esquerda moderna” no nosso país. As consequências desastrosas deste processo só tornam mais urgente a definição de uma alternativa polí-tica de esquerda que terá de contribuir para a construção do que Manuel Alegre designou por “Estado estratega”. Este tipo de configuração envolve uma acção pública determinada numa multiplicidade de áreas, dos serviços públicos ao combate às desigualdades. No resto deste breve texto, discuto algumas políticas que podem ajudar a reverter o carácter rentista do capitalismo português.

Um Estado estratega deve ter como uma das suas prioridades apoiar e orientar o investimento privado no sector dos bens transaccionáveis para exportação. Isto

DO ESTADO PREDADOR AO ESTADO ESTRATEGAJOÃO RODRIGUES | ECONOMISTA

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pressupõe, em primeiro lugar, traçar linhas claras entre o que público e o que é privado, ou seja, um Estado es-tratega tem de controlar e de gerir directamente todos os chamados “monopólios naturais”, do abastecimento de água à rede eléctrica ou à rede de estradas.

Em segundo lugar, um Estado estratega tem de re-forçar o controlo do sector financeiro. A actual crise as-sinala os limites das privatizações do sector bancário que dominaram a paisagem europeia desde os anos oitenta. Agora que é inegável o tratamento diferenciado deste sector face à restante economia – os bancos não podem ir à falência – teremos de regressar, em novos moldes, a uma maior presença pública neste sector. Só assim será possível dirigir o crédito disponível prioritariamente para os sectores exportadores e/ou criadores de empre-go de qualidade que o país tem interesse em promover.

Em terceiro lugar, um Estado estratega tem de definir uma política fiscal calibrada para combater a especulação fundiária e bloquear alguns dos mecanismos que contri-buem para a corrupção e que acentuam a funesta aposta económica privada na especulação fundiária. Como se defende numa proposta recente da esquerda socialista, uma política inteligente nesta área passa, entre outras medidas, pela “cativação pública das mais-valias decor-rentes da valorização de terrenos em consequência da alteração da sua definição por via de actos administrati-vos da exclusiva competência da Administração Pública ou da execução de obras públicas que resultem total ou parcialmente do investimento público”.

Finalmente, e nas actuais circunstâncias nacionais, é necessário reconquistar alguma margem de manobra para evitar que a actual crise conduza a um brutal e irre-versível processo de destruição industrial, aprofundando

tendências económicas que vêm de uma inserção inter-nacional mal gerida que se entregou cegamente às forças do mercado global sem procurar uma inserção favorável ao progresso tecnológico e produtivo do país. Como de-fendeu recentemente João Ferreira do Amaral, isto passa por encontrar, à escala da UE, “um sistema para possibi-litar que os Estados com défices persistentes na balança de pagamentos possam aplicar medidas excepcionais, derrogando, se necessário e temporariamente, as leis da concorrência e das ajudas de Estado para poderem combater esse défice” 3. Desta forma poder-se-á ganhar mais espaço para forjar uma política industrial coerente, servida por incentivos selectivos e por investimentos públicos bem planeados, que favoreça a área dos bens transaccionáveis intensivos em conhecimento e em tec-nologia e não a captura de sectores da provisão pública. Deve ser ainda realçado que o Estado democrático é uma arena de conflito e de cooperação permanentes. A actual trajectória só pode ser politicamente revertida com uma robusta aliança entre as classes médias e os trabalhado-res. No fundo, ainda podemos escolher. Entre o Estado estratega e o Estado predador, como sempre acontece, é tudo uma questão de políticas.

NOTAS1. Nuno Teles, “A crise e o processo de financeirização em Portugal”, Le Monde diplomatique, Dezembro de 2008.

2. James Galbraith, The Predator State, Nova Iorque, Free Press, 2008.

3. João Ferreira do Amaral, A “crise o futuro”, Le Monde Diplomatique, Janeiro de 2009.

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A ESQUERDA

E A REFORMA

DOS SERVIÇOS PÚBLICOS

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DESDE OS GOVERNOS DE REAGAN E THATCHER que o Estado e as políticas públicas têm sido apontados como responsáveis pelo baixo crescimento económico e uma série de danos à sociedade que legitimariam a sua reforma em extensão e profundidade. De facto, face à inegável ineficiência e má qualidade de muitos serviços públicos, não foi difícil aos centros de difusão das ideias neoliberais, como é o caso da OCDE, criar na opinião pública um estado de espírito favorável ao desmantela-mento das práticas de administração herdadas do passa-do. Até ao eclodir da presente crise, os serviços públicos estavam no topo dessa agenda reformista preconizada pela Estratégia de Lisboa como condição de sobrevivên-cia do Estado de Bem-Estar europeu.

A queda do muro de Berlim, a consolidação de uma certa ideia de “economia de mercado”, e as repetidas der-rotas eleitorais da social-democracia europeia, levaram a esquerda reformista a abraçar um sistema de ideias e procedimentos, com origem nos EUA e inspirados na gestão das empresas privadas, a que se convencionou chamar Nova Gestão Pública (NGP).

Assim, recrutaram-se consultores de todo o tipo para diagnosticar problemas e desenhar intervenções que deveriam proporcionar ganhos de eficiência nos ser-viços públicos. Aliás, ‘eficiência’ é uma palavra-chave no argumento dos que defendem reformas estruturais na administração pública, sendo frequentemente usada para sugerir que os críticos destas reformas são cidadãos pou-co preocupados com o bom uso dos recursos do Estado.

As reformas inspiradas pela NGP utilizaram instru-mentos variados: privatização da provisão de serviços públicos, subcontratação de serviços antes assegurados internamente, substituição do estatuto de funcionário público pelo contrato individual de trabalho, institucio-nalização de métodos de comando e controle com re-curso à informatização, preferência por indicadores de gestão quantitativos em nome da objectividade, remu-neração diferenciada como critério de reconhecimento e estímulo do mérito, alguma preocupação com a satisfa-ção dos ‘consumidores’ dos serviços.

Hoje sabemos que nos EUA, Reino Unido e Nova Zelândia, países onde a NGP foi mais longe na sua apli-cação, os ganhos de eficiência foram medíocres e as con-sequências globais foram reconhecidamente nocivas, sobretudo porque fragilizaram a administração pública em três dimensões cruciais:

(1) no sistema de regras, porque o zelo anti-burocracia não percebeu que regras e regulamentos são essenciais para preservar a estabilidade e a integridade dos ser-viços públicos. Ignorando esta perspectiva, criou novas oportunidades de corrupção e desperdício de recursos.

(2) no sistema valores, porque a redução de custos a qualquer preço despediu os mais velhos e experientes e desinvestiu na formação e nos vínculos relacionais dos que ficaram, dessa forma destruindo a memória de va-lores e normas de comportamento que conferiam uma ética e uma identidade ao serviço. Assim se destruiu muito do orgulho dos funcionários em servir o bem público.

(3) no sistema de significados, porque muitas regras eliminadas sustentavam um conjunto de interpretações partilhadas sobre o modo de entender e lidar com pro-blemas que o ambiente da organização colocava. Em si-tuações de incerteza, e subalternizada a ética do serviço público, os comportamentos tenderam a tornar-se defensivos, seguindo à risca as novas orientações.

Na realidade, a NGP ignora a diferença entre organi-zações de serviço público e empresas privadas em (pelo menos) dois aspectos cruciais: o Estado democrático está ao serviço do bem público; o Estado democrático detém o monopólio do poder de coerção. Por isso, quando a adminis-tração pública adopta técnicas de gestão empresarial, vê-se frequentemente confrontada com dificuldades inespe-radas, o que exaspera os agentes políticos reformadores e os leva a tratar os funcionários que suscitam reservas e/ou apontam efeitos perversos, como conservadores que defendem interesses corporativos. De facto, a ideolo-gia gestionária não tem em conta que, na administração pública, é a estabilidade, a transparência, a integridade, o respeito pelos procedimentos instituídos que devem primar sobre a rapidez e o custo imediato e quantificável. Es-tes promotores de ‘modernidade’ não percebem que as reformas inspiradas pela NGP conduzem, em última análise, à fragilização do Estado democrático.

Aliás, mesmo sem sair do quadro de uma raciona-lidade calculatória e de curto prazo, alguns autores insistem que, quando se somam os custos dos estudos e dos serviços dos consultores, os custos de reorgani-

A ESQUERDA E A REFORMA DOS SERVIÇOS PÚBLICOSJORGE BATEIRA | ECONOMISTA

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VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2010 [12] DEMOCRACIA E SERVIÇOS PÚBLICOS – ECONOMIA

zação decorrentes de uma mudança radical conduzida por gestores sem conhecimento específico, o acréscimo nas remunerações e demais benefícios atribuídos a estes gestores, e a conflitualidade e desmotivação geradas por remunerações diferenciadas cujo critério de atribuição não é evidente, chega-se à conclusão que os ganhos de eficiência prometidos são afinal uma pura ilusão. Mas, entretanto, abriram-se oportunidades de negócio fácil para o sector privado.

Bem revelador do nosso atraso cultural é a ausência de debate público informado sobre a NGP. Note-se que em 2000 esta corrente da gestão pública já tinha dificul-dade em apresentar evidência empírica sólida, e em 2005 já não tinha credibilidade nos meios académicos mais respeitados.1 Ainda assim, mesmo sem ter provado os seus méritos na área da saúde, sector onde em Portugal a NGP foi adoptada com grande determinação política, o actual governo decidiu que era imperioso estendê-la aos restantes serviços públicos, com destaque para a educa-ção. Os resultados são no mínimo problemáticos.

Subjacente à aplicação desta NGP está uma visão das organizações focada nos custos associados a com-portamentos oportunistas. Esta orientação de princí-pio, quando aplicada em serviços públicos onde cuidar do utente é o essencial do trabalho, “(1) produz efeitos adversos no que toca à motivação e à produtividade e, o que é mais importante, (2) pode comprometer a propen-são do indivíduo para se comportar honestamente. As pessoas, quando tratadas com suspeição e na expectati-va de que, dispondo de uma oportunidade, se comporta-rão de forma desonesta, podem mesmo ser induzidas a comportar-se segundo esse pressuposto do sistema de gestão.”2

Hoje, a esquerda deve dizer com clareza que não es-tamos condenados a escolher entre, de um lado serviços decadentes e burocratizados e, de outro lado, a erosão do Estado através da submissão do interesse público a interesses privados, promovida por uma ideologia ges-tionária. O primeiro passo de uma alternativa de esquer-da para a melhoria dos serviços públicos será sempre o de ouvir os funcionários que, no quotidiano, são o rosto da administração pública, e os utentes desses serviços. Como dizia Michel Crozier, experiente sociólogo das or-ganizações, “não são apenas os quadros técnicos e dirigentes intermédios, mas também os trabalhadores na base, que podem e devem inovar”.3

Após experiências traumatizantes, o País precisa de repensar a reforma dos serviços públicos a partir de uma ‘ética do cuidar’ que ponha as políticas públicas ao ser-viço do desenvolvimento, entendido este como melhoria sustentada da qualidade de vida da comunidade.4 Tendo em conta que os fins e os meios das políticas são na realidade interdependentes, uma orientação de esquerda na refor-ma dos serviços públicos terá de promover também a qualidade de vida dos próprios funcionários no seu local de trabalho. Isto implica, no plano local, uma particular atenção às especificidades de cada organização e o en-volvimento dos funcionários na concepção da reforma do serviço e na avaliação dos seus resultados. Em rigor, não se trata de ‘fazer reformas’. Trata-se de desencadear processos de aprendizagem colectiva, em contextos específi-cos, tendo em vista o interesse público.5

Mergulhado numa depressão global, mais do que nunca o País necessita de revitalizar os seus serviços pú-blicos e, ao mesmo tempo, preservar o interesse público. Esse é o desafio que se coloca a uma alternativa política

transformadora. As esquerdas têm a obrigação moral de passar rapidamente à construção dessa alternativa para que a esperança renasça no País.

NOTAS1 Wolfgang Drechsler, ‘The Rise and Demise of the New Public Management’, post-autistic economics review, nº 33, 2005.2 Maria Moschandreas, ‘The Role of Opportunism in Transaction Cost Economics’, Journal of Economic Is-sues, vol. 31(1), 1997.3 Michel Crozier, La Crise de L’Intelligence – Essai sur l’impuissance des élites à se réformer, InterEditions, 1995.4 Relatório da Comissão Independente População e Qua-lidade de Vida (ONU), Cuidar o Futuro – Um programa radical para viver melhor, Trinova Editora, 1998.5 William N. Dunn e David Y. Miller, ‘A Critique of the New Public Management and the Neo-Weberian State: Advancing a Critical Theory of Administrative Reform’, Public Organization Review, vol. 7, 2007.

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CONVERGÊNCIA DAS ESQUERDAS E QUALIDADE DA DEMOCRACIA ANDRÉ FREIRE

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VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2010 [14] DEMOCRACIA E SERVIÇOS PÚBLICOS – ECONOMIA

INTRODUÇÃOParticipei no painel de economia do “fórum demo-

cracia e serviços públicos”, organizado por várias forças de esquerda, nomeadamente por dirigentes da corrente “Opinião Socialista” do PS e por dirigentes do BE, entre outras. Participei porque, primeiro, a incomunicabilidade das esquerdas em Portugal é um dado histórico que, no contexto da Europa após 1989, constitui uma situação relativamente excepcional.3 Segundo, porque, na minha perspectiva, essa incomunicabilidade é, pelo menos par-cialmente, responsável pela reduzida diferenciação ide-ológica entre o PS e o PSD. Terceiro, porque a correcção desta relativa indiferenciação ideológica poderia passar, em boa medida, pela superação da incomunicabilidade entre as esquerdas. Neste artigo pretendo explicar tudo isto, designadamente apresentando evidência empírica. Portanto, irei falar sobretudo de política, deixando a economia política para os meus colegas economistas do referido painel.

Antes de prosseguir, porém, refira-se o seguinte. Este foi originalmente preparado para sair em livro muito antes das eleições europeias de 2009. Todavia, por moti-vos que desconheço inteiramente, tal projecto editorial ficou “congelado” até que agora, em inícios de Fevereiro de 2010, o meu amigo e colega, Professor Doutor João Teixeira Lopes, me pede permissão para publicar o texto na revista em linha “Vírus”. Faço-o com todo o gosto, e aproveito para agradecer o convite ao João. Contudo, pa-receu-me crucial actualizar minimamente o texto, nome-

adamente tendo em conta as três eleições que ocorreram desde então (europeias, legislativas e autárquicas, res-pectivamente em Junho, Setembro e Outubro de 2009). Além disso, termino com um pequeno posfácio que tem em conta ainda, designadamente, as implicações disto para as presidenciais de 2011, cuja pré-campanha já co-meçou efectivamente com o pré-anúncio da candidatura de Manuel Alegre.

CLAREZA DAS ALTERNATIVAS E QUALIDADE DA DEMOCRACIA

Numa democracia, o grau de polarização ideológica entre os partidos tanto pode ser um elemento positivo como negativo. Se as distâncias forem demasiado gran-des isso não só pode obviar ao consenso mínimo neces-sário à estabilização da democracia, mas também pode obviar a que haja níveis mínimos de cooperação entre as “partes”/partidos que são indispensáveis Ou seja, dema-siada polarização pode levar ao colapso da democracia. Porém, dentro de certos limites, a diferenciação ideo-lógica é um factor estruturante para o funcionamento adequado de um regime democrático.

Há várias definições do que é um regime democrático representativo, mas uma delas aponta para um regime político em que o poder não é exercido directamente pelo povo mas em sua representação e, em princípio, de acordo com as preferências populares. As eleições são, por isso, o mecanismo mais importante, embora não o único, para o funcionamento adequado das funções de

representação e de responsabilização numa democra-cia. É aqui que entra o papel positivo e estruturante da polarização: a existência de projectos políticos ideolo-gicamente diferenciados é um elemento indispensável para que os eleitores possam fazer escolhas conscientes, responsáveis e com significado. Além disso, tal diferen-ciação é importante para que, após o exercício do poder, os eleitores possam responsabilizar os governantes.

No quadro 1 apresenta-se a polarização ideológica em vários países da Europa medida através do posicio-namento ideológico médio na escala esquerda-direita (1-10) dos dois maiores partidos em cada país (um de cada área ideológica), de acordo com as percepções dos eleitores (amostras representativas). Verifica-se que, primeiro, Portugal está entre o grupo de países onde a polarização é mais baixa. Segundo, tal deve-se em larga medida ao facto de termos um dos partidos socialistas menos alinhado à esquerda. A baixa polarização em Portugal deve-se também, embora em menor medida, ao facto de o PSD ser um dos partidos menos à direita da sua família política (os liberais e conservadores que inte-gram, geralmente, o PPE). Note-se que estes dados são recorrentes pelo menos desde finais dos anos 1980.4

Há várias razões para a fraca ancoragem do PS na ala esquerda do espectro ideológico e para a baixa pola-rização ideológica em Portugal.5 Primeiro, a “esquerdi-zação da política” na transição para a democracia levou a uma certa indiferenciação ideológica genética entre os “partidos burgueses”. Segundo, a fraca ligação do PS

CONVERGÊNCIA DAS ESQUERDAS E QUALIDADE DA DEMOCRACIAANDRÉ FREIRE | POLITÓLOGO, PROFESSOR DO ISCTE E INVESTIGADOR DO CIES-ISCTE

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VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2010 [15] DEMOCRACIA E SERVIÇOS PÚBLICOS – ECONOMIA

1978PCP PS PSD CDS(2,3) (4,6) (6,9) (7,9)

1985PCP PS PSD CDS(2,1) (5,0) (6,8) (8,0)

1989CDU PS PSD CDS(1,7) (4,8) (7,2) (8,7)

1999PCP PS PSD CDS(2,0) (4,7) (6,9) (8,2)

2002BE PCP PS PSD CDS

(2,6) (2,7) (5,2) (7,6) (8,0)

2005BE PCP PS PSD CDS

(2,6) (2,9) (5,3) (7,3) (7,4)

2009PCP BE PS PSD CDS(2,5) (2,6) (5,5) (7,5 ) (7,7)

FIGURA 1: POSICIONAMENTO DOS PARTIDOS PORTUGUESES NO EIXO ESQUERDA-DIREITA, 1978-2009, DE ACORDO COM AS PERCEPÇÕES DOS ELEITORES (AMOSTRAS

REPRESENTATIVAS).6(1 – Esquerda | Direita – 10)

PAÍSES Maior partido de esquerda

Posição Média

Maior partido de direita

PosiçãoMédia

(B)Distância:

[A - B]

Chipre AKEL 2,57 DISI 8,99 6,42Itália DS 3,56 FI 8,23 4,67

Espanha PSOE 4,10 PP 8,40 4,30Rep. Checa CSSD 4,45 ODS 8,72 4,27

Hungria MSZP 3,86 FIDESZ 7,96 4,10Polónia SLD 2,82 PO 6,98 4,16Suécia SAP 4,60 MSP 8,50 3,90

Letónia TSP 3,47 JL 7,46 3,99Holanda PVDA 4,41 VVD 7,73 3,32França PSF 4,19 UMP 7,32 3,13Grécia PASOK 5,71 ND 7,98 2,27

Alemanha SPD 4,61 CDU/CSU 6,91 2,30Dinamarca SD 5,36 V 7,75 2,39

Áustria SPÖ 4,41 ÖVP 6,71 2,30Luxemburgo LSAP 5,33 CSV 7,35 2,02

Portugal PS 5,31 PSD 7,26 1,95G. Bretanha New Labour 5,18 C 6,75 1,57

Estónia Kesk 4,81 ResP 5,47 0,66Eslováquia Smer 4,46 HZDS 4,92 0,46

Fonte: dados elaborados pelo autor a partir do European Election Study, 2004. Nota: A escala usada pelos eleitores para posicionar os partidos vai de 1, Esquerda, a 10, Direita.

QUADRO 1: POLARIZAÇÃO IDEOLÓGICA NA EUROPA, 2004 (SEGUNDO AS PERCEPÇÕES DOS ELEITORES)

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VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2010 [16] DEMOCRACIA E SERVIÇOS PÚBLICOS – ECONOMIA

ao mundo do trabalho (por via do sindicalismo). Tercei-ro, o “enviesamento para a direita do sistema partidário português”. Ou seja, historicamente, em termos do go-verno nacional, as esquerdas portuguesas nunca foram capazes de cooperar para a formação de uma solução de “esquerda plural” e, por isso, quando governou sem maioria absoluta o PS exerceu em minoria (1976-1978 e 1995-2002) ou aliou-se à direita (ao CDS, 1978-1979, ou ao PSD, 1983-1985).

Na anterior legislatura (X), muitos têm considerado que o PS inflectiu para o “centro do centro” num grau nunca antes visto e daí a crise estrutural no PSD. Há vários indicadores de tal inflexão.7 Em termos de go-vernação há dois traços fundamentais que evidenciam tal inflexão. Por exemplo, o braço de ferro com os pro-fessores e os ataques reiterados aos sindicatos contradi-ziam o valor do diálogo social e o objectivo, vertido no programa eleitoral de 2005, de envolver os professores nas reformas. A aposta nas qualificações, vertida no pro-grama de 2005 e pedra de toque dos valores socialistas, quadrava mal com o brutal desinvestimento no ensino superior. Último exemplo: algumas das alterações ao Código do Trabalho contradiziam o que o PS tinha dito, designadamente em 2005, e o ideário de reequilibrar as relações capital-trabalho. Mais, uma pesquisa jornalís-tica realizada no Verão passado revelou que o PSD (61 por cento) e o CDS-PP (52 por cento), ao contrário da esquerda (BE e PCP: 44 e 38 por cento), aprovaram a maioria das “276 leis e iniciativas socialistas” apresen-tadas entre Março de 2005 e meados de Maio de 2009 (Helena Pereira, SOL, 16/5/2009). Claro que há vários diplomas importantes que ficaram de fora, mas é claro que tem havido uma convergência preferencial e pre-

dominante entre o PS e os partidos à sua direita, cujo apoio não era aliás necessário tendo em conta a maioria absoluta. 8

O eleitorado percebeu a inflexão ideológica do PS (ver Figura 1): dados do European Election Study, basea-dos em amostras representativas, revelam que, para os portugueses, em média, o posicionamento ideológico do PS passou de 4,7, em 1999, para 5,5, em 2009 (na escala usada, isto é, de 1, esquerda, a 10, direita, 5,5 é precisa-mente o centro). Mas o eleitorado também rejeitou tal reposicionamento: dando a maioria mais curta ao ven-cedor (nas legislativas) desde 1987, e o maior apoio à esquerda radical (com representação parlamentar) desde 1985. Sócrates já percebeu isto muito bem logo a seguir às europeias de Junho de 2009 e, depois de reeleito em Setembro de 2009, começou a arrepiar caminho. Portan-to, a estratégia da governação musculada e do centrismo ideológico foram claramente derrotadas em 2009.

A PLURALIDADE DAS ESQUERDAS E O EXERCÍCIO DO PODER: EXPERIÊNCIAS EUROPEIAS

Como disse, uma das explicações para o “enviesa-

mento do sistema partidário português para a direita” é a falta de cooperação entre as esquerdas. Até porque, na Europa, as experiências de cooperação são múltiplas e variadas.

Num estudo recente sobre o “esquerdismo” (“far left”) na Europa após a guerra fria9, o politólogo Luke March faz uma análise exaustiva deste e de outros temas. Em primeiro lugar, registou que, com a queda do muro de Berlim e o colapso do socialismo soviético, as corren-tes esquerdistas europeias têm mudado bastante. Con-tinuam bastante diversas, mas algumas renovaram-se bastante e, no conjunto, apresentam graus de sucesso diferenciados.

Em segundo lugar, Luke March define os partidos esquerdistas (“far left”) como aqueles que se definem a si mesmos como estando “para a esquerda”, e não apenas “à esquerda”, dos social-democratas, os quais consideram não serem suficientemente de esquerda ou serem sequer de esquerda. E separa-os em duas grandes categorias. Primeiro, os “partidos da esquerda radical” (onde inclui nomeadamente o “Bloco de Esquerda” português): de-fendem mudanças radicais no sistema capitalista. Em-bora muitas vezes designados por “extremistas” pelos

OS MAIS BEM SUCEDIDOS SÃO OS QUE CONHECERAM UMA SIGNIFICATIVA

EVOLUÇÃO IDEOLÓGICA E ESTRATÉGICA: SUPERARAM O DOGMATISMO

E TÊM QUADROS CARISMÁTICOS E PRAGMÁTICOS QUE SE CENTRAM

EM TÓPICOS DE CAMPANHA ESPECÍFICOS E CONJUGAM A SUA ACÇÃO

INSTITUCIONAL COM A LUTA EXTRAPARLAMENTAR

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VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2010 [17] DEMOCRACIA E SERVIÇOS PÚBLICOS – ECONOMIA

seus opositores, aceitam a democracia, embora combi-nem tal aceitação com aspirações “muitas vezes vagas” no sentido da democracia participativa. O seu “anti-ca-pitalismo” envolve fundamentalmente uma oposição à globalização neoliberal associada ao “consenso de Wa-shington” (liberalização do comércio, mercadorização da sociedade, privatizações, etc.), mas já não defendem uma economia planificada, antes uma economia mista. A esmagadora maioria inclui-se neste grupo: 18 em 24 partidos da UE, Islândia e Noruega. Segundo, os “par-tidos da extrema-esquerda” (6 em 24) são aqueles que têm maior hostilidade à democracia liberal, renunciam usualmente a qualquer compromisso com os “partidos burgueses”, incluindo os social-democratas, enfatizam as lutas extra-parlamentares e o seu “anti-capitalismo” é bastante mais profundo do que o do grupo anterior (as lógicas de mercado são um anátema) (Luke March inclui o PCP neste grupo).

Em terceiro lugar, conclui que, apesar da sua subre-presentação no leste, a maioria dos países têm partidos esquerdistas cuja performance têm estabilizado ou cres-cido desde os anos 1980. Os mais bem sucedidos são os que conheceram uma significativa evolução ideológica e estratégica: superaram o dogmatismo e têm quadros ca-rismáticos e pragmáticos que se centram em tópicos de campanha específicos e conjugam a sua acção institucio-nal com a luta extraparlamentar. Os mais bem sucedidos, nomeadamente os chamados “socialistas democráticos” (do grupo dos “partidos da esquerda radical”), promo-vem uma agenda “eco-socialista” e tentam influenciar os social-democratas pela esquerda, nomeadamente parti-cipando em (ou apoiando) governos. E se é verdade que há alguma erosão resultante dessa participação, segundo

o estudo de Luke March, ela não é na maioria dos casos significativa e, sobretudo, “tais perdas não são piores do que aquelas que ocorrem quando estão na oposição”. Vejamos alguns casos concretos de cooperação entre as esquerdas para o exercício do poder governativo ao nível nacional.

– Em França, a cooperação entre a extrema-esquerda (PCF, MRG, “verdes”, etc.) e o PSF para a formação de soluções de governo começou com a chegada de François Mitterrand à presidência da República e, subsequente-mente, com as chamadas “eleições da alternância”, em 1981, quando a esquerda chegou pela primeira vez ao poder na V República. A última experiência foi o gover-no da “esquerda plural” (PSF, PCF, MDC, MRG, “ver-des”), 1997-2002, liderado por Lionel Jospin.10

– Em Itália, depois do colapso do sistema partidário do após guerra, em 1994, e da sua refundação, a qual coincidiu com a adopção de um novo sistema eleitoral (“misto” de pendor maioritário), os partidos passaram a competir e a alternar no governo em blocos (esquerda versus direita). O bloco da esquerda tem incluído desde as forças da extrema-esquerda, como a Rifondazione Comu-nista, aos vários sucedâneos do PCI, tais como os Demo-cratici di Sinistra (DS), recentemente reconvertido em Partito Democratico, além de outros partidos mais centristas).11 O sistema eleitoral incentiva a cooperação, embora em menor medida do que no caso francês. Porém, a enorme fragmentação do sistema partidário torna as coligações mais difíceis de gerir.

– Em Espanha, já tínhamos tido uma coligação pré-eleitoral, em 2000, entre o PSOE e a Izquierda Unida, que só não chegou a ser uma solução de governo porque perdeu as eleições.12 Mais recentemente, entre 2004 e

2008, o governo minoritário do PSOE governou com o apoio da Izquierda Unida e da Esquerda Republicana da Catalunha (acordo de incidência parlamentar).

– Na Alemanha, há uma longa experiência de coo-peração entre os “verdes” e o SPD, nomeadamente nos governos nacionais liderados por Gerard Schröder (1998-2006). Recorde-se, porém, que a passagem dos “verdes”/B90 ao governo não se fez sem uma dolorosa clarificação no seio do partido.13 A estratégia do “novo centro”, de Schröder, desencadeou depois uma cisão da ala esquerda do SPD que se fundiu com os ex-comunis-tas do PDS no Die Linke. Segundo vários testemunhos que pude ouvir, a grande coligação (CDU/CSU-SPD) que governou a Alemanha entre 2005 e 2009 derivava mais da dificuldade do SPD em se coligar (logo) com um partido liderado por um seu antigo secretário-geral, Oskar Lafontaine, bem como da dificuldade do SPD em fazer alianças com os ex-comunistas do PDS, que perse-guiram os sociais-democratas nos tempos da RDA…, do que das divergências políticas propriamente ditas, embo-ra estas sejam sem dúvida significativas. No futuro, estas tenderão a ser limadas pela propensão ao compromisso: o Die Linke tem já acordos com o SPD (e os Verdes) no Estado de Hessen e na cidade de Berlim. Mais, a imprensa deu conta que o SPD decidiu já formalmente em con-gresso que vai cooperar com o Die Linke para a formação de governos ao nível estadual.14

– Na Escandinávia metropolitana (Dinamarca, No-ruega e Suécia), onde os sociais-democratas têm sido a força dominante durante décadas e apenas com algumas interrupções, a experiência dos governos minoritários é predominante. Porém, muitíssimas vezes os social-de-mocratas (SD e SAP, respectivamente na Dinamarca e

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Suécia), apesar de governarem em minoria, têm consti-tuído acordos de incidência parlamentar com a extrema-esquerda (com o Partido Liberal Radical/RV e o Partido Socialista Popular/SF, na Dinamarca, e com o Partido de Esquerda/VP, o Partido da Esquerda Comunista/VPK e os verdes/MP, na Suécia).15

NOTAS CONCLUSIVASEm Portugal, muitos dos que são críticos da coope-

ração entre as várias esquerdas apressam-se a referir as experiências mal sucedidas, sobretudo um suposto esvaziamento dos esquerdistas após o governo. Porém, como vimos, este tipo de argumento não resiste a uma análise um pouco mais fina. Agora, uma coisa é certa, as opções estratégicas que os partidos tomam comportam sempre riscos, mas isso é algo que faz parte intrínseca da vida.

No nosso país, quando se fala de cooperação entre as esquerdas, geralmente as várias forças acusam-se mutuamente. Para justificarem a quase impossibilidade de entendimentos, os socialistas acusam as forças à sua esquerda de sectarismo e de fazerem do PS o seu princi-pal adversário. Por seu lado, também para justificarem a quase impossibilidade de entendimentos, os bloquistas e os comunistas acusam o PS de executar políticas de direita e daí o obstáculo quase intransponível para se firmarem acordos.

A verdade é que, do meu ponto de vista, todos pre-cisam de fazer o seu papel numa eventual aproximação. Ou seja, como de forma concisa e precisa referiu Manuel Alegre, é necessária uma “dupla ruptura”. Os socialistas precisam de reconhecer que, se se aproximassem mais dos partidos à sua esquerda, e não dos partidos à sua

direita, como têm efectivamente feito, poderiam formar um bloco político (e social) mais forte no combate às desigualdades sociais, em geral, e à direita social e polí-tica, em particular. As forças que se situam à esquerda dos socialistas precisam não só de ultrapassar algum do seu sectarismo e da sua cultura de contra-poder, mas também de perceber que, primeiro, o seu principal adver-sário não pode ser o PS e, segundo, se deixassem a porta entreaberta para possíveis entendimentos (sob determi-nadas condições, claro) não só poderiam capitalizar mais nas urnas como poderiam também ganhar maior credi-bilidade entre os portugueses e uma maior capacidade de influência na política portuguesa, nomeadamente para corrigir o “enviesamento do sistema partidário para a di-reita”. E com uma maior clarificação ideológica ganharia também a qualidade da democracia portuguesa.

Na Visão (12/6/2008), José C. de Vasconcelos defi-niu como condições mínimas para um entendimento a “humildade democrática” e a vontade política: os parti-dos pequenos deviam compreender que, dada a sua di-mensão, não poderiam ser eles a determinar as grandes linhas de força do programa de governo; o PS teria de perceber que teria fazer significativas cedências aos pe-quenos. Capitalizar com o descontentamento popular é fácil, mais difícil é converter os anseios populares em mudanças políticas. Em 2009, nomeadamente nas legis-lativas de Setembro desse ano, estará em jogo saber se, caso o eleitorado retirasse a maioria absoluta ao PS e reforçasse significativamente as forças à sua esquerda, as várias esquerdas estariam ou não à altura das suas responsabilidades. Uma coisa era certa, a conjuntura de crise que vivíamos (e ainda vivemos) era (é), simulta-neamente, um grave problema e uma janela de oportu-

nidades para acabar com o “consenso neoliberal” rumo a sociedades mais solidárias, democráticas e prósperas. Mas tal dependerá sempre das soluções que as várias for-ças políticas, nomeadamente as esquerdas, forem capazes de apresentar e de implementar (caso sejam escolhidas pelos eleitorados).

POSFÁCIO: PLUS ÇA CHANGEAs eleições legislativas de 2009 trouxeram várias

novidades à política portuguesa, eventualmente até inaugurando uma mudança do ciclo iniciado em 1987. A eleição de 1987 foi um ponto de viragem na democra-cia portuguesa. Após anos de instabilidade governativa, falta de entendimento entre os partidos para soluções de governo minimamente estáveis, de 1987 até 2005 os elei-tores responderam com uma concentração de votos nos dois maiores: o voto conjunto do PS e do PSD variou en-tre um mínimo de 72,7 por cento, em 1987, e um máximo de 79,7, em 1991. Pelo contrário, nas últimas legislativas os votos nestes dois partidos somados quedaram-se por 65,7 por cento, a mais baixa percentagem desde 1987. Além disso, as eleições do penúltimo domingo ficaram marcadas pela vitória mais curta do partido vencedor (36,6 por cento) desde 1987 (a segunda mais baixa tinha sido em 2002: 40,2 por cento).

Há dois elementos especialmente relevantes nestes dados. Primeiro, os portugueses estão cansados do bi-partidarismo que marcou a política nacional desde 1987. Segundo, estão cansados da governação baseada em maiorias absolutas monopartidárias e, por isso, deram ao PS a mais pequena maioria relativa desde 1987. Este úl-timo elemento exige grande sentido de responsabilidade do vencedor, que agora é obrigado a negociar sempre

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com a oposição para aprovar legislação e, consequen-temente, a incorporar mais o contributo das minorias no processo de tomada de decisão. Mas as exigências que esta situação coloca aos partidos da oposição, es-pecialmente àqueles que historicamente têm sido mais resistentes à ideia da “cooperação conflitual” (como lhe chamou Camilo Mortágua), são também bastante mais elevadas. O modelo da “democracia consociativa”, do qual nos afastámos entre 1987 e 2005, é mais inclusivo; porém, para funcionar exige das minorias uma atitude compromissória que tem faltado na política portuguesa, sobretudo à esquerda.

Por um lado, aritmeticamente há várias maiorias possíveis no parlamento (PS e PSD; PS e CDS; PS e BE e CDU; etc.). Por outro lado, havia várias soluções de governos possíveis. Primeiro, a solução minoritária, com negociações ad-hoc consoante os dossiês, é a que tem maior instabilidade potencial e, como é sabido, foi a escolhida... Segundo, uma coligação teria sido a opção potencialmente mais estável mas é a menos exequível, com a direita ou com a esquerda radical. Terceiro, a so-lução mais exequível, menos custosa para os pequenos partidos (porque os responsabilizaria menos), e com maior potencialidade de estabilidade do que a opção mi-noritária seria a do acordo de incidência parlamentar o qual, embora pudesse não incluir todas as matérias, deveria incluir um vasto conjunto de matérias, não se confundindo assim com a negociação ad-hoc.

Como já dissemos, sabemos hoje que se optou pela primeira solução de governo (minoritário), com os resultados que já começam a ficar à vista de todos… Uma coisa é certa, seja no caso da formação do governo, logo a seguir às eleições legislativas de 2009, seja para a

aprovação do orçamento de Estado de 2010 (que ainda decorre quando escrevo este artigo, mas que será muito provavelmente aprovado com o apoio – abstenção – do PSD e do CDS-PP), o governo socialista convidou todos os partidos para negociar eventuais compromissos de maior ou menor alcance temporal. Sempre a esquerda radical (BE e PCP-PEV/CDU) recusou chegar a um compromisso com o PS, reeleito como partido vencedor pelo povo nas legislativas de 2009. Mas o que é verda-deiramente grave é que essa recusa foi aparentemente um ponto de partida e não um ponto de chegada, nome-adamente porque a esquerda radical foi incapaz de dizer com clareza e transparência ao povo português qual era o caderno de encargos que exigia (se é que tinha algum caderno de encargos que quisesse apresentar como conjunto de exigências para cooperar com o governo socialista) para poder fazer um compromisso de legis-latura (para a formação do governo) ou para aprovar o orçamento (nem que fosse com a abstenção conjunta de BE e PCP-PEV/CDU). Plus ça change.

A solução de um governo minoritário mas apoia-do num acordo de incidência parlamentar com os dois partidos situados à esquerda do PS era aquela que era, primeiro, mais congruente com os resultados eleitorais e, segundo, mais congruente com a vontade dos eleitora-dos de cada um dos partidos. Quanto ao primeiro ponto cabe notar que o conjunto dos partidos parlamentares de esquerda (PS, BE e CDU) tem mais votos (833814 sufrá-gios correspondentes a mais 14,74 por cento) e lugares (30) no parlamento do que o conjunto dos partidos de direita (PSD e CDS). Além disso, se é verdade que, entre 2005 e 2009, a esquerda no seu conjunto perdeu cerca de 341829 votos e a direita ganhou cerca de 168169,

também é verdade que estas flutuações foram sobretudo fruto da hemorragia no campo socialista e que a esquer-da radical (BE e CDU) ganhou mais votos (204923) do que o bloco de direita (168169).

Quanto ao segundo ponto, as sondagens da Cató-lica podem ajudar-nos. No barómetro publicado a 17 de Setembro, os inquiridos foram questionados sobre “cenários pós eleitorais mais desejáveis para o país”. A resposta tem 7 categorias contando com o “não sabe” e o “recusa responder”. Entre o eleitorado do PS, a solução mais desejada é a do governo minoritário (39 por cento), seguida de uma “coligação” com o BE (22 por cento) ou com a CDU (13 por cento). Note-se que, qualquer uma destas duas últimas soluções, sobretudo se somadas (35 por cento), está a grande distância de uma “coligação com o PSD” (10 por cento) ou com o CDS (3 por cen-to). Como, em qualquer caso, para sobreviver e aprovar legislação, o PS precisa do apoio de outros partidos, o que estes dados revelam é que o eleitorado socialista prefere claramente entendimentos à esquerda. No caso dos eleitorados do BE (47 por cento) e da CDU (46 por cento), a categoria mais frequentada, a longa distância de qualquer uma das restantes, é a de uma “coligação com o PS”. Por isso é que, no texto da iniciativa cidadã de que fui um dos subscritores, “Compromisso à Esquer-da”, se falava num desfasamento entre os eleitores dos partidos de esquerda (que desejam um entendimento en-tre os seus partidos respectivos) e os dirigentes destes mesmos partidos (que há mais de 30 anos persistem no desentendimento). Aliás, outro indicador deste mesmo desfasamento foi a adesão espontânea que tal iniciativa recolheu não só entre as elites profissionais, académicas, artísticas e sindicais do país (a comissão promotora con-

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ta com cerca de 150 personalidades), mas também no público em geral (às 15h de 4/10/2009 já contávamos com cerca de 850 assinaturas).

Há distâncias significativas entre as propostas políti-cas dos três partidos e, por isso, o compromisso não era fácil? Com certeza, ninguém o negava. Porém, a exemplo do que se passa (com maior ou menor sucesso…) há mui-to tempo em vários países da Europa ocidental, sobretu-do desde 1989, tudo isso teria muito provavelmente sido superável se houvesse da parte dos partidos de esquerda a atitude compromissória necessária para chegarem a acordo, naturalmente no respeito pela dimensão relativa de cada um dos partidos (uma regra básica da democra-cia). As escolhas das elites partidárias não foram, porém, congruentes com as significativas escolhas dos eleitores. A incomunicabilidade das esquerdas persiste, pois, como um dado perene da política portuguesa há mais de 30 anos a esta parte... E alimenta uma incongruência entre eleitores e eleitos nesse quadrante ideológico que é hoje uma fonte de problemas para a qualidade da representa-ção política em Portugal (na medida em que a congruên-cia entre eleitores e eleitos é, precisamente, um elemento chave da qualidade da democracia).16

Mais: numa situação de maioria relativa, o Presi-dente da República tem grande relevo na construção de consensos interpartidários. Cavaco é capaz de os esti-mular quando quer, pelo menos do PS para a direita. Resta saber se, caso fosse reeleito, estaria disponível para continuar a fazê-lo… provavelmente não e é por isso que Sócrates sabe que a sua vida política pode ficar em risco com a vitória de Cavaco... Do novel pré-candidato presi-dencial Manuel Alegre podemos esperar que o estímu-lo a entendimentos abranja todo o espectro partidário.

Mas este trunfo poderá ser também outro calcanhar de Aquiles: se a esquerda continuar a revelar-se incapaz de se entender em matérias fundamentais... A bola está também neste campo, portanto. O combate presidencial, esse, será decisivo para todos. Vejamos se, mais uma vez, a esquerda radical fica aquém das suas responsabilidade, ou não…

NOTAS1 Embora numa versão revista e aumentada, retomo aqui dois artigos que publiquei anteriormente: “Esquerda plural e clareza das alternativas”, Le Monde Diploma-tique, Janeiro/2009; “O esquerdismo na Europa após a guerra fria”, Público, 19/1/2009. Agradeço aos direc-tores desses jornais a permissão para retomar aqui esse material. 2 Politólogo, professor do ISCTE e investigador do CIES-ISCTE. 3 Luke March: Contemporary Far Left Parties in Europe. From Marxism to the Mainstream?, Fundação Friedrich Ebert, 11/2008.4 André Freire, Esquerda e direita na política europeia – Portugal, Espanha e Grécia em perspectiva comparada, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2006.5 André Freire, Esquerda e direita na política europeia, op. cit., pp. 298-306.6 Várias fontes foram usadas: diversos inquéritos citados em Freire, André (2009), «Mudança do sistema parti-dário em Portugal, 1974-2009: o papel dos factores po-líticos, sociais e ideológicos», in Maria Antonieta Cruz (organizadora), Eleições e sistemas eleitorais: perspectivas históricas e políticas, Porto, Universidade do Porto Edi-torial, pp. 215-261; European Election Study 2009 (para 2009).7 André Freire, “Do reformismo à resignação? Uma aná-lise de (quase) dois anos de governo do PS”, Crónicas Po-líticas Heterodoxas, Lisboa, Sextante, 2007, pp. 139-157. Ver ainda André Freire, “Prioridades Políticas I e II”,

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Público, 19/11 e 3/12 de 2007, e “Desigualdades sociais e governação socialista”, Público, 9/6/2008. 8 Dados compilados até ao final da terceira sessão le-gislativa da X Legislatura, apontavam já neste mesmo sentido: Susete Francisco, Diário de Notícias, 29/7/2008, p. 16. 9 Luke March, Contemporary Far Left Parties in Europe. op. cit.10 Alan Siaroff, Comparative European Party Systems, New York, Garland, 2000, pp. 250-263.11 Alan Siaroff, op. cit., pp. 309-321.12 Gabriel Almond et al, European Politics Today, New York, Longman, 2006, pp. 246-299, especialmente 259 e 284.13 Gabriel Almond et al, op. cit., pp. 190-245.14 Público, 23/12/2008.15 Note-se que, na Dinamarca, a experiência da coligação formal (ainda que minoritária) tem também alguma ex-pressão. Ver Alan Siaroff, op. cit., pp. 226-233, 367-373 e 437-444; e David Arter, Democracy in Scandinavia – Con-sensual, Majoritarian or Mixed?, Manchester, Manchester University Press, 2006, pp. 86-108. 16 Ver: Freire, André, e Meirinho, Manuel (2009), “Re-forma institucional em Portugal: a perspectiva dos de-putados e dos eleitores”, in Freire, André e José Manuel Leite Viegas (organizadores), Representação Política. O Caso Português em Perspectiva Comparada, Lisboa, Sex-tante, pp. 341-374.

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CONTRIBUTOS PARA UMA POLÍTICA DE COMBATE À POBREZA

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CONTRIBUTOS PARA UMA POLÍTICA DE COMBATE À POBREZAALEXANDRE AZEVEDO PINTO | ECONOMISTA

Mais de vinte anos passaram desde a entrada de Portugal na União Europeia. Depois de todo este tempo a Pobreza tem-se mantido estável em torno dos vinte por cento da população portuguesa: um em cada cinco portugueses é pobre. A questão é pertinente e exige uma reflexão profunda na sociedade portuguesa: porque é que passados vinte anos, tantos recursos mobilizados, tantos fundos comunitários, programas desenvolvidos e esforço colectivo, o problema continua a persistir ? O que falhou ?

BREVE DIAGNÓSTICO DA SITUAÇÃOMais de metade das famílias pobres vivem do seu

trabalho (Costa, 2008). Os desempregados têm um peso relativamente pequeno no conjunto dos pobres: menos de cinco por cento. Sendo multidimensional a pobreza e a exclusão social resultam da acção conjugada de fac-tores, que costumam ser particularmente destacados no mercado do emprego (pelos seus efeitos estruturantes nas possibilidades de participação em diversos domínios da vida social) e os sistemas de redistribuição dos ren-dimentos e dos recursos materiais (Capucha, 2005). A Pobreza em Portugal é de natureza estrutural, persiste ao longo de décadas e resulta de, por um lado da insu-ficiência dos rendimentos de trabalho e, por outro lado, da ineficácia das transferências sociais (Costa, 2008).

A EFICÁCIA NO COMBATE À POBREZA

A sociedade portuguesa não está preparada para apoiar as medidas necessárias para um verdadeiro com-bate à pobreza (Costa ,2008). Tal acontece porque a opi-nião pública tende a considerar que o fenómeno resulta de factores como o enfraquecimento da responsabilidade individual dos cidadãos, do fatalismo da pobreza ou da preguiça dos pobres. Uma pessoa com fome, não é livre. A pobreza configura, por isso, uma situação de negação de direitos humanos fundamentais. O funcionamento do sistema económico e social não conseguiu eliminar a pobreza, antes é responsável pela sua geração e repro-dução (Ferreira, 2000).

O Estado português gasto muito a tentar que o rendimento dos mais pobres se aproxime do dos mais ricos, diminuindo o fosso de desigualdades, mas os re-sultados são um fracasso absoluto. Vinte e cinco por cento dos gastos sociais realizados pelo Estado acabam por não ter qualquer impacto ao nível da redução das desigualdades (Afonso, 2008). As transferências sociais - excluindo pensões- permitem reduzir a taxa de pobre-za em sete pontos percentuais ( INE, 2008). O combate à Pobreza só pode ser eficaz se contrariar os mecanis-mos e processos que têm conduzido ao empobrecimento dos indivíduos, famílias e grupos sociais3. A motivação base de uma mudança profunda que reforme aspectos estruturais da sociedade, incluindo sistemas de atitudes e comportamentos, só pode provir de uma vontade po-lítica forte, assente na consciência social e que eviden-cie uma cultura diferente, uma cultura de solidariedade (Ferreira, 2000). A professora Leonor Ferreira (2000) sublinha que o combate à pobreza só será travado com sucesso se for mantido nas agendas políticas com eleva-da prioridade. A Pobreza é um problema sistémico exis-tindo centenas de causas que a reforçam mutuamente e os economistas só percebem uma parte dos problemas a ela associados (Wood & Hamer, 2002).

Para Costa (2008) continuamos muito voltados para a ideia de que a luta contra a pobreza é igual a mais políticas sociais. Contudo, esta estratégia deixa de ter sustentação teórica e deixa de ser estatisticamente re-levante quando verificamos a percentagem tão elevada de famílias pobres entre pessoas empregadas. Existe

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evidência de que a política social é um instrumento útil, mas não resolve tudo. Temos um problema económico. Parte dos factores de pobreza são de natureza objectiva. Entre eles constatam-se mutações tecnológicas e a res-pectiva articulação com o sistema económico e o sistema de emprego, a organização do trabalho e as estruturas de distribuição dos rendimentos primários (Capucha, 2005, pp.104). Para Afonso, Schuknecht e Tanzi (2008) o fulcro da explicação para a ineficiência registada em Portugal não é o Estado em si, mas antes um conjunto de factores mais abrangentes como os níveis e riqueza e de educação do país. O nível de educação de um país e o nível de rendimento per capita parecem ser variáveis determinantes para a eficiência dos gastos públicos na redução das desigualdades (Afonso, et a 2008). “Uma população mais bem educada e rica consegue, por si própria, tendencialmente reduzir as desigualdades pois tem mais informação e mais dinheiro de forma a fazer escolhas (...) quando assim não acontece, recai quase exclusivamente sobre o Estado a tarefa de redução de desigualdade, mesmo tendo em conta que cabe sempre ao Estado assegurar essas condições aquém manifestamente está impossibilitado de o fazer.”

UM CAMINHO POSSÍVEL O autor sugere, como hipótese de trabalho, a mo-

bilização da sociedade civil e dos novos movimentos e actores sociais em torno da Inovação Social, entendendo que esta pode ser uma parte importante para a solucio-nar o problema endémico da Pobreza em Portugal. O autor sugere, ainda, uma responsabilização política de todos aqueles que durante estes vinte anos se ocuparam da liderança do nosso destino colectivo. Foram eles os primeiros responsáveis devem-lhe ser pedidas contas.

Mas o autor, também sugere, que o fracasso deve ser alargado a toda a sociedade portuguesa. Foi toda uma geração que colectivamente falhou. È por isso o mo-mento de reflectir e encontrar soluções para um futuro diferente e melhor. O empreendedorismo social pode ser uma solução para reduzir a fome e a pobreza (Babu & Pinstrup-Andersen,2007). Experiências recentes mos-tram que a introdução do espírito empreendedor no processo de desenvolvimento, pode resolver problemas de pobreza e fome em muitos países. Também ( Wood & Hamer, 2002) sugerem que a criação de uma cultura de colaboração pode ser uma solução para a pobreza. Construindo um mercado de ideias anti-pobreza, atra-vés de uma network entre inovadores e financiadores, aliando quem tem ideias com quem as pode financiar. Torjman & Reid (2003) sublinham que existem obser-vações críticas para entendermos a Inovação e as suas implicações para as comunidades, em particular na re-dução da pobreza. Inovar pode significar a geração de novas ideias mas também a aplicação de ideias que não sendo novas são uma novidade quando aplicadas em de-terminada área. Os autores sugerem, ainda, o conceito de inovação utilizado para perceber um determinado evento especifico, criado por factores internos a uma organização. E hoje entendido como um processo de resolução de problemas sendo um produto resultante da inter-acção da organização com outros actores (Lan-dry, Amara & Lamari, 2001) e aprendizagem ao longo da vida, pesquisa e exploração (Lundvall, 1992). É es-sencialmente nos mecanismos de geração e transmissão da pobreza e da exclusão social que o combate se deve centrar por forma a uma mais profunda transformação regeneradora dos modos de funcionamento do sistema

social e requere a moblilização dos poderes públicos, dos cidadãos e da sociedade civil e dos próprios pobres (Fer-reira, 2000). Wood & Hamer (2002) sugerem a criação de quatro condições ideais para que a Inovação Social possa contribuir para combater a pobreza: (1) alargar a base de experimentação4; (2) apoiar projectos que não necessitem de grandes investimentos para serem bem sucedidos – pequenos apoios podem abrir o caminho a alterações muito grandes na erradicação da pobreza5; (3) micro inovações podem ter macro resultados6; (4) não deixar que os executivos (gestores) tradicionais controlem os projectos7.

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REFERÊNCIASAfonso, António, Schuknecht, Ludger and Tanzi, Vito, (2008) “Income Distribution Determinants and Public Spending Efficiency”, Working Paper Series, nº861, Ja-nuary, Europen Central Bank.

European Commision (2008a), “Joint Report on Social Protection and Social Inclusion”, Commission Staff Working Document, Brussels 30.01.2008, SEC(2008)91, COM(2008) 42 final.

Eurostat (2008), Social Situation Report 2007 – Social cohesion through equal opportunities, Memo/08/326, Brussels, 22 May.

European Commission (2008b), Child Poverty and Well-Being in the EU – Current Status and Way Forward, The Social Protection Committee, Directorate-General for Employment, Social Affairs and Equal Opportunities, Unite E.2., January.

Ferreira, Maria Leonor B.V. (2000)– A Pobreza em Por-tugal na década de 80, Conselho Económico e Social.

Instituto Nacional de Estatística (2008), “Rendimento e Condições de Vida em 2006”, INE, 15 Janeiro de 2008.

Landry, R., N. Amara and M. Lamari (2001), « Social Capital, Innovation and Public Policy », ISUMA : Ca-nadian Journal of Policy Research 2 (1).

Lundvall, B. (1992). National Systems of Innovation: Towards a Theory of Innovation, and Interactive Le-arning. London : Pinter.

Torjman, S. and Eric Levitan-Reid (2003), Innovation an Poverty Reduction, Coledon Institute of Social Po-licy.

Wood, R.C. & Hamel, G. (2002), “The World Bank´s Innovation Market”, Harvard

Business Review, November, pp.104-113.

NOTAS1 De acordo com o Social Situation Report (2007) – So-cial cohesion through equal opportunities, a riqueza entre os Estados da União Europeia está melhor distribuida quando comparada com o caso dos EUA. Considerando a totalidade da população dos 25 Estados da União Eu-ropeia, a medida de inequidade, determinada através do Coeficiente de Gini, pode ser determinado em torno dos 32.7 para a média dos países da União comparada com 35.7 no caso dos EUA. Os resultados mostram que ape-nas Portugal supera o valor de desigualdade Americano com 41 pontos, sendo que a Polônia, a Letônia e a Lituâ-nia, com 36 pontos, registam valores idênticos aos dos EUA. O Coeficiente de Gini atribui valores próximos de zero quando existe uma partilha de rendimentos mais igualitária e o coeficiente cem no outro extremo, quando a totalidade da riqueza é atribuída a muito poucos, isto é, muito maior desigualdade.2 Segundo o Social Situation Report 2007, que é o princi-pal instrumento utilizado pela Comissão Europeia para acompanhar as evoluções sócias nos países europeus.3 Capucha (2005) identifica três categoriais vulneráveis à pobreza em Portugal: (1) Grupos com “handicap es-pecífico” – pessoas com deficiência, imigrantes; (2) Gru-pos Desqualificados – desempregados de longa duração; trabalhadores com qualificações baixas ou obsoletas, idosos, famílias monoparentais; (3) Grupos à Margem

– pessoas sem abrigo, toxicodependentes ou ex-toxico-dependentes, jovens em risco, detidos e ex-reclusos.4 Entendido como sendo aplicado a um universo bastan-te alargado de agentes locais de desenvolvimento.5 Pequenas Ajudas, tipo micro-crédito, podem ter um retorno muito elevado com taxas de sucesso elevadas. O exemplo mais conhecido é o de Moamed Younus, Nobel da Paz em 2007, com o caso do Banco dos Pobres.6 Um efeito caótico, do tipo do acelerador de Lorenz – teoria do Caos. Pequenas alterações podem gerar ele-vados efeitos.7 Os autores sugerem que a gestão tradicional, tecnocrá-tica, na maioria dos casos não é a mais indicada nestes casos.

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PARA ALÉM DA “ESQUERDA MÍNIMA”: UM LUGAR CENTRAL AO ESTADO NA PROVISÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS

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PARA ALÉM DA “ESQUERDA MÍNIMA”: UM LUGAR CENTRAL AO ESTADO NA PROVISÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOSJOSÉ REIS | PROF. CATEDRÁTICO DA FACULDADE DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA. INVESTIGADOR DO CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS

O CONSENSO QUE HOJE PARECE EXISTIR SOBRE a importância do papel do Estado na economia e sobre a centralidade do investimento público é, obviamente, uma consenso frágil – ou mesmo aparente. Bem se sabe que foi quase acotovelando-se que tantos se apressaram a declarar a necessidade de a esfera pública amparar as economias desmoronadas pela especulação, pela avidez ou simplesmente pelas insuficiências dos mercados.

Muitos dos “ansiosos” são, claro está, os que sem-pre se caracterizaram por socializar prejuízos depois de terem privatizado os lucros (quer os legítimos, quer os ilegítimos). Para esses, o Estado é nada mais do que o bombeiro transitório.

Mas há outros que ajudam a tornar o consenso frá-gil ou aparente. E alguns são de esquerda. Da esquerda mínima. Com pouca originalidade, porque foram buscar os fundamentos à teoria liberal sobre o papel do Estado na economia, insistem sobretudo no papel regulacio-nista da acção estatal, que querem limitar a isso. Isto é, a um papel que tem como principal finalidade regular (ou mesmo criar) os mercados, proteger os princípios sacrossantos da concorrência e definir liminarmente “serviços mínimos” para o Estado. Esta é a forma “ceri-monial”, que não concebe a esfera pública como mais do que um “ pastor” de mercados, que a esquerda mínima encontrou para lidar com a organização económica, os poderes económicos, as desigualdades...

O que está hoje em causa não é apenas saber como o Estado assume um papel na resposta à crise, curando

os males que um capitalismo desenfreado engendrou. O que está em causa é saber qual deve ser o papel do Estado em diferentes áreas da economia – do crédito e da intermediação financeira, à energia, à água, às comu-nicações aos grandes transportes (os chamados mono-pólios naturais ou monopólios de rede), até aos serviços públicos essenciais como a educação, a saúde, os serviços comunitários. Um diligente criador de mercados, para a imediata apropriação privada e rentista?

Parece claro que se uma das coisas que esta crise nos tem ensinado é que os sectores potencialmente destabi-lizadores de toda a arquitectura económica são vários, e não apenas o sector bancário e financeiro.

O regresso do Estado a um papel central na provi-são de serviços públicos é, obviamente, decisivo e deve constituir uma bandeira da esquerda. Estamos, de facto, perante uma questão diferenciadora, que contém im-portantes ramificações para a definição do modelo de sociedade que se esteja a construir.

Talvez seja adequado introduzir um parêntesis para sublinhar que não sabemos, nenhum de nós sabe, quanto tempo vai durar esta crise nem quando se poderá dizer que estamos a percorrer o processo de transição em que se comecem a definir novas formas de organização so-cial e política. Mas a verdade é que, independentemente disso, na complexidade de qualquer processo social, há elementos fundadores que se formam paulatinamente. Ora, este assunto pode, justamente, constituir um dos elementos necessários, conformadores de novos modos

de organização das economias e das sociedades, agora no contexto novo da crise.

São três as razões pelas quais me parece que este pa-pel do Estado é especialmente importante. A provisão de serviços públicos (1) constitui uma “fatia” da economia muito importante, presente em todos as regiões do país, e que não é admissível que seja alienável, isto é, privati-zada através de uma lógica de cedência ao mercado; (2) é um elemento crucial para a geração de coesão social e de qualificação individual; (3) tem um papel essencial para a estabilização da economia, isto é, para servir de contraponto às tendências cíclicas de outros sectores, que assim originam crises e instabilidade.

Aliás, vem a propósito dizer que a riqueza criada com os chamados serviços “não mercantis” constitui cerca de 20% do PIB e que muitas das actividades que constituem provisão pública de serviços às populações – da saúde, à educação, aos serviços de proximidade assegurados pela administração local – são um dos maiores factores, em Portugal, de correcção de assimetrias regionais. De fac-to, se analisarmos a distribuição por NUTS III daqueles serviços, notamos que não só essa distribuição não revela o tipo de assimetrias que são conhecidas no nosso país, como o seu crescimento diferenciado tem contribuído para produzir reequilíbrios e, portanto, para assegurar coesão social e nacional.

Uma nota final, para relembrar como os nossos capi-talistas – mesmo aqueles que têm uma história industrial, produtiva e exportadora – tem uma apetência inconti-

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da por se acolherem à sombra dos negócios protegidos dentro do espaço nacional, abrigados da concorrência que ideologicamente tanto acarinham. Os serviços não mercantis são, portanto, mercado apetecíveis para os capitalistas, com a condição de que o Estado lhes crie esses mercados e lhos ofereça de forma continuadamente protegida. Se se tratasse de os mercantilizar, isto é, de ceder às tentações de privatização da saúde, da educação ou dos serviços de proximidade – para os quais o nome dos cidadãos continuaria a ser invocado – então, esses capitalistas seriam gente razoavelmente acomodada, à custa da esfera pública que quiseram substituir. Vontade não lhes falta. Mais do que a que têm para assumir riscos, promover exportações, criar riqueza onde a iniciativa privada tem o lugar que lhe é próprio.

É por isso que a provisão dos serviços de que temos estado a falar é um dos campos da contínua reafirmação da acção pública, em nome de uma economia em que a comunidade também conte.

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PARA UM PROGRAMA DE ESQUERDA

ALGUMAS IDEIAS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO ANTÓNIO AVELÃSEDUC

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PARA UM PROGRAMA DE ESQUERDA - ALGUMAS IDEIAS NO CAMPO DA EDUCAÇÃOANTÓNIO AVELÃS | PROFESSOR, DIRIGENTE DO SPGL

A ESCOLA PORTUGUESA ATRAVESSA UM MO-mento de desencanto e de desalento. Vive o desencanto, melhor seria dizer “desilusão” de quem, generosa ou pre-cipitadamente aceitou que lhe fossem cometidas tarefas, funções e obrigações que, não sendo primariamente as suas, correspondiam ao desejo de construir uma socie-dade mais justa no sentido de uma maior igualdade de oportunidades, mais educada no sentido da cidadania, mais culta na abertura a outros modos de ver e de ser, mais inclusiva enquanto apostada em receber todas as crianças no seu seio e de lhes proporcionar condições de sucesso. Dirão os críticos, talvez com parcial razão, que não conseguiu nenhum desses objectivos e, em con-trapartida terá menosprezado a sua tarefa primeira: a de transmitir e ajudar a criar conhecimentos e apren-dizagens.

Costuma sublinhar-se que as mudanças das estrutu-ras sociais são necessariamente lentas se pretenderem ser eficazes. Os 34 anos que levamos de democracia consoli-daram o direito de acesso às escolas públicas, incluindo no ensino superior, desenvolveram praticamente a partir do zero uma rede qualificada de educação pré-escolar, reformularam os diversos ramos do ensino profissional, reorganizaram, nem sempre bem, o ensino profissional e tecnológico. Mas este laborioso e dignificante esforço surge nitidamente maculado por um elevado ritmo de insucessos e abandonos, com evidente incidência nas camadas mais pobres, e, quanto à qualidade das apren-dizagens cognitivas surge “marcado” negativamente no

confronto padronizado com outros países europeus. E por mais reservas e críticas que justamente façamos aos “Rankings” de escolas, um dado parece incontestável: a média e alta burguesia continua a garantir aos seus filhos, em caros colégios privados, um ensino de alta qua-lidade no que respeita às aprendizagens e conhecimentos meramente académicos. E abundam nítidos sinais de que mesmo nas “escolas públicas” cresce a apropriação das ditas melhores pelas camadas sociais mais ricas.

Se entendemos, e creio eu que todos nós entendemos, que uma elevada qualidade da escola pública é condição de equidade social, temos então que traçar com clareza as linhas essenciais para a sua construção, de modo a associar a democraticidade de acesso à democracia do sucesso e de modo a não dividir a sociedade em partes distintas: a da minoria que frequenta as escolas de exce-lência – públicas ou privadas - e a da maioria remetida para uma escola pública desqualificada. Esse é apenas o objectivo deste texto.

Sem qualquer intuito de hierarquização, passo a apresentar algumas medidas que entendo como indis-pensáveis para construir uma escola pública de suces-so e de qualidade e que deveriam constituir uma base programática imediata para um qualquer governo de esquerda:

- completar a rede da educação pré-escolar, de modo a tendencialmente cobrir todas as crianças, entre os 3 e os 5 anos, aproveitando para tal objectivo a rede de

instituições sociais e cooperativas existentes desde que garantida a qualidade pedagógica. O desenvolvimento de uma alargada rede de creches, correspondendo a uma necessidade de apoio à família torna-se cada vez mais indispensável e urgente.

- definir com clareza e com sustentação científico-

pedagógica a estruturação dos ciclos de ensino, tendo como referência central o sucesso das aprendizagens e atitudes dos jovens alunos, mas também porque essa definição condiciona os modelos de formação inicial dos professores e educadores e as tipologias dos edifícios es-colares a construir. A actual divisão do ensino básico em três ciclos, fugindo ao que acontece de um modo geral na Europa, parece ter apenas uma sustentação na tradição portuguesa e tudo indicia não ser uma solução adequada, antes pelo contrário, tem sido apontado como um factor potencializador do insucesso escolar e de dificuldade na organização curricular e de programas. Nesse sentido devem ser acolhidas propostas de criação de um ciclo inicial de 6 anos, a que se sucederia um outro também de 6 anos, concretizando o alargamento de escolaridade obrigatória para 12 anos. Profundas reservas, porém, devem merecer as propostas de formação de professores “generalistas” para os primeiros 6 anos de escolaridade (em algumas propostas cobrindo também o pré-escolar!) por apontarem nitidamente para a diminuição do papel essencial da escola – as aprendizagens e o conhecimento – em favor da escola meramente ”afectiva”.

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- o combate sério ao insucesso escolar. Creio que a noção administrativa de “passagem de ano”, levando à definição casuística e sempre variável de saber com quantas e quais negativas se pode passar ou chumbar, tem de ser substituída por uma política efectiva de apoio e recuperação das aprendizagens em tempo útil, o que implica um maior número de professores nas escolas e uma maior racionalidade na carga horária dos alunos - inseparável da mais do que necessária redução do núme-ro de disciplinas no ensino básico. Sendo adquirido que o facto de um aluno “repetir” um ano não significa que ele melhore os seus conhecimentos e atitudes, urge encon-trar um outro modelo que possibilite as recuperações e o sucesso sem conceder o mínimo espaço ao facilitismo, nem ao sucesso “administrativo-estatístico” de que a ac-tual equipa da Educação fez arma propagandística.

- uma avaliação sensata e adequada das escolas e dos professores.

Não poderia obviamente deixar de me referir ao conflito aberto entre o Governo de Sócrates, através do Ministério da Educação e do próprio Primeiro Ministro, e os professores, um conflito que está a degradar a escola pública apesar das solenes e certamente honestas pro-messas de que tudo o que se está a fazer é em seu nome e pela sua defesa. Não se encontra na história da nossa democracia situação similar a esta: a de toda uma enor-me classe profissional, boa parte da chamada “sociedade civil”, a oposição política e boa parte do próprio parti-do do Governo, todos de acordo na rejeição da política educativa prosseguida por um ministério da Educação.

A equipa ministerial criou uma ruptura total com os professores. Tentemos perceber porquê. Antes de mais porque, usando meias verdades ou puras mentiras, dene-griu a imagem dos professores junto da opinião pública. Ficará como bom exemplo de tentativa de assassínio dos professores a afirmação de Maria de Lurdes Rodrigues “ Perdi os professores, mas ganhei a opinião pública”. Pretendeu ganhar a opinião pública descrevendo a clas-se docente como uma classe carregada de privilégios, nomeadamente de que seria principescamente paga, de grande absentismo, com pouco trabalho e horários muito reduzidos, mal preparada científica e pedagogicamente. Este desamor ofensivo para com os professores culmina-rá na afirmação de que “se a um aluno tem dificuldades é porque os professores o abandonam”. Esta deliberada estratégia de denegrir a imagem profissional dos pro-fessores não é separável do aumento de indisciplina nas escolas – com consequentes reflexos na aprendizagens, nem mesmo das agressões que, por parte de alunos, mas sobretudo por parte de encarregados de educação (!) os professores vêem sofrendo de forma crescente, embora evidentemente estes fenómenos tenham outras causas certamente mais profundas. Mas esta miserável estraté-

gia sobretudo desanimou os melhores de nós. O esforço feito por décadas de entrega à escola, de horas e horas de trabalho não pago que voluntariamente dedicámos aos nossos alunos teve como recompensa uma agres-são alarve, sustentada na ignorância da realidade ou na generalização oportunista e falaciosa de algumas más práticas ou de uns poucos comportamentos censuráveis. Haveria que mudar muitas coisas, sem dúvida. Mas estas mudanças contra os professores, contra todos os profes-sores, sobretudo contra os melhores professores podem ficar registadas em papéis, podem até permitir alguns brilharetes estatísticos, mas não vão melhorar a escola pública, antes vão degradá-la. Os colégios privados só ainda não agradecem a Maria Lurdes Rodrigues porque a crise económica e social obriga a classe média a parti-culares esforços de poupança.

A necessária aposta na qualidade da escola pública, nas actuais circunstâncias portuguesas, supõe o desen-volvimento de práticas de avaliação de desempenho das escolas e dos professores (já que os principais responsá-veis políticos pelo funcionamento do sistema educativo não estão sujeitos a outras avaliações que o voto dos cidadãos…) Mas também aqui era e é indispensável que

NÃO HÁ NA HISTÓRIA DA NOSSA DEMOCRACIA SITUAÇÃO SIMILAR A ESTA:

A DE TODA UMA ENORME CLASSE PROFISSIONAL, BOA PARTE DA CHAMADA

“SOCIEDADE CIVIL”, A OPOSIÇÃO POLÍTICA E BOA PARTE DO PRÓPRIO

PARTIDO DO GOVERNO, TODOS DE ACORDO NA REJEIÇÃO DA POLÍTICA

EDUCATIVA PROSSEGUIDA POR UM MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO.

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a perspectiva da avaliação fosse a da melhoria dos de-sempenhos das escolas e dos docentes. É hoje claro para a maioria dos portugueses que o imbricado e absurdo modelo de avaliação que o ME quis impor não conduzirá a essas metas. Em vez de facilitar o trabalho colectivo e cooperante dos docentes, divide-os em titulares e profes-sores, em avaliados e avaliadores, em bons e muito bons, sendo que todas estas divisões assentam em injustiças e arbitrariedades, eventualmente reforçadas pela concen-tração de diversos poderes num órgão unipessoal – o director que, além do mais, nomeia a quase totalidade das estruturas pedagógicas intermédias, de resto forte-mente desvalorizadas.

Incapaz de perceber e de atender à realidade em que pretende intervir (registe-se a título de exemplo que o 2/2008, i.e. o diploma que institui o modelo de avaliação previa que esta fosse “concretizada num espaço de 30 dias!), o Ministério da Educação , refém de preconceitos sobre os professores e substituindo a realidade da esco-la portuguesa por um esquema conceptual, abstracto, importado das latitudes da América Latina, insiste em soluções que todos rejeitam porque inadequadas. Disse o Primeiro Ministro que já estava cansado desta guerra; afirma a ministra que está cansada, mas que corresponde ao seu trabalho; os professores, esses, estão exaustos e isso prejudica gravemente o seu trabalho com os alu-nos.

Uma séria política de esquerda não é compatível com o modelo de escola-empresa delineado por esta equipa ministerial e por este governo. Supõe estímulos para que as escolas melhorem as sua práticas e os seus resul-tados, o que só é possível com professores respeitados e motivados; a avaliação de desempenho pode e deve ser

um dos factores de motivação, de respeito e de prestígio profissional, incluindo as diferenciações que houver que introduzir para premiar a excelência e corrigir as insufi-ciências. Mas não pode nunca ser factor de guerrilhas in-ternas nas escolas, de divisões e crispações que impedem o trabalho colectivo, do desinvestimento na pedagogia a favor da burocracia num esquema em que o objectivo é derrotar o colega de grupo porque o número de lugares de muito bom ou excelente é administrativamente fixado e reduzido.

Á lógica burocrático-individualista do modelo do ME, cujas funestas consequências nas escolas estão por demais evidentes, é necessário contrapor um modelo de avaliação de desempenho que aposte na melhoria das es-colas através do esforço coordenado e colectivo de todos os docentes. Infelizmente, parece que tal só será possível quando esta equipa abandonar a 5 de Outubro.

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POR UM COMPROMISSO PELA ESCOLA PÚBLICA:AS EVIDÊNCIAS E OS DESAFIOS

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POR UM COMPROMISSO PELA ESCOLA PÚBLICA: AS EVIDÊNCIAS E OS DESAFIOSCECÍLIA HONÓRIO | PROFESSORA, DEPUTADA DO BLOCO DE ESQUERDA

A CRISE FOI UM DOS MAIS PODEROSOS NICHOS ideológicos que permitiu a cada governo, e a cada minis-tro da educação, lancetar reformas sobre reformas sem avaliar o passado. A escola pública é, de há muito a esta parte, a terra virgem que cada governante colonizou com a sua mochila de slogans e leis.

Sobre a matriz decadentista do discurso da crise, e sobre a inauguração permanente que este discurso foi legitimando, já quase tudo foi escrito. A escola pública foi por sua conta, e da debilidade do pacto social que a sustentou na democracia, alvo fácil do experimentalis-mo legislativo, desde os “engenheiros” da educação1 até à actual ruptura. E se nem por isso se ganha o direito de chorar lágrimas de crocodilo, e de ignorar o muito que se fez em trinta anos, vale a pena observar o que de diferente se instalou com a maioria absoluta do PS.

Antes do conteúdo, algumas notas sobre a forma. É que a tricefalia da equipa ministerial e o seu frenesi le-gislador, galopando sobre a identificação dos “inimigos” (sindicatos e professores), desnudaram a fraqueza onde se exibia o punho de ferro.

O que vale a Ministra da Educação e cada um dos seus secretários de estado, o poder que, aparente ou re-almente, cada um deles detém ainda é uma incógnita para as vítimas do ensejo reformador. Um governo que elege a educação como palco, permitindo que três per-sonagens nele actuem por conta, é um governo fraco e que por isso mesmo é autoritário.

Aquele ruído tornou-se ensurdecedor com a infla-

ção legislativa que, pretendendo mudar a realidade das escolas a todo o custo, revelava desconhecê-la ou igno-rá-la. Mas se a equipa de Maria de Lurdes Rodrigues ganhou tempo, com a esperança de uns e a estupefacção de outros, não resiste, hoje, às provas de incompetência. A arbitrariedade da divisão da carreira docente ou os ziguezagues do modelo de avaliação de desempenho são disso exemplo.

Assim, a lustrosa maçã, anunciada no início por al-gumas mudanças, foi exibindo o bicho, pior, o verdadei-ro veneno. Contas feitas, as novidades deste governo - para além da hiper-mediatização da escola e da política do espectáculo, cujo epicentro é o Magalhães - residem na rendição acrítica ao pensamento único em matéria de educação.

É neste quadro que a presente proposta apresenta algumas das evidências do pensamento neoliberal e dos seus custos, assentando na convicção da exigência de um compromisso à esquerda pela escola pública, que procura menos a “novidade” das respostas do que a pos-sibilidade de enfrentar os problemas.

PRIMEIRA EVIDÊNCIA: NO MUNDO INCERTO DA GLOBALIZAÇÃO, O ENSINO E A FORMAÇÃO DESTINAM-SE A ADAPTAR INDIVÍDUOS À INCERTEZA, E CADA UM/A DEVE ADAPTAR-SE AO MUNDO QUE DESISTIU DE MUDAR.

Os danos desta evidência são a hegemonia de padrões de saber que exigem menos cultura, menos reflexão e pensamento crítico, menos memória, mais saberes ins-trumentais, mais competências flexíveis e viradas para o mercado de trabalho, e tudo regado pelo “milagre” das TIC e pela recente nóia do “emprendedorismo”.

É óbvio que o trabalho feito pelo governo no acesso às novas tecnologias da informação só peca por não tor-nar coincidentes a glória do espectáculo e a realidade2. Mas os Magalhães não são um antibiótico para o insu-cesso se a escola onde funcionam não tiver condições para se centrar no valor das aprendizagens. Nem as crianças e jovens têm de ser precocemente socializadas para o mundo empresarial pelas mais óbvias razões: por-que a escola não é a tradução do mundo lá fora3 e porque o “dever de empregabilidade”, com que o pensamento único comeu o “direito ao trabalho”, não aguenta a rela-ção directa com o aumento real de emprego.

A resposta à esquerda só pode vir da recusa da desis-tência do conhecimento para a emancipação4, e do desejo de uma escola centrada na aprendizagem dos seus alu-nos, vivendo em rede as múltiplas exigências e desafios que lhe são colocados.

Aqueles e aquelas que confiaram no lado esquer-do do PS ainda esperaram, por exemplo, que este mi-nistério da educação fosse capaz de mexer no que se aprende nas escolas. Enganaram-se. Os programas permanecem desajustados, não partem da realidade conhecida e vivida. O saber é “manualesco”, apesar da

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sublimação do Magalhães, disciplinarizado e sem tron-cos comuns.

E uma escola que recusa o presente, que não discute as desigualdades sociais, de género, de orientação sexu-al, ou a crise económica, é uma escola que inibe o conhe-cimento para a emancipação. Uma escola que ainda hoje trata com pinças a educação sexual ou que se alimenta de bolsas curriculares mortas (como a formação cívica, por exemplo) é uma escola disciplinadora, que só serve o tal mundo que “se desistiu de mudar”.

SEGUNDA EVIDÊNCIA: A ESCOLA JÁ É PARA TODOS E PARA TODAS.

O risco desta evidência é o da desistência do ensino de qualidade para todos/as, um dos maiores riscos do presente e aquele que duplica o fosso das desigualdades sociais e culturais de partida.

Os dados falam por si: o PISA revela que a origem socioeconómica dos alunos portugueses tem um papel superior, no desempenho escolar, à média dos 57 países analisados; a investigação tem denunciado o poder dos marcadores sociais, dos níveis de escolarização das mães, por exemplo, das diferenças de género na resistência ao confronto entre quadros desfavorecidos de origem e ins-tituição e cultura escolares5.

O governo estende a acção social escolar – mas lon-ge ainda a possibilidade da gratuitidade da frequência, que é o que falta - mas muitos profissionais de educação continuam a quotizar-se para pagar refeições a alunos, arranjar-lhes roupa, comprar fogões para as famílias, etc., etc.

Aceite a fatalidade destas infância e adolescência amputadas, banalizado o assistencialismo das melhores

intenções, a esquerda só pode perguntar-se que país mo-derno é este de tantas vidas adiadas.

E ao reforçar a concentração da salvação nas esco-las, mantendo a debilidade das políticas públicas para a infância6 e adolescência, o governo exige-lhes que rete-nham os insucessos acumulados a qualquer custo e que adiem a sua entrada no mercado de trabalho com ofertas de segunda.

Há quem ache os “Cef ” um mal menor. Mas a recente massificação destas ofertas é a desistência da prevenção e da intervenção precoces e insere-se no que Stephen Stoer já tinha denunciado a propósito dos currículos alternativos: é o PS a fazer a “gestão controlada das de-sigualdades”.

A esquerda só pode questionar-se sobre isto: uma escola dualizada, de saberes dualizados, é uma escola que garante a igualdade de oportunidades?

A exigência do novo compromisso faz-se exacta-mente aqui: as políticas públicas e a escola pública têm de abrir espaços e oportunidades, que não têm, para crianças e jovens que não têm mães licenciadas, pais bem sucedidos profissionalmente, prateleiras cheias de livros e computadores desde que nascem. E é impossível desis-tir da intervenção onde ela deve começar, no início.

1. A escola não pode engavetar os que partem em desvantagem. Não pode, por isso, proceder à orientação vocacional baseada nas dificuldades de aprendizagem (desde o 7.º ano). Deve, por isso, ser penalizada quando assina a desigualdade de oportunidades ao enxotar as crianças que “não interessam”, ao fazer turmas de nível, separando os “bons” e os “maus”, ao desrespeitar o equi-líbrio de género na constituição das turmas, etc., etc.

2. A escola pública só pode ser o lugar de uma políti-

ca de língua. Uma política integradora que assuma sem pudores o ensino multilingue, que seja capaz de acabar com a discriminação das crianças e jovens oriundos de países de língua oficial portuguesa, e de formar os seus profissionais neste caminho plural do combate às discri-minações, a começar pela língua.

3. A escola tem de contar com equipas multidiscipli-nares experientes e envolvidas, com trabalho em rede e que a curem do multi-tarefismo7, barato e irrespon-sável. Se a escola tem de responder à multiplicação de missões, dêem-lhe os meios, abram-se redes, criem-se novos laços institucionais, familiares e sociais, que lhe permitam respirar e levar mais a sério a igualdade de oportunidades.

4. E só quando a base da pirâmide estiver cheia é que o fim das retenções deverá estar no seu vértice. É que o fim dos chumbos não pode ser uma medida administra-tiva para poupar dinheiro. Mas também não deve criar fobias, porque a sua continuidade não é nem medida de exigência nem castigo pelo crime de se partir com con-dições de aprendizagem muito diferentes das do “aluno padrão”.

5. E como não há crime em educação, e como não vão a tribunal os autarcas que, por esse país fora e com a conivência de sucessivos governos, foram recriando guetos e escolas para os guetos, cabe exigir à tutela a avaliação efectiva dos Territórios Educativos de Inter-venção Prioritária e desfazê-los onde os territórios de inserção ofereçam contextos de heterogeneidade social e cultural. Desfazer a rede diferenciada de escolas públi-cas, as que estão vocacionadas para a aprendizagem e as que o estão para o cuidado, seria prioridade de qualquer governo de esquerda.

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TERCEIRA EVIDÊNCIA: A ESCOLA PÚBLICA É DEMASIADO CARA E HÁ NECESSIDADE DE PARTILHAR CUSTOS.

Os riscos são conhecidos: é a hora da privatização, mais envergonhada ou menos envergonhada, e com fórmulas múltiplas que podem ir da euforia do cheque-ensino e das escolas contratualizadas, à privatização parcial do currículo ou à criação de empresas de gestão do parque escolar.

A resposta só pode vir do reforço do espaço público da educação e da escola pública8. E a construção des-te espaço exige uma escola participada e democrática, centrada nos alunos e alunas, prestadora de contas pelo seu serviço, exigente nas condições e recursos que lhe podem permitir garantir um ensino de qualidade para todos e todas.

1. Mais abertura. Uma escola participada e democrática afirma-se pe-

las dinâmicas associativas, pela capacidade de ter mais dentro os “outros”, sem deles ser couto: famílias, comu-nidade, parceiros sociais.

2. Menos formatação: participação com respon-sabilidade e flexibilidade.

Mas esta escola não pode estar subordinada ao taylorismo de modelos de governo. Neste domínio, o actual governo conseguiu atingir a apoteose da forma-tação, gerando modelos simétricos entre as instituições de ensino superior e não superior. Não provou que o que existia não prestava, porque “inscrever” o presente, para os neoliberais, é negar o passado. Nem interessava, porque o trabalho de avaliação externa das escolas, que

contava na sua equipa com gente avalizada, caminhava no sentido contrário às necessidades do governo.

Modelos de governo mais flexíveis, assentes na electividade e na responsabilidade, e co-decisão das es-colas no figurino mais adaptado às suas necessidades são exigência de modernidade.

3. Mais participação de alunos e alunas.Pode ser banal mas não é ainda real: as escolas são

para as crianças e jovens deste país. Apesar de todos os episódios mediáticos de violência, e da tirania dos telemóveis, eles e elas continuam desprotegidos face aos poderes e aos saberes, sujeitos ao “sensacional poder quotidiano”9 e sem mecanismos nem de reforço da sua representação na gestão das escolas, nem de cidadania efectiva.

4. Transparência e dever de publicitação.Escolas transparentes são aquelas que não temem o

dever de publicitação das suas decisões e não se vêem ao espelho como feudos. Os critérios e os horários de pro-fessores e alunos, de oferta curricular, de constituição de turmas, etc., não são segredos de deuses e deusas, são informações que interessam e dizem respeito a todos.

5. Melhores recursos e condições de trabalho.As escolas públicas apostadas na qualidade devem

defendê-la perante uma carta dos recursos e das condi-ções de trabalho.

A verborreia instala-se melhor sobre a miséria: há muitas escolas sem sala de convívio para os seus alunos, sem alimentação decente para os seus profissionais, há horários de trabalho esmagadores e que se alongaram vergonhosamente com este governo. É preciso que cada escola denuncie a sua realidade e reivindique para a qua-lidade.

QUARTA EVIDÊNCIA: TODOS OS SERVIÇOS PÚBLICOS DEVEM PRESTAR CONTAS, AVALIAR O SEU DESEMPENHO.

Este foi, porventura, o maior triunfo da modernice do PS e o menos indeciso golpe sobre a própria natureza pública dos serviços, dada a empresarialização subja-cente.

Os riscos são óbvios: reforço do controlo e da gover-namentalização, e esmagamento dos projectos e identi-dades próprias das instituições. Sob o falsete da avaliação para e pelo mérito, as actividades dos que trabalham nas instituições são decompostas em “objectivos”, “resulta-dos”, “medidores de eficácia”10.

Nas escolas de ensino não superior o império da ava-liação desbravou à custa do acasalamento entre os mo-delos, empresarial e militar. Assim se escavou o discurso do mérito e da produtividade e se criou a fractura insana entre professores de primeira e de segunda.

Mas o que interessa é que o modelo de avaliação é barato e lucrativo. É barato porque vive da relação entre pares que deixaram de o ser administrativamente; é lu-crativo porque reforça o controlo interno e a sua cadeia de comando, impedindo que a esmagadora maioria atinja o topo da carreira.

O compromisso à esquerda enfrenta a avaliação, não a evita. E começa por onde interessa fazê-la: na avaliação das escolas, inseridas em contexto e com definição clara das condições e meios para o sucesso, para que todos saibam o que é responsabilidade da tutela e o que a escola podia fazer melhor do que faz.

A prioridade à avaliação das escolas em contexto deveria conciliar as vertentes, externa e interna, va-

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lorizando o trabalho em equipa que caracteriza toda a sua vida, e centrando-se na qualidade das aprendi-zagens. E só neste contexto se poderia passar à ava-liação do trabalho de cada professor e professora.

NOTAS1 “(…)Vítor Crespo, João de Deus Pinheiro, Roberto Carneiro, Marçal Grilo. A arquitectura da escola por-tuguesa no final do século XX foi, em grande medida, traçada por estes “engenheiros” (António Nóvoa, “O espaço público da educação”, p. 4)2 Em quantas das salas de aula do país, para onde al-guns alunos levam computadores, faz frio e não se li-gam aquecedores, quando existem, para não se ficar às escuras?...3 A escola « (…) est ce qui prépare à comprendre le mon-de, non à l’ absorber ou à le faire venir à soi. » (Charles Coutel, Que vive l’ école républicaine !, 1999, p. 6). 4 A fé na economia do conhecimento e na cultura do mer-cado tornaram a emancipação pelo conhecimento uma “ideia obsoleta”; cf. Christian Laval, L’école n’est pas une entreprise. Le néo-libéralisme à l’ assaut de l’enseignement, 2003, p. 5.5 cf., por exemplo, Ana Nunes de Almeida e Maria Ma-nuel Viera, A escola em Portugal, Novos Olhares, Novos Cenários, ICS, 2006.6 Neste domínio, são imprescindíveis os trabalhos de Manuel Sarmento, nomeadamente, Políticas Públicas e Participação Infantil, Educação, Sociedade e Cultura, n.º 25, pp. 183-206.7 O “transbordamento” como lhe chama António Nóvoa (Evidentemente, 2005, p. 16), esse impasse resultante da descarga de conteúdos e missões na escola e o mal-estar decorrente entre professores, pais, alunos, que hoje vai cedendo ao “retraimento”.8 “Como conseguir que a educação responda aos an-seios e aos desejos de cada um sem que, ao mesmo

tempo, renuncie à integração de todos numa cultura partilhada?” (António Nóvoa, “O espaço público da educação”, p. 11).”9 “(…)Enquanto educadores, não raras vezes, parecemos estar em posições de um sensacional poder quotidiano. Podemos ajudar os nossos alunos a crescer ou pode-mos, involuntariamente, estorvá-los. Podemos ajudá-los a crescer para se tornarem adultos realizados e com-petentes, ou agir de modos que os arruínem. (…) nós, enquanto educadores, dizemos quem é normal e quem o não é.”(Gail Jardine, Foucault e Educação, p. 9)10 “A avaliação e o controlo podem tornar-se um exercí-cio circular de verificação da existência de mecanismos de controlo interno da instituição e do seu funciona-mento, mais do que um meio de avaliar a actividade ou o desempenho da instituição e dos seus membros” (Arris-cado Nunes, “Para onde vai a Universidade?”, Le Monde Diplomatique, Outubro de 2008)

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AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO DOS PROFESSORES

DO ACTUAL CONFLITO ÀS ALTERNATIVAS JORGE MARTINSEDUC

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A AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO DOS PROFESSORES: DO ACTUAL CONFLITO ÀS ALTERNATIVASJORGE MARTINS | PROFESSOR DO ENSINO SECUNDÁRIO NO PORTO E INVESTIGADOR NA FACULDADE DE PSICOLOGIA E CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO DA UP

O conflito em torno da avaliação do desempenho dos professores criou uma desestabilização nas escolas que não se pode prolongar, sob pena dos seus nefastos efeitos se tornarem irreversíveis. Este texto procura chamar a atenção para a natureza política da questão e sugerir algumas propostas para o seu desbloqueamento.

SECUNDARIZADAS QUE FORAM AS RAZÕES técnicas, as questões que hoje se colocam são do âmbito da política educativa e, por isso, só encontrarão resolu-ção no quadro político.

O cariz político da questão explicita-se nas acusações de que são alvo os professores. As mais significativas (“os professores não querem ser avaliados por este modelo nem por qualquer outro”, “não querem respeitar o tra-balho já realizado por muitas escolas”, “os sindicatos não querem cumprir o Acordo de Entendimento de Abril”, “os professores estão a ser manipulados pelos partidos políticos da oposição”) são falsas, revelam o cerco social e moral montado aos professores e contribuem para o aumento da desconfiança dos portugueses na escola pú-blica. Também contribuem para o descrédito das funções

docentes, para a desconsideração do trabalho colabora-tivo que caracteriza a profissão e para a menorização da sua componente pedagógica.

Por outro lado, aquelas acusações têm como resulta-do pôr escolas contra escolas, dividindo-as em “boas” (as que supostamente querem levar o processo por diante) e “más” (as que não se conformam com a continuação des-se processo), o que leva os pais a desconfiar das segundas e a acreditar nas primeiras. Enquanto nestas existiria ordem, autoridade, eficácia e respeito pelos dirigentes, nas outras dominaria a anarquia, a falta de responsabi-lidade e uma gestão incapaz. Ou seja, o argumento abre irremediavelmente a porta à transferência de alunos das escolas “más” para as “boas” ou para as privadas. O Com-promisso Portugal só tem que agradecer este trabalho preparatório de um promissor mercado educativo.

A enorme adesão à greve de 3 de Dezembro veio pro-var que quem não admitia as cedências do Entendimento eram os professores e que o cálculo dos acusadores sobre o isolamento das direcções sindicais estava errado. O êxito da greve só é explicável no contexto de um profun-do mal-estar de toda uma classe profissional.

Aliás, o que a realidade da greve demonstrou é que os professores não se deixaram manipular pelas diversas pressões políticas de que foram alvo. De facto, não foram os professores que se deixaram manipular pelos partidos, mas estes que tentaram atrelar-se ao descontentamento para daí tirarem proveitos eleitorais.

Na verdade, embora com objectivos distintos e, nal-

guns casos, até opostos, todos os partidos sem excepção se pronunciaram sobre o processo, sobre o conflito e sobre as soluções. Alguns foram mudando de opinião, a reboque dos acontecimentos, outros procuraram desmo-bilizar os seus militantes e outros ainda diabolizaram os movimentos autónomos dos professores.

Assim, o argumento da manipulação acabou por contribuir para a desconfiança de toda uma classe relati-vamente aos seus legítimos representantes políticos.

A democracia representativa ficou mais pobre.

O QUE É PRIORITÁRIO FAZER NA EDUCAÇÃO?

1. PACIFICAR O SECTOR OUVINDO OS PROFESSORES E VALORIZANDO O SEU PAPEL.Para isso é necessário restabelecer a confiança entre as partes e iniciar um diálogo sem condições prévias que reconheça as razões de fundo da actual crise.

A primeira razão de fundo, nunca assumida pelo governo, é que este modelo de avaliação, mais do que me-lhorar a qualidade do serviço público educativo, destina-se a implementar as alterações ao Estatuto da Carreira Docente que não dignificam a profissão nem melhoram a prestação das escolas.

A segunda razão é que estas alterações visam, de forma economicista, emagrecer em dois terços, o con-

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tingente de professores com vínculo funcional e remu-neratório estável. Só um terço dos actuais professores, aqueles a quem o estatuto confere a categoria de ti-tulares, é que passa a ser contabilizado para efeito de despesas permanentes necessárias (mas não suficientes) ao funcionamento do sistema. Os outros dois terços, na medida em que dependem de um contrato de trabalho renovável ou não, representam despesas variáveis, gerí-veis de acordo com as políticas orçamentais de redução ou crescimento do défice que a União Europeia possa impor ao país.

A terceira razão prende-se com uma carreira que im-põe uma divisão artificial entre professores e professores titulares. Não faz sentido, entre as várias disposições adoptadas, considerar que o currículo dos professores se resume aos últimos sete anos de actividade ou que os melhores professores (os titulares) são os que exerceram cargos de administração escolar durante esse tempo.

A quarta razão tem ver com o modelo original de avaliação e com o processo burocrático da sua imple-mentação. Quer o modelo, quer o processo, enfermam de graves erros técnicos, de contradições e de equívocos que já foram, por demais, denunciados. Os professores querem ser avaliados através de um processo que reco-nheçam como justo, transparente e exequível. Ora, re-pensar o modelo exige tempo, experimentação e cuidada generalização.

Assim, para restabelecer o diálogo e a confiança entre as partes, importa suspender a aplicação do Estatuto e o processo de avaliação, acordando disposições legais transitórias, ou repristinando, se necessário, a legislação anterior, para resolver casos urgentes.

Só ouvindo os professores e as escolas, sem pressas

injustificadas, será possível iniciar a discussão pública de um novo Estatuto e de um novo modelo de avaliação e estabelecer calendários de elaboração, de execução e de avaliação acordados entre as partes.

2. RESTABELECER A CONFIANÇA SOCIAL NAS ESCOLAS E NOS PROFESSORES Isto significa pôr acima de quaisquer outros intervenientes os alunos e centrar neles toda a actividade escolar. É necessário, por isso, continuar o combate pela inclusão e pelo êxito escolar de todos, em especial daqueles que já são marcados pelas desi-gualdades sociais ou pelas incapacidades do foro pessoal.

Combater o insucesso escolar não pode significar o facilitismo e a passividade perante as inúmeras dificul-dades escolares que hoje marcam o quotidiano dos pro-fessores. Não pode haver tolerância face à indisciplina, à falta de respeito, à violência, à ausência de valores éticos e princípios que regulam a vida das escolas, venham eles de onde vierem (dos alunos, das famílias, dos professo-res). Não pode haver resignação nos professores, nos autarcas e nos pais perante os números do insucesso, do abandono escolar precoce e das saídas antecipadas, mas também não pode haver complacência para com orientações que possam redundar no enfraquecimento da qualidade do ensino e das aprendizagens, dos pro-gramas e dos currículos, dos exames, das classificações e dos diplomas.

A escola pública, mais do que uma instituição onde naturalmente se prestam serviços sócio-educativos e se acolhem, em segurança, crianças e jovens de todos os extractos socais, é um lugar onde obrigatoriamente

se ensina e aprende, onde se motiva e descobre, onde se explica e compreende, onde se impõe e obedece. Tem que ser, por isso, um lugar exigente no respeito pelas regras do seu funcionamento e pelos papéis sociais dos seus di-versos actores, em particular dos professores e alunos.

Restabelecer a confiança social na escola pública (e nos professores) implica, então, reforçar-lhe as caracte-rísticas que a identificam como instituição de suporte da própria democracia: a autonomia, a prestação pública de contas, a prevalência do pedagógico sobre o administra-tivo, a singularidade do seu projecto e dos seus alunos, da “cultura de escola” e da sua acção num contexto que lhe é próprio.

Assim, importa retomar e desenvolver os contratos de autonomia tripartidos (escola, autarquia, administra-ção educativa) e criar mecanismos de monitorização de cada contrato como forma de envolvimento das comu-nidades na vida educativa local e de responsabilização social crescente sobre a qualidade do serviço prestado.

Importa, ao mesmo tempo, reforçar, no âmbito da gestão e administração escolar, as funções dos professo-res. Por isso é que a avaliação destes profissionais deve ser centrada sobre a sua actividade na sala de aula, deve ter uma componente formativa, deve ser concursal e tem que ser insuspeita de servir outros interesses que não sejam a melhoria da qualidade.

3. AUMENTAR A RESPONSABILIDADE SOCIAL SOBRE AS ESCOLAS PÚBLICASEm grande parte das localidades, as escolas representam o único serviço público onde se concentram competências, re-cursos, equipamentos e espaços que hoje são indispensáveis na

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vida das respectivas comunidades. As escolas constituem espa-ços onde se deve aprender e praticar a cidadania democrática, o respeito pela diferença, a observância das regras, o valor do trabalho e da criatividade.

As comunidades locais reconhecem nas escolas um bem que, sendo pago por todos, deve estar ao seu serviço e ao serviço do desenvolvimento pessoal de cada um dos seus membros. A escola pública pertence-lhes. Isto sig-nifica que as comunidades locais, através das famílias, das associações de pais e das autarquias, são também respon-sáveis pelo cumprimento da missão das suas escolas.

Se as autarquias têm um papel determinante na qua-lificação dos sistemas educativos locais, são sobretudo os pais e adultos encarregados de educação que têm que as-sumir a sua parte de responsabilidade na dignificação do trabalho dos professores, na preservação de instalações e equipamentos, no cumprimento dos deveres de frequên-cia, de assiduidade e de pontualidade e na resolução dos problemas do dia-a-dia. Mais do que “clientes” do servi-ço público educativo, têm que se constituir como parcei-ros e aliados das escolas, como os primeiros modelos de responsabilidade cívica junto dos seus educandos. A sua capacidade de crítica não pode, nunca, confundir-se com atitudes de violência, de intolerância e de desrespeito face à escola e aos professores.

Nesta medida, é preciso rever a legislação que regula a criação e o funcionamento das associações de pais, no sentido da defesa dos seus direitos e deveres, mas in-tervindo também ao nível do escrutínio regular da sua representatividade e funções junto das famílias.

Por outro lado importa completar o processo de transferência de competências e recursos financeiros para os municípios, acompanhando-o de dispositivos

de avaliação e observação do modo como se desenvol-ve a responsabilidade social em matéria de educação. Às autarquias, pela sua proximidade e conhecimento concreto do território, deve caber o papel de garante da harmonização das medidas de apoio social escolar com as de combate às desigualdades, nomeadamente no que respeita ao rendimento social de inserção, ao salário mínimo e ao subsídio de desemprego.

4. REVALORIZAR O ESPAÇO-AULA E O TRABALHO DOCENTENão devem existir confusões sobre a importância educativa dos vários espaços escolares: é nas salas de aula que acontece o essencial do acto de ensinar e aprender. É nesse espaço-tempo que os professores e os alunos assumem o seu ofício e desempe-nham as suas funções.

Por isso, sem deixar de se reconhecer a grande im-portância dos outros espaços escolares (recreios, bi-bliotecas, refeitórios, etc.) é nesse espaço que se devem concentrar os esforços de melhoria da qualidade da educação e do serviço público das escolas.

Se o conforto, o mobiliário e o equipamento desses espaços constituem hoje condições necessárias para ensinar e aprender, só por si, essas condições não são suficientes. Os esforços de melhoria devem ser dirigidos para o trabalho insubstituível do professor e para a relação que estabelece com os alunos e, por isso, devem privilegiar a formação integral e contínua (científica, pedagógica, didáctica) dos docentes e acautelar as condi-ções para aprendizagens individuais activas e motivadas. É prioritariamente nestes domínios que a avaliação dos professores deve incidir.

Assim, importa rever o número de alunos por turma, em função dos anos de escolaridade, mas também das disciplinas; importa avaliar os benefícios e os prejuízos do actual tempo de duração das aulas e da actual distri-buição da carga horária (diária e disciplinar) e instituir a regra da observação/coadjuvação de aulas como dimen-são do processo de formação contínua, de cooperação entre docentes e de avaliação dos próprios professores.

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O GOVERNO DAS ESCOLAS:PARA ALÉM DA CENTRALIZAÇÃO E DO GERENCIALISMO LICÍNIO C. LIMA

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O GOVERNO DAS ESCOLAS: PARA ALÉM DA CENTRALIZAÇÃO E DO GERENCIALISMO LICÍNIO C. LIMA | PROFESSOR UNIVERSITÁRIO

HÁ JÁ MAIS DE UMA DÉCADA QUE VENHO chamando a atenção, através do recurso a um oximoro (isto é, a palavras de sentido oposto), para a centrali-dade periférica das escolas numa administração educa-tiva centralizada. O argumento é simples: existe uma contradição insanável entre a centralidade educativa e pedagógica das escolas e o seu carácter periférico em termos de governo e autonomia. Ao invés, a política e a administração da educação revelam-se, na tradição por-tuguesa, altamente centralizadas, embora fatalmente pe-riféricas no que concerne à acção educativa e pedagógica concreta, que ocorre necessariamente em contexto esco-lar e não nos departamentos centrais ou nas instâncias pericentrais desconcentradas do ministério respectivo. Como os problemas mais típicos e complexos da “escola de massas” exigem soluções políticas e organizacionais diversas e contextualizadas, única forma de responder positivamente à crescente diversidade das escolas públi-cas e dos seus alunos, o centralismo revela-se inconse-quente em termos educativos e pedagógicos, assumindo dimensões autoritárias, próprias de uma oligarquia que, por definição, é incapaz de corrigir os seus erros e de se descentrar das suas lógicas de controlo.

Apesar da recente retórica em torno da “autonomia da escola”, uma promessa insistentemente repetida mas eternamente adiada em termos minimamente substan-tivos, tem-se assistido a fenómenos de recentralização que asseguram o protagonismo insular das equipas governativas e respectivos aparelhos administrativos.

A última orgânica do ministério da educação, aprova-da pelo XVII governo constitucional, é exemplo disso mesmo, tal como o reduzido número de contratos de au-tonomia assinados, independentemente das críticas que vêm sendo apresentadas a esta figura, normativamente estabelecida há mais de uma década. Ao mesmo tempo que os discursos autonómicos se generalizam, sem con-sequências visíveis, emerge, pelo contrário, um maior protagonismo do governo, seja através da tradicional produção normativa e hiper-regulamentadora, seja por intermédio de novos dispositivos de governamentaliza-ção da administração central, das direcções regionais e, sobretudo, das escolas. A este propósito, a criação do conselho das escolas tem-se revelado, até agora, mais um elo de ligação entre o governo e as escolas, garantindo a centralidade do primeiro, do que um fórum de expressão das segundas e um locus de concertação e produção de políticas participadas.

Entre outros, dois fenómenos emergem da situação acima descrita. Em primeiro lugar uma disputa sem pre-cedentes pelo protagonismo e pela visibilidade pública entre governo, e administração, e as escolas, com o re-sultado que é do conhecimento de todos; os protagonis-tas centrais do ministério da educação reafirmaram-se como os mais importantes actores político-educativos, tornaram-se notícia incontornável, concentraram sobre si todas as atenções, frequentemente em termos perso-nalizados. O anunciado, e relevante, projecto de defesa e dignificação da escola pública aparece, hoje, secunda-

rizado por uma acção política contraditória. Medidas de alcance potencialmente elevado foram contrariadas, ou pelo menos diminuídas, por lógicas antagonistas, pela intransigência, pela incapacidade negocial, configurando uma estratégia que se assemelha várias vezes a um certo vanguardismo e dirigismo de feição leninista: a conquis-ta, o slogan, a campanha, o marketing, revelam-se instru-mentos centrais de uma lógica modernizadora em que, como há muito criticou Paulo Freire, a estrutura que se pretende transformar é entendida como um mero objec-to, e não como sujeito da sua própria transformação.

Em segundo lugar, assiste-se a um processo de reifi-cação das escolas, inscritas no discurso governamental como entidades mais ou menos abstractas e homogéne-as, como se não fossem habitadas por actores concretos e atravessadas por múltiplas racionalidades. Daquele modo, contudo, mais manejáveis pela acção governa-mental e, no limite, apresentadas de forma atomizada e em oposição à expressão, considerada minoritária ou sem legitimidade institucional, de todas as posições divergentes face aos projectos governamentais. Não por acaso, em todos os conflitos que opõem ministério e professores, o que nos é assegurado é que, indepen-dentemente das agendas sindicais ou da expressão das associações ou movimentos de professores, “as escolas” já estão as aplicar a legislação, já estão a resolver os pro-blemas, a encontrar soluções…porque são a favor, e não contra, porque, no limite, seriam mais independentes e representariam melhor o interesse público. De há mui-

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to, porém, a legislação escolar vem fazendo referência à “administração educativa”, por um lado, e às “escolas”, ou “subunidades de gestão”, por outro, como se a admi-nistração escolar fosse uma prerrogativa do centro. Na verdade, tenho chamado a atenção para a natureza es-tranhamente atópica da direcção de cada escola concreta; fora do seu lugar, antes se localizando para além de cada organização escolar, ou seja, no centro político-adminis-trativo, concentrado e desconcentrado. A recente criação da figura do “director”, enquanto primeiro responsável perante o governo, e “rosto” de cada escola, não devolve minimamente a direcção escolar às escolas, ao contrá-rio do que seria de supor. Não é o governo das escolas que se pretende partilhar com os órgãos próprios das escolas, mas sobretudo a gestão corrente, procurando garantir uma mais fiel operacionalização local das polí-ticas educativas centrais, embora sempre subordinada a um extenso corpus de regras supra-organizacionalmente produzidas. E por isso a autonomia de que se fala tende a coincidir com o elogio da diversidade da execução pe-riférica das decisões centrais, limitada a uma autonomia operacional, mesmo assim fortemente vigiada. Nestes termos, mesmo a eleição do director e a existência de um “conselho geral”, de resto quesitos constitucionais mínimos, não deixam de ser inscritos numa organização política e administrativa mais global que garante a sua função de legitimação democrática e, simultaneamente, a sua subordinação, e eventual cooptação, perante o po-der central. O director será, muito provavelmente e de acordo com a nossa tradição, o primeiro representante do poder central junto de cada escola, o “rosto” do mi-nistério, ainda que localmente escolhido, uma contradi-ção que a seu tempo poderá ser resolvida.

É aqui, neste terreno, que ocorre uma das mais inte-ressantes conexões entre a tradição centralista e o novo cânone gerencialista, este último uma das expressões mais conhecidas da “Nova Gestão Pública” no campo da educação. Em princípio, a burocracia estatal e respectiva centralização são fortemente criticadas pelas correntes reformistas, que adoptam os quadros de racionalidade mais típicos das organizações económicas e empresarias. A reforma do Estado é considerada central, atribuindo maior protagonismo ao mercado, à iniciativa privada, ao conceito de rede nacional, e não já ao de rede pública de estabelecimentos de educação e ensino, conforme esta-belece a nossa Constituição. Novas formas de regulação da educação emergem, com destaque para os conceitos de supervisão estatal e de meta-regulação, no quadro dos quais a “gestão democrática” e a colegialidade nas escolas tendem a ser vistas como utopias políticas her-dadas da revolução e como irracionalidades de gestão; neste quadro, o gerencialismo significa mais gestão para menos democracia. A avaliação, das escolas dos profes-sores e dos alunos, é transformada num instrumento de controlo, garantindo a mensuração, comparação e hie-rarquização, a partir das quais se legitimam orçamentos competitivos, contratos de performance, mercados inter-nos, lideranças fortes de tipo unipessoal, concorrência entre distintos fornecedores de educação e formação. A autonomia das escolas é, consequentemente, entendida como um instrumento ao serviço de distintos projectos educativos em concorrência, uma autonomia sistema-ticamente aferida em termos de padrões estabelecidos centralmente, uma autonomia merecida e conquistada em ambiente de competitividade, uma vez que “competir para progredir” é um dos lemas de referência.

Entre muitas outras, as dimensões antes referidas encontram-se em processo de introdução nas políticas educativas portuguesas ao longo das duas últimas dé-cadas, conforme várias investigações têm chamado à atenção. Contudo, com variações acentuadas de governo para governo, de formas por vezes contraditórias, com distintas características consoante os níveis de ensino, e, especialmente, em tensão permanente com a tradição centralizada do nosso sistema educativo.

Vivemos, portanto, uma complexa fase de transição, na qual a introdução do cânone gerencialista suscita di-versas resistências e oposições, não apenas em termos estritamente pedagógicos e profissionais, mas também no que concerne à própria administração central, aos municípios e às comunidades locais, às associações de pais, aos interesses económicos, etc. Basta lembrar te-mas como a racionalização da rede escolar e os agrupa-mentos de escolas, a avaliação dos professores, o ensino privado, a gestão das escolas, a intervenção dos municí-pios, as parcerias com as IPSS, entre outros.

Mas as contradições entre a burocracia estatal centralizada e o gerencialismo de feição competitiva e descentralizada, este apresentado como tipicamente pós-burocrático, vêm-se traduzindo, entre nós, num hi-bridismo complexo e sem precedentes. Não é tanto o problema das contradições entre soluções centralizadas e descentralizadas, matéria em que criativamente se têm engendrado soluções mistas e movimentos simultâneos de descentralização e de recentralização, dando lugar a novas formas de regulação e meta-regulação da educa-ção, seja accionando formas de regulação pelo mercado, seja instituindo novas agências de regulação privadas ou supra-nacionais. O mais curioso, e perturbante, é o re-

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torno a concepções instrumentais e técnico-burocráticas de organização escolar, entendida como um instrumento (organum), reactualizando concepções organizacionais mecanicistas. A crítica ideológica à burocracia pública estatal, ignorando os fenómenos de burocratização em-presarial e das organizações privadas, de resto estudados por Max Weber, e a tentativa da sua superação através de modelos de governação pós-burocrática, considera-dos inovadores e flexíveis, mas à margem de soluções governativas mais democráticas e participadas, tem resultado, contraditoriamente, na emergência de uma hiper-burocracia. O controlo central que se abate sobre as escolas, a radical mudança dos quotidianos escolares e da acção dos professores, o taylorismo informático, os procedimentos de todos os tipos de avaliação, são apenas alguns exemplos notáveis do regresso ao positivismo, às pedagógicas científicas e racionalizadoras, ao protago-nismo dos objectivos em educação, à mensuração para a competitividade e o produtivismo.

As alternativas à governação burocrática das orga-nizações escolares, que têm evacuado e deslegitimado várias formas de gestão democrática e colegial, a favor de soluções de tipo gerencial, anunciadas como pós-bu-rocráticas, não só não têm assegurado uma governação mais democrática das escolas nem combatido a burocra-tização das escolas e da educação, como, paradoxalmen-te, têm radicalizado o seu burocratismo tradicional e contribuído para a emergência de uma hiper-burocracia incompatível com uma educação democrática.

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POR UM MAIOR INVESTIMENTO PÚBLICO NAS UNIVERSIDADES

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POR UM MAIOR INVESTIMENTO PÚBLICO NAS UNIVERSIDADES NUNO DAVID | PROFESSOR UNIVERSITÁRIO

NUM CONTEXTO DE CRISE INTERNACIONAL em que este encontro se realiza, e que tem subjacente a perspectiva de que há novas oportunidades de viragem nas políticas públicas, irei expor a minha visão da refor-ma do ensino superior começando por levantar a seguin-te questão. Teria a recente reforma do enquadramento jurídico das Universidades seguido o mesmo roteiro caso a crise financeira e a crescente desconfiança nas políticas de empresarialização das funções do Estado tivessem ocorrido em 2005, quanto o actual governo foi eleito? Afigura-se-me que os contornos da actual reforma te-riam sido diferentes, bem como a produção legislativa que lhe deu forma.

Parece consensual que a reforma em curso das Uni-versidades se inspirou em políticas managerialistas, implementadas nos últimos 20 anos sob diferentes for-mas e escalas em países desenvolvidos, e trazidas para Portugal após a realização de estudos encomendados a agências supra-nacionais, tais como a OCDE. As teses da OCDE são conhecidas: de inspiração neoliberal, em defesa dos benefícios dos modelos de gestão privada nas universidades, privilegiam a função económica das uni-versidades, reguladas pelo mercado e com intervenções pontuais do Estado, em detrimento das funções social e cultural da universidade.1

Mas esta reforma não podia decorrer numa ocasião mais controversa. Ocorre num momento em que a crise global põe a nu diversas contradições do sistema capi-talista neoliberal, e quando a proclamada adaptação dos

seus princípios para a gestão de instituições públicas levanta crescentes dúvidas nos países que têm vindo a adoptar estes modelos.2 Se é verdade que em Portugal é cedo para avaliar em profundidade o impacto das re-formas em curso, podemos e devemos desde já reflectir e antever o seu alcance. Haverá coragem política para introduzir, a breve trecho, correcções ao caminho tra-çado?

O FIM DA DEMOCRATICIDADE INTERNA DAS INSTITUIÇÕES?

São pelo menos duas as orientações trazidas pelos modelos managerialistas, contraditórias com as fun-ções social e cultural da universidade. A primeira visa a agilização da gestão financeira e de recursos humanos, através da introdução de mecanismos de direito priva-do e da orientação das universidades para o mercado. É esse o objectivo da passagem de algumas universidades para os regimes de fundação. A segunda impõe reformas estruturais nos processos de decisão interna das univer-sidades, reforçando os poderes dos agentes e órgãos ad-ministrativos, em especial dos Reitores ou Presidentes, e enfraquecendo as competências deliberativas dos órgãos colegiais. Mas se a ida da universidade ao mercado im-plica uma maior discricionariedade na selecção das suas actividades em benefício de interesses privados, interro-go-me: não deveriam os modelos managerialistas propor o reforço das funções social e cultural da universidade fortalecendo o espaço de decisão democrática dentro das

instituições? Contraditoriamente, as reformas dos últi-mos três anos respondem pela negativa.

Não obstante a participação de personalidades exter-nas nos novos órgãos colegiais, o facto é que a reforma em curso dilapidou grande parte dos mecanismos de gestão democrática das instituições. Os presidentes dos departamentos – anteriormente eleitos no antigo figuri-no legislativo – passam agora a ser designados pelo Rei-tor ou pelos Presidentes dos Institutos. Os presidentes dos conselhos científicos podem, de acordo com o novo regime jurídico3, vir igualmente a ser designados pelos Reitores. Os docentes viram a sua representatividade reduzida nos órgãos colegiais. Finalmente, o sistema de cooptação de personalidades externas nos órgãos cole-giais é realizado através de um sistema de eleição que tem o efeito perverso de reforçar as maiorias instaladas e enfraquecer a capacidade de intervenção das minorias. O risco do aumento de interesses instalados é maior, a alternância democrática torna-se mais difícil, aumentan-do as probabilidades de uma deterioração da democracia interna nas instituições de ensino superior.

O RISCO DE COMERCIALIZAÇÃO DOS CICLOS PÓS-GRADUADOS

A reforma em curso das Universidades, reforçada pela sua asfixia financeira, aponta também para uma crescente comercialização do ensino, em especial no novo ciclo pós-graduado correspondente aos dois últi-mos anos das antigas licenciaturas.

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A pretexto de bons objectivos de mobilidade de es-tudantes no espaço Europeu, a implementação do pro-tocolo de Bolonha dividiu as licenciaturas em dois ciclos de estudo, transferindo do Estado para os alunos a maior parte dos custos do 2º ciclo de estudos (agora denomina-do Mestrado). Por outras palavras, as propinas do novo ciclo de estudos, que substituiu os dois últimos anos da antiga Licenciatura, deixaram de ter um tecto máximo fixado pelo Estado4. São dois anos de formação universi-tária deixados ao arbítrio de preços, um livre mercado de ensino sem regulação e em plena profusão. Isto significa que os custos pagos pelos alunos nos dois últimos anos da antiga licenciatura, na ordem dos 900 Euro/ano (e su-jeitos a ajudas da acção social escolar), ascendem agora a valores que chegam em muitos casos a quadruplicar e a quintuplicar (com a agravante de não estarem sujeitos, nas mesmas condições, a eventuais ajudas da acção social escolar).

A liberalização desregulada dos preços dos cursos de 2º ciclo tem a meu ver dois efeitos negativos, a mé-dio/longo prazo. Em primeiro lugar, o agravamento das assimetrias entre regiões no que concerne aos benefícios socioeconómicos do ensino superior. Face às dotações orçamentais que não cobrem as despesas correntes, as universidades poderão lançar-se num processo compe-titivo de captação de alunos, numa pura lógica de merca-do, tendo em vista a angariação de receitas próprias, do qual sairão beneficiadas as que tiverem maiores recur-sos competitivos, designadamente as Universidades em grandes cidades do litoral. Em segundo lugar, salienta-se o aspecto geral do agravamento dos factores de equi-dade no acesso ao ensino pós-graduado, num contexto já muito desigual, em que Portugal é, de acordo com o

Eurostudent 2005, o país da União Européia onde o ca-pital cultural das famílias tem mais influência no acesso ao ensino superior.5

Ora, tivesse a actual crise internacional ocorrido em 2005, teria o governo a capacidade política para desistir de financiar dois anos de formação do ensino superior? E o que dizer da redução de 15% na dotação orçamental de 2009 para o funcionamento das Universidades quando tomamos como referência o ano de 2005, ano em que o processo de Bolonha arrancou em Portugal?

Observemos, através de um exercício comparativo, os montantes das cifras em causa. Tomemos como exem-plo a Universidade de Évora, uma instituição em difi-culdades financeiras, para a qual a dotação orçamental em 2009 ascendeu a pouco mais de 30 milhões de Euro. Façamos um paralelo entre os milhões a que o Estado se vê obrigado a despender para salvar bancos face à situação financeira e económica. Segundo notícias na co-municação social6, o resultado líquido do Banco Privado Português (BPP) “ascendeu em 2007 a 24 milhões de eu-ros, tendo sido distribuídos pelos accionistas dividendos no valor de 12 milhões de euros”. Refere-se ainda que alguns bancos “estão a negociar com o Banco de Portu-gal e o BPP as condições de um empréstimo, entre 500 e 600 milhões de euros, de modo a que a instituição possa resolver os problemas de liquidez causados pela crise internacional”, onde o Estado poderia vir a servir de fiador. Esta cifra representa cerca de 60% das despesas de funcionamento de todas as universidades do país.

Poderá o esforço acrescido do Estado na salvação de bancos de investimento, com reduzido valor social e cultural para a esmagadora maioria dos portugueses, ser comparado ao esforço que um estado responsável

deve impor na educação de uma população cuja principal dificuldade é a baixa produtividade, decorrente dos seus baixos níveis de qualificação?

O NOVO REGIME JURÍDICO E AS FUNDAÇÕES

Debrucemo-nos sobre uma outra etapa das reformas, o novo regulamento jurídico das instituições de ensino superior (RJIES), Lei 62/2007.

Este novo modelo de governação das universidades operou uma transformação profunda nas estruturas de poder das Universidades. Para o caso das instituições que mostrem ter mais de 50% de receitas próprias, a tutela considera a possibilidade da passagem das ins-tituições a fundações públicas de direito privado, cujo património e uma boa parte das competências de gestão financeira são em última análise administradas por um conselho de curadores, órgão não eleito, mas indicado pela instituição após acordo com a tutela.

Para o regime fundacional são ainda previstos modos supletivos de financiamento pelo Estado, sem prejuízo da dotação orçamental, numa base pluri-anual e baseada em contratos programa. O financiamento pluri-anual é um instrumento de gestão praticado em diversos países Europeus, e positivo para as Universidades. Mas aqui a sequência das reformas legislativas parece adoptar de novo a contenção orçamental como forma de pressão para a reforma forçada das Universidades. Com efeito, a maior parte das instituições não optaram por este mo-delo, e algumas nem o poderiam adoptar por não terem 50% de receitas próprias. Neste contexto, por que será que só as fundações têm direito a usufruir de contratos plurianuais, fundamentais para um planeamento estra-

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tégico e sustentado de qualquer universidade? Não será pois de admirar que apenas algumas uni-

versidades no litoral do país (ISCTE e Universidades de Aveiro e Porto) se tenham transformado em fundações. Mas afigura-se injusto que a estas lhes seja atribuído financiamento adicional, como se de um prémio se tra-tasse, em detrimento de universidades com debilidades financeiras e que, por si só, têm dificuldades em gerar receitas próprias.

POR UM RE-INVESTIMENTO DO ESTADO NAS UNIVERSIDADES

Parece evidente que a filosofia subjacente à actual reforma das Universidades não teria condições de vingar caso a crise económica e financeira internacional tivesse emergido há três anos atrás. As hipóteses de partida do capitalismo neoliberal – a de que os mercados sem inter-venção do Estado tendem para uma concorrência per-feita – falharam. A intervenção do Estado em diversos sectores da vida económica das pessoas, das empresas e do mercado mostra-se inelutável. Daí que o salto para a hipótese de que as políticas managerialistas são promo-toras de uma saudável concorrência entre universidades, bem como de uma maior equidade de acesso ao ensino superior, se apresenta igualmente duvidosa.

Se parece ser cedo para medir em profundidade as consequências a longo prazo destas reforma, adivinha-se ser necessário corrigir caminhos. É fundamental tirar as Universidades da asfixia financeira em que vivem actu-almente. É preciso introduzir a possibilidade de todas as universidades recorrerem a mecanismos de financiamen-to plurianual baseados em contratos programa. Poderá ser necessário regulamentar o livre mercado das pro-

pinas dos cursos pós-graduados, alargar a acção social escolar a este domínio, controlar a profusão descontro-lada destes cursos, e garantir-lhes qualidade de ensino e mínimos de exigência científica. E não me surpreenderia que muitos artigos do novo RJIES venham a ser revo-gados, tendo em vista a recuperação dos mecanismos de democraticidade interna das instituições.

Num clima alarmante de crise social e aumento de desemprego, as políticas de investimento público são apresentadas pelo governo como a salvação para os tempos difíceis que se avizinham. Mas num país onde o aumento sustentado das qualificações dos portugue-ses se mostra fundamental para melhorar a equidade e a produtividade, não seria altura do governo corrigir o seu caminho e apostar em políticas públicas realistas para as Universidades? Curiosamente, muitos países desenvol-vidos têm constatado que as políticas de gestão privada em organismos públicos nem sempre lhes foram benéfi-cas, e também aí se discutem oportunidades de mudança. Esta é uma questão em aberto. Será através do debate de ideias que se poderá vir a corrigir orientações, à luz das novas realidades sociais que sairão da actual crise internacional.

NOTAS1 Veja-se artigo de Alberto Amaral, “Evolução da au-

tonomia e governação das universidades”, Revista ops!, Nº2, Novembro 2008.

2 Ver por exemplo “The effects of New Public Ma-nagement on research practices in English and Dutch universities”, Liudvika Leisyte, in Unesco Fórum on Hi-gher Education, Research and Knowledge, Colloquium on Research and Higher Education Policy, 2006.

3 Artigo 102º, número 8, da Lei 62/2007 (Regime jurídico das instituições de ensino superior).

4 Com excepção de Medicina, Arquitectura e algu-mas Engenharias.

5 Sobre factores de equidade vide, por exemplo, An-tónio Magalhães, “O desenvolvimento do Ensino Supe-rior: entre a excelência e a equidade”, Revista ops!, Nº2, Novembro 2008.

6 RTP online.

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UMA ESCOLA PÚBLICA DEMOCRÁTICA E DE QUALIDADE PAULO SUCENAEDUC

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UMA ESCOLA PÚBLICA DEMOCRÁTICA E DE QUALIDADEPAULO SUCENA | PROFESSOR , EX-DIRIGENTE DA FENPROF

O PAINEL SOBRE EDUCAÇÃO, INTEGRADO no encontro “Democracia e Serviços Públicos”, re-alizado em 14 de Dezembro de 2008, reflecte o tem-po de profunda crise que abala o sector. Na verda-de, todos os participantes neste painel disso deram conta, aliás António Avelãs inicia a sua intervenção afirmando que “a escola portuguesa atravessa um momento de desencanto e de desalento”, não só pro-vocado pela política deste governo, ainda que por ele profundamente agravado, mas também, como diz Cecília Honório, porque “a escola pública é, de há muito a esta parte, a terra virgem que cada gover-nante colonizou com a sua mochila de slogans e leis.” Penso ser possível sustentar que nenhum governo colonizou tão prejudicialmente a escola como o ac-tual, nem nenhum Ministério da Educação foi tão nocivo e tão rudemente atentou contra a qualidade da escola pública, contra a profissionalidade docente e contra a qualidade das aprendizagens dos alunos. Nenhum governo nem nenhum Ministério da Edu-cação estreitou tão sombriamente o futuro da escola pública e da educação em Portugal.

O filósofo José Gil escrevia na revista “Visão”, de 2 de Outubro de 2008, que “o ambiente das escolas é agora de ansiedade, com a corrida ao cumprimento das centenas de regulamentações que desabam todos os dias do Ministério para os docentes lerem, inter-pretarem e aplicarem. Uma burocracia inimaginável, que devora as horas dos professores, em aflição cons-

tante para a conciliar com uma vida privada cada vez mais residual e mesmo com a preparação das lições, em desnorte com as novas normas (…) – tudo isto sob a ameaça da despromoção e do resultado da avaliação que pode terminar no desemprego”. Tem razão José Gil, porque, na realidade, o que este go-verno e este Ministério da Educação fizeram foi tor-nar a escola um lugar asfixiado e asfixiante, com os docentes a serem injustamente zurzidos pela Minis-tra, numa perseguição que culminou, como lembra António Avelãs, com a ignóbil afirmação de que “se um aluno tem dificuldades é porque os professores o abandonaram.”

Esta cruzada contra os professores e contra a arquitectura legal que definia a sua profissão moti-varam um profundo e largo descontentamento e as maiores lutas da classe docente, desde o 25 de Abril de 1974. Jorge Martins enumera, na sua interven-ção, algumas das razões da devastadora crise que se abateu sobre a Educação. “A primeira razão de fundo, nunca assumida pelo governo, é que este modelo de avaliação, mais do que melhorar a qualidade do ser-viço público educativo, destina-se a implementar as alterações ao Estatuto da Carreira Docente que não dignificam a profissão nem melhoram a prestação das escolas. A segunda razão é que estas alterações visam, de forma economicista, emagrecer em dois terços o contingente de professores com vínculo fun-cional e remuneratório estável. Só um terço dos ac-

tuais professores, aqueles a quem o estatuto confere a categoria de titulares, é que passa a ser contabiliza-do para efeito de despesas permanentes necessárias (mas não suficientes) ao funcionamento do sistema. Os outros dois terços, na medida em que dependem de um contrato de trabalho renovável ou não, repre-sentam despesas variáveis, geráveis de acordo com as políticas orçamentais de redução ou crescimento do défice que a União Europeia possa impor ao país”.

Ao desígnio político, claramente exposto por Jor-ge Martins, acrescem as provas de incompetência referidas por Cecília Honório, como as da “arbitra-riedade da divisão da carreira docente” e “os zigueza-gues do modelo de avaliação de desempenho” ou por António Avelãs ao escrever que “em vez de facilitar o trabalho colectivo e cooperante dos docentes, divide-os em titulares e professores, em avaliados e avalia-dores, em bons e muito bons, sendo que todas estas divisões assentam em injustiças e arbitrariedades, eventualmente reforçadas pela concentração de di-versos poderes no órgão unipessoal – o director que, além do mais, nomeia a quase totalidade das estru-turas pedagógicas intermédias, de resto fortemente desvalorizadas”.

Este é com certeza um dos aspectos não menos nefastos da política deste governo, por isso Jorge Martins proclama que é necessário “restabelecer a confiança social na escola pública (e nos professores) [o que] implica, então, reforçar-lhe as característi-

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cas que a identificam como instituição de suporte da própria democracia: a autonomia, a prestação pública de contas, a prevalência do pedagógico sobre o ad-ministrativo, a singularidade do seu projecto e dos seus alunos, ‘cultura de escola’ e da sua acção num contexto que lhe é próprio”.

É sobre o governo das escolas e as contradições existentes “entre a centralidade educativa e pedagó-gica das escolas e o seu carácter periférico em termos de governo e de autonomia” que incide a reflexão de Licínio Lima, no início da sua intervenção, em que afirma que “o centralismo revela-se inconsequen-te em termos educativos e pedagógicos, assumindo dimensões autoritárias, próprias de uma oligarquia que, por definição, é incapaz de corrigir os seus erros e de se descentrar das suas lógicas de controlo”.

O professor da Universidade do Minho mostrou-se, ao longo da sua intervenção, incólume à retórica política desenvolvida pelo Ministério da Educação em torno da “autonomia das escolas”, afirmando a esse propósito que “a criação do conselho das escolas tem-se revelado, até agora, mais um elo de ligação entre o governo e as escolas, garantindo a centrali-dade do primeiro, do que um fórum de expressão das segundas e um locus de concertação e produção de políticas participadas”. Continuando o seu raciocínio, Licínio Lima é de opinião que “o director será, muito provavelmente e de acordo com a nossa tradição, o primeiro representante do poder central junto da es-cola, o ‘rosto’ do ministério, ainda que localmente es-colhido”. (…) e concluiu a sua intervenção de forma a alertar toda a gente para uma realidade profunda-mente preocupante neste tão massacrado sector da

vida pública: “as alternativas à governação burocrá-tica das organizações escolares, que têm evacuado e deslegitimado várias formas de gestão democrática e colegial, a favor de soluções de tipo gerencial, anun-ciadas como pós-burocráticas, não só não têm asse-gurado uma governação mais democrática das esco-las nem combatido a burocratização das escolas e da educação, como, paradoxalmente, têm radicalizado o seu burocratismo tradicional e contribuído para a emergência de uma hiper-burocracia incompatível com uma educação democrática”.

Creio que não será excessivo dizer que uma ter-rível moléstia, mais perniciosa que uma praga de míldio e oídio sobre um vinhedo, se abateu sobre a escola portuguesa, os professores, os estudantes e o país. E nem sequer estas serão palavras alarmistas perante o último parágrafo do citado artigo de José Gil: “No processo de domesticação da sociedade, a teimosia do primeiro ministro e da sua ministra da educação representam muito mais do que simples traços psicológicos. São técnicas terríveis de domi-nação, de castração e de esmagamento, e de fabrica-ção de subjectividades obedientes”.

Servindo-me, como Licínio Lima, do oxímoro, essa figura de retórica em que se usam, proxima-mente, duas palavras ou expressões contraditórias, poderia dizer que o primeiro ministro encheu, com o vazio do seu pensamento educativo, o ministério da educação, o que deixou a ministra à vontade para to-mar as mais desastrosas medidas de que há memória, em mais de três decénios de democracia, na esfera da educação. Na verdade, quanto mais dizia conhe-cer a realidade concreta mais ignara era a sua acção

legislativa; quanto mais afirmava o seu desígnio de melhorar a escola pública mais a empobrecia; quan-to mais proclamava a autonomia das escolas mais dependentes do ministério da educação as tornava; quanto mais dizia bater-se pelo enriquecimento da profissionalidade docente mais a amesquinhava; quanto mais democrata pretendia apresentar-se em público mais aprofundava o seu discurso solipsista; quanto mais dizia defender os alunos mais os esque-cia no plano legislativo e da prática política.

Esta ministra, imagem física da mais pungente contradição política, de tão desmesuradamente olhar o seu umbigo, surge na espuma dos dias como se fos-se um ser governativo inimputável. Há um chorrilho de atitudes que parece comprovar isso: tomou me-didas contra a lei mas não faz mal, porque aceita as decisões dos tribunais; as escolas estão a atravessar uma crise terrível, mas não tem que se preocupar em debelá-la porque as medidas que tomou foram para a melhorar; o modelo de avaliação dos professores é inexequível mas isso não importa, porque o M.E. simplifica-o, mesmo que a simplificação desvirtue o modelo original; o “Magalhães” foi distribuído às escolas com uma papeleta cheia de erros mas isso é irrelevante, porque manda-se retirar a papeleta.

Resta perguntar: é possível governar no meio de tão grande impunidade? É. E assim esta figura do assombro lá continua agarrada ao leme da educação sob o comando da mais oca e demagógica cabeça que algum dia, mesmo nas mais negras alfurjas da polí-tica, ousou balbuciar um esparso pensamento sobre política educativa. E para mal do país, este dueto de ópera bufa produziu a tragédia que nós vimos tom-

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bar sobre a educação, com consequências tão nega-tivas que é com naturalidade que nos batem na me-mória as palavras do tribuno republicano, cansado dos desmandos do rei D. Carlos, a dizer à nação que por menos crimes dos que os cometidos por el-rei D. Carlos, rolou, no cadafalso, em França, a cabeça de Luís XVI.

Se o painel reflectiu o estado preocupante em que se encontra a educação, designadamente no chamado ensino não-superior, também é verdade que o ensi-no superior foi abordado de forma muito crítica por Nuno David, mormente quando mostra a necessida-de imperiosa de um maior investimento público na universidade. Por outro lado, Nuno David chamou a atenção para as teses da OCDE, de inspiração ne-oliberal,” em defesa dos benefícios dos modelos de gestão privada nas universidades, que privilegiam a função económica das universidades, reguladas pelo mercado e apenas com intervenções pontuais do Es-tado, em detrimento das funções social e cultural da universidade”.

No que respeita ao governo das escolas do ensino superior, como aliás acontece nas dos ensinos básico e secundário, Nuno David sublinha que “a reforma em curso dilapidou grande parte dos mecanismos de gestão democrática das instituições”.

Se tivermos em conta também o modo displicen-te como o MCTES tem encarado uma séria revisão dos estatutos de carreira dos ensinos Politécnico e Universitário , poder-se-á parafrasear ao contrário o verso de Fernando Pessoa e dizer que o MCTES é um tudo que é nada.

Concluindo: as intervenções deste painel coloca-

ram-nos perante uma crise educacional que se antevê prolongada e nos exige que seja questionada expli-citamente, que seja interrogada, de modo expresso, enquanto crise, para que seja possível a obtenção de uma resposta também explícita ou, se preferirem, para que permita desocultar essa resposta que a crise apenas existencialmente apreendida sempre escon-derá.

É esta a nossa tarefa: exigente, complexa, demo-rada, mas indispensável.

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LIBERTAR A POLÍTICA DE SAÚDE

DOS INTERESSES PARTICULARES

DE QUE ESTÁ REFÉM

JOÃO SEMEDO

SAÚ

DE

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LIBERTAR A POLÍTICA DE SAÚDE DOS INTERESSES PARTICULARES DE QUE ESTÁ REFÉMJOÃO SEMEDO | MÉDICO, DEPUTADO DO BLOCO DE ESQUERDA

JOSÉ SÓCRATES DIRIA QUE NESTA SALA ESTÁ a esquerda despesista ou a esquerda de protesto, a es-querda incapaz de apresentar soluções e alternativas para os problemas, a esquerda do anti-poder. Sócrates não faz prova do que diz e quer que nos resignemos à sua política, como se tudo não passasse de uma fatalidade.

Julgo que devemos ser exigentes connosco próprios e dar-lhe resposta, fazendo prova do contrário das suas afirmações. Desenhar e construir uma alternativa à po-lítica de saúde em curso, na versão Correia de Campos ou na versão Ana Jorge. Há uma política de saúde alter-nativa, melhor para os cidadãos e sem as actuais irra-cionalidades que muito contribuem para o desequilíbrio das contas públicas. Melhores serviços de saúde, social-mente mais equitativos e financeiramente sustentáveis. A alternativa não é entre gastar mais ou menos, é saber e conseguir gastar melhor.

A alternativa desenvolve-se a partir do ponto em que estamos, da situação a que chegaram os serviços. A política actual não fez nenhuma rotura com as políticas anteriores. Lamentavelmente, o SNS não está bem, nem está melhor. O acesso está estrangulado, os tempos de espera crescem seja na urgência/emergência seja nas consultas, a qualidade está comprometida em muitos serviços, o SNS atrasa-se tecnologicamente, a precarie-dade e o desrespeito pelas carreiras profissionais domi-nam o panorama laboral, faltam médicos, enfermeiros e outros técnicos de saúde mas as contratações continuam bloqueadas, insiste-se no sub-financiamento das unida-

des de saúde e não se conseguem travar muitos pontos de desperdício.

Em grande parte, tudo isto resulta do governo conti-nuar a sub-financiar o SNS, ao contrário do prometido e repetidamente afirmado. A dívida acumulada pelo SNS é a melhor prova do sub-financiamento: a dívida não pára de crescer porque o dinheiro recebido pelo SNS não che-ga… A dívida é a medida exacta do sub-financiamento. Era assim com o PSD, continua a ser assim com o PS. Percebe-se, hoje que, tanta preocupação com a sustenta-bilidade financeira do SNS serviu apenas para continuar, justificar e disfarçar o sub-financiamento do SNS.

O sub-financiamento do SNS é responsável por mui-tos dos seus problemas. Mas há outras razões, outras opções políticas que contribuem para agravar os proble-mas. A rotura fundamental é com os diversos interesses particulares de que a política de saúde está refém. Desde logo da gestão por grupos privados.

Não é o interesse público que hoje conduz a polí-tica de saúde em Portugal. São interesses particulares de natureza e dimensão variada (económicos, locais, de grupo). Interesses que custam caro ao SNS e ao erário público. Esses interesses agravam a despesa pública com a saúde. Falemos de alguns desses interesses.

A política de saúde está refém dos resultados finan-ceiros, é definida em função de resultados financeiros e não por ganhos em saúde. Os hospitais empresa trouxe-ram e impuseram esta cultura.

Esta é a primeira grande mudança que a esquerda

tem de ser capaz de introduzir na política de saúde. Ga-nhos em saúde versus ganhos financeiros. Isso exige pôr o PNS a comandar a política de saúde e dar-lhe os meios indispensáveis para o seu desenvolvimento.

A política de saúde deve centrar-se e ser definida em função das necessidades em saúde, em torno do Plano Nacional de Saúde, cuja revisão e actualização é indis-pensável, reganhando o estado a sua função e papel de planeamento, actualmente esquecida e subestimada. E valorizando a prevenção da doença, a promoção da saúde e de hábitos de vida saudáveis. Quanto custa ao SNS o número crescente de diabéticos e de obesos? Seria me-lhor para os cidadãos e para as finanças públicas apostar decididamente na prevenção.

O SNS está também refém do cruzamento de múl-tiplos interesses de capelinha que vão determinando o curso do seu desenvolvimento, à revelia de qualquer pla-neamento solidamente fundamentado. Interesses locais mas também profissionais. A esquerda deve recuperar para o Estado a função de planeamento dos serviços de saúde, concentrando o que é altamente diferenciado mas generalizando o acesso e reforçando a proximidade à co-munidade dos serviços básicos, reconstruindo o SNS a partir de sistemas locais de saúde.

Não se entende que um país que tem apenas 3 centros oncológicos se prepare, como foi recentemente anun-ciado, para instalar 4 centros para cirurgia da epilepsia – que requer sofisticadíssimos meios técnicos e equipas altamente diferenciadas e experimentadas, apenas por-

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que dá jeito à propaganda do governo e alimenta algu-mas vaidades profissionais. Mais que o racionamento que é agora praticado, a esquerda deve conduzir-se pela racionalidade das suas decisões em matéria de política de saúde.

A despesa em medicamentos representa cerca de um quarto da despesa em saúde. É o principal factor de de-sequilíbrio das contas do SNS. Não há qualquer raciona-lidade na política e no mercado do medicamento. E essa irracionalidade traduz-se num imoral desperdício dos dinheiros públicos atribuídos à saúde.

A política do medicamento é completamente con-duzida por interesses privados. O interesse público é incapaz de se impor. A indústria, os armazenistas, os distribuidores e as farmácias põem e dispõem. Médicos e farmacêuticos não se entendem, quando cada vez mais é o tempo do trabalho em equipa, no respeito pelas di-ferentes formações que, aliás, se complementam. Certos círculos médicos permanecem agarrados a um estatuto ultrapassado e a práticas elitistas. O estado e o cidadão pagam a factura.

A política para o medicamento deve ter três objecti-vos: assegurar a qualidade terapêutica e baixar a despesa para o estado e para os doentes. Actualmente, o governo conseguiu baixar a despesa do estado mas à custa de uma despesa maior para o cidadão que paga mais hoje do que pagava antes das descomparticipações decididas pelo governo.

Há alternativas a esta situação. A prescrição médica devia ser por princípio activo, fosse qual fosse o local de prescrição. Em todo o lado, como já hoje é feita nos hos-pitais. Por outro lado, os medicamentos a dispensar nas farmácias (inclusive pelos serviços farmacêuticos dos

hospitais e centros de saúde) e a comparticipar pelo esta-do deviam ser sujeitos a concurso público, o que baixaria imenso o seu preço de compra e, claro, de venda também, sem qualquer prejuízo da sua qualidade e segurança.

Se o Estado usa o dinheiro dos contribuintes para assegurar a comparticipação nos medicamentos, tem di-reito a definir quais os medicamentos que comparticipa e quanto paga pela sua aquisição.

Infelizmente o governo abdicou desse direito. E, ape-sar de estar sempre a cortar na despesa pública e social, não seguiu este caminho. Bem pelo contrário, foi incapaz de romper com a irracionalidade despesista que dura e resiste há tantos e tantos anos. Em vez de pôr as farmá-cias dos hospitais a dispensar/vender medicamentos aos doentes das consultas e das urgências, convidou as far-mácias de rua a alargar o negócio, abrindo-lhes as portas dos hospitais públicos. Enfim, mais do mesmo, o que no caso em apreço, significa mais despesa para o estado e para os cidadãos, mas mais lucros para os do costume: farmácias e indústria farmacêutica.

Como se vê, há alternativas. Melhores e mais eco-nómicas. Mas exigem vontade e coragem política para rasgar o colete de forças que esmaga o nosso interesse comum. Neste combate, o governo fraquejou.

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SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE:

A PROPAGANDA E A REALIDADE MÁRIO JORGE NEVES

SAÚ

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O SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE: A PROPAGANDA E A REALIDADEMÁRIO JORGE NEVES | MÉDICO, PRESIDENTE DA FEDERAÇÃO NACIONAL DOS MÉDICOS

APESAR DE TODAS AS LIMITAÇÕES, DE TODAS as razões de queixa e de todas as incapacidades de res-posta, o SNS constitui a maior realização social e humana do regime democrático iniciado a 25 de Abril de 1974.

Apesar da sistemática campanha ideológica contra o SNS e dos contínuos constrangimentos orçamentais, este é o único serviço público que já colocou o nosso país nos primeiros lugares a nível mundial quanto à capaci-dade de desempenho e aos resultados obtidos.

Todos os indicadores de saúde revelaram uma notá-vel melhoria em pouco mais de 20 anos e demonstraram as claras potencialidades da existência de um serviço de saúde geral e universal.

Por exemplo:* a taxa de mortalidade infantil era em 1970 de 58,6

por mil e em 2006 de cerca de 4 por mil.* os partos hospitalares eram em 1970 de 37,5% e

em 2000 de 99%.* a taxa de mortalidade neonatal ( entre os 0 e os 27

dias de vida) era de 38,9 por mil e em 2002 de 3,4 por mil.

* a taxa de mortalidade perinatal ( nº de crianças que nascem mortas) era em 1960 de 41,1 por mil e em 2000 de 5,5 por mil.

O Relatório Mundial relativo à mortalidade mater-na, com dados de 2000, elaborado conjuntamente pela Organização Mundial de Saúde ( OMS), UNICEF e pe-los Fundos da ONU para a População ( FNUAP) veio

demonstrar, mais uma vez, a enorme capacidade de de-sempenho do SNS.

Dos mais de 180 países analisados nesse relatório, Portugal ocupava a 8ª posição mais baixa quanto ao nú-mero de mortes de mães por 100.000 nascimentos: 4 mortes. O Relatório Mundial da OMS sobre os sistemas de saúde divulgado no início de 2001 veio confirmar a evolução positiva das realizações do SNS.

Quanto ao desempenho global dos sistemas de saúde, Portugal estava em 12º lugar. No total das despesas de saúde em percentagem do PIB, Portugal estava em 23º lugar, com 8,2%.

Relativamente às despesas públicas de saúde em percentagem do total de despesas nacionais de saúde, Portugal estava em 105º lugar, com 57,5 % de despesas públicas e, consequentemente, com 42,5% de despesas privadas.

Em termos comparativos, a percentagem de despesas públicas noutros países era:

Luxemburgo 91,4%Dinamarca 84,3%Bélgica 83,2% Noruega 82%Suécia 78%Alemanha 77,5%França 76,9%Espanha 70,6%

No que se refere aos pagamentos directos dos cida-dãos, estes representavam 40,9% do total das suas des-pesas de saúde. Esta percentagem colocava o nosso país em 115º lugar.

Em termos comparativos, noutros países era a se-guinte:

Luxemburgo 7,2%Alemanha 11,3%Dinamarca 15,7%Canadá 17%Finlândia 19,3%Espanha 20,4%França 20,4%Suécia 22%Grécia 31,7%

De acordo com um relatório da OCDE divulgado em 2003, as despesas de saúde por habitante em Portugal eram de 758 euros, quando a média da União Europeia, com os então 15 membros, era de 1458 euros.

Por exemplo, na Alemanha eram de 1569 euros, na França de 2730, na Finlândia de 1539, na Suécia de 1653, na Espanha de 888 e na Itália de 1229. Na base de todos estes números é possível avaliar a desonestidade política e a mistificação que têm presidido às sucessivas campa-nhas anti-SNS que têm sido desenvolvidas nos últimos

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25 anos , utilizando chavões sem qualquer fundamento e cujos objectivos têm sido de denegrir este serviço públi-co fundamental e de facilitar o posterior desenvolvimen-to da privatização dos seus mais importantes segmentos assistenciais.A primeira campanha assentou na suposta estatização da saúde que era própria de uma sociedade colectivizada. Um país como o nosso que tem somente 57,5% de despe-sas públicas na saúde e que, neste aspecto, está em 105º lugar tem a saúde estatizada e colectivizada?E países como Luxemburgo, Dinamarca, Suécia e França com as percentagens referidas são exemplos de países estatizados e colectivizados?Outra campanha surgida é que o SNS é gratuito para todos e que este facto era imoral e economicamente in-sustentável. Na base destes pressupostos, era defendida a proposta de que os cidadãos com maiores rendimentos deveriam pagar uma importante percentagem dos cui-dados de saúde, de modo a garantir que os mais desfavo-recidos continuassem a usufruir da gratuitidade.Mas esta apregoada gratuitidade constitui uma fla-grante deturpação da realidade. O SNS nada tem de gratuito, sendo suportado pelo pagamento prévio dos impostos pelos cidadãos. Ele é teoricamente gratuito no acto da prestação dos cuidados. Como todos sabemos, as verbas destinadas aos serviços públicos de saúde são provenientes do Orçamento de Estado e este deriva dos impostos e da carga fiscal sobre os rendimentos dos cidadãos. Ou seja, se não forem efectuadas fugas frau-dulentas aos impostos, quem mais ganha, mais paga de impostos.Assim, está assegurado o esforço solidário na garantia da universalidade de acesso aos cuidados de saúde.Foram igualmente desenvolvidos argumentos que no

nosso país existiam custos crescentes e excessivos com a saúde que derivavam da existência do SNS. Mais uma vez, os factos mostram que um país que em 2003 gastava 758 euros por habitante não pode ser considerado como tendo custos excessivos.O crescimento dos custos com a saúde é um dado comum à generalidade dos países mais desenvolvidos e deve-se a causas como: aumento considerável da esperança de vida e envelhecimento da estrutura etária da sociedade; emer-gência de novas doenças com terapêuticas prolongadas e caras; o desenvolvimento e difusão de novas e mais sofisticadas tecnologias médicas; e o aparecimento de novos e mais eficazes medicamentos, com custos muito superiores.Nos últimos anos, a campanha anti-SNS passou a estar centralizada na suposta e incontestável superioridade natural da gestão privada. Segundo os ideólogos desta campanha, a gestão pública seria sempre ruinosa, condu-zia a graves desperdícios e traduzia-se por baixos níveis de eficiência. Além disso, o Estado era sempre um mau gestor, não demonstrando capacidade para rentabilizar os recursos existentes e conduzindo a uma permanente insatisfação dos cidadãos. Em oposição, a gestão privada pela sua própria natureza seria, desde logo, uma garantia de êxito e possibilitaria a obtenção de resultados muito superiores a nível do funcionamento dos serviços de saú-de e da própria satisfação dos utentes.Uma das operações teóricas e políticas mais bem suce-didas do neoliberalismo foi a de instalar os debates em torno da oposição público/privado. Se esta campanha correspondesse à realidade, não havia empresa privada que fosse à falência, nem estávamos hoje confrontados com uma crise generalizada de consequências ainda im-previsíveis, em que grandes gigantes multinacionais têm

implodido e até os bancos são, em número crescente, nacionalizados pelo tal Estado que não consegue gerir nada com qualidade.

OS INSTRUMENTOS CONTRA O SNSPodemos considerar que, para além de múltiplas me-

didas que diversos governos foram tomando na perspec-tiva de desarticulação e esvaziamento do SNS, a entrega da gestão o então recém construído Hospital Amadora/Sintra a um consórcio privado foi a primeira experiência de vulto para iniciar a escalada de desmantelamento da gestão pública e da progressiva alienação dos serviços públicos de saúde.

Mas ao fim de pouco tempo, tornou-se claro que esta experiência privada na saúde, afinal, não conseguia fazer mais e melhor do que os hospitais públicos, apesar de beneficiar de um conjunto de facilidades financeiras que a nível público se encontram mais emperradas num ema-ranhado burocrático. Ao fim de 12 anos, o Estado viu-se obrigado a não renovar a concessão dessa gestão.

Há cerca de 6 anos atrás, e quando esses modelos ne-oliberais e privatizadores da gestão, inspirados pelo Ban-co Mundial, se encontravam já em clara falência noutros países, surgiu o modelo SA e depois o modelo EPE.

O modelo da chamada empresarialização foi abun-dantemente justificado perante a opinião pública como sendo a única solução para resolver os delicados proble-mas existentes nos hospitais, a garantia de introduzir acentuadas poupanças nas despesas públicas e uma for-ma de aumentar substancialmente a capacidade de res-posta destas unidades. Perante este empenhamento do governo de então, o frenesim de vários grupos privados em ser contemplado com a entrega de serviços públicos de saúde era já tão incontrolado que um dos grupos eco-

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nómicos com estruturas de saúde chegou ao extremo de propor publicamente em Outubro de 2004 que até 2010 metade do SNS devia estar mãos dos privados.

Os 31 Hospitais SA, criados no final de 2002, cedo começaram a demonstrar as lógicas do seu modelo con-ceptual. No início de 2004, as notícias deram conta que o próprio Tribunal de Contas considerou que os hospi-tais-empresa colocavam múltiplas questões quanto ao descontrolo das contas na saúde.

A sucessão de notícias na comunicação social foram divulgando questões sobre este tipo de modelo, nome-adamente:- poupanças à custa de partos.- discriminação de utentes em função das respectivas capacidades económicas.- tentativas de privatização integral de várias áreas em diversos hospitais.- aumentos sucessivos dos custos de funcionamento.- “apagamentos” de dívidas para tentar mostrar melho-res resultados.- agravamento sistemático dos prejuízos.- somente no ano de 2003, um prejuízo de 125 milhões de euros.- uso do capital social em despesas correntes.- acumulação de vultuosas dívidas aos fornecedores.- agravamento da qualidade assistencial.- centenas de contratações de pessoas sem serem profis-sionais de saúde.

A crescente demonstração prática da falência deste modelo, levou a que a mudança de governo no início de 2005 tenha determinado a substituição do modelo SA pelo modelo EPE.

Nestes 4 anos, o modelo EPE foi estendido a quase

todos os hospitais públicos e até às Unidades Locais de Saúde que envolvem também os Centros de Saúde. Estas unidades já abrangem cerca de 30% do território nacio-nal. Nenhum dos pressupostos da criação deste modelo foram assegurados.

Perante a evidência do descalabro das contas destes hospitais, vai ser criado um fundo de 800 milhões de euros para o Estado, que é o tal mau gestor, pagar as respectivas dívidas.

Embora muitos analistas e intervenientes na polí-tica do sector tenham focalizado as suas denúncias no objectivo subjacente a este modelo de desorçamentar as contas públicas e mistificar o défice, importa ter presente que outros dos seus objectivos são proceder ao gradual desmantelamento do SNS e à total desregulação laboral que tornou caótica a gestão dos recursos humanos.

Vive-se hoje uma profunda crise nos hospitais públi-cos que não cessa de se agravar: o recurso a contratos individuais que não possibilitam a garantia de diferen-ciação contínua no plano técnico-científico; extrema precariedade laboral; reestruturações sucessivas de ser-viços com amputações significativas na sua capacidade de resposta; criação de um clima de afrontamento e de

agressividade para com os profissionais de saúde que têm determinado o recurso crescente a exonerações e a reformas antecipadas, deixando os serviços cada vez mais desertos dos seus profissionais mais diferenciados e experientes; a contratação indiscriminada de assessores e de consultores.

Simultaneamente, as medidas de esvaziamento e de eliminação de serviços públicos de saúde têm levado, por exemplo, ao crescimento do número de partos em am-bulâncias, o que constitui um facto que durante largos anos tinha uma ocorrência excepcional. Independente-mente de todas as tentativas para justificar este modelo, os dados objectivos mostram que a introdução destas medidas e o aprofundamento deste tipo de política de saúde apresenta já resultados desastrosos que ninguém pode esconder.

Ainda recentemente, foi divulgado um estudo em Bruxelas que colocou o nosso país em 26º lugar na clas-sificação dos sistemas de saúde prestados em 31 países europeus. Em menos de 8 anos, as políticas que têm vin-do a ser conduzidas no sector da saúde produziram já um enorme trambolhão do 12º lugar a nível mundial para o 26º num conjunto de 31 países europeus.

NESTES 4 ANOS, O MODELO EPE FOI ESTENDIDO A QUASE TODOS OS

HOSPITAIS PÚBLICOS E ATÉÀS UNIDADES LOCAIS DE SAÚDE QUE ENVOLVEM

TAMBÉM OS CENTROS DE SAÚDE. ESTAS UNIDADES JÁ ABRANGEM

CERCA DE 30% DO TERRITÓRIO NACIONAL. NENHUM DOS PRESSUPOSTOS

DA CRIAÇÃO DESTE MODELO FORAM ASSEGURADOS.

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Este é um dado que não possibilita qualquer margem de contra-argumentação séria a quem tem defendido a implementação destas medidas inspiradas nos manuais neoliberais do Banco Mundial.

Como é evidente desde há longo tempo, o nosso país não possui nível médio de vida que permita viabilizar grandes estruturas privadas. As que se têm constituído ao longos dos anos só têm conseguido assegurar, nal-guns casos, a sua sobrevivência à custa dos dinheiros públicos, por via de convenções e de contratos com sub-sistemas públicos.

Por um lado, os sectores económicos privados de-fendem as maravilhas da livre competição e do respeito pela livre iniciativa, mas por outro, exigem o dinheiro do Estado para conseguirem implementar as suas es-truturas.

No actual contexto de inequívoca falência do modelo neoliberal, os mesmos que clamaram tanto tempo por “menos Estado” e pela generalização da privatização, são os mesmos que agora deixam as empresas e bancos na falência e suplicam pela intervenção desse mesmo Esta-do que tantos defeitos lhe apontavam.

Está demonstrada uma estreita ligação entre a saúde e a economia. Os países onde as condições de saúde são mais uniformes no seio da população são os que apresen-tam melhores condições para um adequado crescimento económico.

Diversos estudos internacionais sobre a equidade no financiamento dos serviços de saúde geraram evidência suficiente para se poder afirmar que o gasto público em saúde, concretamente nos cuidados primários, regista um elevado impacto redistributivo, permitindo corrigir algumas desigualdades geradas pelo funcionamento da economia. A saúde deve ser concebida como um investi-mento de alto valor estratégico.

QUE SOLUÇÕES?Em termos de grandes medidas de fundo necessá-

rias a uma política alternativa podem enumerar-se as seguintes:-A implementação de uma gestão pública participada e com objectivos definidos e quantificáveis.- Contratualização dos objectivos.- Aplicação de programas de melhoria da qualidade em todos os serviços como um instrumento contínuo de gestão. - Responsabilização e avaliação de todos os níveis de ges-tão e de chefias.- Fim das nomeações clientelares e aparelhísticas. Em alternativa, promoção da competência e do mérito.- Colocação dos Cuidados de Saúde Primários no centro do SNS.

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TRABALHO E SOCIEDADE: REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO LABORAL EM PORTUGAL ELÍSIO ESTANQUETRA

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TRABALHO E SOCIEDADE: REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO LABORAL EM PORTUGALELÍSIO ESTANQUE | PROFESSOR UNIVERSITÁRIO, INVESTIGADOR DO CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

1. A GLOBALIZAÇÃOOs graves contornos que a actual crise vem revelan-

do têm origem num período recente em que a competi-tividade e a inovação tecnológica prometia um mundo de oportunidades e uma “nova economia” capaz de asse-gurar o bem-estar, senão de todos, pelo menos daqueles – países, economias e indivíduos – que decidissem guiar-se pela aposta na inovação e na competição. A bondade do mercado internacional parecia garantir o sucesso. As tendenciais socioeconómicas das últimas décadas foram largamente marcada pelos debates académicos e políti-cos em torno da globalização. Apesar da polissemia que a noção encerra – e muito embora se tenha percebido que, afinal, a globalização é já uma velha história de que existem marcas indeléveis pelos menos desde há cinco séculos –, a viragem que ocorreu há cerca de três déca-das, com as grandes potências a estimularem o comér-cio mundial, suscitou uma fantástica multiplicação das transacções e fluxos de pessoas e bens, de todos os tipos, dando lugar a profundas transformações tanto no plano prático – a nível económico, social e político – como no plano teórico e conceptual. O mundo ficou mais pequeno e passou a ser olhado sob novas perspectivas; e o sentido da modernidade, desenvolvimento e progresso deram lugar à ideia de pós-modernidade, de imprevisibilidade e de incerteza quanto ao sentido da história. A intensi-ficação das trocas comerciais na escala transnacional e global, com a ajuda da revolução informática, tecnoló-gica e comunicacional, aceleraram e multiplicaram os

processos de mercantilização da vida e das sociedades, ao mesmo tempo que os estados e as economias nacionais perderam parte da sua antiga soberania e autonomia.

Porém, ao contrário da retórica liberal e tecnocrática de teóricos e experts ao serviço de grupos económicos e poderes dominantes, o novo liberalismo que avassa-la o mundo desde os anos oitenta, não só não atenuou os problemas humanos e os riscos sociais como os tem agravado drasticamente. É verdade que as oportunida-des de negócio e as vantagens lucrativas se mostraram fantásticas para uma ínfima minoria – sobretudo dos que já eram ricos e poderosos –, mas em contrapartida a larga maioria das populações e das classes trabalhado-ras, incluindo amplos sectores da classe média, vêm-se debatendo com o agravamento das suas condições de vida e de trabalho.

2. O TRABALHOO campo laboral é sem dúvida aquele em que os im-

pactos desestruturadores da globalização tem sido mais problemático. As consequências disso mostram-se de-vastadoras para milhões de trabalhadores de diversos continentes. E o caso particular da Europa é aquele em que as alterações em curso representam um flagrante retrocesso em face das conquistas alcançadas desde o século XIX, e que tiveram o decisivo contributo do mo-vimento operário e do sindicalismo. Porque a Europa é justamente a região “referência” e o berço da civilização Ocidental, é necessário pensar em toda a sua tradição

humanista e emancipatória, lembrar que foi aí a géne-se das principais doutrinas progressistas, revoluções e movimentos sociais. O projecto da modernidade e a democracia política, tiveram aí a sua origem como pro-messas de uma sociedade mais justa e igualitária. Porém, os velhos lemas do iluminismo – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – são hoje lamentavelmente secundariza-dos, se não mesmo omissos no discurso institucional de governantes e dirigentes (inclusive de correntes como a social-democracia, cujo património se inscreve em pro-jectos e ideologias de esquerda).

Os efeitos da globalização têm vindo a induzir novas formas de trabalho cada vez mais desreguladas, num quadro social marcado pela flexibilidade, subcontrata-ção, desemprego, individualização e precariedade da for-ça de trabalho. Assistiu-se a uma progressiva redução de direitos laborais e sociais, e ao aumento da insegurança e do risco, num processo que se vem revelando devastador para a classe trabalhadora e o sindicalismo neste início do século XXI.

As convulsões que o mundo do trabalho tem vindo a sofrer e o crescente ataque ao direito laboral inserem-se, de facto, num contexto mais amplo e obedecem a podero-sos interesses económicos e políticos ditados pelas ins-tâncias internacionais que, no fundo, governam o mundo (BM, OCDE, FMI, etc.) e se estão a impor à Europa, obrigando-a a abdicar em larga medida do seu patrimó-nio social, humanista e civilizacional. Muito embora te-nhamos de condescender que o velho Estado social per-

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deu sustentabilidade à medida que se verificaram quer o abrandamento económico quer a quebra de crescimento demográfico nos países europeus, não pode aceitar-se – pelo menos de um ponto de vista da esquerda – que a contenção da despesa pública e o controlo orçamental sirvam de justificação para toda esta inversão (ou, dir-se-ia, reconversão...) da velha social-democracia num modelo cuja viabilidade só é pensada no pressuposto da inevitável cedência ao neoliberalismo. Menos ainda se pode ficar indiferente quando governos apoiados por partidos de esquerda revelam uma total insensibilidade perante o aumento das injustiças e os ataques cada vez mais intensos ao direito do trabalho e à dignidade do trabalhador como pessoa humana e cidadão que é.

A realidade laboral dos últimos tempos voltou a dar actualidade a visões críticas do capitalismo até há pouco julgadas ultrapassadas. Karl Marx e a sua obra maior, “O Capital”, voltou a suscitar as atenções do mundo, quer por parte de académicos quer da opinião pública em ge-ral. Mas, se o pensamento marxista parece ganhar nova actualidade não é porque se pretenda recuperar a ortodo-xia leninista ou reincidir em modelos comprovadamente falidos como o soviético. É sim porque o mercado des-regulado, a intensificação da exploração – sob velhas ou novas formas – e todo o conjunto de problemas socioeco-nómicos que a actual crise veio agudizar comprovaram a falência do paradigma neoliberal e requerem, por isso, que se repensem os modelos de mercado que guiaram a economia mundial nos últimos trinta anos.

Em especial no campo do emprego temos assistido a um efeito de pêndulo, em que cada vez menos trabalha-dores se encontram numa situação de emprego seguro, estável e com direitos, enquanto existem cada vez mais

pessoas desempregadas que se debatem com o iminente risco de pobreza e exclusão. Como os vagabundos do século XVIII europeu ou os chamados malteses alenteja-nos de meados do século XX, esta gente vê negados os mais elementares direitos. São atirados para o mundo em busca desesperada de subsistência e obrigados a aceitar quaisquer condições de trabalho e a entregarem-se à vontade gananciosa de patrões sem escrúpulos. Exclu-ídos, de facto, do estatuto de cidadania são por vezes os próprios que se negam a si mesmos o direito de procurar um trabalho digno, aceitando ser tratados como sub-hu-manos ou como os novos escravos da economia global do século XXI.

Os processos recentes de fragmentação e precari-zação das relações e formas de trabalho atingiram o conjunto das classes trabalhadoras e pulverizaram as próprias estruturas contratuais e organizacionais do sistema produtivo. Perante o triunfo do neoliberalismo económico e o acentuar de novas formas de opressão e exploração, alguns dos velhos conceitos e dicotomias de Marx, tais como as divisões entre capital fixo/ capi-tal circulante; trabalho vivo/ trabalho morto; trabalho material/ trabalho imaterial; actividades produtivas/ improdutivas, são hoje reconceptualizadas à luz da nova dinâmica do capitalismo global.

Na verdade, as actuais tendências permitem mostrar como aquelas divisões estão a ser reconvertidas e se im-bricam hoje dialecticamente umas nas outras, com isso contribuindo para intensificar e expandir novas formas de “estranhamento” e “alienação” das classes trabalha-doras e dos novos segmentos precarizados e em perda. Porém, o trabalho, em vez de desaparecer e se diluir para dar lugar ao lazer e ao consumo, ganha nova centralidade

ao mesmo tempo que se combina sob diferentes lógicas e formas mais instáveis (metamorfoseia-se) e em muitos casos mais penosas para quem tem de viver de qualquer trabalho. Tornou-se clara a versatilidade, a instabilidade e a multiplicidade de formas e de sentidos que envolvem o trabalho e os seus mundos no início do século XXI. Muito embora se tenha esbatido enquanto potencia cria-dora e espaço de consolidação de “subjectividades de classe” dirigidas para a acção transformadora (Castells, Méda, Gorz, Rifkin, Shnapper), o trabalho, material e imaterial, permanece como o modulo central no proces-so de acumulação capitalista (Antunes, 2006).

O flagelo do desemprego, associado a um “indivi-dualismo negativo” (Castel, 1998), que se assemelha a fenómenos que ocorreram na Europa do século XVIII, resultante desta precariedade – geradora das mais di-versas formas de dependência, insegurança, resignação e medo – permite todo o tipo de prepotências e abusos. No actual panorama, já não são os direitos laborais que se pretende defender, mas, do ponto de vista de milhões de assalariados, tão só o emprego a todo o custo, pois “o pior dos empregos é sempre preferível ao desemprego”, o que traduz bem a debilidade em que se encontra hoje o trabalhador. Desmantelou-se o velho compromisso capital-trabalho e a concertação social – a negociação “tripartit” –, essa velha conquista do fordismo e do Es-tado providência europeu, tornou-se nos últimos tempos uma mera figura de retórica em que já nem as forças políticas herdeiras da social democracia acreditam (em especial quando alcançam o poder).

3. A SOCIEDADE PORTUGUESA Todos conhecemos os traços de Portugal como país

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periférico da Europa, cujas dificuldades se devem a um tardio e incipiente desenvolvimento industrial, bem como a um processo de democratização também ele re-cente e repleto de contradições. Com a instauração da democracia em 1974, consolidaram-se as classes tra-balhadoras vinculadas à industria e os sectores da nova classe média assalariada (sector administrativo, saúde, educação, poder local e funcionalismo público em geral) cresceram rapidamente – apesar de no seu conjunto a classe média portuguesa ter permanecido débil – sob o impulso de um Estado providência em rápido cres-cimento, apesar de ele próprio ser fraco. Aliás, convém lembrar que Portugal começou a construir o seu Estado social numa altura em que já estavam a emergir os sinais de crise desse modelo na Europa, ou seja, tentou-se apa-nhar um comboio em andamento quando ele já estava a atingir o fim da viagem.

Daí que as transformações sociais desencadeadas com o 25 de Abril de 1974 – e de certo modo consignado na constituição “socialista” de 1976 –, sendo sem dúvi-da profundas em muitos aspectos, nunca deixaram de evidenciar os contrastes que persistiam e persistem na sociedade portuguesa. A modernização das infraestru-turas, em especial após a adesão à UE, em 1986, trouxe progressos inquestionáveis, mas no plano social, persis-tiram as dificuldades, injustiças e bloqueios. Muito em-bora os trabalhadores e a “classe baixa” em geral tenham melhorado substancialmente as suas condições de vida, em comparação com a miséria em que viviam há 30 ou 40 anos, o certo é que as elites – em especial as novas elites privilegiados ligadas à indústria e ao comércio – subiram muito rapidamente, distanciando-se dos níveis de vida da classe média e dos trabalhadores manuais. A “clas-

se média” cresceu até finais do século, em boa medida à sombra do crescimento do Estado, como se disse, mas ao mesmo tempo permaneceu instável e internamente muito diferenciada.

Pode até dizer-se que a classe média portuguesa foi mais importante pelo seu papel enquanto referência simbólica no imaginário colectivo, do que por ser um segmento social consistente e dotado de índices elevados de bem-estar. Foi sobretudo resultado de uma rápida concentração urbana e da facilitação do crédito, aspec-tos decisivos para que estes sectores recém urbanizados começassem a estruturar padrões de vida subjectiva-mente projectados numa imaginária “classe média”, ou, por outras palavras, numa categoria supostamente “dis-tintiva” e “superior” por comparação com os grupos de referência originários, isto é, os que remetiam para um mundo rural e pobre, que se pretendia ver ultrapassa-do. Assim, como alguns estudos mostraram (Estanque, 2003; Cabral, 2003), uma parte significativa da própria classe trabalhadora manual, incluindo alguns dos seus segmentos mais precarizados, via-se a si própria como pertencendo à “classe média”.

Ora, se o consumismo desenfreado e as expectati-vas de mobilidade ascendente puderam alimentar tais ilusões durante algum tempo, com a entrada no novo milénio e sobretudo perante o reforço da competitivi-dade global, a contenção de custos, as pressões para a flexibilização e privatização (mesmo nos sectores onde o emprego se mantinha relativamente seguro), deram ini-cio a um profunda mudança na esfera do emprego, com isso evidenciando, uma vez mais, o carácter persistente e estrutural das nossas debilidades. Ressurgem problemas que era suposto terem sido resolvidos há décadas, como

sejam a pobreza, a falta de qualificação de trabalhadores e empresários, as elevadas taxas de abandono escolar, o fenómeno dos recibos verdes (inclusive os falsos), o crescimento brutal das desigualdades sociais, o aumento do desemprego e da pobreza, as desigualdades de géne-ro e um rápido aumento das situações de precariedade no trabalho, que atingem em especial os sectores mais jovens (incluindo os mais escolarizados).

Temos, portanto, sobre os nossos ombros um passa-do recente marcado por inúmeros contrastes, e é neles que porventura repousam as causas mais decisivas do nosso atraso estrutural. A cultura tradicional do país e a escassa qualificação dos agentes económicos (empresá-rios e trabalhadores) espelham ainda os atributos de uma sociedade subdesenvolvida, amarrada a mentalidades atávicas e paroquiais, aqui e ali deixando ainda transpa-recer alguns resquícios de feudalismo e de salazarismo. Prevalecem os modelos de gestão de cariz despótico, lado a lado com dependências e tutelas de todos os tipos que se adaptam de modo perverso à vida moderna, cor-roendo o funcionamento das empresas e instituições e travando as potencialidades de modernização económica e de aprofundamento democrático.

Mantêm-se ou intensificam-se os velhos dualismos, tais como a divisão entre o interior e o litoral ou entre o rural e o urbano, muito embora tais divisões mantenham entre si fortes contaminações recíprocas. Essas antigas contradições continuam a persistir, embora se adaptem aos tempos actuais. Os sectores protegidos do empre-go tornam-se cada vez mais raros, enquanto o emprego precário subiu acima dos 20% (22% em 2007 para os tra-balhadores com menos de 35 anos) e nas camadas mais jovens atinge cerca do dobro, o que por sua vez expri-

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me a contradição geracional entre uma juventude mais qualificada, mas também mais precária, e as condições de trabalho dos seus país ou avós. O discurso da privati-zação foi durante décadas elevado ao estatuto de único garante da competitividade, e, ao abrigo dele, desenca-dearam-se reformas dos serviços públicos em diversas áreas como a saúde, a educação e outras, justificando-se tais mudanças com base num suposto privilégio dos trabalhadores e funcionários da administração pública por contraste com os do sector privado – a tentação do nivelamento por baixo.

4. O CONTEXTO EUROPEUAs propostas legislativas para a esfera laboral não

podem ignorar a história e o significado das lutas so-ciais dos trabalhadores europeus longo dos últimos 150 ou 200 anos. Se houve efectivamente progressos fun-damentais ao longo de todo este tempo, eles devem-se essencialmente às capacidade de organização e de luta colectiva da classe trabalhadora e do movimento ope-rário nos países industrializados. Esse é, de resto um património que é reivindicado por toda a esquerda, desde a social-democracia ao movimento comunista. Se hoje temos na Europa uma ordem jurídica que privilegia o di-álogo e a concertação social entre os diferentes parceiros e classes foi à custa de grandes sacrifícios e lutas do mo-vimento operário. Nesse sentido, o direito do trabalho é um instrumento decisivo ao serviço dos trabalhadores destinado a reequilibrar relações sociais fortemente as-simétricas entre capital e trabalho.

No entanto, apesar dos avanços proteccionistas em muitos países, persistiram ao longo dos tempos inúme-ras formas de trabalho fora de qualquer protecção ju-

rídica, e a erosão dos direitos sociais e económicos dos trabalhadores suplantou largamente a força da lei. Ain-da hoje assim é, em muitos países e regiões do mundo. Sendo expressão das relações políticas numa sociedade, a ordem jurídica funcionou ao longo da história como meio de legitimação de relações de poder fortemente de-sequilibradas, em geral impondo uma força de trabalho submissa e destituída dos direitos mais elementares, sem um salário digno, sem protecção social e sem acesso aos direitos humanos mais elementares. No entanto, a trans-formação histórica teve resultados fantásticos de sentido emancipatório, em particular nos países mais avançados. O direito do trabalho triunfou nos países europeus e é uma bandeira fundamental para trabalhadores dos mais diversos continentes, justamente porque representa uma poderosa arma ao serviço das classes desapossadas, de-fendida, desde sempre, pelo movimento sindical interna-cional e veiculada por organizações internacionais como a OIT, que tem prestado um inestimável contributo na defesa dos direitos humanos no trabalho, em todos os continentes.

É precisamente à luz deste património histórico, de que a Europa é um palco privilegiado, que as mudanças

impostas pelos poderes dominantes nesta matéria – no sentido de uma flexibilidade ditada pela concorrência desregrada, pelos requisitos do mercado global e pelas exigências do grande capital – correm o risco de repre-sentar uma regressão inaceitável para os trabalhadores europeus.

Portugal, com todas as suas especificidades já apon-tadas, insere-se justamente nesse quadro. E é por isso que as alterações que a nova proposta de Código do Trabalho vem introduzir são, em variadas matérias (ou melhor, nos seus aspectos mais decisivos), motivo de grande apreensão para quem assuma a defesa da classe trabalhadora enquanto vítima da exploração capitalis-ta (cerca de 140 anos após a 1ª edição do livro 1 de O Capital) e de outras formas de opressão e de injustiça social. Acresce que as condições de subdesenvolvimento já referidas colocam a sociedade portuguesa – e a sua força de trabalho assalariada – numa situação de espe-cial vulnerabilidade, visto que estamos longe de cumprir plenamente com os direitos de cidadania. Como muitos de nós temos apontado repetidamente, existem medos incrustados nas instituições, que impedem o fortaleci-mento da esfera pública e tendem a inibir qualquer acção

O DIREITO DO TRABALHO TRIUNFOU NOS PAÍSES EUROPEUS E É UMA BANDEIRA

FUNDAMENTAL PARA TRABALHADORES DOS MAIS DIVERSOS CONTINENTES,

JUSTAMENTE PORQUE REPRESENTA UMA PODEROSA ARMA AO SERVIÇO DAS

CLASSES DESAPOSSADAS, DEFENDIDA, DESDE SEMPRE, PELO MOVIMENTO SINDICAL

INTERNACIONAL E VEICULADA POR ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS COMO A OIT

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reivindicativa no campo profissional, onde imperam os constrangimentos e a mentalidade autoritária de em-presários e chefias. A presença de culturas autocráticas, de tutelas e compadrios dos mais diversos tipos, onde deveriam prevalecer a transparência, as estratégias de gestão e lideranças democráticas, constituem ingredien-tes que corroem as nossas instituições e desmotivam qualquer trabalhador dedicado. Em vez do mérito e da iniciativa individual prevalecem as posturas e atitudes de bajulação e resignação perante a autoridade; em vez do ambiente de exigência e de estímulo à criatividade e à co-responsabilização (individual e colectiva) cultiva-se o seguidismo e a mediocridade.

Ora, perante este panorama – e como diversos estu-dos internacionais têm mostrado –, a questão da estabi-lidade e da segurança no emprego constitui o principal motivo de satisfação no trabalho. A perda do emprego é uma preocupação angustiante face à qual muitas outras exigências, mesmos as mais evidentes, podem ser sacri-ficadas. Mas quando o trabalhador (ou o cidadão) é sis-tematicamente reprimido e impedido de manifestar a sua vontade ou de exigir o cumprimento de direitos, o que acontece é o aumento do descontentamento e da con-trariedade no trabalho, o que só contribui para acentuar ou a resignação calada ou a crispação e o sentimento de revolta. É neste clima, agravado com as múltiplas formas de recomposição, desmembramento, flexibilidade, deslo-calização e encerramento de empresas, precariedade do trabalho, fragmentação dos processos produtivos, etc., que a classe trabalhadora se tornou mais heterogénea e se depara com tremendas dificuldades em agir colec-tivamente enquanto classe. De resto, há muito que as identidades de classe perderam fulgor em favor de outras

identidades rivais e de outras formas de acção colectiva. E com elas também os sindicatos perderam capacidade de organização e de mobilização, nomeadamente junto dos segmentos mais fragilizados e mais jovens da força de trabalho. Para além de um contexto social e político pouco favorável à participação colectiva e associativa – e sem esquecer as próprias dificuldades de renovação do sindicalismo (Estanque, 2008) –, o reforço do poder patronal e a retirada de condições que favoreciam a acção sindical vêm agravar ainda mais essas tendências.

5. O NOVO CÓDIGO DO TRABALHO Com a legislação recentemente aprovada, o governo

do PS afirma combater a precariedade e o flagelo dos recibos verdes e ao mesmo tempo contribuir para uma maior flexibilidade e competitividade das nossas em-presas. Todavia, se essas são de facto as intenções anun-ciadas pelo poder político, é bom lembrar que um vasto leque de especialistas nesta matéria, nomeadamente con-ceituados juristas do direito do trabalho (tais como Leal Amado, Fausto Leite, Júlio Gomes, Jorge Leite, entre outros) têm vindo a dar razão à corrente sindical mais crítica (CGTP) na denúncia de um significativo conjunto de matérias contempladas no novo código, quer na maio-ria das suas clausulas e artigos quer nos seus aspectos de fundo mais importantes. Desde logo, importa assumir o pressuposto de que esta é uma questão em que o plano jurídico e o rigor técnico são e devem ser considerados indissociáveis da concepção política e económica, rejei-tando-se assim a concepção tecnocrática em que muitas vezes se escondem as orientações políticas.

Pode dizer-se que, na primeira versão da proposta de lei (entretanto já aprovada na AR), alguns aspectos iam

justamente ao encontro do combate à precariedade, por exemplo, ao pretender restringir os contratos a termo certo quando penaliza com o aumento de impostos (taxa social única) a contratação a prazo em favor dos contra-tos permanentes. Mas, se nos lembrarmos que também na versão inicial se previa um aumento para o dobro do chamado “período experimental” (cuja proposta inicial era de 180 dias, embora tenha sido mantida nos mesmos 90 dias, devido ao veto presidencial), conclui-se que na prática isso seria tornar os contratos permanentes como se fossem contratos a termo, isto no caso do despedi-mento, já que nesse período a decisão de despedir fica apenas dependente da vontade do patrão. Há um amplo conjunto de questões a merecer análise exaustiva (que, aliás, não é meu propósito desenvolver aqui), mas basta, para já, enumerar alguns dos pontos em que sobressai a concepção política do legislador, e onde se torna claro que o PS e o actual governo mudaram de estratégia neste campo, entrando abertamente em contradição com aqui-lo que foi a posição do partido aquando da aprovação do anterior Código do Trabalho (de Bagão Félix/ governo PSD).

“... A proposta de Lei nº 29/IX [Código do Trabalho de 2003 de Bagão Félix/ Governo PSD] assenta numa concepção conservadora e retrógrada, não assegura a protec-ção da dignidade dos trabalhadores na empresa (...), porque ignora a evolução do Direito do Trabalho ao longo do século XX, retoma uma matriz civilista que assenta na ficção da igualdade das partes na relação laboral, sobrepõe a relação individual de trabalho às relações colectivas de trabalho (...). O que está em causa é a filosofia e a alteração dos poderes do empregador, o enfraquecimento da dimensão colectiva, o acen-tuar da dependência do trabalhador, visão que, tendo em conta

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a matriz constitucional do direito do trabalho e a concepção que perfilhamos dos direitos dos trabalhadores, não podemos compreender nem aceitar” (Declaração de Voto do Grupo Parlamentar do PS, AR, 2003).

Com efeito, a critica dirigida pelo PS ao anterior có-digo mostrava uma consciência social e uma preocupa-ção com a defesa do direito do trabalho, que no actual quadro, e enquanto governo, parecem estar ausentes. Eis alguns dos pontos que, a meu ver, levantam maiores problemas: 1) o princípio do tratamento mais favorável deixa de ser aplicado genericamente, restando um con-junto de 14 situações de excepção, o que constitui uma inversão dos valores e princípios defendidos antes pelo PS; 2) o combate à precariedade surge aqui sobretudo como uma linguagem, que não disfarça a preocupação de fundo, que é facilitar e simplificar os despedimentos; 3) a flexibilidade de horários (vulgo “banco de horas”) é outra matéria que, a ser imposta de forma generalizada, irá sem dúvida poupar muito dinheiro aos empresários, mas também irá contribuir para afundar ainda mais a já depauperada situação dos trabalhadores, visto que o re-curso às horas extraordinárias foi, para muitos trabalha-dores de diversos sectores industriais, o único meio de que dispunham para aliviar as suas dificuldades econó-micas; 4) a adaptabilidade, que nas PMEs deixa de estar sujeita a negociação com as estruturas representativas dos trabalhadores, bastando que 75% dos mesmos con-corde com a vontade patronal, o que traduz um regresso à visão individualista das relações laborais, ou seja, um claro retrocesso que põe em causa toda a filosofia em que se baseia o direito laboral; e finalmente, 5) a caducidade das convenções colectivas, que pode dar lugar a períodos de vazio legal e, pior do que isso, representa um ataque

ao direito de contratação colectiva e de associativismo sindical, garantidos na constituição. Estas são apenas algumas das matérias que suscitaram maior discussão e uma contestação aberta por parte dos sindicalistas.

A orientação politico-económica que presidiu à legis-lação do trabalho recentemente aprovada é por muitos considerada como moldada às exigências do mercado e da competitividade das empresas, mas pouco consen-tânea com a defesa da classe trabalhadora, sobretudo segundo o entendimento que, na tradição social-demo-crata, socialista e comunista, concebe essa classe como a principal fonte de criação de riqueza nas sociedades modernas. É também nesse sentido que a linguagem e os pressupostos que atravessam todo o articulado do novo Código exprimem claramente uma ideia absolutamente incongruente com as concepções da esquerda. A ideia falsa e perigosa de que empregadores e empregados, pa-trões e operários, empresários e assalariados estão em pé de igualdade e devem, por esse motivo, ser protegidos do mesmo modo pelo quadro legal.

Sem dúvida que é necessário mudar muita coisa e adaptar à realidade regulamentos e leis ultrapassadas. Porém, como referi atrás, a lei é também um instrumento através do qual o Estado intervém e regula as relações sociais e económicas na sociedade. O direito do traba-lho obedece a um princípio moral de solidariedade e de justiça social, que visa defender o lado mais frágil da relação laboral. Esse é o princípio que agora está a ser desvirtuado, para dizer o mínimo, com o novo Código do Trabalho, e por isso muitos juristas o questionam por ser eventualmente ferido de inconstitucionalidade. Por outro lado, não tem sentido – na questão da caducidade das convenções colectivas de trabalho – querer destruir

duma assentada todo um edifício de acordos e conquistas que evoluiu à custa de equilíbrios e consensos dificil-mente negociados. Podem caducar determinadas clau-sulas comprovadamente desadequadas, mas não todo o conjunto. E pior ainda é que os sectores patronais que percebem as vantagens económicas da negociação, de chegar a acordos com os trabalhadores e seus represen-tantes, ficarão com o terreno livre para, em substituição dos actuais parceiros negociais (sindicatos ou comissões de trabalhadores), criar ou estimular outros “parceiros” com menos representatividade, mais dóceis e suscep-tíveis de mais eficaz instrumentalização. Se a dita ins-trumentalização da CGTP por parte do PCP preocupa tanto o actual governo, porque será que não revela a mesma preocupação quando esse risco de instrumenta-lização surge do lado patronal? Será que existe por de-trás disto um preconceito anti-sindical (nomeadamente anti-CGTP)?

6. SINDICALISMO E COESÃO SOCIALQuando estiver na sua plena vigência, esta nova

legislação do trabalho poderá acarretar um conjunto de riscos que tendentes a provocar a degradação das condições de trabalho e a própria coesão social no seu conjunto. Primeiro, irá objectivamente favorecer o sin-dicalismo mais dócil (“de mercado”) e mais próximo dos partidos de poder; segundo, pode constituir um estimulo às posturas autoritárias do patronato mais conservador, facilitando o despotismo empresarial e a manipulação de estruturas falsamente representativas dos trabalhadores no seio das empresas. Terceiro, pode acentuar ainda mais os poderes e dependências pessoais, um dos maiores ma-les das empresas e do país, em que o clima de medo e a

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cultura de mediocridade tendem a penalizar quem ouse ser irreverente e ter iniciativa (e em especial quem ouse sindicalizar-se). Nas PMEs, sobretudo, a manipulação dos trabalhadores – que já existe – pode facilmente tor-nar-se generalizada caso se persista numa concepção individualista das relações laborais e numa concepção “civilista” do direito laboral.

Em vez de tomar a actividade sindical – sobretudo a sua corrente mais activa e mais combativa – como o grande adversário a aniquilar, seria bom que os respon-sáveis políticos e governativos (e faria sentido esperar isso dos partidos de esquerda, mesmo quando assumem o poder) apostassem de modo consistente em criar meios para de facto promoverem a modernização empresarial e a necessária flexibilização produtiva, mas responsabili-zando mais as lideranças e responsáveis pela gestão. Há um evidente défice de liderança, de gestão estratégica e de responsabilidade social. É por isso muito difícil de entender uma visão das políticas económicas em que os trabalhadores parecem ser considerados os únicos culpados da falta de competitividade e de inovação! São raros os exemplos de boas práticas nestes aspectos. Es-casseiam os verdadeiros empresários que cumprem a lei e respeitam os direitos dos trabalhadores, em especial no que toca ao diálogo com as estruturas de representação colectiva e os sindicatos.

O estímulo à produtividade carece de um requisi-to essencial: a aposta na qualificação e na formação de trabalhadores e dirigentes, mas que ao mesmo tempo garanta o acesso à estabilidade, à segurança no emprego e à efectividade dos direitos. Isto seria uma forma de conjugar recursos e competências com incentivos que aumentem a satisfação e a motivação do trabalhador. Só

assim se poderá recuperar a confiança e criar os incen-tivos necessários a uma coesão e mobilização colectiva capaz de enfrentar os desafios e problemas comuns. E esperamos que a crise em que estamos mergulhados pos-sa ser atenuada e revertida com sensatez e capacidade de acção na defesa do bem comum. Nas últimas décadas, o cinismo do poder económico e a crença cega no princípio mercantilista já nos colocaram próximos do precipício. É tempo de dar um passo atrás e encontrar novos cami-nhos. Caminhos algo incertos e ainda obscuros, mas que, estou em crer, poderão iluminar-se com uma viragem à esquerda!

REFERÊNCIASAntunes, Ricardo (Org.) (2006), Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil. São Paulo: Editora Boi Tempo.Cabral, M. Villaverde, e outros (Orgs.) (2003), Desigual-dades Sociais e Percepções da Justiça. Lisboa: ICS.Castel, Robert (1998), As Metamorfoses da Questão So-cial. Petrópolis: Editora Vozes.Estanque, Elísio (2003), “O efeito classe média – desi-gualdades e oportunidades no limiar do século XXI”, in Cabral, M. V., J. Vala e A. Freire (orgs.), Percepções e avaliações das desigualdades e da justiça em Portugal numa perspectiva comparada. Lisboa: ICS, 69-105.Estanque, Elísio (2008), “Sindicalismo e movimentos sociais: dilemas e perplexidades” e “Entre os velhos e os novos activismos: tensões e desafios do movimento sindical”, Revista JANUS – Anuário de Relações Interna-cionais, vol. XX. Lisboa, UAL/ Jornal Público, pp. 184-187.

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PRECARIEDADE E DESEMPREGO EM PORTUGAL

QUE SAÍDAS?MARIANA AIVECATR

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PRECARIEDADE E DESEMPREGO EM PORTUGAL QUE SAÍDAS?MARIANA AIVECA | DEPUTADA DO BLOCO DE ESQUERDA

PRECARIEDADEA situação do trabalho precário em Portugal revela-

nos números chocantes e, pior que eles é, a realidade das vidas precárias que nos devem convocar para uma reflexão séria sobre este problema. De acordo com os da-dos oficiais, cerca de metade dos jovens portugueses até aos 25 anos não tem contrato de trabalho, enquanto no caso das mulheres são mais de 52,1% as que trabalham sem vínculo. O número de contratados a prazo duplicou na última década, representando já 21,5% da população empregada por conta de outrém, a maior taxa depois da Espanha e da Polónia.

Calcula-se que dos 900 mil trabalhadores por con-ta própria, uma parte significativa sejam falsos recibos verdes. A precariedade laboral atinge assim mais de um milhão e quinhentas mil pessoas.

A precariedade laboral está, na minha opinião, in-trinsecamente ligada às políticas do trabalho do novo capitalismo. Esta é uma nova forma de exploração bem mais corrosiva e profunda porque está envolta numa propaganda que na maior parte das vezes é aceite pelos próprios sujeitos envolvidos.

“Não há emprego para toda a vida!” – é a afirmação recorrente, complementada com os argumentos de que o que é moderno e actual é ter capacidade de adaptação, ter conhecimentos e especialização em muitas áreas, por-que isso permite não só a valorização individual, como aumenta a capacidade reprodutora das “nossas empre-sas”.

Ora é exactamente esta distorção ideológica que se sustenta e sobrevive na fragilidade social em que se en-contram hoje largos contingentes de pessoas, que está no centro das dificuldades da luta que se impõe contra este flagelo social.

E se é verdade que tais argumentos apenas preten-dem esconder os objectivos do capital para maximizar o lucro das “suas empresas” oferecendo isso sim “a pre-cariedade da vida toda”, também é uma constatação que os próprios precários não têm, a maior parte das vezes, a consciência de o ser. Essa é uma batalha que aqui à esquerda também temos a responsabilidade de ajudar a ganhar.

A precariedade atinge trabalhadores de todas as idades, profissões e habilitações. No entanto, continua a haver camadas específicas particularmente afectadas por esta realidade. É nos jovens e nas mulheres que a precariedade laboral mais se faz sentir. O trabalho precá-rio passou nos últimos anos a fazer parte do quotidiano de milhares de jovens que recebem misérias a trabalhar nos grandes escritórios, para empresas de empreiteiras e subcontratação, nas caixas dos hipermercados, nos inú-meros serviços que completam a produção e asseguram a circulação de bens e serviços, na saúde e na educação que sustenta melhores condições para a reprodução da força de trabalho, e cada vez mais – na função pública.

Precariedade laboral é a situação que espera por mi-lhares de jovens que saem das universidades e que pela primeira vez na história têm mais escolaridade do que

os pais, mas são mais precários e ganham menos do que eles. A este respeito vale a pena lembrar Richard Sen-nett e o seu livro “A corrosão do carácter”, onde tão bem é retratada a história da geração precária. Por outro lado, a diminuição dos contratos permanentes segue a par do aumento do trabalho precário de todas as formas e fei-tios, em que os patrões apostam arrastar na maré todas e todos os que ainda têm algumas defesas contratuais do seu lado.

O que se exigia daqueles que em campanha eleitoral prometeram “Tornar o trabalho um factor de cidadania” e criar “150 mil novos postos de trabalho” eram medidas claras de combate à precariedade e promoção do empre-go. Ao invés, o que o actual governo conseguiu fazer foi aprovar um código do trabalho que não só seguiu a linha do código Bagão Félix como aprofundou a natureza do seu retrocesso civilizacional, como já hoje aqui foi de-monstrado pelo professor Jorge Leite.

Hoje continuamos a exigir que o governo dê um si-nal contra esta barbárie, começando na sua própria casa, através de medidas claras que limitem os contratos a termo ao máximo de um ano, que garantam que a um posto de trabalho permanente corresponda um contrato permanente; que dê meios para a fiscalização apertada e a severa penalização de quem usa e abusa do trabalho precário, particularmente dos falsos recibos verdes. São exigências que contribuem para o avanço nos direitos la-borais constitucionalmente previstos e que fazem parte da defesa da dignidade do trabalho em contraponto com

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a chantagem da ausência de direitos, que mais não é que a chantagem da repressão social.

É uma luta que estamos dispostos a integrar, certos de que fará o seu caminho. O papel do movimento sin-dical e dos movimentos de precários são determinantes nesta luta para a qual se abrem todos os dias novos ho-rizontes. DESEMPREGO E PROTECÇÃO SOCIAL NO DESEMPREGO

E se esta é a situação da precariedade, quando fa-lamos no desemprego a situação não é melhor. Quase quatro anos passados de governação PS, Portugal pode muito rapidamente chegar a uma taxa de desemprego que ultrapassará os 10% da sua população activa.

Os mais recentes dados apontam uma taxa de de-semprego de 8,2%, sendo que deles não fazem parte o trabalho a tempo parcial, os inactivos disponíveis e os desempregados que frequentam acções de formação. O que se prevê para 2009 é de facto o agravamento da situação do desemprego, porque os despedimentos co-lectivos vão aumentar, mais empresas vão encerrar ou decretar lay-off, e os empregos entretanto criados foram voláteis, logo são facilmente destruídos.

Se em 2003 o agora Primeiro-ministro, quando es-tava na oposição, dizia que uma taxa de desemprego de 7,1% era a marca de uma governação falhada, que dizer da actual situação? Sócrates não fez melhor que os go-vernos de direita.

O governo já começou a desculpar-se com a crise financeira internacional, mas tais desculpas escondem a incapacidade de incentivar e investir na criação de em-prego. Quero aqui dar particular destaque à protecção

social existente no desemprego, e confrontar as medidas tomadas com a situação actual. Paradoxalmente, é à me-dida que o desemprego aumenta que a taxa de cobertura da protecção no desemprego diminui.

Se compararmos o número de beneficiários de pres-tações de desemprego com o número de desempregados apurados pelo INE verifica-se que a taxa de cobertura apenas num ano desceu 10 pontos percentuais, tendo passado de 53,6% em 2006 para 44,1% em 2007. A mes-ma quebra ocorreu no subsídio social de desemprego, passando a taxa de cobertura de 70,8% para 60,8%.

Também se verificarmos a execução orçamental nos primeiros meses de 2008, a despesa com o subsídio de desemprego e apoio ao emprego comparado com o perío-do homólogo anterior, teve uma quebra de 17,5%, tendo em simultâneo havido um crescimento das transferên-cias para o subsídio social de desemprego.

Esta situação decorre das alterações feitas pelo go-verno em 2006, às regras de atribuição do subsídio de desemprego que dificultou o acesso ao subsídio alargan-do os prazos de garantia, ao mesmo tempo que encurtou os períodos de concessão na maioria dos casos, prejudi-cando em especial os mais jovens.

Não podemos aceitar esta situação em que há dinhei-ro aos milhões para salvar os bancos que jogaram no ca-sino e em offshores o dinheiro que não era seu, e ao mesmo tempo dizer aos desempregados que têm que continuar a fazer sacrifícios.

Não podemos aceitar a ideia de que os desemprega-dos se acomodam se receberem subsídios e deixam por isso de procurar emprego, porque essa é a ideia que nos leva à consideração que os desempregados são os culpa-dos da sua própria condição.

Por isso continuaremos a exigir mais protecção para os desempregados e suas famílias porque é quando a si-tuação social é mais frágil que se exige do Estado que proteja as pessoas. Continuaremos a apresentar propos-tas que melhorem o acesso ao subsídio de desemprego, aumentando o valor de 65% do salário para 70% como acontece em muitos países da Europa, que aumentem o período de concessão e que facilitem o acesso, encurtan-do os prazos de garantia para dar resposta a quem tem contratos precários.

A luta por melhores condições de vida é também uma condição da democracia e dela não abdicaremos. Um Estado e um Governo que opta por abandonar os mais pobres, os que vivem os dramas de serem expul-sos das empresas contra a sua vontade, que ficam sem perspectivas de garantir o sustento, esse Governo fere de morte as concepções da democracia e do socialismo. Inverter esta situação é uma obrigação de todas e todos os que hoje aqui se encontraram.

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ECONOMIA POLÍTICA DO URBANISMO PORTUGUÊS QUATRO DÉCADAS DE RENTISMO, CORRUPÇÃO E INCOMPETÊNCIA

PEDRO BINGRE

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ECONOMIA POLÍTICA DO URBANISMO PORTUGUÊS — QUATRO DÉCADAS DE RENTISMO, CORRUPÇÃO E INCOMPETÊNCIAPEDRO BINGRE | ENGENHEIRO FLORESTAL, PROFESSOR NO INSTITUTO POLITÉCNICO DE COIMBRA

1965: O ANO DA MORTE DO URBANISMO PORTUGUÊS

O aspecto mais notável do urbanismo português é o facto de se encontrar clinicamente morto desde 29 de Novembro de 1965. Continua biologicamente vivo, no sentido em que ainda circula sangue pelos seus membros, construindo com espasmos novas urbanizações — mas estas têm a forma de obras construídas sem um cérebro que gizasse um desenho urbano elegante, uma estrutura inteligente, uma filosofia ilustrada de cidade. A sentença de morte foi exarada naqueles dia pela Assembleia Na-cional, sob o título de Decreto-Lei n.º 46 673, fazendo da privatização de loteamentos e mais-valias urbanísticas o estribo da política nacional de solos1. Esse diploma, seguido por outros que lhe têm dado continuidade para impedir a ressurreição do urbanismo enquanto ofício no-bre, abriu as portas a quatro décadas de assalto especula-tivo ao território nacional, cartelizou a economia imobi-liária do país, e transformou o planeamento urbanístico num mero exercício de retórica jurídico-administrativa. Os resultados insofismáveis vêem-se a olho nu. Não é possível produzir malhas urbanas com a qualidade das norte-europeias quando se pratica uma política de solos terceiro-mundista.

Desde logo surpreende a falta de cultura arquitec-tónica da maioria dos edifícios construídos nas últimas quatro décadas. Apesar de as Escolas portuguesas for-marem arquitectos de muito alto coturno — os prémios internacionais confirmam reiteradamente o seu valor

— a maioria das construções recentes foram erguidas sem demonstrar qualquer traço de erudição. Por cada edifício singular no qual pôde, excepcionalmente, brilhar a criatividade de um arquitecto, enormes enfiamentos de prédios se estendem sem beleza, funcionalidade ou sequer sinais de inteligência no desenho. Por cada nova obra-prima que produz um dos nossos ateliês, são apro-vadas nas autarquias centenas de projectos habitacio-nais dignos de nenhum outro destino senão o aterro da história da arquitectura. O confrangedor panorama em torno da Igreja de Santa Maria, por Siza, em Marco de Canaveses, é um exemplo eloquente entre tantos outros. Como entender este paradoxo: que num país onde não faltam talentos arquitectónicos nem escasseia a nova construção, os arquitectos vivam à míngua de oportuni-dades para exercer plenamente o seu métier?

Ao paradoxo da arquitectura une-se o da engenharia. Em barragens, pontes e aeroportos, aquém e além-fron-teiras, os engenheiros civis portugueses têm demons-trado a sua capacidade de erigir competentemente as mais complexas estruturas, muitas delas premiadas. Não obstante, a qualidade física da construção habitacional das últimas décadas é, por norma, tão fraca que mais se diria tutelada por um criador de arte povera do que por um especialista em edificação. Dão disso testemunho proezas como a ponte ferroviária de São João, no Porto, por Edgar Cardoso: contrastando com essa obra-prima da técnica construtiva, erguem-se ao redor centenas de residências realizadas sem indícios do menor acompa-

nhamento eficaz em engenharia. Como entender que, sobejando no país engenheiros competentes, superabun-dem nele prédios edificados sem competência?

Aos paradoxos da arquitectura e da engenharia so-mam-se as contradições da economia imobiliária. Os edifícios e as infra-estruturas dos bairros onde residem os portugueses são, em média, medíocres na qualidade dos materiais empregues, e miseráveis na qualidade da manutenção do espaço público. Um turista que viaje pe-los subúrbios de Lisboa, Porto, Coimbra ou outra cidade média portuguesa nos dirá que lhe assomam memórias do Cairo, Lima, Tirana ou análogas cidades de países em vias de desenvolvimento. Presumirá, decerto, que a nossa má construção decorre da incapacidade financeira para investir em boa construção. No entanto, esses mes-mos turistas desconcertam-se ao saber que o PIB per ca-pita português é, desde há décadas, várias vezes superior ao daqueles países; e que o preço actual do imobiliário em Lisboa é, por metro quadrado, o dobro do praticado em Berlim. Os números falam por si mesmos: se o custo de construção de uma residência de alta qualidade não excede os 800 €/m2 (excluindo o solo), como podem os lisboetas suburbanos ser forçados a pagar acima de 2000 €/m2 por habitações sofríveis, em verdadeiros “não-lu-gares”?

A rematar o rol de contradições da paisagem urbana portuguesa encontra-se a sua irracionalidade quantita-tiva no panorama europeu. Embora a densidade popu-lacional portuguesa seja muito inferior à holandesa, o

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urbanismo neerlandês oferece aos seus cidadãos bairros de casas unifamilares, ricos em áreas públicas, ao passo que o lusitano oferece à maioria dos seus conterrâneos bairros densos de apartamentos, com escassos espaços de lazer. Mesmo nas vilas e cidades do nosso interior, em regiões pouco povoadas, a oferta imobiliária cerca-se de uma paupérrima oferta de equipamentos ou espaços públicos. Acresce ainda o absurdo de apesar de existir um excesso de oferta de imóveis2 (existem mais de 70 imóveis desocupados por cada 1000 habitantes) em Por-tugal, os seus cidadãos se encontrarem entre os europeus que maior esforço têm de fazer para adquirir casa (9 anos do seu salário médio bruto anual, contra a média norte-europeia de 3 anos). Quantidades, qualidades, preços e tipologias de habitação desajustadas entre si reflectem as ineficiências de mercado geradas por uma escassa e incompetente legislação reguladora do sector.

QUANDO A POLÍTICA DE SOLOS PERVERTE A ECONOMIA IMOBILIÁRIA

Se o falecimento do urbanismo português não se ex-plica nem pela falta de bons arquitectos, nem de enge-nheiros, nem de investimentos, qual poderá ser a causa de semelhante revés? Como já indiciámos, temos moti-vos para crer que a principal causa reside na privatização dos loteamentos públicos, pelo efeito que teve de con-ceder aos particulares o direito de especular sem freio sobre os solos periurbanos, para deles obter “fortunas trazidas pelo vento”3 sob a forma de mais-valias urba-nísticas4 (MVU). Estas consistem no acréscimo de valor sofrido por um terreno rústico no instante em que uma decisão administrativa o faz transitar para a categoria

de urbanizável. Esta valorização administrativa pode com facilidade ultrapassar os 10.000%. Ao resultar de uma mera manobra burocrática que beneficia principes-camente o titular dos terrenos sem o obrigar a oferecer contrapartidas relevantes, atrai toda a sorte de agentes interessados em ganhar réditos milionários no jogo dos alvarás, licenças e reclassificações urbanísticas.

O facto de tradicionalmente se dar o nome de mais-valias aos ganhos por valorização administrativa de terrenos rústicos tem levado a um grave equívoco nos exercícios tributários: o de confundir as MVU (de na-tureza improdutiva e política), para efeitos fiscais, com mais-valias bolsistas, financeiras e comerciais (de natu-reza produtiva). Ora, em termos de economia politica as MVU definem-se como rendas fundiárias diferen-ciais de génese politica, ao passo que as restantes mais-valias se definem como juros ou lucros. Denominam-se rentistas aquelas economias onde os a maior parte da riqueza produzida é capturada por titulares de certos monopólios naturais ou políticos, como o das licenças de urbanização, cujo papel se limita a cobrar rendas aos restantes agentes económicos, sem oferecerem genu-ínas contrapartidas reais em bens manufacturados ou serviços prestados. As economias rentistas foram carac-terísticas da Europa do Ancien Régime e de boa parte dos países não-industrializados de hoje.

Os preços, custos e valores do imobiliário dão-nos uma eloquente estimativa da imensa quantidade de ri-queza que foi desviada dos sectores produtivos da socie-dade para as contas dos grupos rentistas. Num mercado imobiliário tutelado por uma política de solos progressi-va, um terreno agrícola não apresenta preços superiores ao valor à perpetuidade das rendas agrícolas5, mesmo

que se situe nas cercanias de grandes cidades. Assim sendo, se semelhante regime fundiário vigorasse em Portugal, nenhum terreno rústico deveria estar cotado a preços superiores a 20.000 € por hectare; acima destes preços as rendas da actividade agrícola são incapazes de amortizar a compra do solo. Porém, se esse mesmo terreno se situar num local sob procura imobiliária e lhe for concedido alvará de loteamento, o seu preço atingi-rá valores muito mais elevados, tanto maiores quando mais acentuados os índices urbanísticos concedidos: nos subúrbios de Setúbal, Lisboa, Coimbra ou Porto, um terreno inculto e sem infra-estruturas pode ser re-vendido a preços entre os 500.000 € e os 5.000.000 € por hectare, consoante licenciado para a construção de moradias ou de apartamentos. São centenas de milhares, ou mesmo milhões de euros, em rendas apropriadas pelo loteador. Contraste-se este nosso regime comercial com o dos Países Baixos; o mercado imobiliário holandês é o que mais exemplarmente executa a retenção pública de mais-valias urbanísticas. Mesmo que se encontrem contíguos aos perímetros urbanos, os solos agrícolas holandeses são transaccionados a preço estritamente agrícola, posto que qualquer comprador privado sabe de antemão que futuros acréscimos de valor do solo, produzidos por via de loteamentos, reverterão para o erário público.

Pelo facto de as MVU resultarem de decisões ad-ministrativas e, no seu essencial, de um enorme inves-timento da comunidade, a política de solos dos países desenvolvidos consagra a sua posse pública. Nessas nações, ao proprietário cujos terrenos são urbanizados é reconhecido o direito de receber como indemnização apenas o valor agrícola inicial do solo, mas não o valor de

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urbanizável final que este último acumulou por alvará. Dito de outra forma, a sua legislação interdita o enri-quecimento “trazido pelo vento” às custas de planos de ordenamento e de alvarás de urbanização. Quase todos afinam pelo diapasão das medidas propostas pelo grande filósofo liberal John Stuart Mill6:

“Suponhamos que existe um género de renda fundiá-ria que tende a aumentar de valor sem qualquer sacrifício ou esforço da parte dos seus proprietários: esses proprie-tários constituem uma classe que enriquece passivamen-te às custas da restante comunidade. Neste caso, o Esta-do não estaria a violar o princípio da propriedade privada se recapturasse este incremento de riqueza à medida que ele vai surgindo. Isto não constituiria propriamente uma expropriação, mas apenas uma canalização em benefício da sociedade da riqueza criada pelas circunstâncias co-lectivas, em lugar de a deixar tornar-se o tesouro ime-recido de uma classe particular de cidadãos. Ora, este é justamente o caso da renda fundiária [dos solos rústicos que, ao serem reclassificados de urbanizáveis, acumulam mais-valias]”.

As jurisdições urbanísticas britânica, francesa, ho-landesa, alemã e escandinava — enfim, dos países que merecem ser emulados em matérias de progresso eco-nómico, social e territorial — poderiam, sem risco de incoerência, incluir nos seus preâmbulos estas palavras de Mill.

A legislação portuguesa não destoou demasiado des-tes exemplos mais evoluídos até à infeliz publicação do Decreto-Lei n.º 46 673 de 29 de Novembro de 1965. A partir de então o Estado Português não só deixou de reter as MVU dos alvarás que emitia, como nem sequer passou a cobrar taxas de urbanização suficientes para co-

brir os encargos das infra-estruturas públicas inerentes — por outras palavras, os loteamentos privados trouxe-ram consigo uma época de privatização dos réditos ime-recidos de urbanização, mas acompanhada pela socializa-ção de parte substancial das respectivas despesas. Con-trariamente ao que pensa a opinião pública portuguesa, as autarquias não têm nada a ganhar com a emissão de alvarás — pelo contrário, ao fazerem-no afundam-se em compromissos financeiros insustentáveis para criar e manter as novas infra-estruturas públicas que deveriam ter sido pagas com as receitas das MVU.

POLÍTICA DE SOLOS, DESENHO URBANO E QUALIDADE ARQUITECTÓNICA

Para que o desenho urbano seja de boa qualidade, o seu único objectivo deve ser criar a cidade ideal para os seus futuros habitantes, num horizonte de muitas ge-rações; ideal na estética, na funcionalidade, no carácter dos materiais e na arrumação do espaço. E por mais que variem, ao longo dos tempos, os ideais de cidade, todos eles devem aspirar à perenidade: um bom desenho urba-no é um investimento de longo prazo.

Mas se, por uma qualquer perversão da ordem le-gal, o desenho urbano passar a ter por único objectivo camuflar a maximização e apropriação privada de mais-valias, resulta uma obra sobrefacturada, que envelhece precocemente e em cuja construção desmazelada nin-guém desejará residir por muito tempo. Nos loteamen-tos privados o desenho urbano é um investimento de muito curto prazo — a médio prazo a degradação torna-se irreversível7. Para maximizar os proveitos de quem loteia amesquinham-se os gastos na matéria-prima, na mão-de-obra, no serviço de arquitectos e engenheiros. A lógica inerente aos loteamentos privados dita que só numa insignificante minoria deles — o segmento de alto luxo — se aposta na generosidade de espaços e na pere-nidade das obras8.

Neste contexto de privatização das MVU é difícil, para não dizer impossível, produzir malhas urbanas de boa qualidade para os segmentos médios e baixo da procura habitacional. Isto porque das três etapas de um processo de urbanização — o loteamento, a infra-estruturação e a edificação — a primeira é a que mais determina a qualidade do resultado final. Embora o acto de lotear não seja, em rigor, mais do que um proces-

CONTRARIAMENTE AO QUE PENSA A OPINIÃO PÚBLICA , AS AUTARQUIAS

NÃO TÊM NADA A GANHAR COM A EMISSÃO DE ALVARÁS. AO FAZEREM-NO

AFUNDAM-SE EM COMPROMISSOS FINANCEIROS INSUSTENTÁVEIS PARA CRIAR

E MANTER AS NOVAS INFRA-ESTRUTURAS PÚBLICAS QUE DEVERIAM TER

SIDO PAGAS COM AS RECEITAS DAS MAIS-VALIAS URBANÍSTICAS

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so jurídico-administrativo anterior a todas as obras, é ele que determina o traçado dos futuros arruamentos e, significativamente, a criação de MVU; será por isso defensável a municipalização dos loteamentos, ainda que se mantenham em mãos privadas a infra-estruturação e a edificação.

Os primeiros danos causados pela privatização dos loteamentos sentem-se ao nível do desenho urbano. As sua tarefas mais elementares— o traçado da trama de acessos viários e a definição de volumetrias por lote — são sequestradas pelos loteadores particulares, que procuram incrementar as suas mais-valias maximizando volumes construídos e minimizando espaços públicos. As novas urbanizações nascem quando, como e onde os loteadores determinam — a Lei é rica em alçapões que se abrem e fecham segundo a subjectividade arbitrária de decisores jurídico-administrativos. O loteador decide os volumes e as implantações, o jurista legitima, o político aprova, o funcionário despacha, e o loteador factura; e por fim o urbanista é consultado apenas para “alindar” a obra com os trocos que o loteador se digna retirar das MVU. O contorno das novas expansões deixa de obede-cer à racionalidade de um planeamento holístico da cida-de, passando a subordinar-se à malha cadastral agrícola preexistente — os bairros dão lugar às urbanizações “Quinta de Fulano” e ao “condomínio Herdade de Sicrano”, quando não às “residências Casal de Beltrano”, onde o bucolismo dos topónimos dá o toque final de sarcasmo à piada de mau gosto.

Em semelhante quadro legal não há espaço de ma-nobra para aplicar filosofias urbanísticas coerentes; a única palavra de ordem é maximizar MVU. Será por esse motivo que as grandes obras do urbanismo português

resultam de loteamentos anteriores a 1965. Os anéis de crescimento urbano de Lisboa atestam essa evolução: até àquele ano o urbanismo português logrou, com maiores ou menores atrasos, importar os modelos urbanísticos de vanguarda. O bairro iluminista da Baixa de Lisboa; os bairros haussmanianos das Avenidas Novas; os volumes modernistas do Bairro das Estacas; a pequena cidade-jardim da Encarnação; o modelo híbrido dos preceden-tes, no bairro de Alvalade — todos são, expressivamente, loteamentos públicos anteriores ao Decreto-Lei de 65. Desde então praticamente nenhuma expansão urbana de igual qualidade se voltou a realizar em Portugal. Quase sem excepção, apenas se fez pior — e mais caro.

Não obstante, foi justamente nas últimas quatro dé-cadas que a maioria da população portuguesa migrou para as cidades e, ao fazê-lo, erigiu subúrbios imensos onde outrora pouco mais havia que arrabaldes rurais. As novas vilas-dormitório da Amadora e de Sintra, reu-nidos, albergam hoje mais população que o município de Lisboa. As urbanizações de Vila Nova de Gaia abrigam mais residentes que o concelho do Porto. Estes números, só por si, não seriam dramáticos, se não se desse o caso de descreverem localidades cuja malha urbana foi pro-gramada para maximizar as rendas fundiárias do pro-motor e não a qualidade de vida do residente; de serem na maioria lugares onde quase ninguém — nem sequer os seus autores — desejariam viver.

RESSUSCITAR O URBANISMO, ELIMINANDO A CORRUPÇÃO

A ressurreição do urbanismo português exigirá uma profunda alteração da política de solos inaugurada há quatro décadas pelo Decreto-Lei n.º 46 673 e hoje manti-

da pela ordem jurídica vigente. Enquanto os loteamentos e as mais-valias urbanísticas continuarem nas mãos de promotores privados, os planos de ordenamento do ter-ritório não serão mais do que “mapas do tesouro” úteis para distribuir rendas (administrativamente criadas) de modo desigual entre os cidadãos, mas inúteis (quando não prejudiciais) para o bom exercício da arquitectura, da engenharia e do urbanismo.

A primeira tarefa que se coloca para reanimar o de-funto prende-se com a aplicação do princípio da indife-rença dos proprietários perante os planos de ordenamento do território: nenhum cidadão deve sofrer alterações admi-nistrativas no valor do seu património imobiliário por via da promulgação dos planos. No quadro jurídico em vigor qualquer proprietário de terrenos rústicos está sujeito a, consoante o arbítrio dos planeadores, ver o seu solo agrícola perder todo o valor económico se for afecto à Reserva Ecológica Nacional (REN), ou então, caso tenha sorte e suceda o inverso, ver o valor desse solo multiplicar-se por ser reclassificado de urbanizável (e portanto loteável). Esta situação gera inevitavelmen-te enormes tensões, patentes das discussões públicas de planos nas quais todos os proprietários reclamam o direito a urbanizar as suas parcelas com os mais altos índices possíveis, independentemente dos efeitos que isso produza sobre o desenho urbano. Ora, para que tal deixe de acontecer é necessário legislar a retenção pública das mais-valias urbanísticas, acompanhado pelo ressar-cimento da desvalorização de terrenos afectados à REN9, assegurando-se que em ambos os casos o proprietário conserva para si apenas o valor equivalente ao uso rural que efectivamente praticava nos dez anos anteriores à reclassificação, extrapolado à perpetuidade10. O novo re-

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gime de perequações falha duplamente nestes objectivos, pois embora em teoria procure ressarcir as menos-valias causadas pela REN, insiste em entregar a mãos privadas as mais-valias de urbanização.

A segunda tarefa na reanimação do urbanismo de qualidade passa pela proibição de loteamentos privados, à semelhança do preconizado no Town and Country Act britânico e na legislação holandesa, atribuindo à admi-nistração pública a exclusividade e o múnus de promover esses loteamentos segundo as directivas de um desenho urbano adequado ao interesse público. Tal medida re-presentaria em Portugal um regresso às políticas urba-nísticas que produziram os melhores bairros de Lisboa no século XX: Campo de Ourique, Alvalade, Restelo, etc. Dessa forma também se assegura que a expansão urbana se liberte dos constrangimentos do cadastro agrícola.

A terceira tarefa decorre da anterior e passa por as-segurar que o desenho urbano propriamente dito e a infra-estruturação sejam obras públicas às quais pos-sam concorrer os melhores ateliês, mantendo-se na posse pública as MVU e a estrita incumbência de lotear em função daquele desenho urbano. Desta forma quebra-se o regime oligopolista do mercado de serviços de planeamento ur-banístico.

A quarta tarefa consistiria na oferta pública de lotes já infra-estruturados, postos à disposição do mercado de construção, nos quais os interessados construiriam os edifícios singulares segundo as directivas gerais do desenho urbano prévio, concorrendo entre si pela oferta de melhores produtos construídos e não, como agora, procurando obter alvarás que mais não fazem do que criar pequenos monopólios de construção em localiza-ções mais ou menos privilegiadas.

A quinta tarefa, supletiva às precedentes mas ain-da assim da maior relevância, passaria por uma revisão aprofundada da tributação do património, tornando-a consubstancial ao planeamento urbanístico, actuando como instrumento de incentivo à aposta na boa quali-dade arquitectónica e de desincentivo ao subaprovei-tamento dos imóveis tanto por negligência como por especulação.

Sempre houve ao dispor dos portugueses soluções de eficiência comprovada para evitar a especulação e o caos urbanístico das últimas quatro décadas. Não foi por falta de recursos financeiros nem de competências técnicas, científicas e artísticas que se produziram os péssimos subúrbios onde hoje vive metade da população. Foi por deliberação política, e não por qualquer outra fatalidade, que se sacrificaram quarenta anos de expansão urbana à cultura rentista do alvará. Os resultados estão à vista. Até quando?

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Nota: este documento contém excertos de outros tra-balhos do mesmo autor.

NOTAS1 A Política de Solos instituída pelo Decreto-Lei n.º 794/76 de 24 de Novembro sempre foi, para todos os efeitos práticos, letra morta. O Código de Expropriações (DL 168/99), o Regime Jurídico de Loteamentos Urba-nos (DL 448/91) e o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (DL 380/99) configuram, na sua substância, a real política de solos do nosso país e limi-tam-se a seguir o espírito do diploma de 1965.2 Para isto contribuíram também os resultados da fase de bolha que caracterizou o ciclo imobiliário português entre 1995-2005, sobre a qual escreveremos noutra oportunidade.3 Tradução livre da expressão windfall gains — ganhos económicos não resultantes de actividades económicas produtivas da parte do beneficiário. Habitualmente re-sultam de manipulações políticas dos mercados econó-micos, de modo a introduzirem uma “renda de escassez”, um acréscimo artificial entre o custo de produção e o pre-ço de venda de um dado produto. Às tentativas de obter windfall gains a literatura económica anglo-saxónica dá o nome formal de rent-seeking activities, e o nome informal de bribery. 4 Assumindo que um terreno produz anualmente uma renda a, num contexto de taxas de juro de valor t, o seu valor à perpetuidade equivale à valorização financeira de uma série perpétua de prestações anuais, dado pela fórmula V0= a/t. Por exemplo, uma seara que produza uma renda anual de 300 €, num contexto de taxas de juro a 6%, valerá em termos financeiros V0= 300/0,06= 5000 €. Se for vendida a preços superiores a este valor, será porque a especulação sobre câmbios futuros colocou o

terreno sob a mira de revalorizações futuras.5 in Principles of Political Economy [1848], Book 5, Chapter II6 Quantas urbanizações portuguesas posteriores a 1965 serão capazes de sobreviver a quatro gerações de inqui-linos — um século? Quantas terão de ser evacuadas por fadiga ou degradação dos materiais? E por que teve de ser assim, quando os primeiros compradores pagaram pelos imóveis um preço muito superior ao do custo da melhor construção? Que ironia constatar que a maio-ria dos portugueses afectados pela bolha imobiliária de 1986-2006 não só pagou o quádruplo do preço justo pela sua habitação, como terá de provavelmente evacuá-la por fadiga estrutural antes mesmo de terminar de pagar a sua hipoteca.7 Estas excepções têm sido muito raras, e normalmen-te restringidas a condomínios para os segmentos altos do mercado. Nos casos em que o loteamento privado se destina a produzir edifícios de arrendamento, a manter na posse do loteador, este aposta no longo prazo e não se poupa a requintes. É o exemplo de um dos bairros mais luxuosos do mundo: Belgravia, em Londres. Ao lotearem-no em 1720, os duques de Westminster apos-taram no longo prazo, pois a sua estratégia passava pela manutenção da titularidade dos edifícios por vários sé-culos. Ainda hoje lhes pertencem e, graças à excelente qualidade do seu desenho urbano, alcançam no mercado de arrendamento uma cotação muito elevada e propi-ciam óptimos rendimentos. 8 Entre outras servidões e restrições de utilidade pú-blica.9 Vide nota de rodapé nº 5.

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CIDADE E SERVIÇOS PÚBLICOS NECESSIDADES, PRIORIDADES E (ALGUMAS) BOAS PRÁTICAS FERNANDO NUNES DA SILVACID

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VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2010 [81] DEMOCRACIA E SERVIÇOS PÚBLICOS – CIDADES

CIDADE E SERVIÇOS PÚBLICOS: NECESSIDADES, PRIORIDADES E (ALGUMAS) BOAS PRÁTICAS.FERNANDO NUNES DA SILVA | PROFESSOR UNIVERSITÁRIO. URBANISTA.

1. INTRODUÇÃOO tema dos serviços públicos volta a estar na ordem

do dia à medida que se vai conhecendo a extensão e as causas da actual crise financeira e económica global, mas também porque se tornou mais claro aos olhos da opinião pública e de alguns governantes que a dita “mão invisí-vel” era na prática bem concreta – os novos gestores para quem o lucro a curto prazo e a qualquer preço constituía o alfa e o ómega da economia – e que, longe de conduzir a uma optimização do funcionamento dos mercados, levou ao seu colapso à escala mundial. Se depois de tudo isto – e o que ainda está para vir - ainda haja quem continue a render-se aos cantos de sereia do neoliberalismo, que se conseguiu implantar como a ideologia dominante nas úl-timas três décadas, fá-lo-á apenas para salvar aquilo que ainda resta dos seus interesses particulares (sejam estes financeiros ou de poder político), mas perdeu grande parte (senão mesmo toda) da legitimidade política com que anunciava os “novos amanhãs que cantam”.

O avolumar dos destroços em que resultou o desig-nado “capitalismo de casino”, são demasiado duros e im-pressionantes para que se possa pensar num regresso, tão breve quanto possível, ao anterior funcionamento dos mercados financeiros e da sua (não) relação com a economia real. Se é certo que os arautos desta deriva de décadas se inibem agora de a apresentar como a “única solução” para o progresso da sociedade e a robustez da democracia – como proclamavam os catecismos neo-liberais ainda há pouco menos de 3 anos – e que já se

comecem a fazer ouvir algumas vozes críticas (mais ou menos tímidas) no interior dos partidos ditos “socialis-tas” e “sociais-democratas” - sinal claro que está a ter-minar o tempo dos que, aproveitando a “boleia” da moda liberal, os tinham tomado de assalto2 -, tal não significa que não haja ainda um longo caminho a percorrer, até porque abundam os “travestis” que, como sempre, se apressam a apanhar o “comboio” que lhes esteja a passar pela frente3.

De facto, não basta abjurar agora as “reflexões polí-ticas” de pacotilha com que a esquerda e o centro foram mimados, nos tempos em que tudo parecia correr pelo melhor no melhor dos mundos - ou pelo menos assim era apresentado –, no sentido de mostrar a inevitabilidade da privatização do Estado Social (no todo ou em parte, já que houve para todos os gostos) e a necessidade de uma gestão pragmática da coisa pública, sem a prejudicial in-terferência dos chamados “complexos de esquerda” (es-tes associados à exigência de transparência no exercício do poder, debate no interior dos partidos e na sociedade, além de um progressivo aprofundamento da democra-cia). Desde o “fim da História” até à anunciada extinção das diferenças entre “Esquerda” e “Direita”4, passando pela glorificação do capitalismo global como panaceia para ultrapassar o subdesenvolvimento de largas par-tes do Mundo e a consolidação do poder do “Ocidente”, tudo isto foi escrito, defendido e apresentado, como se de verdades incontestáveis se tratasse. Quem não abanasse afirmativamente a cabeça perante tão doutas “demons-

trações” do que eram as novas realidades históricas, só tinha uma de duas hipóteses de catalogação: ou continu-ava a pertencer aos fossilizados partidos “comunistas”, seus apêndices e similares; ou tinha-se remetido a uma posição niilista, anárquica ou de pura auto-satisfação intelectual, em qualquer dos casos sem vontade e inte-resse em participar na tomada do poder e na governação do Estado.

No que aos serviços públicos diz respeito, que melhor exemplo se poder tomar da sua progressiva desvaloriza-ção enquanto instrumentos do Estado para a promoção de uma maior equidade e igualdade sociais, que a sua “transformação” em “serviços económicos de interesse geral”, tal como foi teorizada e aplicada, nomeadamente pela União Europeia, pelos capatazes do neoliberalis-mo? De facto, a simples introdução do termo “serviços económicos” procurava, desde logo, afastar a ideia que a sua gestão poderia também obedecer a objectivos po-líticos, libertando-se por isso da lógica da rentabilidade económica que então se procurava introduzir. Daí que se passasse a designar por “clientes” os que sempre se tinham considerado “utentes”, associando a esses servi-ços públicos uma racionalidade empresarial em que só quem podia pagar tinha direito a ser servido, a não ser que pertencesse ao número dos marginalizados da socie-dade de consumo ou às camadas sociais menos solven-tes. O “Estado Social” passaria assim a ser um “Estado Assistencial”, cuja função primordial nestes domínios passaria apenas por garantir os serviços considerados

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mínimos, evitando-se assim uma degradação total dos sistemas de apoio e a consequente explosão social que tal poderia acarretar. Dos transportes à saúde, passan-do pela educação e os serviços a idosos, ou até mesmo a justiça e os serviços de segurança, tudo deveria passar a ser planeado e gerido segundo a lei do mercado, ainda que contemplando (em maior ou menor grau, consoante a herança histórica e cultural) formas diferenciadas de prestação de serviços para os ditos “insolventes”.

O modo como esta inversão do papel do Estado foi sendo apresentada e justificada é, por si só, digno de um tratado de doutrina política, ainda que por vezes os ar-gumentos apresentados tenham raiado a mais completa insensibilidade social e nos remetessem para os períodos áureos da revolução industrial, onde a exploração iníqua da esmagadora maioria da população se considerava não só natural, como a condição necessária para o progresso da economia. Todavia, este verdadeiro recuo na cons-trução de uma sociedade mais justa e solidária, parece não ter perturbado grandemente os intelectuais do ne-oliberalismo, tal eram as suas fortes convicções quanto à futura supremacia universal do capitalismo e ao “fim da História”. Com a queda do muro de Berlim e a implo-são que se lhe seguiu das autocracias do Leste europeu, as portas estariam finalmente abertas para uma nova ordem internacional unipolar, onde os valores do mer-cado (mesmo que este não tivesse condições objectivas de funcionamento em grande parte do Mundo) seriam os únicos a merecerem respeito e a conduzir ao “progresso” das sociedades.

Hoje, em pleno furacão da crise financeira e econó-mica, e após a significativa vitória de Barack Obama nas presidenciais dos EUA e o surgimento de novos movi-

mentos sociais que escapam ao controlo partidário tra-dicional, quão longe nos parecem estas profecias e quão vãs as esperanças que acalentaram aos mais despreveni-dos ou incultos politicamente.

O tempo é pois de mudança, não só porque sem ela a crise não será ultrapassada, como também porque as “soluções” do passado, tanto à direita como à esquerda, não são as adequadas e não mobilizam as pessoas. Neste contexto, e num mundo cada vez mais urbanizado5, as questões relacionadas com a governância das cidades e metrópoles ganham por isso um novo protagonismo e, nelas, as que dizem respeito aos serviços públicos as-sumem um carácter diferenciador e uma urgência sem par. Justifica-se por isso apresentar algumas reflexões quanto ao modo como a Esquerda deve lidar com esta problemática e que desafios tem pela frente.

2. OS GRANDES DOMÍNIOS DE INTERVENÇÃO

Não cabe, num pequeno texto de reflexão, abordar todos os domínios onde a intervenção da administração pública se deve fazer sentir ao nível local. A enorme va-riedade de problemas e de necessárias áreas de actuação dos poderes públicos na cidade e demais espaços urbanos são por si só impeditivos de um tratamento geral, mini-mamente aprofundado, tecnicamente fundamentado e objectivo. Assim, tendo por base a situação que se vive na maioria das cidades e municípios urbanos do país, seleccionámos quatro grandes domínios de interven-ção onde a actuação da administração nos parece mais relevante, quer no sentido de assegurar a toda a popula-ção, em condições de igualdade ou equidade, o acesso e o usufruto de bens e serviços que, pela sua importância

para a qualidade de vida nos espaços urbanos, devem ser entendidos como serviços públicos, quer porque é aí que se joga muito do que se designa por coesão social e territorial.

Como seria lógico, começamos por referir os ser-viços que são essenciais para o normal funcionamento dos espaços urbanos ao nível do saneamento básico e do abastecimento de água, bem como os que se relacionam com as condições de habitabilidade desses espaços, isto é, com o habitat, entendido como envolvendo a habita-ção propriamente dita e o seu espaço envolvente mais próximo.

Por outro lado, o envelhecimento da população e a cada vez mais evidente entrada da população feminina no mercado de trabalho, colocam novos problemas e de-safios ao que podemos designar como políticas urbanas para a população não activa (idosos e crianças), que inci-dem tanto no atendimento das suas necessidades espe-cíficas, como no modo como estas camadas da população são integradas na vida urbana quotidiana.

Por sua vez, face à crescente urbanização do territó-rio, caracterizada entre nós por uma dispersão acentuada dos espaços urbanos essencialmente residenciais e pela emergência de novas centralidades (ainda que monofun-cionais ou incompletas na sua maioria6), os problemas da acessibilidade e as questões associadas à mobilidade ur-bana, apresentam-se hoje como temas indissociáveis da coesão social e da equidade de acesso a bens e serviços.

As questões essenciais que se colocam em qualquer um destes domínios de intervenção dos poderes públicos, nomeadamente ao nível local, têm sobretudo a ver com a garantia do acesso universal a esses bens e serviços, a promoção da sua eficiência (no sentido de providenciar

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as melhores soluções técnicas ao menor custo possível, tanto na fase de planeamento e construção, como no seu funcionamento e manutenção), e ainda em assegurar a sua necessária e continuada inovação. Com efeito, tra-tando-se quase sempre de serviços que se configuram como monopólios naturais, a sua privatização (tal como foi defendida e, em alguns casos prosseguida, no tempo em que vigorava o pensamento único dos neoliberais na administração do Estado) conduzirá, inevitavelmente, não só à marginalização de importantes camadas da po-pulação quanto ao seu acesso, como também a uma cer-ta estagnação em relação à procura de melhores e mais eficientes soluções, em particular quando se consegue conquistar uma posição dominante no mercado.

Deste modo, é particularmente importante que se evite a utilização ou apropriação segredada destes ser-viços em termos sociais, isto é, que o preço estabelecido para se lhes aceder seja impeditivo da sua utilização por toda a população que deles necessita. De facto, ao cingir o seu acesso a quem o possa pagar, introduz-se uma ina-ceitável segregação social em relação ao atendimento de necessidades básicas da população, para além de que, na situação inversa, em que estes serviços públicos são formatados para acudir apenas à população com me-nores recursos económicos, se criam condições para a sua progressiva degradação. É que, ao fazer com que a população mais abastada, instruída e exigente, deixe de utilizar tais serviços, o seu funcionamento orientar-se-á forçosamente para menores níveis de exigência de qualidade. Ao invés, a sua utilização pela população com mais poder de compra (e portanto mais apta a escolher alternativas), maior capacidade crítica e poder reivindi-cativo, introduz um factor de melhoria nas prestações e

conduz a uma maior atenção das entidades de gestão e de tutela quanto ao seu funcionamento.

No que se refere ao saneamento básico e ao abasteci-mento domiciliário de água potável, as grandes questões que hoje se colocam nestes domínios prendem-se menos com o seu nível de cobertura que com o preço de forne-cimento dos respectivos serviços. De facto, em relação ao primeiro aspecto muito foi realizado nos anos que se seguiram à adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia (sobretudo devido à disponibili-zação de avultados fundos comunitários, tanto na fase de pré-adesão como, essencialmente, mercê do Fundo de Coesão após a adesão), tendo-se já atingido um grau de cobertura que ultrapassa os 80% dos alojamentos, sendo que as áreas não cobertas se localizam sobretudo nos espaços rurais de povoamento disperso e com muito baixas densidades demográficas. O problema no âmbito da cobertura em termos do saneamento básico é pois de outra ordem, relacionando-se quer com as soluções téc-nicas a adoptar para concluir o grau de cobertura destes serviços, mas sobretudo com o baixo nível de tratamento de águas residuais, sejam domésticas ou industriais, ape-sar dos elevados montantes dispendidos a fundo perdido

pelo Estado e pela UE no financiamento da construção de estações de tratamento de esgotos – que depois ficam inoperacionais por falta de pessoal técnico preparado para assegurar o seu funcionamento e manutenção – e em programas de canalização e tratamento de esgotos industriais ou agro-industriais7. Mas isso é mais um pro-blema de polícia que de política.

Neste domínio do abastecimento de água e do sane-amento básico, a questão que actualmente surge como sendo a mais problemática e com maiores impactes em termos sociais, é outra, respeitando ao progressivo custo de prestação dos serviços. Com efeito, começam agora a ser evidentes os custos da dispersão das expansões ur-banas realizadas ao sabor dos interesses privados e sem que estes assumissem a sua quota parte nos custos gerais de infra-estruturação8, bem como da demagogia popu-lista de levar as redes de abastecimento e saneamento a qualquer lugarejo, sem analisar soluções técnicas alter-nativas, recorrendo-se habitualmente a tecnologias e maquinaria para as quais boa parte dos municípios não tem quem as saiba operar eficientemente.

Este verdadeiro descalabro no planeamento e na selecção de tecnologias e de projectos adequados a

NO QUE SE REFERE AO SANEAMENTO BÁSICO E AO ABASTECIMENTO

DOMICILIÁRIO DE ÁGUA POTÁVEL, AS GRANDES QUESTÕES QUE HOJE

SE COLOCAM NESTES DOMÍNIOS PRENDEM-SE MENOS COM O SEU NÍVEL

DE COBERTURA QUE COM O PREÇO DE FORNECIMENTO DOS

RESPECTIVOS SERVIÇOS.

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cada realidade concreta, tem conduzido ora a um dé-fice crescente na prestação desses serviços, suportado pelas autarquias locais quando estas se recusam, por ra-zões sociais, a aumentar o preço da disponibilização do serviço a toda a população, ora à sua transferência para empresas privadas ou mistas9, que assumem esta pres-tação como um negócio que tem de ser rentável, o que tem conduzido ao consequente aumento de preços, por vezes mesmo de forma brutal10. Não faltará muito para que, nos municípios mais endividados e que se deixaram seduzir pela mercantilização destes serviços públicos, se venha a assistir a verdadeiras roturas sociais ou á pro-funda degradação da qualidade dos serviços prestados. A realidade fria dos números a isso irá obrigar.

Contrariamente ao que tem sido propagado, e quase imposto aos municípios, pelo discurso e práticas oficiais do governo, a solução para estes problemas passa mais pelo regresso a soluções “feitas por medida” do que pela constituição de grandes empresas públicas (subsidiárias do monopólio das Águas de Portugal) cuja lógica seja a maximização dos proveitos. A base de partida deverá ser antes, e sempre, a realidade local, tanto no que se refere às características de povoamento e das bacias hidrográ-ficas, como quanto ao prosseguimento de objectivos de optimização do funcionamento técnico dos sistemas, o que pressupõe mais estudo e reflexão e menos a adopção cega de soluções pré-fabricadas e tecnologias importa-das de outros contextos. De facto, é hoje demonstrável que a anterior ideologia de que quanto maior o sistema menores seriam os seus custos marginais, não só está errada em situações de baixa densidade de urbanização, como, graças ao avanço tecnológico verificado nas cha-madas tecnologias “suaves” e “semi-colectivas”, baseadas

em processos ambientalmente mais sustentáveis, se con-seguem soluções muito mais eficazes e eficientes para responder às necessidades das populações dessas áreas.

Por outro lado, é imperioso que, embora no respeito pelos condicionalismos técnicos, seja a política a coman-dar o estabelecimento dos preços de acesso e disponi-bilização destes serviços, associando aí considerações ambientais e sociais. Rejeitar em absoluto a possibilidade de descriminações positivas nestes domínios em nome de uma racionalidade financeira estrita, é algo que co-lide com o real exercício da democracia ao nível local e com a procura de soluções inovadoras que escapem aos poderosos lobbies que se movimentam neste sector de actividade.

O segundo grande domínio de intervenção diz res-peito às necessidades da população não activa, muito especialmente o que se refere aos idosos e às crianças. O aumento da esperança de vida, por um lado, e o alarga-mento do mercado de trabalho a ambos os membros do casal, aliados ao desaparecimento do sistema de família alargada onde várias gerações coexistiam, conduziram ao surgimento de novas necessidades sociais que, se não encontram respostas adequadas em serviços públicos vocacionados para estes estratos da população, acabam por os marginalizar da vida urbana e social – no caso dos idosos – ou constituir um encargo suplementar, por ve-zes incomportável, para as famílias de menores recursos – caso do acompanhamento e guarda das crianças, tanto nos primeiros anos de escolaridade como, sobretudo, nos primeiros anos de vida.

Principalmente nas grandes cidades do nosso país, a solução para este tipo de problemas tem sido remeti-da para instituições privadas ou de solidariedade social,

ocupando estas um lugar demasiado preponderante em resultado da demissão dos poderes públicos em dispo-nibilizar os equipamentos necessários. O problema tem vindo a assumir uma importância crescente com o agra-var da crise económica, ficando muitas famílias e idosos privados do acesso a serviços que lhes proporcionem uma resposta adequada às suas necessidades quotidianas. Por outro lado, no caso dos idosos, o recurso sistemático a lares – muitas vezes transformados em verdadeiros “depósitos” de pessoas com dificuldades várias de se auto governarem – tem privado estas pessoas de uma verda-deira socialização e contacto com a vida urbana.

O Estado, aos seus diferentes níveis de actuação e em particular ao nível local, tem aqui um papel não negli-genciável no fomento da coesão social e na integração destas camadas da população na sociedade. Desde logo ao providenciar espaços de encontro e de assistência mais personalizada e humana, mas também ao favore-cer, nomeadamente no que às crianças diz respeito, a sua integração social num contexto interclassista. Por outro lado, ao criar as condições para que idosos e crianças possam conviver no espaço urbano com as outras cama-das da população, promove-se igualmente a consciência de que não é só a população activa que conta na sociedade actual, para além de contribuir para que esta se sinta mais responsável pelas gerações que a precederam ou que se lhe vão seguir.

Esta forma de abordar o problema tem óbvias con-sequências no modo como se planeiam e constroem os novos espaços urbanos e se intervém na cidade conso-lidada. Com efeito, abordar a cidade na perspectiva do seu usufruto por todos – e não apenas para os que estão em idade activa – implica que esta seja pensada de modo

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mais humano, quer em termos de acessibilidade, quer na concepção dos espaços de encontro e lazer e da sua integração próxima com as áreas residenciais e de acti-vidade urbana. Favorece-se assim um urbanismo de pro-ximidade, onde as várias funções e actividades urbanas podem coexistir e onde a especialização segregadora dos espaços dá lugar a uma mistura funcional, facilitadora duma vivência urbana e social plena.

Remeter a solução destes problemas para a oferta mercantil de serviços dedicados a estas duas camadas da população, mais não faz que as separar da própria vida urbana, como que escondendo-as do próprio pulsar da cidade e da diversidade de actividades e espaços que lhe são característicos.

A questão da acessibilidade a bens e serviços, para não falar da própria facilitação dos encontros sociais, tem vin-do a assumir, por sua vez, uma importância crescente à medida que o território se urbaniza de forma descontínua e especializada funcionalmente. Este problema não pode por isso continuar a ser equacionado como se de apenas se tratasse de assegurar a necessária mobilidade dos acti-vos entre os seus locais de residência e de trabalho, como foi o caso durante grande parte do século passado. A mobilidade tornou-se hoje mais um direito urbano, ainda que este deva ser encarado como uma opção e não como uma obrigação, sem a qual não se pode aceder a bens, serviços e contactos sociais que caracterizam a moderna vida urbana. Quer isto dizer que se devem criar as con-dições para que a população se possa deslocar no espaço urbano – cada vez mais extenso e diferenciado – sem que isso signifique uma obrigatoriedade quotidiana que, a não ser cumprida, corresponda a uma situação de quase marginalização da urbanidade e da vida cívica.

Daqui decorrem duas importantes consequências. Por um lado, os serviços de transporte, e em particular os colectivos, devem funcionar de forma a cobrir os ter-ritórios de interacção urbana mais intensa, segundo um sistema tarifário que não seja impeditivo do seu acesso por parte de toda a população que deles necessita, nome-adamente para as deslocações que se efectuam por mo-tivos outros que o trabalho e o ensino. Por outro lado, os espaços urbanos devem ser dotados dos necessários equipamentos e serviços de proximidade, de modo a não implicar que o seu acesso se tenha de fazer sistemati-camente através do recurso a meios mecanizados. Tal implica, por sua vez, que o sistema de acessibilidades nesses espaços contemple igualmente os modos suaves (isto é, o andar a pé ou de bicicleta), se não em condições mais favoráveis que as oferecidas pelo sistema viário destinado aos automóveis, pelo menos em igualdade com estes.

Sucede porém que o primeiro destes objectivos só é possível ser atingido através do recurso a um plane-amento e gestão integrados dos meios de transporte, o que colide de sobremaneira com as lógicas empresariais que reduzem os potenciais utentes do sistema de trans-portes à mera condição de clientes, impedindo ou difi-cultando assim o seu acesso universal. Daqui resultam situações de marginalização de significativas camadas da população do exercício da mobilidade, ficando esta restringida à necessidade básica de deslocação para o emprego ou a escola. A democratização da mobilidade urbana não pode por isso ser remetida, em exclusivo ou maioritariamente, para a solução individual do recurso ao automóvel, até porque, mesmo na Área Metropolita-na de Lisboa (de longe a que tem a população com maior

poder de compra do país), ainda existem cerca de 25 % das famílias que não dispõem de veículo próprio.

O facto de ainda não estarem em funcionamento en-tidades públicas que planeiem, organizem e giram de forma articulada (directamente ou através de concessão de serviço público) os vários modos de transporte públi-co - ao contrário do que sucede em todos os outros países da UE - é significativo do atraso em que se encontra o nosso país nesta matéria e é também revelador do poder que ainda detêm as empresas privadas de transporte nes-te domínio. Claro está que, numa lógica neoliberal, tal situação não causa quaisquer problemas de consciência, pois quem pode pagar o serviço (os ditos “clientes”) ou quem dele prescinde porque é utilizador do transpor-te individual, acaba por satisfazer as suas necessidades de deslocação. Mas a que custo para a sociedade no seu todo? Os crescentes impactes ambientais e dos custos de congestionamento de tráfego (que ninguém se preocupa em contabilizar) aí estão para lembrar que esta “solução” não é sustentável a prazo mais ou menos curto.

Os recentes aumentos verificados no preço dos com-bustíveis, com as consequências que tiveram na economia das famílias e das empresas, vieram colocar na ordem do dia a necessidade de arrepiar caminho e trabalhar em so-luções mais eficientes e sustentáveis. Ora tal só é possível seguindo uma lógica de integração e complementarida-de entre todos os modos de transporte – dos públicos ao privado, contemplando igualmente os modos suaves – e com a implementação de um sistema de cobertura dos custos do sistema que faça com que todos os seus bene-ficiários contribuam para o seu funcionamento, sejam estes beneficiários directos (os que o utilizam, qualquer que seja o modo de transporte em que se deslocam) ou

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indirectos (os empregadores e as actividades comerciais que beneficiam da melhor acessibilidade que o sistema proporciona). Daí resulta não só a necessidade de articu-lar as políticas de transporte com as de estacionamento (principal fonte potencial de receita para o sistema por parte de quem utiliza preferencialmente o automóvel), como também que se garanta a implicação dos vários níveis de administração do Estado (central, regional e local) na cobertura dos eventuais défices de exploração do sistema de transportes colectivos, dado que, em ne-nhum país europeu, as receitas tarifárias são suficientes para cobrir os custos do seu bom funcionamento.

Como se pode facilmente concluir do anteriormente exposto, não é através do simples jogo do mercado que se consegue dar uma resposta socialmente aceitável aos problemas que se colocam nos três grandes domínios (brevemente) analisados. A disponibilização destes ser-viços não pode ficar à mercê dos lucros que deles se po-derão (eventualmente) retirar, devendo antes obedecer ao prosseguimento de objectivos de equidade e coesão social, o que só uma intervenção activa do Estado per-mite assegurar.

Contrariamente ao que os arautos do neoliberalismo têm propagado, há bons exemplos de políticas públicas nestas áreas de intervenção que, não só respondem às necessidades da população, como se vieram a revelar menos dispendiosas para a colectividade no seu todo. A eficácia económica está longe de ser uma constante da gestão privada deste tipo de serviços. Bem pelo contrá-rio. Nos países onde os mecanismos de controlo demo-crático estão menos implantados na sociedade e onde o Estado é menos eficiente nas suas funções de regulação do mercado (como é o nosso caso), a transferência do

fornecimento desses serviços para empresas e entida-des privadas tem conduzido, quase sempre, a maiores custos para os poderes públicos e à marginalização de importantes camadas da população em relação ao acesso a esses bens e serviços, por norma as mais carenciadas. Disso daremos conta no ponto seguinte, ainda que suma-riamente, através de alguns exemplos de boas práticas.

3. EXPERIÊNCIAS INOVADORAS COM SUCESSO

Para ilustrar alguns das políticas e tipos de inter-venção expostas anteriormente, escolhemos três casos que dão corpo a outras tantas realizações que materiali-zaram os pontos de vista defendidos. Trata-se somente de mostrar que não é por falta de recursos financeiros ou por ausência de propostas concretas que não se pro-cessam as mudanças necessárias ao nível de algumas das políticas urbanas que maior impacte têm no quotidiano das pessoas. O problema é antes de mais político e de falta de uma liderança que não se resigne à frase que Margaret Tatcher consagrou para fazer aceitar a sua agenda neoliberal: “não há alternativas”. Não é verdade. As alternativas de política e de prática existem, o que não há é quem as protagonize … por enquanto!

3.1 – Urbanismo sustentável: o bairro Vauban em Freibourg.

Quando em 1993 o município de Freibourg, na re-gião de Baden-Württemberg na Alemanha, tomou a decisão de renovar a antiga área ocupada pelas casernas militares situadas no sul da cidade – entretanto dispo-nibilizadas pela partida das tropas francesas que aí esta-cionavam no âmbito da NATO -, estava longe de pensar

que se iria confrontar com um movimento de cidadãos que, contrariamente ao habitual na pátria dos inventores do veículo a motor de explosão, pugnava pela construção de um bairro ecológico sem automóveis.

Assim, ao invés de mais uma promoção imobiliária destinada á classe média e média alta, o funcionamento pleno da democracia e dos seus mecanismos participa-tivos ao nível local conduziu, primeiro, à rejeição dos objectivos urbanísticos municipais e à entrega da pro-moção da urbanização da zona a uma empresa de eco-nomia mista, para, depois, apresentar um novo plano de urbanização, elaborado no contexto de um programa de investigação europeu (o LIFE), cujo objectivo central era o de promover acções de desenvolvimento urbano sustentável. Em 1997 o plano é aprovado pelas autorida-des municipais, após um processo de elaboração que não só contou com um elevado envolvimento da associação Fórum-Vauban (entretanto constituída por estudan-tes11 e cidadãos da cidade), como com o apoio técnico e político do próprio município, que acabou por confiar a esta entidade a condução do processo de participação conducente á renovação urbana da área, para além de ter disponibilizado os seus técnicos para, em diálogo com os futuros habitantes do bairro e de cada rua, definirem o ambiente urbano pretendido e elaborarem os respectivos projectos de execução dos espaços públicos e das zonas verdes.

No ano seguinte deu-se início á construção do que é hoje um bairro modelo ao nível da sustentabilidade urbana, habitado por uma população de cerca de 5 mil habitantes e com mais de 500 empregos.

Para além da aplicação de toda a parafernália tecno-lógica associada ao aquecimento solar, à poupança de

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energia nos edifícios por métodos passivos, à reciclagem das águas residuais domésticas para rega e limpeza das ruas, à utilização de materiais de construção naturais ou produzidos com baixo consumo energético, à mistura de funções no interior do bairro ou à presença de espaços mais naturalizados no seu seio12, o que mais chama a atenção no bairro é a (quase) total ausência de automó-veis. Não que a população residente não seja possuidora de uma elevada taxa de motorização (ou não estivésse-mos nós na Alemanha!), mas esta preferiu “guardá-los” em dois parqueamentos colectivos existentes na peri-feria do bairro, em vez de os ter ao pé da porta. Con-seguiu-se deste modo que as ruas fossem desenhadas como espaço de convívio e de lazer – sobretudo para as crianças e idosos – e como tal utilizadas. Por sua vez, a acessibilidade ao centro da cidade é assegurada por uma linha de eléctrico – que atravessa o bairro longitudinal-mente inserida num grande “boulevard”, que por sua vez estrutura todo o sistema de acessibilidades no seu interior – e por uma rede ciclável que permite chegar ao centro em 15 minutos.

O outro aspecto marcante do bairro é a sua tipologia urbana, onde se conseguiu conciliar a forma moradia com a habitação plurifamiliar, resultando um conjun-to com carácter marcadamente urbano – aliás bem patente nas lojas e serviços que ocupam o piso térreo dos edifícios que marginam o “boulevard” – e elevada densidade de ocupação, factor essencial à viabilização do transporte colectivo e á redução dos custos de infra-estruturação e urbanização. A concepção e formatação dos espaços livres, sejam ajardinados ou de praça, re-sultaram igualmente de uma ampla discussão com os futuros moradores, estando de tal modo articulados com

a área edificada que constituem uma rede de percursos pedonais e espaços de lazer animada e segura. Refira-se ainda que este processo participativo evitou a repetição monótona dos projectos paisagísticos e conduziu a que grupos de residentes se encarreguem de “embelezar” e cuidar dos espaços de jardim que estão mais próximos da sua residência.

Ao nível social, o bairro Vauban também foi inovador, não constituísse esta questão uma das componentes do conceito de desenvolvimento sustentável. Assim, para além de uma residência assistida destinada a pessoas com problemas do foro psíquico e mental, bem como de apartamentos para idosos a viver sós integrados em edifícios plurifamiliares - em que um dos inquilinos tem a seu cargo, em regime de voluntariado, o acompanha-mento e o apoio ao idoso – o bairro manteve algumas das antigas casernas que transformou em residências de estudantes através de um processo assaz curioso e ino-vador. Após as obras de restauro da estrutura, fachadas, cobertura e instalação de novas redes domiciliárias de infra-estruturas, os apartamentos foram alugados por um valor simbólico a estudantes que se encarregaram de os reabilitar internamente. Ao fim de um período de três anos nesta modalidade de aluguer (que implicava igualmente 105 horas de trabalho voluntário nas obras de reabilitação do edifício), o apartamento reverte para o município, que então o aluga a novos ocupantes universi-tários de acordo com os valores normais praticados nas residências de estudantes. Conseguiu-se assim recuperar umas quatro casernas com menos investimento público e disponibilizá-las a estudantes de menores recursos, mas com capacidade de realizar os trabalhos de reabilitação de cada apartamento.

A restante promoção imobiliária do bairro foi so-bretudo conduzida pela cooperativa de habitação social entretanto constituída (a GENOVA), a qual assegurou o financiamento bonificado da primeira operação de cons-trução de 36 alojamentos, a que se seguiu uma outra de 37, ficando depois responsabilizada pela construção e comercialização de metade dos fogos a construir no bairro. Os objectivos da cooperativa, para além de aceder aos financiamentos públicos que apoiam a construção de habitação a baixo custo, pautam-se igualmente por expandir o movimento cooperativo e favorecer a coe-xistência de várias gerações e estratos sociais no bair-ro, permitindo ainda a manutenção de pessoas idosas nos seus apartamentos assim como o acolhimento de pessoas com deficiências motoras. A construção de cada edifício é precedida da inscrição de novos membros na cooperativa, os quais discutem depois os pormenores do empreendimento por forma a, respeitando as regras relativas ao custo máximo de construção e ao consumo de energia, o adaptarem às suas necessidades. Só após o acordo entre todos os inquilinos do futuro edifício e da certificação ambiental do projecto é que se inicia o processo conducente á sua construção.

O bairro Vauban é um verdadeiro laboratório à escala real do que deve ser um urbanismo sustentável, tanto nas suas diversas dimensões físicas, como sociais e económi-cas. É também a demonstração de que, numa democracia participativa, há alternativas realistas à promoção imo-biliária especulativa e à segregação social e funcional.

3.2 – Bilhete de rede e bicicletas públicas: o caso de Barcelona.

Como todas as grandes cidades europeias, Barcelona

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tem um problema de mobilidade urbana. Todavia, ao invés de encarar este facto como uma fatalidade, tem vindo a desenvolver um conjunto articulado de políti-cas e iniciativas que, se não têm resolvido o problema, têm pelo menos o grande mérito de evitar o seu agra-vamento e de introduzir sinais de esperança quanto à sua possível solução. Na verdade, intervir na mobilidade em tecidos urbanos consolidados e densos, concebidos e construídos numa época em que o automóvel ainda não tinha feito a sua aparição na cena urbana – como é o caso da quase totalidade das cidades do Velho Continente – é não só um desafio exigente e que faz apelo à mais criativa das imaginações, como se trata de um exercício pleno de condicionantes, que resultam não só da própria aceitabilidade pública das medidas a tomar como, sobre-tudo, das características físicas da sua malha urbana e da distribuição espacial das funções e actividades urbanas existentes. Com efeito, a margem de manobra é nestes casos muito menor do que aquela que respeita a espaços urbanos planeados e construídos no tempo presente. As possibilidades de alterar ou adaptar a rede de espaços de comunicação ou a localização de usos, são aqui muito reduzidas, sendo frequente o conflito entre o desenho de soluções técnicas e a sua viabilidade de concretização no terreno. Daí que, em muitas situações, mais do que a introdução de novos elementos de infra-estrutura de transportes, seja a melhor gestão da oferta existente que se afigura como a intervenção mais realista e eficaz.

Após a realização de um importante conjunto de obras viárias por ocasião da realização dos Jogos Olímpi-cos de 1992 – que contribuíram, sobretudo, para desviar o tráfego de atravessamento regional e internacional da cidade mais consolidada, e permitir um maior contacto

desta com a frente de mar -, Barcelona enveredou por uma política de gestão da mobilidade, visando a melhoria e atractividade do sistema de transportes colectivos e a promoção dos modos suaves, nomeadamente em comple-mento daqueles e para as deslocações de curta distância. É neste contexto que surgem as grandes intervenções na rede de espaços pedonais; a implementação de uma polí-tica de estacionamento articulada com a oferta de trans-portes colectivos e o uso do solo; o reforço da cobertura espacial e temporal do serviço de transportes colectivos, bem como a sua integração funcional e tarifária a partir da criação de uma entidade pública única que planeia e gere todo o sistema à escala metropolitana (a ATM – Au-toritat del Transport Metropolità) e, mais recentemente, a introdução do serviço de bicicletas públicas.

No que se refere à integração do sistema de trans-portes colectivos, basta salientar que por cerca de 0,75 € se pode viajar durante 1h15 em toda a rede, a qual compreende os autocarros, eléctrico e metro, mas tam-bém o serviço de comboios suburbanos e os funiculares. As ligações entre os vários modos de transporte estão devidamente articuladas e, nos pontos de transferência mais importantes, as instalações de apoio ao passageiro

são exemplares, quer pelo conforto de que dispõem quer pela informação que proporcionam. Para além disso, a generalização da informação em tempo real da situa-ção respeitante aos próximos veículos que servem uma dada paragem, aliada a uma boa e legível informação das correspondências que se podem realizar a partir de cada paragem, é um precioso auxiliar para o utente po-der decidir qual a linha que vai utilizar, não só em função do seu local de destino, mas também do tempo estimado para o alcançar, consoante opte por uma ligação mais directa ou por outra com um ou dois transbordos. O pró-prio sistema tarifário e o de bilhética adoptados facilitam de sobremaneira esta agilização do funcionamento do sistema. Com efeito, ao contrário do que se fez entre nós, com o desenvolvimento e posterior compra de um sistema sofisticado feito à medida (e daí o seu elevado custo, as constantes adaptações de que foi alvo13, e o seu clamoroso falhanço no que se refere à integração tarifá-ria14), em Barcelona seguiu-se o “velho” (mas eficiente) sistema da tarjeta em cartão prensado que tanto dá para 10 viagens, como para os passes mensais, trimestrais, semestrais ou anuais, consoante o valor que foi pago, cartão esse que é aceite em todos os modos de transporte

O PRÓPRIO SISTEMA TARIFÁRIO E O DE BILHÉTICA ADOPTADOS FACILITAM A

AGILIZAÇÃO DO FUNCIONAMENTO DO SISTEMA. AO CONTRÁRIO DO QUE SE FEZ

ENTRE NÓS, COM O DESENVOLVIMENTO E POSTERIOR COMPRA DE UM SISTEMA

SOFISTICADO FEITO À MEDIDA, EM BARCELONA SEGUIU-SE O “VELHO”

(MAS EFICIENTE) SISTEMA DA TARJETA EM CARTÃO PRENSADO

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que fazem parte da rede metropolitana sem quaisquer tipo de problemas.

Mas a maior e mais recente inovação foi a imple-mentação de um sistema de bicicletas públicas para os residentes na área metropolitana, o qual permite que este modo de transporte seja utilizado, mediante o pagamento de uma assinatura (mensal, semestral ou anual) como veículo para deslocações de curta distân-cia e complemento dos transportes motorizados, sejam públicos ou privados. O sucesso do sistema reside pois nesta sua função de complementaridade. Em vez de ter sido concebido como alternativa global à utilização do automóvel, como tem sido defendido entre nós pelos radicais “ambientalistas”, a bicicleta pública destina-se essencialmente a fornecer um modo de transporte para as curtas distâncias ou para as deslocações que se fazem a partir do local de trabalho ou de lazer, integrando-a desse modo na oferta global do sistema de transportes públicos. A limitação da sua utilização a períodos de uma hora (a partir do qual é cobrada uma tarifa dissuasora), aliado ao facto de só os residentes a ele terem acesso15, mostra bem o conceito que está subjacente à implemen-tação do sistema.

Por outro lado, ao invés de se ter construído uma dispendiosa (e quase sempre ineficaz) rede ciclável, op-tou-se por alargar as vias reservadas aos autocarros16 ou pela junção de uma nova via a estes espaços canais (quando para tal existia espaço viário disponível e a elevada frequência de autocarros justificava a segrega-ção das bicicletas por motivo de segurança), do lado do passeio, para garantir uma maior separação em relação ao tráfego automóvel, ou ainda pela marcação de uma via ciclável nos passeios mais largos. Deste modo, com

menor investimento, tirou-se partido da rede de espa-ços canais mais protegidos do automóvel, em vez de se segregar espacialmente os circuitos das bicicletas, o que conduz habitualmente à definição de circuitos que têm pouco interesse para os utilizadores quotidianos deste modo de transporte.

Como se pode facilmente constatar para quem visita Barcelona, o sistema funciona e tem um sucesso assina-lável. Para tanto bastou que este fosse pensado de forma integrada com a restante oferta de transportes colec-tivos e não como uma mera iniciativa propagandística, destinada a alimentar estatísticas de km de vias cicláveis, que depois poucos utilizam, e quando o fazem é essen-cialmente por motivos de lazer.

3.3 – Crianças e idosos: actores de mudança social.Uma cidade é tanto mais saudável e segura quan-

to consegue integrar e favorecer a sua população mais indefesa: as crianças e os idosos, os elos mais fracos da cadeia social. Quase se poderia construir um índice de qualidade (ou de sustentabilidade) urbana a partir do modo como estes dois estratos populacionais são trata-dos nas cidades de hoje. De facto, numa sociedade cada vez mais mediatizada e, nalguns casos, bastante mer-cantilista, quem não tem capacidade de reivindicar de forma audível pelos meios de comunicação social e pelos aparelhos políticos, e quem não tem poder de compra, pura e simplesmente não existe, a não ser que a cons-ciência cívica da sociedade no seu todo se encarregue de colocar na agenda política as necessidades e anseios dessa população.

Numa primeira fase, os poderes públicos de matriz socialista ou social-democrata, responderam a essas ne-

cessidades através da disponibilização de equipamentos colectivos (públicos ou de entidades assistenciais) vo-cacionados para assistir cada um desses estratos popu-lacionais. Foi a época das creches e jardins-de-infância (cuja nível cobertura ainda está por completar entre nós, 35 anos após a restauração da democracia!), dos centros de dia e dos lares de idosos. A visão que se tinha (e nalguns casos ainda persiste) é de que esta popu-lação, por não ser produtiva, deveria estar segregada da vida urbana e também entre si, atendendo às dife-renças de idade. Quebrava-se deste modo o tradicional conceito de família alargada – ainda tão presente nas primeiras décadas do século XX - onde várias gerações coexistiam no mesmo espaço residencial e assim se en-tre ajudavam, além de se remeter para longe da vista dos membros da sociedade produtiva o cenário do seu futuro menos activo ou saudável. Depois, mais recen-temente, com a entrada no mercado de trabalho das mulheres e com a fragmentação e dissolução da família tradicional (por motivos tão diversos quanto a emigra-ção do espaço rural para as cidades, até às mudanças sociais e culturais associadas ao conceito de família), a satisfação destas necessidades passaram também a ser encaradas como uma oportunidade de negócio (não es-tivéssemos nós em plena ascensão das teorias neolibe-rais), proliferando então os estabelecimentos privados que, a troco de mensalidades normalmente avultadas, se encarregam de “guardar” estas pessoas, nem sempre nas melhores condições de respeito pela sua dignidade humana. Todavia, fosse qual fosse o modelo seguido – público, assistencial ou privado – o conceito dominan-te era (é) que estes dois estratos extremos da pirâmide etária deveriam ser “tratados” como elementos à parte

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da vida urbana, e portanto dos espaços de encontro e sociabilização que a caracteriza. Daí a “natural” segre-gação especial a que os equipamentos que os acolhem ainda hoje apresentam.

Sucede porém que, sobretudo após os finais da década de ’60 do século passado, em boa parte fruto da explosão de reivindicações sociais e das utopias que os movimen-tos estudantis da altura corporizaram, uma nova cor-rente de pensamento e de intervenção se foi afirmando quanto ao modo de lidar com as crianças e idosos nas cidades e vilas. Em lugar da segregação espacial e etária, movimentos como o da “Escola Moderna” (entre mui-tos outros), pugnaram por uma maior inserção destes estratos no quotidiano urbano, uma maior ligação entre família (seja ela de que tipo for), comunidade e escola, bem como uma aproximação entre crianças e idosos, no sentido de fomentar a transmissão de valores e memó-rias, mas também de socialização e aproveitamento dos saberes e experiências dos que tinham deixado a vida activa.

Entre nós, logo após a revolução do 25 de Abril, sur-gem várias iniciativas deste tipo, de que a Associação para a Protecção da Infância da Ajuda (APIA) foi pionei-ra. Neste caso, a partir da ocupação e posterior arranjo (não se pode sequer chamar reabilitação) de um antigo palacete situado em plena Calçada da Ajuda, um grupo de residentes no bairro, apoiados pelo então regimento da Polícia Militar17 e um pequeno grupo de jovens mi-litantes de esquerda, desenvolveram um inovador pro-jecto de creche e jardim de infância em associação com um centro de dia para a terceira idade, com forte parti-cipação dos pais das crianças, de habitantes do bairro e militares do regimento. O novo equipamento colectivo

funcionava não apenas nas suas valências tradicionais de apoio às crianças e idosos, como também de pólo cultural e cívico para a população da freguesia, além de se cons-tituir como um verdadeiro laboratório de experiências pedagógicas e de aprendizagem cívica,

Para além de um vasto conjunto de medidas de fun-cionamento inovadoras que foram então postas em prá-tica – desde a fixação de mensalidades em função dos rendimentos das famílias, à organização de trabalho voluntário para a confecção de alimentos, trabalhos de restauro até à organização de festas comunitárias e de viagens de estudo e lazer – um dos aspectos mais interes-santes desta experiência prende-se com a integração de reformados e avós no ensino de artes e ofícios às crian-ças, no apoio ao funcionamento quotidiano da creche e do jardim de infância, bem como na recuperação da tra-dição oral de transmissão de contos e costumes de outras épocas, com o claro objectivo de recuperar memórias do bairro e das suas gentes e promover a inserção social e a educação cívica das novas gerações.

Experiência idêntica foi entretanto prosseguida numa aldeia do Alentejo (Stº. Amaro, próxima de Estre-moz), onde o método iniciado na APIA foi desenvolvido e estendido a novos horizontes, o que permitiu a recu-peração de património rural e de festas populares que se tinham perdido, bem como da tradição do teatro de fantoches, produzido a partir de testemunhos orais dos mais velhos sobre antigas lendas e histórias de vida, e com a mobilização de toda a aldeia na preparação das festas e representações.

Noutro caso, desta vez numa aldeia de Trás-os-Montes (Nogueira, próxima de Vila Real), foi o pároco que mobilizou a população para a construção e apoio

ao funcionamento destes equipamentos, organizando o transporte das crianças e mobilizando os pais para for-necerem os alimentos (provenientes das suas hortas e courelas) que são precisos para a confecção das refeições de crianças e idosos, neste caso com distribuição domici-liária aos que já têm dificuldade em se movimentar.

Por último, refiram-se as iniciativas existentes em alguns países do norte da Europa (como a Holanda e a Alemanha) onde os centros de dia para a terceira ida-de são construídos no mesmo campus que os jardins de infância, partilhando o espaço exterior de recreio e la-zer e o refeitório, e onde os mais idosos são envolvidos nas actividades escolares das crianças. Por outro lado, regista-se a proliferação de residências assistidas (nor-malmente localizadas nos pisos térreos dos edifícios plu-rifamiliares), onde o acompanhamento e apoio aos idosos é assegurado quer pelas instituições de assistência, quer por inquilinos dos pisos superiores que, ao aceitarem esse encargo, têm preferência na atribuição dos fogos de habitação social aí existentes.

O traço comum a todas estas experiências e iniciati-vas é a recusa de remeter para os “esconsos” da vida ur-bana os que não estão envolvidos na produção mercanti-lista, assim como em promover uma maior ligação entre gerações e um espírito de responsabilidade social e de entre ajuda por parte do cidadão comum. A mobilização da sociedade civil para resolver problemas de apoio e as-sistência social e a promoção de uma maior coesão social, são os princípios que norteiam tais políticas públicas. No final, acabam por revelar-se mais eficazes e menos one-rosas que as formas tradicionais de lidar com este tipo de problemas, para além de fortalecerem os sentimentos comunitários de pertença e de identidade.

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4 – CONCLUSÕESO colapso duma economia financeira baseada no lu-

cro fácil e sem princípios éticos, promovida nas últimas décadas pela defesa de teorias neoliberais radicais, veio demonstrar que uma sociedade não pode progredir e resolver os seus problemas estruturais sem uma forte intervenção dos poderes públicos. O caminho que agora é preciso percorrer não é apenas o da regulamentação mais forte e eficaz dos mercados (nomeadamente os fi-nanceiros) – sem dúvida necessária para pôr cobro aos desmandos de potenciais novas “aves de rapina” que proliferam em contextos de ausência de Estado nesses sectores – mas sobretudo o de retomar valores éticos e sociais que foram sendo equacionados e transpostos para a sociedade ao longo de décadas de lutas políticas na Europa e nos EUA. O conceito de serviço público ganha assim um novo fôlego e sobre ele se abrem novas perspectivas de acção cívica e política.

Todavia, não é pugnando por um regresso ao passa-do – tendo por referência a época dos anos “dourados” do crescimento económico europeu – que se conseguem enfrentar os problemas que a globalização económica e a entrada de potências emergentes no mercado mundial, hoje colocam ao nível do funcionamento das nossas ci-dades e metrópoles. Não só o Estado se tem de reformar para fazer face às crescentes necessidades sociais e à di-minuição do contingente de activos produtivos, como também para responder às exigências de uma maior transparência dos seus actos e políticas e a uma maior mobilização da sociedade civil, condições sem as quais não se afigura possível assegurar, de forma sustentada e a prazo, as regalias e direitos sociais e políticos tão duramente conquistados.

Ao contrário do que afirmam os neoliberais e os que desistiram de contribuir para a construção de uma so-ciedade mais justa e fraterna - porque mais responsável (perante os ecossistemas naturais e perante as gerações futuras) e equitativa – há de facto alternativas. Aqui e ali despontam e afirmam-se outras experiências e políticas que demonstram a possibilidade de se enveredar por um outro caminho, mais promissor e sustentável. Neste pe-queno texto/testemunho apontaram-se, ainda que sin-teticamente, algumas delas. São no entanto suficientes para ilustrar que deixámos o reino da pura utopia para estarmos já perante o que já foi designado por “utopias realizáveis”, isto é, caminhos novos que já começaram a ser percorridos.

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NOTAS2 Diga-se em abono da verdade que o fizeram sem gran-de oposição interna pois, face à “inevitabilidade históri-ca” da falência do Estado Social, apresentavam-se como uma promissora “Terceira Via”, entre uma sociedade capitalista sem preocupações sociais e uma gestão pú-blica sem meios para manter muitos dos serviços e re-galias sociais que o movimento social tinha conquistado, sobretudo no pós-guerra. Esta fábula do “melhor dos dois mundos” – a abundância que resultaria do livre fun-cionamento do mercado, ao mesmo tempo que se garan-tiam os serviços públicos essenciais, “salvos” in extremis da sua próxima falência – levou a que muitos aderissem aos novos profetas da real politik, até porque assim se libertavam das velhas máquinas partidárias que impe-diam a sua almejada (e rápida) ascensão ao poder. Para quem não tinha memória das lutas sociais dos anos ’60 e ’70 do século passado, e se horrorizasse só de pensar que deveria começar por conhecer a cultura política que se veio a consolidar no pensamento socialista e social-democrata europeu, uma tal oferta de possibilidade da tomada rápida do poder era demasiada tentadora para ser desperdiçada … Os “rapazes da província”, tanto en-tre nós como em muitos outros países europeus, viram assim chegada a sua hora, militassem no PS ou no PSD – alguns até no próprio PC, como se pode hoje consta-tar na composição e prática do actual governo – e não se fizeram rogados. A ideologia que tinha inicialmente presidido à fundação desses partidos, foi clara e sobran-ceiramente relegada para o “caixote do lixo da História” – quando não mesmo abolida por “decreto” dos novos “Comité Central” – passando a imperar o mais puro pragmatismo, “ideologia” por excelência de quem não

tem cultura (política ou outra qualquer) e subiu a pulso na vida, sem olhar a meios e espezinhando quem encon-trou na sua frente.3 A forma patética como Durão Barroso se apressou a acolher calorosamente o novo presidente dos EUA e a demonstrar o seu total e empenhado acordo com as pro-postas que este levou à recente reunião do G20, são um exemplo paradigmático a este respeito. Mas que dizer do não menos empenhado apoio dos governos português e britânico à recandidatura do mesmo Durão Barroso a mais um mandato na presidência da Comissão Euro-peia, antes de se conhecerem os resultados das eleições europeias do próximo mês de Junho e escamoteando por completo o papel do Mr. Barroso no apoio ao desenca-dear da tragédia do Iraque ou como arauto do neoli-beralismo? Como se, independentemente do voto e do que foram os resultados da anterior política económica e financeira na EU, os anteriores protagonistas pudessem continuar, bastando para tal exigir mais “regulação, ri-gor e responsabilidade” aos grandes actores financeiros, esperando que estes reflictam e se convertam às novas exigências sociais …4 O que entre nós foi alimento de sobra para a conso-lidação do conhecido “Bloco Central”, com todo o seu cortejo de interesses transversais aos dois maiores par-tidos do sistema, e as suas ramificações tentaculares aos principais sectores da economia portuguesa (veja-se, por exemplo e a propósito, a composição bipartida da grande maioria dos institutos e empresas públicas, ou como se sai do governo e se entra directamente para a adminis-tração de empresas privadas que antes se tutelava, indo aí fazer companhia a outros ex-governantes ou quadros superiores da administração do Estado). O caso “BPN”,

para só citar o mais recente, é bem elucidativo do blo-queio político em que vivemos, fruto de décadas de paula-tina destruição das matrizes fundadoras do PS e do PSD, para dar origem a um “centrão” amorfo ideologicamente, mas extremamente poderoso na Assembleia da Repúbli-ca e no sistema judicial. As “figuras” (e os figurões) que têm desfilado na praça pública à medida que o novelo do BPN/SLN se vai desatando; ou a completa inoperância demonstrada pelos meios de investigação criminal e de justiça em concluírem, ou levarem a bom porto, qualquer processo que envolva os interesses desse “Bloco Central” (sejam estes pessoais – como no caso “Casa Pia” – ou económicos, como se verificou com o mega processo da “facturas falsas”, que depois deu em nada), mostram à saciedade até que ponto o sistema político e judicial estão minados e sem capacidade de reagir.5 Segundo as Nações Unidas, pela primeira vez na histó-ria da humanidade, a população urbana do Mundo (isto é, a que vive em aglomerados com mais de 10 mil habitan-tes) superou a que vive nos espaços rurais. Na Europa, a percentagem dessa população terá já ultrapassado os 80 %.6 Ao contrário do que se verificava historicamente na ci-dade consolidada, as novas concentrações de actividades comerciais e de serviços urbanos – designadas habitual-mente como “novas centralidades” -, não se apresentam integradas no espaço urbano, ocupando as suas áreas mais centrais em termos históricos e de acessibilidade, implantando-se antes em espaços urbanos periféricos, ainda que dotados de uma boa acessibilidade em trans-porte individual. Por outro lado, e também ao invés das centralidades tradicionais, estas apresentam-se como que especializadas em determinadas ofertas de bens e

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serviços, assumindo por isso um carácter monofuncio-nal, constituindo-se por isso como verdadeiras áreas temáticas com uma área de influência que transcende em muito os espaços urbanos em que se localizam. Daí a designação de “centralidade”, embora incompleta por-que não dotada de variedade de actividades e de oferta de bens e serviços. Os parques de escritórios e as con-centrações de grandes espaços comerciais (acima dos 5 mil m2 de área bruta) com oferta diversificada de pro-dutos – desde os alimentares e de produtos domésticos, aos de mobiliário e produtos desportivos, passando pelo vestuário e calçado -, normalmente associados a marcas internacionais ou grupos de distribuição, são os exem-plos mais comuns.7 O facto de, 23 anos após o acesso a fundos comunitários dedicados ao financiamento deste tipo de projectos, a maioria dos esgotos domésticos da Área Metropolitana de Lisboa ainda são lançados no estuário do Tejo sem o devido tratamento, ou mesmo sem nenhum tratamento, é apenas um dos casos paradigmáticos que ilustram o fa-lhanço dos programas ambientais nacionais. Do mesmo modo, a situação que se arrasta há mais de uma década quanto aos programas de despoluição do rio Alviela ou da canalização e tratamento dos esgotos das pecuárias na região do Oeste, é também exemplar quanto ao descon-trolo da aplicação de fundos públicos e da total impuni-dade de que gozam institutos públicos e direcções gerais que supostamente deveriam ser responsabilizadas pela situação. Ao fim de mais de cinco governos e mais de 8 ministros ditos do Ambiente, a situação não só está mais grave, como já ninguém parece conhecer o verdadeiro destino das centenas de milhões de euros que aí teriam sido investidos pelos poderes públicos.

8 Apesar da lei portuguesa o prever, poucos são os alva-rás de loteamentos privados que obrigam o promotor imobiliário a suportar uma parte dos custos gerais de urbanização, relativos às infra-estruturas de carácter geral – como por exemplo, as referentes à captação, tra-tamento e armazenamento de água potável; as estações de tratamento de águas residuais; as vias principais e as redes gerais de adutoras e de colectores. Quando muito, o promotor encarrega-se da construção das infra-es-truturas que se desenvolvem no interior do perímetro que está a lotear, algumas vezes sem cuidar sequer das ligações às redes gerais.9 Na maioria destes casos cabendo ao município um papel pouco mais que decorativo e de distribuição de lugares nas respectivas administrações, durante muito tempo até como forma de “completar” os salários de membros do executivo municipal …10 Por exemplo, a proposta da empresa Águas de Portu-gal – monopólio público neste sector – para os municí-pios do Alentejo chegava, nos casos dos municípios com sistemas próprios, a implicar uma decuplicação do preço do m3 de água, “em troca” do completar dos sistemas e redes de abastecimento e saneamento e a sua integração em sistemas regionais ou supra-municipais. Tudo em nome do acesso aos fundos comunitários e a uma preten-sa racionalidade de exploração, para a qual só o “grande” sistema totalmente “integrado” (do abastecimento de água aos esgotos, passando pelos resíduos) tem viabili-dade económica e permitiria uma redução dos custos de operação. Via-se depois nos contratos de concessão que eram propostos às autarquias locais, quão falsas eram estas perspectivas.

11 Freibourg é uma importante cidade universitária que, como geralmente sucede nestes casos, tem uma grande tradição de iniciativas “utópicas” e de contestação social, a par de problemas de alojamento a baixo custo para os estudantes e os que vivem de trabalhos temporários na universidade.12 A manutenção de uma linha de água a céu aberto e de uma pequena zona de mata original, associadas ao tipo de intervenção paisagística adoptada – de cariz muito “natural” – permite que vários pequenos animais se “pas-seiem” nessas zonas do bairro, desde coelhos e rãs, até uma grande variedade de pássaros.13 Quem não se lembra das pessoas que ficavam entaladas nos pórticos das estações do metropolitano nas primei-ras semanas que sucederem à inauguração do sistema? Ou ainda a incapacidade de o generalizar a toda a rede de transportes colectivos de Lisboa, obrigando o passageiro a comprar vários tipos de passes para poder utilizar o sistema?14 Ainda recentemente os jornais noticiavam a impossi-bilidade dos utentes fazerem uma viagem que envolvesse vários operadores – no caso a Fertagus, que explora a ligação ferroviária entre a margem sul e Lisboa, o metro-politano ou os suburbanos da CP, obrigando-os a esperar até duas horas para prosseguirem viagem ou então, em alternativa, seriam levados a pagar um segundo bilhe-te!15 Para se poder ter acesso ao cartão que permite retirar a bicicleta dos seus vários pontos de estacionamento espa-lhados pela área central da cidade (e o seu posterior par-queamento), é necessário fornecer uma morada na área metropolitana, confirmada pela identificação e número

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fiscal do utilizador. Para os turistas ou outros potenciais utilizadores temporários, existe um outro sistema de aluguer de bicicletas.16 Não nos esqueçamos que os motoristas de autocarros urbanos são, na sua esmagadora maioria, profissionais de experientes e de elevada competência, sendo por isso mais seguro fazer as bicicletas circular nos corredores BUS – beneficiando desse modo da vasta rede de cor-redores existente na cidade e protegendo-as da maior agressividade dos condutores de automóveis – do que em vias cicláveis que, num momento ou noutro, terão de atravessar as faixas de rodagem dos automóveis, além de serem mais facilmente invadidas por estes para estacio-narem ilegalmente.17 À época comandados pelos então majores Campos de Andrada e Mário Tomé.

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UM IDEAL DE CIDADEMANUEL CORREIA FERNANDESC

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UM IDEAL DE CIDADEMANUEL CORREIA FERNANDES | ARQUITECTO

Advertência:Este texto é a reconstituição duma apresentação baseada num encadeado de 47 imagens cuja sequência constituía a essência de uma comunicação oral apresentada ao “Fórum” e em que, por isso mesmo, a palavra se tornava secundária. O discurso oral é, por natureza, irrepetível, pelo que a sua “transcrição” para letra de forma e sem o recurso às imagens – como agora se faz – é inevitavelmente redutor.

EM DE SETEMBRO DE 2001 E A CONVITE DA União Internacional dos Arquitectos (UIA), participei num seminário internacional realizado na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP), dedica-do ao tema, “Os Lugares da Aprendizagem”. Participei nessa reunião com uma comunicação em que abordei o tema da “rua” como primeiro “lugar de aprendizagem” fora da família e fora de casa e naquele curto período que precede a escola formal como o “lugar (privilegiado) da aprendizagem” institucional.

Recordo que, então, terminei essa minha intervenção, citando as palavras dum repórter de televisão que tinha ouvido uns escassos dias antes que a partir de Beirute e perante os destroços da cidade bombardeada, dizia: “… agora, as crianças aprendem na rua porque a escola, essa, já não existe!”. Este comentário impressionou-me vivamente e, se possível, ainda mais do que as próprias imagens já de si impressionantes, porque orientou a minha atenção para as consequências muito mais profundas do que a brutal destruição material daquele espaço e daquele lugar.

E, como que por coincidência dramática, no segundo dia dos trabalhos do referido seminário, o mundo as-sistia em directo e também pela televisão, ao ataque à Torres Gémeas de Nova Iorque. O paralelismo das duas situações tornava ainda mais impressionante qualquer das realidades uma vez que o que estava em causa era muito mais do que cada uma das cidades em si mesmas mas, antes, toda um conjunto de valores civilizacionais que tinham como centro e referência essencial, a própria

cidade tal como a tínhamos, até então, concebido, cons-truído e vivido.

A sensação dominante era a de que, a partir daquele preciso momento, seria necessário repensar tudo, reflec-tir sobre todas as práticas (urbanas e não só) e, sobretu-do, a partir da constatação de que cidades passaram a ser o lugar em que mais de dois terços da humanidade passou a viver e a produzir outro tanto. Olhar a histó-ria com um novo olhar e reflectir sobre o presente com outro sentido passou a ser incontornável. O “espaço seguro” que cidade representava, tinha acabado de ser transformado no “espaço inseguro” que toda a espécie de violência sempre gera.

E se as casas já não eram seguras, as ruas e as pra-ças também já não o eram. Afinal, tanto Beirute como Nova Iorque não eram, na circunstância, mais do que os pontos mais visíveis e mais reveladores do colapso da cidade contemporânea (ainda) sem alternativa aos pos-sivelmente já esgotados modelos de cidade (da “cidade clássica” à “cidade moderna”) que, estranhamente, ainda subsistem! E se, então, já pouco se poderia esperar da casa, ainda menos se poderia esperar da rua, da escola e das diferentes instituições do homem que a cidade alber-ga. Era, portanto, e afinal, a própria cidade que passava a estar globalmente em causa.

Recordei, então, os meus tempos de infância em que “o primeiro lugar de aprendizagem” fora de “casa” (e da família) foi, exactamente, a “rua”. A rua foi, então, e como sempre era, o primeiro lugar da sociabilização e da

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aprendizagem dos valores da comunidade e da vizinhan-ça, da convivência e da solidariedade e, enfim, o lugar, por excelência, de um viver colectivo que sempre foi o “material” com que foi construída a cidade. Foi assim desde sempre e ao longo de milénios!

No entanto, tudo mudou – e mudou radicalmente - com a primeira modernidade urbana, ou seja, com a industrialização. Paradoxalmente, a cidade transfor-mou-se então, e quase de um só golpe, no lugar de toda a desesperança e de toda a violência, ainda que surda e quase invisivelmente num primeiro momento para logo depois se tornar insuportavelmente gritante.

E quando a casa deixou de existir como espaço ín-timo e seguro e a nem, sequer, poder conter o pequeno mundo que nela sempre se abrigou porque passou a ser demasiadamente pequena e insalubre, o “último reduto”, o lugar da sobrevivência, foi, mais uma vez, a “rua”! Mas um dia, nem a casa nem a rua foram capazes de cumprir as missões que, historicamente, as cidades lhes tinham reservado. Por isso, reapareceram as “utopias” como lugares ideias de paz e de felicidade porque, afinal, os ideais da Revolução - liberdade, igualdade e fraternidade – ainda não tinham encontrado lugar na nova cidade que também ainda não existia!

Por isso, a necessária “modernização” das velhas ci-dades teve de fazer-se mas fez-se menos por razões de ordem social do que por razões de “segurança”. De facto, as primeiras formulações (ou leis) urbanísticas no senti-do da “sã habitabilidade” das cidades, são mais de carác-ter higienista e securitário do que de teor social ou téc-nico-arquitectónico. Paris de Haussman, tal como outras cidades, faz-se sem um conceito alternativo e envolvente de toda a cidade. Por isso, o século XIX passa sem que

a cidade responda verdadeiramente aos problemas da “industrialização” e do brutal crescimento demográfico, o que só no século XX vai acontecer, com o fim da cida-de antiga – das ruas e das praças – e com o nascimento da tão almejada “cidade moderna” concebida e moldada pela “Carta de Atenas”. Então, tudo devia ter mudado mas a verdade é que o que muda é muito pouco!

Como é sabido, a “cidade moderna” (ou a cidade da “Carta”) nasce em nome dos princípios da “modernidade” mas, em que sobressaem mais os valores “higienistas e igualitários” do século XIX (a que, hoje, podemos cha-mar “ecológicos” e de integração na “natureza”) mas que acabam com o conceito da “rua corredor”, ou seja, com o “desenho” da cidade baseado na rua ladeada de constru-ções e por elas mesmas definida.

Com efeito, o ideário da “cidade moderna” consagra a alteração dos modos de conceber e desenhar a cidade. Por isso, à “cidade tentacular”, o modernismo contrapõe a cidade “rádio-concentrica” (das trocas ou do comércio), a “cidade linear” (das industrias) e a “cidade agrícola” (ou da agricultura) porque, esta, seria a única forma de suster o crescimento infinito da “cidade tentacular” em que se estava a transformar a velha cidade com bairros industriais sem regra e subúrbios sem forma porque sempre em movimento e nunca acabados.

A verdade é que o “urbanismo”1 só nasce como “ciên-cia”, a partir do momento em que a “cidade industrial” rompe com a cidade “antiga ou clássica” e inicia o mo-vimento que vai dar origem à chamada “cidade moder-na”. Esta, no entanto, só virá a ter consagração e a ser codificada, já em pleno século XX, entre as duas gran-des guerras e através da “Carta de Atenas”, redigida em 1933 mas só publicada em 1943, quando Le Corbusier

toma a iniciativa de o fazer em Paris, ainda a II Grande Guerra não tinha acabado.

A publicação da “Carta” e a iniciativa de Le Corbusier são, no entanto e de certo modo, premonitórias, já que a inevitável reconstrução da Europa uma vez acabada a Guerra, será o momento de pôr em prática o “urbanis-mo moderno” tal como a “Carta” o proclamava e como resposta, finalmente globalizante, à cidade antiga, in-salubre, promíscua, degradada, insegura e, em suma, desumana.

De facto, é a “Carta de Atenas” que enuncia os princí-pios do que virá a chamar-se o “urbanismo moderno” ao sintetizar em quatro expressões síntese os princípios em que assenta e que iriam servir de roteiro a todos quantos fizeram cidade a partir de então e que são: HABITAR, TRABALHAR, RECREAR (tempo livre) e CIRCULAR. Assim, no seu Ponto 77, a Carta de Atenas enuncia esses mesmos princípios que também designa por “funções” ou “chaves” e fá-lo do seguinte modo:

“O urbanismo em uso tem atacado até aqui apenas um problema, o da circulação. Tem-se contentado em romper avenidas ou em traçar ruas, constituindo assim as “ilhas” construídas, cujo destino se deixava ao acaso das iniciativas particulares.

É um desígnio bem estreito e insuficiente da missão que lhe é destinada.

O urbanismo tem quatro objectivos que são estes:Primeiramente, assegurar aos homens alojamentos sau-

dáveis, isto é, lugares onde o espaço, o ar puro e o sol (estas três condições de natureza”) estejam largamente assegurados;

Em segundo lugar, organizar os locais de trabalho, de maneira que em vez de ser uma sujeição penosa, retome o seu carácter de actividade humana natural;

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Terceiro, prever as instalações necessárias à boa utilização das horas livres, tornando-as benéficas e fecundas;

Quarto, estabelecer a ligação entre estas diversas orga-nizações por meio de uma rede circulatória, que assegure as trocas e ao mesmo tempo respeit as prerrogativas de cada um.

ESTES QUATRO OBJECTIVOS SÃO AS QUATRO CHAVES DO URBANISMO.

(Transcrição do texto publicado na revista “Arquitectura, em 1948)

A história das cidades, construídas e/ou reconstruí-das, a partir de então, (o fim da II Grande Guerra), não é mais do que um contínuo exercício em torno dos princí-pios proclamados e dos quais está quase completamente ausente a “cidade antiga” que era a antítese da “cidade moderna” que agora se pretendia criar definitivamente. De facto e da cidade antiga, a própria “Carta” propunha que não restassem mais do que “monumentos” como “va-lores arquitecturais” que deviam “ser salvaguardados”. No entanto, a mesma “Carta” não deixa lugar a dúvidas quanto à inevitabilidade e utilidade da “continuidade” do “antigo”, ao proclamar, simultaneamente que:

(…)(Ponto 65) “a vida de uma cidade é um acontecimento

contínuo manifestado através dos séculos por obras materiais, traçados ou construções, que a dotam com a sua personalidade própria e de onde emana pouco a pouco a sua alma.

São estes testemunhos preciosos do passado que serão res-peitados, primeiramente por causa do seu valor histórico ao sentimental, depois porque alguns deles têm em si uma virtude plástica na qual se encarnou o mais alto grau de intensidade do génio humano.”

(…)

(Ponto 66) “Serão salvaguardados se forem a expressão de uma cultura anterior e se corresponderem a um interesse geral. A morte não poupa nenhum ser vivo, ataca também as obras dos homens. É preciso saber, nos testemunhos do passado, reconhecer e discriminar os que estão ainda bem vivos.”

(…)“… Se a sua conservação não implicar o sacrifício de po-

pulações mantidas em condições insalubres. Um culto estreito do passado não deve manter a ignorância das regras da justiça social. Espíritos mais inclinados para o “estetismo” do que para a solidariedade, militam em favor da conservação de certos velhos bairros pitorescos, sem fazer caso da miséria, da promiscuidade e das doenças que aqueles abrigam.”

(…)(Ponto 69) “A destruição dos bairros miseráveis à volta

dos monumentos históricos dará ocasião a criar superfícies verdes. Admite-se, em certos casos, que a demolição de casas insalubres e de bairros miseráveis em volta dum monumento histórico destrua um ambiente secular. É uma coisa lamentá-vel mas inevitável. Aproveitar-se-á a situação para introduzir superfícies verdes. Os vestígios do passado ficarão banhados por um novo ambiente, talvez inesperado, mas certamente to-lerável, e com o qual, de qualquer forma, beneficiarão larga-mente os quarteirões vizinhos.”

(…)

A “Carta”, desenhou então a “cidade moderna” até finais da década de cinquenta, tentando, durante esse curto mas empolgante período de tempo, formalizar de modos muito diferentes os (sagrados) princípios enunciados. Duas “formas” e dois “acontecimentos” (ou consequências, ou factos, ou fenómenos) fundamentais traduzem, no entanto, a essência “arquitectónica” da “ci-

dade moderna”: o “bloco de habitação colectiva” e a “via segregada”. Ambos os fenómenos são, por excelência, as formas típicas da cidade moderna, a que, no entanto, se deve acrescentar o abandono dos lugares e dos centros históricos (quando não são condenados e destruídos) e, simultaneamente, a consagração do “subúrbio” ou do “bairro periférico”.

Evidentemente que esta “nova cidade” nasce, natu-ralmente, sob o signo do “zonamento” (zonning), como consequência natural e inevitável da programática dis-tribuição e consequente separação das funções (da ci-dade) ditada pela “Carta”. Ou seja: habita-se num lado, trabalha-se noutro, recreia-se ainda noutro e circula-se, intensa, mecânica e ciclicamente, entre todos.

No entanto, o modelo alternativo à cidade clássica que o urbanismo moderno vinha impondo, com a “Car-ta” numa mão e “a necessidade de reconstrução rápida e total” na outra, não dura mais do que uma escassa dúzia de anos. De facto, um grupo de “arquitectos/urbanistas” importantes (TEAM X), também eles “praticantes” e, alguns deles, autores materiais da “cartilha”, declara a falência da própria “Carta” que tinham ajudado a criar e, com ela, o fim da “cidade moderna”. As razões foram muitas mas, de todas, sobressaíam as questões de ordem social e, fundamentalmente, as questões da segurança, ou melhor, as questões das várias “seguranças” que a cidade era suposto garantir, desenvolver e elevar a um alto grau de eficiência mas que a nova cidade não logra-do consagrar!

A verdade, porém, é que esta “nova cidade” – a cida-de moderna - não só não tinha resolvido a questão da pretensa obsolescência dos “centros antigos ou histó-ricos” que, entretanto, ou tinham sido destruídos para

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isolar monumentos ou, então, tinham sido deixados simplesmente à sua sorte e, portanto, à desvitalização. Com efeito, foi por ali que ficaram abandonados, alguns dos estratos sociais de menores recursos ou mesmo in-solventes e sem qualquer capacidade reivindicativa, ao mesmo tempo que outros eram atirados para novos bair-ros periféricos, atraídos pelas novas e monofuncionais “unidades de habitação” ali implantadas em amplos e generosos espaços verdes tal como a “Carta” impunha. E, tanto uns como outros, quando chegavam a “casa” era apenas para aí dormir, já que, no dia seguinte, haveriam de se deslocar novamente para o “trabalho” no outro lado da cidade, repetindo, depois e sem cessar, esse circuito infernal do dia a dia entre o dormir e o trabalhar, apenas entrecortado por eventuais deslocações, também elas (naturalmente) maciças, para os “lugares de recreio” (de diversão e de ocupação de tempos livres), também eles localizados, por sua vez, noutra “zona” da cidade.

E, de súbito, todos estes lugares se foram tornan-do progressivamente pouco amigáveis, inóspitos, pou-co seguros e, por vezes, violentos! Ou porque estavam dramaticamente vazios de dia (nos bairros dormitório), ou porque estavam, igualmente desertos de noite (nas zonas industriais), ou porque circular era da mesma for-ma inseguro porque as “novas vias” já não eram “ruas” com casas de ambos os lados. Por seu lado, os transpor-tes, circulando em vias próprias e, portanto, segrega-das, abarrotavam de gente condenada a viajar sempre em rebanho, às mesmas horas e nos mesmos sentidos, passaram a consumir horas de descanso, de recreio e de convivência social e comunitária, atacando mortalmente o “ideal de felicidade” que era de esperar que acompa-nhasse o nascimento da “nova cidade”.

Naturalmente que, neste quadro, tudo concorria para uma rápida degradação da qualidade de vida nas cidades e, portanto, para a “reposição” da questão urbana, em virtude da tendência imparável para a progressiva ur-banização das populações e o consequente crescimento demográfico das cidades que já se desenhavam como metrópoles sem um “princípio” que as contivesse ou como “megalópoles” sem um sentido que as sustentasse e apenas condenadas a crescer indefinidamente, fosse de que modo fosse: clandestino, informal ou marginal, mas sempre “em mancha de óleo” e sem contenção.

Em boa verdade, as barracas não só não acabaram como se multiplicaram, tal como aconteceu com os bair-ros de lata, com os clandestinos e com as casas sobre-ocupadas ou as “casas-colmeia”. Em suma, a “nova cida-de” acabou por reeditar os mesmos cenários do século XIX, ainda que sob novas formas mas sempre perante a incapacidade da “cidade moderna” em proporcionar, definitivamente, a construção do almejado “lugar do bem estar” dos homens e das suas instituições!

Os anos que se seguem, de utilização intensiva e ex-tensiva da “Carta”, são anos de crença e esperança na técnica (a tecnocracia surge como um novo mito) mas a

verdade é que nem a nova era técnico-industrial (a era atómica), nem as novas formas de exploração dos re-cursos, nem a emergência de novas realidades sociais, políticas e culturais, levam as democracias a encontrar novos modelos alternativos à cidade clássica ou à indefi-nida “cidade moderna” entendida em qualquer das suas variantes (que foram e ainda são muitas).

Na verdade, em termos de políticas de cidade, os últimos anos são anos de “crise” porque aos modelos existentes - antigos e modernos - não sucede nunca ne-nhum outro. Mas nem por isso – e como se sabe - as cidades deixaram de crescer só que, agora, com todas as perversões que a cidade clássica pôde gerar e a cidade moderna tornou ainda mais possíveis. De facto, uma das consequências mais imediatas deste estado de coisas, foi a absurda densificação e congestão da cidade e, so-bretudo, a generalização e a intensificação de práticas (urbanas) eminentemente especulativas que – como era de esperar - “aproveitaram”, em proveito próprio, todas as portas deixadas abertas pelos maus usos dos bons modelos anteriores.

Então, o que sucede, não é mais do que a caminha-da para a cidade casual e mercantil (no pior sentido das

EM TERMOS DE POLÍTICAS DE CIDADE, OS ÚLTIMOS ANOS SÃO ANOS DE “CRISE”

PORQUE AOS MODELOS EXISTENTES - ANTIGOS E MODERNOS - NÃO SUCEDE

NUNCA NENHUM OUTRO. MAS NEM POR ISSO AS CIDADES DEIXARAM DE

CRESCER SÓ QUE, AGORA, COM TODAS AS PERVERSÕES QUE A CIDADE

CLÁSSICA PÔDE GERAR E A CIDADE MODERNA TORNOU AINDA MAIS POSSÍVEIS

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palavras), assente em políticas que já não se afirmam pelo que propõem mas, antes, pelo que rejeitam ou, pior ainda, pelo que aparentam rejeitar. Com efeito, é desta ausência de “projecto” de “ideia” ou de “conceito” que nasce o “pós-moderno”, cujo ponto de partida – e de che-gada – não é mais, afinal, do que a simples negação do … “moderno”!

Phillip Jonhson, arquitecto, e um dos mentores da “Carta de Atenas”, proclama mesmo o fim da “cidade moderna” no exacto momento em que, por implosão espectacular, é integralmente demolido o gigantesco e magnífico bairro habitacional de Pruitt-Igoe, em St Lou-is no Missouri (EUA), projectado poucos anos antes por Yamasaki, no mais escrupuloso respeito pelo ideário da “Carta”. A verdade é que o bairro se tinha transformado no paradigma dos malefícios da “modernidade”. As ima-gens correram mundo e, com elas, a noção – assumida e consumida – de que a cidade moderna fazia mais parte do problema do que da solução!

De facto, as questões sociais, de vizinhança e de falta de sentido de comunidade de bem estar, tinham condena-do e destruído, de um só golpe, aquela “bela construção” e aquela quase absoluta racionalidade urbanística, higié-nica, saudável e eminentemente comunitária, destruindo o sinal e o símbolo da esperança que tinha nascido cerca de cinquenta anos antes, na ida década de vinte, quando Le Corbusier tem o arrojo de publicar as propostas da sua “Cidade de três milhões de Habitantes” e, também, da sua igualmente brilhante e original “Cidade Radiosa”!

Com a morte da “utopia modernista” e com a fragili-dade (mais do que evidente) do “pós-moderno”, os olhos dos “cidadãos” (os habitantes das cidades), voltam-se de novo para os “centros das cidades” que tinham sido

abandonados por serem promíscuos, pouco higiénicos e demasiadamente afastados da natureza. Foi, de facto, nos “centros históricos”, que os cidadãos que haviam escolhi-do os saudáveis arredores, acabam por voltar a descobrir a humanidad da “cidade antiga” (clássica ou histórica), plasmada na vida da rua e da praça, o sentido solidário da vizinhança, o espírito gregário do bairro, o conforto da proximidade e as virtudes da multifuncionalidade que a cidade moderna havia rejeitado. O movimento do “regresso ao centro” ganha, então, corpo e intensidade e deixa o subúrbio, por definição, provisório, inacabado, sujo, poeirento e sempre instável e em mutação. E, por isso mesmo, o subúrbio torna-se, naturalmente, ainda mais inseguro do que o centro, por definição, consoli-dado, estabilizado e “imutável” excepto naquilo que o tempo faz às pessoas e às coisas, que é torná-las, simples-mente,… velhas! Mas, este, é, afinal, um valor “moderno” e não é negligenciável!

O centro, a cidade antiga, a cidade histórica, ganha, então (e rapidamente), o estatuto de “cidade amigável”, para a qual convergem as atenções de todos quantos recearam, um dia, perder a memória e as referências sociais, espaciais e vivenciais que “só” (aparentemente “só”!) a cidade histórica – a cidade consolidada - pode oferecer e garantir. O subúrbio, a periferia, a cidade mo-derna, “ganha”, ao contrário e simetricamente, o estatuto de “cidade mutante” porque sempre em transformação, permanentemente instável e carente de referências e de memórias, seja porque não soube ou seja porque nem, sequer, teve tempo de as “construir”.

Mas nem o “regresso aos centros” nem o “esvaziamen-to dos subúrbios” se fazem sem contradições que, hoje, sa-bemos serem dificilmente sanáveis. É que, tanto um como

outro, se modificaram já muito e tardam mesmo a reen-contrar os seus próprios sentidos. A noção predominante é, contudo, a de que se a cidade é, por definição, fragmen-tar e que não pode deixar de ser lida como um todo porque centro e subúrbio se tornaram, apesar do muito que os separa, realidades complementares e absolutamente in-separáveis. A procura dos necessários equilíbrios passou a ser uma das tarefas mais ingentes de todos quantos se preocupam com o fenómeno urbano ou de todos quantos têm a seu cargo a definição, a concretização e a aplicação de políticas capazes de reconduzir estes “monstros urba-nos” nascentes e que, nalguns casos, até já atingiram a ida-de adulta, (sejam metrópoles, megalópoles, conurbações, áreas metroplitanas, comunidades urbanas ou quaisquer outras formações e formulações representando idênticas realidades) a espaços de viver colectivo e comunitário de qualidade, o que quer que isso possa significar. Ora, o que esta qualidade hoje significa é, exactamente, a que o senti-mento de “protecção”, ou existe e é “seguro” ou não existe e pode destruir a própria noção de cidade.

A questão da “segurança” é, historicamente, inerente à noção de cidade. Em bom rigor, há duas noções funda-mentais que sempre estiveram na base da existência das cidades. São elas, a noção de (viver em) SOCIEDADE e a noção de (viver em) SEGURANÇA. Ora, sem estas duas QUALIDADES, as cidades tornam-se simples AGLO-MERADOS de coisas e de pessoas.

Laugier (século XVIII) disse que “antes de construir a casa, o homem teve de construir o CONCEITO”. E assim é, também, com a cidade que bem pode voltar a fechar-se se não lhe soubermos associar um IDEAL. É que, se não há uma CIDADE IDEAL, também não há CIDADE sem um IDEAL DE CIDADE.

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VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2010 [101] DEMOCRACIA E SERVIÇOS PÚBLICOS – CIDADES

NOTA1 O termo “urbanismo” foi inventado há pouco mais

de um século por Ildefonso Cerda, o genial autor do Plano do “Ensanche” de Barcelona na sua “Teoria Ge-ral da Urbanização” de 1867

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ANA DRAGOENCE

RRAM

ENTO

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INTERVENÇÃO DE ANA DRAGODEPUTADA DO BLOCO DE ESQUERDA

QUERIA COMEÇAR POR SAUDAR TODOS OS que ao longo deste dia estiveram presentes nas diferen-tes sessões e nos vários debates. Saudar também muitos outros que, por uma ou outra razão, aqui gostariam de ter estado e não o puderam fazer. E, muito em particu-lar, gostaria de saudar quem aqui hoje faz intervenções de encerramento dos nossos debates à esquerda – Maria do Rosário Gama e Manuel Alegre, que têm dado voz às lutas pela vontade de reganhar a capacidade de acção democrática da sociedade portuguesa.

Reunimo-nos hoje, aqui, homens e mulheres de es-querda, para confrontar o que são os problemas e os desafios dos serviços públicos e da democracia em Por-tugal.

Ao longo deste dia, aqui estivemos. Cada um de nós confrontando diagnósticos preocupantes que todos co-nhecemos, discutindo propostas de mudança, debatendo as diferenças que temos entre nós, mas também cons-truindo pontos de vista em comum – fomos ganhando espaço e refazendo o que é a geografia do debate político à esquerda.

Sejamos claros – creio que hoje, quem aqui esteve veio em busca de uma nova política para o país. Quem aqui veio, quem esteve presente quer assumir a respon-sabilidade de confrontar os problemas que existem em dimensões centrais da nossa vida colectiva democrática. E por isso discutimos: educação, saúde, trabalho, territó-rio, economia. Sabemos que as dificuldades, os desafios que se colocam em cada um destes sectores da sociedade

portuguesa é nada menos do que uma dificuldade, um desafio que se coloca à democracia. E dizer que não nos conformamos em caminhar para uma democracia mais “aguada”, para um país espartilhado pela desigualdade e marcado ainda pela pobreza persistente, pela privati-zação dos bens públicos e pelo estreitamento do espaço público – não é lançar apenas um grito de alma. É muito mais do isso. É assumir um compromisso de mudança – e um compromisso que tem que ter consequências. Não pudemos, não queremos, não vamos aceitar viver assim. Até porque a crise actual que temos pela frente – e que percebemos já que é uma crise profunda, grave e que vai durar bastante tempo – coloca a todos nós a urgência de respostas.

Creio que a crise que temos pela frente deve ser olha-da naquilo que é – ou seja, enquanto resultado de uma política que foi diligentemente aplicada durante déca-das, mas deve também permitir-nos gizar respostas para o futuro. Muitos têm feito um diagnóstico sobre a crise financeira como se ela resultasse de alguns excessos, de algumas malfeitorias de alguns agentes que actuavam no mercado. Creio que não corresponde à verdade. Esta não é uma virose criada por alguns excessos. A crise é antes o resultado de uma política que tem vindo a ser implementada durante décadas, em todo o espaço eu-ropeu.

A actual crise é o resultado de uma política que alie-nou o controlo democrático sobre os mercados; que ten-tou enclausurar a política em instituições fechadas para

que verdadeiramente a política não conte para nada; é o resultado de uma agenda neoliberal que aumentou, década após década, as desigualdades sociais; que foi rapinando os direitos sociais e os direitos laborais, uns atrás do outros; que pretendeu sempre fragilizar a capa-cidade de representação democrática das organizações sindicais; que restringiu, pouco a pouco, o espaço da par-ticipação e da liberdade – uma política que trabalhou sempre para dividir, para fragmentar, para restringir o espaço político democrático. Hoje, aqui, quando fazemos um debate sobre as nossas diferenças mas também sobre o que partilhamos estamos a combater essa política.

Até porque os acontecimentos dos últimos dias na Grécia nos exigem presença e reflexão. Esses aconte-cimentos são provavelmente o sinal mais estridente da crise profunda que se vive em todo o espaço europeu. A revolta é o resultado dessa política. E esses aconteci-mentos questiona-nos até que ponto devemos ter orgu-lho do tão famoso modelo social europeu. Porque temos que perguntar até que ponto ele continua realmente a existir, e até que ponto ele continua a ser o pilar do contrato social na Europa.

As análises feitas sobre os últimos tumultos na Grécia, sobre uma juventude em luta nas ruas têm esta estranheza – a estranheza de parecer tão semelhantes às características que a juventude tem em Portugal, as características da nova geração que entrou para o mer-cado de trabalho. Temos, também nós em Portugal, uma geração de jovens trabalhadores, os mais qualificados

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de sempre na história do país, confrontados com um mercado de trabalho onde o que eram as regras demo-cráticas do direito do trabalho se tornaram subitamente nas excepções. É uma geração para quem a precarieda-de ameaça ser eterna e os salários baixos se vão per-petuando, ano após ano. É uma geração sem direitos quando entra na relação laboral, e sem perspectivas de melhoria. É uma geração sempre acossada pelo medo do desemprego, que é a nova forma de exclusão social. É a primeira geração desde o pós-guerra que sabe que vai viver pior do que viveram os seus pais. É uma geração sem esperança, e é esta ideia de ausência de esperança que é provavelmente o nome da crise societal que hoje vivemos.

É por isso que as escolhas políticas que fazemos têm toda a relevância. A recente legislação aprovada em Por-tugal – o Código do Trabalho – fez uma escolha. Apos-tou na continuação desta crise societal. Assume-a, aliás, como uma crise permanente quando aceita a precarie-dade no trabalho como a regra do jogo. Assume-a como uma crise permanente quando aceita que o desemprego é também a regra do jogo, e que veio para ficar. E é isso que é assustador – quando a lei é feita é, desde o início, sempre forte e autoritária com os fracos, e fraca perante os mais fortes.

Este tem sido, aliás, o mote da política portuguesa nos últimos anos. Soubemos, há dois dias, que o Ministé-rio da Finanças se prepara para cobrar uma multa. Uma multa de 248 euros que vai perfazer, para o Ministério das Finanças, 50 milhões de euros. É uma multa sobre a declaração que deveria ser entregue pelos trabalhadores a recibos verdes – e uma declaração que apenas repro-duz o que são declarações prestadas trimestralmente

por estes mesmos trabalhadores. Há algo de chocante na cobrança destes 248 euros. Chocante porque todos nós conhecemos a fragilidade da Autoridade para as Condições do Trabalho. Sabemos como foi massificado recurso ilegal aos recibos verdes em Portugal, e sabe-mos que são os mais jovens as vítimas desta ilegalidade. É chocante porque esta diligência burocrática do Mi-nistério das Finanças contrasta com a sua política dos últimos tempos – todas as facilidades e todos os milhões que foram colocados à disposição da banca em nome do combate à crise, enquanto no combate aos recibos verdes, o governo falhou. E é chocante pela dualidade de critérios que instaura na prática política. É chocante pelas escolhas políticas que o governo fez.

Perante tudo isto, creio que os portugueses se ques-tionam. Perante o desemprego, os baixos salários, a pobreza persistente, a degradação do Serviço Nacional de Saúde, o desinvestimento na educação – perante as escolhas políticas do governo, muitos portugueses se questionam porque terá sido a banca a única a ser ca-paz de dizer a palavra mágica e encontrar um tesouro escondido?

É aqui, creio, que a democracia vacila - perante a dualidade de critérios perante os mais fracos e os mais fortes, perante a falência das regras, perante o atropelar de direitos – que se instaura a dificuldade da credibili-dade das políticas públicas. É daqui que nasce a crise de legitimidade da decisão política.

O estrangulamento da coisa pública vem acom-panhado de um outro discurso, que é inaceitável. É o discurso de que a modernização do país só se pode fa-zer pela domesticação de sectores sociais – domesticar classes profissionais, domesticar as organizações so-

ciais representativas do trabalho e da sociedade civil, domesticar movimentos de cidadãos. É um discurso que pretende restringir a capacidade de activismo e de in-tervenção dos cidadãos. Um discurso que limita a nossa liberdade.

A luta dos professores, como dizia ainda agora Maria do Rosário Gama, conta essa história de forma absoluta-mente exemplar. Porque a luta pela dignidade que está a ser feita pelos professores é a luta pela dignidade da es-cola pública. Mostra como os serviços públicos são cen-trais na produção da condição democrática da sociedade em que vivemos. Sabemos que a estratégia do Ministério da Educação é nada menos que quebrar a espinha aos professores – é dividir a classe entre os professores de 1ª e os professores de 2ª; criar uma hierarquia dentro da escola para que todos obedeçam ao director; é produzir estatísticas “para inglês ver”; é anular a capacidade e organização democrática do projecto escolar. E isso, em parte, é matar a democracia. A escola é o sítio onde a democracia se torna substância – onde a igualdade de oportunidades é para todos e cada um. Quando se mata a democracia na escola, compromete-se o futuro dessa mesma democracia. É por isso que esta luta não pode parar. São estas lutas, creio, que não podemos falhar.

Queria terminar dizendo que, antes de aqui che-garmos, muito se especulou sobre o que poderia este fórum significar - que homens e mulheres de esquerda se reunissem para discutir os problemas do país, e para encontrar novas respostas democráticas para a crise económica e social que vivemos. Para todos aqueles que perderam a capacidade de se espantar; para todos aque-les que acham que a política se vai repetir a si mesma, sempre igual ad nauseum; para todos aqueles que acham

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que apesar do aparente rebuliço da agenda mediática nada de fundamental pode mudar na política portuguesa – estes debates fora vistos como suspeitos, perigosos até. Creio que têm razão. Cada voz que não se subtrai ao espaço público, cada voz que assume a responsabilidade de estar presente e ajudar a criar mais democracia – é todo o projecto democrático e solidário que fica mais forte. E para todos os que se habituaram a um país de desigualdades e de palavras ditas baixinho a realização deste encontro é um perigo. Para nós é um capital de esperança.

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VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2010 [106] SESSÃO DE ENCERRAMENTO

ROSÁRIO GAMAENCE

RRAM

ENTO

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INTERVENÇÃO DE ROSÁRIO GAMAPRESIDENTE DO CONSELHO EXECUTIVO DA ESCOLA INFANTA DONA MARIA – COIMBRA

COMEÇO POR SAUDAR A ESQUERDA PRESENTE nesta sala e toda aquela que gostaria de ter vindo mas não pôde estar presente;

Saúdo os que hoje, nos diferentes painéis animaram e participaram nos debates;

Saúdo a Ana Drago: é um prazer voltar a encontrar-me consigo e com as suas ideias claras na defesa da Es-cola Pública e porque tem sido uma voz persuasiva na luta dos professores

Saúdo o Amigo e Camarada Manuel Alegre: deixe-me agradecer-lhe o convite que me trouxe a este Fórum, convite esse que eu não pude recusar pela elevada ad-miração que tenho por si e pelas lutas que tem travado pelos ideais de esquerda.

Constituirá surpresa para muitos (e para mim tam-bém!) a minha presença neste Fórum Democracia e Ser-viços Públicos porque sempre fiz o meu percurso de vida como cidadã atenta e empenhada, sem nunca procurar o protagonismo que esta política me obrigou a ter.

-Não digo que não a um desafio, quando se trata do encontro de uma grande família política de esquerda, principalmente quando a minha família política mais próxima, em quem eu depositei o meu voto, me tem vindo a desiludir afastando-se dos valores dos valores que legitimamente poderia esperar de uma política as-sumidamente de esquerda. Se não se pode suspender a Democracia, também não se podem suspender os valores que nos guiam politicamente.

- Tive a oportunidade de poder denunciar na comu-

nicação social, a propósito da posição da minha escola no ranking, as tensões e o desencanto que passaram a fazer parte do quotidiano das Escolas e por esse facto tenho continuado a “dar a cara” por esta luta que tarda em chegar ao fim simplesmente por teimosia de quem está convencido de que reconhecer um erro é uma ver-gonha ou uma diminuição da autoridade. (Receio mesmo que este Governo esteja a estimular o culto perigoso da autoridade)

Perguntem aos professores mais experientes, que já assumiram erros perante os seus alunos, se esse gesto não reforçou a sua credibilidade.

Há um erro cívico grave que se pode confundir com coragem: é a temeridade. Se para demonstrar coragem não avaliamos devidamente as consequências dos nossos actos, corremos o risco de sermos simplesmente teme-rários. Não estará a acontecer isto, neste momento, na equipa ministerial?

Nestes últimos anos dei comigo a pensar: será que, antes de votar, não li bem as bases programáticas do PS no que se refere à Educação? Resolvi relê-las e no Capítulo II, Novas Políticas Sociais, no ponto I.1 – Mais e Melhor Educação, pude reler:

“A lógica política do PS não é prometer tudo a todos, nem proceder a mais uma revolução no papel. É sim, tendo plena consciência da educação como factor insubstituível de democracia e desenvolvimento, pôr em prática políticas que consigam obter avanços claros e sustentados, na organização e gestão dos recursos educativos, na qualidade das apren-

dizagens e na oferta de várias oportunidades a todos os cida-dãos para melhorarem os seus níveis e perfis de formação.

Para melhorar as qualidades das aprendizagens é necessário definir que perfil de aluno queremos, formar na Escola pública, que currículos a suportariam, para atingir o perfil de aluno: uma das grandes falhas desta equipa ministerial foi a ausência de orientações sobre escola pública: sobre isto foi dito nada.

Na ausência dessa linha orientadora, a imagem que tem passado para a população e para os próprios profes-sores é a de que o sucesso tem que ser alcançado a todo o custo (discurso fácil para a população mas manipulador), a fim de disfarçar através da estatística, a qualidade de ensino que outros países com outros meios e com políti-cas coerentes alcançaram.

Esta atitude só por si foi uma medida que desautori-zou o professor cuja função é ensinar com rigor e exigir resultados do seu trabalho e que não se compadece com os facilitismos presentes na criação de uma panóplia de cursos alternativos de rigor duvidoso, entendidos como “oferta de várias oportunidades a todos os cidadãos para melhorarem os seus níveis e perfis de formação”

Ainda no Capítulo II, Novas Políticas Sociais, no ponto I.1 – Mais e Melhor Educação, pude reler:

“Definiremos também um programa nacional de for-mação de professores, com explicitação de perfis de de-sempenho…. A avaliação do desempenho dos professores, neste contexto, deve ser acompanhada por “iniciativas que

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aumentem a motivação e a auto-estima dos profes-sores”…

Fazendo uma sinopse das medidas deste Ministério é claríssimo para todos que não faz parte dos seus objecti-vos a motivação e a auto-estima dos professores”

Vejamos:- Aumento da carga horária lectiva dos professores

e fim das reduções lectivas na maior parte da ocupação dos cargos, o que se traduziu numa redução do número de horários disponíveis;

- Congelamento da progressão na carreira;- Estatuto da carreira docente com a divisão da carrei-

ra em professores titulares e professores, (havendo apenas 30%. Que têm acesso a professores titulares) Daqui re-sulta que 2/3 da classe não progride, não ultrapassando o salário correspondente actualmente a 1500 Euros..

- Modelo de Avaliação de Desempenho burocrático, inexequível, gerador de conflitos…

Não é difícil inferir qual é o grande objectivo: uma política meramente economicista!

Já no painel sobre Educação realizado de manhã, o Professor Licínio Lima afirmou, numa intervenção bri-lhante, que na política educativa, a palavra economia substituiu a palavra pedagogia.

A forma como estas medidas economicistas foram implementadas constituíram um golpe profundo na dignidade dos professores, causador de uma profun-da insatisfação e mesmo humilhação, de tal modo que mesmo quem dedicou a sua vida a formar, transmitindo conhecimentos, está neste momento desmotivado e sai antecipadamente do sistema.

E não sai com pena, nem com saudades daquilo que deixa, sai derrotado, penalizado e paradoxalmente feliz por abandonar a profissão de uma vida.

Antes desta “turbulência” quem saía sentia nostalgia, amargura, saudades, tinha pena de ter atingido a idade da reforma (60 anos ou menos); hoje, quase todos, que-riam ser mais velhos para poderem ir embora! Sentem-se desconsiderados, humilhados por uma reforma que ignorou o trabalho e a dedicação passados.

Com esta “debandada” dos Professores atinge-se de igual modo o grande objectivo: o Ministério da Educa-ção deixa de pagar ordenados mais elevados uma vez que aumenta a mão-de-obra barata para além de que as refor-mas, com as penalizações, saem mais baratas ao estado, que assim poupa mais alguns euros…Para as estatísticas a solução é óptima: diminui a taxa de desemprego entre os licenciados.

Hoje, a desmotivação é grande… a Escola deixou de ser um local aprazível para passar a ser um palco de fricções e de fracções entre professores! A mudança de paradigma educativo, seja a nível da gestão das escolas, seja a nível da avaliação dos professores, foi abruptamen-te/unilateralmente imposta pela tutela, sem a preocu-pação de envolver, formar e conquistar os docentes para este processo de mudança.

A hierarquização e a diferenciação na carreira dos professores foi a grande afronta feita à classe devido à artificialidade e arbitrariedade de que se revestiu o con-curso para professores titulares, ao serem tidos em conta apenas os últimos sete anos da sua carreira.

Carreiras de muitos anos, tarefas e cargos desem-penhados com todo o rigor e profissionalismo, foram simplesmente omitidos.

A instabilidade está instalada e a culpa não é dos pro-fessores. É intolerável o comportamento desta equipa ministerial que em vez de promover a tranquilidade e a serenidade, indispensáveis ao bom funcionamento das escolas gera o conflito e a instabilidade e tenta fazer crer à opinião pública que os professores não querem ser ava-liados. Nós queremos ser avaliados, não nos vencerão pelo cansaço, cansados estamos todos de sermos enxo-valhados em praça pública.

Como disse Bertolt Brecht“Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas

ninguém chama violentas às margens que o oprimem”.Finalmente, no Capítulo II, Novas Políticas Sociais,

no ponto I.1 – Mais e Melhor Educação, pude reler “Sem rupturas indesejáveis continuaremos no caminho do

reforço da participação das famílias e comunidades na direc-ção estratégica dos estabelecimentos de ensino e no favoreci-mento da constituição de lideranças fortes. Estabelecido um quadro comum a todas as escolas e agrupamentos – colegialidade na direcção estratégica, participa-ção da comunidade local, gestão executiva a car-go de profissionais da educação – serão admitidas e estimuladas diferentes formas de organização e gestão”

O decreto lei 15 / 2007 que regula o novo regime de autonomia das escolas, não prevê nenhuma outra forma de gestão que não seja a gestão unipessoal com os pode-res concentrados no Director.

Relativamente a esta “figura” é de salientar que a prá-tica directiva estabelecida pelo Decreto-lei 115-A/98, possibilitando a opção por uma direcção colegial ou por uma gestão unipessoal, levou a que a quase totalidade das escolas tivesse enveredado pela direcção colegial, de-

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monstrando assim os bons resultados decorrentes desta modalidade, construídos pelo empenho e dedicação dos membros dos Conselhos Executivos.

O Governo precisou de pôr fim à gestão democráti-ca nas escolas. Não se afiguram razões para a excessiva concentração de poderes num Director, a não ser que esta imposição tenha como objectivo assegurar a aplica-ção cega e acrítica de todas as medidas emanadas da 5 de Outubro, bem como a domesticação dos professores e o seu silenciamento.

O M.E., com as leis do ECD, da Gestão e Adminis-tração das Escolas, do processo de Avaliação de Desem-penho dos professores e muito especialmente, com o argumentário político com que as sustentou, reforçou intencionalmente a ilusão mais enganadora que se pode-ria imaginar neste sector: a ideia de que, havendo muito insucesso e abandono escolar em Portugal, a culpa era dos professores.

Vi este ponto bem exemplificado num recente artigo de opinião com o seguinte raciocínio: Existe muito in-sucesso e abandono escolar no nosso país. A culpa é dos professores. Logo proceda-se à avaliação, nem que para isso seja necessário importar um modelo da América Latina.

Como uma camada de nevoeiro espesso que se es-palha numa região em estação fria, aumentando o gelo que perturba fortemente a mobilidade e a actividade das pessoas, também esta ilusão continua a cair como arma assassina em cima dos professores. De repente, com esta equipa esqueceram-se os principais factores nacionais geradores do abandono e do insucesso:

– as condições sócio-económicas de muitos dos nos-sos alunos e dos seus pais;

– a desagregação das famílias e respectiva ausência de autoridade;

– a cultura dominante de que o êxito se consegue sem esforço ou que tudo tem de ser tornado fácil para se atingirem objectivos;

– a desvalorização social da Escola e dos seus agen-tes, entre outros.

Fez-se cair toda a culpa na organização da Escola e no seu corpo docente.

Com que fundamento ou intenção se procedeu deste modo se só há pouco tempo se desencadeou o processo de avaliação das Escolas e os primeiros resultados são todos muito positivos?

Se não houve intenção escondida, houve, no mínimo, erro político grave, nunca reconhecido pelos seus res-ponsáveis, apesar de avisos vários.

E este erro político acrescentou veneno mortal à rela-ção entre os professores e a Srª Ministra da Educação.

Continuamos a luta pois a razão está do nosso lado.

Parafraseando Mia Couto:Temos uma arma de construção massiva: a capaci-

dade de pensar e como diz o meu camarada Manuel Alegre, o pensa-

mento é livre como o Vento.

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VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2010 [124] FICHA TÉCNICA

REVISTA VÍRUS #8JANEIRO/FEVEREIRO 2010

DIRECÇÃO JOÃO TEIXEIRA LOPES

EDIÇÃO GRÁFICA LUÍS BRANCO

CONSELHO EDITORIAL ANA DRAGO

ANDREA PENICHE JORGE COSTA

JOSÉ SOEIROMANUEL DENIZ SILVA

MARIANA AVELÃSNUNO TELES

PEDRO SALESRITA SILVA

RUI BORGES

WWW.ESQUERDA.NET/VIRUS

REGISTO ERC NO 125486 || PROPRIEDADE: BLOCO DE ESQUERDAAV. ALMIRANTE REIS, 131, 2O – 1100-015 LISBOA

ESTA OBRA ESTÁ LICENCIADA SOB UMA LICENÇA CREATIVE COMMONS

FOTOS NESTA EDIÇÃO:BUOYS YERSINIA

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DO NOTE [CLOSED] PAUL WATSON

BANDEROLAS GUSTAVO KANASHIRO

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S/TÍTULO JORDI MARTORELL

THE PROFESSOR IS SIX MINUTES LATE JONATHAN POBRE

CORDÃO HUMANO DE PROFESSORES PAULETE MATOS

SCRATCHING ONLY MAKES IT WORSE JOSEPH ROBERTSON

S/TÍTULO JOSEPH ROBERTSON

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TETANUS SHOT MISHAP JASONESCAPIST

S/ TÍTULO DRCURSOR

VISITA AO CENTO DE EMPREGO DA AMADORA PAULETE MATOS

MAKING A SPLASH COBALT123

ON THE TUBE BAPTISTE PONS

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ENCONTRO DA AULA MAGNA ANDRÉ BEJA (TODAS AS FOTOS)