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REVOLUO FRANCESA
E ILUMINISMO
Jorge Grespan
REVOLUO FRANCESA E ILUMINISMO
E D I T O R A
CONTEXTO
Copyright 2003 Jorge Grespan
Todos os direitos desta edio reservados EDITORA CONTEXTO (Editora Pinsky Ltda.)
Coordenao editorial: Carla Bassanezi Pinsky Diagramao: Denis Fracalossi
Reviso: Vera Lcia Quintanilha Capa: Antnio Kehl
Dados internacionais de Catalogao na Publicao (ar) _________ (Cmara Brasileira do Livro, SP. Brasil)______
Grespan, Jorge. Revoluo Francesa e Iluminismo / Jorge Grespan. - So Paulo : Contexto . 2003.
ISBN 85-7244-236-7
1. Franca - Histria - Revoluo. 1789-1799 2. Iluminismo 1. Titulo.
03-16-45 _____________________ CDD-944.04
ndices para catlogo sistemtico: 1. Iluminismo e Revoluo Francesa: Histria 944.04 2. Revoluo Francesa e Iluminismo: Histria 944.04
EDITORA CONTEXTO Diretor editorial: Jaime Pinsky
Rua Acopiara, 199 - Alto da Lapa 05083-110-So Paulo-SP
PABX (11)3832 5838 [email protected]
www.editoracontexto.com.br
2003
Proibida a reproduo total ou parcial. Os infratores sero processados na forma da lei.
memria do meu pai, que me iniciou nos caminhos do Iluminismo, sombreados pela dvida que ele sabia
to bem temperar de confiana.
Sumrio
Introduo.................................................................. 9
O que Iluminismo? .................... . ............................ 13
Entre duas revolues ................................................ 21
Crticos, cticos e romnticos ............................... .....47
A nova Revoluo ....................................................... 75
Concluso .............................................. .. ............ ...103
Sugestes de leitura ................................................. 109
Introduo
Para o historiador, todos os acontecimentos, mesmo os remo- tos, tm atualidade e
vida. Mas isso ainda mais verdadeiro no caso da Revoluo Francesa de 1789, que
transformou o modo de vida at daqueles que pouco souberam ou sabem dela at hoje em
dia. No ser exagero dizer que ela ajudou a dar forma ao mundo ocidental
contemporneo, moldando as instituies e os ideais que nos animam e que
consideramos universais.
A partir dela, superou-se definitivamente a tradicional concepo de que os homens
seriam distintos por natureza, alguns nascendo melhores do que os outros, numa viso
hierrquica que acompanhou a humanidade por milnios, para ser substituda s to
recentemente pela de que todos somos iguais. Pde ser, ento, finalmente formulada a
exigncia de cidadania, da participao geral dos homens na tomada poltica das decises
sobre seu destino coletivo. Pde tambm, por outro lado, radicalizar-se tal exigncia na
reivindicao por justia social, em que mesmo as diferenas de classe devem ser
abrandadas ou at suprimidas.
Deste acontecimento crucial, assim, brotaram tanto os ideais modernos dos direitos
humanos e da igualdade de todos perante a lei, quanto os da prpria "revoluo" enquanto
mudana necessria e radical das estruturas sociais, mudana presente de modo crtico
na prpria modernidade.
Mas neste ponto a Revoluo Francesa teria somente consagrado na prtica as idias de
liberdade e igualdade que vinham sendo desenvolvidas pelo movimento filosfico
conhecido como lluminismo. De fato, desde o prprio sculo XVIII acredita-se que
9
A Igualdade (L'qalit) exibe a Declarao dos Direitos do Homem, documento lanado em 1789 sob influncia dos ideais iluministas e um dos principais smbolos da Revoluo Francesa: a superao da concepo tradicional de que os indivduos nascem distintos por natureza.
o Iluminismo teve papel preponderante em preparar os
espritos para a derrocada da ordem social vigente durante
a Revoluo Francesa de 1789. E embora trabalhos de
historiadores recentes tenham lanado algumas dvidas
a respeito da naturalidade dessa ligao entre a filosofia e
a revoluo, no se deve abandonar completamente a
antiga convico. Trata-se de no separar de modo abso-
luto ambos terrenos, como se o Iluminismo se limitasse
a uma elaborao terica e a Revoluo, por seu turno,
fosse apenas um movimento prtico.
nesse sentido que caminhar a abordagem do
presente livro. O Iluminismo aqui considerado j como uma reflexo sobre um processo
revolucionrio, o ocorrido na Inglaterra do sculo XVII, que consagrou alguns princpios
bsicos para a filosofia poltica, moral e at da natureza. E o desenvolvimento desses
princpios no sculo seguinte no podia deixar de ter um carter ativo, de interveno
crtica e modificao da sociedade da poca. Por outro lado, a Revoluo Francesa
representou no s a realizao dos ideais iluministas, como tambm sua elaborao
terica, evidenciando os impasses e a necessidade de ultrapassar aquele marco filosfico.
10
No poderemos ento nos furtar narrativa de alguns acontecimentos de toda esta
histria, para embasar sua anlise. Sem dvida, impossvel pretender esgotar a riqueza e
a imensido de todo o ocorrido. Nem, muito menos, subscrevemos a tese ingnua do
historicismo que afirma poder contar uma histria tal qual ela teria acontecido. O fio condutor
e o critrio de seleo do exposto devem vir, assim, da prpria relao entre o Iluminismo e a
Revoluo, isto , do sentido de que ambos tm um para o outro, da sua reciprocidade.
Longe de eliminar a pluralidade de interpretaes possveis, essa proposta visa explicitar um
elo efetivo pelo qual tais interpretaes ganham novo enfoque.
Com isso, pensamos ser possvel tambm derrubar alguns mal-entendidos arraigados,
especialmente sobre o Iluminismo, como o de que ele aspirava a tudo conhecer: melhor
seria entend-lo como afirmao do direito de tudo duvidar. Um certo ceticismo se conforma
muito mais ao projeto dos grandes filsofos do sculo XVIII do que o dogmatismo que lhes c
geralmente e erradamente atribudo. Da mesma forma, seu conceito de razo era muito dife-
rente do racionalismo cartesiano, abrindo espao para a valorizao da experincia, dos
sentidos e dos sentimentos, propiciando at que surgisse, do seio do Iluminismo, o
movimento considerado como seu antpoda: o Romantismo.
So tais conceitos rgidos a respeito de um assunto to rico e complexo que pretendemos
atacar e modificar neste livro. E com isso, de cena forma, estaremos fazendo jus ao prprio
objeto aqui tratado, que se define pelo poder da crtica, pela insatisfao diante de todo o
consagrado, pela desconfiana em face de toda a unanimidade. Em um tempo em que a
clssica pergunta "o que fazer" retorna necessria e urgente, acreditamos que esses
temas e questionamentos adquirem uma importncia e uma oportunidade evidentes.
11
O que Iluminismo?
Como em um balano do sculo que findava, a pergunta "o que Iluminismo?" animou um
importante debate na Alemanha entre 1783 e 1784, famoso pela riqueza das respostas
apresentadas, especialmente a de Immanuel Kant, professor da Universidade de
Knigsberg. Mas, bem antes dessa data, grandes pensadores j buscavam explicar o nome
escolhido para a poca de transformaes em que viviam: sculo das luzes, do
esclarecimento. que, apesar de muito sugestiva, a metfora da luz; da clareza das idias,
no era precisa quanto a seus possveis significados. E o debate continuou, assim, at
nossos dias, suscitando as mais variadas definies.
A questo fica ainda mais complicada se acrescentarmos o problema da relao entre o
pensamento Iluminista e a Revoluo Francesa de 1789. Novamente, esta relao foi
assinalada na prpria poca, pelos revolucionrios e pelos primeiros intrpretes dos
acontecimentos. Em certo momento, chegou-se a conceder a mais alta honraria a Voltaire e
a Rousseau, pensadores rivais, s reunidos pela homenagem que transladou seus restos
mortais para o Panteo dos heris da ptria.
Ao prestar tributo a eles, a Revoluo mostrava no estar interessada nas diferenas
entre suas obras, mas em reconhecer o dbito intelectual dela mesma para com a profunda
crtica social e poltica contida em ambas. Mas o aspecto estranho dessa reunio pstuma
no tardou em chamar a ateno de intrpretes posteriores, que passaram a lanar
dvidas sobre a naturalidade do enraizamento da Revoluo no Iluminismo. Afinal, nem
todos os pensadores do "sculo das luzes", a comear pelo prprio Voltaire,
13
apoiariam totalmente o que ocorreu na Frana depois de 1789 Mais ainda, o fato de se ter
passado por alto a oposio entre os dois homenageados sugeria no s uma apreenso
superficial das "luzes" pelos revolucionrios, como tambm a falta de unidade intelectual
do Iluminismo.
A respeito do primeiro ponto, da apreenso da filosofia pela
Revoluo, surge o problema da difuso das idias iluministas.
Depois dos estudos detalhados feitos pelo historiador Daniel
Mornet, na dcada de 1930, historiadores mais recentes, como
Norman Hampson e Robert Darnton, mostraram que antes da
Revoluo era relativamente restrita a Circulao dos livros que
tratavam de filosofia e poltica. Conhecia-se Rousseau, por exemplo,
muito mais pelo romance A Nova Helosa e pelo projeto pedaggico
contido no Emio, do que pelo Contrato Social. Era a literatura em
geral, incluindo a de cunho ertico, que mais se publicava, comprava
e lia. Em que sentido, ento, pode-se admitir que os ideais da
Revoluo de algum modo nasceram dos ideais do Iluminismo? E
como imaginar que os livros, caros e disponveis em quantidade
reduzida, at por serem objeto da censura regia, podiam ter atingido as
camadas sociais mais baixas, justamente as mais mobilizadas e
engajadas na Revoluo, a ponto de as terem influenciado? Quanto
falta de unidade das prprias idias iluministas, praticamente todos
os estudos especficos feitos hoje em dia sobre elas e seus autores
enfatizam de modo correto suas diferenas nada
Rosseau e Voltaire, pensadores rivais, reunidos pela posteridade como inspiradores da Revoluo: o Iluminismo no foi uma "escola" intelectual nica, mas sim um movimento de idias que repudiava justamente qualquer sistema rgido e acabado de pensamento.
14
desprezveis. Tornou-se quase um lugar comum assinalar que por Iluminismo no se pode
entender um sistema coerente e homogneo de pensamento, nem sequer com o mnimo de
unidade para classificar uma "escola" filosfica. Deste modo, a que se referiam os
revolucionrios quando estabeleciam no Iluminismo sua origem intelectual? Se
considerarmos as grandes distines entre os pensamentos e pensadores do sculo XVIII, e
no s as existentes entre Voltaire e Rousseau, parece difcil responder pergunta. Por isso
h quem diga que o Iluminismo foi de fato uma, inveno dos revolucionrios na busca por
legitimao ou por unidade de projeto poltico, ou foi uma reconstruo posterior de
historiadores tentando fixar seu objeto de estudo.
Contudo, no h porque exigir do Iluminismo caractersticas idnticas s de outros
movimentos intelectuais. Se ele no foi sistema acabado ou "escola" de pensamento, nem
por isso deve ser classificado como inveno ou construo pura e simples. Se ele
realmente abarca uma multiplicidade enorme de idias e campos de estudo, no admite,
por outro: lado, nenhuma idia: h o que ele exclui, o que ele critica, sendo, alis,
principalmente como atitude crtica que se definiam as "luzes" aos olhos dos seus contem-
porneos. Podemos partir, ento, dessa autoconscincia da poca, at porque ela
estabelece algo de real no Iluminismo.
A liberdade de tudo criticar no , porm, um comportamento apenas negativo, apenas
excludente de determinados objetos ou formas de estud-los. A crtica ao mesmo tempo
aponta para o que deve ser aceito e afirmado. H um conjunto de temas e questes
recorrentes na obra dos filsofos mais diversos, h pressupostos presentes em todos eles.
Assim, o Iluminismo no se restringe a uma simples atitude de crtica, envolvendo
necessariamente o ponto de vista a partir do qual ela era feita. Mas a crtica constituiu, sem
dvida, um elemento fundamental no movimento das idias, imprimindo-lhes uma dinmica,
impedindo que se cristalizassem numa totalidade esttica, pronta. O Iluminismo no podia ter
uma forma sistemtica, portanto, j que se definia justamente pelo repdio de todo e
qualquer sistema rgido e acabado de pensamento.
Mais do que uma atitude mental, o Iluminismo foi movimento de idias, no sentido forte de
um processo de constituio e acumu-
15
lao de saber sempre renovado e sempre capaz de ser modificado ate nos fundamentos.
Este o significado da mxima latina com a qual Kant definiu o Iluminismo na sua reposta
polmica de 1784. mencionada acima: "sapere aude" - "ousa saber", isto , "ousa servir-te do
teu prprio entendimento", sem imitar ou aceitar passivamente as idias das autoridades
reconhecidas e temidas. Mais do que um convite ao
estudo o lema uma convocao independncia
intelectual diante dos demais, incluindo a os grandes
filsofos: independncia diante dos consagrados modos
de ver o mundo, diante de todo o conhecimento que se
apresenta como definitivo, diante dos pressupostos em que
se assenta o saber, inclusive o saber prprio.
A mxima kantiana expressa a postura generalizada
de inconformismo com que se caracteriza o seu
sculo, e tambm, a partir da, define o Iluminismo como
um verdadeiro movimento das idias. Se na prtica
permaneceram intocados tantos pontos de partida
filosficos - os temas e as questes recorrentes
assinalados acima -, por outro lado, fazia parte da
disposio esclarecida poder tambm modific-los. Neste
sentido, perfeitamente iluminista a proposta a partir da
qual Kant elaborou o projeto para a obra filosfica que
realizaria a partir de 1780: j que a razo se definia como
o direito de tudo submeter a exame, tambm ela deveria
ser submetida a seu prprio crivo, aparecendo como
"crtica da razo" pela razo.
16
Jean-Jacques Rousseau, o iluminista, numa alegoria do sculo XVIII, a qual o retrata como o "pai espiritual" da Revoluo Francesa.
O Iluminismo capaz, assim, de autocriticar-se, de voltar-se at contra si mesmo,
coroando uma trajetria de constantes modificaes, dentro da qual ele j havia se
desenvolvido em direes diferentes e conflitantes. Como veremos, d radicalizao de
sua atitude geral de suspeita, por exemplo, que surge a tendncia ao ceticismo, marcante
em Voltaire e especialmente em Hume, contrariando uma concepo bastante difundida
atualmente do Iluminismo otimista quanto s possibilidades de tudo explicar entender.
Bem como dentro dele que se desenvolve o cultivo da subjetividade individual, da
intimidade psicologicamente analisada pelo romance, que levar finalmente ao movimento
literrio e filosfico do Romantismo, profundo e duro crtico das "luzes".
Por isso, indo alm das interpretaes que simplesmente: constatam a falta de
homogeneidade das idias iluministas, deve-se reconhecer que elas eram ambguas,
sendo sua unidade complexa e precria; mas tambm que, dessa ambigidade, resultavam
conflitos e tenses responsveis por seu movimento, pelo desdobramento de conceitos e
raciocnios latentes, explicitados atravs do confronto com seus contrrios. Tal processo,
deste modo, ocorre de acordo com uma dialtica que supera a concepo da unidade das
idias apenas como homogeneidade e coerncia absoluta.
E com essa definio do Iluminismo, de certa forma comea a ficar visvel inclusive a
relao entre o Iluminismo e a Revoluo. Tradicionalmente apresentados como fenmenos
distintos, mesmo nas verses mais sofisticadas em que so associados como imagens se
espelhando mutuamente, uma no campo das idias e a outra no da ao, seu vnculo ,
porm, mais estreito. Afinal, o Iluminismo foi tambm uma prtica, pela qual idias eram
produzidas, difundidas, criticadas e modificadas. E a Revoluo possua uma inevitvel
dimenso de projeto elaborado no campo terico, embora sua execuo levasse para alm
dessa dimenso inicial. De qualquer modo, na medida em que movimento de crtica, o
Iluminismo tem um aspecto revolucionrio: por definio, ele nunca pode fixar
funda-mentos rgidos e construir um sistema acabado e imutvel de dias, mas,
inversamente, sempre contest-las e modific-las. Aparece aqui um primeiro conceito de
revoluo, ligado forma em que se dava a constituio da prtica terica iluminista.
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Mas, alm da forma de movimento das idias, qual o contedo poltico e social que define
o conceito mais abrangente de revoluo? Antes de tudo, devemos ter o cuidado de no
alargar tanto o conceito que ele pouco tenha a ver com a autoconscincia do sculo XVIII,
pois foi nos seus quadros que se elaboraram os projetos revolucionrios. Uma definio
anacrnica faria ressurgir a dicotomia que separa rigidamente os campos da teoria
iluminista e da ao revolucionria, como se esta ltima pudesse ter sentido
independentemente das idias em jogo. As perguntas mais frteis, neste caso, seriam: qual
o significado da palavra revoluo naquele contexto e por quais transformaes passou
esse significado durante a prpria Revoluo? Ou ainda, como a prtica poltica alterou os
conceitos? Aqui essencial atentarmos para o fato de que as referidas homenagens feitas a
Voltaire e a Rousseau ocorreram em dois momentos distintos do processo - 1791 e 1794,
respectivamente - o que ajuda a explicar a estranheza dessa reunio dos dois filsofos
adversrios.- Em cada momento, a Revoluo se concebia de moda diferente,
correspondendo obra de um deles
18
Rousseau em meio nos
filsofos atenienses,
alegoria datada de 1793.
mais que do outro e conferindo, a cada um, um significado especfico. Essa diferena
crucial para entendermos todo o processo, organizando a diviso do captulo final deste livro.
A profunda relao entre a teoria e a prtica, alm disso, explica tambm a forma do
desenvolvimento ds idias iluministas, que s era revolucionria por estar inserida em um
quadro maior de uma revoluo real. Ou seja, o Iluminismo nasce de um contexto
revolucionrio, que o que lhe conferiu o aspecto crtico pelo qual se definiu e constituiu.
Veremos com detalhes adiante que no mbito das Revolues na Inglaterra do sculo
XV11 - a Puritana de 1640 e a Gloriosa de 1688 - elaborado e consagrado um
pensamento crtico, marcando decisivamente o sculo seguinte em toda a Europa.
O que l se produziu foi uma primeira refutao e recusa do Absolutismo monrquico
como forma de governo, associada desde ento tirania e usurpao dos direitos
tradicionais do povo. A doutrina clssica do "direito natural" foi fundamental nessa definio
dos direitos e de sua usurpao: concebiam-se tais direitos como prprios do ser humano
por sua natureza, e no como algo concedido pelas leis de um governo ou mesmo de uma
determinada sociedade. Por isso, em nenhuma situao de ordem poltica ou social seria
legtimo que eles fossem confiscados ou enfraquecidos. Quem o fizesse seria por definio
um tirano, e ao povo seria lcito dep-lo. O direito de rebelio ou revoluo estava assim as-
segurado, num precedente histrico de enorme significao.
De fato, o sculo XVIII apreendeu essa importante lio, e enquanto os ingleses velavam
ciosamente por preservar a liberdade conquistada, as outras naes europias olhavam com
admirao para o seu exemplo, aspirando obter um sistema semelhante. E o Iluminismo
tratou de da deduzir as conseqncias tericas, a partir do pressuposto da existncia desses
"direitos naturais", sempre presentes nas obras dos mais importantes filsofos, embora em
formulaes diferentes. Eram tais direitos que constituam a base a partir da qual a crtica ao
despotismo e ao dogmatismo se exercia, determinado a tarefa das "luzes". Assim, se a
filosofia se desenvolveu sobre essa base, apresentando-se como a guardi destes direitos,
ento sua defesa e realizao atravs de uma revoluo
19
Uma jovem, com a bandeira tricolor e o barrete frgio -
smbolo da liberdade , numa homenagem cano francesa.
texto fez referncia a Marselhesa,o
canto de guerra que viria a se transformar, a rjartir de 14 de
julho de 1795, no hino oficial da Frana.
seria a execuo do programa da prpria filosofia. Neste sentido, a relao entre o
lluminismo e a Revoluo est estabelecida desde o incio e por princpio.
Da que a Revoluo Francesa comece aspirando apenas cumprir os direitos naturais,
limitando o poder do rei e eventualmente destronando o tirano. Mas, na medida em que a
ao revolucionria transcende o seu programa, ela foi alm disso, fazendo surgir um
novo conceito de revoluo.
20
Entre duas revolues
A ordem social e poltica existente na poca do lluminismo, a qual este se contraps com
maior ou menor intensidade e que foi finalmente derrocada pela Revoluo Francesa,
passou a ser chamada, a partir de 1789, de "antigo regime". fundamental compreend-lo
em seus vrios aspectos, para resgatado contexto em que se formou o pensamento das
"luzes", delimitando suas possibilidades e configurando o objeto de sua crtica. Assim, o "anti-,
tigo regime" se caracterizou essencialmente pelo rearranjo de foras entre a aristocracia e a
realeza que permitiu a centralizao de poder conhecida como monarquia absoluta; e o
Iluminismo, ao contrrio, distinguiu-se por suas objees de cunho liberal a ela. De fato, a
sociedade francesa do sculo XVIII ainda fortemente hierarquizada e aristocrtica, com o
governo gravitando em torno da figura do rei, centro a partir do qual o poder exercido de
modo inconteste. Por seu turno, os autores iluministas sentem profundamente a
necessidade de alterar tal quadro, tomando como exemplo o sistema poltico adotado pela
Inglaterra depois do longo processo revolucionrio do sculo anterior, que garantiu a
posio fundamental do Parlamento ao lado da Coroa, ao mesmo tempo em que
consagrou o pensamento poltico correspondente a essa forma de governo, o liberalismo.
Este ltimo ser, portanto, constitutivo da crtica iluminista, definindo seu projeto filosfico e
de interveno social. em tomo desse eixo que sero dispostos os outros elementos
distintivos das "luzes", como a filosofia da natureza, do conhecimento e da histria. E por
ele, ento, que deve comear nosso estudo do tema.
21
O ABSOLUTISMO monrquico
Acontecimento marcante da Era Moderna, o surgimento dos Estados nacionais na
Europa se deu sob a forma da monarquia absoluta. A longa crise econmica e poltica dos
sculos XIV e XV havia enfraquecido o poder local dos senhores feudais e das cidades
que gozavam He certa autonomia, permitindo que fossem combatidos com crescente
eficcia pelos reis, especialmente na Frana, Inglaterra, Portugal e Espanha.
Por "absolutismo", entretanto, no se deve entender um regime no qual o monarca
governa sozinho, como se detivesse nas mos a fora poltica total e plena. Alm de ouvir
seus conselheiros geralmente de origem nobre, os reis eram obrigados eventualmente a
convocar Parlamentos ou assemblias gerais de representantes das vrias camadas da
sociedade, de acordo com a tradicional diviso em trs "estados" ou "ordens" sociais: o
clero, a nobreza e a burguesia. Essas assemblias tinham o direito de estabelecer leis" ou
de revogar as promulgadas pela Coroa e, principalmente de aprovar aumentos de impostos
ou a criao de taxas especiais, imprescindveis para financiar as constantes guerras c
outros empreendimentos custosos.
Para no ter de fazer as inevitveis concesses em tais casos, os reis preferiam, usar
recursos do prprio tesouro ou criar outras fontes, como a venda de cargos administrativos
e nobilirquicos ou do direito a arrecadar impostos. Embora conseguissem deste modo
permanecer s vezes muitos anos ou at dcadas sem convocar os rgos
representativos, alguma circunstncia de crise econmica ou nas finanas do Estado
acabava obrigando-os a faz-lo, o que podia inaugurar um perodo de conflito, como
ocorreu na Inglaterra de 1640 ou na Frana de 1789.
Em que sentido, ento, essas monarquias podem ser chamadas de "absolutas"? O
termo refere-se basicamente centralizao do poder realizada nesta poca em diversas
dimenses da vida pblica. Em primeiro lugar, tratava-se de formar um territrio unificado
por onde se fizesse cumprir a autoridade real, combatendo, como j foi dito, as senhorias
feudais e as cidades relativamente autnomas, ambas ciosas por preservar sua parcela de
indepen-
22
dncia. Embora fossem vassalos do rei, conforme o ordenamento jurdico medieval, na
prtica elas se valiam das imensas dificuldades de transporte e de comunicao para
desconhecer a vontade do suserano e continuar exercendo o poder local que o
mesmo ordenamento feudal lhes outorgava. S uma poltica tenazmente perseguida
ao longo de sculos, atravs de guerras internas e concesses habilmente feitas e
depois retiradas, que permitiu aos reis a obteno gradual do controle de regies
mais distantes do ncleo original, no qual sua autoridade era reconhecida.
Alm do enfrentamento direto de seus rivais, a estratgia para realizar a
centralizao variava conforme a situao. No caso da luta contra a aristocracia,
porm, predominou uma espcie de aliciamento. Por um lado, a nobreza rural foi
perdendo a capacidade militar de opor-se aos levantes camponeses de crescente
envergadura, contando para isso com o auxlio das tropas reais, numa aliana
fundamental para a sobrevivncia feudal. Por outro lado, o fenmeno persistente da
inflao durante o sculo XVI, associado ao afluxo de metais preciosos da Amrica
recm-conquistada, levou muitas casas aristocrticas de tradio medieval falncia,
obrigando-as a vender seus domnios baixa nobreza em ascenso ou a elementos
da burguesia urbana, desejosa de enobrecimento pela posse de terras.
Tal processo revelou-se ainda mais forte na Inglaterra, onde as terras confiscadas da
Igreja Catlica pela Reforma Anglicana foram vendidas pela Coroa, numa forma de
evitar a convocao do Parlamento. Surge a uma nova aristocracia, a "gentry" (os
gentis-homens), de origem freqentemente burguesa, iniciando um tipo capitalista de
explorao de suas propriedades rurais e influenciando com essa mentalidade os
remanescentes da velha aristocracia tradicional. Os ttulos de nobreza necessrios
para o reconhecimento do status desse grupo eram concedidos ou vendidos pelo
monarca, que gradativamente consolidou sua posio de fonte nica do
enobrecimento - privilgio que at ento ele dividia com os senhores mais
importantes, de acordo com os cdigos de suserania da Idade Mdia.
Mesmo na Frana, onde era bem menor a relevncia dos gentis-homens, tambm
ocorria a venda de ttulos nobilirquicos e a
23
ascenso social de funcionrios da Coroa, chamados justamente de "nobreza
de toga". Com isso tudo, enfim, os reis concentram ao seu redor a
aristocracia, em Cortes significativamente ampliadas. O exemplo mais
brilhante desse movimento a construo do palcio de Versalhes por Lus
XIV em 1682, para onde levou os nobres, que passaram a gravitar alegre-
mente em tomo do "rei-sol". Conseqncia disso e de toda a reestruturao
militar foi o progressivo desarmamento da aristocracia, que perde a funo
distintiva por ela possuda na tradio feudal. Ao processo de monopolizao
do enobrecimento pelo monarca, segue-se ento o de monopolizao da
violncia, isto , o direito exclusivo do uso da fora pelo Estado.
Quanto s cidades e suas burguesias de mercadores e mestres artesos,
a centralizao do poder implicou retirar delas a autonomia para determinar a
qualidade e a quantidade dos bens produzidos e comercializados. Essa
autonomia, garantida na Idade Mdia pela fragmentao da autoridade,
contraria a necessidade concentradora do Estado moderno e levou a um
longo confronto de interesses entre este e os patriciados urbanos, s vezes
muito poderosos. quando se inicia o chamado "mercantilismo", poltica de
regulamentao governamental da economia, que passa a ser concebida tambm
como esfera pblica e no apenas privada. Paralelamente integrao poltica do
territrio, acontece, portan-
24
L.us XIV, o "rei-sol", a quem se atribui a frase clebre, sntese do absolutismo: L'tat c'est moi (O Estado sou eu).
to, a formao de mercados "internos" maiores, no mbito de regies cada vez mais amplas at configurar um
todo nacional.
Contudo, deve-se observar que "o poder, central no extingue simplesmente as fronteiras e barreiras
existentes; antes, ele as domina e mantm, passando a control-las e coorden-las em seu prprio benefcio.
este o sentido dos "Regulamentos" das manufaturas francesas, por exemplo, institudos em 1663 por Colbert,
superministro da economia de Lus XIV. Mantidos por mais de um sculo, tais regulamentos conservaram as
limitaes tpicas das antigas corporaes de ofcio e de comrcio, estabelecendo a forma da produo, o
nmero de mestres, aprendizes e assalariados de cada manufatura, bem como o tipo e a quantidade de cada
produto e a esfera de sua comercializao.
E outros Estados europeus atravessavam processo semelhante de criao de "guildas" nacionais, s quais
era acrescentado o enfraquecimento do poder econmica local e regional dos senhores feudais. Se
tradicionalmente estes tinham o direito a cunhar moedas, a fixar pesos e medidas, a estabelecer taxas e a cobrar
pedgio sobre a passagem de mercadorias por seus domnios; esses direitos so paulatinamente deles retirados
e concentrados, pela monarquia. Assim como a cunhagem de moeda e a fixao de medidas vo se tornando
monoplio do Estado central, tambm isso ocorre com os pedgios, que continuam a existir, s que agora
explorados pela Coroa, como o caso mais claro da Alcabala na Espanha.
LIBERALISMO e direito natural
Alm da monopolizao da fora militar e de coordenao administrativa, um dos instrumentos mais eficazes
para realizar toda essa centralizao de poder poltico e econmico foi a retomada do Direito Romano. Isso j
vinha acontecendo desde o fim do perodo medieval no mbito privado, do Direito Civil que reintroduzia
instituies como a propriedade particular plena - caracterizada pelo direito de venda e no s de usufruto de um
bem -, bem de acordo com as convenincias do comrcio em expanso. Mas, em seguida, as exigncias
polticas do Estado moderno levaram a recuperar
25
inclusive o Direito-Pblico dos romanos, baseado na concentrao do poder na figura de
um prncipe ou do senado.
O desenvolvimento jurdico inevitvel para adaptar as instituies antigas s
necessidades do presente criou novos conceitos, dentre os quais talvez o mais importante
tenha sido o de "soberania", ncleo da obra Da Republica do francs Jean Bodin
(1530-1596), publicada em 1576. O "soberano" no obrigatoriamente o monarca,
conforme o uso corriqueiro da palavra, mas o poder centralizado, absoluto, que se coloca
super omnia, sobre todos. Ou seja, acima do nvel particularista do domnio senhorial e da
relativa autonomia urbana, h uma instncia mais alta, para a qual converge todo o poder
dentro de um territrio e que tem a tarefa de unific-lo.
Na "soberania" a centralizao poltica encontrou a categoria mais adequada para
pensar-se e legitimar-se. Sua elaborao nos quadros do Direito Romano retomado,
porm, teve de levar em considerao um outro marco legal importante na poca, desen-
volvido pelo menos desde o sculo XIII, o "jusnaturalismo". Tambm derivada do
pensamento jurdico romano, foi intensamente discutida pelos telogos e filsofos
medievais a doutrina de que, antes mesmo da vida poltica, j a natureza impe aos homens
um conjunto de leis cujo cumprimento define uma dimenso fundamental da existncia,
uma "justia natural". Na medida em que fundamental, essa dimenso estabelece uma
primeira forma de sociabilidade qual a vida poltica deveria se conformar: as leis criadas
pelo homem so posteriores s da natureza e no podem viol-las; se o fizerem, haver um
abuso condenvel. Ora, na medida em que a natureza com suas leis criao direta de
Deus, a Igreja tem a incumbncia de cuidar, para que no sucedam tais abusos, para que
se realize o "naturalmente justo".
No preciso destacar o evidente interesse da Igreja em semelhante doutrina, que lhe
assegurava a posio de juiz dos reis e governantes, da justeza dos seus atos e leis. A
partir do sculo XVI, porm, o contexto da Reforma Protestante e das guerras religiosas
altera esse quadro exatamente quando o conceito estratgico de "soberania" est em
elaborao. Neste momento, no mais religio, cindida, que deve caber o papel de rbitro
moral da poltica.
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H autores, como Nicolau Maquiavel (1469-1527), que chegam da a negar a qualquer
instituio este papel: especialmente em seu livro O Prncipe, de 1513, ele antecipa o
dilema surgido logo depois com a Reforma e prope como soluo a separao entre o
crculo da vida privada, terreno da moralidade, e o da vida pblica, ordenado por regras
prprias. Outros aurores, no entanto, como o prprio Bodin, no o acompanham
inteiramente e procuram solues alternativas. O problema que, por um lado, se o poder
do Estado central soberano, ento por princpio no h instncia acima dele que o possa
avaliar e julgar; por outro lado, Reconhecer a existncia de uma tal instncia parece
implicar de certo modo na limitao da soberania.
A concepo medieval de "direito natural" ressurge ento nesta nova situao,
parcialmente despojada de suas conotaes teolgicas. Trata-se agora de pensar se
haveria uma sociabilidade possvel sem o ordenamento civil, ou melhor se existiria
sociedade sem o Estado garantindo e coordenando seu funcionamento. Recusar essa
possibilidade afigurava-se como a atitude mais coerente com a definio da "soberania",
que exigia a subordinao das formas mais elementares de poder, presentes em todas as
relaes sociais, ao nvel mais elevado da esfera pblica. E, de fato, os autores do sculo
XVI se inclinavam a conceber o mbito natural da humanidade como uma situao de
barbrie, em que seria impossvel existirem leis garantindo uma sociabilidade harmoniosa. E
s o sculo seguinte que introduz um aspecto novo e crucial nesta questo.
Com a obra do holands Hugo Grotius (1583-1645), principalmente o seu Do Direito da
Guerra e da Paz, de 1625, as relaes sociais passam a ser definitivamente pensadas de
acordo com o modelo jurdico do contrato, em que as pessoas se vinculam pela
transferncia mtua de suas propriedades, com obrigaes e direitos recprocos. Aqui, o
indivduo a base da sociedade, antecedendo a esta, pois pelo seu consentimento e
pelo exerccio da sua vontade que os acordos so firmados. Mais ainda, a propriedade
pertence sua individualidade e a constitui, sendo seu intercmbio que define a forma
bsica do vnculo social: porque so proprietrios, eles tm o direito de vender um bem,
cedendo a outro o direito de us-lo. Finalmente, na formulao de Grotius, h um
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tipo de sociabilidade anterior instituio do Estado, operando pelas regras do
contrato. Mas Grotius ambguo a respeito do estatuto dessa relao contratual, no
definindo claramente se ela corresponde ou no natureza humana, ou seja, at que
ponto ela limita a soberania do Estado.
Por essa ambivalncia, sua obra originou interpretaes diferentes, at conflitantes,
com o filsofo ingls Thomas Hobbes (1588-1679) defendendo uma viso mais estrita
da autoridade do soberano. Nas obras Do Cidado e O Leviat, publicadas em 1642 e
1651, respectivamente, Hobbes, parte da definio da relao social corno contrato entre
indivduos, para em seguida demonstrar que no "estado natural" esses contratos
seriam apenas virtuais, no havendo como imp-los definitivamente se uma das partes
decidisse no o cumprir. Os interesses divergentes dos indivduos os conduziriam a uma
verdadeira "guerra de todos contra todos" que s cessaria mediante um acordo geral,
pelo qual todos consentiriam em ceder seu direito ao uso da fora a um poder nico e
central, justamente o soberano. Este seria estabelecido, assim, tambm por um
contrato, com direitos e obrigaes recprocos entre ele e seus sditos; tal seria o
"contrato social", mais tarde formulado por Rousseau.
A ambigidade presente na teoria de Grotius, por outro lado, suscitou uma
interpretao oposta, quanto aos resultados, hobbesiana: especialmente no Segando
Tratado do Governo Civil de 1689, o tambm ingls John Locke (1632-1704) formula uma
concepo poltica na qual a sociabilidade contratual seria efetivamente, e no s
virtualmente, possvel. Os indivduos tenderiam a respeitar os acordos firmados no nvel
elementar de suas relaes "naturais", sob as quais Locke compreende os laos
familiares e o modo com que as famlias administram seus bens domsticos e os
intercambiam umas com as outras, j definindo um nvel bsico de economia.
Mas esse acordo apenas possvel, no inevitvel. Podem tambm ocorrer conflitos
que ponham em risco a sociedade "natural", tomando nulos os contratos e ameaando
a propriedade privada, que os contratos reconhecem e transferem mutuamente. Por
isso preciso instituir o Estado "civil" com suas leis e sua soberania, determinada,
como em Hobbes, por um contrato de tipo social. Mas, diferentemente de Hobbes,
como o "estado natural" possvel, ele
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constitui de fato uma esfera social que deve ser mantida, respeitada e garantida pelas leis
civis. Mesmo depois de instituda a vida poltica, portanto, essa esfera permanece e, alis,
ela a razo de ser da prpria poltica. Mais ou menos como pensavam os jusnaturalistas
medievais, as leis civis no poderiam violar as da natureza, sob pena de configurar um
abuso, uma tirania da poltica. Na formulao de Locke, o Estado realmente soberano,
mas s no sentido de que no h poder particular acima dele; a sociabilidade primeira, dos
laos familiares e, sublinhe-se, da economia, no pode ser invadida.
Desta maneira, de um golpe Locke funda o liberalismo poltico, e econmico. A
propriedade privada um "direito natural", bem como o so os contratos entre os
indivduos. O ordenamento jurdico no institudo para permitir a prpria existncia
desses contratos, como em Hobbes, mas simplesmente para garantir seu reconhecimento
universal, de modo que no sejam ameaado! Na teoria de Locke, por isso, o
consentimento geral transfere ao soberano apenas o direito ao uso da fora, mas no o
de dispor das propriedades dos indivduos e de interferir em seu comrcio. O abuso de
tal direito legitimaria a deposio e substituio do soberano - isto e, uma "revoluo".
Com esse conceito se encerra e completa um vasto processo intelectual. Mas no por
acaso Locke chegou a ele. Se ele foi se decantando e preparando durante o longo debate
sobre os direitos naturais, este debate, por seu turno, s teve significado no contexto de
uma revoluo efetiva, sem o exame da qual o movimento das idias quase
incompreensvel.
A REPBLICA de Cromwell
Enquanto a Inglaterra teve um sculo XVI relativamente tranqilo no plano interno, sem
grande contestao reforma pela qual Henrique -VIII instituiu o anglicanismo como religio
oficial, a Frana agitou-se no sangrento conflito entre catlicos e huguenotes (protestantes
seguidores das doutrinas de Calvino). Como em quase toda a Europa, o protestantismo a
se expandiu convertendo setores da burguesia e da nobreza e destruindo a unidade
espiritual que ci-
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mentava os vnculos sociais. O problema era ento especialmente grave, pois nesse mundo
ainda to impregnado pelo feudalismo as relaes polticas se baseavam fortemente na
lealdade pessoal tpica dos laos de vassalagem, que supunham a comunho dos mesmos
valores ticos e religiosos, a confiana recproca.
O estopim da luta entre os grupos antagnicos foi a crise poltica dos estertores da
dinastia francesa Valois, momento em que justamente a diviso das crenas coincide com a
das grandes linhagens senhoriais. Quando o aspecto religioso passa a envolver mais
claramente o social, sublevando parte da burguesia e do campesinato. a aristocracia sente-se
ameaada e volta a se unir, encerrando o conflito ao entregar o trono a Henrique de Navarra.
com quem inicia a dinastia Bourbon em 1589. S a partir da que o absolutismo
monrquico delato se consolida na Frana, principalmente com a atuao de Richelieu,
primeiro-ministro de Lus XIII, e do prprio Lus XIV, em cujo longo reinado (1643-1715) as
instituies polticas e administrativas centralizadoras so aperfeioadas ao mximo.
Entretanto, na Inglaterra, a estabilidade era possvel por uma circunstncia particular, j
mencionada: a venda das terras confiscadas aos mosteiros catlicos por Henrique VIII
transformou seus compradores burgueses num novo tipo de aristocracia e criou padres
sociais e econmicos aos quais at a nobreza tradicional teve de se adaptar. Ampliou-se o
espao de confluncia entre as duas classes, que passaram a ter interesses comuns e
encontraram nas duas Cmaras do Parlamento o caminho mais apropriado de_
expresso poltica. Foi a criao desta via institucional para suas lutas e reivindicaes,
junto com a hegemonia social de uma aristocracia negociante e desarmada, que impediu a
pronta transformao das divergncias religiosas em guerra civil.
A situao comparativa entre a Inglaterra e a Frana se inverte, entretanto, no sculo
seguinte, no qual o fortalecimento do absolutismo francs coincide com a irrupo da
guerra civil do outro lado do Canal da Mancha. A conjuntura econmica europia se alterou
no incio do sculo XVII, passando de uma poca de expanso para uma longa crise, em
que os preos das mercadorias caam, desestimulando sua produo e comercializao. Os
lucros c as rendas se reduziam, e o Parlamento ingls comeou a exigir
30
reformas econmicas condizentes, enfrentando o conservadorismo do rei Jaime I, da nova
dinastia Stuart que substitura a antiga, Tudor, em 1603.
O conflito entre a Coroa e o Parlamento se agravou cada vez mais,) alcanando o auge no
reinado do sucessor de Jaime, Carlos I, que fechou a instituio e governou de modo absoluto
entre 1629 e 1640 Para obter fontes de renda adicionais sem sua convocao, o rei teve de
recorrer venda de cargos administrativos, de ttulos nobilirquicos e, o que era bem
pior, de monoplios concedidos a grupos de mercadores e artesos privilegiados, que assim
adquiriam o direito de excluir seus concorrentes do mercado interno. Como vimos, uma das
tendncias marcantes da estratgia de poder abso-lutista foi a de retirar a autonomia das
guildas e corporaes de of-cio medievais, controlando suas funes e coordenando-as em
mbito nacional. Com isso, porm, elas no foram eliminadas, e sim reunidas em um
sistema mais ou menos integrado que centralizava o mercado dentro do pas. Embora no
levasse ainda este nome, o "mercantilismo" consistiu, num primeiro momento, muito mais
nessa prtica de interveno do Estado no espao econmico interno, s mais tarde se
estendendo ao externo.
O problema que, apesar de integrar o mercado,
essa estratgia perpetuava e at fazia
aumentarem os obstculos circulao de
mercadorias dentro do territrio: a vantagem do
monoplio para Sesso do parlamento
ingls, cujos membros
passaram a entrar em
choque com a Coroa, ao
exigirem reformas
econmicas no pas. Carlos I ir fechar a
instituio e instaurar
um governo absolutista.
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as corporaes privilegiadas era exatamente a de poder fixar preos mais altos, do que seriam
os estabelecidos por uma concorrncia aberta. Alm de forar os compradores a pagar
mais caro pelos produtos adquiridos, tal poltica exclua uma multido de pequenos
comerciantes e artesos do acesso ao mercado, tornando-se odiosa para eles. At um
determinado ponto, certamente essa poltica representou um progresso em face da
disperso medieval, conseguindo unificar mercados e favorecer a circulao, o que ajuda a
explicar a expanso econmica do sculo XVI. A partir deste ponto, contudo, ela dificultou a
acumulao interna do capital comercial e o investimento dos seus lucros na produo de
mercadorias, envolvendo a economia em uma camisa-de-fora. E isso precisamente em uma
poca de crise, o que s fez agrav-la.
A unio de todos os grupos sociais prejudicados pelo absolutismo Stuart levou
revoluo. Quando Carlos I se viu obrigado a reabrir o Parlamento depois de 11 anos, devido a
uma guerra contra a Esccia, teve de enfrentar severas crticas e pesadas exigncias,
precipitando os acontecimentos. Desta vez no foi possvel fechar a instituio, que s
recusou a cumprir ordens reais e organizou a resistncia armada em 1642. Defrontaram-se,
ento, de um lado, seus defensores, a quem vieram logo se juntar elementos das classes
mdias rurais e urbanas - os excludos dos monoplios - e de outro a alta nobreza, partidria
da Coroa. O conflito durou a dcada inteira, entremeado por uma tentativa fracassada de paz
em 1647, na qual houve uma interessante mudana de posio por parte de alguns
parlamentares, que passaram a defender a causa do rei, fato que sem dvida aponta para a
reconfigurao das diferenas polticas e religiosas em jogo.
Com efeito, desde o comeo da luta, o partido do Parlamento congregava faces com
interesses e crenas diversas. Havia nele elementos oriundos da baixa nobreza e da alta
burguesia, lutando por fazer valer a autoridade da instituio em face da Coroa. Mas havia
tambm os que eram apoiados pelos pequenos proprietrios, reivindicando mudanas de
carter social, como a extino dos monoplios e privilgios econmicos. Alm disso, esses
grupos mais radicais geralmente professavam religies de inspirao calvinista, que
asseguravam o "direito divino" de depor tiranos e se aproximavam do ideal republicano.
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Os calvinistas designados na Inglaterra de "puritanos", enricavam j h algum tempo a
Igreja Anglicana oficial por estar demasiadamente prxima do catolicismo em sua doutrina,
exigindo um protestantismo mais radical. A insatisfao religiosa se aliava poltica e social,
deste modo, e alimentava a oposio que o grupo dos pequenos proprietrios fazia
monarquia. Foram principalmente membros desse grupo que formaram o "exrcito de novo
tipo", comandado por Oliver Cromwell e assim chamado porque seus soldados eram
assalariados, abstendo-se da prtica comum na poca de saquear o campo inimigo.
Desta forma, era claro o predomnio poltico dos pequenos proprietrios rurais e urbanos no
famoso debate de Pumey, em 1647, quando o exrcito de Cromwell se reuniu para discutir os
rumos da revoluo. Estavam presentes, porm, representantes das outras classes que
compunham esse exrcito, de modo que o debate evidenciou a variedade da sua composio
social. A grande diferena entre, as propostas apresentadas exprimia a oposio entre o
interesse dos pequenos proprietrios e o dos trabalhadores e camponeses que haviam
aderido ao conflito: estes reivindicavam direitos radicais, como o sufrgio universal e a
igualdade de todos perante a lei - plataforma dos chamados "niveladores" - ou at a
igualdade social com a abolio da propriedade privada e o retoma das terras posse
comunal - pedida pelos denominados "escavadores".
Venceu a faco predominante, liderada por Cromwell e seu genro, Ireton, consagrando
as reivindicaes mais moderadas dos proprietrios. Apesar disso, o radicalismo, do debate,
muito avanado para as condies da poca, assustou a ala conservadora do Parlamento,
formada por alguns nobres e grandes mercadores privilegiados. Seus representantes
resolveram ento mudar de lado e animaram o rei a retomar a luta, para reaver suas
prerrogativas absolutistas. Mas com essa defeco dos conservadores, a ala que
permaneceu foi a mais revolucionria - alguns membros liberais da baixa nobreza e, mais
importante, os defensores do interesse dos pequenos proprietrios prejudicados pelos
monoplios. E o triunfo deles que explica a subseqente execuo de Carlos I, em 1649, e
a implantao da repblica governada por Cromwell.
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A REVOLUO no pensamento
Todo esse processo revolucionrio foi acompanhado, por outro lado por um
movimento intelectual no menos importante. Desde os tempos do confronto entre o
Parlamento e Jaime I, ilustres partidrios de cada um tomaram da palavra para
defender suas posies, produzindo discursos polticos de grande relevncia e
repercusso. Foi o caso da polmica entre o jurista Edward Coke e o filsofo Francis
Bacon, na dcada de 1620, sobre a relao entre o Direito Costumeiro ingls,
defendido pelo primeiro, e as prerrogativas do rei amparadas pela retomada do
Direito Romano.)
Em, seguida, o agravamento do conflito poltico multiplicou o nmero de panfletos e
livros, ao mesmo tempo em que consolidou o debate, no qual algumas idias puderam
alcanar grande elaborao e refinamento. quando se formula, por exemplo, a teoria
do "direito divino" dos reis, apresentada por Robert Filmer (1588-1653) em escritos
polticos de 1648 a 1653 e depois em O Patriarca, publicado em 1680. tambm ento
que Hobbes publica os livros j mencionados, nos quais a penetrante anlise dos
fundamentos e limites do poder tem como objetivo a interveno na discusso da
poca, embora sua profundidade faa deles clssicos lidos at hoje.
A restaurao da monarquia em 1660 no sepultou as idias elaboradas no
perodo revolucionrio, que voltaram tona com o novo conflito entre o Parlamento e
o rei Carlos II vinte anos mais tarde. Filsofos como Tyrrel e Locke retomam a polmica
com Filmer e Hobbes, reinterpretando a tradio dos "direitos naturais" sobre a qual se
assentava todo o debate poltico do sculo. E quando triunfa a Revoluo "Gloriosa" em
1688, garantindo definitivamente a supremacia do Parlamento ingls sobre a Coroa
com a deposio de mais um rei, Locke retorna do seu exlio na Holanda para publicar o
Segundo Tratado do Governo Civil, rio ano seguinte.
Como vimos, esta obra afirma a efetividade dos contratos entre os indivduos no
"estado natural", que reconhecem reciprocamente suas propriedades privadas,
podendo, da intercambi-las. Assim, a esfera social em que no pode intervir o poder
poltico fica definida como a das relaes econmicas, ao mesmo tempo em que
nestas se funda um novo objeto de estudo. Realmente, mesmo
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sem ter desenvolvido em seus prprios trabalhos todas as possibilidades que abriu
com seu conceito de "estado natural", Locke pelo menos inaugura um dos campos
mais frteis que o sculo XVIII viria a explorar, o da Economia.
As conseqncias tericas da sua formulao j eram visveis: como as relaes
econmicas existem por si mesmas, suprflua e indesejvel a interferncia do Estado
nesta esfera, prenunciando o lema do liberalismo: "laissez-faire, laissez-passer ("deixai
fazer, deixai passar"). E no menos evidentes eram as consequncias prticas, pois,
atendendo s reclamaes dos pequenos comerciantes e artesos, desde 1649 no
foram mais renovadas as concesses de monoplio para o mercado interno ingls, o
que fez com que rapidamente desaparecessem. Os capitais podiam, portanto,
circular livremente e se acumular, sendo inclusive reinvestidos na produo dos bens
comercializados, de modo a propiciar o enorme crescimento das manufaturas da
Inglaterra e a sua posterior Revoluo Industrial.
Igualmente importante a anlise da extenso e das formas do poder poltico, feita
no Captulo 12 do Segundo Tratado do Governo Civil, com a proposta inovadora de
diviso tripartite das funes do Estado. Locke distingue o poder Executivo do
Legislativo, determinando uma relao entre a Coroa e o Parlamento que
correspondia perfeitamente aos resultados liberais alcanados pela Revoluo
Inglesa. O poder executivo, junto com o terceiro, que ele chama de "federativo", isto ,
de fazer a guerra ou a paz com o estrangeiro, deve ser subordinado ao Legislativo, pois
este eleito e representa diretamente o povo.
Por fim, Locke enfrentou habilidosamente a tarefa de pensar o poder a partir de
bases laicas numa poca marcada pelas lutas religiosas, no s na Inglaterra e na
Frana como tambm na Alemanha, onde se deu a devastadora Guerra dos Trinta
Anos. entre 1618 e 1648. O conflito alemo havia expressado bem o problema, ao
terminar impotente para separar o Estado da f, impondo ao sdito que seguisse a
religio do seu prncipe. Mantinha-se a em pane a noo feudal de que a obedincia
poltica se fundamentaria na lealdade pessoal, assegurada pelo fato de os suseranos e
vassalos compartilharem da mesma convico, isto , idnticos valores morais e
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crenas religiosas. Este era, alis, um dos sentidos do ritual de "sagrao" do cavaleiro, no
qual a posio social e poltica do vassalo em face do superior se respaldava em seu carter
sagrado.
Como vimos, no entanto, a ciso religiosa originada na Reforma, Protestante tomou
necessrio buscar em outra fonte o fundamento da obedincia e dos direitos civis. Grotius e
Hobbes j tinham visto claramente a questo, solucionando-a mediante a substituio da
convico pelo conceito de contrato, estendido da vida privada para a pblica. Em vez da
expectativa pela lealdade do sdito, a obedincia estaria garantida por uma espcie de acordo
que estabeleceria direitos e deveres recprocos entre o soberano e o indivduo. Do mesmo
modo que nos contratos, cada vez mais importantes para os negcios particulares, seria a
expectativa de receber o seu direito que levaria o sdito a prestar o dever correspondente de
obedincia. Na obra de Hobbes, especialmente, essa idia conduzia a uma teoria autoritria do
poder. Por seu rumo, reinterpretando essa doutrina do contrato natural, Locke consegue
conciliar a fundao laica do Estado num contrato social com a exigncia de respeito esfera
privada, chegando at a pensar a participao poltica, a cidadania.
Da para frente, os dois mbitos estavam totalmente dissociados - a poltica na esfera
pblica e a religio como problema privado, pertencente ao foro ntimo. E o argumento das
Cartas sobre a Tolerncia, escritas entre 1689 e 1693: nelas, Locke defende a tolerncia
religiosa como a atitude pessoal que melhor corresponderia situao poltica de
imprescindvel distanciamento entre f e Estado. O dogma religioso no era mais
necessrio para respaldar o poder, e a perda desta importante funo deixou-o merc da
crtica e do livre exame. Assim se configurou o Iluminismo.
A CRTICA como princpio
Ambos bem nascidos e relativamente jovens, gozando j de reconhecimento por suas
primeiras obras literrias e com prognsticos de brilhante futuro, Montesquieu e Voltaire
decidem mais ou menos na mesma poca viajar pela Europa, ampliando horizontes.
Embora inicialmente tenha percorrido outros pases, Charles Louis
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de Secondat - o Baro de Montesquieu - ficou bem mais tempo na Inglaterra, onde fez
amizades importantes chegou a ser admitido como membro da Academia Real. Franois
Marie Arouet - logo conhecido pelo pseudnimo de Voltaire - foi direto a Londres, depois de
uma confuso provocada por alguns versos satricos, que lhe valeu um encarceramento na
Bastilha. No chegaram a se encontrar, mas ficaram ambos encantados com as instituies
e as idias liberais, de que a sua Frana parecia to distante.
De fato, em torno de 1730 a Inglaterra fervilhava de agitao intelectual, poltica e
econmica. O visvel enriquecimento do comrcio e das manufaturas era acompanhado
pelo perfeito funcionamento dos rgos administrativos e polticos, com o Parlamento
frente de tudo, dividindo poderes com uma Coroa apaziguada. A realidade parecia
corresponder plenamente s prescries tericas dos filsofos cujo pensamento imperava
ento, consagrado: Locke e Newton, em especial. Eram concepes ousadas do mundo
humano e do natural, que revolucionavam a tradio do sculo XVII, na qual a Europa
continental estava ainda mergulhada.
De volta sua ptria, Montesquieu e Voltaire se encarregaram, cada um a seu modo, de
difundir o pensamento ingls e desenvolv-lo em funo das condies da Frana. Em 1734,
logo depois de seu, retorno, Voltaire publica as Cartas Filosficas cujo primeiro ttulo foi Cartas
escritas de Londres sobre os ingleses. Nelas o elogio das instituies e da filosofia do pas
vizinho servia para julgar e condenar seus congneres franceses, o que teve grande impacto
junto ao pblico. Mais tarde ele tratou de traduzir e divulgar o pensamento de Newton e de
Locke, sempre com o mesmo intuito crtico. Tambm Montesquieu escreve um Ensaio sobre
a Constituio Inglesa, e a influncia da sua estada na Inglaterra se fez sentir em obras pos-
teriores, inclusive na mais importante, O Esprito das Leis, de 1748. Eles compreenderam que
uma transformao intelectual estava em curso do outro lado do Canal da Mancha, garantida e
posta em prtica pela revoluo poltica l ocorrida em 1688 - considerada por eles como um
exemplo muito mais digno de ser imitado que a de 1642, sangrenta e socialmente
radical.
Ambos sabiam que a Frana tinha caractersticas peculiares e questes prprias a
resolver, mas viam no novo enfoque a vantagem
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de fazer aparecer o contedo delas de uma outra forma, revelando tenses e lacunas
antes insuspeitadas. Na realidade, o desenvolvimento de suas idias fez com que esse
contedo distinto tambm produzisse mudanas necessrias no enfoque trazido da
Inglaterra, adaptando-o ao novo ambiente. Surgiram, assim, as "luzes".
Mas para alm das diferenas entre o Iluminismo ingls e o francs - ou, quando o
movimento se expande pela Europa, entre eles e o Iluminismo alemo, o italiano etc.
- a origem comum sempre est presente e lhes imprime uma marca de nascena: o
Iluminismo, em suas vrias vertentes, guarda da revoluo o princpio da crtica. Tudo
pode ser examinado, dissecado exposto; no h assuntos ou questes que possuam
o direito de ser furtado ao esclarecimento, de ser ocultado na sombra sob o pretexto
da autoridade ou do dogma. Ser justamente contra o dogmatismo, isto , a pretenso
de que existem verdades acima da possibilidade de comprovao que tm de ser
aceitas sem discusso, que se voltar fundamentalmente o Iluminismo. Sua crtica
no aleatria, portanto, indiferente ao objeto sobre o qual incide. O contexto histrico
onde ela nasce e floresce finca as razes do seu alvo nas circunstncias da guerra civil e
religiosa contra o absolutismo monrquico. Os dogmas fundamentais deste sistema de
poder constituiro por isso o objeto primordial do ataque iluminista, que pode ser
analisado em suas trs frentes principais de combate.
O dogma poltico
Em primeiro lugar, o alvo da crtica foi o prprio poder absoluto dos reis. Situando-se
com isso no campo poltico. A definio de tira-nia dada por Locke, como abuso das
prerrogativas da Coroa sobre os "direitos naturais" do povo, permanecer cm todo sculo
XVIII, compondo as categorias centrais da filosofia poltica Iluminista. A contraposio
entre um "estado de natureza", em que j haveria uma sociabilidade rudimentar, e o
"estado poltico" ou "civil", cuja organizao deve ser erguida sobre o primeiro, no
contrariando suas leis; a instaurao desse "estado civil" por um contrato social, fixando
os deveres do sdito e osseus direitos de cidado; o espao da liberdade individual
diante do poder pblico - todos estes conceitos se apre-
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sentam, embora em grau distinto, sempre que o Iluminismo trata da poltica. A partir
deles que os desdobramentos so elaborados.
Montesquieu, por exemplo, reformula a tipologia clssica das formas polticas, no
sentido de condenar a tirania. Em vez de dividir tais formas em monarquia,
aristocracia e democracia, conforme o nmero dos que participam do governo, ele
prope a diviso entre repblica, monarquia e despotismo. A monarquia no a
forma mais centralizada de poder, como na classificao anterior, distinguindo-se
estrategicamente do despotismo: no necessariamente o rei um tirano, se governa
junto com parlamentos e com a nobreza. A essa distino no Esprito das Leis
segue-se, bem a propsito, um capitulo que analisa elogiosamente a Constituio da
Inglaterra, onde os representantes eleitos pela sociedade tem uma participao
essencial. Sugerem-se, com isso, tambm uma crtica e um caminho para os
franceses.
Apesar de exaltar a repblica, por outro lado, Montesquieu a considera uma forma
possvel apenas na Antigidade, quando o espao da cidadania se circunscrevia
polis e era vivel exigir do cidado o sacrifcio de sua individualidade. No mundo
moderno, com territrios nacionais grandes e a inevitvel busca pessoal pela
satisfao de interesses particulares, seria irreal contar com o mesmo tipo de
sacrifcio. A monarquia parlamentar apareceria ento como a forma mais adequada
modernidade, por conseguir conciliar o interesse particular com os da nao em
geral: ao lutar por sua honra, o nobre engrandece ao pas; e ao procurar o prprio
enriquecimento, o burgus traz riqueza para a sociedade como um todo. Mas a
monarquia pode cair no despotismo condenvel, se prescindir do concurso efetivo do
Parlamento, que deve ser assegurado pela diviso dos poderes legislativo e
executivo. A famosa proposta de diviso de Montesquieu retoma claramente a de
Locke, afastando-se dela apenas ao definir o terceiro poder como judicirio, enquanto
o ingls o havia chamado de federativo.
A recusa da repblica por sua inviabilidade atual e a conseqente recomendao da
monarquia, desde que constitucional e parlamentar, so atitudes compartilhadas pela
maioria dos filsofos das "luzes", entre os quais Voltaire, cujas idias sobre o despotismo
apresentam uma ambivalncia importante, como veremos no prximo captulo.
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De qualquer modo, a tirania em geral criticada por invadir as liberdades e os "direitos
naturais" dos indivduos. Mas ela s existiria na monarquia absoluta, que procura se
desvincular do compromisso para com essas liberdades e legitimar-se como algo trans-
cendente, de origem divina. Da Montesquieu ter assinalado, j no comeo do Esprito das
Leis, a distino total entre a poltica e a teologia, tendo cada uma suas leis e mbitos
prprios. No por acaso, alis, o princpio do "direito divino" dos reis havia sido de-
senvolvido e exposto no contexto das guerras civis, que foram simultaneamente religiosas.
Presos ainda forma feudal da obedincia como lealdade baseada na convico, os
defensores do absolutismo s podiam reclamar dos sditos uma adeso poltica fundada
na religiosidade, alegando a origem divina das prerrogativas do monarca. Substituir Deus
pelo contrato como fonte da autoridade do soberano significava, para o Iluminismo, obrig-lo
para com os sditos e no para com sua prpria conscincia.
O dogma religioso
Por outro lado, se o poder no devia ser baseado em dogmas, tambm a estes no
podia ser concedida fora poltica. O alicerce do dogmatismo visto como a autoridade
temporal das instituies religiosas, que impedem violentamente a inspeo livre das
verdades sobre as quais se estabelecem. A crtica da monarquia absoluta tem de ser
concomitante da religio. Aqui se abre o segundo plano da discusso que caracteriza as
"luzes".
O elo entre as duas esferas, entretanto, demarca os limites da crtica religio. Ou seja,
o Iluminismo jamais se proclamar ateu, pois para ele a f pertence conscincia individual,
e o objeto da sua censura antes a fora institucional da religio e o dogmatismo da
decorrente. Seguindo mais uma vez o caminho trilhado por Locke, trata-se de defender a
tolerncia religiosa, oposta ao dogmatismo, no qual uma crena pretende excluir as
demais a partir de seu poder terreno.
Na Frana, com sua histria de conflitos religiosos e sectarismo da maioria catlica, seria
preciso primeiro combater a Igreja - "esmagar a infame", como dizia o lema de Voltaire. Mas a
tolerncia
40
implicava, em seguida, aceitar as verdades dos outros como igualmente legtimas, como
formas diferentes de reverenciar o mesmo Deus, abstraindo dos elementos doutrinrios e
rituais que formam as diferenas. Surge da o conceito de um Deus universalmente
reconhecido, despido das formas especficas que cada religio d a ele em seu culto e que
levam discrdia e guerra. Essa divindade acessvel razo que todo ser humano possui
a base de uma nova atitude, tpica do Iluminismo e conhecida como "desmo", que admite
existncia de uma fora superior com leis estabelecendo uma tica ampla e genrica, em
torno do mandamento de "no faz para o outro o que no queres que seja feito a ti mesmo".
Tais princpios estariam presentes em todas as religies, mas misturados com outros
elementos que deveriam ser deixados de lado no caso de se pretender a unio da
humanidade. Concebe-se assim uma "religio natural", correlata ao "estado natural" da
filosofia poltica, como uma esfera primeira das representaes sobre o mundo, sobre a qual
os usos e costumes teriam construdo de pois diferentes doutrinas fritos, quase sempre em
descompasso com aquela simplicidade essencial. Para o Iluminismo, a verdade que existe
em qualquer religio o reconhecimento de um ser superior e de suas leis. Este ncleo
verdadeiro deveria ser conservado pela filosofia, e tudo o mais, rejeitado.
O dogma da razo
Mas a razo, que deste modo condena as religies estabelecidas e funda o desmo, no
pode substituir a religio, aparecendo como um novo dogma. O sculo XVIII bem
consciente desse perigo e da conseqente necessidade de autocrtica. A terceira
dimenso que caracteriza seu pensamento, portanto, embora no to diretamente ligada
ao Absolutismo monrquico, a recusa aos excessos da prpria razo. Compreender esse
aspecto muito importante, pois com demasiada freqncia se define o Iluminismo pelo
projeto de tudo conseguir explicar e abarcar com o entendimento, num, otimismo quase
ingnuo sobre a capacidade do intelecto e da cincia. Alguns autores da poca, com
efeito, podem ter se deixado levar por tal otimismo, mas eles representam apenas uma
verten-
41
ter e no a mais importante e interessante. Os maiores filsofos, ao contrrio,
opunham-se ao "racionalismo", que eles consideravam como um dogmatismo da
razo to criticvel quanto o da religio e da poltica.
Para compreender essa questo preciso mais uma vez recuar a Locke.
Simultaneamente sua obra poltica, ele publicou o Ensaio sobre o Entendimento
Humano, no qual fez srias objees s concepes do conhecimento formuladas no
sculo XVII. Foram os filsofos desse sculo que atriburam razo o papel especial
que hoje pensamos ter ela tido em todo o Iluminismo. Como no caso emblemtico de
Ren Descartes, havia-se buscado um mtodo racional que institusse as cincias da
natureza, conferindo a todos os conhecimentos da fsica a mesma certeza atribuda
at ento s aos da astronomia. Suspeitando da confiabilidade dos dados fornecidos
pelos cinco sentidos, os chamados dados "empricos". Descartes preferiu fundar a
cincia no sistema da Matemtica, onde as proposies so deduzidas em cadeia a
partir de princpios elementares, num processo logicamente necessrio. essa fora
lgica da Matemtica que transmitiria certeza s dedues feitas nas cincias. Com seu
mtodo, portanto, Descartes inaugura o programa cientfico moderno, baseado na
quantificao e na medida que permitem explicaes e previses necessrias.
No entanto, a Matemtica era definida como uma disciplina puramente terica,
desenvolvida pelo raciocnio do sujeito do conhecimento. Para resguardar sua primazia
metodolgica, isto , que seus princpios no derivam de nenhuma outra fonte, Descartes
teve ento de afirmar que os princpios da Matemtica existem desde sempre na mente
como "idias inatas". De certo modo, ele foi seguido neste caminho pelos outros
grandes filsofos do sculo XVII, como Pascal, Galileu, Spinoza, Leibniz e o prprio
Hobbes, que procurou para a poltica o mesmo rigor de uma deduo da Geometria.
Locke afirmou, porm, que rodas as idias produzidas por nosso intelecto so
jogadas a partir dos dados dos cinco sentidos, no havendo idias inatas. O ser
humano seria uma "tbua rasa" ao nascer, adquirindo todo o saber por meio da
experincia emprica acumulada durante a vida. A prpria Matemtica seria resultado
desse processo de abstrao cada vez mais complexo, que vai das infonnaes
42
sensveis at as operaes mentais mais sofisticadas. Dessa maneira, Locke prope uma
nova combinao entre a observao emprica e o mtodo matemtico, na qual este
deve vir apenas depois, elaborando os dados da observao, e no se antecipando a
ela.
Essa teoria passou a ser conhecida como "empirismo" por conceber a primazia da
experincia sobre as operaes lgicas, e fundou uma nova definio do conhecimento
cientifico, ainda mais quando foi respaldada pela monumental realizao de um con-
temporneo e amigo pessoal de Locke, Isaac Newton (1642-1727). Levando adiante
tudo o que seus predecessores imediatos haviam descoberto na Fsica, Newton
conseguiu, por meio dos novos procedimentos cientficos relacionados ao empirismo
unificar o campo do saber numa "filosofia natural" revolucionria, adotada
entusiasticameme pelo Iluminismo.
a ordem newtoniana do universo, movendo-se
com regularidade mecnica, que constitui a viso da
natureza una e abrangente contraposta pelo sculo
XVIII s imagens religiosas tradicionais. E a cincia
newtoniana, partindo dos dados observados para
concili-los com as dedues da Matemtica, que
servir de modelo para o conceito iluminista de
"razo". Este pouco tem a ver com o cartesiano,
portanto, pois define a razo como uma fora in-
telectual desenvolvida pela experincia, operando
sobre as informaes sensveis, construindo um
conhecimento que no est dado desde o incio, que
vai se acumulando, mas pode sempre errar e ter de
ser revisto.
Isaac Newton, autor de uma filosofia natural", adotada pelos
iluministas.
43
A oposio ao racionalismo, desta forma, tambm fundamental para caracterizar o
projeto crtico das "luzes". Diante de Newton, Descartes parecia um simples precursor,
iludido no seu percurso. Pelo menos ele assim representado no famoso Discurso
Preliminar escrito por D'Alembert (1717-1783) para a Enciclopdia: um grande
gemetra, equivocado como filsofo. E tambm o nas j mencionadas Cartas
Filosficas de Voltaire, que afirmam no ser possvel "comparar sua filosofia de
Newton: a primeira um ensaio, a segunda uma obra-prima"; isso depois de ter dito
que Descartes "descobriu os erros da Antigidade, a fim de substitu-los pelos seus
prprios".
A partir da, entende-se bem a ironia com que Voltaire trata o otimismo intelectual
de alguns pensadores do seu tempo, como na inesquecvel personagem de
Pangloss na novela Cndido, de 1759, que faz rir at hoje da idia de vivermos "no
melhor dos mundos possveis". Mas em vrias outras obras da sua rica imaginao
literria tambm se encontram tipos e situaes semelhantes. E mesmo nas
discusses filosficas somos surpreendidos por um fino ceticismo a respeito das
potencialidades do entendimento humano. Mais do que profetas de uma nova
verdade, Locke e Newton eram para ele - que ostentava o busto de ambos no umbral
do porto de sua residncia em Ferney - destruidores dos antigos dogmas da razo.
Ao configurar o saber como processo que ensaia e tateia para acertar, que no
conhece de antemo seus resultados, o Iluminismo realmente aponta para seus
prprios limites. Por isso, o ceticismo, radical e corrosivo do escocs David Hume
(1711-1776) tambm far parte desse movimento, tendo s levado aquela tendncia,
j pr-figurada em Voltaire e outros autores, s suas ltimas conseqncias.
Por outro lado, contudo, o empirismo rendia seus frutos e a cincia nele baseada
avanava cautelosa mas intensamente. A "filosofia natural" newtoniana provava ser
extremamente prdiga, com os desdobramentos da mecnica para novos objetos,
como a tica, a acstica e a eletricidade. Esclarecendo inclusive suas fronteiras, as
"luzes" podiam empurr-las mais para a frente de modo a constituir um volumoso
corpo de conhecimentos, que logo se es-
44
parramou pela sociedade d poca em livros e debates. Mediante essa ambivalncia,
essa tenso entre a vertente das realizaes positivas e a do ceticismo, sempre
antagnicas e complementares, o lluminismo impulsionado paira uma histria
complexa de avanos, desvios e encruzilhadas.
De fato, logo depois das obras pioneiras de Voltaire e Montesquieu multiplicaram-se
rapidamente, os filsofos e as filosofias, invadindo a Frana e a Europa com suas
idias e consolidando a importncia do movimento iluminista. Em curto espao de
tempo, os principais autores produziram e divulgaram obras de profundo impacto
sobre o modo tradicional de pensar, cuja discusso levaria a novos e surpreendentes
resultados.
45
Crticos, cticos e romnticos
Tendo se formado num contexto eminentemente prtico, nos debates dentro da
Revoluo Inglesa, o Iluminismo jamais abandonaria o projeto de interveno social que
constitua sua marca de nascena. sintomtico ter alcanado o auge com a organizao
da Enciclopdia, que fez colaborarem os principais filsofos daquele tempo, reunidos pela
ambio de difundir as "luzes". Novos temas lutam postos em discusso, com o objetivo
claro de modificar a sociedade a partir de uma profunda mudana dos usos e costumes,
que ia desde a moralidade privada aos grandes temas polticos. O choque das idias
assim explicitadas, por sua vez, conduziu a desdobramentos inusitados, que exploravam
todas as vertentes possveis do pensamento da poca, descobrindo novos
conhecimentos, mas tambm elaborando um refinado ceticismo; enfatizando o papel da
razo, para da chegar mais viva sensibilidade romntica. O resultado de tudo isso foi o
desenvolvimento de uma instituio fundamental da modernidade, a "opinio pblica",
cuja importncia crescente revelou-se decisiva para determinar uma nova revoluo
poltica e social.
OS FUNDAMENTOS do Iluminismo
Foi enorme a repercusso das obras de Locke e de Newton sobre toda uma gerao de
jovens pensadores franceses, depois que Votaire as divulgou atravs do seu comentrio
Elementos da Filosofo de Newton, em 1738. As idias inglesas eram extremamente
oportunas em um contexto no qual estudos minuciosos da natureza, rea-
47
lizados com crescente intensidade desde o fim do sculo anterior, combinavam-se ao
desmo, exposto em vrios livros de considervel sucesso entre as dcadas de 1710 e
1730, para realizar uma crtica viso religiosa do mundo. Tratava-se agora de fundar
as concepes da natureza sobre a base filosfica e metodolgica do empirismo,
desenvolvendo a mecnica experimental que o caracterizava.
Em rpida sucesso, foram surgindo os livros que inauguram as "luzes" com grande
impacto sobre o mundo letrado da Frana. No ano de 1745, Julien la Mettrie
(1709-1751) publica Uma Histria Natural da Alma, seguida em 1746 pelos
Pensamentos Filosficos de Denis Diderot (1713-1784) e pelo Ensaio sobre a Origem
dos Conhecimentos Humanos de Etinne de Condillac (1715-1780).
Nessas obras, o empirismo de Locke implica a crtica ao dualismo cristo entre corpo
e alma, dualismo conservado ainda na filosofia cartesiana. Para os jovens autores, so
as impresses dos cinco sentidos do homem que constituem as idias, a mente e tudo
o que se costuma chamar de alma. Esta seria produto das percepes do corpo, deste
modo, no existindo num plano distinto dele e nem, muito menos, sendo criao divina.
Tal perspectiva foi depois desenvolvida por La Mettrie em seu importante livro O Homem
Mquina, de 1747; por Diderot na Carta sobre os Cegos, de 1749; e por Condillac no
fundamental Tratado das Sensaes, de 1754, que vai alm do prprio Locke, ao
radicalizar seu empirismo no sentido de demonstrar o carter material do pensamento.
Aparecem em seguida filsofos como Claude Helvtius (1715-1771), autor de Sobre o
Esprito, e Holbach (1723-1789), que escreveu, entre outros, o Sistema da Natureza.
Em todas essas obras, a natureza vista, como um sistema uno, inter-relacionado
pela ao e reao de suas partes componentes em um mecanismo que tudo
determina, sem lugar para os acasos, mas tampouco para a interveno de causas
finais. O movimento dos corpos e mesmo a gerao dos seres vivos ocorrem atravs de
leis atuando em cada momento, necessariamente, sem que uma finalidade maior as
determine, porm, de forma providencial. Neste ponto, tais autores divergem um pouco
de outros que tambm tiveram grande importncia na poca, como Pierre Maupertuis
(1698-1759) e principalmente Buffon (1707-1788), cuja monumental Histria Natural tem
os trs primeiros volumes publicados justamente em 1749.
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Apesar de diferenas sutis, no entanto, todos eles compartilham de uma viso
imanente da natureza, que se determinaria e formaria por si prpria, e do mtodo
cientfico, baseado na observao e na experincia dos fatos. a realidade que deve
informar o conhecimento e no idias, concebidas antes e independentemente de sua
verificao emprica, conforme ocorria nas filosofias do sculo XVII, com a de Descartes
frente. A conjugao de uma tal concepo da natureza e do empirismo radical configura
uma filosofia que se costuma denominar materialista justamente pela importncia
atribuda ao corpo e matria como fundamentos do saber e da prpria realidade. Ela
marcou profundamente o Iluminismo, determinando muito dos rumos tomados pela
cincia a partir de ento.
UM PROJETO enciclopdico
O choque provocado por essas novas concepes foi ainda
mais forte quando sua difuso encontrou na Enciclopdia um
veculo adequado. Em 1746, alguns editores franceses
propuseram a Diderot
e a D'Alembert que traduzissem do ingls a Cyclopedia de Chamber,
publicada em 1728. Compreendendo a oportunidade nica que lhes
era oferecida naquele, momento de embate de idias, os dois filsofos
sugerem organizar um texto completamente novo, e chamam os
grandes pensadores iluministas para colaborar com o
empreendimento. A partir de 1751 comea a aparecer a Enciclopdia,
que alcanou 36 volumes, dos quais oito de ilustraes, num total de
71.818 verbetes, at o ano de sua concluso, em 1772.
Diderot e D'Alambert, idealizadores da Enciclopdia, obra de mais de setenta mil
verbetes.
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Neste trabalho imenso, no s a nova concepo da
natureza como a da sociedade comea a ser difundida.
Profundamente crticos da religio - alguns destas,
outros simplesmente ateus -, seus autores minavam as
bases da f pela simples exposio de alternativas
plausveis histria da criao ensinada pela Bblia. Na
medida em que a autoridade da Igreja era essencial na
estrutura absolutista do poder, a irreligiosidade levava
contestao latente do Estado e da ordem feudal,
ambos baseados no respeito ao privilgio e hierarquia
"natural". Para a Enciclopdia, ao contrrio, "natural" o
estado em que todos os homens vivem era igualdade
de condies, em que todos tm direitos bsicos
comuns, e no o "estado civil" que institui as
diferenas sociais. Aqui a filosofia poltica de Locke
desempenhava papel fundamental, levantando
suspeitas sobre a legitimidade das prerrogativas
aristocrticas.
Mas alm dessa funo de crtica direta, a obra
buscava ensinar uma gama de temas em Histria, Filosofia, Direito, Economia. Geografia,
Artes e Ofcios, constituindo um vasto levantamento do saber at ento acumulado.
exatamente isso que indica seu nome, por sinal, onde o termo "ciclo" remete para a
pretenso de totalidade dos conhecimentos organizados sistematicamente: por outro lado.
a raiz "pedia" vem do grego upaidia" educao, revelando a inteno de instruir. Para
isso, era estratgico dispor os assuntos em ordem alfabtica, conforme indicava
50
o subttulo Dicionrio raciocinado das cincias, j que no se exigia do leitor nenhuma
formao especializada prvia. Todos que soubessem ler poderiam nela encontrar o
verbete procurado, poderiam consult-la e aprender.
Esse duplo papel define bem o projeto da Enciclopdia, na qual o conhecimento possui
um carter crtico e emancipatrio que acompanha necessariamente o informativo. Ela
sintetiza bem o programa do prprio lluminismo, de modo a ser apresentado como um
verdadeiro manifesto filosfico.
Da Enciclopdia participaram, por isso, os principais pensadores comprometidos com as
novas idias, como Condilliac, Helvtius, Holbach, Diderot, Rousseau e outros. Todos eles,
at ento combatendo isolados contra a censura e a tradio, perceberam na gran-
de obra conjunta a possibilidade de unir forcas numa
comunidade de objetivos que se colocava acima das
eventuais diferenas internas de opinio. Ao permitir tais
diferenas, inclusive, a Enciclopdia se apresentava como
exemplo do que propunha - um espao de produo de saber,
atravs do debate e da crtica. Assim, at Voltaire, apesar de
um tanto ctico sobre o otimismo de tudo poder conhecer, e
Montesquieu, mais velho e j consagrado, decidiram cooperar
com os enciclopedistas. Como os demais, ambos certamente
levaram em conta a importncia da obra na luta para
modificar a mentalidade esclerosada que dominava a
Frana e boa parte da Europa.
Ilustrao do verbete sobre anatomia da Enciclopdia.
51
Sem meias palavras, isso dito na famosa recomendao dada por Diderot a seus colaboradores: " preciso
examinar tudo, remexer tudo sem exceo e sem escrpulos", para "mudar a maneira geral de pensar". Idia,
alis, que ele j havia expressado nos seus referidos Pensamentos Filosficos, com uma admoestao:
"apressemo-nos a tomar a filosofia popular. Se quisermos que os filsofos caminhem para a frente, aproximemos
o povo do ponto onde se encontram os filsofos". Ou seja, no s o "povo" que precisa da filosofia; tambm esta
necessita ser "popular" se quiser progredir na dupla acepo, certamente relacionada, da poltica e dos
conhecimentos que investiga. A Enciclopdia no vista pelos seus autores, portanto, como simples compilao
de informaes, e sim como um poderoso meio de interveno social.
E esse objetivo pedaggico-poltico foi atingido, a julgar pelo grande xito do empreendimento. Os editores
haviam planejado inicialmente uma tiragem total de 1625 cpias, mas a demanda cresceu to rapidamente que j
em 1754 eles a ampliaram para 4255. E embora a edio fosse muito cara, logo havia volumes da Enciclopdia
nas bibliotecas de quase todas pessoas cultas, isto , da aristocracia e da alta burguesia, bem como dos membros
do clero, incluindo os padres de provncia. interessante, neste ponto, verificar a penetrao da obra tambm
entre os que poderiam ser considerados atingidos por ela, o que demonstra a complexidade da sociedade fran-
cesa e o grau em que a atitude crtica j estava nela penetrando.
Sala de impresso, conforme ilustrao da Enciclopdia
52.
52
O sucesso da obra mxima das "luzes" no foi, contudo, um fato
isolado. Muitos dos livros mais significativos do Iluminismo haviam tido
notvel difuso para os padres da poca. O Esprito das Leis, de
Montesquieu, por exemplo, teve 22 reedies em apenas dois anos,
entre sua publicao e 1750. O que ainda mais notvel, pelo fato de
este livro tratar de um tema rduo de filosofia social e poltica,
desmentindo a tese de alguns historiadores de que os grandes textos de
poltica tiveram pblico reduzido antes da Revoluo de 1789. E, de
qualquer maneira, o poder era discutido pelos autores Iluministas
geralmente em forma literria, com uma crtica mordaz mal se
escondendo sob o disfarce da fico. Mestre nesta arte foi especial-
mente Voltaire, em contos de ironia profunda, mas clara.
inegvel que os primeiros leitores dessas obras fossem cultos e,
portanto, membros das classes mais elevadas da sociedade francesa.
Como elas se tomassem objeto de viva discusso, porm, logo eram lidas
tambm por um pblico maior, ainda mais em um momento em que
progredia evidentemente a alfabetizao, conforme testemunho de tantos
viajantes estrangeiros que passavam pela Frana. E at as pessoas qu