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Revolução Francesa - Frederic Bluche e Outros

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Revolução Francesa - Frederic Bluche e Outros

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A França estava em crise. Tanto no campo quanto na cidade, a insatisfação pairava no ar, e a sociedade clamava por reformas. Ao rei Luís XVI faltavam força e personalidade política para tomar as rédeas da situação.

Enquanto o Antigo Regime agonizava, a voz do povo crescia e se fazia ouvir. Os escritos de Montesquieu, Locke, Voltaire e Rousseau mostravam que o espírito da modernidade tinha saído do campo das idéias para as ruas.

Este é o cenário pré-Revolução Francesa, que é apresentado aqui com todos os seus desdobramentos e figuras históricas, revelando como o país inteiro – e posteriormente a Europa – se envolveu na série de revoluções que depuseram o rei, sepultaram o Antigo Regime e propagaram o espírito de modernidade e liberdade pelo mundo afora.

CAPÍTULO I

A PRÉ-REVOLUÇÃO

Em1789,28milhõesde franceses, camponeses emsuamaiorparte, vivemsobamonarquia.Adinastiacapetiana1reinaháoitocentosanos.AFrançaéumanação “organizada”: a sociedade está dividida em classes – clero, nobreza,TerceiroEstado2,sendoasduasprimeirasprivilegiadas–earticuladaemcorpose comunidades (de ofícios, de habitantes). Apesar das desigualdades e dosentraves inerentes a uma estrutura dessas, o reino de Luís XVI, em termosrelativos,érico.Anecessidadedereformas,entretanto,épercebidaportodos,dediferentes formas e em graus variáveis.As idéias fervilham (ver capítulo III),embora o verdadeiro pensamento do Iluminismo3 esteja difundido somente emum círculo estreito de leitores. Essas idéias são em parte contraditórias; uns eoutros,quandoreclamamporreformas,nãoestãofalandodasmesmasmudanças.Omodeloaindadominantenaépocaquerqueamonarquiasereformeporsi,apartirdoalto;provavelmente,elanãoémaiscapaz.Deresto,qualquerveleidadereformistasechocacontragravesoposições,sobretudodosprivilegiados;porém,paradoxalmente, é a contestação lançada por estes que vai servir de estopim àRevolução.Aurgênciadacrisefinanceiravaisoltaratravadosistemaeconduzir,demaneirabempoucoprevisível,aotriunfodassoluçõesradicais,queapenasdeformaimperfeitacorresponderãoàcontribuiçãodoIluminismo.

I–AcrisedoEstadomonarquistaA França de 1789 sofre de diversos males, sendo o primeiro deles as

fraquezasdeseugoverno.1.Amonarquiaabsoluta–AmonarquiadosBourbonéditaabsoluta,ouseja,puraesemvínculo.Tudo,nateoria,vemdoreievoltaparaele;oreinãotemqueprestarcontasanãoseraDeus;aleiemanaapenasdesuavontade;todajustiçaéfeitaemseunome.Contudo,arealidadeémaiscomplexa:mesmosemvínculo,amonarquia francesa não é sem limites; eles foram estabelecidos ao longo dosséculos pela tradição cristã e pelo costume.Quanto ao famoso “direito divino”dosreis,eleévítimadeumaépocanaqual,aomenosnoespíritodaselites,cadavezmaissedissociamosagradoeoprofano.Oreijamaisgovernasó:éassistidoporministros ediferentes formaçõesde seuConselho (o “conselho” é, desde a

IdadeMédia,umdosórgãosdamonarquiafrancesa).2.Osobstáculosàaçãoadministrativa–Acentralização,entãoemprogresso,émuitoimperfeita.Oagente-símbolo,ointendentedejustiça,políciaefinanças,nãodispõedeumaburocracia suficiente; choca-se contra interessesparticularesdoshabitantesdesuacomunidade,principalmenteaselites locais,dasquaisporvezeselesetransformaemporta-voz...

Asdiversidadesregionaisopõem-seàunificaçãodoreino.Dialetosepatoássubsistem.A unificação do direito está emmarcha hámuito tempo,mas élenta;odireitoromanodominanosuldaFrança,enquantononorteodireitoéconsuetudinário4, com cerca de 300 costumes diferentes. Pesos e medidasvariamdeumaprovínciaparaoutra,bemcomoarepartiçãodoimposto.Asalfândegasinternasdificultamacirculaçãodasmercadorias.

Oprincipalobstáculoàaçãodosagentesreaiséaexistênciadeprivilégios–das províncias, das cidades, das classes, das corporações, dos indivíduos –concedidos no decorrer dos séculos. Por ser um país “sobrecarregado deprivilégios”,aFrançaétambémumpaísdeliberdades.Opatrimonialismodegrandepartedecargospúblicosparalisaaautoridadedomonarcasobreseusoficiais,quedesfrutamdeumasituaçãodegrandeindependência:orei,queconseguiravencera feudalidade,deixousedesenvolveressanovaformadedispersãodopoderpúblico.

OreidaFrançaémenosobedecidodoquemuitospríncipesdaEuropadeseutempo,déspotasesclarecidosque,menosrespeitososdastradições,utilizamcommaisrudezaosmétodosdegovernoimitadosdeLuísXIV.3 .Luís XVI – A tudo isso se acrescenta a personalidade de Luís XVI. Naausência de um soberano enérgico, as rédeas do poder flutuam. Nascido em1754,vítimadeumaeducaçãodesastradamentefenelonista5paraumfuturorei,onetodeLuísXVcarececruelmentedevontadeedeautoconfiança.Benevolente,generoso,deumapiedadeexemplar,preocupadoemfazertudodeformacorreta,sobe ao trono a contragosto em 1774, com 19 anos. Passado o primeiroentusiasmo,causadecepção.Suasaspiraçõesaomesmo tempoconservadoraseprogressistas se traduzem por constantes oscilações entre firmeza e fraqueza, oque encoraja intrigas no seio do ambiente político do qual sofre a influência epadececomasmesquinharias.

QuantoasuaesposaMariaAntonietadeLorraine-Habsbourg,princesadeumcerto nível – embora ela não tenha nenhum gosto pela etiqueta – e de umaaparente frivolidade devida à juventude, sofre do preconceito antiaustríaco que

grassanaFrançadesdeaguerradosSeteAnos.OfamosocasodoColar6(1785),no qual sua inocência é completa, e diversos mal-entendidos condenaram-nadiante da opinião pública.Os panfletos escandalosos, por vezes pornográficos,que atacam a rainha e, demaneiramais geral, o círculo real, contribuem paradesacreditarnãosomenteopoderpolítico,comotodooAntigoRegime.4.UmcalcanhardeAquiles:osparlamentos–LuísXVIsemdúvidacometeuumerroemnovembrode1774aorestabelecerosparlamentos.Porseremcortesde justiça (delegada), os parlamentos se diziam os guardiões da lei e seaproveitavamdeseusdireitosderegistro7edeadvertência8paratentarcontrolaro governo real. Magistrados, proprietários de seus cargos em virtude dopatrimonialismo das funções, os parlamentares ainda por cima pretendiam“representar” a nação. Sua oposição, que se confundia em parte com acontestaçãojansenista9, envenenara a segundametadedo reinadodeLuísXV;em 1771, o chanceler Maupeou substituíra-os por agentes contratados, queanunciavam a magistratura moderna. Restabelecidos por Luís XVI, osparlamentossemostrammaiscalmos,masvãodespertar logoemseguida.Compregações humanitárias que dissimulam a defesa de seus privilégios –conscientemente ou não, pois há jovens magistrados progressistas e alguns deespíritoavançado–,osparlamentareslevarãoaofracassoúteisreformas,atiçarãoa revolta contra um “despotismo” que freqüentemente buscava melhorar acondiçãodosfrancesesedarãodessemodooprimeiroimpulsoàRevolução.

II–AcrisesocialdoAntigoRegime1.RegimefeudalouEstadonobiliário?–AsociedadedoAntigoRegimeédeuma extrema complexidade; contrastes, contradições e paradoxos são aindavívidosem1789,masadivisãotradicional,deorigemmedieval,emtrêsclasses–clero,nobrezaeTerceiroEstado–perdeuamaiorpartedesualegitimidade.

O Estado absolutista não é o apêndice de um suposto modo de produçãofeudal,apêndicequeestariainseridoemumregimeinalteradodesdeaIdadeMédia. Estado imperfeito, incompleto, convive com numerosos arcaísmos,como o estatuto feudal da terra, e tolera em proveito dos senhores algunsdesmembramentos menos importantes de seu poder. O feudalismo comosistema está morto na França há muito tempo; o antigo vínculo feudo-vassálico,nervodasociedademedieval,ocupadoravanteumlugardosmaismarginais;opoderdosdonosda terra,muitoatenuado,comportasobretudouma dimensão relacionada ao rendimento, sob forma de foros feudais e

senhoriais;émelhor,pois,falar,emrelaçãoàFrançadoséculoXVIII,deumregimefeudal-senhorial fracoque, tratando-sedeumEstado,nãodámaisotom.

Outroarcaísmo:essemesmoEstadoabsolutistasedeixadominar,nasegundametadedoséculodasLuzes,por representaçõesnobiliárias.Dessepontodevista, a pré-Revolução é caracterizada por umadegenerescência do aspectofeudal-senhorial, que passa anobiliário. Chateaubriand bem observou: “Aaristocraciatemtrêsidadessucessivas–aidadedasuperioridade,aidadedosprivilégios,aidadedasvaidades;saídadaprimeira,degeneranasegundaeseextinguenaterceira”.Éassimqueperdura,mesmoparamuitosburgueses(embuscadeascensãosocial),eseexasperaemalgunsnobres(emlutacontraadúvida)uma tendênciaàvalorizaçãodanobrezaede seu supostomododevida.

2.Aselites–Alémdasdivisõesaparentesoureaisedainfinitadiversidadedosestatutos, existe uma relativa homogeneidade e uma solidariedade ao menosobjetivaentreasaltaselitesnobreseburguesas,asmaissuscetíveis–praticamenteasúnicas–àmensagemintelectualdoIluminismoenasquaisdominaacategoriadosproprietáriosdeterras.

Diante das evoluções sociais do reino, as inabilidades da monarquia sãoincontáveis.LuísXIV,depoisdaFronde 10,souberadisciplinaraaltanobrezaelhe restituir o sentimento de satisfação por sua posição, ao mesmo tempoconsagrandoaascensãoburguesaatravésdeumapolíticadeenobrecimento.LuísXVI, em pleno período de reação nobiliária, favorece excessivamente a “sua”nobreza.Oaltoclero,aaltamagistratura,aaristocraciaadministrativada“pena”,aaltafinançasãoquasequeexclusivamentenobres.Noexército,asreformasdeSégur11 (1781)humilhamnobres recentes eplebeus em favordeumanobrezaantiga (quatrograus) freqüentemente empobrecida.Masodinamismonobiliáriositua-seemumoutroplano;independentementedaantigüidadedaestirpe,elesemanifesta, por exemplo, no domínio econômico, com a participação de nobresnassociedadesporações,nocomérciomarítimo,naquímica,nametalurgia,namineração,naindústriatêxtil.

Amonarquia dosBourbonnão sabemais gerir suas elites.Boa parte delasterminouperdendoaconfiançanoregimeouachaquepodeseaproveitardoenfraquecimentodeleparaexigirumaredistribuiçãodascartaspolíticas.Essasmesmas elites não acreditam mais no velho sistema de legitimação desuperioridades sociais – a fina flor da Corte aplaudiu em 1784 as tiradas

antimonarquistaseantinobiliáriasdoCasamentodeFígarodeBeaumarchais–,massemnecessariamentepretenderchegaraconclusões...

As contradições internas afetam tanto as correntes intelectuais quanto osindivíduos. O liberalismo aristocrático, movimento no qual se alinham,misturados, Fénelon, Saint-Simon, Boulainvilliers (ou mesmo o colossalMontesquieu...) e ao qual se liga uma fração considerável da nobrezacontestatória,forneceumexemploesclarecedor:seuantiabsolutismooconduzporvezesareaisaudáciaspolíticas;suadimensãoreacionáriaocolocamaisnocaminhodeumaarqueologiadosuposto“governogermânico”doquenodeumafilosofiadaliberdade.

Aascensãodasburguesiasnãoéummovimentocontínuo;elasnãopararamde se renovardesde a IdadeMédia.No séculodasLuzes, certas fraçõesmuitograndes são social e economicamente imóveis, mas o dinamismo das outras,comparável ao de uma parte da nobreza, contrasta com a rigidez opressiva deumasociedadejuridicamenteimobilizadaquefreiataldinamismo.

Aburguesiafrancesaéaindamenoshomogêneadoqueanobreza.Notopo,aaltíssimaburguesiadasfinanças:ostraitants12eosfermiersgénéraux13(aomenosos que aindanão foramnobilitados), cujo fausto é acompanhadodeumgostopelascoisasdoespírito.Naaltaburguesiafiguramespecialmenteosgrandesarmadoresenriquecidospelocomérciotriangular(Nantes,Bordeaux,LaRochelle).Évisível,contudo,afraquezadaburguesiacapitalistamoderna:hárelativamenteumnúmeromaiordegrandescapitalistasnobresdoquedeburgueses.Nomundodasmanufaturas(carvão,metalurgia,têxtil),apesardodesenvolvimento de um certo capitalismo comercial, o ateliê e a pequenaempresapermanecempreponderantes(aRevoluçãoIndustrialestámuitomaisavançadanaInglaterra).AburguesiadoAntigoRegimemaistípica,sejaaltaoumédia, é togada e dona de bens fundiários, proprietária de cargos e deterras;ogrossodessaburguesiaaspiraànobrezaeà“vidanobre”.Nabasedaescalaburguesa,finalmente,a“burguesiapopular”,comodizA.Daunard,dalojinhaedoartesanato,estáemcontatocomopovomiúdoqueconstituiascamadas inferiores do Terceiro Estado urbano (operários reunidos emorganizações profissionais, empregados domésticos, ambulantes, pequenosofíciosderua).

Alémdessadiversidadeburguesaedarelativaosmosedasaltaselites,existeem um grande número de membros do Terceiro Estado um sentimento

comumde frustração e hostilidade em relação ao “preconceito da nobreza”(segundoRivarol14),maisaindadoqueao“despotismo”realouministerial.As humilhações da juventude de Barnave15, deMadameRoland16 ou deRobespierre17 são as que não se perdoam, sobretudo quando a pessoa sesentesuperioràquelequeahumilhou;entãoafrustraçãopodesetransformaremódio,eoigualitarismojurídicoveiculadopelaatividadedassociedadesdepensamento18podeadquiriremalgumaspessoasumaconotaçãoradical.Seoburguês provinciano, mais conservador do que se imagina, mostra-sedesigualmenteinfluenciávelpeloIluminismo,opequenoburguêsdasgrandescidades, em Paris principalmente, será mais receptivo aos libelos dos“frondistasliterários”(vercapítuloIII).

Àfrentedessesburguesesmultiformes,intelectualmentefalando,encontra-sea partemais avançada da elite “esclarecida”. Sua visão domundo e da ordemsocial é em geral laicizada, racionalizada, contrastando com a da maioria,freqüentementeirracional.Essaelitetemfénarazão,crênoprogresso,reivindicaodireitoàfelicidade,exaspera-sediantedosentravesjurídicosarcaicos.Paraela,ovalordo trabalhoé superioraodaguerra (e freqüentementeaodaprece);elarecusa os privilégios e a divisão da sociedade em classes. Consciente de seusméritos e das possibilidades que se abrem para ela, essa elite aspira adesempenharumpapelpolítico.3.Demografiaecrisesocial–Adepressãoeconômicacastigaumpaísemplenaexpansãodemográfica.Diversosfatores–amelhoriadastécnicasedascondiçõesde vida, os progressos da higiene e o desaparecimento das grandes epidemias,talvez o clima – acabaram há um século com a demografia do tipo antigo.Amortalidade infantil recua, a expectativa de vida progride, a fecundidadepermanece elevada. Entre 1740 e a Revolução, a população francesa cresceuregularmente, passando de 24 para mais de 28 milhões de habitantes. Mas asgerações que chegam à idade adulta e aomercado de trabalho nos anos 1780chocam-secomestruturasrígidasqueremontamaumtempoemqueaFrançaeramenospopulosa.Noscampos,quevivemnoritmoincertodascolheitaseondeumapartedocampesinatomédiosemarginalizacomonacidade,ondeoregimede corporações e a fraqueza do investimento produtivo prejudicam odesenvolvimentodasempresas,os jovensnãovêemsealargaraspossibilidadesdeempregoecomfreqüênciavãoengrossaramassadosdesclassificadosedossem-trabalho.4 .A crise econômica –A euforia econômica chegou ao fim durante os anos1770paraprogressivamentedarlugaraum“interciclodecontração”.

O clima nos campos torna-se mais pesado com a alta do preço dosarrendamentos, a revisão dos registros19 (uma prática que, contudo, não énova)eoreexamedealgumaspráticascamponesascomunitárias.Nesseclimadesigualmentenocivo,deacordocomas regiões, surgemasdificuldadesdaagricultura:asuperproduçãodevinhoafetaosvinicultores,muitonumerososnoAntigo Regime; uma crise de forragem atinge os criadores de animais;chuvas excessivas em 1787 e seca e tempestades em 1788 assolam toda aFrança,provocandoamácolheitade1788,seguidasdorigorosíssimoinvernode1789.Oempobrecimentodeumaamplafraçãodapopulaçãoruraléreal.Os impostos, os direitos senhoriais e feudais e o dízimo eclesiástico, queincidem principalmente sobre os camponeses abastados, parecem maisinsuportáveisejustificamarevoltaaosolhosdosagricultoresdesejososdesetornaremproprietáriosdosoloquecultivam(orecolhimentofeudal-senhorialeeclesiásticoaproxima-sede20%daproduçãoagrícola).

Nacidade,há temordeescassez.Aspessoascorremaosmercados,ondeopreçodotrigosobecomoflecha.Pilhagensdecomboiosdegrãosreforçamainquietação.Desempregadossedeslocamdevilarejoemvilarejopropagandoasnotícias– falsasouverdadeiras–,oquepode transformarumacomoçãolocalemrevoltaprovinciana.Ofechamentodoescoadouroruralécatastróficopara a pequena indústria das cidades, que sofre também com a carestia dopão,quefazcomqueaspopulaçõesurbanasreduzamseuconsumodebensnão-indispensáveis. Como se não bastasse, o tratado de comércio franco-inglêsde1786,adespeitodospossíveisbenefíciosnoplanoagrícola,provocaumacriseindustrial,destacando-seadestruiçãodecertosramostêxteis.

Comoemtodososperíodosdeaflição,procura-seumbodeexpiatório.Noscampos,a ira rosnacontraosenhor,contraoagentedofisco,eos rumoresprosperam. Nas cidades, expande-se o rumor de um complô aristocrático.Denunciam-se os grandes proprietários que, por receberem rendas emespécie, lucram com a crise. A partir do inverno de 1789, os elementosfavoráveisaexplosõessociaisestarãoreunidos.

5.Acrisefinanceira–DentretodosossinaisqueanunciamaRevolução,acrisefinanceiraéporsisóomaisaparente–demonstraaimpotênciadogoverno–,porsuscitarumdebateapaixonadonoseiodaopiniãopúblicaesclarecidaarespeitodosmeiosdesemelhoraressemesmogoverno.

As despesas do Estado crescem (não tanto as pensões, mas o peso dosempréstimos contraídos sobretudo para financiar a participação da França na

guerra de independência americana) e o déficit se agrava. Como não se podedeixar a dívida se transformarnumabancarrota que arruinaria a confiançanemreduzir despesas incomprimíveis, é preciso aumentar as receitas. Tal ação só épossívelnateoria.MuitomaisbrandadoquenaInglaterra,apressãofiscalnadatemdeexcessiva,maséinjustamenterepartida.Osistemaécomplexo;exceções,isençõeseprivilégiosvariamdeacordocomasprovíncias.Osimpostosindiretossão arrendados e o contrato da Fazenda nacional não pode ser revisto de umahora para a outra. Por outro lado, apesar da modernização da administraçãofinanceira,nãoháverdadeiroorçamentoeadesordemreinanacontabilidade.E,principalmente,oreidaFrançaestáligadoaseusencarregadosdasfinançaseaseus homens de negócios por relações contratuais; até mesmo esses homensencontram-seenfraquecidospelacrise,eLuísXVInãopodesemostrartãodurocomelesquantoseeranoséculoXVII,poisamaiorpartedelesagoraénobre...Osistemainteiro teriaquesermodificado.Menospor inérciaou irresoluçãodoque pela existência de múltiplas resistências, todos os ministros de Luís XVIfracassarão.

Inspetor-geral das Finanças em 1774, amigo dos fisiocratas20, Turgotpreconizoudiversasmedidasdestinadasaequilibrarascontasedesenvolveraeconomiadoreino:reduçãodasdespesasdaCasadoRei,livrecirculaçãodosgrãos,supressãodascorporaçõesedacorvéiareal21,projetodeumimpostoterritorialproporcionalàrendafundiária,epagávelportodososproprietáriosrurais. Serviu para angariar muitos inimigos: a gente miúda, por temor daescassezdealimentos,osespeculadores,ospatrões,osprivilegiados.DepoisdademissãodeTurgot,Neckertevequeprosseguircomapolíticasuicidadosempréstimos.SeusucessorCalonnefezomesmo,aténãosermaispossível.

Pressionado por reformas, Calonne inspira-se tarde demais nos projetos deTurgot.Submeteseuprogramaaumaassembléiadenotáveis(fevereirode1787),composta de privilegiados, que recusa a subvenção territorial e exige aconvocaçãodosEstadosGerais22,únicoshabilitadosaautorizarnovosimpostos.Dispensado,CalonnecedeolugaraotalentosoeimoralarcebispodeToulouse,LoméniedeBrienne.Comoosnotáveispersistememsuaoposição,sãodemitidos(25 demaio). O poder impotente está gravemente comprometido aos olhos daopiniãopública.Restafazeroqueseprocuravaevitar:submeterasreformasaoregistrodoparlamento.

III–OAntigoRegimeemagonia

Aoposição parlamentar parecera se acalmar depois da dispensa deTurgot.Porém,tãologovoltaasefalardeigualdade,eladesperta.OparlamentodeParis,porsuavez,exigeaconvocaçãodosEstadosGerais.

Luís XVI impõe o registro de seus éditos emlit de justice.23 Algunsmagistrados,apoiadospelosduqueseporseuspares,declaramailegalidade:oparlamentoéexiladoemTroyes,ondese insurgemaisainda.EmParis,aagitação ganha a rua, onde os parlamentares são aclamados. Umcompromissocapengaéadotado.OparlamentoretornaaParisesepropõeaaceitarumnovoempréstimo.Porém,asessãode19denovembrode1787étumultuada:oreiédenovolevadoaoregistroforçado.Aagitaçãorecomeçaemjaneirode1788,soboimpulsodanobrezatogada,quefazadvertênciasarespeito do registro forçado.Brienne e seuministro da Justiça,Lamoignon,resolvemquebraraoposição,inspirando-senareformadeMaupeoude1771.Oparlamentocontra-atacacomodespachode3demaiode1788,verdadeira“declaração dos direitos da nação”, uma mistura de tradicionalismoreacionárioede filosofismo liberalacolhidaemPariscommanifestaçõesdeentusiasmo. O parlamento aparece não como o adversário egoísta daigualdade, mas como o defensor das liberdades diante de um despotismogastoesemprestígio.Briennepersiste.Oéditode8demaio,impostoemlitde justice, neutraliza o poder parlamentar: as funções judiciárias dosparlamentos são amputadas em proveito de novas jurisdições; o direito deregistroeadvertênciaéanuladoemproveitodeumaCorteplenária,àesperadasançãodosEstadosGerais.Oobjetivoéestabeleceravelhaaliançaentrearealeza e oTerceiroEstado contra os “feudais”,mas a opiniãopública nãoaceita.

Aoposiçãoganhaaprovíncia,seusparlamentos,suaselites,suaintelligentsia.UmachuvadelibelosinundaumaFrançaquenãoestápreparadaparaareflexãopolítica. A agitação é timidamente combatida pelos agentes do rei, quesimpatizam com a causa e são despreparados para dominar a situação. OsdistúrbiossãogravesnoDelfinado24,marcadospelaincitaçãodoparlamentodeGrenoble à desobediência, pelo famoso “dia das telhas” (7 de junho)25 e pelaassembléia das três classes emVizille, encorajadaporMounier26, que convidatodasasprovínciasaseuniremcontraodespotismoeaserecusaremapagaroimposto(21dejulho).Daíemdiante,acontestaçãopolíticadetipoparlamentar,atéentãodominante,desdobra-seemumapoderosacontestaçãopolíticaesocialpromovida por frações avançadas do Terceiro Estado: o partido nacional,

congregação complexa e multiforme, nega a suposta representatividade dosparlamentos, exigindo não só a reunião dos Estados Gerais, como também aduplicaçãodaparticipaçãodoTerceiroEstadoeovotoporcabeça.

EssasituaçãoexplosivaobrigaBrienneaceder.OsEstadosGerais,quasequeunanimemente reclamados, tornam-se inevitáveis, dado o vazio dos caixas e oabandonodamonarquiapelascamadasprivilegiadas.Em8deagosto,osEstadosGerais são convocados nãomais para 1792,mas para 1º demaio de 1789, aomesmotempoemqueoprojetodeCorteplenáriaéabandonado.OspagamentosdoEstadosãosuspensos;abancarrotanãoestálonge.Oministroseafasta(24deagosto).LuísXVIcapitulaechamaNecker(26deagosto):essefinancistasuíçode temperamento fraco, porém desinteressado, inclinado a se superestimar, épopular;aopiniãopúblicaatribui-lhe idéiasprogressistas,eele temaconfiançadoscredores.OnovoministrodaJustiça,Barentin,restabeleceosparlamentosemsuas prerrogativas. O retorno triunfal dos parlamentares degenera às vezes emmanifestaçõescontraogoverno.

Já se pode pensar em uma revolução (a palavra, vinda do vocabulárioastronômico,entrouhámuitotemponalinguagemcorrente)?Provavelmentenãoseprevêumcataclisma,mastodomundopressenteumaexplosão.

Reformasimpostasdoalto,nofinaldoreinadodeLuísXVI,teriampoupadoaFrançadeumarevolução?Em1789,étardedemais.AFrançaestádoente.OAntigoRegimesocialestábastantefragilizado,enfraquecidonasaçõesenamaiorpartedosespíritos.Amonarquiaabsoluta,pornãodispordehomensdevalor,porsofrer de obstruções estruturais que paralisam as tomadas de decisão, por estarcombalidapelacontestaçãodosparlamentos,jáestádejoelhosaocambalearpornão ter sabido reformar suas finanças. O poder real e ministerial provou serincapaz de se reformar e dominar ou superar as contradições da contestação; aopinião pública, em sua infinita diversidade, não perdoará. Sem essadecomposiçãoavançada,nenhumarevoluçãoteriasidopossível:ospoderescommaisfreqüênciacaemdoquesãoderrubados.

Os privilegiados deram os primeiros golpes ao tomar a dianteira da “pré-RevoluçãoFrancesa”;atémesmooclerorecusounovossubsídiosàrealeza.Sãode fato as elites do regimeque começamaRevolução.Devido ao encontrodesuas ações com os movimentos populares, de natureza diferente, elas serãolevadasatébemmaislongedoqueimaginaram.

1.PertencenteourelativoàdinastiadosCapetosnaFrança.(N.T.)2.OTerceiroEstadocompunha-sedopovoemgeral,osnão-nobres.(N.T.)3.MovimentofilosóficoeliteráriodoséculoXVIII,caracterizadopelacrençanopoder da razão e da ciência como forças propulsoras do progresso dahumanidade.(N.T.)4. Direito consuetudinário: fundado nos costumes, na prática, e não nas leisescritas.(N.T.)5.InspiradanasidéiasdeFrançoisdeSalignacdelaMothe-Fénelon,arcebispoeescritorfrancês(1651-1715),decunhomísticoecontemplativo.(N.T.)6. Embuste montado pela condessa de LaMotte, ajudada por um aventureiroitaliano.OsdoisconvenceramocardealdeRohanacomprarparaa rainhaumcolar,queelenuncachegouapagar.(N.T.)7.Cópiadeumdecretoreal,feitapeloparlamento,queassimoconfirma.(N.T.)8. Direito de admoestação do rei a respeito dos inconvenientes de umdeterminadoédito.(N.T.)9.O jansenismocomomovimentopolíticooriginou-sedo jansenismo teológicoque,estimuladopelaoposiçãodosreligiososdaabadiadePort-RoyalaLuísXIV,prolongou-seportodooséculoXVIII.(N.T.)10.LevantecontraocardealMazarinoearainharegenteAnadaÁustria,duranteamenoridadedeLuísXIV,quedesencadeouaguerracivil(1648-1653)(N.T.)11. Philippe Henri, marquês de Ségur (1724-1801): marechal da França,Secretário de Estado naGuerra de 1780-1787, criou um corpo permanente deoficiaisdeestado-maior.(N.T.)12.Financistasque,porteremfeitoum“tratado”comorei,obtinhamodireitodecobrarcertosimpostos.(N.T.)13.Agentesdofisco.(N.T.)14.AntoineRivarol(1753-1801):escritorejornalistafrancês.(N.T.)15. Antoine Barnave (1761-1793): deputado, partidário de uma monarquiaconstitucional,foidecapitado.(N.T.)16.MadameRoland(1754-1793):entusiastadasidéiasdaRevoluçãoFrancesa.Éa autora da célebre frase “Liberdade, quantos crimes são cometidos em seunome”,pronunciadaacaminhodaguilhotina.(N.T.)17.Maximilien Robespierre (1757-1794): advogado e político, principal figuradosMontagnardssobaConvenção,morreuguilhotinado.(N.T.)18. Lojas maçônicas, academias, clubes patrióticos que discutiam, opinavam,elaboravamconsensosetc.(N.T.)19. Cadastros públicos nos quais eram consignados os dados referentes àspropriedadesequeserviamdebaseparaacobrançadeimpostos.(N.T.)20.Partidáriosdafisiocracia,doutrinaeconômicaefilosóficaemvoganaFrança

doséculoXVIII,queprocuravabasear-senoconhecimentodasleisdanaturezaparaafirmarqueaterraeraaúnicaeverdadeirafontederiqueza.(N.T.)21.NaFrançafeudal,serviçogratuitoqueseprestavaaosoberanoouaosenhor.(N.T.)22.Assembléiaconvocadapeloreiparaopinarevotarimpostos,constituídaporrepresentantesdastrêsclassessociais.(N.T.)23. Sessão especial do parlamento com a presença do rei, própria doAntigoRegime.Oreiiaatélápara,comsuapresença,forçarosparlamentaresafazeroregistro.(N.T.)24.Dauphiné (Delfinado): antigaprovíncia daFrança.As reformas reclamadaspelos Estados do Delfinado, em 1788, deram origem à reunião dos EstadosGeraisem1789.(N.T.)25.RevoltaocorridaemGrenoble,quandoapopulaçãodacidadeenfrentouastropasreaisatirandotelhas.(N.T.)26.Jean-JosephMounier(1758-1806):advogadoepolíticofrancês.(N.T.)

CAPÍTULO II

OITENTA E NOVE

AdecisãodeconvocarosEstadosGeraisassegurouaLuísXVIumagrandeconfiançaporpartedaopiniãopública,maseraumadecisãocarregadaderiscos.Aquestãofinanceirajátinhaabertoocaminhoparaumareflexãoprofundasobreasociedadeesobreogoverno;estavanahoradeselançarnaaventura.

I–AreuniãodosEstadosGeraisAo convocar os Estados Gerais, Brienne havia deixado em suspenso a

questãodarepresentaçãonuméricadoTerceiroEstadoeadovoto.

A formade1614 (representação igual evotopor classe),muitoantigaparaconstituirumprecedente,teriafeitodasduasclassesprivilegiadasasdonasdojogo;sefosseconcedidaaoTerceiroEstadorepresentaçãomaioreovotoporcabeça–exigênciasdopartidonacional–,eleéqueimporiasuavontadeaosEstados Gerais. O debate provocou a ruptura entre a antiga oposiçãoparlamentarenobiliáriaeaoposiçãoascendente,maisdoutrinária,paraquemoTerceiroEstado fornecia os grandes batalhões.Consultado, o parlamentoopta pela forma tradicional, e suapopularidadedesaba (setembrode1788).Uma assembléia de notáveis reunida em 6 de novembro se pronunciamaciçamentenomesmosentido(11dedezembro):osprivilegiadosdesejamlimitaroabsolutismoemseuprópriobenefício.

OConselhodo reiestádividido;dirigidoporNecker,queapóiaLuísXVI,aprova a duplicação da participação do Terceiro Estado sem se pronunciarsobreaquestãodovoto(27dedezembro).Asemimedidanadaresolve;elamultiplica os riscos. O mesmo Conselho anuncia medidas liberais: o reiaceitará sobretudo as cartas de selo27 e a convocação regular dos EstadosGerais,chamadosparadeliberarsobrematériafinanceira.

1.Aseleições–Acampanhaeleitoral,iniciadadefatoháalgunsmeses,éabertanocomeçode1789.Aconjunturaéaflitiva:depoisdogranizode13dejulhode1788, vem o terrível inverno de 1789, a alta vertiginosa do preço do pão, aameaçadeescassezdealimentos,asinsurreiçõesrelacionadasaofornecimentode

trigo.AsituaçãoemParisétensa:acapitaltemmaisde10%deindigentes.

A propaganda do Terceiro Estado adquire um tom violento a favor daliberdadedeexpressãoproclamadapelodecretodoConselhode5dejulhode1788.Sobumachuvacadavezmaisdensadepanfletos–maisdemil,talvezdoismilentreoverãode1788eaaberturadosEstadosGerais,amaiorpartehostil às estruturas políticas e sociais tradicionais –, o abade Sieyès causasensaçãoemjaneirode1789comseupanfletoOqueéoTerceiroEstado?.Otriunfodesse folhetoatestaoacirramentodosânimose, emmeioàvastacorrente de contestação do Antigo Regime, a ruptura definitiva entretendênciasigualmenteradicais.SieyèsafirmaqueoTerceiroEstadoé“tudo”equeencarnaexclusivamentea“nação”;otempodoscompromissoscomosprivilegiadospassou,assimcomoafórmulaanacrônicadosEstadosGerais:aAssembléianacionalseanuncia.

Difícildeavaliar,opapeldas“sociedadesdepensamento”foiconsiderávelnaformação dessa nova soberana que seria chamada de opinião pública. Oslocais de sociabilidade próprios do século – círculos, cafés, gabinetes deleitura,academiaslocais,sociedadesmesmeristas,lojasmaçônicas–estãoemplenovapor.Outrassociedadessurgem:oClubedosEngajados,osAmigosdosNegrosouaSociedadedosTrinta,quesereúnenacasadoconselheirodoparlamentoAdrienDuporteagrupaamaiorpartedosfuturosexpoentesdaconstituinte.OsTrintamantêmumaativacorrespondênciaemtodooreino.

As eleições se desenrolam em condições muito liberais, fixadas peloregulamentoeleitoralde24dejaneirode1789(elasserãomaisrestritivasparaParis).AdesignaçãodedeputadosdoTerceiroEstadoémaiscomplicadadoqueadasoutrasclasses,comumsistemadeváriosgraus,mastodohomemcomidadeacimade25anos,comprovandodomicílioeumainscriçãonalistadosimpostos,temodireitodevoto.

Essas eleições são acompanhadas da redação decahiers de doléances[cadernos de queixas]. Dúvidas pesam sobre seus autores verdadeiros. Opapel do pároco de vilarejo, das personalidades representativas de menorimportância,sobretudodostogadosdeescalõesinferiores,foiimportante,semque estes últimos tenham sido responsáveis por todas as reclamações tantoconcretasquantoprosaicas.NumerososmodelosforampostosemcirculaçãopeloduquedeOrléans–seupanfleto,difundidocom100milexemplares,éobraconjuntadeSieyèseLaclos28–,pela sociedadedosTrinta e,deuma

maneiramaisgeral,pelopartidonacionaloupatriota,únicoqueorganizouaseleições,dondeosformatospadronizados.Masamaiorpartedoscadernosseorigina de representações tradicionais, muitas delas antigas, e dereivindicaçõesesparsasquese inscrevemnoâmbitodeumreformismoanti-absolutista porémmonárquico.Algumas delas, contudo, a despeito de umatendênciageralaoconsensoeàconfiançaemrelaçãoaLuísXVI,refletemastensões que se exasperam entre o Terceiro Estado e os privilegiados sobrecertasquestõesinflamadas(igualdadecivil,direitosfeudais).Parasimplificar,oscadernosdebasedoTerceiroEstadocontêmamarcadoAntigoRegime,enquanto os cadernos de síntese29, após a filtragem das reivindicações,mostram-semuitomaismodernizadores.

Opoder realpermaneceuneutropor ser impotente.Naausênciadepressãoadministrativaedealternativadignadecrédito,foiopartido“nacional”queconseguiuelegerseushomens.

2 .A composição dos Estados Gerais – O número de deputados é de,aproximadamente,1.200,ouseja,pertode trezentosparaoclero (ondedominanumericamente o baixo clero30, favorável às reformas, reforçado por umpunhado de prelados liberais), bem como trezentos para a nobreza (com umaminoria de grandes senhores de idéias liberais) e cerca de seiscentos para oTerceiroEstado.OsdeputadosdoTerceiroEstado sãoburgueses, salvoalgunstrânsfugas de outras classes (Mirabeau, Sieyès): uma massa impressionante dejuristas,algumaspersonalidadesrurais,médicos,algunsintelectuais,umpequenonúmero de capitalistas no sentido moderno (não mais do que nas fileiras danobreza). Não há nenhum verdadeiro republicano, mas todos, mesmo os maisconservadores,esperamreformas,periodicidadedasreuniõesdosEstadosGeraisparaavotaçãodeimpostosigualitáriosegarantiasparaasliberdades.

Alémdasinfinitasnuances,alémdos“programas”e“dofatodepertencer”aessa ou àquela categoria, a maior parte dos deputados dos Estados Geraisparticipa,normalmente,damesmaesferacultural,estáembuscadeumafórmulaconstitucionalantiabsolutistaedeuma“regeneração”–apalavrasetornaquaseuma bandeira – da nação, o que explica a facilidade com que aAssembléianacionalconstituinteiráseimpor.

II–OfimdoAntigoRegimepolítico(maio-junho)Os Estados Gerais vão se reunir em um clima de desordem. Comoções e

insurreições,queexplodemperiodicamentedesdejaneiroporcontadacriseeda

carestiadopão– imputadaerroneamenteapenasàespeculação–,culminamnofinal do mês de abril em Paris, nofaubourg Saint-Antoine, com o casoRéveillon31, seguido de uma repressão vigorosa, derradeira demonstração deforçadoAntigoRegime.

OsEstadosGeraisabremem5demaiode1789emVersalhes.Odiscursoinábil de Luís XVI, as fórmulas vagas do ministro da Justiça, Barentin, e ointerminável relatório financeiro deNecker decepcionam o Terceiro Estado, jáindispostopelodesprezoexibidopelaCorte.1.AAssembléiaNacional –AmaioriadoTerceiroEstadorecusadeimediatoaverificaçãoseparadadospoderesdosdeputados;essarevoltapassivaequivalearejeitarqualquerdeliberaçãoporclasses.Depoisde6demaio,osdeputadosdoTerceiroEstadopassaramasechamarde“Comunas”.Em13dejunho,apósumlongomês passado à procura de um compromisso, alguns padres juntam-se aoTerceiroEstado,bemdepressaseguidosporoutros:gestomaisdoquesimbólicoque acompanha uma aceleração dos acontecimentos. No dia 17 de junho, osdeputados do Terceiro Estado retomam a idéia de Sieyès e, usando comoargumentoofatodeque,sozinhos,elesrepresentamaquasetotalidadedanação,proclamam-seAssembléianacionaleautorizamprovisoriamenteasupressãodosimpostos. “Esse decreto era a própriaRevolução”, escreveuMadame de Staël.Decisão revolucionária, com efeito: o Antigo Regime foi negado, a nação“organizada” desapareceu em proveito da nação homogênea; por outro lado, aAssembléiaseprotegecontraumadissoluçãoqueparalisariaorecolhimentodascontribuições. Em 19 de junho, por curta maioria, o clero se pronuncia pelaadesãoaoTerceiroEstado.AmetadedaRevoluçãoestavavirtualmentefeita.2.Asessãorealde23dejunho–LuísXVIpareceentãodespertar.Convocapara23dejunhoumasessãorealdosEstadosGerais.Nodia20,encontrandoaportafechada,osdeputadosdoTerceiroEstadovãoatéoJeudePaume32onde,poriniciativadeMounier,atordeimportâncianapré-revoluçãodelfinesa,prestampor unanimidademenos uma voz o juramento de não se separarem “até que aconstituiçãodoreinosejaestabelecidaereforçadacomfundamentossólidos”.OjuramentodoJeudePaumeconfirmaarevoluçãopolíticaconsumadanodia17:parece de fato negar a constituição consuetudinária da França e rejeitar asoberaniareal,paraesboçaramaisabsoluta,adanação.

“Só deixaremos nossos lugares pela força das baionetas!” (Mirabeau33). Oincidente final de 23 de junho de 1789 – quando, terminada a sessão real, ograndemestredecerimôniasDreux-BrézépediuqueoTerceiroEstadoevacuassea sala – ocultouo conteúdodo acontecimento.Nodia 23de junho, sempre semostrandofirmearespeitodediversospontos–constituiçãotradicional,políticae

social –, a monarquia propõe um plano detalhado de reformas no qual cedebastante.

LuísXVIchegaatéareconhecerparaosdeputadosaqualidade–decisiva–de“representantesdanação”.OsEstadosGerais,órgãodeconselhoregular,autorizarão periodicamente impostos e empréstimos e controlarão umorçamento publicado a cada ano. O rei anuncia diversas medidas liberais(liberdade individual e abolição das cartas de selo, liberdade de imprensa,supressão de alfândegas interiores e da corvéia das estradas34); ele garantetodas as propriedades e expressa o desejo de que seja estabelecida omaisdepressa possível aigualdade fiscal, mas se recusa a tocar nos direitossenhoriaisefeudaisedeclara“ilegaiseinconstitucionais”asdeliberaçõesdoTerceiroEstadode17e20dejunho.

Libertado do passado por essa promoção dos Estados Gerais, o AntigoRegime podia finalmente se despojar de seus defeitos mais flagrantes?Aceitável em 5 de maio, essa última definição paternalista e moderada doreformismo monárquico estava ultrapassada em 23 de junho. Diante daintransigência da “Assembléia nacional”, o rei decide convidar o clero e anobrezaparasejuntaremaoTerceiroEstadoemumaassembléiaúnica(27dejunho).Legitima,assim,ofatopolíticoconsumado;aAssembléiasótemqueseproclamar“constituinte”(9dejulho).

ARevoluçãofoi,destavez,juridicamentecompletada.Emalgumassemanas,a França passou do reformismo à revolução. Primeiro resvalo, fundador daRevoluçãoFrancesa.Entre17e27dejunhode1789,LuísXVIperdeuotronode seus pais, rapidamente substituído por uma cadeira dobrável constitucional.Indicadormaisdoquesimbólicodaamplitudedeumarevoluçãoqueestásendointensamenteproduzidanosespíritos:odelfim,filhomaisvelhodorei,morreunodia4dejunhoemmeioaumaespéciedeindiferençageral...

III–OfimdoAntigoRegimesocial(julho-agosto)1.ARevoluçãoparisiense–OgrupoquerodeiaLuísXVIoincitaàfirmeza.Oreiaceitaconcentrar tropasemtornodeVersalhes.Amanobra, lenta,hesitante,fazaumentara tensão.Comoaassembléiaprotestou,LuísXVIdemitiuNecker(11 de julho) para se cercar de ministros tidos como mais conservadores eenérgicos(obarãodeBreteuil,Broglie,Puységur).Anotícia,conhecidaemParisno dia 12, dá consistência ao rumor de um “complô aristocrático” destinado adeixaropovocomfome–opreçodopãoalcançará,dia14,seumáximosecular

–eperpetrar“umaSãoBartolomeu35depatriotas”(Desmoulins36).

Confiante em sua arraia-miúda de lojistas e artífices, mestres e artesãosoriginários principalmente dosfaubourgs Saint-Antoine e Saint-Marcel,inquietos e empobrecidos; percorrida e esquadrinhada por seus“desclassificados”, sobre os quais “a teoria só precisa cair para asfixiar osbons grãos e vegetar como uma urtiga” (Taine37); assombrada por seusdesenraizadosenumerosos indigentes,acapital,confrontadacomumpoderhesitante, protegida por forças de ordem insuficientes, mediocrementecomandadas,mal-enquadradas,desencorajadasepoucoseguras,éinflamadaporlíderes.OcentroprincipaldoalvoroçoéoPalais-Royal,ondeseagitamosagentesdoduquedeOrléans.Os amotinados atribuemaomonarca e aoseucírculocapacidadesestratégicaseumacontinuidadedeintençãoqueestesúltimos não têm; esquecem-se de que a dinastia nunca conheceu príncipemenosmilitaremaisacomodado...

Asmanifestaçõestransformam-seeminsurreiçãonofinaldodia12dejulhoedurante a noite seguinte (pilhagem de armas, incêndio de barreirasmunicipais38, símbolos da “opressão” da Fazenda Geral). No dia 13, os“eleitores” parisienses (ou seja, os eleitores doTerceiroEstado no segundograu, designados pelos sessenta distritos) formam um comitê permanenteencarregadodoabastecimentodacidadeeorganizamumamilíciaburguesa(afuturaguardanacional)a fimdemanteraordem.Nodia14,umamultidãotoma os fuzis guardados nos Invalides.39 Marcha sobre a Bastilha, ondeacreditaencontraroutrasarmasemunições.Àtomadadafortalezasucedem-se os primeiros massacres revolucionários. Entre outras vítimas: Launay,governadordaBastilha,Flesselles,prebostedajurisdiçãodeParis,seguidos,nodia22dejulho,porBertierdeSauvigny,intendentedeParis,eseusogroFoulondeDoué.

AtomadadaBastilhaéemsiumacontecimentodosmaisinsignificantes–os“vencedores da Bastilha” não passavam de mil e a maior parte da cidadepermaneceucalmanodia14de julho–,masseualcancesimbólicoepolíticoévasto.Aruavaiagoraocuparafrentedacena;muitosparisienses,dentreosmais“exaltados”,estãoarmados;oassassinato“patriótico”éimplicitamenteperdoado;tudoissovaicontribuirparaumaradicalizaçãodofenômenorevolucionário.

Renunciandoaumasangrentaeincertaprovadeforça,LuísXVIdispensaastropasechamaNecker(16dejulho).Melhorainda,nodia17,elevaiparaParis.

Querfazercrerquetemnasmãosasrédeasdasituação,oupretendeafiançarporsua presença a criação da novaComuna, presidida pelo astrônomo e deputadoBailly, e da guarda nacional comandada por La Fayette, o “herói dos DoisMundos”?40Oreirecebedonovoprefeitoainsígniableu-blanc-rouge,símboloprovisório,nassuascoresrespectivas,dauniãoentreamonarquiaeacapital:acorbrancaeraosímbolodarealeza,oazuleovermelhosimbolizavamParis(acapital) e o vermelho a revolução republicana. A multidão “aclama o reipenitente”(segundoaexpressãodeF.Furet-D.Richet).

Falsa harmonia.O conde d’Artois, segundo irmão do rei (futuro reiCarlosX),deuadiversossenhores,comoCondéePolignac,osinaldeemigração.LuísXVI,conscientedeterperdidosualiberdadedeação,enviaráaseuprimo,oreidaEspanhaCarlosIV,chefedoramomaisnovodosBourbon,umacartanaqualreputaránulastodasassuasdeclaraçõeseassinaturasoficiaisacontardodia15dejulhode1789...2 .Os movimentos populares provinciais: a “Revolução municipal” e oGrandeMedo–AquedadaBastilhacausaumaprofundacomoçãonaprovínciae acelera o movimento municipal. Cassam-se os intendentes – instruídos peloexemplodeBertier,estesúltimosnãohesitamemtomarocaminhodafuga–esãoestabelecidasemnumerosascidades,àimagemdeMarselhaedeParis,novasmunicipalidades e guardas nacionais (algumas dessas milícias tinham sidoorganizadas na primavera). A revolução urbana se faz acompanhar de umarevoluçãocamponesa.

Oscamponesesnãotinhamdesempenhadonenhumpapelnapré-Revoluçãopropriamentedita,masarevoltaantifeudaleralatentedesdeasredaçõesdoscahiersdedoléances;encorajadapelacrisepolíticaparisiense,arevoltatomaasdimensõesdeumaimensajacquerie41,passiva(recusadepagarodízimoeosdireitossenhoriais),ativaemalgunscasos(extorsõesderenoncis,ouseja,derenúnciasdossenhoresaseusdireitos,destruiçõesdearquivos,pilhagens,incêndios de castelos, quandonobres erammolestadosoumortos), alémdeaçõesquesimbolizavamofimdasantigassuperioridadessociais.Pairanoarorumordeumcomplôaristocráticodestinadoadestruir,contraavontadedorei, as primeiras conquistas da Revolução. Gente sem trabalho erra embandos; alguns atos de violência fazem com que sejam classificados de“bandoleiros”; a maior parte do país logo se vê afetada pelo fenômenoirracionaleirradiantedoGrandeMedo(finaldejulho).Oscamponeses,nemsempre os mais miseráveis, armam-se e aguardam o invasor. Como nãoacontecenada,voltam-secontraoscastelosparaacertarcontasseculares.No

meioda confusão, às vezes atacampropriedadesburguesas.A jacquerie dáprovasdeumgrande sensodeorganização; apropria-se dospoderes locais,completandoassimarevoluçãomunicipal.

Toda a ossatura do Estado monárquico, descalcificada há muito tempo, édefinitivamentepulverizada.3 .A noite de 4 de agosto – A divulgação deformada dos acontecimentosparisienses provoca a desordem na província; a divulgação amplificada dessesdistúrbiosfaznasceromedoemVersalhes.Natardede4deagosto,enquantoaAssembléia pensa na maneira de acabar com asjacqueries, o visconde deNoailles e o duque d’Aiguillon propõem a abolição dos direitos feudais esenhoriais.Aospoucosvãosendosuprimidos,emmeioaoentusiasmocoletivo,os dízimos eclesiásticos, as justiças senhoriais, as banalidades42, os privilégiosdas cidades, a venalidade dos cargos, etc. – em resumo, todas as regalias, osparticularismos e as distinções de classes, de corpos e de região. O AntigoRegime social é varrido. Fez-se “tábua rasa”, observou um contemporâneo.Anoite de 4 de agosto inaugura uma nova sociedade da qual foi excluído oprivilégio,formaantigadasliberdades,enaqualaigualdadejurídicaseráaregraeamolduradanovaliberdade.

Os deputados voltam atrás nos dias seguintes. Inúmeros direitos só sãoabolidos mediante reembolso, o que resulta em desilusão nos campos nomomentodadivulgaçãododecretode11deagosto;porcausadoscahiersdedoléances,esperava-semais;osdistúrbiosvãoperdurar,comaltosebaixos,até1792.

Arevoluçãojurídica,políticaesocialésancionada,apartirde26deagosto,pelo voto de um texto essencial: a Declaração dos Direitos do Homem e doCidadão(verCapítuloIII).

IV–Aradicalizaçãoconstitucionalepolítica(setembro-outubro)

A intervenção de importantes efetivos populares pesou poderosamente, deinício, sobre o curso da Revolução. Mesmo que, por vezes, possam ter sidomanipulados, esses movimentos tinham vindo para ficar: a delinqüência eraendêmicanocampo,assimcomoaresistênciaacertosaspectosdoregimefeudalesenhorial;deummodomaisgeral,aarraia-miúdacontestavaaomesmotempoaingerênciadoEstadoeoseuliberalismoeconômico,quesubvertiam,ambos,as

sociedadestradicionais.

A despeito da melhor colheita, a agitação mantém-se nas cidades emdecorrênciadapersistênciadacarestiadopão:satisfazerademandaédifícil,eos acontecimentos prejudicam a circulação dos grãos. Em Paris, certasprofissões ligadas ao luxo estão em dificuldade por causa da emigração deumapartedesuaclientela.Emmeioa todosessesmovimentos,começamaserouvidas,diantedasconvicçõesliberaisdominantesdoseleitos,aspiraçõesdirigistasdaarraia-miúdaurbana,quepassaasentirsaudadesdaspráticasda“polícia”econômicadoAntigoRegime.

Nesse cenário de crise econômica e de tensão popular, com um climapropício, os movimentos populares alcançam uma intensidade inusitada econtribuem não apenas para quebrar as primeiras veleidades contra-revolucionárias da Corte, mas também para modificar o equilíbrio interno daAssembléianacional.1 .A degradação do clima naAssembléia – Pouco a pouco, as tendênciastornam-se precisas. A oposição entre os privilegiados e o Terceiro Estadoexasperado pelo ressentimento e pela suspeita fica ultrapassada. Três gruposdestacam-se: contra-revolucionários de todo tipo; os “patriotas”mais convictos;por último, osmoderados,mais oumenos conservadores,menos avançadosnofinal do verão do que no começo, os quais serão chamados mais adiante demonarquianos, reunidos em torno de Mounier, favoráveis à “constituiçãoinglesa”.Essadiferenciaçãonãotraduz,contudo,acomplexidadedastendências:àesquerda–umaterminologiaquesedesenvolveránooutono–hápoucacoisaemcomumentreRobespierre,SieyèseMirabeau;esteúltimoestánomovimento,émuitomaisdemocratadoqueosmonarquianos,mastemidéiascontrastanteseserá visto dentro em breve, por sua vez, como moderado. Há, sobretudo, umgrande número de deputados flutuantes, inconseqüentes ou timoratos. Aosdebates, com efeito, falta serenidade. A maioria dos deputados moderadosencontra-se confusa, desanimada, por vezes aterrorizada pelos movimentospopulares, e já sofre com a pressão ameaçadora das tribunas e as freqüentesmanifestaçõesdeintolerânciadosdeputadosmaisradicais.2.Umdebateconstitucionalresolvidopelametade –Odebate propriamenteconstitucionalabre-senocomeçodesetembro.Arelaçãodeforçasfazcomque,entreaconstituinteeorei,bemcomonaAssembléia,adisposiçãododebatejáesteja circunscrita. O rei e o aparelho do Estado monárquico, fracos porémsempresuspeitos,vêemsuaautoridadesistematicamentedestruída.Osmoderadosmarcamalgunspontos,atéaredaçãodadeclaraçãodosdireitos(vercapítuloIII),

mas estão enfraquecidos; os parisienses mais engajados no movimentomanifestam-lhesumahostilidadecrescente;jáadireitacontra-revolucionária,queosrepele,começaapraticarapolíticadopior,persuadida–segundoumtraçodepensamentoquelheépróprio–dequedessepiorsairáomelhor.Poroutrolado,diversasquestõesimportantesjátêmumesboçoderesposta.

A soberania real, limitada pela lei divina, natural e fundamental, e pelacomplacente imperíciadopodermonárquico,chegouao fim.Sópermaneceemabertoaquestãodonovocentrodopoder.Opoderconstituinteassenta-seexclusivamentenanaçãoe,porora,naAssembléianacionalconstituinte?AesquerdainteirainsistecomvigorsobreessepontoetemaseufavoralógicaeloqüentedaRevolução.Dentreosquenãorejeitamemblocoomovimentoem curso, os amigos de Mounier estão isolados. Em seu dualismofundamental, os monarquianos bem que gostariam de casar a razão e ahistória,dividiropoderconstituinteentreaAssembléiaeorei.Masseupleitohesitante–poisnãoousamnegarasoberaniaemanantedopaís–afavordeum pacto que lembra o espírito do constitucionalismo inglês e anuncia oespírito de 183043 não tem nenhuma chance de levar amelhor.As idéiasdominantessobreasoberanianãoestãointeiramenteesclarecidasem1789–elassóoserãonofinaldaexperiênciaedareflexãodoséculoXIX;contudo,paraoespíritoqueprevalecenaconstituinte,ficarapidamentedecididoqueasoberaniapermanece,demaneiracoletivaeconcreta,noconjuntoindivisíveldoscidadãos.“Oprincípiodetodasoberaniaresideessencialmentenanação”(artigo 3 da declaração dos direitos). Tal concepção comporta clarasvirtualidades democráticas, temperadas pelo elitismo “esclarecido” (porémantinobiliário)damaiorpartedosconstituintes,queassociamaconclusãodademocratizaçãoàextensãopróximado“espíritodasluzes”;estamoslongedaspoderosas abstrações da soberania nacional que não triunfarão senão maistarde,mesmoqueSieyès,porexemplo,asentreveja.

Emsuma,estáforadequestão,paraamaioria,admitirqualquerco-soberaniacom o rei; este poderá – nomelhor dos casos, e segundo alguns – ser umórgãoenvolvidonafunçãolegislativa;elenãopoderiaparticipardoexercíciodafunçãoconstituinte.Mirabeauafirmaránodia1ºdesetembro:“Eupensoque o direito de suspender e até mesmo de interromper a ação do corpolegislativodevepertenceraoreiquandoaconstituiçãoestiverprontaequandosetratarsomentedemantê-la.Masodireitodeinterromper,oveto,nãopodeserexercidoquandoaconstituiçãoaindaestásendocriada:nãoconceboquesepossadisputarcomopovoodireitodedarasimesmoaconstituiçãocoma

quallheaprazsergovernadodeagoraemdiante.”

Nessamesmaperspectiva,umadefiniçãonormativadaconstituiçãoimpôs-secomonegaçãodoconstitucionalismoconsuetudináriodoAntigoRegime.Aconstituição não merece esse nome a não ser com quatro condições.Organicamente,mesmoquereflitaa representaçãodeumatode razãomaisdoquedevontade,eladeveemanardosoberano(oudeseusrepresentantes).Formalmente, ela deve ser escrita e sistemática.Materialmente, assim comoestádefinidonoartigo16dadeclaraçãodosdireitos,“Umasociedadenaquala garantia dos direitos não esteja assegurada nem a separação dos poderesdeterminada não tem constituição”. Como se verá, a exaltação da lei peladeclaraçãonãopodia fazer comqueos constituintes compreendessemessasduas questões: para eles, a correta “separação dos poderes”, ou seja, asupremaciadalei–atonoqualseexprimequasequenecessariamentearazão–, traráemsi agarantiadosdireitosnaturaise racionais (éamesmacoisa),sendo que essa garantia não requer precauções particulares, salvo no casolimiteelogicamenteimprováveldaresistênciaàopressão.

Adespeitodeumaconcepçãodesoberaniaquerompemenosdoquesedissecom a de Rousseau, os constituintes orientam-se na direção da técnica,desprezada por Jean-Jacques, da “representação”, que eles opõem àdemocracia.

Sieyèsteorizarásobreessemovimentodepensamentoemseudiscursode7de setembro: “Os senhoresnãopodem recusar aqualidadede cidadãoeosdireitosdocivismoaessamultidãoseminstrução,inteiramenteabsorvidapelotrabalho forçado. Uma vez que eles devem obedecer à lei tanto quanto ossenhores,devemtambém,assimcomoossenhores,contribuirparafazê-la.Aparticipação deve ser igual. Ela pode ser exercida de duas maneiras. Oscidadãospodemdepositar suaconfiançaemalgunsdentreeles.Semalienarosprópriosdireitos,designamaoutrosseuexercício.Épelautilidadecomumque nomeiam representantes bem mais capazes do que eles próprios deconhecerointeressegerale,assim,deinterpretarsuaprópriavontade.Aoutramaneira de exercer o direito à formação da lei é participando pessoal eimediatamentedafeituradalei.Aparticipaçãoimediataéoquecaracterizaaverdadeirademocracia. A participação mediata designa ogovernorepresentativo.Adiferençaentreestesdois sistemaspolíticoséenorme.”Abalança não é igual: Sieyès alega, ao menos no primeiro momento, aformação insuficiente do eleitorado para se tornar legislador. O orador

mobiliza a favor da representação todos os argumentos difundidos,desenvolvidossobretudoporMontesquieu44:a imensidãodopaís impedeademocraciadireta,característicainelutáveldogovernodaselitesesclarecidas.ChegaaanunciaraproblemáticadeBenjaminConstant45,opondoliberdadesegundo os antigos e liberdades segundo os modernos, implantando-a nadivisão do trabalho que toma emprestado de Adam Smith46; em outrostermos,osmodernosqueremtempolivreparaseocupardeseusafazeres,oqueéumfatoglobalmenteproveitoso;oprofissionaldapolíticadesincumbeocidadãomédiodeuminvestimentocompletodesinavidadacidade.Deummodoaindamaissutil,eledescobre,depoisdeHobbes47,queumavontadegeraluna só pode advir da deliberação de um número limitado derepresentantesque,finalmente,pronunciam-sepelapluralidade.

Está formando-seuma corrente – quepoderia ser chamadade “humanismocívico”–quenãoadmiteaexistênciadeumcorteentreo representadoeorepresentantenementreohomemeocidadão,maselaaindaémarginal.Oquetriunfaem1789,numclimabemdiferente,éumesboçodarepresentaçãoàinglesa,talcomofoidesenvolvidanooutroladodocanaldaMancha,numduplomovimento de afirmação e de desapossamento que anuncia de certomodooitineráriode1789:aoafirmarqueopoderresidenopaís,desapossa-se o rei do poder,mas, aomesmo tempo, o país cuja soberania é afirmadadesapossa-sedopoderpelasubstituiçãorepresentativadeumaAssembléia,sóelacapazdediscernimento.

Extraordinárioardildahistória:a fimdequeasgrandesquestõespudessemserresolvidas,opróprioLuísXVIdesejaraqueosmandatosdosdeputadosnos Estados Gerais fossem tão pouco imperativos quanto possível.Conseqüentemente, aAssembléia não podia se impor a não ser usurpando,diante do rei, os poderes de seus mandatários, afirmando-se nãoverdadeiramente como o local da soberania, mas como o do discursoproferido legitimamente emnomedo soberano.Comcerteza,nadeclaraçãodos direitos, democracia e representação parecemmantidas sobre a mesmabase.Oartigo6indica,noquedizrespeitoàlei,que“todososcidadãostêmdireito departicipar pessoalmenteoupor intermédiode seus representantes,na sua formação”, e o artigo 14 afirma que “os cidadãos têm o direito deconstatar, por si mesmos ou por intermédio de seus representantes, anecessidade de contribuição pública”, mas a questão, na verdade, já estáresolvidaafavordarepresentação.

3 .A “constituição inglesa” rejeitada – Quando a discussão constitucional éabertaemsetembro,oterrenoestádetalmodobalizadoqueaAssembléiavaisecontentar,basicamente,emhomologarasconquistas.Quatropontosvãomostrarque as soluções adotadas pela França afastam-se dos grandes modelos doconstitucionalismoanglo-saxão:asquestõesdadissolução,dobicameralismo,dovetorealedacompatibilidadeentreasfunçõesdedeputadoedeministro.Comefeito,ootimismoracionalistadosconstituintesosincitaadesprezarerejeitaroschecksandbalances, freios e contrapesos, do constitucionalismocom ressalvasdeBlackstone48oudoFederalist.49

Emseugrandediscursode4de setembro,omoderadoMounierdefendeodireito de dissolução da câmara pelo rei, a sanção real aos textos de leisvotados e o bicameralismo. Diferentemente de Mirabeau, Mounier nãocompreende verdadeiramente a evolução em curso – que se chamará maistardede“parlamentar”–da“constituiçãoinglesa”,masasinstituiçõesqueeledefendesãoinerentesàmonarquialimitadaqueaInglaterrahámuitotempovempraticandoequeaFrançaexperimentarásobaRestauraçãoedepois,emgrandemedida,sobaMonarquiadeJulho.Mounierseráderrotadoemrelaçãoaessestrêscapítulos,emumclimapassional,tantonaAssembléiaquantoemParis. É preciso dizer que a “constituição inglesa”, por razões diversas,tornara-se impopularhámaisdevinteanos;noespíritodealguns,chegouaarrastar emseudescrédito a constituiçãoamericana, julgadaexcessivamentebritânica...

Obicameralismosofreuumaderrotaparticularmentedolorosa.EmboraseuspartidáriossonhassemmenoscomumaCâmaradosLordesdoquecomumsenadomisto,colidiramcomadinâmicaunitáriaeracionaldanovasoberaniaqueseafirmava.Aderrotafoicruel,mesmoqueosresultadosdoescrutíniode10desetembrotenhamsidobastanteestranhos,considerando-seoenormeabsenteísmo e o enorme abstencionismo: de um total de cerca de 1.200deputados,499sepronunciaramporumacâmaraúnica,apenas89porduascâmaras,sendoqueforamcontadas122vozesditas“perdidasousemvoto”.

Asançãorealpuraesimplestemmaispartidários.Mirabeauadotanessecasoo ponto de vista dosmoderados, os quais, contudo, não são unânimes; elepede a plena participação do rei no exercício do poder legislativo, que ohabilitaria a bloquear qualquer “decreto” (texto de lei votado) pela simplesrecusadesuasanção.Conduzidojuntamentecomoprecedente,essedebateconduz,depoisdaadoçãodoprincípiodoveto“pormaioriaesmagadora”,a

umasoluçãomédiaconquistadapor673vozescontra325e11“perdidas”:oveto real não será absoluto, mas suspensivo (poderá ser desprezado, comoposteriormenteseestabelecerá,casoodecretosejavotadonosmesmostermosporduasnovaslegislaturas).

Afavordodireitodedissoluçãodacâmarapeloreiencontra-seaconjunçãodos moderados, quase unânimes dessa vez, e de Mirabeau. A questão éraramenteconsideradaemsi;abordadaomaisdasvezesemligaçãocomadoveto, não recebe resposta clara e específica. AAssembléia podia julgá-laincongruente;defato,aconstituintepretendiaencarnarasoberania,acreditavaser aúnica comcondiçõesdemanifestar avontadegeral racionaldiantedavontade particular do rei e não se esquecera dos temores de dissolução edispensadealgumassemanasantes.

Nodia7denovembro,finalmente,numdiscursoplenodehumor,Mirabeause manifestará a favor da compatibilidade das funções de deputado e deministro.Suasambiçõesinquietarãoeincitarãoamaioriaanãosegui-lo.Elestemem a corrupção da Assembléia pelo atrativo das funções ministeriais(argumento reversível: em 1958, o general de Gaulle apelará para aincompatibilidade para evitar a corrupção da ação governamental peloencantodascâmaras...).

Privado de legitimidade pelo deslocamento da soberania, confrontado comuma assembléia única que amplifica a doutrina da representação e reforça aausência do direito de dissolução, dotado de um direito de veto capaz deexasperaros“patriotas”,masquenãooassociaplenamenteaopoderlegislativo,comosdeputadosmaisbrilhantesimpedidosdechegaraosministérios,LuísXVI,naverdadejánu,vêassimseremjogadaslongeasalfaiasconstitucionaisquelheteriampermitido,defato,manteralgumprestígioreal.4.Osdiasdeoutubro–Oreidemoraasancionarosdecretosdeagosto.Algunsdeseusministrossãoimpopulares;aatitudedosmonarquianospareceindicarqueestãoquerendopararaRevolução.AParis revolucionária inquieta-se, àsvoltascomdificuldadesdeabastecimentoquegeramrebeliões.Oanúnciodachegadade dois regimentos a Versalhes põe fogo na pólvora. Em 4 de outubro,desencadeia-se um rumor em Paris: durante o banquete da guarda pessoal, ainsígniatricolorteriasidopisoteadaeanaçãoteriasidoinsultada...Umarevoltadafomedesencadeia-seem5deoutubro;elaéhabilmentecanalizada.Umgrandecontingente de mulheres do Le Halle e do Faubourg, cercado e seguido porhomens, e, depois, à boa distância, por La Fayette50 e pelaGuardaNacional,

marchasobreVersalhesparareclamarpãoaorei(naverdade,comaintençãodefazê-lo voltar para Paris).Mais uma vez, LuísXVI renuncia ao enfrentamentopelas armas. Ele aceita sancionar os decretos de agosto e “concorda” com adeclaraçãodosdireitosecomosprimeirosartigosconstitucionais.Esforçovão.Porimpotênciaoucálculo,LaFayettetergiversa.Amultidãoinvadeocasteloeexigeo retornodo rei aParis.Aguardapessoaléperseguidaemassacradaatémesmodentrodos apartamentos reais.LuísXVI inclina-se e tomaa estradadeParis.Natardede6deoutubro,instala-senasTuileries.AAssembléiaoseguiráalguns dias mais tarde, colocando-se à mercê de todas as pressões da grandecidade.

Constata-se,nosquatroúltimosmesesde1789,umaumentodonúmerodedeputadosdemissionários:cercadecinqüenta(contraunsvinteanteriores),amaioriasubstituídaporsuplentes.Dentreeles,umapartedosmoderadosemtorno deMounier, ele mesmo ameaçado fisicamente, o que o fará emigrarpouco depois. Essas demissões – e sobretudo um absenteísmo irregular,porém crescente (entre 150 e 250 deputados ausentes na época do debateconstitucional;de250a550no finalde1789,ouseja,entreumquartoeametade do efetivo) – contribuem para modificar o equilíbrio político daAssembléia. Dentre os moderados que restam, muitos, aterrorizados, jáadotaramohábitodecurvarascostasedeixarcaraacaraos“patriotas”maisveementeseadireitarevolucionária.

LuísXVIeaAssembléiasãoagorarefénsdoquesechamaimpropriamente–pois amaior parte dos cidadãos está cuidando da própria vida – de “povo deParis”.Acapitalafirma-secadavezmaiscomoumaespéciedeterceiropoder,decertaformacomoumcentrodeimpulsãodaRevolução.Tendocomobaseumaangústiarelacionadaaoabastecimentodetrigo,ecomsuamisturainextricáveldeespontaneidade,violênciaassassinaemanipulaçãopolítica,osdiasdeoutubrode1789constituem,melhordoqueofortuitoeanárquico14dejulho,omodelodasfamosas “jornadas revolucionárias”, sublevações típicas do período 1789-1795destinadasaexercerumapressãofísicasobreasautoridades.

V–“Asolução”daquestãofinanceiraAsquestõessociais,políticaseconstitucionaisquasefizeramcomquefosse

esquecida a missão primordial da Assembléia, que era solucionar a crisefinanceira.Osrecursosescasseavam;arecusadoimposto,asrevoltasantifiscais,adesorganizaçãoadministrativa,afugadecapitais–osempréstimoslançadospor

Neckerresultaramemfracassos–impõemanecessidadedeumasoluçãourgente.AmaissimpleseraconfiscarosbensdaIgreja,expropriandooclero.

Esboçadanodiaseguintea4deagosto,relançadaporTalleyrand,preladodealto nascimento e de um cinismo hoje legendário, a idéia foi retomada porMirabeauemdoisdiscursoslongos,estruturadosecapciosos,quepretendiamdemonstrar “umaúnica coisa: que todanação é, e deve ser emprincípio, aúnicaeverdadeiraproprietáriadosbensdeseuclero”.OabadeMaury,umdosoradoresmaisbrilhantesdadireita,objetou,emumdiscurso fulgurante,que a propriedade eclesiástica era da mesma natureza que a do cidadão –portanto tão sagrada quanto – e que provinha de doações que seriamdesviadas de sua destinação inicial, substituindo-se uma bancarrota por umconfisco.

Em2denovembro,violandooartigo17darecenteDeclaraçãodosDireitosdoHomem(poisnãohaverá“justaepréviaindenização”),aAssembléia,por568vozes contra 346 e 40 nulas, decreta que “todos os bens eclesiásticos estão àdisposiçãodanaçãoesedestinarãoaprover,demaneiraadequada,recursosparaasdespesasdoculto,damanutençãodeseusministrosedoalíviodospobres”.Respostasimples,quesolucionaoanticlericalismodemuitos,essadecisãocapitaltrazduasconseqüências:aemissãoimediatademaciçaeassignats51e–acurtoprazo–aconstituiçãocivildoclero(vercapítuloIV).

AvendadeimensosdomíniosdaIgrejalevarialongosanos,comofoiocaso.Tendo em vista a urgência, a constituinte fez desses “domínios nacionais” agarantia de um papel – que se tornou moeda no ano seguinte – que seusdetentorespoderiam trocarpor terra.Porumdecretode19-21dedezembrode1789,emitem-se400milhõesdeassignats;éocomeçodeumaverdadeiraapostano futuro. Quanto aos bens nacionais, eles serão vendidos em leilões emcondiçõesdepagamentomuitofavoráveis(prestaçõesescalonadasemdezanos).

Camponesesricosesobretudoburguesesurbanosficarãocomapartedoleão.Agricultores de recursos modestos, salvo se reunidos em sindicatos decompradores – uma prática que será proibida em 1793 –, só poderão seaproveitarmuitoparcialmentedaliquidaçãodosbensnacionais;elesdeverãose contentar em comprar pequenos domínios, de preferência os bens dosemigrados, loteados e postos também à venda.De uma forma ou de outra,grandesoupequenos,osadquirentesterãoligadosuasorteàdaRevolução.

OAntigoRegimepolíticoesocialserávarridoempoucosmeses.Arupturaé

impressionante,absoluta,definitiva.Seupróprio radicalismo,assentadoemumasociedadeaindaarcaica–relativamente,pois,naEuropadaépoca,aFrançaéumpaís desenvolvido –, contém emgerme amaior parte das evoluções futuras.Oessencial está instalado; falta ver suas virtualidades se desenvolverem. ARevoluçãosóestácomeçando.

27. Sob oAntigo Regime, serviam para a transmissão de uma ordem do rei.Fechadascomoselo,sódeviamserlidaspelodestinatário.(N.T.)28.ChoderlosdeLaclos,oficialeescritor,autordeLigaçõesperigosas.(N.T.)29.Cadernosdebaseecadernosdesíntese:cadernosredigidospelapopulação,compiladoseorganizadosnascidadesenosvilarejos,constituindoumalistagemdas queixas e dos desejos da Nação; o resultado final eram os “cadernos dequeixas” (cahiers de doléances). Os deputados de cada ordem reuniam-seseparadamenteeresumiamemumúnicocadernoasqueixasquehaviamtrazido.(N.T.)30. O baixo clero designava os padres e vigários oriundos do povo ou dapequenaburguesia.(N.T.)31.Jean-BaptisteRéveillonéumfabricantedepapel;seusoperáriosserevoltamemabrilde1789contraacobrançadeumataxaqueatingiriaostrabalhadoreseosmaispobres.(N.T.)32. Imóvel construído no século XVII em Paris, utilizado pela nobreza comoquadraparapraticarumjogoprecursordotênis.(N.T.)33. Mirabeau (1749-1791): revolucionário, escritor, diplomata, jornalista epolíticofrancês,símbolodaeloqüênciaparlamentarfrancesa.(N.T.)34. Obrigação dos camponeses que habitam nas proximidades de caminhos eestradasdetrabalharnasuaconstruçãooureparação.(N.T.)35. Referência à célebre noite de São Bartolomeu, no século XVI, episódiosangrentoderepressãoaosprotestantesnaFrançapelosreisfranceses,católicos.(N.T.)36. Camille Desmoulins (1760-1794): jornalista e político francês, morreu naguilhotina.(N.T.)37.Hippolyte-AdolpheTaine(1828-1893):filósofo,historiadorecríticofrancês.(N.T.)38. Algumas municipalidades tinham autorização para cobrar imposto sobremercadoriasdeconsumolocal(direitosdeentrada).(N.T.)

39.MonumentoparisiensecujaconstruçãofoiordenadaporLuísXVIem1670paraabrigarosinválidosdosseusexércitos.(N.T.)40.LaFayettetomouparteativanaguerradeindependênciaamericanaaoladodosinsurgentes.(N.T.)41.NaFrança,revoltacamponesacontraosnobresduranteoaprisionamentodeJeanLeBon(1358);significarevoltacamponesaemgeral.(N.T.)42.Utilização pelos vassalos, livre ou forçada, de bens pertencentes ao senhorfeudal,mediantepagamento.(N.T.)43.Ano da revolução parisiense. Durante os Três Dias Gloriosos, burgueses,operárioseestudantesrepublicanoserguembarricadaseobrigamoreiCarlosXafugir.Instaura-seaMonarquiadeJulho.(N.T.)44. Charles de Montesquieu (1689-1755): político, filósofo e escritor francês,severocríticodamonarquiaabsolutistaedoclerocatólico.(N.T.)45. Benjamin Constant (1767-1830): político e escritor francês, porta-voz doliberalismo,hostilaodespotismoimperial.(N.T.)46. Adam Smith (1723-1790): economista e filósofo britânico, autor deInvestigaçãosobreascausasdariquezadasnações.(N.T.)47. Thomas Hobbes: filósofo inglês (1588-1679), autor deLeviatã, sua obrafundamental.Segundoele,paraviveremsociedade,ohomemdeverenunciaraseusdireitosemfavordeumsoberanoabsolutoquegaranteaordem.(N.T.)48. A obra de William Blackstone (1723-1780) divulgou o direito inglês eexerceugrandeinfluêncianasidéiasconstitucionaisdaInglaterra.(N.T.)49.GrupodoshomensdeEstadoqueapoiaramaratificaçãodaconstituiçãodosEstados Unidos entre 1787 e 1789. OsFederalist Papers são documentosassociadosaessemovimento.(N.T.)50.Marquês de La Fayette (1757-1834):militar francês, foi general na guerrarevolucionária americana sob o comando de George Washington e líder daGuardaNacionalduranteaRevoluçãoFrancesa.(N.T.)51.Papel-moedacriadoduranteaRevoluçãoFrancesa.(N.T.)

CAPÍTULO III

O ESPÍRITO DE OITENTA E NOVE E A DECLARAÇÃODOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO

Foidepropósitonãolistarmosatéagoraasfamosas“causas”de1789:aesserespeitoimpõe-seumaextremaprudência.

OedifíciocambaleantedoAntigoRegimeprecisavasemdúvidadarlugar,deuma maneira ou de outra, a uma novo regime político e social, que teriaassumido uma configuração bastante próxima da que efetivamente adotou.Isso posto, não se pode afirmar que fosse inevitável o acontecimento-Revoluçãoquetantopesounahistóriafrancesa.

Na escala da “macro-história”, é possível apreender a manifestação daModernidadeemcincoouseisséculos;éatarefadofilósofodahistória.Nãoéproibido,naescalada“micro-história”,vasculharocircunstancialemtodaasuariqueza;taléopapeldahistóriamemorial.Oprocedimentointermediário– chamemos de sociologia histórica –, que visa a casar o longo prazo domovimentodoespíritohumanoeo curtoprazododia-a-dia revolucionário,comportadoisriscos:seeledesenvolveatéoinfinitoocatálogodas“causas”erefinaexageradamenteoquadrodesuainteração(semconseguircompletá-lo), aproxima-se da história memorial; se reduz o número de causas oupretende imputar o fluxohistórico a uma causadeterminante, alça-se até as(excessivamente?)amplasperspectivasdafilosofiadahistória.

Foiporissoquenosativemosatéaquiaumaanáliseflexívelemodestadascircunstâncias da Revolução. Não se pretendeu hierarquizá-las, esgotá-lasafortiori; tratou-se, esboçando um relato, de fazer compreender como não éabsurdoqualificarde“pré-Revolução”osanos1787-1789.Masnão sepoderiacompreenderaRevoluçãosemrecolocá-laemumquadromaisamplo.Oqueoacontecimento tem de singular – à parte a densidade singular de todoacontecimento – deve-se a seu local de eclosão: a França do final do séculoXVIII;quantoa seucaráteruniversal, ele resultoudaconfiguraçãodurávelqueproporcionouaoespíritomoderno,mesmoqueporvezesambígua, cujos frutosserãocolhidos,nãosemdesvios,atrasos,retornosouesquecimentos,nosséculosXIXeXX.

Esse espírito está em boa parte condensado naDeclaração dosDireitos doHomem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789; donde a imensa repercussãodessetextoesuaatualidade,apesardealgunsaspectosdatadosoususcetíveisdeleituras diversas. Mesmo sem examinar a fundo a questão da justiçaconstitucional,nãonossurpreendehojeveroConselhoconstitucionalcensurar,emnomedeumaproclamaçãobicentenária,textosdeleisvotados:mesmoqueaDeclaraçãoserefiraao“momentoOitentaeNove”quantoàsuaidéia,manifestaigualmente, melhor do que nenhum outro documento anterior, a concepçãomodernadodireito.

I–OespíritodeOitentaeNoveeoIluminismoO Iluminismo é infinitamentemais complexo e partilhado do que se pensa

normalmente. Da mesma maneira, ele marca menos uma ruptura do que umainflexão e aceleração do processo deModernidade, cujas raízes remontam aosconflitosteológicosefilosóficosdosséculosXIIIeXIV.1 .Pré-história dos direitos do homem –A SãoTomás deAquino,marcadopelocosmocentrismoarcaico,opuseram-seDunsScotesobretudoGuilhermedeOccam, que, depois de Santo Agostinho, explicitaram mais radicalmente asconseqüências do teocentrismo judaico-cristão. No século XVI, esses conflitosmedievaistornaramaeclodireserecompuseram.

Muito hostil às pretensões orgulhosas da razão humana, a Reformaprotestante pretendeu, depois dos adversários deSãoTomás, desvalorizar aidéia de uma ordem natural que parecia restringir o poder infinito divino eafirmar – emDeus – a primazia da vontade sobre o intelecto.A Reformapareceu,pelomenosnocomeço,rejeitarqualqueridéiadeumaLeinatural,deumdireitoobjetivocognoscívelpelarazãohumanaesuscetíveldeconstituiranorma da lei estabelecida pelos homens em sociedade; ela exaltou, por umlado,aLeidivinae,poroutro,aleipositiva52, instrumentoprovidencialdocastigodoshomensprivadosdoestadodegraça.Deumoutropontodevista,suateologiacontribuiuparaapromoçãodoindividualismo.

Do outro lado, a Segunda escolástica53, principalmente espanhola, tentouultrapassar os conflitos teológico-filosóficos do final da Idade Médiareconciliando-se com São Tomás e indo buscar suas idéias junto de seusadversários.Assim,elaconcluiuaelaboraçãodos“protodireitosdohomem”ao final de um raciocínio estimulado pela experiência da colonização

americana.Aquestãolevantadaeraclara:osíndios,exterioresàverdadeirafé,podiam ser titulares de direitos inerentes à sua qualidade de homens? Arespostadosteólogosjuristasfoipositiva.

Hámuito tempoopoder deDeus sobreomundovinha sendo apresentadocomoumdominium,dominaçãodeummestre(dominus)sobreseudomínio(os teólogos tomavam emprestado a noção dos juristas; os dois meios seinterpenetravam). Em um clima filosófico que exaltava o absoluto poderdivino, a dominação de Deus sobre o mundo era concebida de maneiraabsoluta. Contudo, pouco a pouco, foi sendo apresentada como um direito(jus), e a palavrajus acabou contaminada por tal emprego. Na concepçãoromana e clássica, ojus era algoque resultavadeumapartilha conforme ajustiça,acadaumcabendosuaparte;doravante,tendeasetornarfaculdadedapessoa–deiníciodivina–,inerenteaela,oquemaistardeseráchamadodedireitosubjetivo.Odominiumdivinotendeasetornardominiumhumano,pois Deus, diz aGênese, deu omundo ao homem; a exemplo do domíniodivino do qual ele faz parte e prolonga, o domínio humano deve serconcebido como umpoder-direito sem limite, inato, universal. Esse direitobem depressa é visto como ligado à natureza do homema priori; ele nãoresultamaisdeumapartilhainstruídapelajustiça.

Comoo domínio humanoobtém seu poder apenas do domínio divino, queestabelece os limites, a questão que se coloca é saber se o pagão ou atémesmo o pecador pode possuí-lo.Muitos autores claramente estabeleceramqueodomdadoaohomeméfrutodeumaprerrogativaligadaaDeusequeaparticipaçãonodomínionãopertence aohomememvirtudede suapróprianatureza,maspelofatodeohomemserjustificadopelagraça.Osteólogosdacontra-reforma não param por aí. No contrapé da Reforma, conjugamneotomismoehumanismoparaconcederalgumaautonomiaaojogonaturalesocial do mundo e distender o elo entredominium divino edominiumhumano: o segundo permanece sustentado pelo primeiro e obtém dele seuvigor, mas com uma certa autonomia que a secularização posterior dopensamento não cessará de aumentar. Por volta de 1540, o frei pregadorFranciscodeVitória,emsuaobraOsíndioseodireitodaguerra,estimaqueos índios são homens dotados de direitos inerentes à sua natureza,notadamente do direito de propriedade. Assim, a propriedade torna-se omodeloeoancestraldetodososdireitosdohomem.

2.AescolamodernadodireitonaturaleaobradeLocke–Ainfluênciada

Segunda escolástica marcou profundamente não só a Europa católica, comotambémaEuropaprotestante.EmcontatocomoindividualismoencorajadopelaReforma,elacontribuiubastanteparaaformaçãodaescolamodernadoDireitonatural.

O filósofoholandêsGrotius é consideradoo fundador deuma escola cujosprincipaisrepresentantes,porvoltade1680,sãoobritânicoCumberlandeoalemãoPufendorf;elaseestenderáatéametadedoséculoXVIIIcomosuíçoBurlamarquieoalemãoWolff.Essejusnaturalismomoderno54acreditaqueépossível conhecer – essencialmente através da razão – os preceitos da Leinatural. Os primeiros princípios dessa Lei podem ser conhecidos pelaevidência,esuasconseqüências,sabidaspordedução.Talpensamentochoca-secomumobstáculo:oquefazerquandoaleipositiva,emanadadeumreioude uma assembléia, contradiz a Lei natural?Nesse caso, amaior parte dosjusnaturalistasoscilaentreaapologiadaobediênciaeumadiscretaaberturanadireçãodaresistênciaàopressão.

A França está um pouco afastada desse estilo de pensamento. No séculoXVII, os herdeiros dos “legistas” da monarquia ainda são os mais bem-posicionadosnocampodopensamentopolítico.Poroutrolado,ojansenismo,difundidoentreos juristas,substitui,grossomodo,ahostilidadeprimitivadaReformaaojusnaturalismoracionalista,aomesmotemposemostrandomuitasvezes, assim como aReforma, conciliador (Domat55).Depois damorte deLuísXIV,aFrançavaiseenvolvernodebatedetaisquestões;contudo,elaserá menos marcada pelo Direito natural moderno em sua versão ultra-racionalistadoquepelocunhodograndepensadoringlêsdofinaldoséculoXVII:JohnLocke.

Deumacertamaneira,LocketemumdébitocomaSegundaescolástica,oumesmo com o primeiro jusnaturalismomoderno.O conceito central de seupensamento é o deproperty,queenglobaapropriedadedesimesmo(maisumusufruto,poispertencemosaoCriador,dondeaproibiçãodosuicídio)–ou seja, a liberdade e a segurança – e a liberdade das coisas, que é o seuprolongamento, devido à parte de si mesmo que se põe nas coisas pelotrabalho.MasLockenão atribui à razãoomesmo status que amaioria dosjusnaturalistas; para ele, esta é apenas uma “poderosa faculdade deargumentação”apartirdaexperiênciasensível(éarejeiçãodasidéias“inatas”carasaDescartesedetodasasvariantesdailuminaçãoagostiniana).Nãosetrata,pois,deexporemseqüênciaumcatálogodedireitosnaturais:ofatode

todas as pessoas terem liberdade idêntica é convertido emdireito pelamediaçãoda razão, razãoqueobrigacadapessoaa admitirque suapróprialiberdade passa pelo reconhecimento da liberdade das demais. Os direitosnaturais de cada um, resultantes do que se conhece com certeza da Leinatural, conduzem à liberdade, à igualdade e à propriedade, em suma, àproperty.

Os direitos naturais devem ser respeitados pela lei positiva; o homem, comefeito,nãoabandonouoestadodenatureza senãopara seassegurardequetaisdireitosestejamgarantidos.SegundoLocke,oestadodenaturezanãoétão sombrio quanto o de seu predecessorHobbes,mas,mesmo assim, nãopáradesedegradar:àmedidaqueo tempopassa,odireito individualdesefazerjustiçadegenera;osurgimentodamoedaengendradesigualdade,fontedetensões;ocrescimentodapopulaçãoprovocadisputasepenúria.

Aopassarparaoestadosocial,aocriaroEstado,submetendo-seàregradamaioria e à lei positiva, o homem não pôde transmitir ao poder públicoprerrogativas de que ele mesmo não dispunha, assim como não pretendeurenunciar aos seusdireitosnaturais.Aocontrário, elequis tornarosdireitosnaturaismaisassegurados;asleispositivasdevemtercomofinalidadeecomolimite a melhor realização dos direitos naturais de cada pessoa, que é seuúnicofundamento.

Estruturalmente,talesquemaéodaescolamodernadoDireitonatural;diferedelenoconteúdo.OfatodeaLeinaturalsermenosamplamentecognoscívelemLocke libera a liberdade individual e a lei positiva, e tal liberação seráaindareforçadapeloslockeanos,queromperão,unsmais,outrosmenos,comoprofundoarraigamentoreligiosodomestre.

Ouçamos Voltaire estigmatizar as obras de Grotius e de Pufendorf –“possivelmente,nadacontribuirámaisparatornarumespíritofalso,obscuro,confuso, incerto do que a leitura desses autores” – ou o pensamento dosleibnizianos56: “Eumevejo transportadode repente para umclima cujo arnãopossorespirar,paraumterrenonoqualnãopossobotarospés,parajuntode gente cuja língua não entendo [...] somos de duas religiões diferentes”.VoltairetemparaWolffestaspalavrasamáveis:“falastrãogermânico[...]quenão tem a honra de ser o inventor dessas bobagens, Volffius coloca asinvenções dos outros em trinta volumes e por isso não tem tempo parainventar.EssehomemlevaparaaAlemanhatodososhorroresdaescolástica,

sobrecarregada de razões suficientes, de mônadas, de indiscerníveis e detodos os absurdos que Leibniz colocou no mundo por vaidade e que osalemães estudam porque são alemães.” Ou ainda: “esses metafísicos nãosabemoquedizemetodasassuasobrasmefazemgostarmaisdeLocke”.

OqueVoltairedetestanoracionalismojusnaturalistaéodespotismodarazãoque substituiu o antigo despotismo da religião, pois convém emancipar aliberdade de todas as autoridades, tanto a da Igreja quanto a dos filósofosfazedores de tratados sobre o bom uso da liberdade... O autor doTratadosobre os costumes não duvida da universalidade da lei moral, mas julgainaceitável, salvo alguns grandes princípios, a pretensão dos jusnaturalistastardiosdesefazeremprofessoresdeéticados indivíduosedos legisladores.Umavezafirmadaaliberdadehumana,trata-sedeassumirasconseqüências:legaratodoindivíduoalivredeterminaçãodosfinsadequadosparaassegurara própria felicidade; deixar qualquer ação útil à lei civil, fruto da livredeterminação coletiva dos homens, contanto que tal lei não destrua sualegitimidadeatentandocontraoquealiberdadeindividualtemdeirreprimível.

Esse lockanismoà francesa, dominante nas elites intelectuais navésperadaRevolução,permaneceumtantovago.Ésobretudomarcadoporcertostraçosprópriosaoclimanacional–oclaroracionalismo,porexemplo–e interagecominspiraçõescomplementaresoudivergentes.

3 .Uma vulgata filosófica na véspera da Revolução: o sensacionismoracionalista – As pessoas facilmente se perdem na efervescência da culturapolíticapré-revolucionária,culturaemparteeuropéia,recebidademodobastantediferentesegundoopaís.NaFrança,osgrandesanglo-escocesessãotraduzidosou lidos no original – mas não necessariamente compreendidos – e váriositalianosobtêmumavastaaudiência(porexemplo,Beccaria57).

Éimpossívelpintaroafrescocompletoefreqüentementecontraditóriodessapaisagemintelectual.Retenhamossimplesmenteque,naFrança,olockanismoadotou, depois de Condillac58, uma coloração particular conhecida sob onomede“sensacionismo”.Osensacionismoafirmaquenãoháconhecimentodiretopelarazãoemsi–idéiasinatasouiluminação–equearazãosóatuaapartirdeconhecimentosfornecidospelossentidos;porém,aconvicçãodessaescola dominante é de que há uma ordem domundo e de que os sentidospermitemumconhecimentocertoeevidentedessaordemracional.Hostis aumcertoracionalismo,ossensacionistasfrancesesjuntam-seaoracionalismo

porumoutrocaminho,diferentedocaminhodeseusadversários:afastam-se,como se vê, de Voltaire... O sensacionismo também apresenta nuances,sensivelmente emalguns (Diderot,Helvétius,Holbach),dematerialismo, àsvezesdeateísmo;contudo,nãosepodegeneralizar,eumadascorrentesdepensamentomais importantesdosanos1760-1780,afisiocracia,nãoadotouestaúltimavia.

Osfisiocrataspretendiamretraçaroscaminhosdo“governodanatureza”.Deuma maneira geral, só retivemos dessa corrente sua parte econômica –somente a agricultura engendra um “produto líquido”; a liberdade docomércioea livrecirculaçãodosgrãosconduzemao“preçocerto”–e suaapologiadapropriedadeagrária.Masa“seitadoseconomistas”,comodiziamseus detratores, tinha uma filosofia completa, a de seu fundador, omédicoQuesnay. Ele misturava principalmente sensacionismo e racionalismomalebranchista (do nome do pós-cartesiano Malebranche59) para insistir,maisdoquenenhumaoutracorrente,naexistênciadeumaordemnaturalenapossibilidadedeseterdelaumconhecimentoextensoeevidente.

Duranteumtempo,osfisiocratasinsistiramno“despotismodaevidência”,ouseja,emtermospolíticos,nodespotismoesclarecido.Elesnãoeramosúnicos,longedisso,massuaconstruçãoeraparticularmenterígida,comoatestaaobrafamosadeLeMercierdelaRivière,L’ordrenatureletessencieldessociétéspolitiques (1767) [Aordemnaturaleessencialdassociedadespolíticas].NavésperadaRevolução,tinhamevoluídoparaumliberalismomaioreperdidoumpoucodesuaaudiência,bastanteextensanofimdoreinadodeLuísXVadespeito dos ataques de Voltaire, Diderot e Galiani, mas ainda era forte ainfluênciadeseuextremoracionalismo.

Sensacionismo e racionalismo em doses variáveis, eventualmente com umcondimento de materialismo: é o que parece ter sido o coquetel maisdifundido entre as elites da inteligência na véspera da Revolução. De umponto de vista mais político, ora domina um liberalismo lockeanoracionalizado, ora uma certa aceitação, cada vez mais rara, do despotismoesclarecido.Masofatodeseremdifundidosnãosignificaqueessecoqueteleessas variantes políticas sejam exclusivos: é preciso abrir um considerávelespaçoparaasgrandesobrasdeMontesquieueRousseau.

4.Montesquieu,Rousseaueafénasestruturações–AglóriadeMontesquieudeclinou bem antes da Revolução, mesmo que ele sempre tenha conservado

partidários. Em geral, seus seguidores são pouco capazes de conhecer emprofundidadeumaobra complexa e desconcertante.Em filosofia,Montesquieu,umgiganteincomum,pareceescaparatodasascorrentes.Alição,apressada,quealgunscaptaram,limita-seaocapítuloVIdolivroXIdeOespíritodasleis,“Daconstituição da Inglaterra”, e à admiração pela mencionada constituição; umaadmiraçãoque temavermenos comas rápidas transformaçõesda constituiçãobritânicadoque coma idéia estereotipadaque se faz dela.As concepçõesdosadmiradoresdaInglaterranaufragaram,comoseviu,apartirdomêsdesetembrode1789,comaderrotadosmonarquianosnodebateconstitucional; foideumaoutramaneiraqueaobradeMontesquieucontribuiuparadelinearasconcepçõesdosconstituintes.

O casodeRousseau é aindamais difícil de delimitar.Nopassado, tinha-secomocertoqueageraçãode1789foramarcadapelaobradeJean-Jacques,comexceçãodoContratosocial,cujainfluênciateriasidomaistardia,porintermédiodosjacobinos.Entretanto,hojealgunscrêemdiscernirumrousseaunismopolíticodominanteem1789einterpretamcomosendofrutodesuaexclusivainfluênciaaDeclaraçãodosDireitosdoHomemedoCidadão.

OContratosocialsuscitaenormesdificuldades.Reduzidaaoquetemdemaissimples,aobraalmejaresolveraquestãonaqualtropeçavaojusnaturalismomoderno: como fazer para que a lei positiva não viole, mas, ao contrário,realizeaLeinatural,aLeicujoconhecimento,paraJean-Jacques,decorreaomesmo tempo da razão e do sentimento? A alquimia que transformahumanidadeemcidadaniaeaLeinaturalemleipositiva,emancipadora,temuminstrumento:a“vontadegeral”.

No séculoXVIII, domalebranchismo aDiderot e àDeclaração, a vontadegeralésuscetíveldemuitasleituras.ParaRousseau,elaéavontadeque,geralparaseusautoreseseusdestinatáriosequantoaseuobjeto,partindodetodosparaseaplicaratodos,nãotraiaLeinatural:secadauméautoredestinatáriodaleipositiva,nãoháporquepensarquetodospossamquererseprejudicar.Mas o pensamento de Rousseau tem uma outra profundidade; para ele, ocritério da vontade geral não é verdadeiramente voluntarista; Jean-Jacquesnão leva exclusivamente em conta a quase unanimidade dos autores e dosdestinatários;avontadegeraltemumacertaqualidadequeafazsercomoé,qualidadecujomistériovemaseromesmodorousseanismopolítico.

Para quem lêRousseau ao pé da letra, fica claro que ninguémdesejaria seprejudicar;conseqüentemente,exclui-seapossibilidadedequeavontadede

quasetodos,tomadadessavezcomosimplesvontade,possaerrar.Contudo,opróprio Rousseau denuncia o caráter persuasivo dessa construção. Eleinvalidaavontadegeralnosdoisaspectosdesuageneralidade.Porumlado,Jean-Jacques considera que a vontade majoritária – e não só unânime ouquase – constrange o cidadão. Não que ele se regozije ou aboneantecipadamente o fluxo legislativo futuro, apoiado por maiorias muitoreduzidaseaindamaisrelativasporseremmajoritariamentederepresentantese não de cidadãos, cuja legitimidade ele mesmo repele com vigor; aocontrário, considera que deve haver poucas leis, em conformidade com oamadurecimento do espírito público. Contudo, a questão permanece: a seuver, como conseqüência do contrato social, uns poucos se verãoconstrangidos pela vontade demuitos. Por outro lado,Rousseau invalida ageneralidade da lei para seus destinatários. Ele considera que a aptidão dequalquer um para compreender a vontade geral supõe que não hajadesigualdades excessivamente grandes. Miséria e riqueza extremasengendram– a Inglaterra de seu tempodemonstrou-lhe – a corrupção.Umsentido agudíssimo dos interesses particulares desemboca no pluralismo, nadispersão, no enfrentamento das vontades particulares, não no acessounânimeàvontadegeral.Emvistadisso,aleideveigualarsuficientementeascondições, levar em consideração categorias sociais, deixando assim de seruniversal.

Mesmo supondo queRousseau tenha acreditado que o “rousseanismo” erapossível, viram-se poucos rousseanistas políticos em 1789. Até osrevolucionáriosmaisavançadosadmitemarepresentaçãopolítica,oexercíciodafunçãolegislativaporeleitoslivresemsuasdecisões.Poderiaserdiferente?A Assembléia nacional formou-se rompendo com a doutrina arcaica domandato imperativo, que ligava os deputados dos Estados Gerais a seuseleitores;agindoassim,elalegitimouarepresentação,abestanegradapolíticamodernaqueJean-Jacques,horrorizado,viaseestabelecernaInglaterra.

Há poucos rousseanistas e, no final das contas, poucos partidários deMontesquieu. Do primeiro, a maior parte dos constituintes esqueceu asexigênciasquasearcaicasdavontadegeral;dosegundo,nofundo,rejeitouasutildistribuiçãodosórgãosefunções,oqueàsvezessechama,demaneirasumária, de “separação dos poderes”, versão francesa doschecks andbalancesanglo-saxões.Dessesdoismestres,opostosemmaisdeumaspecto,conservaramcontudoumagrandeconfiançanaleiproduzidasegundocertasestruturações. Lido de uma forma um tanto corrida, o pensamento de

Rousseaudiziaquea lei,expressãodavontadegeral (cujascondiçõeseramesquecidas), era necessariamente boa. Precariamente compreendida, adoutrina de Montesquieu ensinava que a lei produzida segundo os bonsprocedimentosconstitucionaisnãopoderiaatentarcontraaliberdade.Aliçãoconjunta desses autores, sucedida por tantas outras, era clara, e os espíritosmais avançados subscreveram: a lei positiva é, sob certas condições,intrinsecamenteracionaleemancipadora.

5.OpensamentodeOitentaeNove:odireitonatural,aleipositiva,odireitopelalei–Adespeitodesuastensõesinternas,opensamentodeOitentaeNoveébastante coerente. Na Assembléia, todos estão de acordo em proclamarabertamentenomínimoalgunsdireitosdenascençadohomem:aigualliberdadesegundoRousseau, a igual liberdade e a propriedade segundoLocke.Osmaisinfluenciadospela fisiocracia e osmais próximosdo jusnaturalismo racionalistairiamdeboavontademaislonge;porém,estesúltimosnãotêmrazãoparapensarqueolegisladorracionalagirácontraaevidênciaeadmitemquenãosefaçaumcatálogo do Direito natural. Os mais influenciados por Rousseau, mesmo quetenham abandonado pelo caminho boa parte da mensagem, apostam, paraconstituir o direito, na lei como expressão da vontade geral. Os lockeanosfranceses, impregnadosdo legicentrismodominante emais racionalistas doqueseuscolegasbritânicos,admitemafracaextensãodenossoconhecimentodaLeinatural,aomesmotemporeconhecendonolegisladoraaptidãoparaproduzirleispositivasquegarantamosdireitosnaturaiseatémesmo–conformeumtemadoEnsaiosobreoentendimentohumano,deLocke–fortaleçamproposiçõesmoraissenãocertas,aomenosprováveis.Muitosdeles,comoSieyès,vãoalémejulgampossívelumaverdadeiraciênciadalegislação.6.IluminismoeRevolução–ÀpaisagemdoIluminismonaFrançadavésperada Revolução seria necessário acrescentar mais alguns traços: toque um tantosombrio domesmerismo (do nome domédico vienenseMesmer) que fascinoutantos membros daintelligentsia; um toque sutil da contra-revolução antes daRevolução, aculturada pelo Iluminismo, que prepara, geralmente em torno daIgrejaCatólica,provisóriasreconquistasposteriores;umtoquepré-romântico;umtoque jansenista, jamais ausente, que marcará certos momentos do trabalhodeclaratórioetc.Masagrandequestãopermaneceespinhosa:aRevoluçãoéfilhado Iluminismo? A resposta de alguns de seus representantes que viveram oacontecimentoseráemgeraldesprovidadeambigüidade.“Osfilósofos”,escreveMorellet60,“nãoquiseramnemfazertudooquesefez,nemagirusandotodososmeios que foram adotados, nem concluir [a Revolução] em tão pouco tempoquanto se levou para fazer. Em outros termos, a filosofia não aconselhou as

iniqüidadeseasextravagânciasqueforammisturadasàcausadaliberdade,nemquisquesechamasseumpovoignoranteeferozparafazeraconstituição,nemque as mudanças mais justas e mais necessárias fossem feitas com umaprecipitaçãoquenegligencioutodasasprecauçõesdaprudência.”

O mais das vezes, os líderes do Iluminismo acreditaram na reforma e naracionalizaçãodoAntigoRegime,semacondenaçãoradicaldamonarquiaede todas as estratificações sociais.Amaior parte desses homens de espíritoestavaexcessivamentecomprometidacomumaformadeelitismoesclarecido,do qual a Academia se tornara o bastião, para apoiar sem desgosto asexplosões populares da Revolução. A famosa seita “holbachista”61, dereputação tão demoníaca, verá seus membros sobreviventes no mínimoreservados. Da mesma maneira, os 38 enciclopedistas ainda vivos sob oTerror serão, no conjunto, muito desfavoráveis ao movimento. Ereciprocamente:Robespierre,depoisdaProfissãodefédovigáriodeSabóia,de Rousseau, passou a odiar as grandes figuras do Iluminismo, por vezesmaterialistasefreqüentementeatéias;elemandaráquebrarnosjacobinos,em5de dezembro de 1792, junto como busto deMirabeau, o deHelvétius...Quanto ao abade Raynal, autor da devastadoraHistoire philosophique etpolitique des établissements e du commerce des européens dans les deuxIndes [História filosófica e política dos estabelecimentos e do comércioeuropeunasduasÍndias],eleéamigodoconservadormonarquianoMaloueteencaraaRevolução,emumprimeiromomento,comreticência.AsposiçõesdeMarmontel62,Suard63,Naigeon64etantosoutrosserãoidênticas.

É verdade, entretanto, que a exigência racionalizadora, na medida em queexigiaasecularização,erasubversivaparaumpodercujalegitimaçãoeradecertomodosagradaequeadeterminaçãodemodernizarprofundamenteumsistematãoemaranhadodeinteressescontraditóriosnãopodiaacontecersemsolavancos,fataisparaumedifíciocarcomido.Ademais,airrupção,em1789,de alguns temas políticos do Iluminismo fora dos meios estreitos que osdiscutiam até então – e num cenário de culturas populares tradicionais –provocavagravesdistorçõesnasrepresentações;resultavatambémemtensõesentre tempos políticos diversos que pareciam alimentar, desde o verão de1789, várias revoluções em parte distintas, em suma, profundíssimostraumatismoseguinadasimprevisíveis.

Impõem-se duas observações complementares. Por um lado, a terceira

geração de “grandes” iluministas, comCondorcet65 e os futuros ideólogos(Volney,Garat)emtornodosalãodaviúvadeHelvétius,emAuteuil,émaisradical do que a precedente; os mais avançados, como Condorcet, serãoconduzidos a se aliar com a Gironde.66 Por outro lado, não se podesubestimaropeso,nosúltimosanosqueprecedem1789,dobaixoclerolaicodo Iluminismo,intelligentsia desclassificada, boêmia literária formada deapaniguados de Diderot ou de “Rousseau das sarjetas” (expressão de R.Darnton)àqualpertencemMarat,Brissot,SébastienMercier,Carra,CamilleDesmoulin e outros maus escritores que transformam em sistema seuressentimento e seu amargor de intelectuais frustrados contra os grandesparvenusdaintelectualidadeedeumasociedadequeelesjulgamcorrompida.Depreciandoessasociedade,amonarquiaeaIgrejaCatólicaemabundantespublicaçõesdesegundaclasse,propositalmenteescandalosas,essa“literaturasórdida” foi mais perigosa para oAntigo Regime do que os escritos dosfilósofosmaisousados.

II–ADeclaraçãodosDireitosdoHomemedoCidadão

1 .O trabalho declaratório – Diversoscahiers de doléances vinham pedindoumadeclaraçãodedireitos.Algunschegavamaconteroesboçodeumprojeto.Diversos documentos dessa natureza circularam antes das eleições para osEstadosGerais.

Ocomitêpreparatóriode6dejulhoresponderiaaessavontade.Nodia9,seurelator, o moderado Mounier, emite o desejo de que uma declaração sejaredigida; de acordo com a visão de seu grupo, espera que ela seja “curta,simples e precisa”, incorporada à constituição à guisa de preâmbulo; aintençãoédeclararosdireitossemfazeroreinosonhardemais...Nodia11dejulho,LaFayetteapresentaoprojetoporeleamadurecido longamente.Nãoserá nem o primeiro nem o último, pois muitos, na constituinte, queremmarcarodebatecomumtextodaprópriapena.Nada,contudo,estádecidido.Tantoàdireitaquantoàesquerda,adeclaraçãotemseusadversários:unstêmmedodeagitaropaís,outrostememcristalizarporfórmulasosprogressosdoespíritohumano.

No Comitê de constituição, eleito em 14 de julho, todos querem umadeclaração.Contraosmoderados,favoráveisaMounier,aminoriaavançadaapóiaSieyès,aoutraautoridadedoComitê.OaudaciosoprojetodeSieyèsé

precedidodeumalongadissertaçãofilosóficacaracterísticadolockeanismoàfrancesa; ele terá uma imensa repercussão e influenciará inúmeros projetosindividuais redigidos no começo do mês de agosto. Em 27 de julho,entretanto,foiMounierquemfalouemnomedoComitê.OtextolidoporeletrazalgumascontribuiçõesdaproposiçãodeSieyès,masretoma,naessência,oprojetopessoaldodelfinês;porexemplo,MounieracrescentouaocapítuloI(“Declaração dos direitos do homem e do cidadão”) um capítulo II(“Princípios do governo francês”) claramente monarquista. Os moderadospretendemligardeclaraçãodedireitoseconstituição,lembrarqueosfrancesesnão se afastamdo estado de natureza e que sua longa história se identificamuitíssimo com a do desenvolvimento do Estado monárquico. Embora amaiorpartedosdeputadosdesejasseum“executivo”real,umaposiçãodessasnecessariamenteirritariaaesquerda.

Asdivergênciasalimentamosdebatesdomêsdeagosto.De1ºa3deagosto,apesar de suas divisões internas, defrontam-se partidários e adversários deumadeclaração.Boapartedosmoderadosedosconservadores,levadosporMalouet, além da maioria do clero, são cada vez mais hostis à idéia. Osprimeiros,quandochegamdaprovíncianotíciascadadiamaisperturbadoras,querem entrar em acordo o mais rapidamente possível e evitar reforçar acontestaçãocomumtextoquedêmargemainterpretações.Quantoaoclero,emboramuitos de seus deputados tenham idéias bastante avançadas, ele jámostrounoscahiersdedoléances suahostilidadeemrelaçãoaoespíritodasLuzes.

Em 4 de agosto, os adversários de uma declaração parecemmodificar suaestratégia, alinhando-se à proposição do abade Grégoire de completar adeclaração dos direitos com umadeclaração de deveres. A tentativafracassará.Amaioria admite o dever de respeitar os direitos dos outros, osdeveresemrelaçãoàcoletividadequegarantamosdireitos,especialmenteodever fiscal,mas temeque a declaração possa transformar-se emum longocatálogoqueabririaespaço,comodesejaogrossodoclero,paraosdeverescomDeus ou atémesmo com o rei. No final de tudo, o princípio de umadeclaraçãoapenasdosdireitosdohomemedocidadãofoidecididoporquaseunanimidade.

Asconseqüênciasde4deagostoocupamaAssembléiaduranteuma longasemana. Em 13 de agosto, o trabalho declaratório pode ser retomado. UmComitê de Cinco é designado para examinar os numerosos projetos; ele é

dominado pela imponente personalidade de Mirabeau. No dia 17, quandotomaapalavraparaapresentaroprojetodoComitê,Mirabeauconfessaquenãoestásatisfeito;grandepartedaAssembléiatambémnão.Nodiaseguinte,paraestupefaçãogeral,otribuno,talvezatormentadopelascríticasedecertoconvencidodequeos espíritos não estãomaduros, parece adotar a posiçãodosconservadoresmoderados,propondo“adiararedaçãodefinitiva[...]paraquando as outras partes da constituição também estiverem totalmenteresolvidasemconjuntoefixadas”.

Misteriosamente, em 19 de agosto, com uma folgadamaioria, é o obscuroprojetoconcebidopelosextodepartamentodaAssembléianofinaldomêsdejulhoqueseráadotadocomobasedediscussão.Essetextodecompromissonão está em contradição com o de Sieyès, que, por outro lado, obteve umnúmero apreciável de votos, tendo mostrado uma tendência sistemática àopinião conservadora, donde seu sucesso. Sucesso efêmero: ao cabo dadiscussão,artigoporartigo,sórestoudotextooriginalalgumasfórmulas,nosúltimosartigosdaDeclaração.

No decorrer da discussão, entre 20 e 26 de agosto, os moderadosdesempenharamumpapelfreqüentementeesquecido.Contribuíramparaquefosse adotado o preâmbulo do projeto dos Cinco, completado com umareferência ao “Ser Supremo” [Deus]. Fora uns poucos detalhes, os trêsprimeirosartigosdaDeclaraçãodevem-seàiniciativadeMounier;aseguir,osmoderados foram raramente derrotados, ou sequer marginalizados.Retrospectivamente, não se pode sobrepor a relação de forças do mês desetembro à do mês de agosto; tal ponto é de extrema importância para ainterpretaçãodonovo“catecismonacional”(segundoBarnave).

2.Dificuldadesdeinterpretação–NãosepodeconhecercomcertezaoqueaDeclaração (a despeito ou por causa de seu estilo adamantino, ainda maissurpreendente pelo fato de ter resultado de uma grande desordem aparente)entende por Direito natural, separação de poderes, ou seja, as noçõesfundamentais, pois o exame dos debates nem sempre traz esclarecimentossignificativos.A fortiori o texto não poderia, diante dos antagonismos queseparamseusredatores,confirmarumsentidodeconjuntounívoco;estesópoderesultardarecepçãodotextoedeseu“trabalho”posterior.

Trata-se de um texto produzido depois de muitos livros e libelos, muitosesboços e promessas, hesitações, segundas intenções, conflitos, inflexões ereviravoltas; trata-se de tábuas da lei que foram fruto de transações e

consensoscujosignificadosubjetivovarioudeumdeputadoparaoutro;trata-sedeumapoderosaobrade filosofia jurídica redigidaporconstituintescujamaior parte, apesar de formada nas faculdades, academias e sociedades deestudodasprovíncias,atémesmoemlojasmaçônicas,nãotinhaumaculturaaprofundada num domínio de rara complexidade. Como, nessas condições,pretender propor um significado simples e incontestável? Comprende-sehistoricamenteumououtrodeseussegmentos,masosignificadoobjetivodaDeclaração,seéqueelatemalgumsignificadocoerente,éfrutodediversossignificados subjetivos. Isso explica que, ao contrário de todas asprobabilidades,otextotenhasidoaprovadoporlargamaioria.

3 .Sobre alguns segmentos da Declaração – A genealogia de certasproposiçõesébastanteclara.ElascarregamsimultaneamenteamarcadoabusodoAntigoRegimeedecorrentesdoutrináriasfáceisdeidentificar.

Osartigos7,8e9sãomarcadospelafilosofiapenaldeBeccaria, retomadapormuitospensadores,acomeçarporVoltaire.Oartigo10,sobrealiberdadereligiosa,éfrutodeumcompromissoentre,deumlado,osmoderadoseumapartedoclero;deoutro, uma sólida tradição liberal iniciada comLetters onToleration [Cartas sobre a tolerância], de Locke, reforçada peloDicionáriohistóricoecrítico,deBayle,ultrapassadapelodeísmoposterioraFontenelle,oumesmopelomaterialismo de alguns autores.O artigo 11, sobre a “livrecomunicaçãodepensamentosedeopiniões”,éumarespostaàcensura–comfreqüência liberal e ineficaz... –doAntigoRegime.Aafirmaçãodocarátersagradodapropriedade(artigo17),concebidacomoDireitonatural(artigo2),é instituída depois de vários séculos de exaltação crescente: que pesopoderiam ter, diante dessa importante corrente que refletia poderososinteresses,asaspiraçõescomunizantesdeumpunhadodeautores?

Quanto à doutrina fiscal daDeclaração – e da constituinte –, estreitamenteligada ao universo dominante dos proprietários, ela se insere em umaperspectivalockeanaretomadapelosfisiocratas.Alegitimidadedacobrançaésubordinada ao consentimento e, apesar da ambigüidade do artigo 13, àproporcionalidade ao serviço prestado. A articulação dos artigos 12 e 13mostraqueoimpostoéconsentidocomoobjetivodeasseguraragarantiadaproperty de cada um (liberdade, segurança, propriedade), só podendo,portanto,variarnaproporçãodagrandezadosbensgarantidos.Aperspectivade uma redistribuição para fins de socorro, mesmo limitada, que foraesboçadaporalguns (Sieyès,porexemplo)equepoderiaconseguiralguma

legitimidade com base na idéia central da filosofia política moderna, a daconservation dos homens, foi afastada para só reaparecer no artigo 21 dadeclaraçãode1793.

4 .Declaração francesa e declarações americanas – As tentativas deinterpretaçãoglobaldaDeclaraçãoutilizamfreqüentementeoviésdacomparaçãocom as declarações americanas: menos a de Independência (1776) do que asadotadaspelasantigascolôniasrecentementeemancipadas.

Umacontrovérsiadoanode1900pôsemconfrontooalemãoJellinek67eofrancês Boutmy68, num clima de tensão franco-alemã. O primeiroconsideravaqueadeclaraçãofrancesaplagiavaostextosamericanosequeelaera, por intermédiodeles, devedoradaReformaprotestante e germânica.Osegundo mostrava todas as diferenças entre a declaração francesa e aamericana, insistindo no que a declaração de 1789 devia ao Iluminismofrancófono e particularmente a Rousseau. Não se aceitam mais osjulgamentos categóricos. Não se pode negar a repercussão na França da“revolução”americanaesuasdeclarações.Ohúmus ideológicodevemuito,de um lado e de outro do Atlântico, à tradição lockeana; porém, esselockeanismo não agiu da mesma maneira ao ser submetido às tendênciasdoutrinais e às tradições jurídico-políticas respectivas. Por exemplo, osamericanos receberam uma formação muito diferente no seio do sistemabritânicodaCommonLaweusufruíram,naeracolonial,deumaexperiênciainteiramente diferente, que possibilitou iniciá-los no constitucionalismodemocrático-liberal.

Nãocausaespanto,portanto,verostextosfranceseseamericanoscoincidiremedivergiremcontinuamente.Osamericanos,maisabstratosdoqueasgrandesobras das liberdades inglesas, permanecem mais preocupados do que osfranceses com a garantia concreta dos direitos, em especial a garantiajurisdicional; eles são tributários da concepção procedural do direito dosingleses.Namesmaperspectiva,mesmonãorenunciandoaouniversalismoereconhecendo os direitos naturais do homem, as declarações americanasadmitemquetaisdireitosreceberamumaconfiguraçãoespecíficanaocasiãodesuarecepçãonoclimabritânico.Elasnãohesitameminvocarobastantecaracterístico direito do país (Law of the Land) e o não menos famosoCommonLaw.Esse curiosoequilíbrio colocaasdeclarações americanasnomeio caminho entre o espírito das liberdades inglesas e o da liberdadefrancesa.

Umdosparadoxosda recepçãodasdeclaraçõesamericanasnaFrançaé terprovocadoduasreaçõescontraditóriasportadorasdeumaconseqüênciaúnica.Os conservadores consideravam que a natureza estava demasiadamentepresente naquele Novo Mundo sem consistência histórica; julgavamexcessivamente austera a afirmação dos direitos naturais. Já osrevolucionários avançados pensavam, ao contrário, que os americanospermaneciam empedernidos em contato com velharias inglesas que osimpediamdesereconciliarcomanatureza,ouseja,comarazão.Mastantoosprimeiros quanto os segundos só viramumapossibilidade para escapar dosinconvenientes imputados às declarações americanas: a supremacia da lei(legicentrismo).Moderadoseconservadoresesperamdaleiqueeladêumfimàsimpetuosidadesanárquicasdosdireitosnaturais.Aesquerda,porsuavez,substitui o lockeanismo acrescido de prudência dos americanos por umlockeanismo temperado com otimismo racionalista; ela está menospreocupadaemassegurarosdireitosdohomemcontraumpoder imperfeitodoqueemconstruirracionalmenteumpoderperfeitoapartirdosdireitosdohomem. Dentro dessa dinâmica, a problemática americana da garantiaprudencialdosdireitosdohomememfacedaleiimperfeitaésubstituídapeladesuarealização,sobformadedireitosdocidadão,pelaleiperfeita.

A Declaração multiplica as expressões, confiando à lei a determinação doconteúdo do direito; tal legicentrismo é o filho adúltero da união,cuidadosamentedissimuladaetalvezinconsciente,dopessimismorepressivodosconservadoresedootimismoracionalistadaesquerda.

5 .O espírito daDeclaração ou a convergência final das contradições –AformadomistériodaDeclaraçãoéclaradeagoraemdiante(nafaltadoconteúdofinal do mistério, para sempre insondável). Seus redatores não estabeleceramsubjetivamente um compromisso; eles se aliaram em torno da organizaçãodefinitiva do texto segundo as lógicas de seus comportamentos respectivos.Duplo milagre: a Declaração é não somente um compromisso coerente, comotambémumcompromissoobjetivosemcompromissosubjetivo...

Acoerênciadocompromissodeve-seàconfiguraçãolockeanadaDeclaração.A tetralogia dos direitos naturais (liberdade, igualdade, propriedade,resistênciaàopressão)éadeLocke.Asobrevivênciadosdireitosnaturaisdohomemnoestadosocialéafirmada(especialmentenoartigo4)eaoEstadoseatribui a finalidade de garantir os direitos (artigo 12).A esse lockeanismosimplesmente se acrescenta um racionalismo legicentrista que, mesmo não

sendo estranho ao autor doSegundo tratado, ultrapassa o âmbito de seupensamento, sem contudo levar a Declaração na direção do verdadeirorousseanismo. Trata-se de fato da consumação dos direitos naturaistransfiguradosporsuainstitucionalização,enãodaalquimiadatransmutaçãorousseanistadosdireitosnaturaisdohomememdireitospositivosdocidadão.

Parece que uns e outros não precisaram fazermuito esforço para se aliar aesse compromisso. Os mais conscientemente lockeanos – como, comgradações,Sieyès–nãopodiamrejeitar,adespeitodesuasinsuficiênciasedesuafracadensidadefilosófica,umtextobastantepróximodesuasvisões.Osmaisclassicamenteracionalistas,impregnadosdojusnaturalismomodernoouda fisiocracia, tinham que levar em consideração o tema caro a Mirabeausegundo o qual a desnaturação do homem por uma longa e lamentávelhistóriaeporsuaspaixõesimpediaaclarapercepçãodaLeinatural;assim,oquefazersenãoconsagrarumpequenonúmerodedireitosdohomemaindaevidentese,quantoaoresto,deixara lei regenerarohomempor intermédioda elaboração de direitos do cidadão? (Sabendo-se que tais direitos, sepermanentemente aperfeiçoados, permitiriam reconciliar o homem consigomesmoatravésdamediaçãodacidadaniaepermitiriamiluminá-loquandoelefinalmentetivesseassimiladoporcompletoseusdireitosnaturais.)Quantoaosmoderadoseconservadores,elesnãopodiamsenãoconsentircomumbreveenunciadodosdireitosnaturais,claramentedelimitadopelalei.

Da mesma maneira, é possível esboçar, para as facções menores, outrosmodelos de adesão ao compromisso de agosto de 1789. Havia entre osconstituintes – alguns mais ou menos rousseanistas, outros adeptos de umvoltaireanismomaisradical,adversáriosdetodasasabstraçõesnaturalistas–osquenãoacreditavamnapossibilidadedeincluirnaDeclaraçãodosdireitosdo homem nada além da igual liberdade fundadora; havia ideólogos querepeliam a rigidez de uma listagem destinada a se tornar um jugo para oespíritohumano,semesqueceropunhadodedeputadosateusemmatériadedireitos naturais. Todos eles, que talvez somassem algumas dezenas, sóconseguiamadmitirdireitoscivis,prerrogativasjurídicasligadasàcidadania,eteriam, por conseguinte, que experimentar a inclinação legicentrista daDeclaração.

Na sua complexidade e até na sua improbabilidade, no duplo apelo àdisciplinadocidadãoeàvigilânciadeumhomemdesignadocomoo fimenãoomeiodoEstadoedosoutroshomens,adeclaraçãode26deagostode

1789 é uma espécie de milagre de equilíbrio. Tal constatação em nadaprejudicaousoqueaprópriaRevoluçãofariadessetexto.

52.Lei promulgada para reger uma comunidade, fruto damente do legislador.(N.T.)53. Escola de pensamento dominante na Península Ibérica no século XIII.Correspondeu à necessidade de repensar a compreensão cristã do homem e daconvivênciahumana,envolvendoassimoDireitoeoEstado.(N.T.)54.Jusnaturalismo(omesmoquedireitonatural):conjuntoderegrasedoutrinasfundamentadasnobomsenso,nasensibilidadeparacomanaturezahumana,naeqüidade e, portanto, não-dependente de circunstâncias em sua adequação aossistemasjurídicos.(N.T.)55. Jean Domat (1625-1696): jurisconsulto francês cuja obra preparou aunificaçãododireito.(N.T.)56.AdeptosdadoutrinadofilósofoematemáticoalemãoGottfriedWilhelmvonLeibniz (1646-1716), a qual se apresenta como um idealismo espiritualista epluralista.(N.T.)57. Cesare Beccaria (1738-1794): economista e criminologista italiano, foi umdosprimeirosaanalisarasfunçõesdoscapitaiseadivisãodotrabalho.(N.T.)58. Éienne Bonnot de Condillac (1715-1780): filósofo francês, elaborou adoutrina do sensacionismo, que defende o princípio de que todas as idéiasprovêmdossentidos.(N.T.)59.NicolasMalebranche(1638-1715):filósofoeteólogofrancês.(N.T.)60.AndréMorellet(1727-1819):oradorefilósofofrancêsdeorientaçãoreligiosa.(N.T.)61. Paul Henri Holbach (1723-1789): filósofo francês, colaborador daEnciclopédia,materialista,ateu,atacouaIgrejaeamonarquiadedireitodivino.(N.T.)62. Jean-François Marmontel (1723-1799): historiador e escritor francês,protegidodeVoltaire.(N.T.)63. Jean-Baptiste-Antoine Suard: (1733-1817): homem de letras e jornalistafrancês.(N.T.)64.Jacques-AndréNaigeon(1738-1810):filósofofrancês.(N.T.)65. Marquês de Condorcet (1743-1794): filósofo, matemático, economista epolíticofrancês.(N.T.)

66.Departamentofrancês.Opartidogirondinoformou-seem1791emtornodealgunsdeputadosdestaregião.(N.T.)67.GeorgJellinek(1851-1911):filósofododireitoejuizalemão,publicouváriasobrasnasáreasdefilosofiadodireitoeciênciajurídica.(N.T.)68.ÉmileBoutmy(1835-1906):escritorecientistapolíticofrancês.(N.T.)

CAPÍTULO IV

TERMINAR A REVOLUÇÃO?

I–1790:unidadenacionalouguerracivil?Oanode1790éàsvezeschamadode“anofeliz”;porém,acalmarelativade

ParisnãodevefazeresquecerorestodaFrança,quejáviveemestadodeguerracivil latente. O discurso revolucionário manifesta-se numa espécie de vaziopolítico. Paralelamente, os novos princípios estão sendo aplicados, mas de ummodofreqüentementeradical;comisso,aconstituinte,emborapreocupadacomaunidadenacional,encorajaasdesordenspresentesefuturas.1 .A unidade nacional – Conforme a lógica de agosto de 1789 e de umapoderosa aspiração racionalizadora, não se pensava em manter províncias e“micropaíses”,ligadosànoçãodeprivilégio,sendoprecisoconcluira“revoluçãomunicipal”.Assim,emdezembrode1789,aAssembléiavotouduas leiscomaintenção de organizar de maneira uniforme o funcionamento das novasadministraçõeslocais(departamentos,distritos,municipalidades),todaseleitas.

A subdivisão dos departamentos foi completada em fevereiro de 1790. Ogosto pela abstração geométrica foi corrigido por um certo respeito àsrealidades históricas e restrições geográficas, tendo resultado em um dossucessosda constituinte.Emcompensação, o regime jurídico adotado (umainteressante dosagem de desconcentração departamental e descentralizaçãomunicipal destinadas a um grande futuro) funcionará mal, resultando emparalisia do controle administrativo em detrimento dos órgãos maismoderados(departamentos)eembenefício–bastantepolítico–dasunidadesmaisrevolucionárias(distritos,comunas).

OGrandeMedoacelerouaformaçãodascomunas,dasguardasnacionaisedas solidariedades locais entre as novas administraçõesmunicipais. Iniciado noDelfinado,omovimento“federativo”culminouemParisnodia14de julhode1790comaprimeirafestadaFederação.NessediadeaniversáriodatomadadaBastilha, a grande fraternidade revolucionária e o juramento à naçãoconsolidaram a nova França como nação homogênea. Tal unidade era apenasaparente:doisdiasantesforavotadaaconstituiçãocivildoclero.2.Aconstituiçãocivildoclero–AIgrejaperderasuafortuna;emcompensação,

anaçãoficaracomoencargodasdespesasdocultoepagavaumordenadoaosmembrosdoclero.Nodia13defevereirode1790,aconstituinteproibiuosvotosmonásticosesuprimiuasordensreligiosascontemplativas.Tambémserecusouareconhecerareligiãocatólicacomoreligiãooficial.RestavafazeraIgrejaentrarnasnovasestruturasadministrativas;éoquefoifeitoem12dejulhode1790comovotodaconstituiçãocivildoclero.Essetextofundamentalimpôs,entreoutrasmudanças profundas, a eleição dos bispos e dos padres portodos os eleitores,qualquerquefossesuaféreligiosa...

Nem o papa nem as instâncias da Igreja da França foram consultados.Aocontrário,aAssembléiadecretoulogoemseguidaquetodososeclesiásticos-funcionáriosteriamqueprestarjuramentodefidelidadeànação,àleieaorei,cumprindo “a qualquer custo” a constituição civil, caso contrário seriamdepostos e, se continuassem a exercer seu ministério, perseguidos (27 denovembro de 1790). Os constituintes, influenciados provavelmente peloateísmo – aomenos relativo – de uma estreita elite, negligenciaram a fé, areligiosidadeeo tradicionalismoarraigadoda imensamaioriados franceses.A constituição civil do clero, por certo, insere-se na lógica – levada aoextremo–deumgalicanismomiscigenadodejansenismo,masaobrigaçãodojuramento revelou suaverdadeiranaturezade revolução laica.Boapartedocleronãotevedúvidas.ApenassetebisposecoadjutoresdoAntigoRegimeprestaramjuramento,eumterçodosdeputadosdocleronaAssembléia.Aotodo,seforemlevadasemcontaasretrataçõesposteriores,chega-seaumtotaldemais oumenos45%de eclesiásticos quenão juraramou semantiveramrefratários.

Os padres refratários vão se distribuir sobretudo pelo Oeste, Norte, Leste,pelas regiões montanhosas do Centro, com alguns prolongamentos até oextremo Sudoeste e alguns departamentos mediterrâneos; uma geografiacaracterísticaqueanunciaesquematicamente,sejaqualforaexplicação,adadireitacontra-revolucionárianoséculoXIX.

Abandonados por seus antigos bispos – que freqüentemente tomaram ocaminhodoexílioeforamsubstituídosporumpessoalheterogêneooriundodo baixo clero (céticos ou homens de combate, arrivistas ou sinceros) – ospadres refratários, cujosefetivosvãoaumentarem1791,quando finalmenteforconhecidaaposiçãohostildopapaPioVI,diversasvezesserecusarãoaceder suas paróquias aos novos eleitos, apoiados por muitos de seus fiéis.Insubmissos contra submissos: violência verbal e vias de fato vão pouco a

poucodegenerar,atéodramade1792-1793.

Vitóriaaparentedeumgalicanismodemocratizado,vitóriagenuínadasforçasmaishostisàIgreja–atémesmoàreligiãocatólica–,aconstituiçãocivildoclerovai transformaremadversáriosdaRevoluçãonão sópadresque tinhamomaisdas vezes contribuído para seu sucesso, como boa parte de suas ovelhas.AoinstalarocismanaFrança,aconstituintedividiuparasempreapopulaçãoemdoiscampos antagônicos e criou condições para uma nova guerra de religião. LuísXVInãosedeucontadisso,poisaceitouumadepoisaoutra,aconstituiçãocivil(22dejulho)eodecretosobreojuramento(26dedezembro).3.Sombrascomplementaresecrisede legitimidade –Oanode1790marcaumafalsacalmaria.Parispareceseacalmar,masaprovínciaseagita.

Adecepçãoéclaranoscampos;aaboliçãodanobreza(19de junho)“parasempre”,essencialnoplanodosprincípios, seguidadaaboliçãodas justiçassenhoriais,nãofoisuficienteparaacalmá-los.Oscamponesestêmdificuldadepara resgatar os direitos suprimidos na noite de 4 de agosto, e explodemsublevaçõescontraopagamentodosdireitossubsistentes.Quantoaosantigosdízimos eclesiásticos, sua supressão sofre múltiplos atrasos, ligados aespinhosas controvérsias jurídicas. Em 1790, a luta camponesa contra a“feudalidade”começouadegenerar,emalgunslocais,emsuspeitaemrelaçãoatodososnotáveisassustadoscomoespectrodaleiagrária.Comosevê,nemtodososdistúrbiosvãonosentidodaRevolução:noLanguedoc,orecomeçodo conflito entre católicos e protestantes já enseja o nascimento de ummovimentopopularrural,contra-revolucionárioeantiurbano.

Coerente comelamesma, a constituintepersiste em invocaropoderda lei,mas as noções de ordem e de lei, exaltadas no recinto da Assembléia,desmoronamnopaís,emfavordeumaviolênciaquetendeasetornar“normal”.A justiça é interrompida; as guardas nacionais não podem ser controladas deParis; a indisciplina decompõe o exército.Nessas condições – e nisso reside acrisede1790–,aopiniãopúblicanãoconseguemaisdiscernirqualé,naFrança,aautoridadelegítima.

Quanto à situação financeira, ela se agravou ainda mais. A constituintedemorou para se debruçar sobre a reforma fiscal. As novas contribuiçõescriadas no final de1790 e no iníciode1791– a fundiária (esmagadora), amobiliária,os impostosdiretos locais–sódarão resultado (ruim)apartirde1791,eoaumentodacargafiscaléacompanhadodeumaanarquianacoleta.Oassignat-moeda (17de abril de 1790) pode ter provocadouma retomada

econômica temporária, mas anunciou o recurso sistemático à impressão depapel-moeda (uma nova emissão, de 800milhões, foi anunciada em 29 desetembrode1790).Ainflaçãoteráconseqüências:adepreciaçãodoassignat,principiadaem1791.

II–Varennes1.Odebatepolítico–ARevoluçãopareceobedeceraumadinâmicaprópriaqueperigadesembocarnaaventura.Mirabeaucompreendeu-a.Apartirde1790–naépocaemqueopopularLaFayetteacreditavaserohomem-chavedequalquerestabilização–, ele se aproximoudaCorte,mas aCorte nuncao compreendeuverdadeiramente: a um sinceromonarquismo, o deputado deAix aliava visõesparlamentaristasdemocráticasdeexcepcionalmodernidade.

AAssembléiaconstituintecontinuaseu trabalho legislativoeconstitucional.O público, composto de desocupados e muito mais numeroso desde ainstalação daAssembléia em Paris, exerce sobre ela uma pressão mais oumenosdiscreta,eventualmentetemperadapelorespeitoqueaindainspiramosrepresentantesdanação.Opúblico se apaixonapelosoradoresda esquerda(Petion, Buzot, Robespierre, sobretudo o triunvirato Barnave-Duport-Lameth), contra os dadireita (o abadeMaury,Cazalès),mas é nomeiodocaminho que se encontram talvez os personagens-chave, como Sieyès,homem de uma esquerda mais moderada, Mirabeau e La Fayette, que setornaramhomensde“centro”depoisdapartidadeMounierealgunsdeseusamigos.

Os deputados estão agrupados por afinidades políticas. Desde o debate desetembro de 1789 sobre o veto, os “patriotas” passaram a ter assento àesquerdadopresidente(“doladodoPalais-Royal”).Àdireita–“doladodarainha”–estãoos“negros”ou“aristocratas”,ligadosàsprerrogativasreaisouaoAntigoRegime,comseuliberalismode1789porvezesreformulado.Entreosdois,umaamplamaioriaheterogêneaeflutuante,compostadeumpartidomonarquista enfraquecido e, mais à esquerda, da grande massa dos“constitucionais”.

Esses“partidos”defronteirasinstáveisnãocomportamnenhumaorganizaçãoestruturada.Depois das sessões,muitos deputados se encontramemclubes,freqüentementeinstaladosemconventosdesativados.Omaisprestigiosoéafamosa“SociedadedosAmigosdaConstituição”ou“ClubedosJacobinos”

(originário do clube bretão de Versalhes).Maismoderada, a Sociedade de1789,naqualseilustramLaFayetteeMirabeau,nãochegaaultrapassarasdimensões de uma academia política. Na centro-direita, a Sociedade dosAmigos da ConstituiçãoMonárquica, organizada por Clermont-Tonnerre evítima de diversas operações de intimidação, teve uma existência apenasefêmera.

Oecomaisoumenosdeformantedosdebatespolíticosrepercuteigualmenteemumaimprensadinâmica,maciçamentepatriota,masaindalivreepluralista(deixarádesê-loem10deagostode1792).

Uma esmagadora maioria de deputados é favorável a uma realezaconstitucional, apesar da rudeza dos debates a respeito da disposição dessafórmulapolíticaeapesardaesquerdafreqüentementeterlevadoamelhor.ComamortedeMirabeau(2deabrilde1791),desapareceoúnicorevolucionáriocapaz–aindaquesepossaduvidar–demoderarosvencedores.2.Afugadorei–Depoisdofracassodosmonarquianoseseusaliadosarespeitodovetoreal,dacriaçãodeumasegundacâmaraedosdebatesde1790sobreodireitodepazedeguerra,LuísXVIviulevantarvôoumaporumaamaiorpartede suas prerrogativas. O rei não interveio. Em compensação, esse príncipe deuma piedade notável acabou se encrespando-se em matéria religiosa. Emborativesse assinado – um pouco rápido – a constituição civil do clero, recorriapessoalmente a padres refratários. No dia 18 de abril de 1791, uma multidãoencorajada pela inação da guarda nacional o impede de deixar Paris para ir aSaint-Cloud. A partir de então, ele pensa em fugir da capital e alcançar emMontmédy,nafronteiraardenense,astropaspresumidamentefiéisdomarquêsdeBouillé.Aevasãodafamíliarealaconteceunanoitede20para21dejunhode1791. Em conseqüência de diversos atrasos e contratempos, a viagem foiinterrompidaemVarennes.Detidosetrazidossobescolta,LuísXVIesuafamíliachocam-secomosilêncioglacial,preconizadopelasautoridades,dosparisiensesquevieramassistiraoseuretorno.

EmumacartadeixadanasTuileries,orei justificouseugesto,afirmando-selegitimamente“prisioneirodentrodeseusprópriosEstados”desdeasjornadasde outubro de 1789, denunciando a decomposição administrativa edeclarandonulas todasasdecisõesque lhe tinhamsido impostaspela força.Mas o que contava ele realmente fazer em Montmédy? Juntar-se aosemigradosnoestrangeiro?Prepararareconquistapelasarmasdeseutronodemonarca absoluto? Ou então, de maneira menos chocante para as

consciências nacionais, renegociar tudo com a Assembléia, dessa vez emposiçãode força?Ou, ainda, simplesmente exigir o respeito a prerrogativasconstitucionaisquelheeramdiariamentecontestadaspelos“patriotas”?Comonenhumaresposta–sobretudoaúltima–erasatisfatória,odebatecontinuouemaberto.

3.Oenfraquecimentoda idéiamonárquicaeaexplosãodaesquerda –Asconseqüências do acontecimento são incalculáveis. O que sobrara da realezacapetiana saiu rachado dessa expedição lamentável e humilhante.A fuga paraVarennes marca uma nova guinada na Revolução e novas tomadas deconsciência–republicanasprincipalmente–entreosrevolucionários.Amaneiracomofoitratadaafamíliarealsuscitamanifestaçõesdeindignação,masoreflexodominanteparecehostilaLuísXVI.

Recomeçaapilhagemdecastelos.Algunsnobressãomassacrados.NoNorteenoLeste,criam-secomitêspermanentes,easpessoassearmamfebrilmenteparafazerfaceaoinvasor.Omal-estarcontinuaaumentandonoexército,doqualdesertammilharesdeoficiais.Emalgumascidades, aspalavras“rei”e“realeza”sãoapagadasdaviapública.

Aagitaçãodemocrática,queacompanhaaagitaçãosocial,éparticularmenteintensa em Paris, onde o clube extremista dos Cordeliers, uma sociedadepopular em franca expansão, pronuncia-se pela República.AAssembléia,que teve que destituir o rei, não quer renunciar à realeza constitucional.ARepública é para ela uma perigosa utopia, sinônimo de anarquia. Mas aconstituinteéamplamentecompostadenotáveisamigosdaordemedeumapaz propícia aos negócios; acaba de prová-lo ao coroar a supressão dasmestriasecorporações(decretode2-17demarçode1791),comaproibiçãodascoalizõesoperárias(leiLeChapelier,14-17dejunhode1791);éporissoqueaAssembléiapreferirdesculparLuísXVI,dandocréditoàficçãoabsurdadeseuseqüestrocontraavontadepelosrealistas...

A esquerda está prestes a explodir. Os homens do triunvirato – Barnave,Duport,Lameth–foram,porsuavez,deportadosparaocentrosobosolhosdeumadireitacontra-revolucionáriaquecontinuaadetestá-losdamesmamaneira.

O ardoroso Barnave, em 1789, separara-se de seu amigoMounier para sejuntaràesquerda;deagoraemdiante,vaiseentendercomaCorte,aexemplodeMirabeauantigamente.Suaguinadaésintomática:“NósvamosterminaraRevolução?Nósvamos recomeçá-la? [...]Os senhores tornaramoshomens

iguaisperantealei;consagraramaigualdadecivilepolítica;transferiramparaoEstadotudooquehaviasidotiradodasoberaniadopovo;umpassoamaisseriaumatofunestoeculpado,umpassoamaisnalinhadaliberdadeseriaadestruiçãodarealeza;nalinhadaigualdade,seriaadestruiçãodapropriedade.[...] Hoje, todo mundo sabe que o interesse em terminar a Revoluçãopermanece.Osqueperderamsabemqueé impossível fazê-la retroceder; osqueafizeramsabemqueestáterminadaeque,paraaglóriadeles,éprecisoconsolidá-la”(15dejulhode1791).

Terminar, consolidar aRevolução: oito anos antes da tomadadopoder porBonaparte,trata-sedeumvotopiedoso,contraditopelasrealidades.Otriunviratoe os deputados doravante moderados crêem que é conveniente abandonar osjacobinosparafundarocluberivaldosFeuillants(16dejulho),aomesmotempoemqueosmeiosparisiensesmaisdemocrataspersistememreivindicar, senãoaRepública,pelomenosaderrotadorei.AAssembléia,Bailly,prefeitodeParis,La Fayette e sua guarda nacional utilizam desastradamente meios enérgicos: afuzilariadeChamp-de-Mars (17de julho)selanosanguedemuitasdezenasdereivindicantes a união pusilânime do grosso dos constituintes em torno de suaconstituição.

Homensdaordememsuamaiorparte,osconstituintesnãosabemmanteraordem.Afamosarepressãodoverãode1791é–salvoaabsurdafuzilariade17dejulho–deumaparticularbrandura;seráderestoapagadapelaanistiadecretada emmeados de setembro.A constituinte não faz senão acumularcontraelaosrancoresdos“patriotas”,semchegaràdecisão.

III–Aconstituiçãode17911.Umaredaçãoseqüencial–Osgrandesprincípiosdonovoconstitucionalismoforamimpostosnaprimaveraenoverãode1789;suasprincipaistécnicasforamadotadas no fim do verão e no princípio do outono (ver capítulo II). Outrasbatalhastiveramlugarem1790.

Emmaiodesteano,adiscussãosobreopoderdeguerralevaaconstituinteaafirmarinicialmenteumadoutrinagenerosaqueseráretomadanaconstituiçãode 1791: “Anação francesa renuncia a empreender qualquer guerra comoobjetivodefazerconquistasejamaisempregarásuasforçascontraaliberdadedequalquerpovo”.Restaopoderdedecidirumaguerradefensiva;adireitagostaria de confiá-lo inteiramente ao rei; a esquerda pretende reservá-lo à

Assembléia. Mirabeau reúne a quase unanimidade em torno de umcompromisso:aoreicaberáainiciativadeproporadeclaraçãodeguerra,maspertenceráàAssembléiaaceitá-laourecusá-la.

Emoutubro,Mirabeautentaobterdaconstituintequeelavolteatrásarespeitoda incompatibilidade das funções deministro e de deputado. Fracassa,masentãoéresolvidaumaquestãomaiscrucialainda,pendentedesdeodebatedejulhode1789,consecutivoàdispensadeNecker:aAssembléiapodeintervirna nomeação e na dispensa de ministros? Embora uma larga maioria sejahostilaoministérioemexercício,nãotemaintençãodeexigirsuademissão.Mesmoàesquerda,algunsdeputadosrecusam-seadiminuiressaprerrogativaessencialdorei:contrataredemitirosministrosdeacordocomasuavontade.Os ministros são vistos como agentes apenas do “executivo” estritamenteentendido, espécie de diretores da administração central. A maioria daconstituinte recusa-se a conceber o ministério como um órgão políticohomogêneo e colegial suscetível de assegurar o ajustamento das visões daAssembléiaedorei.

Essas discussões parecem dominadas pela idéia de onipotência das regrasconstitucionais. Não se percebe – a incompreensão vai se prolongar até oséculo XIX – que as relações entre assembléias e órgãos governamentaisdecorremtanto(oumais)dosistemapartidário,daexistênciaounãodeumamaioria, atémesmodoestadodos “costumes” edaopiniãopública, quantodos procedimentos constitucionais. Contudo, não se pode criticar osconstituintes–comaexceçãodeMirabeauedeumpunhadodeseuscolegas– por não terem compreendido o parlamentarismo majoritário à inglesa;tecnicamenteprontohá alguns anos, ele só se imporá em toda a sua lógicaalgunsdecêniosmaistarde.

DepoisdeVarennes,o triunviratodesejasalvarnãoamonarquia,mortaem1789,masumarealezaquenãosejapuramentesimbólica.OsamigosdeBarnaveempenham-se durante o verão de 1791 em obter uma revisão dos decretosanteriores, nomomento em que são apresentados demaneira sistemática sob aforma de uma constituição.A tarefa defronta-se com resistências vigorosas naAssembléia. Salvo o reforço relativo das condições de elegibilidade para asfunçõesdeeleitor (nosegundograu),a revisãoserámodesta:é impossívelparamuitos, sobretudodepoisda fugadeLuísXVI,deixarde suspeitar do rei edo“executivo”emgeral,noqualvêemum“inimigo”pornatureza.2 .A constituição –A concepção de eleitorado está aquém das promessas da

Declaração, que atribuía a “todos os cidadãos” o “direito de concorrerpessoalmente ou por seus representantes” para a elaboração da lei (artigo 6);aquémigualmenteemrelaçãoàscondiçõesexigidasparaaseleiçõesnosEstadosGerais...Oeleitorado,nãosem importantesambigüidades, écompreendidonãocomoumdireito,mascomoumafunção,sendoquepertenceànação–ouseja,àconstituição–designaros eleitoresmais aptos.Em1789,Sieyès estabelecera adistinçãoentrecidadãospassivos(quegozamapenasdedireitoscivis)ecidadãosativos(habilitadosaparticipardavidapolítica).

Oscidadãosativosdevemtermaisde25anosdeidade,serdomiciliadosnomesmoendereçoháumano,estarinscritosnaguardanacional,terprestadoojuramento cívico, pagar uma contribuição direta equivalente a três dias detrabalho (deum trabalhador não-qualificado), comexceçãodosdomésticos.Censitário,esseeleitoradoésubmetidoadoisgrausdeeleição.Oscidadãosativosreúnem-seemassembléiaprimárianasededocantão,ondedesignamos eleitores de segundo grau dentre os cidadãos ativos que preencham ascondiçõesmaisexigentes.Segundovariaçõeseem funçãodos locais, esses“eleitores” devem ser proprietários ou usufrutuários de um bem quecorresponda a uma renda igual ao valor de 150 a 200 dias de trabalho, oulocatáriosdeumamoradiaquecorrespondaaumarendaigualaovalorde100a 150 dias de trabalho, ou ainda fazendeiros ou arrendatários de benscorrespondentesa400diasde trabalho(comacumulaçãoparacidadãosqueentrem em diversas categorias).Os eleitores de segundo grau, reunidos emassembléiaeleitoral,elegemosdeputadosdocorpolegislativo.

Umpontodeveseresclarecido,pontoqueamaiorpartedosautorestratademaneira contestável. Avalia-se em geral em 4,3 milhões o número decidadãosativos,ouseja,maisde60%dosadultosdosexomasculino (maisnoscampos,menosnascidades);acrescente-sequesóhaviapoucomaisde40mil cidadãos elegíveis comoeleitores de segundograu, o que realmenteseria muito restritivo. Mas as coisas são diferentes.A constituição dispõe:“Será nomeado um eleitor à razão de cem cidadãos ativos [...]. Serãonomeados dois sobre 150 e um sobre 250. E assim por diante”.Conseqüentemente,onúmerodeeleitoresdesegundograugiraemtornode40mil.Contudo,parecequecercade3milhõesdefranceseseramelegíveisparaessasfunções.Osistemaéportantobastantedemocrático,eoeleitorado,infinitamentemaiordoquenaInglaterradamesmaépoca.ParaserelegívelàAssembléia legislativa, a exigência do pagamento de uma contribuiçãocorrespondenteaummarcodemoeda69–50dias de trabalho, segundo se

disse – foi abandonadain extremis sob a pressão de Robespierre e dejornalistas da extrema esquerda: os deputados podem ser escolhidos semexceçãonoconjuntodoscidadãosativos.

Aúnicafunçãodoseleitoresemregimerepresentativoédesignarseuseleitos,querepresentama“naçãointeira”edeterminamoconteúdodavontadegeralforadequalquer“mandatoimperativo”.Osdeputados,quesebeneficiamdegarantias de direito necessárias à sua independência, formam uma câmaraúnica, numerosa (745 assentos; três por departamento, os outros repartidossegundooduplocritériodepopulaçãoedecontribuiçãodireta)epermanente.Seumandatomuitobrevededoisanos,quedeveriafrearodescumprimentododeverrepresentativo,visasobretudo,aoqueparece,aimpediracorrupçãodos eleitos pelo “executivo”... Namesma perspectiva, os deputados só sãoreelegíveis imediatamente uma única vez. A Assembléia ocupa um lugarpreponderantenoexercíciodafunçãolegislativaecomandaosprocedimentosfinanceiros.Elaéinvulnerávelao“executivo”,quenãopodedissolvê-la.Elanãopode,porcerto,contestararesponsabilidadepolíticadosministros,mas,no clima que reina desde 1789, pode-se prever que suas usurpações dasfunções atribuídas emprincípio ao “executivo” acabemaumentandoopesoesmagadorqueaconstituiçãolhedá.

O“reidosfranceses”,subordinadoàlei,“reinasomenteporintermédiodela”.Eletambémé,emprincípioeporqueaconstituiçãooqualificacomotal,um“representante”. Sua designação resulta sempre de antigos mecanismostradicionaisdesucessãodacoroa,objetodeatençãodaconstituição(oqueostorna doravante passíveis de revisão). Beneficiário de uma simples “verbaespecial”, quedeverá lhepermitir fazer face a suas necessidades, e deumaguarda insignificante para ser perigosa, ele não é mais do que um órgãoconstituído.Os elementos de sua legitimidade tradicional – fruto do direitodivinoedodireitohistórico–desapareceram,eeleéobrigadoaojuramentode “ser fiel à nação e à Lei”. Os casos de destituição do rei sãocuidadosamente enumerados, a instituição da regência do rei é inteiramentereformada.Mesmoquesuasfunçõessejamraramente“executivas”,eleaindamerece o nome de rei. Porém, mesmo nesse estrito domínio, apesar dasfórmulassonorasaparentemente favoráveis, seus instrumentossãocontados.O papel importante da eleição na designação de numerosos agentesadministrativos – um verdadeiro frenesi eletivo apoderou-se da França em1789 – encolhe suas prerrogativas de “chefe supremo” da administração.Com certeza, como amaior parte dos “executivos”, ele participa de outras

funçõesalémdapuraexecuçãodasleis,mastaisacréscimossãoparcamentecontados. No âmbito da função legislativa, beneficia-se de um vetosuspensivo–muitocontestado–que lhepermite,porumtempoquevaideumpoucomais de dois anos a umpoucomenos de seis anos, recusar-se asancionar um texto votado pela Assembléia, portanto a transformar esse“decreto”em“lei”,maselenãogozadeumaverdadeirainiciativadeleis.Damesmamaneira,elepodeiràAssembléia,masesta,nasuapresença,deixadeser um “corpo deliberante”. Em princípio, ele dirige as relações exteriores,masodireitodedecidirapazeaguerracabeàAssembléiaporproposiçãodorei, que não pode assinar tratados senão sob reserva de ratificaçõesposteriores.ÉigualmenteaAssembléiaquefixaosefetivosdastropas,eoreisequertemaexclusividadedanomeaçãodaspatentes.

Osministros,porúltimo,nãoformamumgabineteenãoestãosubmetidosàautoridade de um primeiro-ministro. Eles trabalham separadamente.Escolhidos e revogados livremente – por direito – pelo rei fora daAssembléia, só são responsáveis penalmente se forem acusados pelo corpolegislativo diante de uma Alta Corte nacional. O leque dos motivos deacusação é amplo: delitos contra a segurança nacional e a constituição,atentados à propriedade e à liberdade individual, dissipação de recursospúblicos.Elessãooschefesdeseusdepartamentos,eo reinãopodeagiranão ser por intermédio deles. É função deles contra-assinar os atos do reidecorrentes de suas competências (qualquer iniciativa real deve, portanto,receber o assentimento de um ministro que aceite endossar a eventualresponsabilidade penal). Só entram na Assembléia para serem ouvidos arespeito de assuntos relativos a suas administrações ou para prestaresclarecimentosquetenhamsidoinstadosafornecer.

3 .Oespírito de um texto –A famosa “separação dos poderes”, reivindicadapelos constituintes e consagrada sobretudo como critério de validade de todaconstituição(artigo16daDeclaração),deveserbem-compreendida.

Paraamaiorpartedosenvolvidos,háapenasumprincípiobastantevago,devalor sobretudo negativo, que resulta em negar qualquer legitimidade àconcentração(teórica)defunçõespelomonarcadoAntigoRegime.Àparteisso, as visões variamdemaneira considerável.Osquepermanecem fiéis aMontesquieu (que jamais utilizou tal expressão) não são favoráveis a uma“separação”estrita:apenasdesejariam,porexemplo,umaampladistribuiçãoda função legislativa. Em compensação, os que se inspiram mais em

Rousseau, ou os que, como Sieyès, aspiram a ver consagradas, nessedomínio, as capacidades analíticas da razão, pleiteariam somente um“separatismo” funcional forçado, que desse ao órgão “legislativo” aexclusividade da função legislativa. De compromisso em compromisso, asoluçãoencontradanãodecorreunemdeumesquemanemdeoutro.

Aclaraindependênciateóricadosórgãos,apequenadistribuiçãodasfunções–mascomtodososmeiosparaaAssembléiausurparoexercíciodafunçãoexecutiva – permitem aproximar a constituição de 1791 da constituiçãoamericana de 1787. É preciso, entretanto, notar importantes diferençastécnicas,resultantesdeumoutrocontextointelectual,comoobicameralismo.Alémdisso,oclimaéinteiramentediferente:opresidenteGeorgeWashingtonéaureoladodeglória,enquantoLuísXVIestáemgrandepartedesacreditado.Poroutrolado,nosEstadosUnidos,umacertadesconfiançaemrelaçãoàleieaoCongressotemperaalógicamais“congressional”doquepresidencialdasinstituições.Oveto,peça-chavedodispositivo,quedesempenhaumpapeldepoucaimportâncianaAméricadaépoca,échamadonaFrançaparapôrfogonapólvora:emParis,emboraoprincípiodasoberanianãoresidaemnenhumdos órgãos constituídos, é bastante difundido o sentimento de que é aAssembléiaqueoencarnaemúltimainstância.

A irresponsabilidade política dos ministros – a prática iria demonstrá-la –acumulava inconvenientes. Escolhidos fora da Assembléia, não tinhamcondições de obter dela uma legitimidade de tipo parlamentar.Ademais, oprincípio da irresponsabilidade não impedirá a maioria da Assembléia,utilizandointeiramenteaameaçadaresponsabilidadepenal,deconseguir,emmarço de 1792, a substituição de um ministério “feuillant”70 por umministério “jacobino”. No final das contas, na perspectiva de um regimeequilibrado, teria valido mais a pena um veto mais fraco, limitado a umalegislatura, e a ratificação de elos mais sólidos entre a Assembléia e osministrosnelaescolhidos.

Provavelmentesatisfeitoscomseutexto,osconstituintesquiseramtornarsuarevisãomuitodifícil.Ascircunstâncias iriamrapidamentedesfazeressavontadedeimobilizarofuturo.

O texto definitivo da constituição é votado em 3 de setembro; Luís XVIprestajuramentodia14.Osvíciosdeconcepçãoedefuncionamentodoregime,perceptíveis a partir de 1789 – fraqueza e subordinação excessivas de um“executivo”quenão temascondiçõesmoraisparaasprerrogativasque lhesão

reconhecidas, poder invasor de uma câmara hipertrofiada, entre outros –, estãodoravante institucionalizados e vêm se somar aos dois terríveis males que jáassolamaFrança:ocismapolítico-religiosoea inflaçãomonetária.Masahoraoficial é de auto-satisfação, e a verdade é que a obra consumada é imensa.Aconstituintepodeseseparar (30desetembro),dando lugaraoCorpo legislativoque acaba de ser eleito no começo do mês. Num gesto cuja generosidade sóigualou a cegueira, os constituintes seguiram Robespierre, declarando-seinelegíveispara anovaAssembléia (16demaiode1791).É, pois, umpessoalpolíticointeiramenterenovadoquevaipôrempráticaaconstituição.

69.Antigamedida(244,5g)queserviaparapesarosmetaispreciosos.(N.T.)70. O Clube dos Feuillants era um grupo político de tendência monarquistaconstitucional que se opunha à derrubada de Luis XVI. Reunia-se no antigoConventodosFeuillants,quedeuorigemaoseunome.

CAPÍTULO V

A QUEDA DA REALEZA

I–AesquerdizaçãoMais jovens e inexperientes, menos brilhantes, os membros do Corpo

legislativo que se reuniu em 1° de outubro de 1791 são igualmente mais“avançados” do que seus veteranos da constituinte.A lembrança de Varennesestá viva em todos os espíritos.A época daAssembléia legislativa será a dasuspeitaagravada–instintivaouideológica–emrelaçãoao“executivo”.1.AcomposiçãodaAssembléia –As eleiçõesdoverãode1791provocaramum acentuado desvio para a esquerda. As tendências contra-revolucionáriasrepresentadas anteriormente sob o nome de partido “negro” ou “aristocrata”foramvarridas,substituídaspormoderadosoriundosfreqüentementedaesquerda.

À“direita”têmassentomaisde260feuillants,favoráveisaumaaplicaçãolealdaconstituição.Muitodivididosentreospartidáriosdo triunviratoBarnave-Duport-Lameth e os deLaFayette, os feuillants sofrem coma ausência deseusprincipaislíderesnaAssembléia.

Àesquerdatêmassentopertode140“jacobinos”,inscritosnasuamaiorparteno Clube da Rue Saint-Honoré. No meio deles, a extrema esquerdademocrática, com Robert Lindet, Couthon, Carnot e o trio “cordelier”Chabot-Basire-Merlin(deThionville),nãotemgrandepesonuméricodiantedo grupo dinâmico, porém desordenado, dos “brissotins” (futuros“girondinos”), do qual emergemas personalidades deBrissot – no passadoum reles escritor, encarnação característica de numerosos “Rousseau dassarjetas”daParispré-revolucionária,fundadordaSociedadedosAmigosdosNegros e do jornalLe Patriote français – e, um pouco àmargem, do ex-marquês de Condorcet, matemático e filósofo que se extraviou na políticaconcreta,semesquecerostalentososoradoresqueacabaramdeseelegerpelodepartamento de Gironde, tais como Vergniaud, Guadet e Gensonné. Osbrissotinstêmdaconstituiçãonovaumaleituraabusivaemaisconforme,nofundo, com a lógica revolucionária: o rei dos franceses deve ver suasatribuições estreitamente reduzidas; a realezadeve serneutralizada e todoopoder efetivo deve emanar da Assembléia, a única a representar

verdadeiramenteanaçãosoberana.

No centro, senta-se umamplo “Marais”71de cercade350deputados, semprogramapreciso,masque,chegadoomomento,faráedesfaráasmaiorias.ComonaAssembléiaprecedente,essassegmentaçõespolíticassão frágeisemóveis.

2 .Opapel crescentedos clubes –SegundoBrissot e seus amigos, o impulsorevolucionárioeocontroledasautoridadespolíticaseadministrativasdevemserasseguradospelosclubesepelas sociedadespopulares,mediadoresesclarecidosda “vontadegeral”.Sobopretextode fazer respeitar a constituição, trata-se demoldá-lapelapráticaclubista.

Reservado primeiro aos deputados, o clube dos jacobinos abriu-se para opessoaldas letras, para advogados ehomensda lei, paraburguesesquenão seassustavamcomovalordacontribuição.Noverãode1791,contavacom1.200adesõese já tinhaquatrocentassociedadesafiliadasnaprovíncia–quatrovezesmaisdoqueem1790;serãoseiscentasem1792,oitocentasem1793,duasmilem1794–,mantendocomacasa-mãeumavolumosacorrespondência.Adeserçãomaciça dos deputados moderados, em julho, permitiu a Robespierre e aosjacobinos“duros”controlareatémesmoreforçaressaredeprovincianacadavezmais eficaz e centralizada, sem equivalente à altura. Tendo, por prudênciapolítica, desistido de exigir a deposição do rei, os jacobinos militarão peloestabelecimentodo sufrágiouniversal edesempenharão,demodomaisgeral, oduplo papel de grupo de pressão e consciência revolucionária daAssembléia(enquanto aguardamparapassar à ação ilegal e se tornarememseguida, senãoum Estado dentro do Estado, ao menos uma espécie de partido oficial daRepública).

Mais democrata ainda, o clube parisiense dos cordeliers não era na origemsenão uma sociedade popular de bairro dentre outras. Nele militavampequenosburgueses,comerciantes,artesãos,pouquíssimosoperáriosepobres(insuficientemente politizados). Viam-se por lá jornalistas (Desmoulins,Marat, Hébert), o açougueiro Legendre, o cervejeiro Santerre. Sempre àfrente da Revolução, ligados aos agitadores dos bairros do centro e dosfaubourgs do Leste, dominando uma rede de sociedades populares, oscordeliers se diziam,desde a crise deVarennes e a fuzilaria doChamp-de-Mars,cadavezmaisrepublicanos.

O novo clube moderado dos feuillants, por sua vez, só terá um papel no

começo daAssembléia Legislativa (83 sociedades afiliadas em outubro de1791,contra550nosjacobinos).Porfaltaprováveldeparticipaçãopopular,ele será bem depressa – como haviam sido, um de cada vez, os clubesmoderadossobaconstituinte–superadopelosacontecimentos.

3 .A situação ambígua da realeza –Apesar da chama democrática, a maiorpartedaFrançaparececontinuarpartidáriadarealezaefavorávelàconstituição(estaéinadaptadaenãocorrespondeanenhumalógicaconsistente,masaopiniãopública,noconjunto,nãotemconsciênciadessefato).

Embora a questão religiosa e, em menor medida, a influência da rainhatenham reforçado em Luís XVI o sentimento de recusa da Revolução, muitosfranceses ainda acreditamque ele esteja decidido a jogar o jogo constitucional.Contudo,MariaAntonietaeseucírculoesperamqueaFrançaacabesecansandodaRevoluçãoedaconstituição.Éarazãopelaqual,praticandoapolíticadopior,eles apóiam os partidos extremos contra os moderados. O jacobino Petion é,assim,eleitoprefeitodePariscontraLaFayette(novembrode1791),eosfundosangariados a partir da dotação especial do rei são desperdiçados para compraragitadoresparisiensescomoDanton,quenãotêmnenhumaintençãodesustentarumedifíciocambaleante.Arealezasonhacadavezmaiscomumaintervençãodoestrangeiro;elanegociacomaÁustriaeaEspanha.Osegredoémalguardado;asacusaçõeschovem;osjacobinos,manipulandoosrumores,falamdeum“comitêaustríaco”formadoemtornodarainhapara“conspirarcomoestrangeirocontraanação”,eoreiésuspeitodemanterligaçõescomosemigrados.

O exemplo do conde de Artois foi seguido, depois de 1789, por algunsnobres (os burgueses emigrarammais tarde) que fugiam dajacquerie e daRevolução, persuadidosdequevoltariamdentro embreve.Em1790-1791,foi a vez de muitos oficiais emigrarem (a marinha será decapitada pelaemigraçãoenãoserecuperará).Desdeafugaemjunhode1791docondedeProvence,outroirmãodorei(futuroLuísXVIII),asnovaspartidaspassaramasermaiscoordenadasemelhorpreparadas.

A partir de 1789, formara-se em Turim um comitê contra-revolucionáriodirigidopeloantigoministroCalonne.Ele sugeriua formaçãodeumcorpomilitarcompostodeemigradoseorganizoudiversastentativasdeseqüestrodeLuís XVI. Pensou-se também em uma insurreição geral sobre o territóriofrancês,masoscomplôsforamdescobertos,eosprojetos,adiados.

O simples fato da emigração, quaisquer que fossem as tensões queinfluenciavam as relações de Luís XVI com seus irmãos e os emigrados,

confirmavaentreos“patriotas”aidéiadeumatraiçãoreal.

Em1791,asreuniõesdeemigradosconcentravam-senoeleitoradodeTrèves,na Renânia, onde eles viviam dos magros subsídios que lhes tinham sidoconcedidospeloimperadorgermânicoLeopoldoII,peloreidaEspanhaeporalgunspríncipesalemães.Possivelmente,umtotalde25milhomensardendoparaentraremaçãoomais rápidopossível,masnadapodiaser feito semaintervençãodaspotênciaseuropéias.

II–Aguerra1 .A Europa e a Revolução – A repercussão intelectual da Revolução naEuropa é considerável. Quanto às chancelarias estrangeiras, elas manifestamvisõesbastantesumárias.

O enfraquecimento da França alegra a maior parte delas, que sonham porvezes em financiar uma eventual intervençãomilitar tendo emvista ganhosterritoriais.Aessesapetitessesuperpõeainquietação,quecrescenopróprioritmodocontágio revolucionário (valedoReno,norteda Itália).Osantigosregimes se verão virtualmente ameaçados pela queda do mais prestigiosodeles. A despeito do pacifismo exibido pela constituinte, a afirmaçãorevolucionária de uma forma de direito dos povos de dispor de simesmosminatodasassoberanias;éemnomedetalprincípioqueAvignonsubleva-secontraopapa,eessacidadeeoComtatVenaissin(estemajoritariamentefielaosumopontífice)sãoanexadosàFrançaemsetembrode1791.

ÉnaInglaterraenaAlemanhaqueaondadechoqueintelectualémaisforte.Dooutro ladodo canal daMancha, a facçãopoliticamentedominante – osWhigs–divide-se:acorrentefavorávelaosacontecimentosquesedesenrolamna França reúne-se em torno de Fox72, enquanto uma corrente hostilmajoritária,emtornodePitt,oJovem73,tendeparaoconservadorismo.Comopassardo tempo,o fatomais relevante seráograndedebate em tornodaobra de Burke. Edmund Burke é ele mesmo umwhig; ligado à “GloriosaRevolução” de 1688-1689, freqüentemente adotou posições liberais,mas oantitradicionalismo sistemático da Revolução levou-o a endurecer certosaspectosdeseupensamentoemsuasfamosasReflexõessobreaRevoluçãodaFrança,de1790.Burkeopõeas liberdadesinglesas,frutodeumarecepçãohistóricasingulardaLeinatural,àabstraçãodesastrosadosdireitosdohomemàmodafrancesa.Eledenunciaoorgulhodoconstitucionalismodatábuarasa

e exalta a elaboração progressiva do regime britânico. Essa obra decisivaancora uma crítica política severa numa poderosa filosofia que, mesmoinfluenciandomuito pouco a escola contra-revolucionária francesa (Bonald,Maistre), nutre até nossos dias o pensamento conservador mais ou menostradicionalista e liberal (Hayek).Burke escreveu-a como réplica ao livrodeRichard Price; suscitou por sua vez uma vigorosa resposta do anglo-americanoThomasPaine, autor do famoso ensaioSenso comum. Suanovaobra,Osdireitos dohomem, tambémobter sucesso.Houveoutras réplicas,maséolivrodeBurke,traduzidoemváriaslínguas,querepercutirámais.

Na Alemanha, a obra de Burke alimentará uma reflexão importante eestimularáahostilidadedecertosautoresemrelaçãoàFrançanova(Brandès,RehbergetambémGentz,inicialmenteseduzido).Contudo,emumprimeiromomento,aacolhidadaRevoluçãopelaAlemanhaintelectualéglobalmentefavorável.Aindaseestálongedaoscilaçãoromânticadofinaldoséculoedesua primeira dimensão reacionária. Por ora, a ressonância é profunda,amplificada pela interferência de um movimento filosófico de excepcionalpoder: Kant, Fichte, Hegel – o que não impede que ocorram variações dejuízoposteriores–acolhemaRevoluçãocomomaisvivointeresse.

O imperador Leopoldo II e o rei da Prússia Frederico Guilherme IIencontram-seemPillnitzemagostode1791.Nodia27,declaram-sedecididosaagiremfavordeLuísXVI,mascomacondiçãodeseremseguidospelosoutrospríncipesdaEuropa.Oimperadornãodesejaaguerra;prefere–comoLuísXVI?– um congresso de potências européias para ditar sua lei à França, semintervençãoarmada.Emboraarestriçãoarespeitodoacordodosoutrosmonarcasesvazieotextodeseuconteúdo,os“patriotas”,emParis,vêemnadeclaraçãodePillnitz umamaquinação de inspiração “aristocrata”: a exaltação do sentimentonacionalcaminhajuntocomumasuspeitacrescenteemrelaçãoaorei.2.Oveto–AsituaçãonaFrançacontinuaparticularmentetensa.

O comércio colonial está interrompido, principalmente por causa da revoltadosescravosemSantoDomingo(1790),ea indústriacomeçaaafundar.Acolheita de 1791 foimedíocre, e as condiçõesmeteorológicas são ruins.Oassignat continua em queda. O encarecimento dos meios de subsistênciasuscita desordens e violências, por vezes assassinas. No outono, onda derebeliões noNorte; em Paris e nos arredores, pede-se o congelamento dospreçosdosgênerosdeprimeiranecessidade.Aliberaçãodosdireitosfeudaisaindanãofoiaceita.Nosuldopaís,aguerranoscastelosseráamaisviolenta

desde1789,amaispolitizada(começode1792).Os“patriotas”denunciamoconluio entre “aristocratas” e padres refratários. As querelas religiosasanunciam localmente a próxima generalização da guerra civil (Vendéia,Lozère).

Para remediar os riscos de contra-revolução, a Assembléia vota trêsimportantesdecretos(31deoutubro,9e29denovembrode1791):ocondedeProvencedeveretornaràFrançadentrodedoismesessobpenadeserdestituídodeseusdireitosàregência;osemigradosserãopassíveisdemorteedeterosbensconfiscadoscasoseusagrupamentosarmadossobreoRenonãosejamdissolvidosem1º de janeiro de 1792; por último, os padres refratários terão que prestar ojuramento cívico sob pena de serem considerados suspeitos. Luís XVI,excepcionalmente, usa seu direito de veto (11 de novembro, 19 de dezembro).Contudo, escreve aos irmãos para convidá-los a voltar; declara-se até mesmoprontoafazeraguerraaospríncipesalemãesquepersistirememacolherreuniõesdeemigrados.Trabalhoperdido:aopiniãopatriotasóreteveousodoveto.3.Acaminhodaguerra–Aguerraéasoluçãoquepareceseimporàmaioriadosenvolvidosnapolítica.

Do lado da realeza, uma guerra, acredita-se, só traria benefícios: umaimprovável vitória francesa aumentaria o prestígio de Luís XVI, umaprovável vitória européia lhe devolveria a autoridade. Os feuillants estãodivididos.Algunsesperamdaguerraumarecuperaçãodapopularidadedorei– La Fayette, por exemplo, se veria de boa vontade como um generalvitorioso, árbitro indispensável ao rei comoà salvaguardadosprincípiosde1789–,masosoutrostememqueumestadodebeligerânciaabaleouderrubeofrágiledifícioconstitucionalde1791.Àesquerda,osbrissotinsinflamam-seingenuamenteemproldeumacruzadarevolucionáriaqueforçariaLuísXVIasepronunciara favoroucontraanação,quepurificariaos franceses,quepermitiriaprosseguireconsolidaraRevoluçãonointerior,aomesmotempopropagando seus princípios no estrangeiro. Em dezembro de 1791,Robespierre encontra-se isolado dos jacobinos; revolucionário coerente,clamapelaprudência:“Contemosnossosinimigosinternosemarchemosemseguidacontranossosinimigosexternos,seentãoaindaexistirem.[...]Antesde correr para Coblentz, ponham-se ao menos em condições de fazer aguerra.”

A partir de 1789, a situação dos ministros nunca mais foi fácil. O velhopreconceito antiministerial sobreviveu ao rebaixamento e à paralisação do

“executivo”. Geralmente honestos e não inteiramente desprovidos de talentos,mesmo que freqüentemente lhes faltasse disposição, injustamente atacados pelaesquerdaepelosclubesporseu“despotismo”,osministrosdeLuísXVIvêem-se,àimagemdeseumestre,àmercêdosacontecimentos.AlgunstrememdiantedaAssembléia,tantoque,em1792,aconfiançadaAssembléiatornou-sesinônimode“confiançadanação”.

Ao contrário de Narbonne, ministro da Guerra, os ministros feuillants sãohostisaumconflitoarmado.ComooministrodosNegóciosestrangeirosLessartconseguiu a dispensa de Narbonne, os brissotins fazem votar contra ele umdecreto de acusação (10 de março de 1792).Assustados, os outros ministrospedem demissão. Luís XVI decide, então, para acalmar a oposição e paracomprometê-la, nomear um ministério “jacobino” (girondino), com Roland noInterior,ogeneralServannaGuerra,obanqueiroClavièrenasContribuiçõese,nos Negócios Estrangeiros, um ambicioso intrigante, meio diplomata, meiosoldado:ogeneralDumouriez.EssaequipedesastradavaimergulharaFrançaemumaguerraquesóterminará23anosmaistarde,emWaterloo.

Pretextosnãofaltavam.OspríncipesalemãescompossessõesnaAlsácianãoaceitavamasconseqüênciasdanoitede4deagostode178974,eaDietadoImpério os incitava à intransigência. Os agrupamentos de emigradosconduziram a Assembléia a ameaçar de guerra o eleitor75 de Trèves; oimperadorseinterpôs,convidouoeleitoradispersarosemigradoseameaçouelemesmo a França, caso ela persistisse em suas intenções belicosas, comumaintervençãomilitar.OrevidegirondinofoiumultimatoàÁustria.

AmortedoimperadorLeopoldoIInodia1ºdemarçode1792deixouolugarvagoparaseujovemfilhoFranciscoII,querespondeuaoultimatogirondinocomuma nota seca, na qual exigia o restabelecimento dos príncipes possessionadosem seus direitos e a restituição deAvignon ao papa. No dia 20 de abril, porproposição de Luís XVI, a Assembléia votou em meio ao entusiasmo, porunanimidademenos sete vozes, a declaração de guerra ao rei daBoêmia e daHungria (Francisco II aindanão fora coroado imperador, e a titulaçãoutilizadapermitiuafirmarocaráterpessoal,antiaustríacoenãoantialemão,daguerraqueseiniciava).4.Osprimeirosreveses–“Nãopossoconcebercomosepôdedeclararaguerrasemestarprontoparanada”,confessaráLaFayette tão logose recobredeseuspróprioserros.

Oministériogirondinoilude-sesobreadecadênciadasmonarquiaseuropéias,

sobreacapacidadevitoriosadastropasfrancesas,sobreseusprópriostalentosdiplomáticoseaspossibilidadesdeneutralidadeprussianaoudealiançasarda.Talleyrand é enviado a Londres para propor, em troca da aliança ou daneutralidadebritânica, a ilhadeTobagoeumapartilhadaAméricadoSul!DumouriezsonhacomumlevantedosPaísesBaixoscontraaÁustria.MasaFrançarevolucionária,enfraquecidapelasdificuldades,sofredeumaterrívelfalta de dinheiro, de oficiais e dematerial, e a desordem reina absoluta noexército. A constituinte e a Assembléia frearam as tentativas dereorganização.Narbonnenãotevetempodeconcluirsuasreformas.Aos150mil homens do tempo de paz se acrescentaram os batalhões de voluntáriossaídosdaguardanacional,menosnumerososdoqueoprevisto,enãohouvetempoparaincorporá-losàstropasregulares.

Em 28 de abril, o pânico começa a desorganizar o exército reunido nafronteiradosPaísesBaixos.Aofensivafrancesaéimpossível,tantomaisquandoa Prússia se junta àÁustria.No interior, a perseguição religiosa agrava-se – àesperadospróximosmassacresdepadresrefratáriosnosuldopaís–,ameaçandoabrir na França um segundo front, o da guerra civil. Por conta da guerra, aAssembléiaéarrastadamaisdoquenuncapelaespiralrevolucionária.Golpeapósgolpe, aAssembléiavota adissoluçãodaguardado rei e apartidadeParisdetodas as tropas regulares, a deportação dos padres refratários, a formação emSoissons de um campo de vinte mil guardas nacionais voluntários, ditos“federados”(20demaioa8dejunhode1792).LuísXVIopõeseuvetoaosdoisúltimosdecretos.Instadoporseusministrosgirondinosareversuadecisão,eleosdemite(12dejunho)parasubstituí-losporpálidosfeuillants.

III–10deagostoAdemissão dosministros jacobinos era perfeitamente constitucional,mas é

interpretadapelaesquerdadaAssembléiacomoumaprovocação“antinacional”.Exasperadospelaresistênciareal,osgirondinoseoestado-maiordaComunadeParis vão favorecer uma “jornada revolucionária” destinada a quebrar essaresistência.1.20dejunho–Em20dejunhode1792,sobopretextododuploaniversáriodojuramentodoJeudePaume(20dejunhode1789)edafugaparaVarennes(20 de junho de 1791), milhares demanifestantes vindos dosfaubourgs sob aliderançadeSanterre,depoisdeapresentarumapetiçãoàAssembléia,forçamasportasdasTuileries.Durantehoras,oreivêdesfilardiantedeleinsurgentesqueoameaçameinjuriam.“Sr.Veto”usaobonévermelhoebebeàsaúdedanação,

masnãovoltaatrásnemsobreoveto,nemsobreademissãodosministros.Pelaprimeiravez,LuísXVInãorecuou.Essavontadebrutaldepressioná-lo

violando a constituição parece provocar na França uma emoção considerável,traduzida por milhares de manifestações de apoio ao rei. O prefeito de Paris,Petion, é suspenso.No dia 28 de junho, La Fayette conclama aAssembléia apuniros facciosos.LuísXVI, fatalista,nãoaproveita suavantagem(ele saberiaexplorá-la?);emnenhumcasodesejasersalvopelosfeuillants.2 .A “pátria em perigo” – Os prussianos do duque de Brunswick chegamrapidamenteàs fronteiras.Em11de julho,aAssembléiaproclama“apátriaemperigo”, ordena a convocação geral de voluntários e a requisição de todas asarmasemunições.Oscorposadministrativosinstalam-seemsessãopermanente.Uma alteração parece estar operando-se na opinião pública, que agora dá aimpressão de censurar a resistência real que antes aprovara... Enquanto osgirondinos negociam em vão com a realeza com o objetivo de retomar, noministério,afrentedeumaRevoluçãoquelhesescapa,umcomitêinsurrecionalsecreto prepara uma operação de maior envergadura nas seções de Paris, nasquaispredominaatendênciajacobina“dura”.

Inicialmenteunidadesdevoto(1790),transformadasmuitodepressa,comoosdistritosde1789,empequenasentidadesadministrativase tribunaspolíticasdebairro,asseçõesconstituem,comassociedadespopulares,aossaturadofamoso“povodeParis”eosórgãosdeumademocraciadireta localvívida,porémminoritária.Lideradas,comoassociedadespopulares,porintelectuaisdesclassificados ou homens da lei sem clientela, que difundem por lá umapropagandademocrataerepublicana,abrem-secadavezmaisaos“cidadãospassivos”,pequenosartesãoschamadosde“sans-culottes”76queseinfiltramtambémnaguardanacional,aomesmotempoemqueoscidadãospacíficoscomeçam a abandonar as reuniões (e, por isso, sua participação ultrapassararamente10%).Emjulho-agostode1792,asseçõesrecebemoreforçodosfederados: alguns que tinham ficado em Paris depois da recente festa daFederação,eoutros(bretões,marselheses)quecontinuaramafluindoparasejuntar–emprincípio–aocampodeSoissons,cuja formaçãoprosseguiraadespeitodovetoreal.

Em25dejulho,aAssembléiaautorizaapermanênciadasseções.Nodia29,aos jacobinos, Robespierre exige a deposição do rei. No dia 30, a sessão doThéâtre-Françaisinstituiemsuasdependênciasosufrágiouniversal.Algunsdiasmais tarde, 47 seções parisienses de um total de 48 se pronunciarão peladeposiçãodeLuísXVI.Os“patriotas”hesitantesacabaramconvencidosdepois

da divulgação doManifestodeBrunswick.Essedocumentoagressivo, redigidoporumemigrado,omarquêsdeLimon,parasatisfazerosemigrados,consideravaqualquer francêsapanhadocomarmasnamãoum“rebeldeao rei”eameaçavaParis, caso novos ultrajes fossem infligidos a Luís XVI, com uma “execuçãomilitar”euma“subversão total”.Tais fanfarronicesestúpidas tiveramporefeitoapressarodesmoronamentodarealeza.3.Arebelião –As seçõesmaismilitantes deramàAssembléia umprazo até ameia-noitede9deagostoparapronunciaradeposiçãodorei.AAssembléiafingeque não ouve.Na noite de 9 para 10, cria-se noHôtel deVille umaComunainsurrecional.O chefe da guarda nacional,Mandat, é assassinado e substituídoporSanterre.Osbatalhõesda rebelião–marselhesesemembrosde seçõesdosfaubourgs–marchamsobreasTuileries.Rœderer,procurador-geralesíndicododepartamentodeParis, ligadoaosgirondinos,convenceLuísXVIa se refugiarnoManège77,ondeestáinstaladaaAssembléia,oquedeveriarestituiràGirondeeàAssembléiaodomíniodasituação.Afugadoreinãoimpedeafuzilarianemacanhonada, nemapilhagemdopaláciopelos insurgentes.Centenasdeguardasque defendiam as Tuileries são massacrados em condições atrozes. Diante dotriunfodarebelião,ocorpolegislativo,reduzidoa40%deseuefetivo–omedoprovocouafugadamaioriamoderada–,decretaaeleiçãopróxima,comsufrágiouniversal, de uma nova constituinte: aConvenção Nacional. A Assembléiasuspendeorei,queseráinternadoenquantoesperaquesuasortesejadecidida;aAssembléia designa umConselho executivo provisório de coloração girondina,no qual se destacam sobretudo Roland e Clavière – dois antigos membros daequipe Dumouriez – e um ministro da Justiça que conta com a simpatia dosrebeldes:Georges-JacquesDanton,segundosubstitutodoprocuradordadefuntaComunalegaleumdosagentesdanovaComunainsurrecional.

Adatade10deagostode1792marcaumanovaaceleraçãodomovimentorevolucionário, decididamente pouco respeitoso de uma legalidade que, noentanto, era originária daRevolução.Bastará, em várias etapas, “relegalizar” aviolênciaeentãopassaraoregimedoTerrorestatal.Osjacobinosacompanharãoessa tendência com maestria, colocando a violência a serviço do aparelho doEstadodepoisdetê-lautilizadocontraele.

71. Termo pejorativo que, na Convenção, designava a Planície, entre osgirondinoseosmontanheses.

72.CharlesJamesFox(1749-1806):umdosmaisdestacadosmembrosdopartidoWhigeadversáriodePitt.PolíticobritânicopartidáriodaaliançadeseupaíscomaFrançaeosEstadosUnidos.(N.T.)73.PolíticobritânicodofinaldoséculoXVIIIecomeçodoXIX, foiprimeiro-ministroentre1783e1801.(N.T.)74. Noite em que foram propostos pelos nobres e pelo clero a abolição dosprivilégios fiscais das servidões pessoais e o resgate dos direitos feudais reais.(N.T.)75. Príncipe ou bispo que participava da eleição do imperador naAlemanhaantiga.(N.T.)76. Os homens do povo usavam na época calça comprida, ao passo que oscalções[culottes]eramprópriosdaindumentáriadosaristocratas.(N.T.)77.Academia real de equitação construída durante aminoridade de Luís XV,próximaaopaláciodasTuileries,emParis,sededeimportanteseventosligadosàRevoluçãoFrancesa.(N.T.)

CAPÍTULO VI

A REPÚBLICA

NãosetratamaisdeestabilizaraRevolução.Oschefesfeuillantstornaram-sesuspeitos: os próprios girondinos foram superados pela situação. A queda darealeza, acontecimento importantíssimo, em nada conjurou os perigos queameaçamaFrançarevolucionária:eaRevolução,umavezmais,tomaimpulso.

I–Primeiro“Terror”,primeiravitória1 .Os órgãos do poder revolucionário – Entre 10 de agosto e a reunião daConvençãoNacional(20-21desetembrode1792)–umparênteseduranteoqualanação,quevenceua“tirania”nofinaldesua“resistênciaàopressão”,éinstadaa reatar com sua plena soberania, o que lhe permite escapar de uma pesadarevisãoconstitucional–, trêsórgãosdisputamopoder:oConselhoexecutivo,aAssembléialegislativaeaComunainsurrecionaldeParis.

a)OConselho executivo –OConselho executivoprovisório, que reúneosseisnovosministros,édominadopelatonitruantepersonalidadedeDanton.

NascidonaChampagneem1759,venaleviolento,oportunistaebonvivant,Georges-JacquesDantontornara-seilustrecomoumdoslíderesdobairrodoThéâtre-Français. Membro do diretório do departamento de Paris, depoissegundo substituto do procurador da Comuna, faz sucesso nos meiospopularesporsuaeloqüênciapoderosaevulgar.

Factótum doConselho executivo,Danton estimula as energias vacilantes eprofere diante da Assembléia legislativa desamparada discursos de salvaçãopública (“Tudo pertence à pátria quando a pátria está em perigo”; “Audácia,sempreaudácia,maisaudácia,eaFrançaestarásalva”);comoministrodaJustiça,imiscui-se nas questõesmilitares e diplomáticas; impõe aos colegas o envio decomissários aos departamentos, escolhidos por ele nomeio ultra-revolucionáriodoscordeliersedanovaComuna;essesmissionáriosdaRevoluçãojacobinavãoexportaro10deagostoparaaprovíncia,porbemoupormal.

b) A Assembléia – “Quando a constituição estava quebrada, o corpolegislativonãotinhamaispoder,maselefoiobrigadoamanterseuspoderesatéanaçãodizer:euaprovoa revoluçãode10deagosto” (Cambon).AAssembléiamoribunda,amputadapelaabstençãooupelafugadosmoderadosepelapartida

de numerosos deputados em busca da reeleição provincial, é dominadaintelectualmente pela Gironde, mas fisicamente submetida à pressão das ruas.Seus atos políticos mais importantes revelam a aceleração do processorevolucionário.Entreoutrasmedidas,nodia11deagosto,aAssembléiaconfiaapolícia política às municipalidades (donde a multiplicação de “comitês devigilância”); no dia 14, decreta a venda dos bens dos emigrados e dos benscomunais;nodia18,suprimeasúltimasordensreligiosaseascongregaçõesdeensino e hospitalares; no dia 25, abole sem indenização os foros feudais semtítulo,oqueequivaleaumaaboliçãogeraldefato;em20desetembro,durantesuaúltimareunião,autorizaodivórcioeretiradocleroaatestaçãodeestadocivilparaconfiá-laàsmunicipalidades.

c)AComunadePariseosmassacresdesetembro–Ainstituiçãonascidade10 de agosto, povoada de cidadãos pouco conhecidos (lojistas, artesãos,militantes das sociedades populares),mas fortalecida pelo apoio dosfaubourgs,pela aprovação prestigiosa de Robespierre e pelo assentimento de Danton,consegue,nãoobstante as tentativasdaAssembléiadedissolvê-la, confiscardeParisarealidadecotidianadopoder.ÉaComunaquetransformaainternaçãodeLuísXVIemprisão.ÉelaqueimpõeàAssembléia,em17deoutubro,acriaçãode um tribunal criminal extraordinário (primeiro esboço do Tribunalrevolucionáriode1793) e depois, no final domês, as visitas domiciliares.Nãohesitaemenviar,comoaAssembléiaouoConselhoexecutivo,comissáriosparaosdepartamentos.Organiza,de formafebrilecomgrande tumulto,adefesadePariscontraoinvasoraustro-húngaro.

É também a Comuna de Paris que, indo muito além dos decretos daAssembléia,dáoexemplodagrandeperseguiçãoanti-religiosaaodeterminaraprisão maciça de padres refratários no futuro próximo. É ela, finalmente, quecarrega a parte mais pesada da responsabilidade pelos sinistros massacres desetembro,paródiade“justiçapopular”organizadanasportasdasprisões,queaComunaeseuComitêdevigilância–nomínimo–encorajaram.

Contam-semaisde1.300vítimasemParisentre2e6desetembro,dasquais223padres,talvez150guardasoficiaiseoutros“aristocratas”,epertodemilprisioneirosdedireitocomum(supostamenteseuscúmplices).Emboraváriasregiões tenham conhecido, em uma escala bem menor, seus própriosmassacres, o horror das matanças parisienses estará para muitos ligado aopróximodivórcioentreumapartedaprovínciaeParis, cujo reflexopolíticoseráaoposiçãodosgirondinosedosmontanheses.

Ao criar o irremediável e reduzir ao silêncio moderados e contra-

revolucionários,esse“primeiroTerror”–oadjetivoédiscutível,porémclássico–consolidaosresultadospolíticosobtidosem10deagosto.2 .Valmy – Além das “lentidões” do Tribunal de 17 de agosto, o pretextoinvocado para justificar os massacres de setembro é geralmente – de formasemelhante ao mítico “complô das prisões”78 – a invasão estrangeira: osvoluntários, antes de marchar para as fronteiras, não deviam deixar para trásnenhum “traidor”...A obsessão pelo cerco que afeta os “patriotas” explica-sefacilmente.Elesnãopodemmaisconfiarnosgenerais:em19deagosto,depoisde tentar inutilmente fazer seu exército marchar sobre a capital, La Fayetteentregou-se aos austríacos (será prisioneiro deles por mais de cinco anos).Longwycaiem23deagosto,Verdunem2desetembro.AestradadeParisestáaberta.

UmamanobraousadadeDumouriezpermitepararosprussianosemValmy,naArgonne (20 de setembro de 1792).Ummêsmais tarde – apósmisteriosasnegociações–,osprussianos,desanimadoseroídospeladisenteria,atravessamafronteira. A canhonada de Valmy torna-se retrospectivamente uma batalhadecisivae–emboraogrossodoexércitofrancêsaindafossedoAntigoRegime–a primeira vitóriamilitar da Revolução.A “República”, proclamada em 22 desetembro, pode passar ao contra-ataque. No outono, a ofensiva é geral. OsexércitosrepublicanosvãoocuparSavóia,Nice,osbispadosalemãeseamargemesquerdadoReno,aBélgica(depoisdavitóriadeDumouriezsobreosaustríacosemJemappesem6denovembro).

II–GirondeeMontanhaEleitanofinaldeagostoenocomeçodesetembroporsufrágiouniversalem

doisgraus,emumclimapassionalepormaioria insuficiente,porcontadeumaabstenção maciça dos eleitores moderados, a Convenção nacional, comoanteriormenteaAssembléialegislativa,éoreflexodacompletarecomposiçãodapaisagem política.Os feuillants e outros revolucionários, que se tornarammaismoderados,desapareceramporsuavez:todososconvencionaissãoousedizemrepublicanos.Essaunanimidadedefachada,quepermiteabolirarealeza(21desetembro), datar os atos públicos de “ano I da República” (22 de setembro) eproclamaraindivisibilidadedaditaRepública(25desetembro),nãotardaráasedesconjuntar.Muitosdeputados,burguesesindividualistas,sesurpreenderãocomseu próprio descaminho político e verão se esvair os sonhos de uma belaRepúblicafraternal.

AantigaesquerdadaAssembléiacinde-seemdoisblocoshostis.Girondinos

contramontanheses, separadosporuma suspeitamútua equerelaspessoais, atépordiferençasdetemperamentosenuancesdesensibilidaderelacionadasaumacertadiferençadegerações,tantoquanto–oumais?–deoposiçãodeprogramas.Entre essas duas facções, os homens da Planície79, que hesitammeio a meioentre o imobilismo e a participação, desempenharão o papel de árbitro,sustentandosucessivamenteaGirondeeaMontanha.1 .Osgirondinos – Os girondinos têm assento agora “à direita” (dessa vez, aexpressãotemsentidoapenastopográfico).Seusefetivos,emtornodeumnúcleoradical de umas vinte personalidades, não ultrapassarão 160 deputados de umtotal de 730 (duzentos talvez, contando seus satélites): saídos da Assembléia(Brissot, Vergniaud, Guadet, Gensonné, Isnard, Louvet, aos quais se podemacrescentar o simpatizante Condorcet), antigos constituintes (Buzot, Petion,Lanjuinais, o pastor Rabaut Saint-Etienne) ou novos eleitos (Barbaroux, oministroRoland).

Compostadehomensdalei,bonsjuristas,jornalistasounegociantesdoSul,doOesteedoSudeste,origináriosemgeraldeumaburguesiadeprovínciarazoavelmente abastada, freqüentemente cultos e céticos, generosos e porvezes frívolos, falta à nebulosa girondina homogeneidade e coerênciapolíticas.Entretanto,quatro traçospredominam:umlegalismo tãoformalistaquanto tardio, que conduzirá os girondinos ao malogro; uma hostilidadevisceralàComuna–dondesuadenúnciapolêmica, imediata,dosmassacresde setembro – e ao papel político excessivo de Paris, cidade onde suainfluênciasetornounegligenciável(dondeaacusação,geralmenteexagerada,de “federalismo”); uma clara tendência liberal em economia, em parteexplicável pelas ligações portuárias de alguns; e, por último, uma fortepropensão a uma forma de incredulidade religiosa, bem à maneira doIluminismofrancês.

2 .Osmontanheses –Diante daGironde ergue-se aMontanha, cujos efetivos,limitadosno começo a algumasdezenasdedeputados agrupados em tornodosrepresentantes de Paris (Robespierre, Danton, o ator Collot d’Herbois, oadvogadoBillaud-Varenne,osjornalistasCamilleDesmoulinseMarat,etc.),nãoparamdeaumentaratéalcançar270porvoltade1793.

Emboraosmontanhesessejamtambémquasetodosburgueses,suacoalizãoémaisheteróclitasocialmentedoqueaGironde,namedidaemquecontacomumnúmeromaior de desclassificados.AMontanha é composta de homensfreqüentementemais jovens, talvez às vezesmais religiosos (no sentido de

Jean-Jacques Rousseau), mesmo que haja também em suas fileiras ateusmilitantes. Por fim, aguardando as divisões futuras do ano II, ela époliticamentemaishomogênea.Paraalémdasmotivaçõesmuitodiversasdeseusmembros–ideologiapura(Robespierre,Saint-Just),assimcomorancorsocial ou realismo cínico –, a Montanha domina o clube dos jacobinos emarcha em fileiras cerradas no sentido imposto aos acontecimentos pelalógicadeumaRevoluçãocadavezmaisradical;admitemaisfacilmente,emgeral,umcertodirigismoeconômico.Diferentementede seusadversários, amaioriadosmontanhesesédotadadeumafirmevontadepolíticaedeumrealsentidodedecisão,eelesterminarãoarrastandonoseurastroosdeputadosdamaioria–aPlanície–,muitosdosquais,comoBarère,certosdequeavitóriavirá, se juntarãoa eles em1793;osoutrosmembrosdoMarais farãocomoSieyès,contentando-seemviver,ouseja,emsobreviver.

3 .Aofensivagirondina –Osgirondinospassam rapidamente à ofensiva.Seualvo predileto é o novo triunvirato (Robespierre, Danton, Marat), acusado deaspiraràditadura.Osjacobinos–umporum,osgirondinosvãosendoexcluídosdo clube – são qualificados de “desorganizadores”, acusados por Brissot dequerer“tudonivelar,aspropriedades,oconfortomaterial,opreçodosalimentos”.Os montanheses, com Robespierre à frente, replicam denunciando a vontadegirondinadeconfiscaropoder“no interessedosricos”.OsesforçosdeDantonem favor da conciliação são inoperantes; ele mesmo é atacado a respeito daescandalosa gestão dos fundos secretos na ocasião de sua passagem peloministério.

III–Amortedorei1 .Oprocesso – Com os moderados reduzidos ao silêncio, a maior parte daspetiçõesreivindicaoprocessodeacusaçãodeLuísXVI.Girondinoselegalistashesitam:Luísnãoé inviolávelemvirtudedaconstituição?AConvenção temodireitoeopoderdejulgaroreideposto?Aquestãonãoestáaí;oatoaconsumarnãoéjudiciário,maspolítico:oqueconta–osmontanhesescoerentesviram-nobem – é ferir demorte, demaneira simultaneamente concreta e simbólica, umhomem (Luís XVI), uma estirpe real prestigiosa (os Capetos) e uma idéia (arealeza).

“Os mesmos homens que vão julgar Luís têm uma república a fundar”,declara Saint-Just em 13 de novembro de 1792. “Quanto amim, não vejomeio-termo:estehomemdevereinaroumorrer.”Robespierrelhefazecoem

3dedezembro:“Nãohánocasoprocessoafazer.Luísnãoéumacusado,ossenhoresnãosãojuízes;ossenhoresnãopodemsersenãohomensdeEstadoerepresentantesdanação.Nãotêmumasentençaaemitirafavoroucontraum homem, mas uma medida de salvação pública a adotar, um ato deprovidêncianacionalaexercer.”

A descoberta nasTuileries, no dia 20 de novembro, do “armário de ferro”contendodiversosdocumentosquereforçamatesedeumconluiodoreicomMirabeau, com a emigração, com as potências estrangeiras, provocou adecisão. O processo abre-se na Convenção em 11 de dezembro de 1792.Desenrola-sesobapressãoconstantedos“patriotas”quelotamastribunas.Oreidefende-sebastantemal,masnãolheforamdadososmeiosdedefesa.Àpergunta“LuisCapetoéculpadodeconspiraçãocontraaliberdadepúblicaede atentados contra a segurança nacional?”, respondeu-se “sim” porunanimidade menos algumas abstenções. O apelo à nação da sentençaproferida foi rejeitadopor426votoscontra278.ComoVergniaudealgunsgirondinos memoráveis se pronunciaram pela pena de morte, esta foiaprovadapor387votoscontra334(17dejaneiro);FelipeEgalité,ex-duquedeOrléanseprimodeLuísXVI,estáentreosregicidas.Apesardatentativadeúltimahoradeuns tantosgirondinos,osursisfoirejeitadopor380votoscontra310(18dejaneiro).

Na manhã do dia 21 de janeiro, o rei morre no cadafalso da Place de laRévolution(futuraPlacedelaConcorde).Todasaspontescomopassadoforamcortadas.Coroamentológicode10deagostoede21desetembro,atofundadorda República, a execução de Luís XVI é também um desafio à Europamonárquica.Arespostanãotarda.2.Acoalizão –Coma entradada Inglaterra naguerra, forma-seuma coalizãojuntando–alémdaÁustriaedaPrússia–aEspanha,aHolandaeosprincipaisEstados alemães e italianos. A era das vitórias fáceis parece consumada; asderrotas acumulam-se;Dumouriez é vencido emNeerwinden (18 demarço de1793) e junta-se às linhas austríacas comLuísFelipe, filho deFelipeEgalité efuturoreidos francesesem1830;amargemesquerdadoRenoestáperdida;osespanhóis ameaçam os Pireneus, enquanto a insurreição vendeana (março de1793)criaumnovofrontnointerior.

IV–AquedadaGironde1.Ocerco–ParaevitarosperigosqueameaçamaRepública,aConvençãonão

páradedecretarmedidasde“salvaçãopública”:convocaçãode300milhomens(24defevereirode1793),envioderepresentantesemmissãoaosdepartamentos,criaçãodeumnovotribunalcriminalextraordinário(10demarço)quelogoseráchamado de “Tribunal revolucionário”, institucionalização dos comitês devigilância(21demarço),transformaçãodoComitêdedefesageraldaAssembléiaemComitêdesalvaçãopúblicadotadodeatribuiçõesampliadas(6deabril),etc.Muitas dessasmedidas, “pré-terroristas”, são combatidas pelos girondinos que,sentindo-se ameaçados, retomam a ofensiva contra os chefes da Montanha –desajeitadamente:MaratéabsolvidopeloTribunalrevolucionário(24deabril)–e contra aComuna.Umavezmais, as tentativas de conciliação republicanadeDanton,figuradeproadoprimeiroComitêdesalvaçãopública,sãoinúteis.

O combatedas duas facções chega ao final. Para osmontanheses, diversosindíciosprovamqueosgirondinostraíramaRevolução:sua“indulgência”noprocesso de Luís XVI, seus elos reais ou supostos com o “traidor”Dumouriez, seu “federalismo” destruidor da unidade da República, suaintimidadecomos“ricos”; acusaçõesemparteexcessivas,masaverdadeéqueaGirondeengajara-se,desdejaneiro,naviadamoderação.

A maioria das seções de Paris exige a expulsão da Convenção de 22deputadosgirondinos.EssesdeputadosobtêmacriaçãodeumaComissãodosDoze, encarregada de investigar os abusos de poder da Comuna: a prisãoefêmeradojornalistaHébert,substitutodoprocurador,seráoúltimosucessodaGironde.AumadelegaçãoameaçadoradaComunaqueveio reclamaralibertaçãodeHébert,ogirondinoIsnard,quepresideaConvenção,respondecomestas frases tão famosasquantodesastradas: “Sepor essas insurreiçõessempre renascentes a representação nacional se visse ameaçada, eu lhesdeclaroemnomedaFrançainteira,Parisseriaaniquilada...EmpoucotempoiríamosverificaràsmargensdoSenaseParisexistiu”(25demaio).

2.Amorte–Osgirondinosnãotêmmaismeiosparaenfrentarasameaças.Seusinimigosnãoterãonenhumadificuldadeemlhesaplicarogolpedemisericórdia.

Em sua luta de morte contra a Gironde, a Comuna beneficia-se de umasituaçãoeconômicamaisdoquetensa.Ospreçosnãoparamdesubirsoboefeitodadepreciaçãodoassignat,eossaláriosnãoacompanham.Durantea“jornadadosabão”(25defevereirode1793),asmerceariasparisiensesforampilhadaseosgênerosdeprimeiranecessidadetabeladospelosrevoltosos.Nasseções,JacquesRouxeos“raivosos”80exigemaosberrosumtetomáximo

depreçoseumconfiscoobrigatóriodosricos.AConvenção,quedecretouapenademortecontraospartidáriosda lei agrária (18demarço), autorizaocursoforçadodoassignat(11deabril),opreçomáximodosgrãosefarinhas(4 demaio) – na véspera de uma nova emissãomaciça deassignats (5 demaio)–,depoisumconfiscoforçadode1bilhãodosricos(20demaio).

Em concordância com Robespierre e os outros chefes da Montanha, aComuna organiza uma “jornada revolucionária” contra a Gironde. Asprecedentes,de8e10demarço,nãotiveramorganizaçãonemfinalidadepolíticaprecisa.Asde31demaioe2dejunho,assimcomoasde5e6deoutubrode1789 e a de 10 de agosto de 1792, cumprirão com perfeição a pressão físicaexercidasobreainstituição.

Amassademanobraestápronta:sãoossans-culottes.Tipopolíticoesocialnovo, surgido na virada dos anos 1791-1792, que se impõe agora como omodelouniformedomilitanterevolucionário(eterrorista),saídodas“classestrabalhadoras” (pequeno comércio, artesanato), na fronteira móvel dapequeníssimaburguesia.Trajeimortalizadoporumaimagem:carmanhola81,calçalistrada,bonévermelho,piquenopunhoesabredolado.Comousembigode,osans-culotteusacomtodosum“você”fraternalerepublicano.SuasmelhoresreferênciasjornalísticassãosucessivamenteMarat(AmiduPeuple)eHébert(PèreDuchesne).Seusentimentodominantetalvezsejaomedodefalhar. Praticamente destituído de senso de humor, associa a uma soberbaignorânciadasrealidadesumaimensacredulidadepolítica.

Asseçõesjátinhamcriadoemabrilumcomitêsecreto.Em26demaio,Marate Robespierre lançam aos jacobinos um apelo à insurreição. No dia 29, aComunaorganizaumcomitêinsurrecionalquepassaàaçãodoisdiasdepois.Umantigo funcionáriodas alfândegas,Hanriot, é colocadonocomandodaforça armada parisiense. Os habitantes das seções que pegaram em armasrecebemumsoldode40souspordia.

Fracasso aparente em 31 de maio: a Convenção, invadida, resiste; sóconcordacomasupressãodaComissãodosDoze.Masdessavez,diferentementedoverãode1792,asegundatentativaéimediata.Em2dejunho,Hanriotmandacercar aAssembléia commuitosmilhares de homens e exige, comos canhõesapontados,aprisãodoschefesdaGironde.Odecretoévotado,transformandoogolpe de força armada em golpe de Estado. Vinte e nove deputados e doisministrosfiguramnalista;algunssãodetidos,outrosconseguemfugir; todosou

quasetodosmorrerãomiseravelmente,amaiorpartesobreocadafalso.AGirondeacabou.APlanícievotarádoravante,pormaisdeumano,comos

vencedores.AGirondemorreuporcausade suas incoerências;por terqueridoaguerra

sem saber como conduzi-la; por ter combatidoLuísXVI de todas asmaneiraspara hesitar em seguida em tentar salvá-lo; por ter agravado a crise econômicasem aceitar – por liberalismo – os meios para remediá-la; por ter finalmente,porémtardedemais,queridofrearumadinâmicarevolucionáriadaqualelaforadurantemuitotempoaaceleradora.

78.O“complôdasprisões”designaumplanoelaboradoparaeliminaçãofísicadeprisioneiros.As prisões parisienses estavam excessivamente lotadas depois dasupressão dos tribunais revolucionários provinciais. Só numa delas, emdecorrênciadeumsupostomotim,teriamsidoeliminadasdeumavezsómaisde70pessoas.(N.T.)79.APlanície era o centro daAssembléia convencional, onde se sentavamosmoderados (girondinos), opostos à Montanha (também chamada de Marais).(N.T.)80.Osenragés:osultra-revolucionários(1793-1799).(N.T.)81.Espéciedecasacoestreito,comgolacaídasobreosombroseváriasfileirasdebotões,muitousadonaépocadaRevoluçãoFrancesa.(N.T.)

CAPÍTULO VII

O GOVERNO DO TERROR

A Convenção nacional fora eleita para redigir uma nova constituição. OprocessodeLuísXVIeosincontáveisdebatesquesesucederamretardaramostrabalhosdoComitêdeconstituição.Emjunhode1793,emparteparadesarmaros“federalistas”,osmontanhesesvãoprecipitarascoisas.

I–AconstituiçãodoanoI1 .O debate constitucional – No dia 19 de outubro de 1792, a Convençãoconvocou“todososamigosdaLiberdadeedaIgualdadeparalheapresentarem,em uma língua qualquer, os planos, as visões e os meios que acreditam serapropriados para dar uma boa constituição à França”. Centenas de projetos –trezentos,dizem–foramenviados,algunsinteressantes,outrostresloucados,umgrandenúmeromuitodogmático;otodotinhacomofundoanostalgiadacidadeantiga,aomenosdamaneiracomoeraimaginada,eaexaltaçãodavirtudecívica.A aspiração republicana e democrática é poderosa, embora ninguém cogite ademocracia direta. A hostilidade suspeitosa a respeito dos governos é geral.Percebe-seogrande ecodoRousseaudoContrato social.Emcompensação, oindividualismo“proprietarista”de1789émenoscontestadodoque se imagina;vemmatizadocomumapreocupaçãocrescente–emgeralmuitovaga–comasolidariedade, comumcuidadodeque sevejamatenuadasasdesigualdadesdefatomaisgritanteseatémesmo,aquieali,umtoquesocialista.

AprimeirasínteseéobradeCondorcet,pensadorbastantecaracterísticodasLuzes francesas, próximo do grupo girondino. No Comitê de constituição,designadoem11deoutubrode1792edominadopelosgirondinos, contoucomacolaboraçãodeseuamigoThomasPaine.Em15defevereirode1793,apresentou um extenso relatório – tão longo que o esgotado orador nãoconseguiuchegarao fime teveque ser substituído... – combinadocomumprojetolonguíssimode402artigos.Naobra,oconstitucionalismodominanteé exposto em sua lógica mais exigente: severamente antimonarquista,permanentemente hostil a qualquer disposição dos órgãos e funções quepossam lembrar as visões de Montesquieu e a qualquer entrave à revisãoconstitucional(apossibilidadederevisãodeveficarmuitoaberta,inclusiveà

iniciativa popular). Na base, o sufrágio universal sem restrições, inclusivecomo um direito, e a elegibilidade mais extensa. No topo, um Corpolegislativo,assembléiaúnicarenovadapelametadetodososanosporsufrágiouniversal direto em dois turnos. Cada câmara é onipotente,mas apenas namedidadaconformidadedeseusatoscomodesejopopular,poisopovopoderediscutirleisvotadasatravésdeumincômodoreferendolegislativo.Oórgãogovernamental, o Conselho executivo da República, está enfraquecido; elenãoteráchefe.Comrazão,Condorcettemequeesteúltimomantenha“algumsimulacrodasformasreais”.Vaisetratarapenasdeumconselhode“agentes”(e não de “representantes”), composto de sete ministros e um secretário“essencialmente subordinados aos depositários do poder legislativo” elimitados à estrita execução das leis, sem sequer ter certeza de conservar omonopólio dessa função e sem tera fortiori qualquer participação noexercíciodafunçãolegislativa.

Condorcet não foi até o final de sua lógica.Ele admite que o “executivo”,renovável anualmente pela metade, seja eleito pelo povo e não pelaAssembléia. O Corpo legislativo não poderá derrubar ministros, somentecolocá-loscomoacusados–notadamentepormotivospenais–diantedeumjúrinacionaleleitopelopovo.Osministros,observaCondorcet,devemseros“agentes” e não as “criaturas” do Corpo legislativo; na verdade, umadesignação como esta está sujeita a fazer deles – é o que a Montanhadenuncia – “representantes” superiores em relação aos deputados. Últimoaspecto:osgirondinos,porevidentesrazõespolíticaseemconformidadecoma imagem que a posteridade conservou deles, tratam de reforçar osdepartamentos.A impressão que se tem é de que a escolha do modo dedesignaçãodo“executivo” (apesardesua fraqueza jurídica)eavalorizaçãodoquadrodepartamentalresponderamàmesmasegundaintenção:favoreceramanutençãodaGirondenopoder.

A discussão do projeto enredou-se em debates confusos, retardados pelaobstrução montanhesa – Saint-Just denuncia a “realeza dos ministros” – ebeirandoporvezesumutopismoexagerado(intervençãodoconvencionaldeorigemalemãAnacharsisCloots).De imediato,aurgênciaeadesconfiançaideológica em relação ao “executivo” conduzem, para que ele possa servigiado,àinstalaçãodoComitêdesalvaçãopública(6deabril).Essecolégiodesignado e renovadomensalmentevai se tornar a peça-mestra dogovernorevolucionário(veradiante);porém,antes,jánodiaseguinteàeliminaçãodosgirondinos(2dejunho),eleprecisaresolveraquestãoconstitucionalpendente

há quase um ano. O desejo de uma ampla opinião pública adquire peso,havendo,pois,necessidadedeseresponderàcontestaçãoquecrescenopaíscontraatiraniamontanhesa.

2.Aconstituiçãomontanhesa–HéraultdeSéchelles,que jáatuounoComitêde constituição precedente, associa-se ao Comitê de salvação pública e éencarregado de redigir um projeto semmais tardar. Sinal dos tempos, ele quertomar conhecimento... das leis deMinos.82Ele é diligente, e seu trabalho ficaprontoem9dejunho.OComitêdeconstituiçãodáimediatamenteoaval.Nodiaseguinte, Hérault lê seu projeto na Convenção e justifica um prontoprocedimento: “De todas as partes da República, uma voz imperiosa quer aconstituição. Nunca antes uma necessidade maior do que esta chegou aatormentarumpovo.”Poroutro lado, “a cartadeumaRepúblicanãopode serlonga”(Condorcetéoalvo)enãotêmcabimentoartifíciostécnicos,umavezquesequer“chegaraoresultadomaisdemocrático”.Oresultadonãoéaverdadeirademocracia; tendeaelapelofatodeodeputadodecidirapenasprovisoriamentesobreasleis,queemseguidaserãosubmetidasàsançãodopovo;afasta-sedelapelofatodeodeputadocontinuarsendoparcialmenteum“representante”paraosdecretos,excluídosdoreferendo.ComodisseHérault:“oGovernofrancêssóérepresentativo daquilo que o povo não pode fazer por si mesmo”. Quanto aoConselho executivo, ele não terá “nenhum caráter de representação”. AMontanhaaplaude.“Asimplesleituradoprojetodeconstituiçãoirárevigorarosamigosdapátriaeassustarseusinimigos.AEuropainteiraseráforçadaaadmiraressebelomonumentoerguidoàrazãohumanaeàsoberaniadeumgrandepovo”(Robespierre).Aquestãoéresolvidasemdelongas.Nodia23dejunho,Héraultlêumaredaçãoretocadadadeclaraçãodosdireitos.Philippeaux83exclama:“Aosufrágio,presidente,éumaobra-primaquenãoprecisapassarpordiscussão”.Nodiaseguinte,oconjuntodotextofoiadotadosemterensejadodebatessérios.

A constituição do ano I comporta vários pontos comuns com o projeto deCondorcet. A declaração dos direitos reproduz textualmente um grandenúmerodeartigosdoprojetogirondino.Arespeitodealgunspontos,elasesitua aquém do projeto de Robespierre, cuja tonalidade social era maismarcante e que, sem igualitarismo excessivo, relativizava o direito depropriedade. Ela reintroduz o “Ser Supremo” e o Direito natural –curiosamente abandonado pelos girondinos desejosos de acabar com asreivindicações anarquizantes – e afirma de modo mais sonoro o direito emesmoodeverdeinsurreiçãoqueapavoraraosgirondinosantesdeservirde

pretextoparasuaqueda.Contudo,seriaabusivofalarderupturaemrelaçãoàdeclaração de 1789, da qual algumas fórmulas foram retomadas.Além daduplicação do número de artigos, há uma clara inflexão que se manifestanotadamentenaafirmaçãodocaráterdeDireitonaturaldaigualdade,quesetornaoprimeirodosdireitos.Deresto,“ossocorrospúblicossãoumadívidasagrada”(artigo21)e“asociedadedeve[...]colocarainstruçãoaoalcancedetodososcidadãos”(artigo22).

A constituição conserva, no essencial, a lógica democrática do projeto deCondorcet: sufrágiouniversaldireto, revisão fácilda constituição, referendoab-rogatóriode iniciativapopularparaas leis(masnãoparaosdecretos).Aprocedura referendária é, contudo, diferente: o Corpo legislativo, ao votaruma lei, não faz senão “propô-la”.Ela só entrará emvigor se, passado umperíodo de quarenta dias, nametade dos departamentosmais um, a décimapartedasassembléiasprimáriasnãotiverpedidoaconvocaçãodaassembléiadoeleitoradocomopropósitodedecretaralei(operíododetempoimpostoétãobrevequeessaproceduraprovavelmentepermaneceletramorta).

OtextodoanoIrompecomoprojetoanteriorarespeitodeumcertonúmerodepontos:quadroeleitoraldiferente;mandatolegislativodeumano;eleiçãopor dois anos para o Corpo legislativo, conforme uma lista apresentada àrazãodeumcandidatopordepartamento,deumConselhoexecutivomuitomais concorrido (24 membros) e ainda enfraquecido (ele também devedesignar, para dirigir as administrações, “agentes-chefes da administraçãogeral”). No princípio do texto, encontra-se a idéia cara a Robespierre esobretudoaSaint-Just,segundoaqualumpovonãotemoutroinimigosenãoseu governo (pelo menos, se este último não for jacobino...): “A lei deveproteger a liberdade pública e individual contra a opressão dos quegovernam”(artigo9dadeclaraçãodosdireitos).

Adiferençamaisprofundaentreasconstituiçõesgirondinaemontanhesaédeumaoutranatureza.Mesmodemaneira inábil epoucocoerente,Condorcetqueria elaborar uma constituição para ser posta em operação, por isso aexcessivaminúciadeseuprojeto.Inversamente,osmontanhesesconscientesparecemtertidoocuidado,maisconjectural,dedarumaformaconstitucionalaumbrevemanifestocujasfórmulascinzeladasemarcantesfavorecessemsuapropaganda. Para eles, a questão certamente não era aplicá-la: poucoimportavam,nessascondições,aslacunastécnicasqueumaaplicaçãopráticanãoteriadeixadoderevelar.

3.Umplebiscitoparanada–Aconstituiçãode24dejunhoésubmetidanomêsseguinte a um referendo em condições duvidosas (pressões, votos presumidosunânimes por aclamações).Quatro ou cincomilhões de cidadãos se abstêm.Otexto é aprovado por 1,8 milhão “sim” contra menos de 12mil “não”, mas avontadeformaldoeleitoradonãotraráconseqüências.

Nofinaldafestade10deagostode1793,aconstituiçãoétrancadaemumaarca de madeira de cedro e depositada solenemente na sala de sessões daConvenção. Ela jamais será aplicada. O governo permanecerá provisório.“NascircunstânciasemqueseencontraaRepública”,declararáSaint-Justem10deoutubro,“aconstituiçãonãopodeserestabelecida;elaseriaimoladaporsimesma,tornar-se-iaagarantiadosatentadoscontraaliberdadeporqueaelafaltariaaviolêncianecessáriaparareprimi-los.”

Contudo,paraaesquerdafrancesa,aconstituiçãodoanoIcontinuarásendoogrande modelo constitucional até ela aceitar – às custas de uma estranhapalinódia – as instituições da 5ª República.84 Da mesmamaneira, ela terámarcado, ao menos formalmente, o constitucionalismo dos Estadossocialistas.

II–Noventaetrês:arevoluçãojacobinaemperigoA situação do verão de 1793 é dramática: crise econômica, perturbações

sociaisepolíticas,guerracivil,derrotasrepetidasnasfronteiras.

U massignat de cem libras não vale mais do que 30 ou 40. Paris estárosnando. Os preços dos gêneros de primeira necessidade dispararam.Atémesmo a Comuna perece explodir. Os raivosos exigem cada vezmais umtabelamentogeraleumaleicontraosespeculadores.Em25dejunho,JacquesRoux apresenta àConvenção uma petição ameaçadora que traduz o cunhosocial agudoque aRevolução passou a apresentar: “ALiberdade é apenasumvãosimulacroquandoumaclassedehomenspodemataraoutradefomeimpunemente.A igualdadeé apenasumvão simulacroquandoo rico, pelomonopólio, exerce o direito de vida e morte sobre seu semelhante. ARepública é apenas um vão simulacro quando a contra-revolução se faz acada dia através do preço dos gêneros, que três quartos dos cidadãos nãoconseguempagarsemderramarlágrimas.”

Aagitaçãofomentadapelosultra-revolucionáriosparisiensesvaipesarsobreasdecisõesdaConvençãoemmatérianãosomentesocial,comotambémpolítica:

Danton não será reeleito para o Comitê de salvação pública (10 de julho) eRobespierrenãotardaráaentrar lá(27dejulho).Porém,háoutrasrazões,maisdeterminantes,paratalmudançadequadrodirigente.1.AVendéia–Doladodacontra-revolução,aMontanhatemrazãoparatemeraação de redes realistas como a do barão de Batz, que vai manipular algunsmontanheses inconscientes ou venais com o fito de deteriorar a Revoluçãoempurrando-aparaospioresexcessos;contudo,éprecisoreconhecerapartedeobsessãodocomplôenãoexagerarainfluênciadasredes.Emcompensação,osdescontentamentos camponeses se traduzem cada vez mais por uma atitudecontra-revolucionáriadaqualtiramproveitooslevantesrealistasdeLozère(maio)ou de Ariège (final de agosto); e a Vendéia insurgida pode fazer vacilar aRepública.

OOesteconheceuinsurreiçõesrealistasdesdeofinaldeagostode1792,masa revolta vendeana é de uma amplitude totalmente diferente. Os pequenoscamponesesdeAnjouedoPoitouexasperavam-secomosataquesdesferidosàreligião.Hostisàcentralização,àburocracia,àscidadeseàsuaburguesia(grande beneficiária da venda dos bens nacionais), burguesia que seconfundiaemseusespíritoscomaRevoluçãoesuasviolências,abaladospelamorte do rei, os vendeanos insurgiram-se contra a convocação de 300milhomens. Iniciado em Cholet no começo demarço de 1793, omovimento,lideradodessavezpelosmiseráveisdaterra,seestenderápelosdepartamentosdo Maine-et-Loire, de Deux-Sèvres, do Loire-Inferior e da Vendéia.Dirigidos inicialmente por plebeus modestos (Stofflet, Cathelineau), oscamponeses,poucodepois,escolhemnobresparacomandá-los(d’Elbée,LaRochejaquelein,Charette).Aguerrilhatorna-seguerra.Oexércitovendeanodesarticula as tropas medíocres que foram enfrentá-lo, toma Saumur (9 dejunho), ameaça Angers. O Comitê Danton reagiu com uma mistura defirmezaeindulgênciaqueserevelouinfrutífera.

2.Arevolta“federalista”–Semprepartidáriodeumacertaconciliação,Dantondemorouigualmenteaesmagarasinsurreiçõesgirondinas.AniquiladaemParis,aGironde se beneficia dahostilidadedaprovíncia,maismoderada, em relação àcapital,edosparticularismosquesobreviveramàobraunificadoradaconstituinte.A derrota dos girondinos em 2 de junho provocou em cerca de sessentadepartamentos, na Bretanha, naNormandia, no Sudoeste, no vale do Ródano,movimentos mais ou menos espontâneos contra a ditadura parisiense. Asadministrações departamentais fizeram secessão. Em Caen, em Bordeaux, emMarselha, os jacobinos são perseguidos. No Sul, a insurreição se beneficia da

hostilidade dos pequenos proprietários contra o Máximo.85 Em Lyon, omontanhêsChalierfoiexecutado(17dejulho),eomovimentosetingedecontra-revolução popular. Quatro dias antes, Marat foi assassinado em Paris porCharlotteCorday86,queveiodeCaen.

Distinta da insurreição “católica e real” da Vendéia (e de uma parte daBretanha),a revoltagirondinanãoéessencialmentecontra-revolucionária;apropaganda jacobina insiste, pela técnica do amálgama, em demonstrar ocontrário;tarefafacilitadapelasaliançaslocaisconcluídaspelos“federalistas”comelementoscontra-revolucionários.

3.Asituaçãoexterior–Nasfronteirasealémdelas,aRevoluçãoexperimentaderrotaemcimadederrota.Os inglesesocupamToulon,sitiamDunkerque.Osaustríacos tomaramValenciennese investiramcontraMaubeuge.Osprussianosestão na Alsácia e os espanhóis atravessam os Pirineus, enquanto Paoli seaproveitada situaçãopara relançarnaCórsegaomovimentode independência.No além-mar, as colônias foram perdidas o mais das vezes em proveito daInglaterra, dona dos mares. Nas Antilhas, as hesitações sobre a abolição daescravidão–aqualserádecretadaem4defevereirode1794–foramfatais.

III–NoventaeTrês:oreerguimentoA exclusão de Danton e a entrada de Robespierre no Comitê de salvação

pública–comumprogramade“energianacional”,derepressãoexacerbadaedehostilidadeaosricos–marcamumanovaradicalizaçãodaRevolução.O“GrandeComitê”,apoiadonaaliançado“povo”(sans-culotte)edosjacobinos,vaioperarumreerguimentoqueestaráconsumadonofinalde1793.

Maximilien Robespierre, nascido em 1758, tem 35 anos em 1793. Esseadvogadozinho sério, aborrecido, desconfiado, um tanto frustrado, de almadoutrinária, deputado porArtois nosEstadosGerais,muitas vezes pareceraridículo aos colegas durante suas intervenções na constituinte. Porém,diferentemente da maior parte dos revolucionários, Robespierre quase nãomudou: suas mudanças de opinião inserem-se numa perfeita lógicaideológica.“Incorruptível”nomeiodosvenais,elesetornou,soboolhardahistória,osímboloencarnadodaRevoluçãojacobina.

1.Osraivososdesarmados?–Paraosnovosdirigentes jacobinos,aquestãoéconteraagitaçãosocialejogaremcimadosricosasconseqüênciasdoprincípio

dominante – a igualdade, que se tornou o primeiro dos direitos do homem nanovaDeclaração–,massemarruinarapropriedade,apesardadefiniçãorestritivaque Robespierre lhe dá, a de uma instituição social determinada pela lei. AConvençãovotaradiversasmedidassociais,comoaaboliçãosemindenizaçãodetodos os direitos feudais (17 de julho) que legalizava uma prática existente.Depois da revolta parisiense de 4 e 5 de setembro, e sobretudo para tornaraplicável aconvocaçãoemmassa (veradiante), aAssembléiavotouoMáximonacional dos grãos, seguido, no dia 29, doMáximo geral dos alimentos e dossalários.Osmontanhesesconverteram-se,definitivamentedessavez,aodirigismoeconômico,mas aConvenção e osComitês nãoparecemquerer irmais longe.Jacques Roux é preso. Encerram-se por um longo tempo as jornadasrevolucionárias.2 .Adoutrina jacobina do poder – “Osmovimentos populares só são justosquando a tirania os torna necessários” (Journal de la Montagne). Essa fraseesclarece perfeitamente a reflexão jacobina sobre a dialética da soberania e darepresentaçãopolítica.

Àlógicadeumasoberaniadopovoquevemdebaixoeque–viamandatoimperativo – desemboca na dispersão, opõem-se: 1) as necessidades dadecisão que, por outro lado, vêm do alto e 2) a aspiração à unidade. Se ojacobinismodeoposiçãoinvocouavontadedopovocontraseusadversáriosno poder, o jacobinismo no poder tende a sobrepujar o conflito entresoberaniaerepresentaçãolegitimandoarepresentaçãosoberanadopovopelogoverno revolucionário (ver adiante). Essa identificação de governados egovernantessupõelogicamenteanegaçãodequalquerpluralismo,aexaltaçãodo povo uno e virtuoso e a denúncia de qualquer desvio individualista,imputadoà imoralidadedos interessesprivados.Acontestação,boaquandoos jacobinos estavam na oposição, torna-se criminosa quando, grupo porexcelênciarepresentantedopovo,elesestãonopoder.OTerrordecorredesseraciocínio,assimcomoateoriadogovernorevolucionário.

3.OTerrornaordemdodia –Em5desetembro,aConvençãocolocou“naordem do dia” o Terror reclamado pelos jacobinos há meses e decretou, sobpressão da insurreição, a criação, retardada até então, de um “exércitorevolucionário” do interior encarregado de facilitar a aplicação do Máximo,perseguindo os especuladores (exército que se entregará à bandidagem e aatrocidades julgadas inúteis, o que provocará sua dissolução). Em 17 desetembro,aAssembléiavotaa“leidossuspeitos”.

Aleide17desetembroordenaaprisãoimediatadosindivíduosquenãotêmcomo justificar seusmeiosde subsistênciaea aquisiçãodedeverescívicos,dos que tiveram recusado um “certificado de civismo” (liberado pelasmunicipalidades e seus comitês), dos “funcionários públicos” (agentespúblicosemsentidoamplo)não-reintegradosapóssuspensão,dosemigrados,dosex-nobresparentesdeemigrados“quenãomanifestaramconstantementeseuapoioàRevolução”e,maisgeralmente,“dosque,sejaporsuascondutas,sejaporsuasrelações,sejaporseuspropósitosouseusescritos,mostraram-separtidários da tirania e do federalismoe inimigosdaLiberdade”.A lei seráinterpretada de maneira extensiva. Para Saint-Just, trata-se de atingir“qualquerumqueforpassivoemrelaçãoàRepúblicaenadafizerporela”.Muitas centenas de milhares de suspeitos serão assim encarcerados ousofrerão“designaçãoderesidência”87emummomentoououtrodoTerror.

A justiça revolucionária adquire novo ritmo. É o começo dos grandesprocessos diante do Tribunal revolucionário de Paris. Maria Antonieta éguilhotinadaem16deoutubro–novodesafioàÁustriaeàEuropa–,seguidados girondinos (31 de outubro), de Felipe Égalité, Bailly, Barnave etc. OTerror é tambémaplicadonaprovíncia pelos representantes emmissãoqueabonam,namesmaocasião,asvingançaslocaisdeindivíduosoudegruposantigamenteexcluídos.OsafogamentosdeCarrieremNantes,asmetralhadasdeFouchéeCollotd’HerboisemLyonfazemmilharesdevítimas.LebonemArras, Tallien em Bordeaux, Fréron e Barras na Provence, para não citarsenãoosmaiscélebres,caracterizam-setambémporsuacrueldade.

4.Oreerguimentomilitar–Em23deagostode1793,aConvençãodecretouorecrutamentoemmassa.

Todos os franceses de dezoito a quarenta anos estão automaticamenterequisitados:“Osjovensirãoparaocombate;oshomenscasadosforjarãoasarmas e transportarão as subsistências; as mulheres farão as tendas, osuniformes,eservirãonoshospitais;ascriançascortarãotirasdepanovelho;os velhos serão levados às praças públicas para exortar a coragem dosguerreiros,pregarairadosreiseaunidadedaRepública”.

Ocaráterheteróclitodastropasrepublicanasécorrigidopeloamálgama:cadasemibrigada(regimento)écompostadetrêsbatalhões,umdevelhossoldadosedoisdevoluntáriosedeconvocados.Oesforçodeguerra–fabricaçãodearmas, requisições variadas etc. – é sem precedente. Presume-se que o

Máximo facilite. A forte demografia da França lhe permite formar noveexércitos – 750 mil homens – e lançar essas massas na ofensivaexageradamentedefinidaporCarnot, “oorganizadordavitória”,noComitêde salvação pública. Os generais vencidos, hesitantes ou incapazes serãofreqüentemente destituídos, intimados a comparecer ao Tribunal eguilhotinados.

Osresultadosnãosefazemesperar.O“federalismo”desmorona:Marselhaéretomada em 25 de agosto, Lyon tomba em 9 de outubro, Toulon em 19 dedezembro.OsvendeanossãoderrotadosemCholet(17deoutubro),esmagadosnoMans(12-13dedezembro),aniquiladosemSavenay(23dedezembro).Nasfronteiras,asvitóriasdeHondschoote(8desetembro)edeWattignies(15-16deoutubro)desbloqueiamDunkerqueeMaubeuge,enquantoadeGeisberg(24dedezembro) libera aAlsácia. Sobre os Pireneus, os espanhóis são obrigados arecuar;nosAlpes,aSavóiaéreconquistadaemoutubro.

IV–OgovernorevolucionárioParaobteressesresultados,taparovazioconstitucionalecompletarsuaobra

de“regeneraçãocompleta”,aRepúblicajacobinainventouumafórmulanova:o“governorevolucionário”.Reclamadadesde10deagostopelaComunadeParis,a instalação desse governo foi efetuada demaneira progressiva, e as principaisetapasforam:1)acriaçãodoComitêdesalvaçãopública(6deabrilde1793);2)odecretode10deoutubroproclamandoogoverno“revolucionárioatéapaz”;3)a lei de 14 frimário88 ano II (4 de dezembro de 1793), que organizou essegovernoemseusmínimosdetalhes.1.Oesquemainstitucional–AConvençãoé“ocentroúnicodedinamismodogoverno” (lei de 14 frimário). Esse regime de assembléia reconhece a ditaduradosComitêsditosporvezes“degoverno”,eleitospelaConvençãoemseuseio:primeiro oComitê de salvação pública, cujo domínio de ação não pára deaumentar,eemseguidaoComitêdesegurançageral,encarregadode“velarpelasegurançadoEstado”,oquefazdeleograndeartesãodoTerrorsobsuasduasformas complementares – polícia política e justiça revolucionária.A renovaçãomensaldessesdoisórgãostorna-seumasimplesformalidadenooutonode1793.Por serem emanações da Assembléia, os Comitês a dominam. O Comitê desalvaçãopúblicaencontra-se,pois,colocadonovérticedoEstado.

O“GrandeComitêde salvaçãopública” é compostodedozemontanheses:Robespierre,Saint-JusteCouthon,queformamumtriodeideólogos,Barère,

que se encarrega da diplomacia, Carnot (exércitos), Prieur de la Côte-d’Or(armamentos), Robert Lindet (abastecimento), Jeanbon Saint-André(marinha), Prieur de la Marne, aos quais se vêm juntar em setembro osextremistas Billaud-Varenne e Collot d’Herbois (o afastamento e depois acondenaçãodeHéraultdeSéchellesreduzirãooefetivoparaonze).Apesardadeclaradadesconfiançaem relaçãoà administração,osmembrosdoComitêtêmderepartirentresiossetoresdeação.Osministroslhessãodiretamentesubordinados (antes de serem substituídos, no dia 1º de abril de 1794, pordozecomissõesexecutivas).

Umdostraçosmaistípicosdessenovogovernoéosurgimentodeumaesferadeaçãopropriamenterevolucionáriaàqualcorrespondeumacadeiadeexecuçãodistinta. Para a aplicação das leis ordinárias, conserva-se,grosso modo, oesquema existente: ministros (depois comissões executivas), departamentos –como estes últimos são suspeitos de “federalismo”, sua composição e suasatribuiçõessãoreduzidasaomínimo–,distritos,comunas.Paraaplicarasleisdeexceçãoditas“leisrevolucionárias”(leidossuspeitos,leidoMáximo,etc.),assimcomo as decisões dos Comitês e outras medidas de salvação pública e desegurança geral, a centralização aumenta: a autoridade é exercida diretamentesobre distritos e comunas, providos uns e outros de um “agente nacional”,representante direto do governo. Integram-se à grade outros órgãos puramenterevolucionários,comoosrepresentantesemmissãoouoscomitêsdevigilância.

Julgadacorruptoraemdecorrênciadeumaespéciededescontroleinevitável,a administração deve ser depurada permanentemente. O princípio eletivoadotado em 1789 para a designação de numerosos agentes públicos cedeassim diante da nomeação pura e simples – após destituição – segundocritériospolíticos.Adepuraçãoéumadastarefasdosrepresentantesdopovoem missão. Subordinados à Convenção que os designa, os deputadosenviadosaosdepartamentosouaosexércitosdevemcorresponder-seacadadezdiascomoComitêdesalvaçãopública.Osatosdesseslegisladorestêmvalor de leis revolucionárias provisórias, mas o Comitê acabará obtendo opoderdesuspendersuasdecisões.Osclubesesociedadespopularesassistemos representantes em missão, denunciando as administrações suspeitas epropondosubstitutosmaisconfiáveis.

Institucionalizados e generalizados a partir de 21 de março de 1793, oscomitêsdevigilância,bemdepressachamadosde“comitêsrevolucionários”,são encarregados da polícia política em cada comuna e em cada seção de

Paris.Essesórgãos locaisdoTerror, sujeitosaoComitêdesegurançageral,sãodotadosdeatribuiçõescadavezmaisamplas (concessãodecertificadosdecivismo,controledosestrangeiros,detenções).Elesnãosecontentamemperseguir os suspeitos, entregues em seguida a jurisdições que julgam“revolucionariamente”(ouseja,segundoumaproceduraaceleradaesumária):em muitas comunas, eles tratam de tudo – aplicação do Máximo,descristianização – e assim se tornam, tanto nas comunas locais quanto naescaladedistrito,instituições“administrativas”essenciais.

2 .A centralização jacobina – Assim como os girondinos não erigiram seu“federalismo”comodoutrina,os jacobinosnãoconstruíramuma teoriacomsuacentralização.Hostisàadministração,pensandoempolíticas,preocupadosantesdemais nada em concluir a Revolução – completamente diferente dos gruposanteriores – e em “fundar a República”, eles foram centralizadores pornecessidade.Umdosefeitosparadoxaisdacentralizaçãoexcessivaseráainflaçãoburocrática, que eles temiam acima de tudo: o número de empregados nasadministraçõescentraisaumentapelomenos800%emrelaçãoa1789.3.Ateoriadogovernorevolucionário–Adoutrina jacobinaexistedefato:éum republicanismo ardente que, sem romper totalmente com o pensamentodominante de 1789, insiste na plena realização do homem em uma cidadaniaexigenteeglobalqueprocurarestabeleceroseloscomosmodelosidealizadosdaAntigüidade.Taldoutrinafreqüentementeacompanhaoacontecimento,porvezeso justifica em seguida, sem nada perder de sua lógica. A teoria do governorevolucionário,porsuavez,torna-seclaraduranteoinvernode1793-1794:elaédesenvolvidaespecialmenteporSaint-Justemseurelatóriode10deoutubrode1793 e porRobespierre em dois relatórios de 5 nivoso89 (25 de dezembro de1793)e17pluvioso90anoII(5defevereirode1794).

A ordem revolucionária opõe-se à ordem constitucional. “Sob o regimeconstitucional”, declaraRobespierre, “praticamente só é preciso proteger osindivíduosdoabusodopoderpúblico;soboregimerevolucionário,oprópriopoderpúblicoéobrigadoasedefenderdetodasasfacçõesqueoatacam.Ogovernorevolucionáriodeveaosbonscidadãostodaaproteçãonacional;aosinimigosdopovonãodevesenãoamorte.”Essegoverno“apóia-senamaissantadetodasasleis:asalvaçãodopovo”ousalvaçãopública.O“povo”nãoémais a universalidade dos cidadãos (definição jurídica da constituição doano I); eleé–politicamente–aparte“virtuosa”dapopulação,aquelaque,compostados“bonscidadãos”esomentedeles,praticao“amorpelapátriae

suas leis”, amor que inclui a igualdade e supõe “a força da alma”,continuandoaRevolução.Deleestãoexcluídostodososque,porsuaaçãoousuapassividade,porseupassadopolítico,atémesmoporsuasituaçãosocial,têmavercomos“vícios”doAntigoRegimeede“antesde10deagosto”.“NaRepública, cidadãos sãoapenasos republicanos.”Osdemais, inimigosdopovo,devemsererradicadosparaasalvaçãodopovo.OmeioéoTerror.ERobespierrecompletaMontesquieudemaneiraoriginal(aomesmotempoparafraseandoPascal...):“Seaforçadogovernopopularnapazéavirtude,aforça do governo popular em revolução é simultaneamente a virtude e oterror:avirtudesemaqualoterroréfunesto;oterrorsemoqualavirtudeéimpotente”.

4 .O Terror em questão – Embora sua aceitação pela mentalidaderevolucionária de 1793 suponha sem dúvida uma sensibilidade diferente dasensibilidade de nossos contemporâneos, o Terror não é a resposta tardia enegativaaumasuposta“violênciadoEstado”doAntigoRegime.Ele temumafunçãopositivadentrodosistemajacobino:ade–paraemseguidapoderassentaraRepública–constituir,antesdequalqueroutracoisa,o“povo”;aregeneraçãocompletadopovopassaporsuaeliminaçãofísica.

As soluções brandas, como a autocrítica, são afastadas; é preciso reduzir apopulação às dimensões do “povo”, cortando todos os galhos podres oususpeitos.Emqueproporção?Não ficaclaro.OconvencionalGuffroyseráexcluídodosjacobinosedeverásedemitirdoComitêdesegurançageralapóster escrito: “Que a guilhotina esteja presente permanentemente em toda aRepública;aFrançajátemcincomilhõesdehabitantes”.Emcompensação–masépossívelsechegaraumaconclusãoprecisa?–,JeanbonSaint-André,membro do Comitê de salvação pública, não terá problemas por falar emreduzirapopulaçãopelametade.

Aocontráriodeumaanáliseestreitamenteconjuntural,oTerroréemgrandeparte independente dos perigos militares. Aliás, ele se desencadeiadepois doreerguimento em todos os fronts, tanto no interior quanto nas fronteiras. Oexemplomaistípicoéodomassacrevendeano.5.Oexemplovendeano–Em1odeagostode1793–medidaendurecidaem1ºde outubro –, a Convenção ordenou a destruição da Vendéia. O “exércitocatólicoereal”éaniquiladoem23dedezembro.

“NãohámaisVendéia, cidadãos republicanos.Elamorreu sobnosso sabrelivre,comsuasmulhereseseusfilhos.Acabodeenterrá-lanosbrejosenas

florestasdeSavenay.Seguindoasordensquevocêsmederam,esmagueiascriançassobospésdoscavalos,massacreimulheresque,aomenosessas,nãoengendrarão mais bandidos. Não tenho nenhum prisioneiro a lamentar.Exterminei tudo” (carta do general Westermann ao Comitê de salvaçãopública).Mas foi somente na segunda quinzena de janeiro de 1794 que as“colunasinfernais”deTurreau–emconcordânciacomogoverno–começama vasculhar a área, queimando vilarejos e colheitas e exterminando aspopulaçõescivis.

Apesardeseusparticularismos,osvendeanosnãoconstituemumapopulaçãoespecífica.Mesmoassim,aideologiajacobina,rejeitando-osdoseiodopovo,osconsideraeosconstituicomo tal,oque incitoualgunsautoresa falarde“genocídio”.Essa“raçadebandidos”éinassimilável;estrangeiraaopovo,ésua inimiga;deve,pois, serdestruídaatéemsuacapacidadede reprodução.Ascriançasnãosãopoupadas;asmulheres(grávidasounão)sãovisadasporserem “solos reprodutores”. Temendo deixar escapar alguns brancos91, osazuis92locaisacabaramsendoelesmesmosfreqüentementemassacrados.Aotodo, talvez 18% do habitat destruído e 250 mil mortos (segundo J.-C.Martin),ouseja,30%dapopulaçãodasregiõesinsurgidas.

V–Avirtudeimpotente?Nomomentoemquesedelineiaavitória,aMontanhailustramaisumaveza

melancólica mecânica de uma Revolução que devora seus próprios filhos.Suspeita,conflitosdepersonalidadeseconflitosdeprogramasmisturam-seentresi;astendências,atenuadasdurantemesespelalutacomumcontraaGironde,vãosecontraporàluzdodia.

Os raivosos,muito isoladosapesardaantiga influêncianas seçõesdeParis,foram os primeiros a ser esmagados. Robespierre denunciou JacquesRouxcomoagentedoestrangeiro,“assalariadopelosinimigosdopovo”.HéberteaComuna, sentindo o vento virar, fizeram dos raivosos os responsáveis pelaescassezdealimentos...Rouxacabasuicidando-senaprisão(10defevereirode1794).Entretanto,comoasaspiraçõesdossans-culottesauma igualdadedefortunanãodesapareceram,comoasmáscolheitaseasrequisiçõesparaoexército agravam ainda mais os problemas de abastecimento, Hébert e osexagerados93,nãosemcinismo,voltamàcena.

1 .A descristianização – Em 5 de outubro de 1793, a Convenção adotou o“calendário republicano” elaborado porRomme eFabre d’Eglantine.Tratou-sedemedidaaltamentesimbólica,confirmandoasdecisõestomadasumanoantesefazendoahistóriadaFrança–eadomundo–recomeçarem22desetembrode1792,primeirodiadaerarepublicana;medidaanti-religiosatambémaomoldarosnovostemposcontraotempocristãoritmadopelocalendáriogregoriano.

Filhadaconstituiçãocivildoclerode1790,adescristianização,iniciadaem1792, adquire um novo andamento. Ela provoca estragos sobretudo nascidades, mas não poupa os campos.Atacam-se padres, até mesmo padresjuradores, igrejas, objetos de culto, cemitérios. O vandalismo anticristãodesencadeia-se um pouco em toda parte, freqüentemente sob a direção dosrepresentantes emmissão, com seu cortejo de sacrilégios, aomesmo tempoemqueocleronão-emigrado–30mileclesiásticos,pelomenos, fugiram–forneceaoTerrorumloteapreciáveldevítimas,deportadasoucondenadasàmorte. Na capital, Chaumette, procurador da Comuna, toma a frente domovimento. A Igreja constitucional, laboriosamente organizada em 1791,desmorona.ObispodeParisenumerosospadresabdicamdesuas funções.DepoisdafestadaLiberdadeedaRazão,celebradanodia10denovembrona Notre-Dame (templo da Razão), a Comuna ordena o fechamento dasigrejas(23denovembro).

Adescristianizaçãoprovocaarupturaentreoshebertistas(nosentidoamplo),que querem acelerar o movimento, e a maioria da Convenção. O agnósticoDanton e seus amigos apóiam Robespierre, cuja religiosidade é bastanteconhecidaemsuadenúnciadas“mascaradasanti-religiosas”.Em8dedezembro,aAssembléiaapelaemvãoparaoprincípiodaliberdadedoscultos:contidaemParis,aondadescristianizadoravarreráaFrançadurantemeses.2.Aeliminaçãodosexageradosedosindulgentes94–Os“dantonistas”julgamter chegado omomento de afrouxar as tenazes doTerror.As razões para essareviravolta são múltiplas: cansaço; temor de ver as intrigas ou malversaçõesexibidasà luzdodiaechegaraprópriavezde subir aocadafalso; talvez,paraalguns, vontade de transformar o regime.LeVieuxCordelier, o novo jornal deCamilleDesmoulins,apregoaaclemência.Diantedafacçãoultra-revolucionária,formou-se a dos indulgentes. Robespierre e seus colegas vão denunciar seuconluioobjetivo–e“contra-revolucionário”–,eosComitêsvãoeliminá-las,umaemseguidadaoutra.

Denunciados aos Comitês no outono de 1793 por dois deputados

montanheses (Fabre d’Eglantine e Chabot), os hebertistas são suspeitos deestar envolvidos emumavasta “conspiraçãodoestrangeiro”,destinada,pordemagogia, ofertas vãs e diversos ilícitos, a levar a Revolução à ruína.Temendo desacreditar aMontanha, os Comitês hesitam em atingir Hébert,substitutodoagentenacionaldaComuna,masopretextoéfornecidoporumimprudente projeto de insurreição contra os “adormentadores”95 daConvenção.Hébertépreso,assimcomoseuspresumidoscúmplices:Ronsin,Vincent,Momoroetc.Oprocessodelesérealizadoàspressas.Amalgamadosaos “agentes do estrangeiro” (Proli, Cloots), sobem ao cadafalso em 24 demarço. A honra da Montanha está salva: não se fez menção a possíveisligaçõesdeHébertcomobarãodeBatzesuarederealista.

O partidosans-culotte encontra-se sem recursos. Por isso, Saint-Just faz aConvenção votar os famosos “decretos de ventoso”96 (26 de fevereiro - 3 demarço), que anunciam uma redistribuição maciça aos patriotas dos bensconfiscadosdosinimigosdaRepública.“Osinfelizessãoaspotênciasdaterra”,exclamaSaint-Just, “eles têmdireitode falar comochefesaosgovernosqueosnegligenciam.”Novaradicalizaçãosocial?Conversãoaostemasigualitaristasdosraivosos e dos exagerados? Simples medida tática? As leis de ventoso nãoconhecerãosenãoumtímidocomeçodeexecução,mastêmcomoefeitoreforçaraindamaisaditadurajacobinacontraoinimigointerno.

A derrota dos indulgentes, retardada pelo projeto hebertista de insurreição,tinha sido decidida anteriormente. Seus ataques à Convenção e contra osComitês, assim como a campanha de Desmoulins pela clemência, teriambastadoparaprovocarsuaqueda;esta foiaceleradapeladescobertadeumasuposta participação do deputado-poeta-agiota Fabre d’Eglantine, amigo deDanton,nocasodecorrupçãodito“daCompanhiadasÍndias”,ligadoauma“conspiraçãodoestrangeiro”,desdeentãoiçadoàcategoriademito.Dantoneseus amigos, dentre os quais Desmoulins, além de vários autênticos“corrompidos”–amálgamaefalsificaçãofeitoscomtantocuidadoquantonoprocessodoshebertistas–,sãocondenadosàmorteeexecutados(5deabril).

3 .A“Revolução congelada” –As conseqüências dessa dupla depuração sãoconsideráveis. Ossans-culottes estão desnorteados, desanimados. Depois dos“aristocratas” e dos “federalistas”, agora estão sendo guilhotinados grandesrevolucionários, anteriormente adulados. “ARevolução está congelada” (Saint-Just).Robespierre desponta então comoodonodaFrança.Seuprestígio, tantoentre os jacobinos quanto na Convenção, assegura-lhe uma espécie de

preeminênciasobreoscolegas;desdeaeliminaçãodoshebertistas,aComunadeParispovoou-sedeagentesquelhesãodevotados;porém,nãohácertezadequetenha aspirado à própria ditadura (depois que ele caiu, a ConvençãoconfortavelmentelhejogouemcimatodosospecadosdoTerror).Naverdade,oComitêdesalvaçãopúblicacontinuasendoumainstituiçãocolegiada;e,demaisamais,nãoéoúnicoórgãodedecisãodogoverno.

Hostilaoateísmo–queeleconsideraumperigosocial,moralepolítico–,ena linha (deformada) de Rousseau, Robespierre impõe à Convenção oreconhecimentodoSerSupremoedaimortalidadedaalma.Umanomaistarde,preside a festa doSer Supremo (20 prairial97, 8 de junho de 1794), umamascarada surrealista que lhe custará caro, organizada pelo pintor David. OTerror,comosempre,sefazacompanhardaVirtude:entreoutrasdisposições,aterrível lei de 22 prairial ano II (10 de junho) amplia ainda mais a noção desuspeito, reduz à sua mais simples expressão a procedura diante do Tribunalrevolucionário, autoriza condenações combase emprovasmorais e suprime aspenasquenãosejamamorte.Ela inauguraoquesechama impropriamentede“GrandeTerror”.

O Grande Terror começou mais cedo na província.A lei se contenta emracionalizar e centralizarumpoucomaisoTerror.EmParis, é a épocadas“fornadas” indiferenciadas de condenados. A técnica do amálgama, jáempregada contra girondinos, hebertistas e dantonistas, é utilizada até ononsense.Antesdaleidossuspeitos,oTribunalrevolucionáriopronunciavaapenademorte11vezespormêsemmédia (24%das sentenças).Passou-separa134execuçõesmensais(58%)entrealeidossuspeitosealeideprairialepara878(79%)entreprairialetermidor.

NofinaldoTerror,onúmerodeguilhotinamentosvaiaumentar50%acadamês(38cabeçaspordianavésperade9termidor).Arepugnânciapelaguilhotinacomeçaatomarcontadepartedopúblicopatriota,masosComitêsnãoparecemnemumpoucodispostosamandarpararoTerror.

Maisdoquenunca,oTerrorrevela-seindependentedosriscosincorridospelaRevolução.AVendéiamorreu.Osexércitosrepublicanospassaramàofensiva;avitóriade Jourdanemfloreal98 (26de junho) reabriu-lhes aBélgica.Poroutrolado,asituaçãoeconômicacontinuaruim.Asupressãodosdireitossenhoriaisefeudais não compensou o peso das requisições. Popular em seu princípio, oMáximopermitiualimentarascidadesrazoavelmente,masrevelou-secatastróficopara os campos; engendrou a penúria e a explosão dos preços no mercado

paralelo;jáoMáximodossalários,adotadocomatraso,tornou-seimediatamenteimpopular. Inversamente, o relativo relaxamento do dirigismo econômico, nofinaldoinverno,desagradoubastanteaosparisienses...Nessedomínio,comonapolítica,arevoluçãojacobinapareceestaremumimpasse.

82. Hérault, apesar de instruído, tomou o personagem por real e solicitou àBibliotecaNacional um exemplar das leis deMinos, que deveriam estar numacoletâneadasleisgregas.(N.T.)83. Pierre Philippeaux: (1756-1794): advogado e deputado na ConvençãoNacional.Morreuguilhotinado.(N.T.)84.A5ªRepública,aprovadaem1958,substituiuogovernoparlamentaristaporumsistemasemipresidencialista.(N.T.)85.ALeidoMáximoinstituíaomáximodecrescentedopreçodosgrãos.(N.T.)86.CharlotteCorday(1768-1793):assassinadeMarat,umdosmaisimportantesdefensores da política doTerror. Foi guilhotinada quatro dias depois do crime.(N.T.)87.Assignationàrésidence:obrigaçãoimpostaaumestrangeiroderesidiremumlocaldeterminado.(N.T.)88.Frimário:terceiromêsdocalendáriorepublicano(de21denovembroa21dedezembro).(N.T.)89.Nivoso:quartomêsdocalendário republicano (de22dedezembroa21dejaneiro).(N.T.)90.Pluvioso:quintomêsdocalendáriorepublicano(de20ou21dejaneiroa18ou19defevereiro).(N.T.)91.Comoeramchamadososrealistas,partidáriosdarealeza.(N.T.)92.Comoeramchamadososrepublicanos.(N.T.)93.Oshebertistasàsvezeseramchamadosdeexagerados.(N.T.)94.Indulgentes:nomedadoaosantigosmembrosdoClubedosCordeliers,quedesejavamasupressãodoTerror.(N.T.)95. Os que ficavam falando de “justiça” ou de “moderação” numa horarevolucionária.(N.T.)96.Ventoso: sextomês do calendário republicano (de 19 de fevereiro a 20 demarço).(N.T.)97.Prairial:nonomêsdocalendáriorepublicano(de20ou21demaioa18ou19dejunho).(N.T.)

98.Floreal:oitavomêsdocalendáriorepublicano(de20deabrila19demaio).(N.T.)

CAPÍTULO VIII

TERMINAR A REVOLUÇÃO

Segundo a lógica mais intransigente do jacobinismo, o ideal seria que oTerrorprosseguisseatéaeliminaçãodetodosos“inimigosdopovo”,prelúdiodaverdadeira fundaçãodaRepública.Contudo, as engrenagensgovernamentais jáemperram, a opinião pública começa a semanifestar, cada vezmais sensível àinutilidadedosguilhotinamentoscegos.Bemdepressaseránecessáriovoltar,deuma maneira diferente, ao programa anteriormente impossível de Mirabeau,depoisdeBarnave,depoisdosgirondinos: terminaraRevolução.Cincoanosemeioserãonecessários.ComopressentiraRobespierre,osabredeummilitarseráoderradeirorecurso.

I–TermidorA queda de Robespierre é um acontecimento de rara complexidade, cujas

conseqüênciassãoerroneamentesimplificadas.1.Ogovernorevolucionáriodesunido –NosComitês, cujosmembrosvivemcom os nervos à flor da pele, os ódios exacerbam-se. OComitê de segurançageral,dirigidoporVadier,AmareVoulland,nãogostounemumpoucodevercriado,noComitêdesalvaçãopública,umdepartamentodepolíciaqueavançasobresuasatribuições.MesmonoComitêdesalvaçãopública,aunidadedeaçãonadamaisédoqueumafachada;Carnot,porexemplo,opõe-seaSaint-Justsobreasquestõesmilitares;Billaud-VarenneeCollot,terroristasmaisferrenhosdoqueseuscolegasemaispróximosdoComitêdesegurançageral,acusamRobespierrede aspirar a uma ditadura pessoal. A Convenção agita-se em surdina. Osrepresentantes em missão mais corrompidos ou sanguinários – Barras, Fréron,Tallien,Fouché–sãochamadosaParis;tememsereliminadosporsuavez.Jáosdeputados da Planície, paralisados pelo medo, sonham, muitos deles, com otérmino do Terror; Cambon, que domina o Comitê de finanças, preocupa-setambémcomausurpação,peloComitêdesalvaçãopública,desuasatribuições.2.O9termidor–Paraderrubaroincorruptível,éprecisoobterumamaiorianaConvenção.Talmaioria,queserevelaráesmagadora,nãopoderiaresultarsenãodaadição,aocomplôdeTermidor,de interessescontraditórios:ela reunirá,porumlado,corrompidos,amaioriaterroristaseateus–categoriasquesesobrepõememparte;poroutro,osrestosdasfacçõesgirondinaedantonistaeosmoderados

da Planície aos quais os primeiros decerto fizeram promessas que não tinhamintençãodecumprir.

Cada vez mais sozinho no Comitê de salvação pública – o excesso detrabalho e o cansaço obrigam-no a se afastar por várias semanas –,Robespierremergulhaemseuisolamento,melindrado.Elefoiridicularizado,ecomeleocultodoSerSupremo,porVadiereoComitêdesegurançageral,quealimentaramocasoCatherineThéot(umailuminadaquepretendiaseramãedeDeuseanunciavaavindadeum“messias”quepodiaserfacilmenteconfundidocomRobespierre).

Em8termidor(26dejulhode1794),natribunadaConvenção,Robespierreresponde aos ataques de que é objeto denunciando a opressão daAssembléiapelosComitês,exigindoqueelessejamdepuradosequeseprocedaàexpulsãodeum certo número de escroques. O incorruptível talvez não tenha sidosuficientemente preciso em suas acusações; qualquer um pode sentir-se visado.Nodiaseguinte,TallienousacortarapalavraaSaint-Justeacusarviolentamenteo “tirano” (ou seja, Robespierre). Numa desordem indescritível, a Convençãodecreta a prisão deHanriot, comandante da guarda nacional, do presidente doTribunal revolucionário, de Robespierre, de Saint-Just, de Couthon. Não semumasombriagrandeza,oirmãodeRobespierreeLebas99conseguemqueseusnomesfiguremnalista.AComunadePariscometeaimprudênciadeseinsurgirelibertarosdeputadosdetidos,razãopelaqualRobespierreeseuspartidáriossãodeclaradosfora-da-lei,oquepermitiráexecutá-lossemjulgamento.

Uma “jornada revolucionária” teria podido salvar Robespierrein extremisdiante das tropas fiéis à Convenção comandadas por Barras e Merlin deThionville? O sans-culottismo parisiense, numericamente enfraquecido porsuaintegraçãoparcialàburocraciapolicialeaorecrutamentoemmassa,poroutrolado,perdeuavitalidade.Naprimaverade1794,osComitêsliquidaramtrêsquartosdassociedadespopulares.Em9termidor,asseçõesdeParisnãoestãocoesas.Osinsurgidos,privadosdeumchefeeficazedeumaverdadeiravontadepolítica,abaladostambémcomoestadodefora-da-leiqueacabadeser decretado pela representação nacional, acabam dispersando-se. Em 10termidor, sobre o cadafalso, Robespierre e seus amigos, seguidos no diaseguinte pelos aliados da Comuna, pagam com atraso o esmagamento domovimentosans-culotte.

II–Reaçãoecompromisso

O9termidorpoderiaterdesembocadoemumnovoagravamentodoTerror.Porém,pelaprimeiravezhámuitotempo,éaopiniãopúblicaquefalamaisalto.A eliminação deRobespierre e seus próximos é saudada por uma explosão dealegriaqueobrigaosterroristasadarsatisfaçãoaosmoderados,fazendocessaroTerror.Os termidoristasbuscarãoemseguidaumcompromissopolíticoesocialque, sem negar os princípios da Revolução, renuncie à criação de um homemnovo e evite o retorno dos excessos do ano II. A palavra de ordem é: “ARevoluçãoestá feita”,masaRevoluçãoaindanãoestá“acabada”,pordiversasrazõesdentreasquaisaameaçadeumacontra-revolução.1 .A “reação” termidoriana –A reorganização do governo traz de volta oregimedeassembléiaeumcolegiadoampliado,restringindoconsideravelmenteopapeldoComitêdesalvaçãopública,doravanterenovadoacadamêsepovoadode revolucionários mais moderados. Os representantes em missão – ironia dahistória–serãoutilizadosainda,durantealgunsmeses,para imporumapolíticaantiterrorista. Contudo, a palavra “reação”, que servia normalmente paraqualificaressaépocadetransição,deveserutilizadacomprudência.

Aleideprairialérevogada–masaleidossuspeitospermaneceemvigor–ea justiça revolucionária é posta em estado de semi-sono, enquanto seentreabremasportasdasprisões.TerroristascomoFouquier-Tinville,Carriere Lebon serão guilhotinados; outros, como Tallien, igualmente notórios,porémmais hábeis, estão no campo da “reação”. O clube dos jacobinos éfechado em novembro. A caça ao terrorismo, garantida em Paris pelos“muscadins”100 da “jeunesse dorée” sob a direção do antigo terroristaFréron, alia a brutalidade e o burlesco.Na província, sobretudo no Sul, osmassacresfazemcomquesefaledeum“Terrorbranco”.

Areaçãopolíticavemacompanhadadeumanovapolítica religiosa.Depoisde suprimir o orçamento do culto (18 de setembro de 1794), aConvençãodecreta, simultaneamente à liberdade religiosa, a separação da Igreja e doEstado (3 ventoso ano III, 21 de fevereiro de 1795), o que tornaparticularmente delicada a posição dos padres juradores e confirma oabandono pelaRevolução de sua Igreja constitucional, já vítima da recentedescristianização.HocheaproveitaparanegociarcomosinsurgidosdoOesteque, por desespero, novamentepegaramemarmasdepois dapassagemdascolunasinfernais.

Por fim vem a reação econômica, com a restituição à iniciativa privada demanufaturasdeguerra,liberdadedeimportaçõeseaboliçãodoMáximoem4

nivoso ano III (24 de dezembro de 1794). O fim do Terror econômicoconfirma a derrocada doassignat. A explosão dos preços, que castigaprincipalmente os assalariados e os desempregados, e a recusa doassignatpeloscamponesesfazemamisériaaumentar.Esta,agravadapelamácolheitade 1794 e por um dos invernos mais rigorosos do século, provoca umaexpansãodamortalidade.Emcompensação,osaproveitadoresdaRevolução,emespecialosfornecedoresdoexército,passamaexibirafrontosamenteseuluxo.É a épocados “incroyables” e das “merveilleuses”101, dos costumesdissolutosdepoisdoslongosmesesdevirtudeimposta.

Osfaubourgsparisiensesagitam-sedenovo.Ajornadarevolucionáriade12germinal ano III (1º de abril de 1795) é essencialmente filhadamiséria,mas aConvençãoaproveitaparacompletaradepuração(deportaçãosemjulgamentodeantigos terroristas como Billaud-Varenne, Collot d’Herbois, Barère, Vadier) ecomeçaradesarmarasseções.Aúltima“jornada”exercidacontraaConvenção,ade1ºprairial(20demaio),melhororganizada,seráreprimidacommaisvigorainda. O movimentosans-culotte morreu. Osfaubourgs não despertarão senãoemjulhode1830.2.Aconstituiçãode5 frutidoranoIII –AindamenosdoqueRobespierre eSaint-Just, os termidorianos não tinham a intenção de aplicar a constituição doanoI.Apósinúmerastergiversações,decidemfabricarumaqueacreditamsersobmedida e que tende a evitar o duplo perigo de uma democracia radical e umaditadura,igualmenteameaçadorasparaasconquistasdaRevolução,àsquaiselessemostramespecialmentedevotados,umavezquesebeneficiamdelas.

Em 14 germinal ano III (3 de abril de 1795), uma comissão de coloraçãomoderadaénomeadacomoobjetivodeelaborarleisorgânicasquetempereme completemo texto do ano I e, depois, no final de tudo, redigir umnovoprojeto de constituição. Boissy d’Anglas, seu relator, pende para a direita,masDaunou,quedesempenhaentreos comissáriosumpapeldeterminante,tem convicções de continuidade inteiramente diferentes. Os debates ricos epacíficosdomêsdeagostoresolvemamaiorpartedasquestõesnosentidodeumconservadorismoburguês-revolucionário.

Uma declaração de direitos e deveres do homem e do cidadão precede aconstituição. Ela traz à luz o lado desiludido da nova filosofia política nopoder.ComodizBoissy,baniram-sedelaos“axiomasanárquicos”.Tem-seaimpressão de passar de uma cidadania fiadora do homem em 1789 para acidadaniaderealizaçãodohomemem1793.Oclimaétotalmenteoutroem

1795:acidadania,recusadaamuitos,tornou-serecalquedoladoperigosodohomememissãoatribuídaaseustitulares,missãodecontribuirparaaordemsocial.Algunsteriamdesejadoinvestiremumtextopróprio,porsuanatureza,parainflamaraspopulações.Oacordofoifeitocombaseemumadeclaraçãotíbia e desprovida demovimento.A inflexão é clara em relação aos textosprecedentes. Ao otimismo, as atrocidades do Terror fizeram suceder umpessimismoprofundosobreanaturezahumana,queimprimirásuamarcanadécadaseguinteecontribuiráparaosucessodeNapoleão:nãosetratamaisde direitos naturais, mas de “direitos do homem em sociedade”. Váriasdisposiçõesde1789,oumesmode1793, sãomaisoumenos reproduzidas,mas há omissões e atenuações significativas, que dizem respeito, porexemplo,àigualdade,entendidademaneiraestritamentejurídica,eexaltaçõesreveladoras a despeito de sua frieza, como à propriedade. Dessa vez,sobretudo,aocontráriodoquehaviasidodecididoem1789,osdeveres sãoratificados sob a forma de um catecismo banal e sem calor.A ordemdevereinar, as paixões devem ser reprimidas, e deve cessar a esperança de umasorte melhor. A comparação com a declaração de 1789 é edificante: afelicidade, o direito à instrução e aos auxílios, o direito à insurreiçãodesapareceram.As liberdades de pensamento e de comunicação não serãosancionadassenãonaconstituição.

A extensão da constituição (377 artigos contra 124 em 1793) e suacomplexidadeestãoàalturadaprudênciadeseusautores.Elesnãohesitamemcompletarasdisposiçõesprincipais–a“divisãodepoderes”(artigo22daDeclaração)–comumasériedeprecauçõespontuais,sendoquemuitasdelascarregam,semfecundidadeintelectual,amarcadasexperiênciasprecedentes.O texto caracteriza-se por dois traços principais: por um lado, o retorno aoregime representativo puro, sob a reserva do referendo constituinte, comrestriçãodosufrágio;poroutrolado,amultiplicaçãodosórgãosdepoderdoEstado,dotadosdeumaforteindependênciaefracadistribuiçãodefunções.Oconjuntoexcluiamanifestaçãodequalquerdinamismopolítico.

Para ser cidadão, entre outras condições, é preciso fazer uma contribuiçãodireta: é nessa enganosa “universalidade de cidadãos franceses” e não noconjuntodopovoqueresideasoberania.Oscidadãos–talvezcincomilhões(umpoucomaisdoqueonúmerodecidadãos“ativos”em1791)deumtotalde cerca de sete milhões de franceses do sexo masculino com a idaderequerida– sãoeleitoresdeprimeirograudentrodasassembléiasprimárias,dasquaisumadasvocaçõesédesignaroseleitoresdesegundograu,menos

numerosos do que em 1791 (um em duzentos), mas elegíveis segundoexigênciaspróximas,notadamentecensitárias,enãoreelegíveisde imediato.Aeleiçãoàdeputaçãonãoésubmetidaanenhumacondiçãodecenso.

Na disposição dos órgãos, a principal inovação é o bicameralismo. OConselhodosQuinhentoseoConselhodosAntigos(250membros),eleitosporsufrágioemdoisgraus,sãorenovadospor terços.Seuscorposeleitoraissão idênticos. As duas câmaras não se distinguem senão pelas condiçõesexigidasdeseusmembros:25anosparaosQuinhentos,quarentaanosparaosAntigos,osquaisdevemsercasadosouviúvos.Osprimeirospropõemalei,ossegundosvotam-nasememendá-la;segundoBoissyd’Anglas,oConselhodosQuinhentosserá“aimaginaçãodaRepública”,enqauntooConselhodosAntigos “será sua razão”. Nenhuma das justificativas clássicas dobicameralismo, sociaisou técnicas,prevaleceu; tratou-seapenasdeevitarasimpetuosidades de uma câmara única; tal desconfiança em relação ao“legislativo”éagrandenovidade.

A sinceridade dos constituintes do ano III, na sua vontade de neutralizar opoder, manifesta-se na proibição (destinada a atenuar desvios do caráterrepresentativo) aos membros dos conselhos, bem como aos membros do“executivo”,darenovaçãoimediatadeseusmandatos.

Em conformidade com as exigências do constitucionalismo republicano, o“executivo” é colegiado e tudo está previsto, além das consideráveisvantagens que lhe são concedidas, para que ele não possa adquirir pesoexcessivo.O “Diretório executivo” é eleito por cinco anos pelos conselhos“em nome da nação” – os Antigos escolhem conforme uma lista de deznomesporpostopropostospelosQuinhentos–erenovávelporquintotodosos anos. O chefe de Estado e de governo é colegiado: as decisões sãotomadas por maioria e a presidência é assegurada, alternativamente, portrimestre. O Diretório beneficia-se de prerrogativas bastante importantes,notadamente na condução dos negócios exteriores; ele nomeia e revoga osministros e muitos dos funcionários. Contudo, é recusada a ele qualquerverdadeira participação na função legislativa; ele não pode dissolver osconselhosnem–dedireito–serdemitidoporeles(masosQuinhentospodemlevá-locomoacusadodiantedaSupremaCorte).

Em conformidade com a lógica do que será chamado mais tarde de“soberanianacional”,agiu-sedemaneiraaqueopodernãotivessenenhumprivilégioquepermitisseaumaautoridadeimpor-seàsoutras.Asdesilusões

de 1791 não bastaram para tornar modesto o constitucionalismorevolucionário:elecontinuouconsiderando-sesuficientementeperfeito,assimcomo as organizações e proceduras que fez triunfar, tornando quaseimpossívelumarevisão.

Tal sistema,geradordeconflitoseameaçadodeparalisia,nãoécompatívelcomagravidadedas proposições.Seu estreito conservadorismo salta aos olhosquando, em 1º frutidor ano III (18 de agosto de 1795), os termidorianiosprevinem-se contra um provável sucesso da direita nas eleições votando osurpreendente decreto dos dois terços: dois terços dos membros dos novosconselhos (quinhentos de um total de 750) deverão ser eleitos entre osconvencionaisqueestãosaindo...

Aconstituição(1.050milvotaram“sim”,50milvotaram“não”)eosdecretosanexos (200 mil “sim”, 100 mil “não”) são aprovados por referendo. Orenascimento da oposição de direita foi facilitado pela política de reação epelo aumento dos descontentamentos, embora ela fosse muito eclética(resultado da união de realistas e republicanos moderados, além de LuísXVIII, que, no exílio, assumiu posições bastante reacionárias).A oposiçãoadotoucomopretextoodecretodosdoisterçosparafomentarumainsurreiçãoem Paris; Barras conclamou generais jacobinos: Brune e Bonaparte. Osinsurgidos, mal dirigidos, são esmagados (13 vendemiário ano IV, 5 deoutubro de 1795).Depois do perigo de extrema esquerda, o perigo realistapareceafastado.Oregimediretorialpodeinstalar-se.

III–ODiretório:docompromissoaogolpedeEstado

Os quatro anos de história do Diretório são repletos de contradições.Contradições nascidas de uma constituição capenga; contradições de umaRevoluçãoembuscadeumaconclusãoquenãosignifiqueumenfraquecimento,mas,aocontrário,umfortalecimento.

O programa dos termidorianos que permaneceram no poder era ambicioso:conjurar o perigo realista e reprimir as facções sem tornar a cair noTerror,ressuscitaraindústriaeocomércio,trazerdevoltaapaz.Maselesnãotinhamosmeiosparaexercertalpolítica.Oaumentodoesforçodeguerrasefaráemdetrimentodasforçasdaordem.Sacudidosentreumaoposiçãorealistamaisoumenoscamuflada,virtualmentemajoritárianopaís (por razõessobretudo

religiosas),eumaoposiçãoneojacobinacadavezmaisativa,emperradosemdificuldades econômicas aparentemente insuperáveis, os governantes jamaisalcançarãoaestabilidadeeoequilíbriopolítico.Seufracassoéflagranteemquasetodososdomínios.Emváriosaspectos,onovoregimedesenvolveuatéacaricaturacertosdefeitosdosqueoprecederam.Porexemplo,acaricaturade religião revolucionária, com o culto decadário e a “teofilantropia”102,promovidosporumdosmembrosdoDiretório,LaRevellière, contrastandocomaimportânciadodespertarreligiosocatólicoclandestino.

1.Situaçãofinanceira,econômicaesocial–Em1795-1796,aconjunturaédesastrosa. Os cofres do Estado estão vazios. O confisco forçado progressivosobreosricos,dedezembrode1795,resultounumasomairrisória;amáquinadeimprimirdinheirofuncionaaplenovapor;aquantidadedepapel-moedabeira40bilhões.Ovalordoassignatéinferioraopreçodopapel;seuabandono(fevereirode1796)esuasubstituição,emmarço,pelo“mandato territorial”nadamudam:em um mês, o mandato territorial perde 90% de seu valor e é tambémabandonado(fevereirode1797).Adeflaçãosucedeàinflação.Oterrívelinvernode1796nãomelhorouascoisas.Apenúria torna-secrônica.Amisériapopularcontrastacomaprosperidadedosnovosricos.Emumclimadeespeculaçãoedecorrupçãoquecontradizaexaltaçãooficialdavirtudeespartana,oTerrorassistiuàconstituiçãodeenormesfortunassurgidasporvezesdonada.SoboDiretório,financistascomoSimonseofamosoOuvrardostentamposiçãosocialelevada,eaatividadebancáriareadquiregrandeimportância.

É nesse ambiente que Gracchus Babeuf desenvolve os temas de umcomunismoagrárioeconstitui,comBuonarrotieantigosjacobinos,aminoriaativaquepretendeexercerumaditaduraprovisória. Infiltradapelapolícia,a“ConjuraçãodosIguais”chegaaofimem10demaiode1796comaprisãodeseuschefes.Umderradeirosobressaltobabouvista103seráesmagadoemsetembro,eBabeuf,guilhotinadonoanoseguinte.

ApartirdoanoV(1796-1797),asdificuldades,atéentãosobretudourbanas,transportam-separaoscampos.Obanditismo–comfreqüênciamatizadodecontra-revolução–expande-seenormemente,favorecidopelarecusacadavezmaiordoalistamento(40%dedesertoresnascincoclasseschamadas).Deve-se, entretanto, creditar ao regime o mérito de ter tentado estabelecer umapolítica econômica coerente (estímulos à indústria, melhoria da rederodoviáriaefluvial),muitoemboraaoposiçãodeduasdoutrinas–retornoàpazoueconomiadeguerra–eodesastremonetáriotenhamparalisadoessa

tentativa.

Com as vitóriasmilitares e a pilhagem dos territórios ocupados, a situaçãofinanceira do Estado melhorou, mas, ainda assim, não se pode evitar abancarrotaoficialdedoisterçoseainscriçãoea“consolidação”doterceirorestante no Grande Livro da dívida pública (30 de setembro de 1797),pagando-se o preço do restabelecimento – impopular – dos impostosindiretos.

2.OgolpedeEstadopermanente–Foinoâmbitoexclusivodapolíticaqueoregime diretorial mostrou-se sob seu ângulo mais desagradável. Para manter aestratégia entre uma direita realista, que depois do fracasso do desembarqueanglo-emigrado em Quiberon (27 de junho de 1795) e o de 13 vendemiárioparecia escolher a via da legalidade eleitoral, e uma extrema esquerda semprerenascente,asautoridadesvêem-secondenadasaoendurecimentoeaosgolpesdeEstadorepetidos.

Primeiro,ogolpedeEstadodadoportrêsdosmembrosdoDiretório,Barras,Reubell e La Revellière, contra dois colegas, Carnot e Barthélemy, em 18frutidor ano IV (4 de setembro de 1797): com o apoio de Bonaparte,aniquilou, mediante o retorno por um bom tempo das práticas terroristas eanti-religiosas, o esmagador sucesso dos realistas nas eleições legislativas,sucesso que podia abrir caminho para uma restauração monárquica. Novogolpe de Estado em 22 floreal ano VI (11 de maio de 1798): em sentidoinversodessavez,anulandoaeleiçãodenumerososdeputadosneojacobinos.GolpedeEstadodosConselhoscontraoDiretório,porúltimo,nosdias29e30prairialanoVII(17-18dejunhode1799):revanchedogolpedeEstadoprecedente. A balança pende doravante para a esquerda: reabertura dosclubes, ressurreição dos jornais jacobinos, confisco forçado de 100milhõesdosricos,votodeuma“leidereféns”,quepermitedeportarquatroparentesdenobresoudeemigradosemcasodeassassinatodefuncionáriodogovernooude adquirente debensnacionais.Essemovimentogovernamental para aesquerdadeve-seaumanovaondarealista,departicularamplitude.OOestetornouapegaremarmas,eumainsurreiçãoexplodiunaregiãodeToulouse.

Desprovidodeapoiossólidosnopaís,movendo-seemumaespéciedevaziopolítico,oregimedoDiretóriorevelou-seincapazdereconciliarasduasmetadesdaFrança.3 .Os frutosdavitória –A situação nas fronteiras estámais favorável, o queexplicaarelativalongevidadedoregime.

As vitórias do ano II desfizeram a coalizão. Prússia, Holanda e Espanharesolveramfazerumtratado(abril-julhode1795).OssucessosdeBonapartenaItáliaobrigaramaÁustriaaassinarapazdecampoFormio(17deoutubrode 1797). Só a Inglaterra permaneceu na guerra. Dos dois aspectos da“Grande nação” revolucionária – o da libertação e o da exploração –, oprimeiro sequer ainda servia de abrigo para o segundo. A Europa viuflorescerem as “repúblicas-irmãs”, aliadas da República francesa, comconstituiçõescalcadasnasua:RepúblicaBatava (Holanda),Cisalpina (Itáliado Norte), Liguriana (Gênova), depois as Repúblicas Romana, Helvética,Partenopéia(Nápoles)...

Quanto à expediçãodoEgito, elapermitiu afastarogeneralBonaparte, umoficialdotadodemaisparanãoconstituirumperigo.Aausênciadovencedorda Itália é observada no momento em que se forma a segunda coalizão,sempre em torno da Inglaterra.ARepública que, depois deAvignon e doComtat (1791),daSavóia (1792),deNice (1793),daBélgica (1793-1795),de Maestricht e da Flandres holandesa (1795), de Montbéliard (1796) eteoricamente da margem esquerda do Reno (1797), anexa Mulhouse eGenebra(1798)emultiplicaosEstadossatélitesinquietamaisdoquenuncaaEuropa.Apósumasériedederrotasatrozes,osfrancesestêmqueevacuaraItália,mas as querelas entre aliados, os sucessos de Brune sobre os anglo-russosnaHolandaeavitóriadeMassénasobreosrussosemZurique(25-26desetembrode1799)permitemreverterprovisoriamenteasituação.

TendoemvistaoimpasseemquesedebateoDiretório,cujaquedaiminenteé prevista por muitos, a arbitragem de ummilitar prestigioso é cada vez maisinvocada.SeráBrune?Masséna?ÉapenasotempodeBonaparteabandonarseuexércitonoEgitoevoltarparaaFrança.

OssucessosmilitaresoudiplomáticosdoDiretórionãodevemmascararsuaimpressionantesériedefracassos.Alémdeinstituiçõessólidas, faltavaaogrupo“dosqueestavamdesaída”,quecontrolavaoregimeemseuprópriobenefício,umelementoessencial:aconfiança.De1795a1799,ojogopolíticodesenrolou-seafastadodasrealidades,fatoconfirmadopeloavançodaabstençãoeleitoral.Aconfiança recuperada carregará o nome de um oficial de passado jacobino:Napoleão Bonaparte. “Cidadãos”, proclamarão os cônsules ao submeter aconstituição do ano VIII à aprovação popular, “a Revolução está atada aosprincípios que deram início a ela.Ela acabou.”Ogolpe deEstado de 18 e 19brumárioanoVIII(9-10denovembro)nãoéumgolpedeforçaentreoutros;ao

mesmo tempo em que dá a umaRevolução aburguesada o ornamento que lhefalta, inaugura a verdadeira estabilização das principais conquistas de 1789.Napoleão, tão consciente das necessidades de longo prazo quanto das novasexigências, saberá levar em conta tanto umas quanto outras. Ultrapassando oAntigoeoNovodemaneiraquasedialética,osistemanapoleônico,herdeirodaRevolução,atéprovaemcontrário,impeliráaFrançaparaamodernidade.

99.Philippe-François-JosephLeBas(1762-1794):revolucionáriofrancês,fielatéofimaRobespierre,suicidou-secomumtirodepistola.(N.T.)100.Muscadin:sobaRevolução,nomedadoaosrealistasquesedistinguiamporsuaelegânciaelaborada.(N.T.)101. Osincroyables [inacreditáveis] eram jovens que, na época do Diretório,vestiam-se e falavam demaneira extravagante.Asmerveilleuses [maravilhosas]erammulhereseleganteseexcêntricasdamesmaépoca.(N.T.)102. Culto decadário e teofilantropia: sistemas filosóficos e religiosos deinspiraçãodeístaqueforammodaentre1796e1801emoposiçãoaocatolicismo.(N.T.)103.ObabouvismoeraadoutrinasocialdeGracchusBabeuf(1760-1797),quepreconizava a igualdade entre os homens e o trabalho obrigatório para todos.(N.T.)

CONCLUSÃO

Adistorçãoentreoradicalismodoprojetorevolucionárioeasituaçãodopaísem suas profundezas atirou a França do final do séculoXVIII emuma espiraltemerária. Em seus primórdios, o fluxo revolucionário alimentou-se de ondasdiversasquepermitiramfalar, emrelaçãoa1789,de“revoluções”noplural.Amaioriadaconstituinte,asmultidõesparisienses,asmassascamponesasmovem-se em tempos diferentes.A longo prazo, seus objetivos não podiam deixar dedivergir, a começar sobre a questão do liberalismo econômico, caro às elites,abominado pelos menos favorecidos.Ademais, na grande casa do Iluminismohaviadiversasmoradiasemuitasambigüidades.Ojogoideológico,ao interferirem importantes movimentos populares, acabou simplificado e enrijecido. Ajunção da questão política e da questão religiosa acabou dando à Revoluçãocontornosdeguerrareligiosa, transformandoemsonhoutópicoabuscadeumaunidadeque também fosseunanimidade.Resultou emum imenso traumatismo,alternandoalutadosrealistasedosrepublicanoscomosconflitosdaIgrejaedoEstado, ou mesmo a guerra do ensino, sem falar – localmente – de velhasrivalidades travestidas de ideologia.A opinião pública assim dividida produziuumaexcepcionalinstabilidadepolíticaeconstitucional;pordoisséculos,nemosregimesmais sistemáticos (impérios,Monarquia de Julho104), nem as “uniõessagradas”conseguiramreduzirasfraturas.

Emanosrecentes,muitascoisasmudaram.Aalternânciapolíticade1981,porexemplo, provocou uma reviravolta na esquerda a respeito da questãoconstitucionalenodomínioeconômico.Taismodificaçõespermitiramàmaioriados franceses,naocasiãodobicentenáriodaRevolução, reconciliar-secomsuahistória.

Umacertahistoriografiadita“dedireita”conseguiu,háalgumtempo,exporfatosdurantemuito tempo rejeitadosdo“balanço”daRevolução.Balançoque,semdúvida,ésombrioemdiversospontos.AsterríveisguerrasdaRevoluçãoedoimpério,defatoindissociáveis,resultaramemumsaldoterritorialpraticamentenulo.Asangriapraticadanapopulação–cercade700milmortesresultantesdemassacreseguerrasentre1789e1799,900milemconseqüênciadascampanhasnapoleônicas–,emgrandepartenosegmentodejovensadultos,pesoubastantesobre o futuro demográfico do país, mesmo sem levar em conta qualquerconsideraçãohumanitária:oequivalentea5,5%dapopulação (emcomparação,foram3,5%em1914-1918duranteaPrimeiraGuerraMundial).

Alguns pontos permanecemmuito discutidos. Se não é certo que a Françaestivesse prestes a alcançar a Inglaterra em 1789, o balanço econômico do

período revolucionário é, ainda assim, negativo, incluindo, entre outros,fenômenosdedesindustrializaçãoedesastredocomérciomarítimoecolonial.Arecuperaçãonapoleônicafoiinsuficiente:em1815,expandira-seadistânciaentreaFrançaeumaInglaterradefinitivamentedonadosmaresedominanteemtodososcircuitoscomerciais.Arevoluçãojurídicacontribuiuparaliberar–àscustasdeuma miséria notoriamente maior para os mais desfavorecidos – certas forçasantigamente obstruídas; porém, não se pode considerar modernizador odesenvolvimento considerável da pequena propriedade agrícola induzido pelaRevolução.Ademais, o período revolucionário e imperial parece ter enraizadocomportamentos pouco favoráveis ao desenvolvimento econômico, a começarpelo gosto excessivo das elites pelas carreiras na administração pública e doexército.Emesmoque,paraos“notáveis”donovoséculo,ocritériododinheirotenhasubstituídoodoprivilégio,odinheiroseráinvestidoaindapormuitotemponaterra.

Deumpontodevistatotalmentediferente,porémcomplementar,édesenotaro fracasso daRevolução em realizar seu projeto político e social.Até 1875, aFrançacontinuousendoumpaísdemonarquiamaisoumenoslimitada,maisoumenos liberal. O tecido social, emboramodificado pelo choque revolucionárioque assegurouuma certa redistribuiçãodas cartas, ainda estava entranhado, emboa parte, numa forma de continuidade com oAntigo Regime, e será precisoesperar os anos 1880, ou mesmo a Primeira Guerra Mundial, para vê-lo sedesfazerdemaneirasensível.OspaísesdaEuropaocidentaltenderamasealinharsegundoummodelopolítico-socialbastantehomogêneo,adespeitodealgumasdiferenças,eaFrançanãoefetuousuamodernizaçãomuitomaisdepressadoqueasgrandesmonarquiasparlamentaresoulimitadas(aindadominantesemnúmeroeempoderem1914).

Ossucessosdoperíodonãodevem,contudo,sersubestimados.Paraalémdecertoslugares-comuns,obalançocientíficodaRevoluçãonãoénegligenciável.Aadoçãodeumsistemadecimaluniformedepesosemedidasfoiumareformadealcance considerável a longo prazo. Em matéria administrativa, a divisãodepartamentalfoiumsucessohistóricoquecimentouahomogeneidadeterritorialdopaís.Damesma forma, a lei Jourdan-Delbrel (5 de setembrode1798), queestabeleceu o alistamento “universal e obrigatório”, reforçou o caráter nacionaldasforçasarmadas.Emcompensação,pode-sesermaisreservadoemrelaçãoaosaportesartísticos–essencialmentepopulares(imaginária,pratospintados)–quenão chegama compensar as destruições.Cadapessoa completará, assim, a seugosto, a lista de pontos negativos e positivos, ou avaliará, por exemplo, aapreensão revolucionária da questão educativa ou da questão social, de acordocomopadrãodasintençõesourealizações,masoessencialtalvezestejaemoutro

lugar.Semdúvida,aRevoluçãonãosoubeencontrarumaexpressãopolíticaesocial

estável,masoAntigoRegimepareciaincapaz,em1789,deprocederàrenovaçãoque se impunha; a ruptura revolucionária constituiu um momento dialético naelaboraçãodeumasíntese,consulareimperial;talruptura,aocasaraspectosdoantigoedonovoregime,ensejaráonascimento,emváriosdomíniosimportantes(essencialmenteoCódigoCivileaorganizaçãoadministrativa,comseureversoburocrático),defórmulascomasquaisaFrançaviveráporumséculoemeio.

Ao lado desse legado indireto, há as páginas heróicas e o título invejado,adquiridopelaFrançamoderna,de“paísdosdireitosdohomem”.Aviolaçãodosdireitos proclamados, de modo muitas vezes atroz, não chega a manchar agrandezadogestodeclaratóriode1789apesardesuasfraquezas,insuficiênciaseambigüidades.Semdúvida,foiporcausadaRevoluçãoqueaEuropa,apesardaexpansão das idéias francesas e damarca doCódigoNapoleão, deixou de serculturalmente francesa como fora no século XVIII, mas foi por causa delatambém que o mundo contemporâneo, de uma certa maneira, tornou-se maisfrancêsdoqueteriasidosem1789.104.Monarquia de Julho (1830-1848): o duque de Orléans torna-se rei sob onomedeLouis-PhilippeI.Apóssuadeposiçãoemfevereirode1848,instalou-sea2ªRepública.(N.T.)