2
Reza maldita Por: Guilherme Nery Atem Vai, vai pela rua imunda, como que de calcanhares invertidos – busca tuas sandálias de couro cru, que lamentam teus maus passos. Não chuta o lixo – te mistura a ele, para ver se aprendes a dor de jogar fora. Vai capengando pela sombra, que a tua alma já está nas trevas. Dobra, dobra aquela esquina menos torta que a tua alma – e faz da tua sina menos morta que a tua calma. Não olha torto – te adere ao submundo, para ver se te arrependes de não tê- lo praticado antes. Dobra mancando das duas pernas, que a tua alma já é manca de nascença. Sai, sai dessa vida reta e ensolarada, que te renega as insanidades, querendo fazer-te mais amável. Ora pelos teus demônios – te fere com as navalhas da maldade, para ver se tu dependes de outros choros de outras gentes. Sai correndo de costas, que a tua alma já te virou a cara. Foge, foge de todo bêco – que todo bêco nasceu sem portas, sendo a encruzilhada das possibilidades mortas. Fabrica os teus ódios – te embebeda deles, para ver se um dia entendes a paixão que te ignora. Foge de joelhos pelo bêco, para ver se te acostumas a implorar por quem te adora. Joga, joga a tua sorte fora, que não demora a chamar-te a noite a atravessá-la de um lado ao outro. Não finge de morto – te esquece do cansaço e da preguiça, para ver se alguma vez a tua sorte volta. Joga a tua alma para o alto, que a tua alma vai cair toda espalhada. Pede, pede ao teu destino surdo que te conceda mais alguns instantes, para que possas, de agora em diante, fazer- te aquilo que não eras antes. Não assopra nos teus sonhos – te aquece neles, para ver se ficas prenhe de outros mundos invividos. Pede a Hipno por teus medos, para ver se te deslumbras de saudade do que já não veio. Chora, chora pelos cotovelos, que, a partir de agora, os teus apelos serão sentidos pelo mundo inteiro – que o mundo inteiro é das carpideiras. Olha para as tuas mãos – te agarra a elas, para ver se te desprendes de teus pais. Chora de alegria e de tristeza, que a manhã, que não demora, vai chegar dura de tão branca e feia.

Reza Maldita

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Reza Maldita

Reza maldita

Por: Guilherme Nery Atem

Vai, vai pela rua imunda, como que de calcanhares invertidos – busca tuas sandálias de couro cru, que lamentam teus maus passos. Não chuta o lixo – te mistura a ele, para ver se aprendes a dor de jogar fora. Vai capengando pela sombra, que a tua alma já está nas trevas.

Dobra, dobra aquela esquina menos torta que a tua alma – e faz da tua sina menos morta que a tua calma. Não olha torto – te adere ao submundo, para ver se te arrependes de não tê-lo praticado antes. Dobra mancando das duas pernas, que a tua alma já é manca de nascença.

Sai, sai dessa vida reta e ensolarada, que te renega as insanidades, querendo fazer-te mais amável. Ora pelos teus demônios – te fere com as navalhas da maldade, para ver se tu dependes de outros choros de outras gentes. Sai correndo de costas, que a tua alma já te virou a cara.

Foge, foge de todo bêco – que todo bêco nasceu sem portas, sendo a encruzilhada das possibilidades mortas. Fabrica os teus ódios – te embebeda deles, para ver se um dia entendes a paixão que te ignora. Foge de joelhos pelo bêco, para ver se te acostumas a implorar por quem te adora.

Joga, joga a tua sorte fora, que não demora a chamar-te a noite a atravessá-la de um lado ao outro. Não finge de morto – te esquece do cansaço e da preguiça, para ver se alguma vez a tua sorte volta. Joga a tua alma para o alto, que a tua alma vai cair toda espalhada.

Pede, pede ao teu destino surdo que te conceda mais alguns instantes, para que possas, de agora em diante, fazer-te aquilo que não eras antes. Não assopra nos teus sonhos – te aquece neles, para ver se ficas prenhe de outros mundos invividos. Pede a Hipno por teus medos, para ver se te deslumbras de saudade do que já não veio.

Chora, chora pelos cotovelos, que, a partir de agora, os teus apelos serão sentidos pelo mundo inteiro – que o mundo inteiro é das carpideiras. Olha para as tuas mãos – te agarra a elas, para ver se te desprendes de teus pais. Chora de alegria e de tristeza, que a manhã, que não demora, vai chegar dura de tão branca e feia.

Berra, berra aos quatro ventos, que pelos quatro cantos do Planeta, que pelos mais belos cantos do Planeta, a História Mundial será obrigada a dar-te ouvidos. Pisca teus ouvidos – te empanturras do concerto das cidades, para ver se imitas o cacoete dessas tardes. Berra sem razão ou piedade, que a garganta exercitada se acostuma às alturas belas.

Dorme, dorme esse sono lento, esse simulacro de morte do inconsciente, que te refaz e se rejubila intenso, e te aloca noutras partes tensas. Trabalha os teus ócios – te desgastas com o Nada, para ver se nadificas teus fantasmas mais horrendos. Dorme de sapato a noite inteira, que talvez, dessa maneira, possas pular melhor de sonho em sonho.

Acorda, acorda e desce desse sono da Razão, que te degenera, e vem deitar-te naquilo que te regenera, a imaginação, que é a única coisa que te resta. Falha nos teus planos – te intromete sem alarde noutros planos, para ver se cedo ou tarde tu te emendas e desforra. Acorda dessa vida de ilusão, que a única coisa que te resta é tudo aquilo que mais detestas.