Richard Sennet

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Por uma etnografia das prticas de consumo Valria Brandini 1 RESUMO Este artigo sugere uma reflexo terica acerca da etnografia como mtodo para pesquisas de consumo e desenvolvimento de estratgias de produo de bens. O universo do consumo, e, em especial, do consumo de moda, representa hoje um sistema de produo de significaes (como quer Jean Baudrillard) e comportamentos gerados pela racionalidade econmica (como vemos em Pierre Bourdieu) que so evidenciados por meio do mercado como processo ritual. Assim, a etnografia do consumo e a antropologia empresarial podem ser vistas como estratgia para empresas. Palavras-chave: Consumo; etnografia; comunicao. ABSTRACT This article suggests a theoretical reflection about ethnography as a method for research on consumption and the development of strategies of goods production. The universe of consumption, and, specially, fashion consumption, represents nowadays a system of significations (as said by Jean Baudrillard) and behavior generated by the economic rationality (as we have seen in Pierre Bourdieu) that are evidentiated by the market as a ritual process. So, ethnography of consumption, and anthropology of business can be seen as business strategies.

Keywords: Consumption; ethnography; communication. 1 Antroploga formada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); mestre em Publicidade e Propaganda pela Universidade de So Paulo (USP); doutora em Cincias da Comunicao pela USP em convnio com a Universit La Sapienza (Roma); ps-doutoranda em Antropologia, na rea de Culturas Empresariais da Unicamp. Docente da Universidade Estadual de Londrina (UEL), professora colaboradora da Unicamp. Consultora empresarial especializada em etnografia do consumo.e s c o l a s u p e r i o r d e p r o pa g a n d a e m a r k e t i n g artigo 154 por uma etnografia das prticas de consumo

Introduo No artigo tica e antropologia, Sergio Paulo Rouanet (1990) atenta para a necessidade de se converter, tambm em reflexo antropolgica, a prpria cultura do antroplogo, o universo das grandes metrpoles, da sociedade de consumo, da vivncia urbana capitalista, e no reconhecer, como legtimo, apenas os universos culturais perifricos das ditas sociedades complexas que compreendem favelas, marginalidade e minorias. 2 Esse argumento recorrente ao fato de que os estudos dessas minorias no contexto urbano acabam por tornar o objeto de estudo da antropologia das sociedades complexas o mesmo objeto caracterstico da antropologia clssica.

A resistncia ainda encontrada entre pesquisadores do campo da antropologia em converter classes e grupos sociais outros que no os marginais em objeto de reflexo antropolgica limita as possibilidades da antropologia em desenvolver o que o objetivo dessa cincia, o estudo da diferena. Pois esta resistncia implica a dificuldade por vezes enfrentada em converter o ns em outro, isto , transformar a cultura vivenciada pelo antroplogo em objeto de reflexo antropolgica, o que tambm remete a questes ideolgicas e dificuldade de se escapar de um padro marxista de definio de objeto de estudo. Com isso a antropologia perde a possibilidade de estudar as determinantes fundamentais da cosmologia das ditas sociedades complexas, ou seja, as relaes de poder, instituies, rituais, valores e mitos que compreendem a grande rede de significados da metrpole capitalista contempornea, como o deslocamento progressivo das relaes de poder do local para o global (empresas multinacionais), a desterritorializao de elementos culturais e a ressignificao destes no processo de globalizao de informaes, o que rearticula estruturas de pensamento na coletividade urbana e a lgica do consumo como verdadeira instituio por 2 Esta sucinta reflexo acerca da etnografia como ferramenta para desenvolvimento de estratgias para produo e consumo de bens simblicos parte das investigaes desenvolvidas em pesquisa de ps-doutorado, realizada na rea de Antropologia do Capitalismo, no Departamento de Antropologia da Unicamp. valria brandini 155

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meio da qual uns e outros se posicionam hierarquicamente e se identificam com grupos e classes sociais, ou se diferenciam deles. A questo desloca-se, sobretudo, necessidade de se desenvolver os processos de investigao e reflexo antropolgica junto a grupos, instituies e estruturas sociais hegemnicos que vivem no sistema da racionalidade econmica, pois estes produzem os elementos culturais que definem muito do que se observa como a cultura contempornea globalizada e sua rearticulao entre os diversos grupos culturais urbanos atualmente. Em Cultura e razo prtica, Marshall Sahlins (1979) defende a idia de que a sociedade capitalista ocidental, orientada pela racionalidade econmica, como que desprovida das dimenses culturais e do simblico, , na verdade, por si mesma, uma forma especfica de ordem cultural, pois o universo da produo e do consumo constituem, por meio de suas estruturas econmicas e sociais, produo simblica dessa sociedade. Vemos, portanto, que no apenas as sociedades ditas exticas so providas de sistemas de significao que orientam sua dinmica social, mas a dita racionalizao econmica engendra sistemas de valores que passam a ordenar a sociabilidade e tornam-se representveis por meio das atividades racionalizantes de produo e consumo de bens, produtos que, hoje em dia, so muito menos funcionais e muito mais representaes simblicas de estratos sociais e relaes verticais de poder, servindo ao antroplogo como bons para pensar a sociedade em que circulam. Se a economia rege a estrutura e as dinmicas sociais desses grupos,

por que no convert-la em reflexo antropolgica em suas esferas mais representativas a produo e o consumo que, como prticas verdadeiramente rituais das sociedades complexas, representam parte fundamental do sistema de representaes na sociedade capitalista? Podemos, portanto, argumentar que uma antropologia das sociedades complexas deva voltar seus esforos de investigao s estruturas determinantes de tais sociedades, e no periferia delas, de forma que uma etnografia das relaes capitalistas de produo e consumo constitui uma verdadeira etnografia das sociedades complexas, pois investiga e s c o l a s u p e r i o r d e p r o pa g a n d a e m a r k e t i n g artigo 156 por uma etnografia das prticas de consumo

no os resultados do sistema capitalista entre as minorias, mas a forma como esse sistema se constitui e se reproduz em suas esferas principais, pesquisando a maneira como sua dinmica racionalizante orienta as determinantes culturais e os sistemas simblicos dessas sociedades. Enfatizamos aqui a dimenso simblica do consumo como prtica de representao das estruturas de significao da sociedade capitalista. Consumir tornase, sob o ponto de vista antropolgico, verdadeira prtica ritual que representa a organizao social e o universo simblico dessas sociedades, pois, conforme Jean Baudrillard (1997: 206), o consumo um modo ativo de relao (no apenas com os objetos, mas com a coletividade e com o mundo), um modo de atividade sistemtica e de resposta global em que se funda todo o nosso sistema cultural [...]. O consumo, pelo fato de possuir um sentido, uma atividade de manipula-

o sistemtica de signos. Esse modo ativo de relao de que nos fala Baudrillard sugere que o consumo o deslocamento das relaes interpessoais para a representao delas prprias por meio dos objetos. O indivduo no consome a materialidade do produto (razo pela qual o aspecto funcional dos produtos de grandes marcas menos importante que seu valor de representao), mas os significados que, por intermdio do produto, geram um conluio social em torno de valores compartilhados pela sociedade capitalista. Marcas da cultura contempornea Entre diversas escolhas metodolgicas utilizadas por institutos de pesquisa como Ibope e Datafolha para se delimitar classes sociais em pesquisas sociolgicas, demogrficas e de mercado, uma das formas atualmente recorrentes no diz respeito delimitao de classe por renda, mas por hbitos de consumo. Isso porque, muitas vezes, os hbitos de consumo conseguem expressar, de forma mais pontual do que a renda de um indivduo, a qual grupo social este pertence, quais so os seus valores, as suas prticas cotidianas, sua maneira de ver o mundo e, por que no dizer, elementos de sua identidade sociocultural.valria brandini 157

c o m u n i c a o , m d i a e c o n s u m o s o pa u l o v o l . 4 n . 9 p. 1 5 3 - 1 6 9 mar.2007 artigo Na moderna sociedade industrial, a identidade sociocultural de um indivduo torna-se muitas vezes, conforme o antroplogo Massimo

Cannevacci (1999), poliidentidade. O autor defende a idia de que somos, hoje, multivduos, dada a pluralidade de grupos aos quais pertencemos e os traos culturais pluriidentitrios que absorvemos, os quais, como elementos culturais desterritorializados, nos lanam no cerne da modernidade-mundo, vivendo a fluidez cultural que consumimos e que nos consome velocidade da internet. Os hbitos de consumo nos definem, pois, tal qual a idia de LviStrauss de que os alimentos para certas civilizaes indgenas no so bons apenas para comer, mas para pensar, tambm no consumo no desfrutamos to-somente da funcionalidade dos objetos obtida no sistema de trocas, mas pensamos seu significado, absorvendo a essncia de valores que o objeto de consumo nos prov. Temos a emergncia do que Jean Baudrillard (1997: 197) caracteriza como a substituio da relao humana, viva e conflituosa, por uma relao personalizada nos objetos. Segundo o autor, no estgio de produo artesanal, os objetos refletem as necessidades na sua contingncia, na sua singularidade, ento o sistema de produo se adapta ao sistema das necessidades. Na era industrial, os objetos fabricados adquirem uma coerncia que vem da ordem tcnica e das estruturas econmicas. O sistema das necessidades torna-se menos coerente que o sistema dos objetos, e este impe coerncia e adquire poder de modelar uma civilizao. pela lgica estatutria do consumo que nos posicionamos em relao a uns e outros nas sociedades complexas. Em Para uma crtica da economia poltica do signo, Baudrillard (1983) chega a caracterizar o

consumo como uma instituio social coercitiva que determina os comportamentos antes mesmo de ser refletida pela conscincia dos autores sociais. Assim, o consumo deixa de ser uma gratificao individual generalizada para tornar-se um destino social que afeta certos grupos em oposio a outros. Portanto, pensemos que o consumo nos dias atuais serve menos ao usufruto da funcionalidade dos produtos e mais a uma ideologia embasada na lgica da diferenciao entre classes e grupos sociais. Consumi-e s c o l a s u p e r i o r d e p r o pa g andaemarketing artigo 158 por uma etnografia das prticas de consumo

mos como ritual de participao (mesmo que puramente psicolgica) em grupos aos quais desejamos pertencer e para nos diferenciar de outros, com os quais no desejamos ser ou parecer associados. Em meio a essa lgica sociocultural da racionalidade econmica, as marcas aparecem como verdadeiros totens das sociedades complexas, os quais o indivduo quer que o representem, pois sua significao social lhe atribui as caractersticas que deseja ter. A verdadeira funcionalidade social da marca a de representar posies hierrquicas entre os atores sociais na ps-modernidade. Tal qual o Kula, que ocorre entre os trobriandeses estudados por Malinowski, no qual o sistema de troca simblico de produtos serve como arcabouo para o sistema social de valores e estatuto dos aborgines, o consumo das marcas, embora no em sistema de troca, representa, em menores propores, os cdigos de valores e hierarquia de certas

classes sociais. A prpria lgica de criao de uma marca reflete a incorporao de valores e aspiraes de determinados grupos e classes sociais; mais que isso, certas marcas, como a italiana Diesel, buscam recriar em seu apelo de consumo a cosmologia da juventude de classes mais altas mundo afora, tendo, em seu discurso, a apresentao do planeta Diesel, tal qual uma terra dos sonhos, como a Ctara que o pintor Watteau concebeu para os mais belos e mais ricos na sociedade do sculo XIX na Europa. A grife italiana de propriedade de Renzo Rosso j colocara em suas propagandas um velrio com a tica do defunto sobre seus familiares como tema de campanha, e sugerira em outdoors pela Europa que a nova moda era beber urina, para, posteriormente, reagir catstrofe do 11 de setembro [de 2001] nos Estados Unidos com um conceito de paz, fantasia e harmonia, que mais parecia o universo dos contos de fada infantis. Bem-vindo ao planeta Diesel a saudao das telefonistas a quem liga para a central da empresa em Molvena, na Itlia. A idia da marca promover uma filosofia global, conforme diz Renzo Rosso: Ns da Diesel vemos o mundo como uma macrocultura nica sem fronteiras. A proposta da marca compreende, em muitos anncios, o planeta Terra valria brandini 159

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visto de cima, com o jargo O mundo segundo a Diesel, onde fronteiras nacionais desaparecem e a diversidade cultural aflora. Segundo Ted Polhemus, o grande trunfo da Diesel conceber, como marca, um mundo sem o ns e o eles, mas como um ns gigantesco que engloba a todos, perdendo-se a noo de alteridade. A Diesel acaba por expressar o grande discurso das marcas no novo milnio, de que a idia de globalizao passa a ser expressa por uma moda sem fronteiras na qual determinantes territoriais e tnicas perdem espao em prol da desterritorializao das grifes e da identidade sem limites que sua promessa de consumo. A idia de marca como um avatar da globalizao da cultura de consumo a chave para o posicionamento das grifes no mundo capitalista contemporneo, pois reflete a idia de que a identidade da marca transcende fronteiras ideolgicas, territoriais e culturais, e encontra consumidores que se identifiquem com sua proposta mundo afora, alm de buscar criar, por si s, o simulacro de uma subcultura com base na incorporao de signos, valores e ideologias apreciados pelos grupos juvenis mais abastados em vrios pases. Concorrendo pelo mesmo pblico-alvo, porm com estratgias diferentes, a marca italiana Gucci possui uma histria diferente da Diesel, mas atualmente luta pelo mesmo nicho de mercado o jovem consumidor de marcas de luxo. Fundada em 1906, como uma pequena loja de bolsas de couro para cavalheiros, na primeira metade do sculo XX, a Gucci tornou-se uma marca forte em produtos de couro, especialmente bolsas para damas.

Nos ltimos cinqenta anos, Gucci tornou-se sinnimo de status, expandindo a produo para o prt--porter e, mais recentemente, para a moda jovem. Contudo, foi nos ltimos dez anos que a marca, agora assinada pelo designer americano Tom Ford, posicionou-se como grife avant-garde para jovens consumidores de classe alta que buscam no apenas a irreverncia e a unicidade caractersticas da grife Diesel, mas um apelo de consumo baseado na tradicionalidade renovada pela atribuio de juventude. O consumidor Gucci um jovem rebelde, embora no abra mo de mostrar que bemnascido. Podemos pensar, por esse prisma, que as marcas e s c o l a s u p e r i o r d e p r o pa g andaemarketing artigo 160 por uma etnografia das prticas de consumo

constituem um verdadeiro sistema totmico de identificao e diferenciao de estratos, grupos sociais que se posicionam em relao a uns e outros na esfera social por meio das marcas que consomem e ostentam. Pequena gnese do capital simblico das marcas na sociedade capitalista Sob a viso de Richard Sennett (1982), o capitalismo industrial, j a partir do sculo XIX, pressionava a cultura pblica urbana privatizao, ao mesmo tempo que mistificava a vida material em pblico, especialmente em termos de roupas, em face da produo e distribuio em massa. Novas tecnologias de produo acompanhavam a tendncia da despersonalizao do indivduo por meio da uniformizao de sua imagem pblica, principalmente no traje masculino. A industrializao gerou tendncias massificao de padres. O

trabalhador se uniformizou para o novo universo do trabalho, e a produo em srie eliminou antigas marcas distintivas. Conforme essa padronizao aumentava, tornava-se reflexo do proletariado, gerando entre as classes mais abastadas uma paixo pela unicidade, pela exaltao de atributos de personalidade, que se concretizou pelo consumo e que se tornou evidente por meio da moda do absurdo e da confuso estilstica que imperou nas ltimas dcadas do sculo XIX. Portanto, h mais de um sculo e meio, o homem pblico na moderna sociedade ocidental vem sofrendo uma tendncia a tornar-se indiferenciado no incio do capitalismo industrial, por intermdio da confluncia da produo em massa e da homogeneizao da aparncia. Inicia-se ento, com o consumo, o ato de revestir coisas materiais com atributos ou associaes prprias personalidade ntima, o que Marx categorizava como fetichismo da mercadoria e, posteriormente, Baudrillard denominaria sistema dos objetos. No processo de racionalizao da ordem social por meio da economia e da tecnologia, o indivduo se desumaniza, e o seu produto (os bens produzidos pelo trabalho fsico) adquire caractersticas humanas, psicolgicas, e induz o homem a sua compra como forma de reumanizar-se valria brandini 161

c o m u n i c a o , m d i a e c o n s u m o s o pa u l o v o l . 4 n . 9 p. 1 5 3 - 1 6 9 mar.2007 artigo por meio de bens adquiridos. Surgem ento novos padres de consumo, e a moda torna-se cone deles por intermdio das marcas como diferenciais de status (Brandini 2003: 60-100).

Tem incio, assim, a busca por diferenciao mediante o contedo humanizado existente nos produtos que personalizam o indivduo pela forma de sua composio indumentria: as marcas. Para Sennet, o isolamento e a impessoalidade em meio ao espao pblico e a nfase emergente nas transaes psicolgicas se complementam. A proteo da vigilncia de outrem por meio do isolamento, em relao esfera pblica, compensada com a exposio supervalorizada para aqueles com quem se deseja fazer contato em eventos sociais variados. Podemos pensar que essa exposio caracterizada por mscaras sociais, por meio das quais as pessoas se representam na rua (esfera pblica), e muito do que so tais mscaras sociais constituram-se pela composio indumentria as marcas de moda em ascenso. As aparies em pblico, com seu carter mistificador, tinham de ser levadas a srio, pois poderiam gerar indcios da pessoa oculta por trs da mscara, ou o eu por debaixo da roupa. Temos como exemplo dessa dicotomia entre pblico e privado a composio indumentria usada na vida pblica na era vitoriana, poca em que o corpo era recoberto, escondido, apertado em roupas escuras que buscavam negar e reprimir a sexualidade, em contraposio s roupas de dormir usadas na mesma poca na vida privada, caracterizadas por amplas camisolas claras e confortveis que permitiam a liberdade do corpo. Sennett salienta que essas mudanas, sinais gritantes de uma vida pessoal desmedida e de uma vida pblica esvaziada, ficaram por muito tempo incubadas, e so resultantes de uma mudana que comeou com a queda do Antigo Regime e com a formao de uma nova cultura urbana, secular e capitalista.

Quando emergem as questes e preocupaes em torno do eu em exposio, a psicologia ganha terreno e a vida pblica torna-se um espao onde se tenta desvendar o eu oculto dos annimos em meio multido, por meio de pistas, traos ou at pequenos deslizes que possam revelar a personalidade do indivduo, como pequenos detalhes de suas roupas, ou a utilizao destes ou daqueles signos de moda.e s c o l a s u p e r i o r d e p r o pa g andaemarketing artigo 162 por uma etnografia das prticas de consumo

Se na era anterior Revoluo Industrial as formas de exposio na vida pblica revelavam a posio social ocupada pelo indivduo, sendo a roupa um referencial do status social denotado por uma pessoa (j que roupa e estilo se ancoravam na lgica da tradio), a partir do sculo XIX, com a emergncia dos estudos psicolgicos, em meio s posturas repressivas da era vitoriana, as pessoas passaram a acreditar que suas roupas, seus gestos, seus gostos revelavam no mais sua origem social, mas sua personalidade. O individual se sobrepe ao coletivo, assim como a vida privada torna-se mais segura que a vida pblica. A secularizao atribuiu todo um novo estatuto simblico ao indivduo, uma mistificao das caractersticas humanas que se acredita estarem presentes nos objetos, nas roupas, nos usos e costumes do sujeito. Ela fez com que a imagem, a composio indumentria e os pequenos detalhes da roupa ou dos produtos consumidos caracterizassem uma exposio involuntria das emoes, revelando o eu que no se expe abertamente na vida pblica.

Essa mistificao em torno da imagem como reveladora da personalidade criou um novo estatuto para as marcas emergentes, a crena na subjetividade revelada na imagem, na roupa. Com a emergncia da problemtica do eu no sculo XIX (a exemplo das descobertas de Freud), em decorrncia da diviso da vida urbana em esfera pblica/ esfera privada, o estatuto da moda assume novas dimenses, tornandose instrumento da busca narcisista por auto-satisfao, personalizao e individualizao crescente. O indivduo agora revestido pela imagem pblica; esta imagem construda com base na moda, que se torna referncia do sexo, do prazer, da auto-afirmao, e confunde-se com o que significa o indivduo em si, gerando uma despersonalizao dos contedos internos deste e a concepo de que as pessoas so o que vestem; em esfera pblica, as pessoas so sua imagem as marcas que vestem. Ainda nos dias de hoje, a imagem pblica determinante de referencial de status, e a forma de representao simblica da ordem social que teve incio com as primeiras marcas do sculo XIX ainda continua preponderante.valria brandini 163

c o m u n i c a o , m d i a e c o n s u m o s o pa u l o v o l . 4 n . 9 p. 1 5 3 - 1 6 9 mar.2007 artigo O consumo como processo ritual a sociedade consome a si mesma Embora no concordemos em todos os aspectos com o pensamento de

Jean Baudrillard acerca da moderna sociedade de consumo, dado o carter excessivamente fantasioso, misgino e preconceituoso de muitas de suas inferncias, a conceituao do autor sobre o estatuto do objeto e do consumo como mediao das relaes na sociedade atual nos parece muito coerente para pensarmos o objeto de estudo em questo as marcas sob o ponto de vista de sua estrutura de significao na sociedade capitalista. A idia de que o que consumido nunca so os objetos, os produtos, as marcas, mas a relao entre indivduos que passa a ser representada pela dinmica de consumo que mitifica produtos e ritualiza relaes de poder e hierarquias sociais, o ponto-chave da teoria de Baudrillard, que aqui utilizamos para reflexo antropolgica acerca das marcas. Conforme o autor (1997: 207): Assim como as necessidades, os sentimentos, a cultura, o saber, todas as foras prprias do homem acham-se integradas como mercadoria na ordem de produo e se materializam em foras produtivas para serem vendidas, hoje em dia todos os desejos, os projetos, as exigncias, todas as paixes e todas as relaes abstratizam-se (e materializam-se) em signos e em objetos para serem compradas e consumidas. nessa personalizao dos objetos que as marcas reproduzem por meio do valor atribudo de consumo aos produtos as estruturas de significao das classes consumidoras hegemnicas. Ao consumir produtos de uma grife, a classe social consome-se a si mesma, como um ritual em que os valores consensualmente aceitos pelo grupo so materializados na marca e compartilhados na compra e no uso dos produtos.

Com base nessa lgica do consumo como processo ritual que podemos pensar as marcas e os produtos de consumo como cones de representao de dada ordem social; no caso das grifes de luxo, da ordem economicamente dominante. A satisfao das necessidades que aparece como corolrio do consumo nos leva a pensar, portanto, que essas necessidades no dizem respeito funo do produto, mas ao posicionamento e s c o l a s u p e r i o r d e p r o pa g a n d a e m a r k e t i n g artigo 164 por uma etnografia das prticas de consumo

que o consumo de certas marcas atribui ao indivduo na hierarquia social por meio da ordem econmica. Conforme Gilberto Velho, em Projeto e metamorfose... (2003: 63), Cultura um conceito que s existe a partir da constatao da diferena entre ns e os outros. Implica confirmao da existncia de modos distintos de construo social da realidade com a produo de padres, normas que contrastam sociedades particulares no tempo e espao. Podemos ento pensar que a racionalidade econmica engendra a constituio de uma cultura de consumo que reproduz em suas estruturas de significao a ordenao interna da economia capitalista, e as relaes entre o capital simblico dos produtos representadas nas formas de consumo so to determinantes quanto as relaes de parentesco entre as sociedades ditas primitivas ou exticas. Caracterizando-se o entendimento de uma cultura em seus prprios termos e interpretando a realidade observada com base no relativismo cultural, por que no pensar, num sentido mais estrito, tambm numa cultura do consumo, orientada com base na ordenao social gerada pelo

universo simblico das marcas e produtos? O planeta Diesel, chave da apresentao da marca mencionada, busca pela iluso publicitria reunir, em torno de uma campanha, os elementos culturais e cdigos de valores que so compartilhados pelos grupos sociais que consomem seus produtos. A cultura do luxo vivenciada na ordem social das classes que consomem essas marcas (grifes de luxo) acaba por ter os referenciais simblicos das estruturas de significado representadas nos atributos de valor de troca dos produtos a lgica da diferenciao incutida no consumo de que nos fala Baudrillard (1995) acaba por ser utilizada no mercado do luxo como forma de movimentar a estrutura econmica. Concluso Da antropologia como estratgia para posicionamento de marcas e desenvolvimento de produtos Analisando o consumo como um processo ritual e as marcas como verdadeiros avatares na contemporaneidade, no por acaso que no univer-valria brandini 165

c o m u n i c a o , m d i a e c o n s u m o s o pa u l o v o l . 4 n . 9 p. 1 5 3 - 1 6 9 mar.2007 artigo so corporativo cada vez mais antroplogos tm sido convocados a ajudar as empresas a entender o consumidor o conhecimento antropolgico tem sido a ferramenta mais inovadora e eficaz para se gerar estratgias na conquista e fidelizao de consumidores. Grandes marcas como Coca-Cola, Unilever e LOral j contam com

esses profissionais no seu time de marqueteiros. Em sua maioria, as pesquisas feitas at hoje so muito esquematizadas e simplificadas. preciso aprofundar mais o conhecimento sobre o consumidor. S assim as empresas conseguiro se posicionar melhor, defende Gisela Taschner, sociloga e professora da Fundao Getlio Vargas (FGV). 3 Junto com os gestores de marca, esses profissionais esto fazendo as empresas encararem o mercado com outros olhos. Uma das alternativas mais comuns, por exemplo, segmentar os consumidores conforme o seu estilo de vida, e no sua idade, renda, sexo etc. estratgia em que o conhecimento antropolgico a chave. A metodologia de pesquisa utilizada para essas empresas a mesma utilizada por antroplogos desde que Bronislaw Malinowski viveu entre os aborgines das ilhas Trobiand a chamada observao participante, utilizada por nove entre dez etngrafos. Esse mtodo pode minimizar, no campo de pesquisas desenvolvidas para muitas empresas, o efeito de distoro ou parcialidade geralmente observado em pesquisas de focus group. No caso da grife Colcci, a observao participante foi utilizada como instrumento de pesquisa junto ao grupo consumidor escolhido, de forma que os observadores inseriram-se nos grupos compartilhando sua vivncia cotidiana, seus hbitos de trabalho, estudo e lazer, literalmente andando nos sapatos do outro, de maneira a compreender a totalidade da cultura daquele grupo assim como suas peculiaridades e caractersticas

principais, as quais s poderiam ser compreendidas num estudo de imerso cultural e descrio densa. O resultado superou a expectativa. Em um ano a Colcci se tornou a grande coqueluche no segmento de consumidores desejado, e o reposicionamento da marca, desenvolvido pelo mtodo 3 Apud Mller 2004.e s c o l a s u p e r i o r d e p r o pa g a n d a e m a r k e t i n g artigo 166 por uma etnografia das prticas de consumo

antropolgico, provou sua eficincia para alm das expectativas. Detalhe: toda a mudana foi levada a cabo sem uma nica pesquisa de mercado. Atualmente, antroplogos especializados em culturas de consumo e tendncias empresariais utilizam para desenvolvimento e posicionamento de marcas, em vez de pesquisas de monitoramento de trends (ou trendset, como conhecido), pesquisas de mindset (nas quais o que analisado so as diferentes situaes em momentos distintos da vida, do prprio dia-a-dia); assim, analisa-se o contexto e sua influncia nas escolhas feitas pelo consumidor. A pesquisa etnogrfica aplicada visa, nesse caso, com os resultados, desenvolver estratgias de comunicao publicitria e posicionamento de marca para as empresas. No universo globalizado, os estilos de vida so fluidos, portanto um mesmo consumidor pode participar de diferentes e, por vezes, antagnicos grupos, culturas e atividades ao mesmo tempo, dependendo do momento de trabalho, lazer ou educao em sua vida cotidiana. A mesma pessoa pode ter diferentes preferncias de consumo dependendo do momento em que ela se encontrar. Uma executiva bem-sucedida pode consumir uma caneta Mont Blanc e pasta Louis Vuitton

e tambm consumir, num mesmo dia, um vestido Doc Dog, colares e pulseiras Guerreiro e botas da Galeria Ouro Fino, alm de artigos Salomom, para fazer trilha nos fins de semana, e cristais Bacar para sua sala de estar. Essas sutis, contudo poderosamente influenciadoras, caractersticas observadas no universo do consumo de bens simblicos certamente no podem ser apreendidas por metodologias ou pesquisas de mercado ortodoxas, necessitando de uma construo metodolgica adequada investigao de um objeto que , sobretudo, constitudo por razes e comportamentos antropologicamente orientados. Assim, a etnografia como mtodo e a anlise antropolgica como perspectiva de leitura da realidade observada podem ser tomadas como uma das mais coerentes e frutferas opes para anlise de prticas de consumo e leitura de cenrios, permitindo portanto a criao de estratgias de posicionamento de marcas e desenvolvimento de produto com uma possibilidade sensivelmente maior de sucesso no mercado.valria brandini 167

c o m u n i c a o , m d i a e c o n s u m o s o pa u l o v o l . 4 n . 9 p. 1 5 3 - 1 6 9 mar.2007 artigo Desta feita, a funo da antropologia, quando utilizada no posicionamento de marcas, promover por meio da etnografia como instrumento de pesquisa (substituindo as pesquisas convencionais de mercado) e da antropologia como ferramenta para gerar estratgias de desenvolvimento de produto a soluo de problemas corporativos, o posicionamento e a

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