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JOÃO ANATALINO HISTÓRIAS QUE A VIDA CONTA

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JOÃO ANATALINO

HISTÓRIAS QUE A VIDA CONTA

INTRODUÇÃO

João Anatalino

Metáforas, alegorias, parábolas, são figuras de linguagem que embutem mensagens de sabedoria ou de comando, cujo conteúdo, muitas vezes, a nossa mente consciente não filtra. E por essa razão acabam sendo alojadas em nossa mente inconsciente, gerando crenças, valores, superstições e outros produtos psíquicos que nem sempre condizem com a realidade que a pessoa vive, ou aquela em que ela quer viver. E por isso acabam sendo fonte de conflitos morais e incompetências comportamentais que produzem inadequação e infelicidade às pessoas que as hospedam. Essa é a razão de essa fórmula linguística ser a preferida pelos grandes mestres que construíram o espírito da humanidade, gerando as vertentes religiosas que alimentam o nosso substrato espiritual. Toda a doutrina de Jesus, ninguém negará isso, foi transmitida através de parábolas, metáforas e comparações, presentes em perícopes construídas com extraordinário lavor artístico. Da mesma forma encontraremos nos versos do Alcorão essas figuras de linguagem, trabalhadas com muita arte e engenho. E nas escrituras dos povos do Oriente, como também nos livros do Antigo Testamento, esse primor do simbolismo e da mensagem dirigida ao subconsciente é manipulado com admirável tecnologia e fantástica sutileza. Este livro enfeixa uma coletânea de histórias e estórias que vêm sendo contadas e recontadas ao longo da vida da humanidade. E a cada vez que elas são lembradas trazem uma nova visão de sabedoria que talvez não tenham sido notadas antes. Isso é porque elas, tenham acontecido ou não, sempre simbolizaram situações vividas por alguém e quando são postas em linguagem escrita, despertam emoções que estão, quase

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sempre, incubadas em nossa memória neurológica como lições, crenças, superstições ou mesmo conselhos que gostaríamos de ouvir em momentos em que a nossa sabedoria não consegue nos socorrer. Aqui o leitor encontrará várias metáforas, alegorias e fábulas já contadas por grandes autores como Esopo, os Imãos Grimm, La Fontaine e outros, bem como construções metalinguísticas originais criadas pelo autor, usando as técnicas da PNL. (Programação NeuroLinguística.). O objetivo desta coletânea é proporcionar ao leitor um momento de informação no qual crenças, padrões mentais e valores morais sejam focados, numa linguagem simples e mensageira, e possam ser motivo de reflexão, sem cansar nem causar constrangimentos de ordem pessoal. É, no fim das contas, uma leitura leve e fácil, para ser feita no trem, no ônibus, no banco de um parque, ou jardim, na cama ou qualquer lugar onde a nossa cabeça esteja aberta para receber mensagens positivas e fortalecedoras. A PNL, como se sabe, é uma disciplina que trabalha com o pressuposto de que o nosso cérebro é programado através de uma técnica semelhante á que se usa para programar um computador. Assim, tudo que conta é a informação que entra na nossa CPU. Se ela é boa, a tendência é que a nossa cabeça nos inspire úteis e eficientes ideias que nos levarão a bons resultados na vida. Se forem ruins o resultado será o reflexo delas. Como diz um pressuposto da PNL, no cérebro, se lixo entra é lixo que sai. Mas se a matéria prima é boa e o processo é consciente e bem planificado, o produto será sempre da melhor qualidade.

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João Anatalino

HISTÓRIAS QUE A VIDA CONTA

(POR JOÃO ANATALINO)

Histórias que a vida conta

OS ANDARILHOS

(conto zen)

Numa encruzilhada de caminho dois andarilhos se encontraram.

.― Quem és tu? ― perguntou o primeiro.―Alguém que caminha pelo mundo ―, respondeu o

segundo.―De onde vens?― Do norte, seguindo o vento.― O que tem acontecido lá?― Ah! Os passarinhos estão cantando, as flores

desabrochando, a chuva caindo, os arroios correndo para os rios, os rios para o mar...

― E agora, onde pensas que estás?― Nos campos do meio-dia.― Porque pensas assim?―Vejo abelhas e borboletas pousando de flor em flor, a luz

da manhã dançando nos lagos, o vento penteando a copa das árvores, as folhas caindo e seguindo as ondas que o pente do vento levanta...

― O que acontece no teu coração?― Mar, luar, calor, frio, solidão, uma criança que chora...― E tu perguntou o segundo ao primeiro: ― Quem és e

para onde vais?

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― Sou alguém que anda em busca de um porvir. Venho do sul e caminho para o norte e para o leste e o oeste ― respondeu o segundo.

― O que acontece lá de onde viestes? ― Gatos, leões, formigas, árvores, certidões de nascimento

e atestados de óbito, leite, cópulas, chuva, sol, palhaços e equilibristas, poeira e zumbidos...

― E onde pensas estar agora?― Nas montanhas da meia-noite.― Porque pensas assim?― Vejo o sol se esconder atrás da montanha, os pastores

recolherem os rebanhos, as aves retornarem aos seus ninhos...― O que acontece no teu coração?― Música, viagem, medo, fome, tristeza, alegria....

Assim terminou o diálogo dos dois andarilhos. Nesse justo momento, uma serpentezinha de anéis pretos acabara de botar um ovo, um tenro broto desabrochou no galho de uma árvore ressequida, uma mulher deu à luz um filho, uma gota de orvalho beijou uma flor e a natureza deu um grande e amplo sorriso para o sol que despontava no horizonte. 

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HUMILDADE E SABEDORIA

(conto zen)

“Discipulus potios magistral est” 

Esta é a história de dois monges do budismo zen, a quem chamaremos de Humildade e Sabedoria.

Humildade era um monge analfabeto, que por não ter aprendido a ler escrever, foi destacado para os serviços mais humildes que havia no mosteiro. Lavava as roupas dos outros monges, fazia a faxina, limpava as latrinas, ajudava na cozinha, podava as plantas do jardim. 

Trabalhava como um doido e mal tinha tempo para participar das orações rituais e dos outros serviços do templo. Dessa forma, não fazia progresso na rígida hierarquia do mosteiro e ninguém, nem ele mesmo, esperava que Humildade se tornasse, um dia, um verdadeiro monge.

Sabedoria, ao contrário, era o mais sábio monge que havia no mosteiro. Conhecia de cabo a rabo todos os ensinamentos e rituais. Sabia recitar de cor todos os sutras e mantras sagrados da religião, e era tido como o próximo venerando mestre do mosteiro.

Um dia, o venerando mestre do mosteiro pediu aos seus discípulos, como lição do dia, que escrevessem um pequeno

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poema para mostrar o que haviam aprendido acerca da doutrina do zen - budismo. Todos escreveram os seus poemas, e a maioria deles era de ótima qualidade, tanto que o venerando mestre mandou fazer uma coletânea com eles para servir de ensinamento aos noviços. 

Mas o poema mais esperado era o de Sabedoria, a quem se creditava ser o mais judicioso dos monges daquele mosteiro. Pois além de sábio e conhecedor profundo da doutrina zen, todos o tinham como um grande poeta. 

E ele escreveu um belo poema que dizia:

“ O corpo é a árvore da sabedoria,E o espírito é como um espelho brilhante.Devemos espaná-lo e limpá-lo sem cessarPara que nele jamais grude o pó.”

Todos os monges do mosteiro acharam o poema uma jóia de sabedoria. Pediram que fosse colocado no quadro de orações para que todos os dias pudessem lê-lo e recitá-lo como mantra. O próprio venerando mestre o felicitou pelo belo trabalho.

Humildade, sendo analfabeto, não conseguia ler o gabado poema. Então pediu a um monge que o lesse para ele. Assim que o colega terminou a leitura, ele pensou um pouco e disse: “Gostaria também de fazer um poema sobre esse tema. Poderias escrever o que estou pensando?”

Ele ditou e o colega escreveu:

“ O corpo não pode ser a árvore de sabedoriaNem o espírito um espelho brilhante.Pois se, na verdade, ambos são mera ilusão,

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Onde, neles, há de grudar o pó?”

Os demais monges, ao ler o curioso poema, ficaram perplexos. Inclusive o próprio Sabedoria, que se sentiu, em princípio, afrontado pela crítica latente que o poema do monge analfabeto veiculava. E com certa arrogância, arrancou o papel do quadro e o rasgou. 

Durante alguns dias Sabedoria meditou. Finalmente, uma noite, ele foi à cozinha, onde Humildade cozinhava o arroz para o jantar e perguntou a ele, com cara de poucos amigos: 

― Já cozinhastes o teu arroz? ―Sim ― respondeu Humildade, sem se alterar. ―Podes ver

que meu arroz é branco, mas precisa ser limpo ― completou, com um sorriso.

― Vem comigo ―, ordenou Sabedoria. E os dois monges sumiram na noite escura. Desde aquele

momento, ninguém, naquele mosteiro, os viu mais. 

Dez anos depois, Humildade voltou ao mosteiro para receber a sua ordenação como venerando mestre. Junto dele vinha Sabedoria como seu leal discípulo.

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AS TRÊS IDADES DO HOMEM

“Apresento-vos três transformações de espírito: como o espírito se transforma em camelo, o camelo em leão, e o leão, finalmente em criança.”

                                                                   Nietzsche

Quando Deus fez o homem, ele achou tão bom o que havia feito que resolveu dar-lhe muitos anos de vida. Está escrito nos livros sagrados que os primeiros homens viviam centenas de anos. Adão, Set, Enoc, Lamec, Matusalém, Noé, viveram até se cansar.  Mas logo alguns homens começaram a fazer tanta bobagem na vida que Deus arrependeu-se de tê-los criado. Isso também está escrito e não sou eu que estou inventando. Como Ele não tinha uma pinça com a qual pudesse tirar da terra somente os indivíduos malvados, e também os irresponsáveis, os mentirosos, os viciados, etc., nem tinha como separar uns dos outros, (pois o bem com mal tinham se misturado de tal forma que era impossível saber o que era um e o que era outro), o Criador achou mais fácil acabar com a criação inteira e começar tudo de novo. Fez como o cara que para se livrar da água suja, joga fora a bacia com o bebê dentro. Foi então que mandou cair um pavoroso dilúvio sobre a terra para afogar todo mundo.

Assim, quando optou por desenvolver uma nova criação a partir da família de Noé e dos animais que Ele decidiu salvar,

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(os pré-históricos não estavam entre eles porque eram muitos grandes e não cabiam na arca), Deus resolveu também que os novos homens não deviam viver tanto tempo quanto antes. Destarte, se eles se tornassem maus, eles logo morreriam por si mesmos e Ele não precisaria ter tanto trabalho para fazer tudo de novo.

Claro que Deus é eterno e um dia, para Ele, é como um milhão de anos. Mas convenhamos que mesmo para um Ser tão infenso assim às calendas, deve ser terrivelmente inconveniente ter que esperar centenas de anos para tirar naturalmente de circulação uns caras que só lhe dão dor de cabeça. As autoridades atuais que o digam. Quantos anos levariam para começar a fazer uma limpa nas favelas do Rio? E nos meios políticos? Será que um dia isso vai ser feito?

Foi por isso que Ele deu aos homens daquele tempo pouco mais de trinta anos de vida média. Essa informação consta dos anais antropológicos e não sou eu que estou inventando. Nos tempos dos antigos patriarcas que viveram depois do dilúvio, a vida média dos homens não passava dos trinta. Se passasse disso, ele logo era considerado um mau sujeito. Por isso aquele velho ditado: não confie em ninguém com mais de trinta anos. Dessa forma, as pessoas morriam logo e a criação ia se renovando sem muito trabalho nem muito estresse para o Criador.  

Quem não gostou dessa decisão foram os filhos de Noé. (Isso sou eu que estou inferindo por conta das minhas próprias observações).

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– Injustiça – clamaram eles. – Nossos antepassados viviam várias centenas de anos. Nós e nossos descendentes só temos direito apenas a umas poucas dezenas!

Foram reclamar com o Juiz Supremo, mas suas queixas resultaram infrutíferas. Deus já sabia com quem estava lidando e não queria mais correr riscos.

Foi então que os solertes filhos de Noé imaginaram um estratagema para aumentar o tempo de vida deles e de seus descendentes. Quando as águas baixaram, reuniram todos os animais que estavam na arca e exigiram uma parcela do tempo a que cada um tinha direito por conta do fato de lhes ter salvado a vida e garantido a perpetuação das suas espécies. Como os bichos não tinham alternativa – ou concordavam ou ficariam na arca e morreriam de fome – eles acederam.

Assim, os animais tiveram seu tempo médio de vida diminuído e os homens aumentaram os seus. Um cachorro que tinha direito a uns 20 anos ficou reduzido a 15. Bois, que poderiam viver trinta ou mais perderam uns dez. Galinhas e outras aves passaram de dez para cinco e assim por diante. Por conta dessa negociata os homens não voltaram à antiga média, por que os animais não eram tão longevos assim, mas conseguiram que alguns pudessem empatar pelo menos uns cento e poucos anos de vida.

É também por isso que o homem hoje vive cerca de trinta anos como ser humano e passa o resto da sua vida se comportando como animal. Ora é serpente, ora é pomba. Sucede também às vezes ser leão, para no momento seguinte tornar-se um carneiro. Nietzsche disse que ele sofre, ao longo da vida, três transformações. Primeiro para camelo, de camelo

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para leão, de leão para criança. Mas eu sustento que é muito mais. Ele, às vezes, também é macaco, lobo, cachorro, hiena e porco. Galinha igualmente. Isso quando não é verme, rato, lesma, cobra e outras formas da espécie.... E para compensar sucede ser ocasionalmente, também abelha,  borboleta, beija-flor, porque afinal nem tudo precisa ser tão feio..... 

O problema não é comportar-se como animal. Afinal, não existe maldade nem intencionalidade nos animais. Cada um é o que é segundo a sua natureza. São bons e belos naquilo para o qual são feitos. A questão é escolher o tipo de animal certo para a hora certa. Ás vezes é preciso ser simples como pombas e prudentes como serpentes. Ou ser valente como leões e mansos como cordeiros. Quando aprendemos a escolher a alternativa certa, não estamos vivendo uma vida emprestada. Estamos usando uma sabedoria acumulada em nossas células desde que a vida surgiu na primeira combinação protéica. E como disse o sábio eclesiástico, há tempo e lugar para tudo. 

Por isso não é tão importante o tempo que se vive, mas a intensidade com que se vive. Se ele for bem empregado, um dia será como um ano, um ano como um século. Por isso, uma vez mais, insistimos no conselho. Carpe diem.

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ASSIM CAMINHA A MEDIOCRIDADE

                              (Adaptado de um tema de Helen P. Buclker)

Carlinhos é um menino de quatro anos que está indo à escola pela primeira vez. A escola fica em um prédio imenso e ele se sente muito pequenino quando olha para ele. Mas sendo um menino esperto, logo descobre onde é a sala de aula, o banheiro, a sala de desenho e o parquinho. E assim que começa a andar sozinho pelo prédio ele já não lhe parece assim tão grande. O mundo fica pequeno quando nós aprendemos a andar nele  e dar nomes ás coisas que nele existem. 

No primeiro dia de aula ele e seus novos amigos foram levados para a sala de desenho e a professora disse para os alunos: ― Hoje vamos aprender a desenhar. 

“Oba!”, pensou Carlinhos. Afinal, desenhar era com ele mesmo. Ele sabia fazer muitos desenhos. Em casa ele desenhava árvores, sóis, luas, crianças brincando, rios correndo, cachorros e gatos, cadeiras, passarinhos, um monte de coisas tão bonitas que as pessoas ficavam admirando como um menino tão pequeno era capaz de fazer tudo aquilo. (Todas as crianças são. Os adultos é não prestam atenção nisso porque estão sempre preocupados com o que eles mesmos estão fazendo.)

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E logo ele pegou sua caixa de lápis e começou a desenhar um camelo. O camelo era bonito. Tinha uma baita corcova que parecia um pão-de-ló, pernas longas e finas como cabos de vassoura, rabo comprido como um chicote. Já estava começando a pintá-lo de um amarelo vivo quando chegou a professora e disse para ele: ― espera um pouco, Carlinhos. Eu vou dizer para você o que a gente vai desenhar.

Carlinhos parou o que estava fazendo e esperou. Então a professora falou: ― Vamos aprender a desenhar flores.

“Que bom,” pensou Carlinhos. Afinal, desenhar flores também era muito legal. Em casa ele desenhava muitas flores. Flores de pétalas curtas e compridas, finas e largas, com cores brancas, amarelas, verdes, abóbora, vermelhas, azuis, de tudo que era cor. E logo ele começou encher a folha com muitas e multicoloridas flores. 

A folha branca que ele rapidamente preenchia parecia um campo em plena primavera. E aí veio a professora de novo e disse: ―Espera aí, Carlinhos. Não é assim que é para fazer. Eu vou ensinar como é. ― É assim.

Então ela desenhou uma flor de pétalas curtas e vermelhas, com um caule verde e fininho. Carlinhos olhou para a flor da professora e pensou que as flores que ele desenhara eram muito mais bonitas, mas professora é professora. Por isso ele desenhou uma flor com um caule verde e bem fininho e depois pintou suas pétalas curtas com um vermelho bem vivo. 

Outro dia eles foram trabalhar com massinha. Essa era outra atividade que Carlinhos gostava muito. Ele sabia fazer soldadinhos, hominhos, bolas, cavalos, bicicletas, cadeiras, e até o cachimbo do papai ele conseguia modelar direitinho. 

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E ele começou imediatamente a fazer um monte de coisas. Então, mais uma vez, veio a professora e disse: 

― Calma, Carlinhos, você é muito apressado. Deixa primeiro eu ensinar como é que se faz. Ele desmanchou todas as coisas que fizera e esperou. 

―Vamos fazer uma xícara ― disse a professora.“Legal,” Carlinhos pensou. Ele sabia fazer xícaras muito

bonitas. Xícaras finas, compridas, largas, abauladas, retas, cônicas, de todos os tipos que a mamãe tinha em casa. E ele logo começou a fazer uma bela xícara com boca de sino e duas asas tão redondas quanto os aros da sua bicicleta . 

―Não, não, Carlinhos. Não é assim que se faz ― disse a professora. ― É assim.

E ela fez uma xícara reta como um cilindro e com uma asa só. Carlinhos olhou para a xícara da professora e pensou que a que ele fizera era muito mais bonita. Mas professora é professora e Carlinhos desmanchou a sua e fez uma igualzinha à dela.

E foi assim que Carlinhos aprendeu que devia esperar que alguém mais sabido que ele o ensinasse a fazer as coisas. Afinal, ele era uma criança e as crianças não devem ficar tomando iniciativa de nada.

No ano seguinte os pais de Carlinhos foram morar em outra cidade. E ele foi para outra escola. No primeiro dia de aula a professora começou dizendo: 

― Crianças, hoje vamos ver quem sabe desenhar. “Oba”, pensou Carlinhos. “Desenhar é muito legal.” E aí

todas as crianças pegaram seus lápis e folhas de papel e começaram a desenhar um monte de coisas. Cada um

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desenhando o quem bem entendia. Carlinhos ficou esperando. A professora, vendo que ele estava parado, perguntou: ―Carlinhos, você não gosta de desenhar? 

―Gosto, tia ― respondeu ― Mas desenhar o quê? ―Qualquer coisa ― respondeu a professora ― O que você

quiser.―E de que cor?―A cor que você achar mais bonita. ―Por que todo mundo não pode desenhar igual?

―perguntou Carlinhos.―Por que se todo mundo fizer igual, como vamos saber

quem fez o quê? ― respondeu a professora.Então Carlinhos desenhou uma flor de pétalas curtas e

vermelhas. E ela tinha um caule verde e fininho como uma perna de passarinho.

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O LEÃO APAIXONADO

“O amor é um contador que só sabe somar”-              Poeta anônimo 

Um leão apaixonou-se por uma jovem raposa e decidiu que fosse o que fosse, ia casar-se com ela. Enfrentando a oposição da sua própria espécie e a desconfiança de todos os animais da floresta, foi até a toca da raposa para pedir a mão dela em casamento.

O pai da jovem era um velho raposão muito esperto. Desconfiou logo das intenções do leão. 

― Quem garante que você não está querendo se casar com a minha filha somente para transformá-la num bom jantar? ― perguntou ele ao leão.

― Pode pedir a garantia que quiser ― disse o leão ― que eu a darei.

O velho raposo pensou por alguns minutos e por fim disse: ― Ah é? Eis então o que eu quero. Arranque todos os seus

dentes e as suas garras e traga-as para mim. Se você for capaz de fazer isso, eu deixo você se casar com a minha filha.

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Dito e feito. O leão foi a um dentista e com grande sofrimento mandou arrancar todos os dentes e as garras. Banguela, com as patas sangrando, inofensivo, insultado pelos seus companheiros e debochado por todos os animais da floresta, mas com a maior alegria no coração, lá foi ele entregar seus perigosos dentes e suas mortíferas garras ao velho raposão.

― Aqui estão os meus dentes e as minhas garras. Fiz o que me pediu como prova do meu amor por sua filha. Está satisfeito agora? Quando será a cerimônia do casamento? ―, perguntou o leão.

― Nunca ―, respondeu o velho raposão. ―Mas como? ― Choramingou o leão. ―Não fiz o que o

senhor pediu? Sou agora um leão inofensivo e desdentado. Não posso mais machucar ninguém. Fiz tudo por amor à sua filha. 

―Azar seu― disse o velho raposão. ― Agora você é só um leão banguela e sem garras. Não pode mais caçar. Como vai sustentar uma família? Como vai defendê-la dos perigos se nem garras tem? Um leão sem dentes e sem garras não é mais um leão. É uma aberração. Nessas condições, você é um sujeito sem identidade própria, e alguém assim não pode ser um bom marido para ninguém. Vá embora e não me aborreça mais.

― Isso é uma tremenda injustiça ― reclamou o leão. ― Eu fiz o que fiz por amor. E foi o senhor que pediu. 

― Esse é problema ―, disse o raposão. Você deveria saber que o verdadeiro Amor não pede a ninguém que renuncie a si mesmo por causa dele. Ele é elemento que integra, mas nunca desintegra. Ele soma, mas não diminui. O Amor poderia fazer um leão mais uma raposa, mas do jeito que você está agora vocês seriam uma raposa menos um leão. Não é de casais

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assim que a natureza precisa. A natureza quer reprodutores sadios que produzam crias fortes e sempre melhores que as anteriores.

E assim o leão se foi, triste, cabisbaixo e derrotado.

Moral da história: nunca renuncie à sua natureza. Nem por amor.

EM BUSCA DA LENDA PESSOAL

(Métáfora neurolinguística)

“In te omnis dominata recumbit” 

( No homem repousa o poder)

Imagine que você está embarcando para uma longa e maravilhosa viagem. Essa é a viagem que sempre sonhou fazer. O veículo que o (a) levará é um trem. Está aguardando por você na estação e você o reconhecerá facilmente. Ele está pintado com as cores da sua preferência. Feche os olhos, imagine um trem assim e se veja subindo nele. 

Você chegou na estação, encontrou o trem. Lá está ele. Bonito, vistoso, alegre. Você já começa a sentir o prazer que experimentará em viajar num trem assim. 

Agora você está dentro dele. Olhe em volta. O que vê é um vagão confortável, amplo, limpo, iluminado pela luz do sol, decorado com as cores da sua preferência, cheio de poltronas amplas e macias. 

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Você se acomoda em uma delas com um longo suspiro de satisfação e relaxa. Respira fundo. E à medida que vai respirando, um sentimento de alegria e satisfação, que você não sabe de onde vem, mas que é muito prazeroso, vai se instalando no seu corpo. É como uma rajada de vento súbito, que acalma e refrigera.

Há outras pessoas nesse vagão. São pessoas que você conhece. É gente que você gosta e que gosta de você. Você sabe disso porque vê em seus rostos o sorriso de amizade e o olhar meigo que elas lhe dirigem. Você se sente seguro (a) e confortável. 

Agora, uma tênue claridade ilumina o vagão. É um ambiente realmente acolhedor. Você olha pela janela. Lá fora brilha um sol maravilhoso, que projeta sobre o horizonte belos tons dourados sobre um fundo deliciosamente azul, muito azul.

Uma sensação de profunda calma começa a invadir seu corpo. Você respira pausada e profundamente, levando oxigênio a todas as partes do seu corpo. E enquanto respira vai aprofundando essa sensação gostosa de segurança e paz.

Você agora sente que o trem está se movendo. Ele é silencioso, mas você percebe, pelo movimento das coisas lá fora, que ele está em movimento. Em principio lentamente, depois mais rápido, mais rápido, mais rápido. Ele está deixando a estação. Pela janela você vê as casas se afastarem e ficarem cada vez mais escassas. Logo rareiam as construções. Você percebe que ele está atravessando um extenso campo, coberto de flores de todas as cores, que se estende até onde a sua vista pode alcançar.

As árvores e as flores passam diante dos seus olhos como se estivessem caminhando em direção contrária á que o trem está

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indo. Mas até onde você pode ver, até onde sua vista alcança, árvores, flores, borboletas, passarinhos e abelhas parecem estar muito felizes, pois todos parecem ser membros de uma mesma família, trabalhando e se movimentando num espaço comum, dividindo pacificamente os recursos que a natureza oferece a todos. 

E você percebe que cada um está pegando o que é seu com naturalidade, como se todos soubessem exatamente o direito que têm e ninguém precisasse lhes ensinar isso porque ninguém quer pegar mais do que precisa para viver. As árvores, o calor do sol e os nutrientes da terra, os passarinhos, as borboletas e as abelhas, o oxigênio e os alimentos que a natureza lhes oferece, e também as pessoas, todos dividem os recursos naturais com a mesma justiça e parcimônia. Não há conflitos de espécie alguma.

Uma sensação de gostosa paz vai se espalhando pelo seu corpo e você não sente mais o lugar onde está, nem escuta mais vozes ou outros ruídos, mas apenas uma música suave que vai invadindo a sua mente e colocando-o (a) num estado de infinita paz e serenidade. É a música de sua preferência, aquela canção que você mais gosta. Ela ressoa em sua mente como se fosse a voz de uma pessoa que você muito ama.

Você está leve como um pássaro, planando pela superfície de um campo coberto de flores, tão perfumadas que até pode sentir o aroma que elas exalam. Você respira esse aroma e gosta muito dele. Está voando, respirando fundo, fácil, e está se sentindo muito feliz. 

Percebe que a sua alegria cresce ainda mais quando vê que outras pessoas estão dividindo com você essa sensação

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maravilhosa de liberdade, leveza e paz. O mundo está em paz, você está em paz.

Você olha para as pessoas, as pessoas olham para você; você sorri para elas, elas sorriem para você. Com um aceno de cabeça e um brilho no olhar percebe que elas concordam em dividir com você a força que elas têm. E você também concorda em dividir com elas a força e a energia que está sentindo no próprio corpo. E ali mesmo, em plena viagem, recebe delas uma fonte inesgotável de alegria, entusiasmo, motivação e confiança, que deles vêm como se fossem ondas de luz, que o (a) envolve, enlaça, enche de alegria e fazem sentir que agora você é uma pessoa cheia de motivação, pródiga de entusiasmo, capaz de realizar todos os seus sonhos, executar todos os seus projetos. E à medida que esse sentimento vai se intensificando, você sente que pode amar o mundo, as pessoas e a si mesmo (a) com toda a força do seu coração. E com esse sentimento no coração e a certeza em sua mente, você também devolve para elas ondas de amor e energia em forma de uma luz que sai de suas mãos e ilumina todo o vagão.

Principalmente, você sabe agora que tem muita coisa para doar as outras pessoas. Sabe disso por que vê no rosto e nos olhos delas o bem que você lhes fez, transmitindo-lhes a energia que sai das suas mãos em ondas de luz e envolve todas as pessoas dentro do vagão. Sabe também que as pessoas merecem respeito, que todas têm alguma coisa boa para doar e querem compartilhar. E dessa forma vai percebendo que não precisa temer pessoa alguma e que não tem necessidade de impor nada a ninguém. Aprendeu que tudo pode ser obtido através de uma troca justa,

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por consentimento mútuo, e que ninguém pode tirar nada de você, a não ser o que você mesmo quiser doar; e que você também não quer absolutamente nada a que não tenha realmente direito e não seja obtido por mérito próprio.

Você está se sentindo forte e confiante, e todo o seu ser experimenta uma infinita paz. Uma voz dentro de você lhe diz que toda vez que quiser e precisar, poderá embarcar de novo neste trem, fazer novamente esta viagem e se abastecer da força necessária para vencer qualquer obstáculo que surgir em sua vida. Basta se lembrar desta música que está ouvindo agora em sua mente.

Deixe-a tocar, delicie-se com ela. Agora você olha pela janela do trem e vê que ele continua

atravessando um extenso campo, repleto de flores de todas as cores, perfumadas com os todos os perfumes. Você ouve a música tocando no ambiente e sente que ela o (a) acalma e enleva; e agora, junto a essa música, a voz de uma pessoa que você muito ama lhe diz: “você tem todos os recursos que precisa para realizar os seus objetivos. Não tenha medo, vá em frente, aja com a certeza de que não poderá falhar. Faça isso por mim, faça isso por você mesmo, faça isso por todas as pessoas que você ama.” E um coro de vozes, formado pelas pessoas que você ama está agora repetindo a mesmas palavras. Deixe que essa canção e essas vozes impressionem a sua mente. Receba-as como a uma oração e aceite-as como uma crença que o (a) orientará para o resto da sua vida. 

O trem vai seguindo e você está ouvindo o som das rodas deslizando, compassado, sobre os trilhos. O som vai diminuindo, até que você não consegue ouvi-lo mais. Em seus ouvidos resta somente a música que toca, cada vez mais suave,

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cada vez mais envolvente, mais relaxante, e as vozes das pessoas que o (a) amam e que você ama. Você continua a ouvi-las e à medida que ouve, vai ficando cada vez mais calmo e mais confiante. 

Pela janela do trem vê os campos se afastarem e os horizontes diminuírem até sumirem por completo. Ao longe percebe um borrão de luz, que vai aumentado à medida que o trem caminha em direção a ele. Aos poucos, o trem entra na zona de luz e dentro dela você percebe que há uma cidade, a sua cidade, a cidade onde você mora. 

O trem está chegando na estação. Vagarosamente ele vai diminuindo a velocidade, até parar por completo. As luzes do vagão se acendem, você percebe, ainda com os olhos fechados, a tênue claridade delas, que o desperta como se uma linda manhã estivesse nascendo naquele exato momento e atravessando a janelas do seu quarto.

Você sai do seu torpor, e se vê de novo no mesmo lugar onde embarcou. Está em sua casa, sentado na sua poltrona favorita. Abre os olhos e vê que fora de você nada mudou. Só você está diferente. Descobriu que tem dentro de si um universo inteiro, onde existem fontes inesgotáveis de recursos que você pode usar quando precisar e lugares esplendorosos que pode visitar quando quiser, para se curar, descansar ou simplesmente sonhar. Aprendeu como acessar esses recursos sempre que precisar. E isso o faz calmo (a), seguro (a) e confiante. Percebe que é muito bom sentir-se assim.

E com um suspiro fundo e um grande sentimento de alegria no peito você diz para si mesmo: " Quando alguém olhar para mim perceberá que há uma nova e inspiradora luz nos meus olhos e um brilho fulgurante no meu sorriso."

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E essa será uma grande verdade, pois você acabou de fazer a viagem mais inspiradora que alguém pode fazer: uma viagem dentro de você mesmo para se encontrar com a sua lenda pessoal.E agora essa lenda é uma crença que o acompanhará pela vida inteira, porque em você repousa todo o poder da terra.

A CIGARRA E A FORMIGA-OUTRA ESTÓRIA

“ Toma decisão- Aleluia!Bota o seu saveiro no marQuem não tem mais nada a perder, só vai poder ganhar”.  Rui Guerra

O inverno chegara e a cigarra não conseguia achar comida em lugar nenhum. As árvores estavam todas peladas, o frio era glacial, não sobrara nenhum lugar para se abrigar. 

Á beira da exaustão e da inanição ela chegou á porta de um formigueiro. Olhou para dentro e viu várias formigas descansando e se esquentando junto á uma convidativa lareira. O ambiente era quente e confortável. Música suave tocando. Comida aos montes por todos os lados. Cheia de esperança a cigarra bate palmas. 

Histórias que a vida conta

― Por favor, comadres formigas, deixem-me entrar. Está muito frio aqui fora e eu estou quase morta de fome ―, diz a cigarra.Logo aparece à porta do formigueiro uma formigona vermelha, bunduda e com cara de brava. Era a líder daquela colônia.― O que você quer?― perguntou a formigona, com cara de poucos amigos. 

―Abrigo e comida ― respondeu a cigarra. ― O que você sabe fazer na vida? ― quis saber a formiga. ― Sei cantar e dançar ― respondeu a cigarra.― Essas habilidades não têm utilidade aqui ― respondeu,

com sarcasmo, a formiga. ― Nós, as formigas, só fazemos coisas úteis.

Por isso, aqui só tem lugar para quem trabalha. ― O que devo fazer então? ― choramingou a cigarra. ― O que andou fazendo o verão inteiro?― perguntou a

formiga.― Cantei, cantei, cantei ―, disse a cigarra.― Pois então agora dance, dance, dance ―, respondeu a

formiga líder, com um sorriso sarcástico, que foi acompanhado por todo o formigueiro.

A cigarra foi embora cabisbaixa, e segundo algumas informações teria morrido de frio e fome. Mas essa não é a verdade. O que aconteceu foi que ela aceitou o conselho da formiga e conseguiu chegar até a cidade mais próxima. Arrumou emprego em um cabaré como cantora e dançarina. Aprendeu a dançar no poste e tornou-se uma famosa bailarina. Ganhou fama e dinheiro. 

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Quando chegou o verão, ela foi passar férias no campo. Estava saudável, feliz e tinha arrumado até um namorado. Era dia de muito calor e ela resolveu fazer um piquenique. Comprou tudo do bom e melhor, encheu uma cesta e escolheu o lugar mais bucólico e bonito que encontrou no campo. Comeu, namorou, cantou, dançou, divertiu-se até a saciedade. 

Cansada e de bem com a vida, resolveu tirar uma soneca. Quando estava quase pegando no sono, ela viu algumas formigas escorregando sorrateiramente para dentro de sua cesta para recolher as sobras de comida que ela trouxera para o piquenique.Percebendo que a cigarra as surpreendera com a boca na botija, as formigas se prepararam para fugir. Mas a cigarra, com o ar mais cândido do mundo, lhes disse: 

―Não precisam fugir, minhas queridas amigas formigas. Podem levar as minhas sobras. Esse é o trabalho de vocês e é o que sabem fazer muito bem. Continuem fazendo o que sabem fazer e melhorando cada dia mais. Quanto a mim, se eu estou hoje nessa situação tão confortável é por causa do conselho que me deram. Vocês me disseram para dançar e eu dancei. Descobri no que eu era boa e aperfeiçoei a minha habilidade. Agora eu sei que toda habilidade é útil quando aplicada no lugar certo e na hora certa. A vossa impiedade foi a causa da minha felicidade. 

Moral da história: Toda habilidade é útil e necessária para o mundo. Se não fosse a natureza não a teria desenvolvido. Há hora de cantar e hora de trabalhar. Quem só faz uma coisa ou outra verá que sempre haverá um lugar vazio na vida. Trabalhe quando for hora de trabalhar, cante quando for hora de cantar.

Histórias que a vida conta

Se as duas coisas não fossem úteis a natureza não as teria feito.  

Outro aviso: Nunca despreze os conselhos que as pessoas lhe dão, mesmo que sejam dados com a intenção de humilhar. Ás vezes, a crítica e o castigo é justamente o que nós precisamos para descobrir a nossa própria força.

O QUE É BOM DURA POUCO

“Todo corpo tem sua própria medida de tempo. Depende de onde ele está e em que velocidade se desloca”.

Einsten.

Houve uma vez um lugar onde as pessoas andavam muitos tristes. Nada parecia bom para elas. As chuvas eram demais e estragavam as colheitas. O sol era muito quente e esturricava a terra. Os jovens eram rebeldes e não respeitavam os velhos e os velhos eram muitos intolerantes e não compreendiam os jovens.Ao ver aquela situação conflitante os deuses resolveram vir à terra para saber o que estava acontecendo. Reunindo uma assembleia das mais sábias e experientes pessoas do lugar, eles debateram sobre os problemas que estavam fazendo tão infelizes as pessoas daquela terra. 

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―Divindades ― disseram os anciões, sabidamente as pessoas mais sábias do país ― o que está errado é a forma como vós distribuístes as etapas da vida das pessoas sobre a terra. Nós nascemos, crescemos, trabalhamos, ficamos ricos, aprendemos coisas, nos tornamos sábios, e quando estamos no melhor da vida, começamos a envelhecer, a ficar doentes e morrer. Tudo aquilo que ganhamos e aprendemos de nada serve. E então nos perguntamos: qual é o sentido de tudo isso? 

―Isso é verdade ―, disseram os deuses. ― Nasceis, viveis e morreis. E a razão de a vida ser dessa forma jamais sabereis. Mas porque isso vos aborrece? Não vos é suficiente viver? Quereis saber também o motivo? 

―Não queremos a razão disso― disseram os sábios, mas gostaríamos que fosse diferente. Não vemos sentido nesse processo. Por que ter que largar tudo justamente quando começamos a gostar e entender? 

― Por que a humanidade é como um rio ― disseram os deuses. Nasce, cumpre o seu propósito e desagua no mar. Por isso é perene. 

― Pode ser ― insistiram os anciãos. ― Mas isso não consola a dor de ter que morrer e largar tudo justamente quando está ficando bom. 

―E como vocês gostariam que fosse? Digam e nós faremos o que vocês quiserem. Afinal, os deuses existem para servir aos homens. Foi para isso que vocês nos inventaram ― responderam resignados, as divindades.

― Não tem sentido que a vida se acabe depois de tudo que fazemos para que ela se torne prazerosa. Por isso queremos que a vida dure para sempre ― disseram os sábios, representantes do povo.

Histórias que a vida conta

― Se é realmente o que querem ― responderam os deuses ― isso lhes será concedido. ― Mas pensem bem no que estão pedindo. A vida pode se tornar um fardo bem pesado. Não queremos arrependimento depois.

― Sim, Divindades, é isso mesmo que queremos.

Desde aquele dia, a gente daquela terra deixou de morrer. Muitos anos se passaram e os deuses resolveram voltar para ver como as coisas andavam por lá. Encontraram um povo ainda mais triste e inconformado do que antes.

― O que houve? ― perguntaram. ―Não estão satisfeitos com a imortalidade?

― Sim, Divindades ―, responderam os sábios, representantes do povo. ― Viver para sempre é bom. Mas há um problema muito mais sério agora.

― Qual?― Como os velhos não morrem, os adultos não envelhecem;

e se eles não envelhecem, os jovens não podem tomar seus lugares. Por não poder se tornar adultos e assumir responsabilidades, os nossos jovens não amadurecem. Assim, a roda da vida parou. Até já estamos pensando em parar de fazer crianças, pois se as fizermos elas irão engrossar o contingente dos jovens rebeldes e dos adultos inconformados e desempregados. Há, pois uma grande insatisfação na nossa sociedade. Muitos conflitos, muitas desavenças, muita gente desocupada, as famílias se desfazendo e os recursos necessários à nossa sobrevivência ficando cada vez mais escassos porque é cada vez maior o número de pessoas a dividi-los, pois esta agora é uma terra onde pessoas nascem, mas nunca morrem.

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―Nós avisamos vocês sobre o pedido que fizeram ― disseram os deuses

―Sim, mas estamos arrependidos por ter pedido a imortalidade. Descobrimos que viver para sempre é terrivelmente enfadonho, além de complicado e perigoso.

― E o que querem agora? ―Que tudo volte a ser como antes. Que os velhos morram e

os adultos envelheçam para que os jovens possam tomar o seu lugar. Que os jovens se tornem adultos e velhos por seu turno e, por sua vez, também morram; que as crianças nasçam e se tornem jovens. Que envelheçam e morram também. Enfim, que a vida possa fluir como a torrente de um rio, como sempre foi e deve ser, e que nós, por conta da nossa ignorância e ambição, quisemos estancar.

―Tudo bem ― disseram os deuses. ―Assim será. Tudo voltará a ser como era antes. Mas como castigo pela insensatez que demonstrastes, de hoje em diante o vosso tempo de vida terá duas dimensões de sensibilidade: os momentos felizes serão rápidos e fugazes. Passarão depressa como cometas no céu, e deles só guardareis as lembranças para atormentar-vos com as recordações das alegrias vividas. Vivereis sempre em busca dessas ilusões e delas recordareis como se tivessem sido expulsos de um paraíso de delícias. Já os momentos tristes, ao contrário, serão lentos e demorados. Demorarão para ser esquecidos. O que vos parece bom durará pouco e o que parece mal lhes parecerá eterno. O trabalho vos parecerá um castigo. A terra vos será hostil e só lhes dará seus frutos em troca de muito suor. As vossas dores serão lembradas por muito tempo, e vós as sentireis como se elas estivessem sempre presente

Histórias que a vida conta

em vossas vidas, ao passo que as alegrias serão fugazes e nunca completamente satisfatórias.

E assim se deu. Por isso é que hoje dizemos: o que é bom dura pouco, o que é ruim nunca acaba. Cem anos de felicidade são como um dia, um dia de dor é como um século de tristeza. Nunca basta o que temos, queremos sempre mais. As vitórias são rapidamente esquecidas e as derrotas eternamente lembradas. A chama do mérito e do reconhecimento é uma tocha que se apaga no primeiro sopro do vento e o fogo do fracasso e da desonra é um vulcão que jamais se extingue. 

Quem tem ouvidos para ouvir OS PACTOS DEVEM SER CUMPRIDOS

“Pacta sunt servanta.” 

Houve uma vez uma terra devastada por uma longa seca. Com tantos anos sem chuva os rios secaram, as plantas morreram, as pessoas e os animais definharam de sede e fome. Tudo ia de mal a pior. Ninguém sabia mais o que fazer.

Um dia passou por lá um velho feiticeiro. Vendo a pobreza, o desespero e a angústia daquela gente, ele foi ao rei e lhe prometeu fazer a chuva cair de novo naquela terra

―Como? ― Perguntou, desconfiado, o rei. ―É fácil ― disse o feiticeiro. ―Vós não sabeis, mas na

verdade, quem levou a chuva embora foi um dragão prateado que ficou muito zangado com o vosso comportamento em relação aos répteis que existem em vossa terra. Sabeis que cobras, lagartos, jacarés, salamandras, pertencem todos á

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família dos dragões. E vós os matais sempre que os encontrais, por isso o Grande Dragão prateado, que é o rei dessa espécie de animais, ficou aborrecido convosco e levou a chuva embora.

―E como ele pode fazer isso? ― perguntou o rei.―Ele é, na verdade, um poderoso mago que controla as

forças da natureza ― disse o velho feiticeiro. Guarda as chaves das comportas do céu e manda no tempo.

―E o que devemos fazer? – perguntou o rei.―Eu posso trazer a chuva de volta, Majestade, mas antes

deveis vos comprometer a me pagar duzentas moedas de ouro por esse resultado ― disse o feiticeiro.

―Pagarei o que for preciso, se fizerdes chover de novo no meu reino – disse o rei. ― Mas como fareis isso?

―Usarei a minha mágica para aprisionar os espíritos de todos os répteis da terra dentro da minha sacola ― disse o feiticeiro. ― quele dragão prateado do qual vos falei ― e ele abrirá as comportas do céu.

O rei ficou meio desconfiado, mas acedeu. Afinal, o que perderia se não desse certo? Não custava tentar.

Assim fez o feiticeiro. Abriu a sua sacola, cantou mantras, recitou encantamentos e rabiscou na terra signos e símbolos estranhos e misteriosos. Depois fechou a sacola e tornou a recitar, a cantar, a dançar e a rabiscar incompreensíveis garatujas no chão.  Depois abriu a sacola novamente e o céu, imediatamente, se encheu de carregadas nuvens negras. Relâmpagos rasgaram o céu por todos os lados e não demorou muito uma copiosa chuva desabou sobre o país inteiro. Choveu por muitos dias e os rios voltaram a correr em seus leitos, as plantas começaram

Histórias que a vida conta

a brotar na terra, as pessoas a replantar suas lavouras, e a vida voltou a sorrir para todos.

Então o feiticeiro voltou ao palácio para cobrar do rei o seu pagamento.

― Majestade, vós me deveis duzentas moedas de ouro ― disse o feiticeiro.

― O que? ―, respondeu o rei. ―Duzentas moedas por um truque de mágica? Quem garante que foram os vossos encantamentos que trouxeram a chuva de volta e não a própria natureza que resolveu abençoar novamente a nossa terra? Podeis provar que foi a vossa mágica a responsável por esse resultado? ― perguntou, sarcasticamente, o monarca.

― Quando estáveis necessitados não pedistes nenhuma prova do meu poder ― disse o feiticeiro. Por que agora, que tendes o que pedistes, estais a exigir tal prova como obrigação para que eu possa receber o que me deveis? ― respondeu o feiticeiro.

―Não quero ser logrado ― respondeu o rei ― pagando tão caro por uma farsa. 

―Que vos importa como as coisas acontecem, se elas acontecem conforme a vossa necessidade? ― Acaso não recebestes o que contratastes?

―Sim, mas eu quero saber pelo que estou pagando ― insistiu o rei.

―Então não me pagareis se eu não vos der essa prova?―Não ― respondeu o rei.― Se não cumpris vossa palavra, então não mereceis o

resultado ― disse o feiticeiro. ― As árvores não perguntam de onde, nem de quem, nem como vêm, a chuva ou o sol que as alimenta. E, no entanto, pagam pontualmente os frutos que

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devem. A terra não sabe quem lhe dá a água que a nutre, e nem por isso sonega a parte que lhe cabe pagar. Mares e rios não se importam em saber de onde vem e como são produzidas as fontes que os alimentam; mas nunca negam o alimento para a vida que neles se hospeda. Se vós entendeis que saber por que pagais é mais importante que o bem que recebestes, ficai com a vossa sabedoria. Tentai sobreviver com ela. O que fiz posso muito bem desfazer. 

Então o feiticeiro transformou-se num grande dragão prateado e voou, desaparecendo no céu já sem nuvens. 

E nunca mais choveu naquela terra. 

O QUE AS MULHERES MAIS DESEJAM?

“Concordiam nutrit amorem” 

A concórdia alimenta o amor.

Esta história aconteceu na Idade Média onde a lenda e a realidade se misturavam de tal forma que ninguém conseguia distinguir uma da outra. Contou-a um peregrino que costumava ir todos os anos à Catedral de Canterbury, na época dos festejos de comemoração da morte do santo chamado Thomas Becket. Eu gostei muito dela e resolvi recontá-la do meu jeito. 

Ela fala de um valoroso cavaleiro que caiu em desgraça frente ao rei do seu país e dos seus pares de cavalaria. A razão da sua desgraça foi o fato de ele ter quebrado as regras da instituição, tratando com descortesia uma das damas da corte.

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A mulher, naqueles tempos, era tratada como uma flor e uma deusa. Como flor devia ser protegida; como deusa devia ser venerada. Ela era o motivo e a inspiração de todas as aventuras cavalheirescas. Todo cavaleiro que se prezasse tinha que ser protetor de uma dama. 

As regras da cavalaria eram muito severas com respeito ao tratamento que se devia dar a uma mulher. Nenhum cavaleiro podia ser descortês com uma dama. Ele devia, ao invés, protegê-la e honrá-la.  Foi exatamente nisso que o nosso cavaleiro falhou em fazer. Não se sabe por que cargas dágua ele foi descortês justamente com uma das aias da rainha, recusando-se a protegê-la (que era a mesma coisa que namorá-la)

Julgado e condenado pelos seus pares, ele foi destituído do seu título de cavaleiro e condenado à morte. Essa era a lei. Somente um indulto dado pelo próprio rei, ou pela rainha, podia salvá-lo. Como o seu crime havia sido cometido contra uma das damas da corte, o rei delegou à rainha a pronúncia da sentença. E ela, depois de muito confabular com suas aias, decretou: “Infeliz cavaleiro, como você ofendeu uma mulher, sua vida agora está nas mãos delas. Você terá que encontrar a resposta certa para uma pergunta que eu vou lhe fazer: O que as mulheres mais desejam na vida? Se você conseguir encontrar uma resposta que me satisfaça, sua vida será poupada e seu título devolvido. Mas se ela não me agradar, então será decapitado. Você tem um ano para achar essa resposta”.

O cavaleiro saiu pelo reino afora perguntando a todas as pessoas que encontrava: o que as mulheres mais desejam na vida? 

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– O que as mulheres mais querem na vida são dinheiro e jóias – respondeu um comerciante.

– O que as mulheres mais desejam é serem bonitas para agradar aos seus amantes –, respondeu um cortesão. 

– O que as mulheres mais desejam é arranjar um bom marido – respondeu uma solteirona.

– O que as mulheres mais desejam é ter belos e robustos filhos – respondeu uma camponesa, mãe de muitos filhos.

– O que as mulheres mais desejam é ter uma casa e uma família – respondeu outra mulher.

– O que as mulheres mais desejam é serem felizes – respondeu um homem tido como muito sábio.

Foram muitas as respostas que o cavaleiro colheu nas suas andanças pelo reino, mas nenhuma lhe pareceu satisfatória. Eram tantos os desejos manifestados pelas mulheres e nenhum deles parecia atender a todas. 

“Quem consegue entender as mulheres?”, pensou desconsoladamente. 

O tempo concedido pela rainha estava acabando. Restavam poucos dias e ele já estava conformado em perder a vida, pois sentia que jamais encontraria uma resposta satisfatória para a pergunta que a rainha lhe havia feito. As mulheres eram imponderáveis, incompreensíveis, impossíveis de contentar, concluiu. Cada uma queria uma coisa diferente. Não havia consenso possível.A caminho do castelo, onde finalmente seria executado, o cavaleiro encontrou uma velha senhora. Era a mulher mais feia que ele já vira na vida. Rosto enrugado como um pergaminho, nariz adunco como o bico de uma águia, um único dente apodrecido na boca, uma enorme verruga no queixo. A velha

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devia ter menos uns cem anos de idade. Andava manquitolando, se apoiando num bastão.

– Por que esse ar de desespero, cavaleiro? – perguntou a velha.

– Parece que está indo para o patíbulo.– Pois adivinhou, minha velha. É isso mesmo. Estou a

caminho da minha execução. Amanhã, a esta hora, minha cabeça será decepada e pendurada num poste.

– Que crime tão hediondo você cometeu para ter que pagar com a própria cabeça? – perguntou a velha senhora. 

– Por que não consegui encontrar uma resposta para uma pergunta boba que a nossa rainha me fez, serei obrigado a entregar a minha própria vida – respondeu, tristemente, o cavaleiro

– Que pergunta foi essa? Diga-me, talvez eu possa ajudá-lo a responder.

– Impossível. Há um ano peregrino pelo país inteiro. Interroguei milhares de homens e mulheres, e também sábios e estudiosos, mas ninguém conseguiu dar-me uma resposta satisfatória. Como uma velhota como a senhora poderá dá-la?

―Qual a pergunta? ― insistiu a velha.― O que as mulheres desejam mais?― disse o cavaleiro. ―Sou idosa e já vivi o suficiente para saber de coisas que

ninguém mais sabe – respondeu a velha. Eu sei a resposta para essa pergunta, mas em troca dela você terá que me prometer tudo que eu lhe pedir. Aceita essa condição?

― Que remédio. É a minha própria vida que está em perigo. Se a senhora tiver essa resposta farei qualquer coisa que me pedir – respondeu o cavaleiro.

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Então o cavaleiro desceu do seu cavalo e velha sussurrou algumas palavras no seu ouvido. 

Chegou finalmente o momento em que o cavaleiro teria que responder à pergunta feita pela rainha. Lá estava ele na frente de toda a corte, com a rainha e suas damas de companhia como componentes do tribunal. Elas é que dariam o veredicto final. – Diga-nos, então, cavaleiro: o que as mulheres mais desejam na vida?– Majestade – respondeu o cavaleiro – o que as mulheres mais desejam na vida é serem donas de suas próprias casas e rainhas em seus próprios espaços. Elas querem que seus maridos e filhos as respeitem e façam aquilo que elas querem.

A rainha e suas damas se reuniram e confabularam. Depois de alguns minutos de muitos risos e discussão, a rainha voltou-se para a corte e disse: 

– A resposta do cavaleiro está correta. Ele está livre e os seus títulos serão todos devolvidos.

Nesse momento entrou no salão a velha senhora. – Majestade – disse ela. – Fui eu que ensinei a esse

cavaleiro a resposta que satisfez Vossa Graça. Em troca ele se comprometeu a casar-se comigo. Faça com que ele cumpra a promessa.

– Você prometeu isso à ela – perguntou, rindo, a rainha.– Infelizmente sim, majestade. E agora não sei se fiz bem

em trocar a minha vida por esse destino – respondeu, desconsolado, o cavaleiro

– Promessa de cavaleiro é dívida inegociável – respondeu a rainha. – Se a deu tem que cumpri-la.

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O cavaleiro e a velha se casaram. Na noite de núpcias o cavaleiro preferiu ficar no pátio do castelo velando suas armas, como era costume entre os membros daquela veneranda instituição. A velha noiva, vendo que o marido não aparecia para consumar o casamento, foi ter com ele no pátio.

– Por que você não veio fazer amor comigo? – perguntou a velha. – Acaso pensa que eu não serei capaz de dar-lhe prazer como faria uma noiva jovem?

– Você não pode mudar a sua idade nem a sua aparência, minha velha –, respondeu o cavaleiro. ― Como poderá corresponder ao amor de um jovem como eu? 

Então ela começou a falar. Falou das leis da natureza e das maravilhas que elas fazem com as pessoas que se amam de verdade. Disse que o Amor reconstitui as forças perdidas e recupera o frescor da pele envelhecida; que devolve a força aos músculos combalidos e faz o sangue circular com mais rapidez nas veias. Que trás de volta a luz nos olhos e o brilho do sorriso. E enquanto ela falava, o cavaleiro olhava fundo nos olhos dela. E neles brilhava, cada vez mais intensamente, uma estranha luz. E ele não tirava os olhos do seu rosto. E à medida que ela falava, e ele ouvia, uma transformação ia ocorrendo no rosto e corpo da velha noiva. Em pouco mais de alguns segundos, diante do atônito cavaleiro, estava a jovem mais linda que ele já vira na vida.

– Você deixará que eu governe a nossa casa e ouvirá os meus conselhos? – perguntou a jovem, que na verdade era uma fada.

– Sim – disse o cavaleiro – porque ninguém melhor que o Amor pode governar uma casa. Ele não conhece tempo nem idade. Ele não faz caso de aparência e dificuldades. Enquanto

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nos amarmos seremos puros; enquanto formos puros seremos jovens; enquanto formos jovens seremos belos. Na verdade, agora eu sei o que você queria dizer: o que as mulheres realmente mais desejam (e os homens também), é amar e ser amados. E que seu amor seja respeitado e receba o devido valor. Obrigado por ter me ensinado isso. 

E então o cavaleiro e a fada se amaram a noite inteira. E depois foram felizes para sempre.

O LEÃO E O HOMEM MORTO

João e José eram dois grandes e inseparáveis amigos. João é um sujeito sadio e forte. Rápido como um cervo, ele é capaz de correr mais depressa que qualquer animal. Já José é pequeno e franzino. E para piorar, ainda tem um defeito em uma das pernas, que o torna manquitola e lerdo como um bicho preguiça.

Um dia eles estavam passeando em uma floresta. José andava devagar de propósito só para esperar João, que com seu passo trôpego e vacilante, não conseguia acompanhá-lo.

De repente, à frente deles surge um enorme leão, raivoso e faminto. Abre a enorme bocarra e solta um urro ameaçador. Depois avança em direção aos dois.

José, num impulso, sai correndo e sobe na primeira árvore que encontra. João, sabendo que jamais seria mais rápido que o

Histórias que a vida conta

deita-se no chão e se finge de morto. O leão aproxima-se de João e cheira o seu corpo dos pés à cabeça. Ao ver que ele não se mexe nem respira, conclui que o rapaz está morto. Por fim, dá um pequeno ronco ao ouvido de João e vai embora. (Um leão que se preza não ataca uma presa morta).

José espera o leão desaparecer na mata e desce da árvore.― Tenho a impressão que o leão falou alguma para você. O

que foi que ele disse ao seu ouvido? ― perguntou José.― Ele me disse para não confiar em amigos que nos

abandonam no momento do perigo ― respondeu João.

ALEXANDRE, O GRANDE.

Alexandre,o Grande, rei da Macedônia, além de competente general, era também uma pessoa de grande preparo intelectual. Foi educado pelos melhores professores da época e teve como mentor nada menos que o famoso filósofo Aristóteles.

Mantinha em sua corte as mentes mais brilhantes de seu tempo. Certa vez ele contratou um famoso filósofo para instruí-lo em um determinado assunto que muito o interessava. Depois de alguns meses estudando com o sábio, Alexandre finalmente despediu-o. Ferido em sua auto-estima, o filósofo foi procurá-lo e perguntou a razão da sua dispensa. Alexandre respondeu: 

“Como homem, cometo erros, como filósofo tu não me corriges; ou tu entendes os meus erros, ou não os entende. Se

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não entendes os meus erros, não és filósofo; se entende e não os corrige, não és meu amigo; Por isso, nada podes me ensinar.”

UM PASTOR E SUAS CABRAS

  Esta é a estória de um pastor que tinha um grande rebanho de cabras, algumas já de muita idade. Mas eram cabras bastante produtivas, que nunca deixaram de produzir muito leite, do qual o pastor fazia coalhos, queijos e outros produtos, de cuja venda vivia.

Um dia, ao pastorear suas ovelhas, verificou que entre elas havia algumas cabras selvagens, que tinham se juntado ao seu rebanho. O pastor ficou contente, e ao invés de expulsá-las, conduziu-as para o seu estábulo junto com as suas cabras amestradas. E passou a tratá-las com muito carinho e

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refinamento, para que elas se domesticassem e passassem a fazer parte do rebanho. Dava-lhes o melhor da sua ração, e em doses mais generosas, enquanto que ás demais, servia o mesmo repasto de sempre. Dias se passaram e o pastor, achando que as cabras selvagens já tinham sido domesticadas, soltou-as juntamente com os demais animais do rebanho. Quando chegaram em campo aberto, as cabras selvagens fugiram e levaram com elas uma boa parte do rebanho. 

−Ingratas− choramingou o pastor. – Dei a vocês um tratamento melhor do que dou às minhas cabras domésticas e vocês me pagam desse jeito?

−Esse é o problema−responderam as cabras selvagens. – Se é assim que você trata os seus amigos de longa data, negligenciando-os em favor dos novos, nós não queremos nos tornar seus velhos amigos.

MELHOR DAR QUE RECEBER

  Uma seca tão terrível acontecera naquela terra que todos os rios e lagos secaram. Ninguém tinha água para beber salvo um pequeno fazendeiro que havia furado um poço e por sorte dera com um belo lençol de água subterrânea. Com isso ele e seus  animais eram os únicos que estavam conseguindo sobreviver naquela terra.

Um dia chegaram dois sujeitos e disseram ao camponês: −por favor amigo, dê-nos água. que nós, em troca, vigiaremos sua fazenda contra os ladrões.

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O camponês respondeu: −muito obrigado meus caros amigos, mas eu tenho dois bons cachorros que já fazem isso. Prefiro dar minha água para eles.

Depois disso apareceram mais três pessoas, também pedindo água e prometendo puxar o arado para o camponês. A resposta foi a mesma: −Obrigado, meus caros, mas eu já tenho dois bois que fazem esse trabalho.Prefiro dar minha água para eles. 

E várias foram as pessoas que vieram à fazenda em busca de água, sempre prometendo algo em troca. E a resposta era sempre a mesma: que ele já tinha um animal que fazia isso para ele.

Então as pessoas se enfureceram e perguntaram para ele? – Mas porque você recusa nossa amizade e nossas promessas? Porque prefere a companhia dos animais à nossa?

O camponês respondeu. – Porque a verdadeira amizade é aquela que cumpre antes de receber. E ela está sempre presente e não aparece só na hora da  necessidade.

 SOMBRA E FRUTOS

  Dois sujeitos estavam perdidos num deserto. Cansados, com o sol a pino sobre suas cabeças, estavam a ponto de morrer de insolação. Já à beira da exaustão, avistam um oásis, com uma pequena fonte de água e uma frondosa palmeira sobre ela. Reunindo as últimas forças, correm para lá, atiram-se no pequeno poço dágua e bebem até se fartar. Depois, exaustos deitam-se á sombra da palmeira e descansam, revigorados. De repente, um deles abre o olho, olha para a palmeira e diz: - bem

Histórias que a vida conta

que essa porcaria de árvore poderia ser uma tamareira em vez de uma palmeira, diz ele com sarcasmo. 

−É, seria bom se fosse− respondeu o segundo. –Mas como não é, demos graças a ela pela sombra amiga que nos dá e pela água pura que ela conserva fresca. 

E assim, os dois sujeitos descansaram à sombra da palmeira. O primeiro não conseguiu dormir, pois não conseguia se conformar que a árvore não fosse uma tamareira cheia de frutos para matar a sua fome. O segundo dormiu como uma pedra e acordou revigorado, pois com toda sua alma tinha agradecido a Deus pela graça de ter posto na sua frente aquela sombra e aquela água.   

Assim diz a sabedoria: aos que sabem agradecer o que recebem, seja o que for, nunca se lhes falta o necessário. Entre os dois, adivinhem quem sobreviveu. 

OS CÃES PREVIDENTES

Era uma vez um sujeito que vivia sozinho num sítio, bem longe da cidade. Possuía meia dúzia de carneiros, alguns porcos, um boi, que puxava o arado, uma vaca que lhe fornecia leite, um cavalo que lhe servia de transporte, umas galinhas, que o abastecia de ovos e carne, e uns cachorros, que além de

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servir de guardas, lhe fazia companhia. Eram, no dizer dele, seus únicos amigos. 

Um dia sobreveio uma grande tempestade naquela região e o sítio ficou incomunicável. As águas do rio subiram e levaram todas as pontes. A roça que ele plantara apodreceu em meio à enchente. Ele ficou ilhado e sem qualquer recurso para sobreviver.

A tempestade durou muitos e muitos dias. Apertado pela fome, o pobre homem começou a abater os animais para se alimentar. Comeu primeiros os carneiros, depois os porcos, em seguida os bois e por fim, como a normalidade estivesse demorando para voltar, o cavalo. Assim que ele levou ao fogo o último pedaço de carne do cavalo, os cães se reuniram e resolveram fugir.

─ Ingratos! Resmungou o sitiante. ─ É assim que vocês se intitulam o melhor amigo do homem? Justo quando tudo parece estar perdido, vocês me abandonam?

─Não somos ingratos ─ responderam os cães. ─ Somos apenas previdentes. Se você não hesitou em sacrificar quem sempre o ajudou a sobreviver, o que não fará a nós, que só temos amizade para lhe dar?

INFIEL NO POUCO, INFIEL NO MUITO

Antonio pediu a João que lhe emprestasse uma pequena soma em dinheiro. Disse que sua vida estava ruim, se encontrava desempregado, sem dinheiro nem para as despesas de sobrevivência. João, que era seu amigo de há muito tempo, prontamente lhe emprestou. Passou-se muito tempo, Antonio

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superou a sua crise e prosperou. Mas nada de pagar o amigo. Um dia, João, com muito tato e educação, para não magoar o amigo, lembrou-lhe da obrigação que havia contraído num momento de dificuldade.

“Que dinheiro?”, respondeu ele, ofendido. “Eu nunca lhe pedi nada. Você está louco”. E incontinenti, rompeu relações com João, acusando-o de malandro, estelionatário e outras coisas mais, por estar lhe cobrando uma dívida que não existia.

O tempo passou e os negócios de Antonio sofreram uma reviravolta. Ele faliu e perdeu tudo que tinha angariado nos tempos de fartura. Não sobrou nada da antiga fortuna. Mas ele era um comerciante esperto e tinha certeza que poderia se reerguer se conseguisse levantar algum capital. Ele tinha um amigo muito rico chamado Pedro. Eles haviam feito uma boa amizade nos tempos de prosperidade, freqüentando os mesmos locais da sociedade, os mesmos clubes e locais bacanas. Com a certeza de que o amigo não iria deixar de socorrê-lo num momento daqueles, foi pedir-lhe um empréstimo.

─Você sabe que eu sou um homem de palavra e não vou deixar de restituir o que você me emprestar. E também sabe que pode contar com a minha eterna amizade ─ disse Antonio a Pedro.

─Volte amanhã, vou ver como posso atendê-lo─ respondeu Pedro.

Pedro tinha um velho amigo chamado João e com ele se aconselhava em todos os negócios que costumava fazer. Expôs a ele o caso de Antonio. No dia seguinte, quando Antonio voltou ao escritório de Pedro, crente que o amigo já estava com o dinheiro na mão para lhe entregar, o que encontrou foi um

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João Anatalino

ex-amigo, carrancudo, muito pouco solícito e bastante inclinado a livrar-se logo da presença dele.

─ O que aconteceu? Perguntou João. ─ Você ontem estava tão inclinado a me ajudar e agora me trata dessa maneira?

─Eu soube do seu comportamento com o João. Você pegou dinheiro com ele e não só não devolveu como também negou que devia.

─Ah! Aquilo? Disse Antonio, com um muxoxo. ─ Era uma “mereça” tão insignificante que eu até me esqueci que devia. Com você isso não vai acontecer. É uma soma significativa e eu não nem tenho como esquecer ─ disse ele, com um sorriso maroto.

─Nem eu vou emprestar-lhe nada ─ respondeu Pedro, convidando-o para ir embora, com rispidez.

─Só por causa desse negócio com o João? ─ perguntou Antonio.

─Não─ respondeu Pedro. ─ Por sua causa. A verdadeira amizade não se aproveita dos amigos e quem não foi fiel no pouco com mais razão não o será no muito. E agradeceria muito se você não me procurasse mais nem me dirigisse mais a palavra.                        A HISTÓRIA DE DAMON E PÍTIAS

Na antiga república grega de Siracusa, conta Cícero, o grande orador romano, viviam dois jovens filósofos, amigos desde a infância, chamados Damon e Pítias. Eles tinham muita confiança um no outro e diziam que nada poderia estragar a amizade deles. A amizade era tão forte que um seria capaz de dar a sua própria vida pelo outro.

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Embora a cidade de Siracusa fosse, nominalmente, uma república democrática, nessa época, um tirano de nome Dionísio havia assumido o poder pela força das armas e governava a cidade com mãos de ferro.

Pítias, que era democrata de carteirinha, andou fazendo uns discursos sediciosos contra o tirano. Nos debates na ágora, a praça pública onde os filósofos costumavam se reunir para discutir, ele dizia ao povo que nenhum homem tinha direito de ditar leis sobre os outros e obrigá-los a cumpri-los com a força do estado, que os próprios governados ajudavam a manter.

Pítias dizia essas coisas e Damon, seu amigo, as corroborava, embora sem as apoiar publicamente. Encolerizado, Dionísio mandou chamar Pítias e acusou-o formalmente de traição e de espalhar a sedição.

E depois de um pequeno debate e um julgamento simulado, no qual seus ministros e apoiadores foram os acusadores e componentes do júri e ele o próprio juiz, Pítias foi condenado à morte.

Pela lei de Siracusa, todo condenado tinha direito a um último desejo. Assim, Pítias expressou a vontade de ir até sua casa despedir-se da família e resolver alguns assuntos que estavam pendentes. 

Esse era um direito do condenado, mas o tirano, temendo que o condenado escapasse, mesmo escoltado por inúmeros soldados, negou o pedido.

Pítias já tinha se conformado em morrer sem ver sua família, quando Damon, que estava presente no tribunal e havia servido de testemunha a favor de Pítias (inutilmente, pois o tirano já havia decidido condenar o seu amigo), levantou-se e

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ofereceu-se para ficar no lugar de Pítias enquanto ele ia até a casa dele.

Dionísio sabia da amizade dos dois e uma das coisas que mais honrava os dois jovens, e os fazia respeitados na cidade, era a propalada fidelidade que havia entre eles. Assim, logo pensou que além de acabar com a vida do inimigo, poderia também liquidar com a sua honra, pois certamente Pítias iria tentar fugir. Assim, num golpe só, liquidaria os dois e ficaria absolutamente tranqüilo com respeito à futuras dissidências.

Destarte, Pítias foi autorizado, com o acompanhamento dos soldados do tirano, a ir até sua casa, e dentro de um mês, voltar para ser executado.

Ele morava em um ilha, distante de Siracusa uns três dias de navio. Nesse ínterim, Damon foi atirado na prisão.

Um mês se passou e Pítias não voltou. E nenhuma notícia dele nem dos soldados que o acompanharam.

Passaram-se vários meses e os meses completaram um ano. Cansado de esperar, o tirano resolveu executar Damon e mandar um corpo de sua guarda até a ilha onde morava Pítias para prendê-lo, ou descobrir o que havia acontecido com ele.

Mas no momento exato em que Damon estava sendo levado ao local da execução, eis que Pítias aparece, correndo, espavorido, e prostrando-se ao pé do  tirano, implorou-lhe que soltasse seu amigo e tomasse a vida dele, como havia sido combinado.

─ Por que você demorou tanto para voltar? ─perguntou o tirano.

─ Os deuses tentaram me impedir ─ disse ele. ─ Passei apenas três dias em minha casa, e quando estava voltando para Siracusa, uma tempestade colheu nosso navio em alto mar.

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Toda a tripulação e os guardas que mandastes para me acompanhar pereceram no naufrágio. Só eu escapei. Mas tive de nadar de ilha em ilha até chegar aqui. Enfrentei piratas, os demônios do mar, a fúria dos elementos e a maldade de muitas pessoas que quiseram impedir-me de vir. Levei um ano nessa luta, e só agora consegui chegar.

Dionísio mandou verificar a história de Pítias e descobriu que era verdadeira. Não pode duvidar dela. Ele conhecia a saga de Ulisses, o herói de Homero, que levara dez anos para voltar de Tróia a Ìtaca, depois da famosa guerra entre gregos e troianos. Ele sabia que os mares da Grécia eram muito perigosos e os deuses muito caprichosos.

Esse episódio abriu os olhos do tirano. Ele o interpretou como um aviso dos deuses. Se eles respeitavam assim uma amizade, não seria ele que iria desrespeitá-la. Acabava de ter uma grande e inesquecível lição de amizade e lealdade.

─ A sentença contra vocês será revogada ─ declarou o tirano

─ Jamais pensei que entre os homens pudesse florescer tamanha fé e lealdade. Vocês me provaram que o mundo pode ser governado por um poder maior do que a força. Estão livres, mas no entanto,  deverão prestar-me um último serviço ─ completou o tirano.

─ O que desejas?  perguntaram os amigos.─ Permanecei em minha corte e ensinai-me a governar

fazendo amigos ao invés de inimigos.

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SANGUE DE AMIGO

  Durante a guerra do Iraque, uma aldeia foi bombardeada. A maioria da população foi dizimada. Restaram poucas pessoas e algumas crianças, algumas das quais, bastante feridas. Uma dessas crianças era uma menina de cerca de dez anos. Muito machucada, ela precisava de socorro urgente, senão fatalmente morreria. Chegaram os paramédicos do exército americano,

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imediatamente montaram uma enfermaria de campanha e começaram a socorrer os feridos.

Logo perceberam que a menina ferida precisava de uma transfusão de sangue para ter alguma chance de sobrevivência. Feitos os testes, verificou-se que nenhum dos presentes tinha um tipo de sangue compatível com a menina para efetuar a doação. Os paramédicos já estavam conformados em perder a paciente, quando surgiu um garotinho, de cerca de dez anos, se oferecendo para doar sangue para a menina ferida. Feitos os testes, verificou-se que ele tinha o tipo de sangue compatível. Embora o menino fosse pequeno e raquítico, era a única chance que a menina tinha para sobreviver.

Quando a enfermeira espetou a agulha no braçinho esquelético do menino, duas grossas lágrimas rolaram dos seus olhos. A enfermeira pensou que ele estivesse sentindo alguma dor e fez algumas massagens no braçinho dele para aliviar, mas o menino continuava a chorar silenciosamente. A medida que o sangue dele ia passando para a menina, suas lágrimas, silenciosas, rolavam cada vez mais intensamente. 

Incomodados com as lágrimas do menino, os paramédicos que estavam realizando a transfusão chamaram uma enfermeira que falava árabe para saber do menino a razão de tantas lágrimas.

– Ele pensa que vai morrer porque todo o sangue dele está sendo passado para a menina – disse a enfermeira, depois de um pequeno diálogo com o menino.

– Se ele pensa assim porque se ofereceu para doar o sangue para ela? – perguntaram, espantados, os paramédicos.

Feita a pergunta pela enfermeira árabe, o menino respondeu simplesmente: – Porque ela é minha amiga.

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O CÉU E O INFERNO

 Um avião caiu no deserto e somente três pessoas conseguiram escapar com vida. Depois de verificarem que nada sobrara do avião, que permitisse a eles esperar ali por socorro, resolveram caminhar pelo deserto á procura de algum povoado, de onde pudessem pedir socorro.

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E lá foram os três, cambaleando, pela areia escaldante. Dois deles estava feridos e tinham muita dificuldade para caminhar. O único que estava são, procurava ampará-los em seus braços, e os três caminhavam, trôpegos, pelo imenso e tórrido areal, onde as únicas almas vivas parecia ser as deles.

Caminharam muitos quilômetros, e á noite, já praticamente mortos de sede e cansaço, resolveram parar e dormir um pouco.

Pela manhã, o indivíduo que estava são logo acordou, mas os seus dois companheiros permaneciam deitados, parecendo com pouca vontade de levantar. Ele então procurou acordá-los, sacudindo-os, mas logo percebeu que ambos estavam em péssimas condições e já próximos do estado comatoso que precede a morte.

Ele então se desesperou, e mais que depressa, ergueu os dois, amparou-os em seus ombros e recomeçou a caminhada. Mas ao fim de algumas horas, arrastando pelo deserto os dois companheiros, ele desabou no meio da areia escaldante, já conformado com a sorte que os esperava. Por fim, deitou-se  na areia para esperar a morte..

Depois de algum tempo, que ele não sabia precisar quanto, ele acordou, sentindo-se mais leve. Ergueu-se e viu, á distância, algo que parecia ser algumas palmeiras. Andou alguns metros, escalou o que parecia ser umas dunas e logo divisou, claramente, um oásis. Agradecendo a Deus pela linda visão, voltou correndo para junto dos companheiros e ajudou-os a se levantar, apoiando um deles em cada ombro. 

–   Força, amigos – parece que ali adiante existe um oásis. Lá está a nossa salvação.

E lá se foram eles, o primeiro praticamente arrastando os outros dois. Mas embora o oásis pudesse ser visto ao longe, ele

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parecia nunca chegar. Seria uma miragem? Pensou o sujeito, arrastando os dois companheiros, cada vez mais pesados, nos seus ombros. 

Mas finalmente, depois de algumas horas se arrastando sob o sol inclemente, ele chegou nas proximidades do oásis. Mas logo percebeu que ele estava cercado por uma enorme cerca de arame farpado, como se fosse uma espécie de campo de concentração. E na porta de entrada dois carrancudos guardas, armados com metralhadoras. Arrastando pela areia os dois companheiros, foi até os guardas, falou sobre o acidente e pediu ajuda.

– Aí dentro você encontrará toda ajuda que precisa. Só que os outros dois terão que ficar aqui, porque no oásis só se pode entrar andando com as próprias pernas, – disse um dos guardas.

– Mas eles não estão em condições de andar. Estão muito feridos – argumentou o indivíduo.

– Sinto muito, mas eles terão que ficar aqui – respondeu, impassível, o guarda.

– Então, por favor, ajude-os, enquanto vou lá dentro buscar um pouco de água e ver se consigo ajuda para eles.

– Isso também não é permitido – disse o guarda. Pois quem entra no oásis, dele não pode sair levando absolutamente nada. É a lei. Se você quer entrar, entre, mas deixe seus amigos aí.

– Isso não vai me servir de nada – disse o indivíduo. – Se eu os deixar aí, eles morrerão. Por favor, ajude-nos– suplicou.

– Não podemos fazer nada, essa é a lei aqui – respondeu o guarda. Mas a uns dez quilômetros daqui, em direção ao oriente, há outro oásis parecido com este, cujas leis são diferentes. Se quiser ir para lá, pode ir.  Talvez lá você encontre o que procura.

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E lá se foi o sujeito, arrastando os dois amigos, pelo imenso areal escaldante, em direção ao outro oásis.

Depois de três ou quatro horas, cambaleando pelo deserto implacável, arrastando os dois companheiros, eles chegaram á porta do oásis. Algumas pessoas vieram correndo ao encontro deles. Trouxeram um cantil de água, um estojo de primeiros socorros e algumas macas. Cuidaram deles. Só então, já recuperado, ele percebeu que todo seu esforço tinha sido em vão. Os seus companheiros estavam mortos. Ele começou a chorar e a maldizer as pessoas do oásis anterior. Se o tivessem ajudado, eles poderiam ter sido salvos.

Então um senhor, de longas barbas brancas, com um rosto e um olhar onde refletiam a extrema bondade, o consolou, dizendo: 

– Não se lamente, meu caro. Agora vocês estão salvos de fato. Na verdade, todos já estavam mortos quando chegaram naquele oásis. Lá era o lugar que vocês chamam de inferno. É onde costumam ficar aqueles que abandonam seus amigos. Aqui é o céu. Você, além de ganhá-lo para si, também conseguiu trazê-los para cá. Sejam muito bem-vindos.  A CARPINTARIA

             Ninguém acreditaria que aquela carpintaria, que durante o dia parecia um local tão pacífico e organizado, á noite se transformava num verdadeiro inferno. Era briga para todo lado.

Tudo começou porque a madeira, de repente, começou a dizer para todo mundo que ela era a peça mais importante da carpintaria porque sem ela nada seria feito ali. 

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“É”, respondeu a serra. “Mas se não fosse eu para cortá-la na medida certa, você não serviria para nada.” 

“É verdade”, completou o metro. “E se não fosse eu, não haveria nenhuma medida certa.”

“ Pois é”, mas se não fosse eu, você seria apenas um amontoado de peças rústicas”, queixou-se a plaina. 

“ E não se esqueça que sou eu que aliso a sua superfície para que se você fique lisinha e bonita”, disse a lixa. 

“ E sou eu que dá o acabamento que transforma você numa peça de arte”, resmungou o verniz .

“ E se não fosse eu para unir todas suas partes, você seria apenas madeira e tão somente madeira”, reclamou o parafuso.

“Mas lembre-se que quem introduz você na madeira sou eu”, lembrou a chave de fenda...

E assim foi pela noite adentro, com cada ferramenta e cada peça reivindicando a sua quota de importância nos móveis que se fabricavam ali. E assim, a carpintaria toda virava um verdadeiro campo de batalha, e pela manhã, quando o carpinteiro chegava para trabalhar, ele sempre estranhava que tudo aquilo que ele deixava arrumadinho á tarde estivesse tudo bagunçado, como se fosse um quarto de adolescente.

“ Ah! Esses meus ajudantes”, suspirava, desconsolado. “Talvez eles estejam precisando de um agradinho”, pensou. 

Uma manhã o carpinteiro chegou para trabalhar, pegou umas peças de madeira, cortou-as na medida certa usando a serra. Um de seus ajudantes aplainou-as, outro passou a lixa. Depois o carpinteiro montou-as uma a uma, unindo-as com parafusos, e um terceiro ajudante envernizou o móvel pronto com um belo e coruscante verniz. 

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Ao fechar a carpintaria naquela noite, o carpinteiro deu uma olhada de satisfação para o produto pronto e passou a mão nele com o carinho de quem havia produzido uma obra de arte. Antes de sair escreveu um bilhete, que deixou em cima do móvel. O bilhete dizia:

“Obrigado a todos vocês. Ninguém faz nada sozinho. Este lindo móvel não teria sido fabricado sem a participação de cada um.”

O bilhete havia sido escrito para agradecer aos seus ajudantes. Mas daquele dia em diante, nunca mais o carpinteiro encontrou a carpintaria bagunçada. Os clientes, quando entravam nela, logo sentiam que ali se respirava um ar de respeito e harmonia. Todos haviam compreendido a sua importância no sistema e descoberto o valor que cada um tem nele.    

PARA QUE SERVE A SUA CRUZ

O estoicismo foi uma escola de filosofia fundada em Atenas por Zeno, também chamado Zenão de Cítio, no início do século III a.C. Sua filosofia era essencialmente naturalista. Ensinava que todo bem e todo mal era apenas uma consequência da forma como interpretamos os acontecimentos. Por isso os

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estóicos eram pessoas que suportavam todos os sofrimentos, e em cada coisa que lhes acontecia eles procuravam ver o que isso significava em termos de evolução e aperfeiçoamento espiritual.

Alguns estudiosos sustentam que o cristianismo, em sua mais original concepção, ou seja, a sua pureza primitiva, pregada por Jesus, é uma forma de estoicismo. 

Uma lenda conta que Zeno, o fundador dessa escola, costumava ensinar seus discípulos com exemplos vivos de comportamento estóico. Ele usava a chamada estratégia peripatética para transmitir sabedoria. Essa estratégia exigia que as aulas fossem dadas em movimento. Assim, Zeno e os discípulos caminhavam pelos campos muitos quilômetros por dia, no decorrer dos quais ele ia mostrando a eles como a natureza atua para gerar, desenvolver e manter a vida

Certa vez ele saiu com seus discípulos para uma dessas longas caminhadas. Ao iniciá-la, ele mandou que cada um deles pegasse uma pesada cruz de madeira e a carregasse pelo percurso todo. Ele mesmo pegou uma delas, acomodou-a nos ombros e saiu. Aquela cruz, disse ele, simbolizava as vicissitudes da vida, que todos somos obrigados a carregar.

E assim saíram, arrastando suas cruzes pelos campos pedregosos, com um sol escaldante a queimá-los. Um dos discípulos, achando insuportável aquele fardo, na primeira parada que fizeram para descansar, se afastou do grupo, e sem que ninguém o visse, cortou com sua espada, um pedaço da cruz, tornando-a mais leve. Na segunda parada, e na terceira, cortou mais dois pedaços, tornando-a mais leve ainda. E orgulhoso da sua esperteza, misturou-se aos demais discípulos,

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zombando intimamente dos companheiros, ao ver as costas dilaceradas deles. “Bando de tolos”, pensou. 

Era quase noite quando chegaram á margem de um rio. Logo avistaram, do outro lado, um magnífico jardim, que aos olhos de todos parecia o lugar mais lindo da terra. Ali parecia reinar a mais perfeita paz e a mais sublime felicidade.

“ Do outro lado deste rio” disse Zenão, “estão os Campos Elísios (o paraiso grego). É para lá que eu os estou conduzindo. O paraíso é o prêmio dado para aqueles que aprenderam a carregar o fardo da vida com sabedoria. Todos vocês podem passar para o outro lado e ganhar o prêmio que conquistaram. Mas cada um só pode atravessar o rio usando como ponte a sua própria cruz.” Todos conseguiram atravessar, menos o discípulo esperto, porque sua cruz não tinha o tamanho suficiente para chegar até a outra margem do rio.  

  

                   

A VAIDADE QUE MATA

Esta é a estória de um cervo que todo dia ia a um lago beber água. E depois que matava a sede ficava admirando a sua farta galhada. Cervos são muitos admirados pela sua bela cabeça.

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Muitos são caçados somente por causa dos majestosos chifres que eles têm. O nosso cervo sabia disso e por isso, toda manhã, após o gole de água matinal, ficava ali, admirando-se no espelho d!água. Mas logo se aborrecia. Pois assim que o sol mudava de posição no céu, a sua sombra era projetada no chão e ele via o contraste entre as suas pernas finas e a magnífica galhada. Então se lamentava que suas pernas não fossem tão bonitas quanto a sua cabeça.

Logo começou a pedir ao deus dos cervos (todos as espécies tem o seu) que lhe desse pernas tão belas quanto os chifres. Belas pernas, torneadas, longas, grossas, roliças como troncos de carvalho.

E tanto pediu que o deus-cervo, cansado daquela ladaínha, resolveu atendê-lo. Um dia, pela manhã, ao admirar sua galhada, o vaidoso cervo percebeu que alguma coisa mudara em sua fisionomia. Eram suas pernas. Em lugar das varetas finas e mal compostas, acordara com quatro lindas e bem torneadas pernas, que dariam inveja a qualquer filha dos homens. 

Enquanto admirava a sua nova beleza, sentiu o cheiro do seu velho inimigo leopardo. “Lá vem aquele chato de novo”, pensou. Todo dia era a mesma coisa. Primeiro o gole de d!água. Depois a admiração da galhada. Em seguida a prece ao deus-cervo por pernas mais bonitas. Depois toca fugir do leopardo.

O cervo riu. Ele sabia que o leopardo não era páreo para ele. Sempre foi mais rápido. Aquilo já virara um exercício ritualístico que ele praticava até com certa satisfação. Corria, corria, até fazer o leopardo cansar. E quando ele cansava e

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desistia, o cervo fazia troça dele, dando aquela sacudida no corpo, que era uma espécie de dança, praticada para descarregar a energia estática queimada na fuga. 

Fazia isso todos os dias. Era um ritual. Naquele dia, enquanto corria, pensava em quão bonita e sensual seria a dança do dia com aquelas novas e lindas pernas.

Mas não teve tempo de terminar o pensamento. Uma dor lancinante na garganta o interrompeu. Duas presas fortes e fatais acabavam de rasgá-la. Enquanto sentia o sangue quente escorrer-lhe pelo pescoço e a vida se esvair com ele, lamentou ter trocado a principal arma que a natureza havia lhe dado para a sua defesa por uma beleza efêmera e sem utilidade.

A natureza sempre sabe o que faz. Deixemos que ela nos guie.     

AS DUAS MULHERES DE PAULO                                        

  Paulo era um sujeito que se julgava sábio e forte ao mesmo

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tempo. Com as pessoas mais velhas e experientes ele se portava como uma delas; quando estava junto de jovens, se fazia de forte e tentava acompanhá-los de toda forma.

Por conta disso, arrumou duas amantes. A primeira era uma mulher mais experiente, que sabia todos os truques do amor. Mas até pela idade que tinha era mais comedida e tranqüila, não se submetendo a todos os desejos dele. A outra era jovem e fogosa. Sua pouca experiência a levava a querer experimentar de tudo.

Assim com a mais velha, Paulo se satisfazia, mas sempre ficava querendo mais. Com a mais nova ele se saciava, mas ficava sempre a impressão que o prazer nunca havia sido completo. 

Sentindo-se infeliz com a situação Paulo foi procurar ajuda profissional. E o terapeuta contou-lhe a seguinte fábula: “havia um homem já meio grisalho que tinha duas mulheres, em duas cidades diferentes. Uma era mais velha e a outra era mais nova. Numa semana ele visitava uma, na outra semana ele passava com a outra. Quando estava com a mais nova, ele pintava os seus cabelos de preto para parecer mais jovem. Quando estava com a mais velha lavava os cabelos para fazer desaparecer a tinta e mostrar a verdadeira idade.

De tanto pintar e lavar, seus cabelos começaram a cair e ele logo ficou careca. Nenhuma das duas mulheres gostava de homens carecas. E ele acabou perdendo as duas. 

Paulo entendeu. Na vida é preciso fazer escolhas. Não importa que, às vezes, nós nos enganemos ao fazê-las. O que não se pode é tentar passar a vida querendo ser o que não somos. Não sei dizer com qual das duas ele ficou. Talvez esteja esperando a nossa opinião. Se quiser, pode dar a sua, só não

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tente imitá-lo. Entre o céu e o inferno Deus colocou a terra para que os homens pudessem ter uma alternativa entre ser anjo ou demônio.

A MOSCA NA SOPA

Uma mosca que voava inadvertidamente numa cozinha, ao passar por cima da mesa, viu lá em baixo uma panela com

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uma suculenta sopa. O cheiro estava bom e ela desceu para prová-la. Ficou presa no caldo. Tentou nadar até a borda da panela, mas quanto mais se debatia, mais pesadas as suas asas ficavam.

Então pensou: “Não foi para isso que desci até aqui? Então vou aproveitar. E ao invés de se debater, comeu a sopa até se fartar. Depois deitou-se de bruços e ali ficou, a dormir. Uma colega, que costumava voar com ela em busca de comida, de repente, chegou á borda da panela e avistou a parceira, estatelada, a boiar no cheiroso e grosso caldo.

"Hei amiga, gritou ela. Não desista. Continue a nadar. Mexa as asas. Vamos, você consegue."

E a mosca, com seu último suspiro, respondeu: Bobagem, amiga. Eu já comi, já bebi, já tomei meu banho. Não foi para isso que vim parar aqui?    

Essa fábula de Esopo pode ser interpretada de muitas maneiras. Um sujeito sem ambição poderia dizer: Bom, é isso mesmo. Nós nascemos somente para desfrutar o que a vida nos oferece. Uma vez conseguido, por que lutar por mais alguma coisa? 

Também se poderia interpretar essa estória como sendo uma metáfora do perigo que ronda toda pessoa imprevidente, curiosa e gananciosa. Normalmente elas acabam se tornando prisioneira das coisas que desejam. Depois de conquistadas, não sabem mais como se livrar delas, mesmo que venham a causar sua morte.

Acontece muito com os vícios que adquirimos. No começo o cheiro é bom, o paladar é delicioso, o prazer é imenso. Depois....

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Essa fábula também pode ser tomada como exemplo de conformismo e abandono á providência, que muitas religiões aconselham como necessárias ao conforto do espírito, quando sentimos que a morte é inevitável. Isso significa que devemos deixar de lutar, de se apegar á vida, para que o espírito, liberto da ilusão da matéria, alce vôo, livre e leve.

Enfim, são muitas as interpretações que podem ser dadas. Se quiser, você pode dar a sua.

As fábulas de Esopo têm essa característica. Elas são verdadeiras mensagens de sabedoria que se prestam a muitas especulações. Por isso o grande La Fontaine, rei das fabulações, o colocava entre os maiores sábios que a Grécia já produziu.

     

A PARÁBOLA DOS TALENTOS

“A todo que já tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância; mas ao que não tem, tirar-se-lhe-á até o que parece ter.”

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Mateus,25:29 

Certa vez um multimilionário, conhecido como Sr. M. publicou num jornal de grande circulação diária um estranho anúncio: Precisa-se de um homem que saiba gastar dinheiro. Enviar currículos para o Sr. M...., na rua X, nº ......, historiando as experiências que já teve nesse trabalho.

Como é óbvio, milhares de candidatos, de todas as idades e procedências se apresentaram. Estelionatários, estróinas, pródigos, bon vivants, playboys de todos os tipos e muitas, muitas mulheres, pois é de domínio público que ninguém, melhor que elas, sabem gastar dinheiro.

Todavia, depois de uma rígida seleção, foi escolhido um pródigo jovem que já havia solapado duas grandes fortunas, a que o pai lhe deixara, e depois uma herança de um tio rico, que também lhe caíra nas mãos.

”Eu já fui um homem muito pobre e era muito feliz. Hoje eu sou um homem muito rico, mas me sinto muito infeliz” disse o milionário. “Cheguei à conclusão que o dinheiro não me traz felicidade, por isso quero livrar-me dele. Seu trabalho será gastar toda a fortuna que eu vou lhe mostrar. Não importa como você vai fazer, mas tem que fazer desaparecer esse dinheiro até o último tostão. Não receberá nenhum centavo enquanto todo esse dinheiro não desaparecer e eu ficar pobre novamente. Já reservei uma parte da minha fortuna e ela será sua depois de feito o serviço. Mas você tem que gastar o dinheiro. Não vale rasgar, nem doar, queimar ou jogar nenhuma nota fora.” 

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E mostrou ao rapaz um quarto atopetado de dinheiro, cheio até o teto, com notas de cem reais empacotadas em maços de dez mil cada um. Havia milhões e milhões de reais ali.

“Que trabalho mais estranho,” pensou o rapaz. Mas torrar grana era com ele mesmo. Por isso aceitou a incumbência com o maior prazer. A primeira coisa que fez foi comprar um caminhão baú e colocar nele todo o dinheiro. Depois saiu gastando a rodo. Comprou um avião e um iate e saiu pelo mundo afora, visitando os melhores balneários, se hospedando nos melhores hotéis, namorando as mulheres mais bonitas. Comprou vários carros de luxo, que usava apenas um dia e no dia seguinte doava para amigos e parentes. Almoçou e jantou nos restaurantes mais finos, levando uma multidão de parentes e amigos para comer de graça. Comprou casas, apartamentos e terras, que doou para os sem teto e para os sem terra. Promoveu suntuosos banquetes, para os quais convidou todos os mendigos da cidade. Presenteou, com presentes caros, milhares de conhecidos e desconhecidos. 

Tanto fez que conseguiu gastar toda aquela montanha de dinheiro. Por fim, depois de gastar o último real na compra de um sorvete, compareceu ao escritório do milionário para receber a paga pelo trabalho. Mas o que encontrou foi um sujeito sentado sobre uma montanha de dinheiro três vezes maior do que aquela que ele gastara. E o homem estava possesso. 

“ Não adiantou você gastar todo aquele dinheiro. Eu estou agora três vezes mais rico do que antes. Por isso não vou lhe dar nenhum centavo.”

“Mas como isso aconteceu?”, perguntou o jovem gastador.71

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“Eu torrei sem dó todo aquele dinheiro.” O contador do milionário explicou: “Um milionário

excêntrico andou pelo país gastando uma imensa fortuna. Comprou vários carros de luxo nas lojas do Sr. M, adquiriu diversos imóveis construídos pela construtora do Sr. M, almoçou e jantou, pagando a conta para centenas de pessoas, nos restaurantes do Sr. M, comprou até um iate no estaleiro do Sr. M e um avião feito em sua fábrica. De modo que não adiantou nada você ter gasto toda aquela fortuna. Agora temos outra três vezes maior. Você vai ter que ralar mais duro ainda para gastar tudo de novo se quiser receber o seu salário.” 

E assim foi. O pródigo rapaz recomeçou uma e outras vezes o serviço de gastar dinheiro, até que ele mesmo começou a achar aquilo muito enfadonho. Pois a cada montanha de dinheiro que o jovem estróina gastava, um monte de dinheiro muitas vezes maior aparecia para ele gastar. 

Para terminar, vamos dizer que o Sr. M. acumulou uma fortuna incalculável, e o jovem estróina morreu de enfado, sem nunca receber o seu pagamento.

OS TRÊS MALANDROS

Histórias que a vida conta

" O homem é o lobo do homem".

João, José e Pedro são três malandros bem safados. Não trabalham, usam drogas, roubam, enganam as pessoas, fazem qualquer coisa para ganhar dinheiro fácil. São o terror da cidade onde moram. 

Um dia eles se encontraram em um local afastado da cidade, para dividir o produto de um assalto que fizeram num posto de gasolina. Lá deram de cara com o corpo de um sujeito em baixo de uma árvore. Um garoto estava velando o defunto.

―Quem é esse cara? ―Perguntaram ao garoto. ―Ah! ―, disse o menino. È um ladrão e assassino que vivia

matando e roubando as pessoas. ―E quem o matou?―Um cara chamado Zé das Mortes. Ele é um justiceiro que

prometeu limpar a cidade de todos os ladrões e assassinos que andam por aí praticando crimes.

Os três malandros se entreolharam, preocupados.―É melhor pegar esse cara antes que ele pegue a gente ―

disse João.― Concordo – disse José.― Tô nessa – completou  Paulo. ―Sabe onde podemos encontrar esse Zé das Mortes?―perguntaram os malandros.―Sei ― disse o menino. ― Vão por essa estradinha de terra

ai, até encontrar a primeira encruzilhada. Ele costuma ficar descansando embaixo de uma árvore nesta hora do dia.

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João Anatalino

Lá se foram os três bandidos pelo caminho indicado pelo garoto. Andaram cerca de um quilômetro, até chegarem na encruzilhada e avistarem a árvore. Não encontraram ninguém deitado em baixo dela. Mas quando chegaram mais próximos notaram que havia lá uma maleta tipo 007. Abriram e viram que estava cheia de dinheiro. 

― Pô, meu! Deve ter prá mais de uma milha aí ―disse João.

― Por aí – disse José.― Caraca, mano! Com uma grana dessas não precisamos

mais roubar por um bom tempo ― disse Pedro.― É isso aí, mano, estamos ricos, precisamos comemorar,

― disse João.―Vamos tomar umas cervejas ― sugeriu José.―Faz o seguinte – disse João a Pedro. ― Vai até um

supermercado e pega umas cervejas para a gente comemorar. Enquanto isso nós contamos a grana e pensamos num meio de esconder até que a gente possa gastar sem perigo.

―Bem pensado ― disse José. ― O mano tá certo. A ideia é manera. Vai buscar umas cervejas para gente comemorar. 

Meio a contragosto Pedro foi procurar o supermercado mais próximo para comprar as cervejas. Enquanto isso, João diz a José.

―Seguinte, mano. Não vamos dividir por três essa grana não. Quando esse babaca voltar a gente queima ele e fica com tudo só para nós. Sacou?

―Beleza mano, é isso mesmo que eu tava pensando ― concordou José.

No caminho para a cidade, Pedro ia pensando. “Lá tem uma boa grana. Mas se a gente for dividir por três não vai sobrar

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muita coisa para cada um. Legal seria ficar com tudo para mim.”

Assim pensando, antes de entrar num supermercado e comprar as cervejas, ele foi à uma loja de implementos agrícolas e comprou veneno para ratos. Depois entrou num supermercado, e ao invés de cervejas comprou três garrafas de um bom vinho francês. No caminho abriu as garrafas e despejou nelas o veneno. Fechou-as de novo e voltou para junto dos amigos.

―E ai, galera? Ao invés de cerveja eu trouxe uns vinhos de bacana ― disse Pedro. ―Afinal, depois dessa a gente merece comemorar com bebida fina, não é mesmo?

―Genial ― concordaram João e José. ― Abre logo uma dessas!

Enquanto Pedro puxava a rolha de uma das garrafas, José sapecou-lhe três tiros no peito. Pedro morreu em menos de trinta segundos.

―Agora vamos comemorar e dividir a grana ― disse João.―Vamos lá – respondeu José. 

E beberam a primeira garrafa praticamente de uma vez só.Nem foi preciso abrir a segunda. Em menos de quinze minutos os dois malandros estavam mortos, espumando pela boca.

Já era noite quando Zé das Mortes passou por ali. Olhou demoradamente para os corpos dos três malandros e sorriu. Era o mesmo menino que havia falado anteriormente com eles. Só que desta vez ele estava usando uma longa batina preta e um capuz da mesma cor na cabeça. Por baixo dele se podia ver o sorriso diabólico no rosto esquelético. Nas mãos descarnadas trazia uma foice de ceifar. De só golpe separou do corpo as três

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cabeças. Segurado-as pelos cabelos, desapareceu na noite escura, rindo diabolicamente.           O MONGE E O LADRÃO.

Um monge, que tinha a fama de ser muito sábio, morava em um mosteiro que tinha a fama de ser muito rico. A razão dessa fama era o fato de ele ser o principal conselheiro do rei e em razão disso o monarca  o cumulara de favores e lhe dava muito dinheiro. Por isso ele era também imensamente rico. 

Em consequência, o mosteiro onde ele vivia era visado por todos os ladrões do país. Sofria constantes tentativas de assalto. Mas o monge também tinha fama de mestre nas artes marciais. Daí acontecia que todos os ladrões que tentaram entrar no mosteiro acabavam levando homéricas surras.

Um dia um notório ladrão e assassino quis bancar o esperto e resolveu assaltar o mosteiro. Sabendo que o monge era bom de briga, ficou esperando que ele dormisse para tentar invadir o edifício. Assim não teria que enfrentar o mestre lutador. Ficou a espreita até ter certeza que ele pegara no sono, e pé ante pé, entrou no mosteiro.

Começou a procurar a sala onde o dinheiro era guardado. Mas logo percebeu que a tal sala era justamente o cômodo onde o mestre dormia. Fazendo o menor barulho possível, ele abriu a porta do cômodo e espreitou lá dentro para ver se o monge realmente estava lá. Mas surpresa! Só havia no meio do quarto um pé de pinheiro. 

“Ué“ disse consigo mesmo o ladrão. “Onde foi parar esse monge? O quarto só tem essa porta e nenhuma janela. Eu o vi o

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entrar e agora não tem ninguém aqui. Para onde será que ele foi, e como saiu sem que eu o visse?” 

Saiu e procurou lá fora, mas não encontrou ninguém. Esquadrinhou o mosteiro inteiro e não achou viva alma. Voltou ao quarto e procurou e procurou de novo. Não achou nada. Não havia ouro, nem dinheiro, nem bem algum. Só aquele pé de pinheiro no meio do quarto. 

De repente lhe veio a inspiração. É claro. Só podia ser isso. O monge, além de ser um grande lutador, tinha também poderes mágicos. Ele era capaz de ocultar seus tesouros dos olhos profanos e podia se transformar em pinheiro. Aquele pinheiro era o próprio mestre. 

“Esses poderes valem mais que dinheiro,” disse consigo mesmo o ladrão. “Vou voltar amanhã e pedir ao monge que me ensine essa mágica”. 

Dito e feito. Na manhã seguinte lá estava o ladrão na porta do mosteiro implorando ao monge para que este o recebesse como discípulo. 

O mestre consentiu e  o agora antigo ladrão tornou um monge também. Largou a vida de marginal e com o tempo tornou-se também um grande mestre, respeitado por todos. Quando o velho monge estava para morrer e indicou-o ao rei como seu sucessor, este perguntou, preocupado: ―Como vou saber se seus antigos instintos de ladrão e assassino não aflorarão novamente? 

―Não há perigo, Majestade ― respondeu o mestre. ― Todos os homens são iguais. Eles sempre querem acreditar em alguma coisa. Dê-lhes algo de bom em que eles possam realmente acreditar e os tereis sempre fiéis e leais.

E assim foi.77

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O SONHO DE JOÃOZINHO

Joãozinho é um menino de dez anos de idade. Não tem um único par de sapatos decentes para usar. O único calçado que ele conheceu até agora é um velho par de tênis que achou num monturo de lixo perto do barraco onde mora com sua mãe viúva e mais cinco irmãos, três deles mais novos do que ele.

Os tênis de Joãozinho estão tão velhinhos, tão surrados, que ele tem que colocar um pedaço de plástico por dentro para não ficar pisando direto no chão. 

O sonho do menino é comprar um par de tênis novo. Por isso, todo dia ele vai ao centro da cidade e fica olhando, do lado de fora, a vitrina de uma loja de calçados. Nunca entra na loja, só fica olhando as vitrinas do lado de fora. 

Um dia, Joãozinho ganhou uns troquinhos trabalhando como flanelinha numa das esquinas da cidade. Tomou chuva e sol, levou uma pá de broncas e meia dúzia de pontapés na bunda por ficar passando aquela flanela suja nos vidros dos carros, sem que lhe fosse pedido. 

Mas há muita gente boa e tolerante nesse mundo e houve até quem pagasse por esse trabalho. Por isso, lá está o Joãozinho, agora, com várias moedas e algumas notas de dois reais no bolso, olhando de novo para a vitrine da loja. Só que desta vez ele tem coragem para entrar. E todo orgulhoso, pergunta o preço de um belo par de tênis que está na vitrina, parece, olhando para ele e dizendo: “Me leva, menino, que eu quero ser todo seu."

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O dono da loja é um “turcão” nervoso que vem logo perguntando o que ele está fazendo ali.

– Quanto custa esse tênis? – pergunta Joãozinho.– Quanto dinheiro você tem? – pergunta o “turco” bigodudo.Joãozinho mostra a sua fortuna, uma mão cheia de moedas e

algumas notas de dois reais.– Isso não paga nem a palmilha – diz, com sarcasmo, o

“turco”.Em seguida, com o maior desprezo, empurra o menino para

fora da loja, dizendo que ele está atrapalhando a entrada dos fregueses.

Joãozinho sai jurando a si mesmo que um dia ficará rico o suficiente para comprar a loja inteira. Coisas de menino, mas de qualquer modo, a partir daquele dia, começa a guardar toda e qualquer moedinha que ganha no seu trabalho de flanelinha para fins de um dia poder cumprir aquela promessa. 

Para encurtar a história vamos dizer que Joãozinho nunca comprou a loja, até porque os interesses dele o fizeram aportar em outras ilhas mais interessantes. Ele cresceu, ficou adulto, estudou, trabalhou, ganhou dinheiro. Montou uma sólida e florescente empresa, virou gente importante. 

Esqueceu o “turco” nervoso. Como empresário de sucesso ele pode agora dar para os seus filhos todos os Nikes e Reeboks que o dinheiro pode comprar.

O “turco” nervoso, a propósito, não fez carreira longa no comércio da cidade. Faliu algum tempo depois daquele incidente com o flanelinha, deixando uma enorme dívida na praça.

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A MENTE AGITA A MATÉRIA

Dona Maria tem 85 anos de idade. Mora sozinha em um apartamento com seu velho gato Rasputin. Não espera mais nada da vida. Filhos e netos criados, ninguém se importa mais com a velha senhora. Só muito raramente um ou outro filho, ou neto, vem visitá-la, e quando vem, certamente é para pedir alguma coisa, que Dona Maria, malgrado viva da sua parca aposentadoria, nunca deixou de atender.

Além de alimentar e fazer carinho no seu velho e preguiçoso bichano, a outra coisa que Dona Maria gosta muito de fazer é colecionar bugigangas. Sempre que pode ela vai a uma loja de antiquário, ou de penhores, e acaba comprando ou arrematando alguma coisa. O apartamento dela está cheio de bibelôs, estatuetas de porcelana, vasos, caixinhas de música, etc.

Um dia Dona Maria comprou uma velha ânfora, dessas que antigamente se usava para guardar azeite. A ânfora estava bastante velha e ela resolveu poli-la um pouco. Não precisamos dizer o que aconteceu. O leitor por certo já intuiu. Era uma lâmpada mágica, e de dentro dela, em meio a uma nuvem de fumaça colorida, eis que, diante da atônita velhinha, surgiu aquele gênio das lendas.

― Salve Ama! A senhora tem direito a três pedidos, disse, com uma mesura, o gênio.

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Dona Maria é uma senhora bem informada e conhece a estória do gênio da lâmpada. Assim, sabe ela que se não pedir com sabedoria, de nada adiantará ter um gênio só para si. 

Por outro lado, sabe também que não adianta pedir uma determinada coisa, como dinheiro, por exemplo, e não ter saúde para gastá-lo. E nada adianta ter saúde e dinheiro e não ter disposição e boa companhia para ajudar a gastá-lo. 

Dona Maria pondera bem o que vai pedir. Como são apenas três desejos que serão atendidos, precisa pedir coisas que sejam completivas umas das outras, para que sua felicidade seja completa. Depois de muito pensar ela decide-se por fim.

– Gênio, já sei o que eu quero, anote aí:1) Desejo ficar jovem de novo. 2) Quero que você me faça ganhar dez milhões na loteria. 3) Quero que você transforme o meu velho gato Rasputin

num lindo jovem da minha idade, e que ela seja tão carinhoso quanto é o meu velho gato, e perdidamente apaixonado por mim.

Dito e feito. Desejos atendidos. Dona Maria tornou-se uma linda jovem. Ainda por cima rica, com os dez milhões da Mega Sena que ela acertou sozinha. E ao seu lado estava um rapaz bonito e apaixonado, extremamente carinhoso, se esfregando o dia inteiro nela e prometendo-lhe amor sem medida, para todo o sempre.

À noite, Dona Maria e seu namorado foram a um motel de luxo. Queriam comemorar sua felicidade com uma inesquecível noite de amor. Depois do champanhe, dos carinhos, de todas as preliminares, que o ex gato soube executar muito bem, o antigo gato Rasputin, agora um rapagão

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bonito e sarado, olhou para Dona Maria, e com um ar de desconsolo, disse: 

―Você não está arrependida de ter mandado me castrar?                                                     

O VASO QUEBRADO

Dona Mercedes é uma empresária de sucesso que ficou rica investindo com muita competência cada centavo que ganhou. Comanda muitos funcionários, tanto na empresa que possui quanto na bela casa em que mora. O que ela mais detesta é quando alguém lhe dá algum prejuízo. Ela odeia perder ou ser privada de alguma coisa. Por conta disso já mandou embora muito empregado por ter quebrado uma máquina, motoristas por terem batido o seu carro, empregadas por terem quebrado objetos em casa, etc..

As duas coisas que Dona Mercedes mais ama são sua filha de sete anos, uma linda menina chamada Iasmine, e um vaso de porcelana Ming que ela comprou numa viagem que fez à China. São os dois xodós dela.

Dona Mercedes ficou viúva há dois anos. Seu marido morreu num acidente de avião e ela foi obrigada a assumir todos os negócios da família. 

Iasmine amava muito o pai e ficou muito triste com a morte dele. Dona Mercedes ajudou a menina a superar a sua falta fazendo-a entender que tudo, no mundo, um dia desaparece.

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Nada sobrevive para sempre, disse ela à menina. Mais dia, menos dia, tudo vai embora. Pessoas, animais, plantas, pedras, minerais, mais cedo ou mais tarde, tudo deixa de existir.

Essa é a lei da vida e nós não podemos mudar isso. A menina entendeu, e embora sinta muita saudade, conseguiu superar a falta do pai e voltou a ser uma criança alegre e feliz.

Dona Mercedes tem uma empregada meio descuidada chamada Maria. Um dia, ao espanar os móveis da sala, ela bateu com o cabo do espanador no precioso vaso Ming de Dona Mercedes. O vaso caiu e se espatifou no chão. 

Ela sabia o quanto a patroa gostava daquele vaso. Sabia também que custava uma fortuna. Nem que trabalhasse cem anos conseguiria pagar o prejuízo. Sentou-se no chão e chorou.

Iasmine entrou na sala e encontrou Maria em prantos. Ela gostava muito da espevitada empregada. Perguntou o que aconteceu. Maria contou.

― Chora não ― disse a menina. ―Mamãe não vai brigar com você por causa disso. Maria não tinha certeza e continuou a chorar. 

―Deixa comigo ― disse a garotinha. Em seguida pegou os casos do precioso vaso e os colocou em sua maleta de escola.

Dona Mercedes chegou em casa nessa tarde e encontrou Iasmine esperando no jardim.

―Mãe ― foi logo perguntando a menina. ― Você disse que tudo desaparece, não disse?

―Sim, filha ― tudo que existe, um dia deixa de existir ― disse Mercedes, pensando que a filha estivesse se referindo ao pai.

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―Tudo mesmo, inclusive plantas, pessoas, animais, pedras, vasos, livros e tudo que existe no mundo, um dia deixam de existir?

―Sim, filha. É verdade. Tudo que existe, um dia deixa de existir. Mas porque você está me perguntando isso?

Então Iasmine abriu a sua maleta de escola e mostrou os cacos do precioso vaso Ming. 

― Eu não briguei com Deus quando ele quebrou o meu pai. Você vai brigar com a Maria porque ela quebrou o seu vaso? 

Dona Mercedes chorou. O que ela disse ou fez com Maria depois disso eu não sei. Mas os empregados dela dizem que ela mudou muito. Continua a ser muito competente, mas todos concordam que ela se tornou uma pessoa mais compreensiva e tolerante.

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O MONGE E O DRAGÃO

                                                      Numa caverna em uma montanha vivia um terrível dragão

que costumava devorar todos que por lá se aventuravam. O rei, cansado de ver seus melhores cavaleiros serem mortos e devorados, ofereceu uma grande recompensa para qualquer um que conseguisse destruir o monstro. Porém foi em vão. Todos que tentaram pereceram. O monstro era invencível. 

Apareceu então um jovem monge que se propôs enfrentá-lo.― Loucura ― disseram todos. ―Nem os mais preparados guerreiros do país conseguiram sobreviver a uma batalha contra esse dragão. Como poderás tu, quem nem cavaleiro é, enfrentá-lo?

― Usarei uma arma que até agora ninguém ainda usou ― disse o monge.

E assim foi ele para a montanha, sob os olhares consternados da população, que já o consideravam morto.

Ao chegar na entrada da caverna, o monge sentou-se numa pedra e ficou aguardando que o monstro saísse. Assobiou uma canção para atraí-lo. Logo apareceu a fera soltando fogo pelas narinas. Desconfiado pelo fato de o monge não demonstrar

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nenhum medo na presença dele, o dragão perguntou: ― Que vieste fazer aqui? Não sabes que devoro todos os homens que se aventuram a invadir meus domínios? 

― Sei― respondeu o monge. ― Mas sei também que não queres fazer isso comigo.

― O que te leva a pensar que serei mais gentil contigo do que fui com os outros? ― vociferou o monstro.

― Não sei, mas tenho certeza de que não queres devorar-me.

― Porque não o faria?― Porque tu e eu somos iguais. ― Que semelhança vês entre nós? Eu sou um dragão e tu és

um homem. Que pode haver de mais diferente no mundo?―Tu defendes o teu território contra aqueles que pensas ser

teus inimigos e eu, como homem, faço o mesmo. Tu comes e bebes quando tem fome e sede e eu faço o mesmo. Dormes quando tem sono e eu também. Defecas os detritos dos alimentos e eu faço a mesma coisa. Sentes frio no inverno e calor no verão e eu também. Sentes o desejo do sexo e o medo do relâmpago, e isso também eu sinto. Por consequência há muito mais semelhanças entre nós do que diferenças. 

Surpreendido pela lógica do discurso do monge, o dragão ficou pensativo por alguns momentos. Por fim, respondeu: 

― Talvez seja verdade o que dizes. Mas ainda não vejo porque não devo devorá-lo como fiz com os outros

― Agora que sabes que somos iguais ― respondeu o monge ―, sabes também que fazemos parte da mesma família e somos membros do mesmo corpo.  Se me devorares estarás devorando a ti mesmo. Só um louco faz mal a si próprio.

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Novamente, o dragão ficou pensativo. As palavras do monge tinham sentido e ele não conseguia encontrar resposta para elas.

― Não viestes aqui para matar-me e receber a recompensa prometida pelo rei? ― perguntou o dragão. 

Não ― respondeu o monge. ― Vim para informar-te dessas coisas. Para dizer-te que quando devoras alguém estás a devorar a ti mesmo. Antes não sabias disso e a tua conduta não te fazia mal. Estavas inconsciente a esse respeito. Agora sabes, e todo homem que devorares roubará um pouco da tua vida ao invés de alimentar-te. Por conseguinte, morrerás mais depressa que pensas e dessa forma não será preciso que eu o mate. Basta esperar que morras naturalmente em consequência do teu próprio comportamento.

― Vai-te daqui ― gritou o dragão. ― Tua conversa está embrulhando o meu estômago. 

O monge se foi e o dragão vomitou durante três dias. Depois disso tornou-se vegetariano. Deixou de matar e devorar as pessoas que passavam pelo seu território. Tornou-se um ser amigável e simpático, e passava o tempo filosofando e ensinando às pessoas a doutrina da unidade da natureza. Logo se tornou a principal atração turística do reino. Vinha gente de todo o mundo só para ver e ouvir o dragão vegetariano e filósofo. Pagavam muito dinheiro por isso. 

O reino prosperou com esse turismo e todos ficaram felizes. A única coisa que o dragão exigiu foi que o rei lhe mandasse toda semana um carregamento de legumes e verduras. O rei concordou, pois além de acabar com o perigo que o monstro representava, essa providência concorreu para aumentar a produção agrícola do reino. Autoridades e povo satisfeitos, o

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rei pagou ao monge a recompensa por que a mudança de comportamento do monstro representou para ele e seu povo, coisa muito melhor que a sua morte. 

O TIRANO DA ALDEIA

                                              Numa antiga aldeia medieval, situada no alto de uma colina, havia um castelo onde habitava um senhor feudal muito malvado. Seu principal divertimento era atormentar os pobres aldeões, seus servos, com castigos e trabalhos forçados, para que eles não tivessem forças nem coragem para se revoltar. 

Não havia água na aldeia. O poço mais próximo ficava a mais de um quilômetro colina abaixo, de sorte que os pobres moradores do povoado, todo dia eram obrigados a descer com seus cântaros, para se prover do precioso líquido. 

Um dia o senhor resolveu construir uma muralha de proteção para o seu castelo. Para isso convocou todos os cidadãos da aldeia e os fez trabalhar como escravos. Dois aldeões mais corajosos resolveram desafiar o malvado senhor. Recusaram-se a cumprir suas ordens e fizeram alguns discursos sediciosos, tentando sublevar a população. O senhor, depois de subjugá-los com a força dos seus soldados, impôs-lhes um cruel e aviltante castigo: um deles deveria transportar nas costas as pedras necessárias para a construção da muralha do castelo; o outro deveria, diariamente, prover os trabalhadores da necessária ração de água, transportando nas costas um pesado odre com água tirado do poço que ficava na aldeia, até

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o alto da colina, onde a muralha de proteção do castelo estava sendo construída.

Esse castigo só seria suspenso quando os muros ficassem prontos. Assim, os dois infelizes começaram a cumprir sua pena. Dia e noite, um transportando pedras, o outro carregando água.

Anos se passaram. Um dia, o malvado senhor percebeu que as muralhas logo ficariam prontas e ele teria que libertar os aldeões e perdoar os dois rebeldes. Isso era o ele que menos queria. Então imaginou um cruel estratagema: mandou que um soldado se postasse no alto da colina e toda vez que o prisioneiro chegasse com um carregamento de pedras, ele as empurrasse colina abaixo. E depois mandava, sob ameaça de morte, que o infeliz fosse buscar um novo carregamento. 

Quanto ao que carregava água, o tirano mandou que fossem feitos pequenos furos no fundo dos odres, de tal sorte que o infeliz não os percebesse. Quando ele chegava ao alto da colina, praticamente toda a água carregada no odre havia se perdido pelo caminho. E assim ele tinha que voltar para pegar mais água.

Durante algum tempo os prisioneiros suportaram a terrível sina. Por fim, cansados de fazer aquele trabalho inútil, seus únicos desejos era acabar logo com aquela vida miserável para não precisar mais fazer aquele serviço sem finalidade. Ensimesmados em sua própria infelicidade, não perceberam que as pedras que eram roladas do monte foram recolhidas pelos aldeões que viviam no sopé do mesmo, e com elas eles haviam construído muitas casas novas, transformando a pequena aldeia numa florescente cidade.

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Quanto á água que se derramava dos odres, ela regava a terra, fertilizando-a. Logo, um belo jardim de flores e frutos silvestres se formou á beira do caminho e se espalhou por toda a colina.

A população cresceu e começou a se organizar. Chegou o dia em que os aldeões, agora cidadãos, decidiram se ver livres do malvado senhor do castelo. Então o atacaram e ele não pode se defender, pois não conseguira terminar a muralha de proteção, ocupado que estava em inventar maldades e aplicar castigos nos dois rebeldes. Seus soldados, enfraquecidos pela sede, preferiram se juntar aos atacantes logo na primeira investida. 

O povo vitorioso carregou nas costas, em triunfo, os dois antigos prisioneiros morro acima, num cortejo pela alameda ornada de flores e saborosas frutas. E depois disso logo fundaram uma república.

Entre o grupo de notáveis que foi eleito para governar a cidade, os dois prisioneiros foram eleitos para os cargos mais importantes.

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O MAGO E O MILIONÁRIO

“ Bemvindo ao mundo dos mágicos, meu filho!”

Bandler e Grinder

Pai Rebas era um velho ermitão que tinha a fama de feiticeiro e mago. Morava numa velha casinha ao pé de uma montanha onde recebia as visitas das pessoas que procuravam a sua ajuda para resolver problemas de saúde e questões psicológicas mais profundas.

A todos que o procuravam Pai Rebas atendia com cortesia e prontidão. Aceitava dinheiro de quem podia pagar e comida e outros presentinhos de quem não podia. 

Mas nunca negava atendimento a uns e outros nem fazia discriminação entre aqueles que pagavam muito e os que nada deixavam. Aos doentes de corpo receitava ervas e outras panaceias naturais; aos doentes de alma dava conselhos, construía metáforas e fazia outros passes, que a uns parecia mágica, a outros bruxaria, a outros simples rituais sem significado algum, mas que sempre acabavam gerando benefícios para quem os praticava.

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A verdade é que ninguém saia da cabana de Pai Rebas sem se sentir melhor do que quando entrara. 

Um dia o velho mago recebeu a visita de um homem muito rico. Chegou num luxuoso automóvel, acompanhado de vários seguranças, que ficaram do lado de fora da cabana, guardando a porta.

― Em que posso ajudá-lo, meu filho? ― perguntou o velho mago com o seu cativante sorriso e aquele ar de absoluta tranquilidade que nunca abandonava sua postura.

― Não sei se o senhor pode me ajudar ― disse o sujeito.― Então por que veio me procurar? ― perguntou o velho mago, sem mudar de expressão.

― Me disseram que o senhor é um bruxo, um sujeito capaz de fazer mágicas com as pessoas e eu fiquei curioso em saber se era capaz de fazer comigo o que ninguém ainda conseguiu fazer.― E o que eu devo fazer com você, meu filho? ― perguntou Pai Rebas, sem se alterar.

― Sabe, eu sou um homem muito rico. Desde a adolescência meu sonho era ganhar muito dinheiro e me tornar um milionário, amado, famoso e respeitado.

― E conseguiu tudo isso? ―perguntou Pai Rebas.―Dinheiro e fama, sim. Formei-me na universidade aos

vinte e dois anos, montei a minha própria empresa e tive muito sucesso nos negócios. Minha marca está hoje em todos os países do mundo e ganho tanto dinheiro que ás vezes nem sei o que fazer com ele. 

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― Já experimentou financiar obras de caridade e ajudar outras pessoas a alcançar o mesmo sucesso que você alcançou?― perguntou Pai Rebas.

― Já ―, disse o milionário. ― Tenho uma fundação que aplica milhões em projetos sociais que beneficiam milhares de pessoas ― respondeu o homem.

― Mesmo assim está insatisfeito, não é? ― Sim ― respondeu o homem. Descobri que não é esse o

tipo de respeito que eu quero. As pessoas me recebem e me bajulam. Pedem conselhos, jornalistas escrevem a minha bio-grafia. Organizações pagam muito dinheiro para que eu dê palestras. Muitos jovens procuram me modelar. Mas eu sinto que tudo isso é falso. No fundo todos só querem é saber o tamanho do cheque que eu vou deixar para os seus projetos pessoais ou o que eu vou poder fazer por eles. 

― Quanto aos relacionamentos ― continuou ele ―, já me casei e separei três vezes e não consigo me sentir seguro em nenhum casamento. Tenho a impressão que as mulheres que se aproximam de mim já vem pensando no montante da pensão que irão pedir no momento da separação. 

― E o que posso fazer pelo senhor ―, voltou Pai Rebas a perguntar.

― Diga-me porque não consigo ficar satisfeito e depois faça um de seus trabalhos para que eu deixe de ter esse sentimento de frustração ― pediu o milionário, com um indisfarçável sarcasmo na voz.

― O que me você pede é uma mágica ― disse Pai Rebas, sem se alterar ― O Senhor acredita em mágicas? 

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― Claro que não ― disse o homem. ― Mágicos são embusteiros que enganam as pessoas com truques de ilusionismo.

―Na vida tudo é ilusão, meu filho ― disse Pai Rebas. Tanto as coisas que eu faço quanto as coisas pelas quais você lutou a vida inteira. Assim, seja o que for que eu faça por você, tudo continuará sendo somente magia e ilusão.

― Então o senhor também é um velho enganador ― disse o sujeito.

― Sim, meu filho. Sou um velho mago que engana as pessoas. E a vida também é um mago que engana todo mundo.

― Então, se tudo que fazemos é ilusão, que nos resta da vida senão morrer? ― perguntou, desconsolado, o milionário.

― Essa é a única realidade da vida ― disse Pai Rebas. ― E se é essa a solução que você acha que lhe serve eu posso ajudar. 

E, como num passe de mágica, fez aparecer sobre a tosca mesa que os dividia um velho revólver carregado.

O milionário empalideceu. ― Está sugerindo que eu me mate? ― perguntou o homem, surpreso. 

― Eu não, a sugestão foi sua― respondeu Pai Rebas.― O senhor é louco ― disse o milionário.― Todos somos loucos em algum grau ― respondeu Pai

Sebas.―É só isso que pode me sugerir?― perguntou,

decepcionado, o milionário.― Há outra alternativa que pode resolver o seu caso ―

disse Pai Rebas.― Qual? ― Perguntou o homem.

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― Aceitar que tudo na vida é ilusão e aprender a conviver com ela.

O homem permaneceu em silêncio durante alguns segundos. Depois, com um largo sorriso disse: 

― Entendi, Pai Rebas, o que o senhor quer dizer. Acho que eu consigo aprender a conviver com a ilusão da vida.

― Muito bem, meu filho ― disse Pai Rebas. Você acaba de ser iniciado na seita mais competente do mundo: a seita dos mágicos, onde se aprende a conviver com a ilusão dos sentidos.

ENSINE-ME A MUDAR SEM FAZER OUTRO DE MIM

Durante muitos anos um jovem e piedoso noviço viveu em um mosteiro estudando muito e praticando as lições que recebia de seus mestres. Seu grande sonho era ordenar-se e tornar-se um grande mestre também.

Próximo do fim do seu noviciado, o abade-mor chamou-o e disse: “está na hora da vossa prova final. Se quiserdes vos tornar um mestre de verdade, tereis agora de deixar o mosteiro e só voltar quando tiverdes convertido um grande pecador.”

O noviço deixou então o mosteiro e peregrinou por muitas cidades, perguntando a todos que encontrava no caminho, quem seria o maior pecador daquela terra, para que ele pudesse convertê-lo.

Depois de muito pesquisar, chegou à conclusão que o maior pecador daquelas paragens era um famigerado ladrão e

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assassino chamado Ado Malv, cujo esconderijo ficava nas montanhas próximas a um lugar chamado Vestra. Dirigiu-se para lá e se propôs a ensinar ao bandido o caminho do bem.

Em princípio, o marginal achou divertido o discurso do noviço, mas logo começou a cansar-se dele. Chamando de lado o jovem disse-lhe: “Tu és um idiota, rapaz. Quem te disse que eu quero mudar de vida? Que bem é esse do qual falas e quem é esse Deus que eu não conheço? Se eu fizesse um décimo do que me pedes para fazer, meus homens me cortariam a garganta, minhas mulheres me arrancariam os olhos, meus inimigos me tirariam as entranhas e as jogariam aos abutres. O que chamas de minha maldade é a minha força, e o que dizes serem os meus pecados, são a fonte do meu prazer. Se queres que eu te compreenda, ensina-me a tirar melhor proveito daquilo que eu já sei fazer muito bem.”

E o noviço viveu na casa do bandido durante dez anos. Nesse tempo, o marginal Ado Malv tornou-se um líder popular. Todos os pobres e injustiçados de Vestra o procuravam e ele os acolhia. O seu acampamento virou uma grande comunidade e o bando que ele liderava um verdadeiro povo. Logo, uma revolução popular aconteceu, e o povo de Vestra fez de Ado Malv o seu líder.

Quando as forças populares tomaram o governo, ele foi coroado o novo rei do país.

O bandido tornou-se um grande estadista, aplicando todas as suas habilidades para melhorar a qualidade de vida da população. A fidelidade que havia entre os componentes do bando foi ensinada ao povo e tornou-se solidariedade; a lealdade que era exigida entre os ladrões, tornou-se regra de

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convivência entre os habitantes do reino e converteu-se em honra seriedade nos negócios; a igualdade que imperava entre os bandidos foi absorvida pela legislação do país, de modo que nunca se viu uma terra com leis mais justas do que o reino de Vestra. Aliás, o reino também mudou de nome, passando a chamar-se Zul.

Depois de dez anos, o noviço voltou para o mosteiro e o abade-mor cobrou-lhe o cumprimento da missão.

“ Não o pude fazer, Monsenhor. O homem que era o maior pecador do país não quis ouvir minhas razões, nem se propôs a aceitar o nosso Deus. Talvez eu não seja digno de tornar-me um mestre. Deixa-me, no entanto, ficar mais um tempo entre vós e continuar aprendendo.”

“ Conta-me o que fizestes nesses anos todos junto a esse bandido”, pediu o abade-mor. E o noviço contou-lhe como um covil de bandidos e ladrões havia sido transformado em um reino próspero e justo.

Depois de ouvir o relato do noviço, o abade-mor olhou profundamente nos olhos dele e viu a luz que ali brilhava. Então, tomado de profunda emoção, disse ao noviço: “ Aprendestes e ensinastes a mais sublime das lições: Fazer com que o mal se torne em bem sem tentar mudar os que os praticam. Amanhã tomareis o meu lugar no comando deste mosteiro e todos os que aqui vivemos nos tornaremos vossos devotados discípulos.”

 

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OS CÓDIGOS DO AMOR

Um dia Luíza acordou com um estranho sentimento a incomodar-lhe o peito. Parecia que ele estava oco. Era como se, durante a noite, alguém tivesse remexido em seu coração e retirado de lá uma boa parte do seu conteúdo emocional.

Sentada na cama, ela procurou entender o que tinha acontecido. Talvez fosse um sonho qualquer que ela teve, que provocava aquela desagradável impressão, mas ela não se recordava de nada. 

Olhou em volta do quarto para ver se alguma coisa ali a informava do que estava acontecendo. Não. O quarto continuava como antes. Nada mudara nele. Eram as mesmas cortinas bege, o mesmo azul claro das paredes, o mesmo retrato da mulher segurando um cântaro, pendurado na cabeceira da

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cama, os mesmos armários embutidos, revestidos de madeira cerejeira.

Nada de diferente. Tentou também se lembrar se alguma coisa, acontecida antes de dormir, que pudesse ser a causa daquele sentimento, mas também desta vez a memória não a socorreu.

Deus, o que havia acontecido? Foi então que ela olhou para Inácio, seu marido. Ele ainda estava dormindo. Ela nunca havia feito isso antes, mas agora, uma estranha curiosidade a fez deter os olhos e os ouvidos focados nele por mais tempo. Era engraçado isso. Depois de mais de vinte anos de casados, três filhos, a experiência de uma vida inteira com aquele homem, pareceu a ela que acabava de acordar ao lado de um desconhecido. Ou pelo menos de alguém que, nesse momento não era aquele homem com ela casara. 

Ela sempre soube que ele roncava alto. Descobriu isso na primeira vez que dormiram juntos. Naquela ocasião ela achou o ronco dele engraçado. Parecia uma serra elétrica. Ás vezes era como se a serra encontrasse um nó na madeira e ela então patinava, soltando um som rouco e surdo. Quando ele bebia um pouco mais à noite, roncava como uma panela de pressão descarregando o excesso de vapor. 

“ Há vinte anos que estou agüentando isso”, pensou. Ela nunca havia colocado a questão desse modo. Na verdade, o ronco dele, no começo, a divertia. Depois, praticamente acostumada, nem ligava mais. Mas agora, ela percebia, com certa irritação, que isso a incomodava.

Na cozinha, durante o café, aconteceu outra coisa que a deixou apreensiva. Sempre fora assim. Enquanto ela preparava

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o café e arrumava e mesa, Inácio pegava o jornal e passava os olhos nas notícias do dia. Era quase como um ritual. Trocavam poucas palavras. Frequentemente acontecia de o leite, ou o café, esfriarem enquanto ele lia o jornal. 

“Este café e este leite estão frios” dizia ele nessas ocasiões, e ela prontamente ia esquentá-los. Naquele dia, porém, a frase “estão frios”, a incomodou. Caiu como se fosse uma censura pessoal. 

“Eles estavam bem quentinhos quando eu os pus ai”, respondeu ela, com um azedume que nunca pensou ser capaz. 

“Se você não ficasse fazendo hora com esse jornal...”, foi a frase que lhe saiu automaticamente da boca, como se ela sempre estivesse ali, mas só agora estivesse sendo libertada. 

Inácio ergueu os olhos do jornal e olhou para ela como se estivesse vendo-a pela primeira vez. 

“O que foi?” perguntou. “Está se sentindo bem?” “Nada”, respondeu Luíza, pegando o bule de leite e

levantando-se para esquentá-lo. “O que está havendo comigo?”, perguntou-se uma e mais

vezes durante a manhã. Na casa nada mudara. Com os filhos estava tudo igual. A mesma ritualística para tirá-los da cama, fazê-los arrumar os quartos, tomar banho, café e ir para a escola. Nada de diferente nisso, e ela percebeu que não era ali que estava a fonte do seu desassossego.

Na hora do almoço, com Inácio na mesa, junto com os filhos, ela percebeu que ele fazia barulho ao mastigar. Estranho. Ela nunca notara isso. Viu que ele também costumava derramar um pouco de comida fora do prato. Sempre fizera isso. Era comum ela ter que limpar a mesa

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depois das refeições e o lugar de Inácio era onde se encontrava mais restos de comida. 

E assim se passou também toda a tarde. Á noite, quando Inácio chegou, ela sentiu que o “selinho” que ele lhe dava era frio e convencional. Algo assim como um aperto de mão de um conhecido, um vizinho, alguém que lhe é apresentado numa reunião social.

E sentiu também uma irritação quando ele, depois do banho, foi direito para a sala e ligou a televisão. Lembrou-se que era isso que ele fazia todos os dias. Ela nunca se incomodara com esse comportamento. Mas agora, a impressão que dava era que ela era um móvel que se integrara no ambiente, e sempre estivera ali, por isso a presença dela não era mais notada.

E também no banheiro molhado que ele sempre deixava depois do banho, nas roupas que ela encontrava espalhada pelo quarto, e em um monte de coisas desagradáveis que ele fazia e que ela nunca houvera notado antes, Luíza começou a perceber que depois de vinte anos, era como se uma cortina tivesse sido aberta dentro da cabeça dela e ela começava a ver coisas que não via antes. 

Naquela noite, depois do ato de amor, que lhe pareceu um longo e entediante ritual, embora ela tivesse notado que durara muito menos do que costumava durar nos primeiros tempos da relação deles, Luísa chorou. Ela sabia que as portas para uma ruptura com tudo que antes, para ela, tinha significado e valor haviam se aberto. Ou elas seriam fechadas novamente, cerradas com tudo que havia dentro daquele quarto que tinha sido repentinamente aberto, ou então seria arrastada pelos ventos que começavam a soprar de dentro dele, cada vez mais fortes.

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Passamos as nossas vidas procurando atribuir rótulos, identidades e valores às coisas. Quanto vale para você aquele estado de enlevamento místico, quase mágico, chamado amor? Quanto valia para um poeta romântico do século XIX, ou para um jovem, ou uma jovem que tenha modelado o amor através de um arquétipo tipo Romeu/ Julieta, por exemplo?

Talvez você pense que esses arquétipos não existem na vida real, que foram criados pela imaginação de um autor, apenas para despertar emoção nas pessoas. Mas eles existem sim. Existiam antes de Shakespeare contar a sua história sobre os jovens amantes de Verona, e continuaram a existir depois disso, com muito mais naturalidade. 

O quanto você pode gostar de uma pessoa para se recusar a continuar vivendo sem ela? O que nos leva a experimentar uma intensa paixão por alguém? Certamente é o fato de nós associarmos à pessoa amada todos os atributos que o nosso sistema neurológico valoriza. E ao mesmo tempo dissociar dela aqueles que nos incomodam.

Outras pessoas podem ver que aquele (a) a quem damos o nosso amor é fisicamente sem atrativos, antipático (a), agressivo(a), cheio(a) de defeitos. Nós, no entanto, não temos essa visão. Quem ama o feio, bonito lhe parece, já diz um antigo ditado, e isso é verdade. Ora, o que é isso senão o efeito swish1 provocado pela emoção do amor? Quer dizer, o nosso 1 Swish é um tipo de exercício desenvolvido pelos praticantes de PNL para “apagar” da mente informações neurológicas que geram estados internos limitantes. É um processo que ensina a usar a memória das nossas experiências como se ela fosse um filme rodado ao contrário.

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sistema neurológico só enxerga a pessoa pela emoção que ela nos provoca, e isso faz com que ela nos apareça à mente com as cores mais favoráveis, os sons mais agradáveis, as sensações mais deliciosas.

Isso não quer dizer que não enxergamos os defeitos da pessoa amada. Enxergamos sim, mas não os vemos. Porque nesse caso, quem dirige o processo é o nosso inconsciente. É ele quem valora a informação que chega dela. Daí não aceitarmos que a pessoa amada tenha uma voz irritante, um corpo desajeitado, uma postura deselegante, um odor desagradável, etc. Os outros enxergam isso, nós não.

O amor, como qualquer outro estado interno que nós experimentamos, é construído com informações neurolinguísticas. Existe, na pessoa amada, algumas informações que o nosso inconsciente recebe, e nos fazem “crer” que aquela é a pessoa que corresponde aos nossos padrões de valores sentimentais, e conseqüentemente, a química do amor é liberada. 

Essa química é feita de códigos neurológicos, São as cores, o brilho, o foco, a imagem, o modo de olhar, de vestir, enfim tudo que está ligado ao sentido da visão; são também as informações auditivas que vem dela, tais como o sotaque, o ritmo, a cadência, a clareza, a altura, a harmonia, o padrão de voz, tudo que se liga ao sentido da audição; e por fim, aquilo que a pessoa inspira em termos de sensações cinestésicas, como temperatura, maciez, suavidade, pressão, peso etc, que são sensibilidades ligadas aos nossos sentidos prioceptivos. São esses códigos que fazem nascer o sentimento chamado primeiro de admiração, depois de enlevamento, em seguida de

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encantamento e por fim de amor. Daí nascem as metáforas que antecedem a instalação desse estado: ele(a) é um pão, ele(a) me dá um calor, ele(a) pega gostoso, etc. (cinestesia). Ela (a) é uma visão maravilhosa, um colírio para os olhos, (visual). Ouvi sinos, coro de anjos, quando o (a) beijei (auditivos) e por aí adiante.

.Assim, da mesma forma que o amor é instalado através de

informações neurolinguísicas, ele também é desinstalado, com o tempo, pela falta dessas informações. Cadê o cuidado com a aparência que ele(a) tinha quando estavam namorando? Ele (a) hoje se arruma tão bem como naqueles tempos em que estavam namorando? Cadê as frases de amor, o tom doce e modulado que ele (a) colocava na voz quando conversavam? Cadê o carinho que ele (a) punha naqueles toques, cadê a pressão daquela “pegada” dos primeiros tempos? 

A informação vai desaparecendo, o estado interno que ela alimentava também vai enfraquecendo. E de repente, um dia, a gente descobre que o amor acabou. Mas não foi o amor que acabou. Foram as informações que o alimentavam que deixaram de ser dadas. O amor, como qualquer outro estado interno é como é como a anedota do cavalo do fazendeiro inglês: quando está quase aprendendo a viver sem comer, ele morre.

Matamos o amor quando deixamos de fornecer as informações que o fizeram nascer. O problema é que só nos apercebemos disso quando já é tarde demais.

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Luíza2 é uma das pessoas que vieram aos nossos treinamentos de PNL procurando um modo de recuperar as informações que a levaram a se apaixonar por Inácio. Não foi possível para ela recuperar essas informações, até porque Inácio já não queria mais dá-las. A separação acabou sendo inevitável. É que no caso dela, esse era um projeto que não dependia dela somente. Era preciso que Inácio também se envolvesse nele. Afinal era ele quem emitia as informações que ela precisava para gerar o estado interno que foi desinstalado com a rotina. E ele não tinha o mesmo propósito de Luíza.

Mas o caso dela teve um final feliz. Porque no nosso próprio curso ela encontrou Augusto e todas as informações que ela perdera em Inácio foram recuperadas com ele. Como ela mesma descobriu, não há nada melhor do que gostar sabendo o porquê gosta. Esse é o tipo do amor maduro que pode durar a vida inteira.  

A RÃ E O RATO

Esopo, o filósofo grego moralista que gostava de ensinar sua filosofia através de fábulas, conta que um rato do banhado, um dia conheceu uma rã, e os dois se ligaram por laços de forte amizade. Depois de algum tempo estavam tão ligados um ao

2 Luíza é um nome fictício. Os nomes aqui foram trocados para preservar a identidade dos personagens.

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outro que resolveram celebrar sua amizade atando suas patas, um ao outro, para que nunca mais se separassem. E assim lá se foram, os dois, pelo pântano afora, em busca de comida. 

Ao chegar à beira de um igarapé, a rã imediatamente pulou na água atrás de um petisco que ela viu boiando nela. E arrastou com ela o rato.

Enquanto a rã se banqueteava o rato se afogava. Só depois de saciada sua fome foi que ela percebeu o cadáver do seu amigo rato boiando nas águas pútridas do igarapé. Mas não teve tempo de chorar nem de separar-se do seu grande amigo, pois um gavião que estava observando tudo de cima de árvore, num vôo rasante e certeiro arrebatou imediatamente o corpo do rato e o levou para o seu ninho, onde seis famintos filhotes, com seus dilacerantes bicos abertos esperavam a ração do dia. E nesse dia o repasto dos gaviõezinhos foi bem mais farto, porque junto com o rato morto veio também uma gorda rã, que embora viva, não resistiu mais que dois minutos aos ataques dos famintos filhotes do gavião.

Uma aluna dos nossos treinamentos de PNL conta uma história semelhante. Ela viveu essa história. Tinha sido educada numa família de bons princípios morais, com pais muitos sérios e amorosos, que tudo fizeram para que ela e seus irmãos tivessem um futuro brilhante e uma vida digna. 

Mas ainda muito jovem, apesar de todos os conselhos de amigos mais experientes e das advertências dos pais, ligou-se a um grupo de amigos que conheceu em uma balada. Eles se tornaram a sua “turma”. Por conta daquela amizade ela esqueceu todos os bons princípios que havia adquirido antes e

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lhe parecia que somente o prazer que lhe dava a companhia daqueles amigos a satisfazia.

Alguns deles gostavam de consumir drogas. E ela, por solidariedade e amizade a eles acabou também se viciando. 

Teve a sorte de conseguir desatar-se deles antes que um gavião (um evento mais grave como um acidente de carro, a morte em uma briga, uma overdose, prisão ou outro acontecimento desse tipo, que vive a rondar a vida de toda pessoa que se mete nesses pântanos fétidos da droga), a destruísse de vez.

Recuperada, depois de um longo tempo de internação em uma clínica e após um terrível período de sofrimento e dor, dela e de seus parentes e verdadeiros amigos, ela só queria agora recuperar o tempo perdido no cultivo com de uma amizade perigosa. 

Que Deus a ajude e os verdadeiros amigos também. Na fábula de Esopo a rã tinha, na verdade, um propósito

mau. Ela queria sacanear o rato. Por isso amarrou a perna dele na sua mesmo sabendo que o rato não era bom nadador e fatalmente acabaria se afogando. Ferrou o rato, mas também teve o seu castigo por querer prejudicar os outros. Os dois acabaram na pança de um predador.

Não é o caso da nossa jovem colega. Aqui, os amigos dela, ao arrastarem-na para essa vida dissoluta e perigosa achavam que estavam fazendo algum bem a ela. Estavam dando-lhe prazer, o prazer que eles mesmos pensavam que estariam obtendo. As pessoas são assim mesmo. É uma característica intrínseca do nosso sistema neurológico acharmos que tudo que fazemos tem uma intenção positiva. Até o mais aberrante

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comportamento é praticado porque de alguma forma ele se justifica.

Essa fábula de Esopo, entretanto, não chama atenção apenas pelo ensinamento moral que ela pretende transmitir, ao sugerir que quem procura ferrar os outros acaba sempre se ferrando junto.  

Ela contém também um preceito de sabedoria muito interessante: ele diz que não existe inteligência nenhuma em ficarmos amarrando nossas vidas á vida de pessoas que nada tem a ver conosco. Rãs e ratos foram feitos rãs e ratos pela natureza. Cada um deve viver no seu habitat, com a sua própria cultura. Uma convivência pacífica entre ambos já está de bom tamanho. Mais do que isso é querer parar mesmo, no bico do gavião.

Carpe Diem.

AMBIÇÃO QUE MATA

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Numa fazenda viviam muitos animais, de diferentes espécies. Todos tinham sua utilidade. A cabra fornecia leite para os queijos que o fazendeiro fazia e vendia. O cavalo, puxando a carroça, providenciava transporte para a família. A vaca, além do leite que alimentava a família, também ajudava na roça, puxando o arado. As galinhas forneciam ovos e carne. O porco fornecia carne. O cachorro fazia a segurança. Até o periquito era útil, pois era com ele que o fazendeiro passava suas horas de repouso, conversando. 

Tudo ia bem naquela fazenda e havia harmonia entre todos os que nela habitavam. O fazendeiro distribuía as rações com justiça e parcimônia, dando a cada animal a sua parte diária, suficiente para que eles mantivessem a vida e a saúde.

Mas um dia sobreveio a discórdia. E ela foi iniciada por causa da inveja. É sempre a inveja a mãe da discórdia. Quem a iniciou foi a cabra. Foi ela a primeira que reclamou da parte que lhe cabia nas rações.

“ Eu dou leite todos os dias para o senhor fazer queijos e ganhar dinheiro”, disse ela ao fazendeiro. “Assim, posso dizer que sou eu quem sustenta essa fazenda. Por isso acho que tenho direito à uma parte maior de ração.”

O fazendeiro ponderou as reclamações da cabra e achou-as justas. E aumentou a sua parte de ração. Mas para fazer isso teve que diminuir a cota dos outros animais. Então, naturalmente todo mundo começou a reclamar. E o trabalho, que antes era feito com muito empenho por todos começou a ser negligenciado.

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Não demorou muito os demais animais começaram a ficar doentes, pois a sua dose diária de ração não era suficiente para sustentá-los com boa saúde. A cabra, entretanto, estava gorda e satisfeita. 

Pouco a pouco, os demais animais foram caindo doentes de verdade e pararam de trabalhar. Alarmado com a doença que grassava na fazenda, o dono foi procurar um curandeiro (não havia veterinários na região) para receitar um remédio para curar seus animais.

E este lhe disse que seus animais precisavam de cálcio.  E logo lhe receitou uma infusão de ervas do campo, temperada com chifres de cabra queimado, por que estes são feitos de cálcio puro. Disse-lhe também que lhe desse ração com gordura de cabra, que esta lhes recuperaria a força. 

O fazendeiro ponderou. Entre perder um dos animais e perder todos, ele optou pela menor perda. E a cabra foi sacrificada. Se o remédio fez efeito ou não, não sabemos dizer, mas agora, com suas rações aumentadas por conta da parte da cabra, os animais recuperaram a saúde e voltaram a trabalhar em harmonia.

Até o próximo surto de ambição.Moral da história: A ambição desmedida é uma doença

mortal. E não há remédio que a cure. Se a humanidade desaparecer um dia será por causa dessa praga.     

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A PERERECA E O MORCEGO.

Esopo também conta que um morcego e uma perereca, que não gostavam da forma como o Criador os havia feito, imploraram a ele que os transformasse em pessoas. E mais que isso, pediram que o Criador os transformasse num rapaz e numa moça, profundamente apaixonados um pelo outro.

Foram tantos os pedidos, tão sinceros, tão sentidos, que o Criador condescendeu. Afinal, morcegos e pererecas são inimigos naturais e quando se encontram, normalmente a perereca acaba no bucho do morcego. Assim, pensou o Criador, talvez fosse bom, só por experiência, que pelo menos uma vez eles se amassem em vez de um matar o outro. 

Transformados em dois jovens de grande beleza, o morcego e a perereca decidiram ir a um motel para sua primeira noite de amor como um casal de apaixonados. (Este é um acréscimo meu).

Mas eis que no melhor do lance, uma mosca entra no quarto e fica zoando em cima dos dois. A garota, imediatamente, estica a enorme língua e abocanha a bichinha como se fosse um aspirador chupando um grão de poeira.

Nesse momento o encanto se dissipa e ela se torna novamente uma perereca.  E o rapaz, transmutado novamente em morcego, salta em cima dela e devora-a imediatamente.

Pela manhã, a camareira que arrumava os quartos só encontrou os restos da perereca em cima da cama e quase desmaiou quando viu um morcego bem gordinho que voejava em volta do quarto procurando uma saída.

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Há várias lições de moral nesta estória. A primeira é que a gente precisa se conformar com aquilo que a natureza nos dá. A segunda é não devemos ficar desejando ser o que não somos. A terceira é que precisamos aprender a escolher com sabedoria os nossos parceiros. A quarta é que não importa o quanto disfarcemos o que somos, a nossa natureza sempre nos denunciará.

Acrescento mais uma: não podemos mudar a nossa natureza, mas é possível nos tornarmos melhores sem precisar renunciar á nossa própria personalidade.

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OS COMERCIANTES AZARADOS

Uma gaivota, um morcego e uma coruja resolveram se associar para montar uma empresa comercial. O ramo escolhido foi a venda a varejo, de mercadorias importadas da China, tipo Loja $ 1,99. Depois de cumprirem todas as formalidades, tais como abertura de firma, registro na Junta Comercial, obtenção de CNPJ, Inscrição Estadual, Inscrição Municipal, alvará de licença da prefeitura, etc. eles resolveram distribuir as tarefas. 

O morcego, como tinha fama de hematófago (sabia sugar o sangue dos outros como ninguém), ficou com a parte financeira. Assim, a sua primeira medida foi correr a um banco e arrancar (ninguém sabe como) um empréstimo a juros baixos para financiar o capital de giro da empresa.  

Á gaivota, como era freqüentadora assídua do cais do porto, coube o encargo de despachar as mercadorias na alfândega. Afinal, todo mundo sabe que para se dar bem com os fiscais aduaneiros, a pessoa precisa ser “avião” e conhecer bem o ambiente do porto. E isso era com ela mesmo, pois nascera ali e era íntima de cada cantinho daquele local.

Quanto à coruja, todos sabem que ela é a mais sábia da espécie dos pássaros. Pelo menos ela nunca dorme de touca. Está sempre alerta, sempre vigilante, sempre de olho no negócio. E como todo mundo dizia que negócio nenhum anda sem o olho vivo do dono, á ela foi cometida a tarefa de administrar a loja e cuidar da segurança.

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Assim, montada a empresa, distribuídos os cargos e cumpridas todas as formalidades legais, a GAMORCO Lda., Comércio e Representações iniciou as atividades importando logo de cara dois contêineres de 40 pés, lotados de mercadorias chinesas. Tinha de tudo no pacote. Bijuterias, materiais escolares, artigos de cama e mesa, de escritório, papelaria, canetas, enfim, tudo que se imagina encontrar numa loja tipo $ 1,99 estava nos dois contêineres.

O navio já estava próximo ao canal do porto. A gaivota, que nesse tempo todo, não parou de sobrevoar toda a orla do porto, já o havia avistado de longe. Excitada, logo avisou os sócios:

Nossa carga está chegando! Ela deve atracar amanhã cedo disse ela.

E os três abriram uma garrafa de champanhe para comemorar, e claro, com tira gosto apropriado para cada um deles: peixe cru para a gaivota, chouriço para o morcego e vários tipos de insetos para a coruja.

Mas infelizmente o navio não chegou a atracar. Naquela noite, uma grande tempestade, com ventos de mais de 120 quilômetros por hora se abateu sobre o porto e afundou várias embarcações que estavam esperando ao largo para atracarem no cais. Uma delas foi o navio que trazia a carga da GAMORCO. 

Todas as mercadorias foram parar no fundo do canal. E na euforia de abrir e começar logo a vender os seus produtos, eles se esqueceram de providenciar um seguro. Assim, a GAMORCO fechou antes de começar.

Por isso é que hoje a gaivota vive sobrevoando a orla marítima sempre com os olhos fitos no mar, como a esperar por

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um navio que nunca chega. O morcego internou-se na sua caverna e só sai á noite para não ser cobrado pelos credores e a coruja, coitada, esta nunca mais dormiu à noite, sempre temerosa que alguém venha tirar alguma coisa dela. 

Todos nós, ás vezes, fazemos escolhas erradas na vida e também estamos sujeitos à acontecimentos fortuitos que nos trazem maus resultados. O que não podemos é ficar eternamente presos ao passado, como se um dia, aquilo que já aconteceu fosse um padrão que vai se repetir para sempre.   

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O PAPAGAIO ESPERTO

               Um notório ladrão andou observando uma residência por vários dias, esperando pelo momento em que seus proprietários se ausentassem para invadi-la e limpá-la de todos os pertences de valor.

E um dia a coisa aconteceu. A família saiu para viajar. Então o ladrão resolveu aproveitar a oportunidade. Esperou a calada da noite e com um pé de cabra forçou a porta dos fundos e entrou.

Mas foi só acender a lanterna que ele ouviu uma voz esganiçada que vinha da cozinha, dizendo: “te peguei malandro!”.

Imediatamente o gatuno fugiu. Já estava quase saltando o muro da casa, quando parou e pensou. “Mas eu conheço todos que moram nessa casa e vi todo mundo saindo. E não vi ninguém entrar nela depois disso. Tem coisa estranha aí. Ah! já sei, talvez aquilo seja uma gravação acionada por estimulo luminoso. Foi a luz da lanterna que a acionou. Aquela voz não parecia ser de gente. Não deve ter ninguém em casa.”

Pensando assim, voltou e foi diretamente à cozinha. Ao começar a girar sua lanterna pelos cantos do cômodo ouviu novamente a voz: “Te peguei, malandro!”. Ao focar em um dos cantos descobriu: era um papagaio.

“Então era você, né, seu papagaio safado. Pois vou depená-lo inteirinho e depois colocá-lo num espeto para assar”, disse o ladrão.

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“Pelo amor de Deus, não faça isso” disse o papagaio. “Não some o assassinato ao roubo, pois tornará o seu crime ainda maior.”

“Vocês, papagaios, são todos malandros e mentirosos”, disse o ladrão. “Mas eu sou compreensivo. Diga-me três verdades que eu não possa contestar e eu pouparei a sua vida”. 

Então o papagaio disse: Eis as minhas três verdades:1º:- Eu gostaria muito que você não tivesse entrado aqui;2º - Mas já que você entrou, gostaria que você fosse cego e

surdo para não ter me visto nem escutado;3º - Mas já que você entrou, me viu e me escutou, então eu

gostaria que você saísse imediatamente e que a polícia estivesse esperando por você lá fora.”

O ladrão começou a rir. “Eis aí três verdades que eu não posso contestar”, disse ele. “Não duvido nem um pouco que você esteja me desejando tudo isso.”

Rindo, e em honra ao papagaio esperto, o ladrão deixou a residência sem levar nada.

Moral da história: A verdade não deve nos ofender nem humilhar, nem quando ela é dita pelos nossos piores inimigos. 

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A CERIMÔNIA DO CHÁ-CONTO ZEN

Um jovem discípulo, com o desejo de homenagear seu mestre, a quem muito respeitava, foi ao belo jardim do mosteiro e colheu as mais belas flores que encontrou. Fez com elas um lindo buquê e entrou, muito alegre, na sala de chá, onde o mestre o aguardava.

Ele sabia que o mestre adorava flores. Todos os dias ele trocava as tsuba kides do belo vaso ikebana que ele mantinha diante do seu tokonoma (altar). 

Tão alegre e afoito estava o jovem discípulo para entregar as flores ao mestre que não percebeu a borda do tatame. Tropeçou, caiu e elas caíram de sua mão. Eram flores muito lindas, mas extremamente frágeis, as tsuba kides, com suas delicadas pétalas brancas.

As pétalas se despregaram dos caules e se esparramaram pelo tatame que cobria todo o espaço da sala de chá.O jovem discípulo começou a chorar. 

“Porque choras?”, perguntou o mestre.“Eu vos trouxe essas flores. Eram tão belas no jardim e

ficaram ainda mais belas quando eu as dispus num buquê. Agora estão mortas”, choramingou o discípulo.

O mestre não disse nada. Apenas tocou de leve no ombro dele e pediu que se sentasse. Em seguida pegou o belo vaso ibekana  e o colocou no centro do tatame. Em seguida pegou os caules nus e os colocou dentro dele, com esmerada delicadeza, num artístico arranjo. Depois juntou as pétalas

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espalhadas pelo chão e as dispôs em um arranjo harmonioso, em volta do vaso. 

“ Quando tirastes esses flores do seu tronco”, disse o mestre, “prejudicastes a harmonia do universo porque provocastes uma mudança na sua estrutura. Mas logo tudo se recompôs porque elas deixaram de ser flores e passaram a ser um belo presente que tu estavas trazendo para mim”.

“ Elas não faziam mais parte da terra, que as gerou e alimentou até aquele momento, mas  passaram a fazer parte de ti, do teu desejo, da tua alegria em contentar-me. O universo se recompôs com esse ato, pois todo sonho realizado faz o universo funcionar”, continuou o mestre.

“Quando elas caíram e se despetalaram, e se esparramaram pelo tatame, o universo se desequilibrou novamente, pois o teu desejo não se realizou e tu te magoaste. Todo coração que se magoa é causa de desequilíbrio no universo”, disse o mestre.

“ Mas agora  elas passaram a fazer parte desta sala . Continuam belas e úteis, ao compor com ela um belo arranjo.E tudo está em harmonia novamente”, concluiu.  

Então o jovem discípulo uniu as mãos e com um inclinação saudou o mestre. Tinha compreendido. Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Todo sofrimento é causado pelo apego ao que já fomos, ao que já tivemos, ao que já vivemos.

Isso , muitas vezes, nos impede de viver a forma presente e sermos úteis nas nossas formas futuras. 

Assim, com equilíbrio do universo recomposto, mestre e discípulo, silenciosamente tomaram o seu chá.  

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QUEBRANDO OS OVOS

  O presidente daquela grande companhia estava para se aposentar. Reunira o conselho consultivo da empresa justamente para escolher o seu sucessor. Ali estavam o vice-presidente, o superintendente e os mais antigos diretores, todos cotados para a sucessão. Entre eles um jovem executivo recentemente contratado para oxigenar a divisão de planejamento, criando novos produtos e sugerindo novas estratégias de mercado.

Os rostos graves dos senhores sentados naquela mesa mostravam claramente o momento tenso que eles estavam vivendo. A empresa estava em crise. Perdendo mercado para os concorrentes. Suas ações caindo vertiginosamente na bolsa. Baixa produtividade e pouca motivação entre os funcionários. Lucro zero.

– Como vocês sabem, nossa empresa está passando por uma séria crise – disse ele. – Eu estou velho demais para enfrentá-la. Por isso estou deixando o cargo. Quero passá-lo para aquele que me der a melhor proposta para resolver essa crise. Considero todos aqui, nesta mesa, como concorrentes. Aquele que me apresentar a melhor idéia de como devemos enfrentar nossos problemas ocupará minha cadeira daqui para diante.

Seguiu-se um longo e constrangedor silêncio. Parecia que ninguém tinha a menor idéia do que fazer para salvar a empresa.De repente o jovem executivo, recentemente contratado, se levantou da cadeira. Todos esperavam que ele, que havia sido contratado exatamente para sugerir novas estratégias, desse

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alguma idéia. Mas ao invés de falar, ele pediu para sair da sala por um momento. Todo mundo pensou que ele iria até sua sala buscar algum material que porventura estivesse desenvolvendo. Afinal, ele fora contratado para isso.

Logo voltou com um lindo vaso de porcelana nas mãos e uma vistosa rosa dentro dele. O presidente reconheceu imediatamente o vaso. Era justamente um precioso vaso de porcelana chinesa que enfeitava a sua ante-sala. 

– O senhor pediu uma solução para os problemas da empresa e eu sugiro esta – disse o rapaz. E pegando o precioso vaso, espatifou-o no chão. Os velhos conselheiros, perplexos, passavam, alternativamente, os olhos pelo rosto impávido do rapaz e para os cacos do precioso vaso, sem entender.

Somente o velho presidente abriu um largo sorriso.           – Entendi, meu jovem – Enquanto olharmos para a nossa

empresa como se fosse um inestimável vaso de porcelana que guarda uma linda rosa, não conseguiremos enfrentar os nossos problemas de frente. É preciso quebrar ovos para fazermos uma omelete. E quando os velhos caminhos já não levam a lugar nenhum é preciso ter coragem para abandoná-los e abrir outros novos. – A reunião terminou – disse o velho presidente. – Já encontrei o meu substituto.

  

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AS QUATRO NOBRES VERDADES

                                                             Sidarta Gautama, o mais conhecido e festejado Buda que já veio ao mundo, vivia caminhando pela terra da Índia, e em cada cidade em que entrava, procurava ensinar aos seus discípulos a sua doutrina. Ela era baseada nas Quatro Grandes Nobres Verdades da Vida que são: A Verdade Nobre sobre o sofrimento; a Verdade Nobre sobre como surge o sofrimento; A Verdade Nobre sobre como dar fim ao sofrimento; A Verdade Nobre sobre o Caminho que produz o fim do sofrimento.

Assim, ele aproveitava tudo que lhe acontecia para mostrar aos seus discípulos que a maior de todas as sabedorias é aprender a controlar as paixões que os sentidos nos trazem. 

Certa feita ele entrou em uma cidade e uma linda mulher se encantou de tal maneira com seus ensinamentos que se apaixonou profundamente por ele e se propôs segui-lo por todos os cantos, como sua esposa ou amante. Sidarta elogiou os seus encantos e agradeceu todos os carinhos que ela lhe fez e as declarações de amor. Mas recusou os seus favores sexuais, dizendo que ele não podia deixar de pensar nela como mulher, mas tinha que se controlar em virtude dos votos de castidade que fizera.

De outra feita, ele entrou em uma cidade e o sultão que a governava se propôs a pagar-lhe uma fortuna para que ele se tornasse preceptor dos seus filhos e conselheiro da corte. Sidarta recusou dizendo que ele não tinha nada contra possuir

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bens e acumular riqueza, mas precisava se controlar porque a vida que escolhera não lhe permitia desejar bens na terra.

Sua doutrina pregava o total desapego por tudo. Numa outra oportunidade, quando entrava em outra cidade, um indivíduo, que odiava os seguidores de Sidarta (por que, na opinião dele, eles pervertiam a juventude, transformando jovens de grande futuro em monges mendicantes) atirou excrementos nele e nos seus discípulos.

Nessa mesma ocasião, outro indivíduo que estava ouvindo sua pregação, convidou-os para irem á sua casa, (uma residência muito rica) e tratou dele e de seus discípulos, lavando-os e alimentando-os. Sidarta abençoou a ambos, tanto ao que o feriu quanto ao que o tratou com benignidade, dizendo que, mesmo sofrendo, sua doutrina o mandava amar da mesma forma aqueles que o amava e também quem o odiava. 

Assim, dizia ele: a verdadeira sabedoria não consiste em matar nossas paixões, mas sim, em controlá-las. O homem, em seu corpo físico é pura paixão, mas em seu espírito, precisa ser tolerância e tranqüilidade. Só assim poderá alcançar o Nirvana, que é aquele estado em que sua mente se liberta definitivamente de todos os pesos que a chumbam á roda da vida.

Essa, para ele e seu seguidores, era a verdadeira sabedoria e a única forma de se libertar para sempre de todo e qualquer sofrimento. 

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ATILA E O FILÓSOFO

  Conta-se que Átila, o terrível rei dos hunos, temíveis guerreiros orientais que devastaram a Europa no século V, era um sujeito cruel e sanguinário. Por onde seus exércitos passavam ficava um rastro de sangue e mortes sem precedentes. Por isso ele ficou conhecido como o “Flagelo de Deus”.

Não obstante, ele era um sujeito culto e gostava muito de aprender. Matava e torturava sem piedade seus adversários, mas poupava os sábios e filósofos e gostava de mantê-los em sua corte para deles receber instrução.

Certa vez, depois de invadir e conquistar mais da metade do Império Bizantino, ele chegou ás portas de Constantinopla e já preparava o cerco á cidade. A população da grande cidade estava em polvorosa, pois sabia que os terríveis guerreiros não costumavam poupar ninguém.

Fora dos muros da cidade morava um velho filósofo, cuja casa os hunos logo invadiram.  Eles já estavam prontos para dizimar toda a família do sábio e queimar a propriedade. Mas ao saber que ali morava um filósofo, Átila se propôs a poupar a ele e sua família se o sábio conseguisse lhe ensinar alguma coisa nova, que ele ainda não soubesse.

O sábio então o levou até o pomar e pediu para ele cortar o galho de uma árvore. 

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“Isso é fácil” disse o rei. E pegando a sua espada, decepou com um único golpe o galho de uma macieira.

“Agora coloque de novo o galho na árvore”, disse o sábio.“Isso é impossível”, disse o rei. 

“Pois é”, respondeu o sábio. “Destruir é fácil. Qualquer tolo pode fazer isso. Difícil é refazer o que foi destruído. Só os muitos sábios conseguem fazê-lo.”

Átila entendeu o recado e retirou-se com seu exército. E assim Constantinopla foi salva da invasão.     

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A METÁFORA DO PASSARINHO

O discípulo de um famoso mestre zen, desejoso de mostrar o quanto era esperto, apresentou-se ao velho mestre com um passarinho preso entre as mãos e perguntou: “mestre, o passarinho que tenho entre as mãos está vivo ou morto?”

Se o mestre dissesse que o passarinho estava vivo, ele o mataria, esmagando-o; se dissesse que estava morto, ele o soltaria. De qualquer modo mostraria ao mestre o quanto ele podia ser esperto, enganando-o.

Todos os discípulos do sábio se ajuntaram em volta dele para ver como ele resolveria tão intrincada questão. Então ele respondeu. “Só depende de você o fato desse passarinho estar morto ou vivo.”

Bela metáfora essa. E revela uma verdade profunda. Nós nos tornamos responsáveis por tudo aquilo que abraçamos, por tudo aquilo que enfeixamos em nossas mãos. É, mais ou menos, o que Saint- Exupéry escreveu no seu famoso conto “O Pequeno Príncipe”. Nós nos tornamos responsáveis por todos aqueles a quem cativamos, pois quando cativamos, prendemos pelo coração. Essa era uma frase basilar nos anos sessenta. Todo mundo vivia repetindo isso, mesmo sem entender muito bem o que significava.

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Significa compromisso. Significa que temos responsabilidade com tudo e com todos que, de alguma forma, estão ligados á nós. E o mundo todo está ligado conosco. O mundo todo está enfeixado em nossas mãos, porque, bem ou mal, todos compartilhamos de um pedacinho dele. Se esmagarmos o nosso pedacinho, se matarmos o nosso pedacinho, estaremos contribuindo para a morte do universo inteiro. James Gluck, em seu perturbador ensaio, “Teoria do Caos”, nos mostra como isso acontece, com a curiosa metáfora do Efeito Borboleta.

Seja como for, o fato é o seguinte: se o passarinho está na sua mão, a vida ou a morte dele é problema seu; mas a conseqüência dessa morte recai sobre todos. Deus emancipou o homem quando ele resolveu trocar a sua condição de inocente caseiro do paraíso terrestre por uma mente capaz de pensar por si própria.

Quando Ele disse  “ eis que Adão se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal”, Ele, na verdade quis dizer que o homem, dali por diante estaria por sua própria conta e risco.

E estamos. O destino, nosso e do universo inteiro está em nossas mãos.      

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NÃO EXISTE REFEIÇÃO DE GRAÇA

  Um crocodilo faminto capturou um filhote de gamo e devorou sua presa com tanta pressa, que muitos restos de carne ficaram presos nos vãos das suas presas mortais.

Isso o incomodava muito. Mergulhou nas águas do rio e lavou a enorme bocarra muitas vezes, mas os fiapos de carne não saíram. Pensou que eles logo apodreceriam em sua boca e além do péssimo hálito que exalariam, denunciando a sua presença de longe e prejudicando futuras caçadas, sua poderosa dentadura poderia apodrecer, pois já percebera que uma colônia de vermes se alojara no meio deles.

Foi então que percebeu um bando de pássaros chafurdando as margens do rio á procura de insetos e moluscos para comer. Imaginou logo um estratagema. Chamou os pássaros e disse-lhes: “Hei amigos. Vocês não precisam passar o dia inteiro nesse charco procurando comida. No meio dos meus dentes há comida suficiente para todos vocês. “Façam um favor para mim e para vocês mesmos.” “Limpem os meus dentes desses vermes que estão instalados neles. Assim vocês terão uma refeição fácil e me prestarão um favor pelo qual lhes serei eternamente grato.”

Os pássaros, vendo aquela imensa colônia de vermes nos dentes do crocodilo, logo se puseram a bicar a imensa

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dentadura e a limpá-la. Logo eliminaram os vermes e retiraram os detritos que estavam presos entre eles. Assim a boca do crocodilo ficou limpa e seus mortíferos dentes completamente asseados.

Os pássaros também estavam satisfeitos e bem alimentados. Mas antes que pudessem agradecer ao crocodilo pela lauta refeição que ele lhes oferecera, ele fechou a enorme mandíbula e engoliu a todos com uma bocada só.

Moral da história. Primeiro: Crocodilo é sempre crocodilo. Segundo: nunca confie em que tem a boca muito grande. Terceiro: não existe refeição de graça.   

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SÓ OS MORTOS APODRECEM

  O límpido riacho descia celeremente pelas fendas da montanha, cantando feliz a sua canção de águas cristalinas e ligeiras.

Serpenteando entre pedras e árvores ele parecia um menino feliz, pulando barrancos e formações rochosas, formando pequenas e lindas cachoeiras, que pareciam véus de noiva a dançar sobre a luz do luar.

Feliz, rápido como um cabrito montês, ele seguia seu caminho até um grande rio, dezenas de quilômetros abaixo, no qual se incorporava e depois seguia até o mar.

Era uma existência feliz e tranquila, que ele viveu por centenas de anos.

Um dia, um pequeno abalo sísmico deslocou uma grande pedra na montanha e ela caiu justamente no meio de uma pequena garganta, por onde o riacho passava. Obstruindo totalmente a passagem das águas, elas tiveram que escorrer para um dos lados, buscando um novo curso. 

O lépido riacho logo achou um novo caminho e recomeçou a sua marcha para chegar ao mar, que é o objetivo de todos os cursos de água do mundo.

Mas esse caminho era mais longo, e em determinado trecho, ele tinha que passar por um pântano fétido e imundo, cheio de

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matéria morta e estranhas formas de vida. Ele, que só hospedava em suas águas cristalinas, lindos e gordos peixinhos coloridos, logo se viu invadido por criaturas feias, cascudas e mal cheirosas, que traziam para suas límpidas águas uma coloração ocre e um cheiro matéria pútrida. 

Transtornado, o riacho reclamou ao deus das águas pela sorte tirana e ingrata que pusera aquela pedra no seu caminho. Ela o obrigara a mudar de curso e vir parar naquele pântano horroroso. Como poderia, agora, manter sua pureza num ambiente daqueles? 

“ Você pode misturar-se ás águas do pântano” disse o deus das águas, “mas não precisa, obrigatoriamente, tornar-se como elas. Quando a pedra obstruiu o seu  leito, você procurou um caminho para sair e encontrou”, continuou ele. “Faça o mesmo agora. Lute. Movimente-se. Continue a procurar o seu caminho para o mar. Se você se conformar a esse pântano, logo morrerá e também apodrecerá, como tudo que tem nele."

O riacho olhou para todos os lados e ficou desesperado. Parecia não haver meio de atravessar aquelas paisagens lodosas e nauseabundas sem se misturar á elas. Por toda parte era a mesma coisa. Uma imensa massa líquida de águas estagnadas.

No entanto, continuava a se movimentar, á procura de um caminho para o mar. E foi então que percebeu que as suas águas, embora tivessem se tornado um tanto turvas, não estavam se misturando ás do pântano. Nem tinham aquele cheiro fétido.

Entendeu que as águas do pântano tinham aquela cor e exalavam aquele cheiro porque estavam paradas. Haviam se estagnado em meio a uma floresta de madeira e organismos

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mortos, que servia de pasto para todas as criaturas que se alimentam da matéria decomposta. 

Ele então acelerou a sua marcha e passou a se movimentar mais rápido dentro daquele pântano. Imediatamente, formou-se ali um canal por onde a sua água começou a fluir. E era fácil perceber que naquele lugar do pântano não havia estagnação. As águas corriam.

Logo, aquela parte do pântano passou a ser um guia para quem nele se perdesse e quisesse encontrar um caminho para sair daquele lugar horrível. Era só seguir as folhas de árvores que rolavam mansamente em meio aquele imenso lodaçal, acompanhando o movimento do imperceptível curso de água, que encontrara um caminho para escapar daquela podridão. 

Depois de alguns quilômetros serpenteando em meio á massa lodosa, finalmente, suas águas escapavam do pântano e se ele tornava um vistoso igarapé.

Suas águas não eram tão límpidas quanto eram na serra, mas estavam puras e sadias. Apresentavam-se prenhes de vida, com muitas espécies novas. Estava mais encorpado também. Depois de mais alguns quilômetros transformara-se em um rio bem maior. Já não precisava se integrar a outro curso de água para fazer o caminho até o mar. Ele, que antes era tributário de outro rio, passou a ser tronco principal para centenas de outros rios e riachos que afluíam ao seu leito em busca de um caminho para o mar.  

Feliz, ele seguiu o seu caminho, sabendo que tinha cumprido, com galhardia e eficiência, a sua missão. Não se deixara vencer pelos obstáculos nem se contaminara pela podridão com a qual teve que conviver. Tornara-se um caminho seguro em meio a um escuro e fétido pântano. Tudo

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porque aprendera a agir em vez de conformar-se e se deixar apodrecer.

"Só os mortos apodrecem", era  a frase que suas águas pareciam murmurar, quando recebiam o abraço do  mar.

O MONGE RESMUNGÃO

Na Ordem de São Bruno, também conhecida por Ordem dos frades Cartuxos, existe uma regra de estrito silêncio, o qual é mantido pelos seus membros como meio de chegar a Deus.

Há uma antiga lenda sobre essa Ordem que diz que uma das tradições mantidas em alguns de seus monastérios é a de que aqueles que quiserem, de fato, se tornar um verdadeiro monge “cartuxo” só deve falar duas palavras de dez em dez anos. 

Conta-se que um noviço, desejando tornar-se um desses monges "de verdade", depois de viver durante dez anos a vida dura, solitária e ascética em um mosteiro, dormindo no chão, comendo nada mais que pão e água,  trabalhando e rezando das 3 hs. da manhã até ás 8 hs. da noite, sem dizer uma única palavra, teve finalmente, permissão para dizer suas duas palavras. Se elas fossem do agrado do Abade, ele receberia o seu hábito e se tornaria um verdadeiro monge cartuxo. 

E ele, depois de pensar durante alguns minutos, disse: “Cama dura.” 

O Abade, olhando para ele, impassivelmente, mandou-o de volta ao mosteiro ordenando-lhe que continuasse a sua rotina.

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E assim ele passou mais dez anos, rezando e trabalhando das 3hs da manhã até ás 8hs da noite, dormindo na sua esfarrapada esteira estendida no chão duro e comendo nada mais que pão e água, e sempre mudo como uma porta.

Durante dez anos cumpriu a dura rotina, e ao fim desse período, voltou á presença do Abade para dizer suas duas palavras para, finalmente, receber o seu hábito. 

Depois de pensar por uns dez minutos, ele disse: “Comida horrível”.

Novamente, o Abade olhou para ele impassivelmente e ordenou que voltasse á sua rotina.

Desconsolado, mas ainda esperançoso, o noviço voltou á dura rotina do convento. Levantar ás 3 hs da manhã e rezar até as 8 hs da noite. Trabalhar na horta, na carpintaria, na cozinha e na biblioteca, copiando velhos pergaminhos, todos os dias. Depois dormir na esteira dura e carcomida, infectada de pulgas e percevejos.

E sempre no mais estrito silêncio.Finalmente, depois de dez anos, lá foi ele perante o Abade

dizer suas duas palavras. Tinha certeza de que desta vez conseguiria o seu hábito. E ele, depois de pensar durante mais de dez minutos, disse: “Estou cansado”.

O Abade, impassivelmente, ordenou-lhe que voltasse á velha rotina no mosteiro. Então, o agora já quase velho noviço, levantando-se abruptamente, disse: “Eu desisto.”

O Abade, suspirando, respondeu: “Faz muito bem! Pois tudo que você aprendeu até agora foi reclamar."       

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A BURRICE DA ARROGÂNCIA

  Um almirante de esquadra, conhecido pela sua arrogância e autoritarismo, estava levando seu navio para exercícios de guerra em um local bem afastado da costa. Era noite e o mar estava calmo, mas uma espessa neblina prejudicava a visibilidade. De repente, o imediato veio lhe comunicar que uma luz havia sido avistada em meio á neblina, e que ela vinha se dirigindo diretamente contra o navio. 

–Entre em contato com essa embarcação e diga ao seu comandante que mude seu curso imediatamente– ordenou ele ao imediato.

Assim foi feito. Logo o imediato recebeu a resposta. – Quem tem que mudar de curso são vocês. E façam isso

imediatamente.O Almirante ficou uma fera e respondeu com a arrogância

que lhe era peculiar: – Eu sou o Almirante Fulano de Tal e estou ordenando a

você que saia da frente do meu navio, entendeu? Se não fizer isso imediatamente, nós vamos afundar a sua embarcação.

Logo recebeu a resposta: – Pois eu sou o marinheiro operador do farol aqui da ilha ... e aviso que se não mudarem o curso imediatamente, em cinco minutos o Senhor nunca mais vai comandar mais porra nenhuma!

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O PASSARINHO AZUL

      Não adiantou nada todas aquelas seções com um psicólogo. Ana não conseguira se livrar daquele complexo de inferioridade que a atacava toda vez que se confrontava com alguém que lhe parecia superior em alguma coisa. Bastava ser apresentada a alguém com títulos, ou com alguma fama, ou reconhecida beleza, ou alguma superioridade á ela, não importava em que, ela já começava a tremer. 

Todas as garotas eram mais bonitas do que ela; todas pareciam mais inteligentes também. Em razão disso fugia das disputas, abandonava a liça sempre que precisava lutar por qualquer coisa.

Se se interessasse por algum garoto, bastava que outra garota mostrasse interesse também, que ela logo caia fora da disputa.

Costumava justificar seu complexo de inferioridade dizendo que era ridículo competir com outra mulher por causa de  homens. Porém, esse comportamento não ocorria só com os namorados. Acontecia com empregos, na faculdade, na vida social. Se ela se apresentasse para uma vaga e lá encontrasse concorrentes, logo passava a comparar-se com elas em termos de beleza, postura, modo de vestir, falar etc. O resultado era sempre catastrófico.

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Não foram poucas as vezes que ela desistiu da entrevista antes mesmo de ser chamada pelo entrevistador. “Como vou competir com uma mulher dessas?”, dizia a si mesma enquanto fugia.

Na faculdade era a mesma coisa. Tinha boas idéias, geralmente sabia tudo sobre a matéria que estava sendo discutida, mas cadê a coragem para expressá-las? Os outros sempre sabiam muito mais. Já tinham dito tudo sobre o assunto. Qualquer coisa que ela dissesse seria repetitiva.

Essas eram as vozes que ela ouvia. E então ficava quieta. Como uma sonsa, com cara de samambaia esquecida numa sala.      E assim a vida de Ana estava se tornando cada dia mais triste, monótona e esvaziada. Até um dia em que ela, sentindo-se a última das criaturas, saiu andando sem rumo pela cidade. Seus pensamentos eram os mais negros possíveis.

Não via perspectiva nenhuma de vir a ser, um dia, uma pessoa feliz. Sentou-se num banco de jardim, de uma praça qualquer. Se tivesse coragem, pensou, se jogaria na frente daquele caminhão que estava passando, naquele momento, pela rua.

Seus olhos caíram naturalmente sobre dois passarinhos brincando na grama, á sua frente. Um deles era um lindo pássaro azul, enorme, com uma plumagem vistosa, imponente e bem tratada.  O outro era um pardal miudinho, feioso e bem raquítico. Tinha uma plumagem desgrenhada e combalida em algumas partes, parecendo estar com alguma outra doença. No entanto, parecia não haver qualquer constrangimento entre os dois pássaros, que se cheiravam, pulavam um no outro,

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brincavam e saiam voando alegremente, pelos galhos das árvores, como se fossem duas crianças em pleno folguedo. 

– Sabe por que eles se dão bem e são felizes juntos?, disse uma voz ao lado dela.

Ana se voltou para o lado com um susto. Perdida como estava em seus melancólicos pensamentos, não percebera que um senhor havia se sentado ao seu lado. 

– Hã? O que o senhor disse? Perguntou Ana.– Eu perguntei se você sabe por que esses pássaros, que são

tão diferentes, se dão bem juntos. Não faço a mínima idéia respondeu Ana, sem a mínina

vontade de conversar. Pois eu digo que esses pássaros se dão bem, se sentem

felizes juntos porque nenhum deles tem noção de comparação. O  pássaro azul não sabe que é azul e grande e bonito, e que sua espécie é superior á do pardal. E o pardal não tem a menor noção da sua inferioridade.     – Que bom se os seres humanos também fossem assim, disse Ana, com um suspiro melancólico.

– Eles são – disse o velho senhor – com um sorriso simpático. Mas ás vezes se esquecem disso e ficam se comparando uns aos outros sem pensar que isso é uma grande bobagem. Porque toda pessoa, seja qual for a sua condição, é uma peça finamente elaborada pela natureza para compor o grande mosaico da vida. 

– Olhe esse jardim – continuou ele. – Existem árvores grandes e pequenas. Gigantescos jacarandás e minúsculos arbustos. Lindas rosas perfumadas e imperceptíveis folhas de grama dentro de um imenso gramado. Nenhuma delas é infeliz

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por causa da sua condição e por não serem vistosas rosas em pleno desabrochar. Deus fez todas essas coisas com um propósito. Por que era preciso que fizesse. Veja aquele pássaro ali e aquela montanha lá no fundo. São tão importantes para o universo quanto o sol e a lua, as estrelas e o vento que penteia os seus cabelos. Por que cada coisa no mundo e cada vida que nasce dentro dele é necessária para que ele exista. 

– Assim – concluiu o velho senhor, com um sorriso cativante, – as pessoas não precisam ficar se perguntando o que elas têm de melhor ou pior que as outras, mas sim o que elas próprias têm para combinar com as outras. Onde podem se encaixar nesse mosaico. Onde é que elas estão faltando.

Ana estava ouvindo o discurso do velhinho, pensativamente. De repente percebeu que seu coração estava leve como uma pena. Olhou para o lado. Queria dizer alguma coisa. Talvez agradecer pelo conselho, que caíra como uma luva para ela.

“As pessoas não devem se medir por comparação.” “Devem se procurar por complementação.” 

As nuvens negras que toldavam sua mente haviam desaparecido. Parecia que um novo sol voltava a brilhar. Sentia, pela primeira vez na vida, uma grande motivação para viver. Sabia, com todas as forças do seu coração e com toda a energia da sua mente, que não era inferior a ninguém. Era apenas diferente. 

Sim, ela queria agradecer por tamanha graça. Mas o velhinho não estava mais ali. Olhou para todos os lados procurando-o. Nada. Era impossível que ele tivesse desaparecido assim tão rapidamente. Mas fora isso mesmo que acontecera. Ele tinha se evaporado como se nunca tivesse

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estado ali. Só o passarinho de linda plumagem azul ainda brincava, saltitante, sobre a grama, ao lado do banco. Quando Ana se virou para ele, o passarinho voou, gorjeando lindamente e desaparecendo nos ares.

Só então ela notou que ele deixara uma linda pena azul no seu colo.    

UMA QUESTÃO DE FÉ

   Ele era um sujeito arrogante e valentão. Afirmava não ter medo de nada e ser capaz de enfrentar qualquer desafio que fosse posto na sua frente. Dizia não precisar de ninguém, pois bastava a si mesmo. Arrogava não precisar nem de Deus, no qual dizia não acreditar. Gostava de esportes radicais. Seu preferido era o alpinismo. Adorava escalar grandes pedras, altas montanhas, chegar a alturas que pouca gente tinha coragem de subir, e realizar proezas que ninguém ousava tentar.

Certa vez, só para mostrar que era “o cara”, ele apostou com alguns amigos que seria capaz de escalar a rocha do Corcovado, no Rio de Janeiro e subir na estátua do Cristo Redentor, á noite. Os amigos duvidaram, pois a escalada daquela imensa rocha já é difícil de dia, quanto mais á noite, quando a escuridão ali é mais espessa, devido á neblina.

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Mas ele, teimoso, querendo provar a sua onipotência, lá se foi. E para mostrar que era macho mesmo, quis fazer a escalada sozinho. 

Tudo ia bem. Já fazia umas quatro horas que ele estava subindo a escarpada parede de pedra e quase chegando ao topo. E então aconteceu. Ele escorregou e caiu. Uma queda vertiginosa, que parecia nunca mais acabar. A única coisa que viu, em meio ás manchas escuras que passavam, céleres, em frente aos seus olhos, foi a estátua do Cristo, lá em cima, brilhando com todas as luzes.

Era, evidentemente uma visão, pois em meio á neblina espessa, e á vertigem da queda, ele não poderia ver nada. Mas na angústia que aquele mergulho no vazio lhe causava, a única coisa que a sua mente conseguiu articular foi um pedido: – Valei-me Jesus.

E então, de repente, sentiu seu corpo sacudido por um violento puxão, que fez todos os seus ossos rangerem. E então se lembrou das cordas de alpinista, que havia atado ao corpo e que, á medida que ia subindo, ia amarrando em estacas que fixava nas fendas da pedra. Elas o haviam sustentado em sua queda. 

Mas ali estava ele, preso como um pedaço de carne em um gancho de açougue, em meio aquela escuridão, naquela neblina indevassável. Sentiu algo quente e viscoso descer pelo pescoço. Passou a mão na nuca e retirou-a úmida e pegajosa, com o sangue que escorria. 

O ferimento não parecia grave, mas ele não poderia esperar até que clareasse e seus amigos, vendo que ele não chegava, começassem a procurá-lo. O desespero bateu e ele implorou: – Cristo, por favor, me ajude.

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Foi então que ele ouviu a voz, que parecia vir lá de cima, onde a estátua do Cristo Redentor devia estar, em meio á espessa neblina: – Que posso fazer por você, meu filho?

– Não me deixe morrer aqui - implorou ele.– Você realmente crê que eu possa salvá-lo?– perguntou a

voz.– Sim, Senhor, eu creio– respondeu ele, no auge do

desespero.– Fará qualquer coisa que eu mandar? – perguntou, de novo,

a voz.– Sim, Senhor, farei qualquer coisa.– Então corte essa corda – ordenou a voz.Ele olhou para baixo e só viu o vazio que a neblina ocultava.Pensou: “ Isso é loucura. Esse ferimento na minha cabeça

estáme causando alucinações..."E achou que o melhor a fazer era ficar ali, quietinho, até

clarear o dia, esperando pela equipe de socorro que certamente viria resgatá-lo.

E assim, agarrou-se mais firmemente á corda e esperou...Não foi senão depois de três dias que uma equipe de resgate

o encontrou. Ele estava morto e já começava a feder. Parecia um pedaço de carne, pendurado no gancho de um açougueiro.

E ele nunca soube que estava pendurado a apenas um metro do chão.  

     

 

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NEM O GELO, NEM O FOGO

  Um jovem pai, inexperiente, mas desejoso de dar a melhor educação possível ao seu filho que acabava de nascer, foi procurar um renomado educador, para receber alguns conselhos. 

– O que o senhor aconselha, professor? Uma educação rígida, como aquela que meus avôs aplicavam, ou uma educação moderna, como a que vemos hoje em dia? 

Depois de pensar um pouco, o professor perguntou: – Qual o objeto mais valioso que o senhor tem em sua casa?

Depois de alguns instantes pensando, o jovem pai respondeu.– Acho que é este relógio de ouro que meu pai me deixou. Ele já havia sido do meu avô e segundo disseram, do pai dele. É uma relíquia de muito valor – disse o jovem, puxando de uma gaveta, um relógio de bolso. 

– Empreste-me esse relógio por alguns segundos– disse o professor.

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Em seguida, o professor pediu ao jovem que lhe trouxesse dois bules, um com água fervente, outro com água gelada. 

Sem entender muito o motivo daqueles estranhos pedidos, o jovem foi até a cozinha para providenciá-los. Alguns minutos depois voltou com os dois bules, um deles suando de tanto gelada que estava a água, o outro fumegando, tal era a fervura. 

– Agora observe o que acontece quando eu jogo seu precioso relógio dentro da água fervente ou dentro da água gelada– disse o professor.

– Espera aí – disse o jovem assustado. – O Senhor não pode fazer isso. Em qualquer dos casos vai destruir o meu relógio.

– Pois é exatamente o que você fará com seu filho se adotar um desses tipos de educação – disse o professor.

– Entendi – respondeu o jovem. – Mas então o que devo fazer?

O professor então misturou os conteúdos dos dois bules. - Nem o gelo, nem o fogo.  Água morna. Aqui temos um bom tempero - disse o professor. Assim deve ser a educação do seu filho.   

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A QUESTÃO DA LINGUAGEM

Uma anedota conta que Jesus, certa vez, estava ensinando na beira do lago Genezaré. Para se situar melhor frente á multidão, ele costumava ficar dentro de uma barca, á certa distância da margem, para que assim a platéia, acantonada na praia, pudesse vê-lo e ouvi-lo melhor. Um dia, um sujeito chamado Isaque, conhecido na região como aproveitador e avarento em extremo, se posicionou na praia para ouvir o mestre, que segundo todos que o ouviam, dava grandes lições de sabedoria, de graça.

Mas Isaque era tão avaro e malandro, que não se contentou em ficar na margem para ouvir o mestre. Quis se postar na frente de todos, para poder ouvir melhor e não perder nada da lição gratuita que o mestre ia lhe dar.

E se adiantou tanto que escorregou e caiu na água. A água ali era funda, pois se tratava de um local onde os barcos ancoravam. Isaque, que não sabia nadar, começou a se debater

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e engolir água. Muitas mãos se estenderam para ele, tentando puxá-lo para a margem. 

− Me dá sua mão, Isaque − diziam eles – para que possamos puxá-lo para fora dágua.

Mas Isaque continuava a se debater, sem pegar em nenhuma das mãos que se estendiam para ele.

Foi então que Jesus, chegando com o barco perto dele disse: − Isaque, tome minha mão. 

E ele, imediatamente pegou na mão do mestre, que o puxou para dentro do barco.

Mais tarde, os discípulos de Jesus lhe perguntaram: − Porque Isaque recusou todas as mãos que lhe foram estendidas e a sua não?

Jesus respondeu: − Isaque é um homem avarento. Homens como ele preferem morrer, mas não dão nada a quem lhes pede alguma coisa. Eu não pedi que ele me desse a sua mão, mas sim, ofereci a minha. 

Moral da história: para algumas pessoas, a forma como se dizem as coisas faz toda a diferença.

Histórias que a vida conta

A CIRANDA DA GUERRA

O dono de uma empresa deu uma bronca em seu empregado por que ele fez mal feito uma determinada tarefa que o patrão julgava muito importante.

Naquele dia, o empregado saiu da empresa puto da vida. No ponto de ônibus teve que esperar um tempão. E quando ele chegou, o empregado descarregou toda sua raiva contra o motorista.

O motorista, por sua vez, muito nervoso, quando chegou em casa, foi logo brigando com sua esposa, por que o jantar não estava pronto.

A esposa, magoada com as críticas do marido, deu uma bronca no filho do casal, porque a música que ele estava ouvindo estava alta demais.

O garoto ficou aborrecido com a bronca da mãe e descarregou sua raiva na irmãzinha, que saiu chorando e foi reclamar com a mãe.

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Foi nesse momento que a mãe percebeu que aquele círculo vicioso de ação e reação precisava ser quebrado. Confortou a filha e enxugou suas lágrimas. Depois chamou o filho e pediu desculpas pela bronca que lhe dera. Em seguida falou gentilmente com o marido, procurando compreender o que ele estava sentindo.

Disse que ia providenciar logo o jantar e ligou a TV no programa favorito dele. A ciranda do ódio se interrompeu. E aquela parte do mundo, pelo menos, amanheceu em paz.

OS TRÊS VIAJANTES

Para ilustrar esta metáfora, este lindo poema de Olegário Mariano. Você conhece? Ele quer dizer que Amor e Saudade são inseparáveis. Convivem no mesmo corpo e onde houver um encontraremos fatalmente o outro. Mas o Amor é muitas outras coisas mais.   Onde ele estiver, muitos outros estados desejáveis, pelos quais a gente luta a vida inteira, são encontrados. 

AS DUAS SOMBRAS

Na encruzilhada silenciosa do Destino,Quando as estrelas se multiplicaramDuas sombras errantes se encontraram.A primeira falou: Nasci de um beijoDe luz, sou força, vida, alma, esplendor.Trago em mim toda a glória do Desejo,Toda a ânsia do Universo... Eu sou o AmorO mundo sinto exânime a meus pés...

Histórias que a vida conta

Sou Delírio... Loucura... E tu, quem és? Eu nasci de uma lágrima, sou flamaDo teu incêndio que devora...Vivo dos olhos tristes de quem amaPara os olhos nevoentos de quem chora.Dizem que ao mundo vim para ser boaPara dar do meu sangue a quem me queira Sou a saudade, a tua companheiraQue punge, que consola e que perdoa...Na encruzilhada silenciosa do Destino.As duas Sombras comovidas se abraçaramE, desde então, nunca mais se separaram.

E agora a nossa metáfora.

  Num pobre casebre, á beira de um caminho, chegaram, um dia, três viajantes. Cansados, sedentos, famintos, bateram á porta do casebre e pediram comida, água e abrigo. Nesse casebre moravam três pessoas: um homem, sua esposa e a filha do casal, uma menina de dezoito anos. 

– Quem são vocês e de onde vem? – perguntou o homem.– Como se chamam? – perguntou a mulher.– O que desejam?– perguntou a filha.– Nós somos três andarilhos. Viemos de lugar algum e

vamos para onde formos desejados – respondeu o que parecia ser o mais velho dos três. 

– Meu nome é Sucesso e os meus dois companheiros se chamam Fortuna e Amor – respondeu o segundo, que parecia ser o mais ativo dos três.

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– Queremos que vocês nos aceitem como hóspedes em sua casa– respondeu o terceiro, o que se chamava Amor, e parecia ser o mais jovem dos três.

O homem olhou para a esposa e para a filha, que anuíram, com um sinal de cabeça.

– Está bem – disse ele. Mas nossa casa é pequena e nós só podemos abrigar um dos três. Não temos lugar para todos. Um entra e os outros dois terão que passar a noite no paiol. 

– Então escolham a qual de nós deseja abrigar – disse o Sucesso.

Pai, esposa e filha se entreolharam. Confusos, pediram para confabular entre eles por uns instantes.

– Vamos acolher o Sucesso – disse o pai. – Ele parece ser o melhor para nós.

– Não. É melhor abrigar o Fortuna – disse a esposa. – Acho que é mais seguro.

– Pois eu prefiro o Amor – disse a menina. – Dos três é o mais bonito e confiável. 

Depois de alguns minutos de discussão, finalmente, a família optou pelo desejo da filha. 

Abriram a porta e pediram para o Amor entrar naquela casa. – Sábia decisão a de vocês – disseram Fortuna e Sucesso. –Se tivessem escolhido a um de nós dois, vocês teriam feito

uma escolha incompleta. Mas ao escolher o Amor, vocês terão a todos nós juntos. 

E num passe de mágica, o Sucesso e o Fortuna se incorporaram no Amor, se transformando em uma pessoa só. E assim, os três entraram naquela casa. 

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A LENDA DO GATO PRETO  Ele era um gato preto e feio. Tão feio que só aparecia durante a noite. Durante o dia escondia-se atrás de um monte de lixo, para que ninguém o visse. Tinha vergonha de si mesmo. Á noite, lá pelas altas madrugadas, ele saia em busca de comida, chafurdando pelas latas de lixo dos restaurantes próximos, procurando pelas sobras que os humanos jogaram fora. 

Além de feio era um gato triste. Porque simplesmente tinha se apaixonado pela linda garçonete de um restaurante daquela rua, cujo lixo ele costumava remexer em busca de comida.

Ela costumava sair do restaurante nas primeiras horas da madrugada, e ele sempre a seguia, equilibrando-se pelos telhados, até a casa onde ela morava, como se fosse um guardião fidelíssimo, a protegê-la pelas ruas soturnas e silenciosas daquele perigoso bairro.

Depois que ela entrava em casa, e ele via que ela estava em segurança, costumava subir no muro da casa dela e ficar ali, horas e horas, até despontarem os primeiros raios de sol, a contemplar a morada da sua deusa e a sonhar com ela. De vez

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em quando soltava alguns suspiros, que saiam do seu peito de felino, na forma de melancólicos miados de um gato que procura pelos telhados da cidade fria e silenciosa uma fêmea para se acasalar.Todos os animais têm um deus que preside a sua espécie. Os gatos também têm. Uns dizem que esse deus se chama Ubasti, outros Shekmet ou Aiuros, e há também aqueles que dizem que o seu nome é Baphomet, deus dos antigos Cavaleiros Templários, das bruxas e dos maçons, dizem os inimigos dos Irmãos dos rês Pontos..  

Ninguém sabe se é um deus ou uma deusa, mas isso não importa. A questão é que esse deus, ou deusa, tem uma especial predileção pelos pobres felinos apaixonados, e sempre faz com que os machos encontrem suas fêmeas justamente nos momentos necessários, quando eles estão nos momentos mais potentes da sua virilidade e elas no seu ciclo mais virtuoso de perfeição feminina, que é o cio.

E é assim que a espécie tem se mantido por tantos milênios, acreditando-se mesmo que a estirpe dos gatos seja anterior á dos homens sobre a face da terra. Tanto que os antigos egípcios já os adoravam como deuses poderosos.

O problema do nosso gato era exatamente o fato de ele ser um felino e a sua amada ser uma mulher. Mas para um deus isso era o de menos. Transformar um gato em homem, ou uma mulher em gata, estava dentro das prerrogativas conferidas ao seu poder. E foi o que ele, ou ela, fez. Não suportando ver o nosso pobre gato preto suspirando, ou miando noites e noites,

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em desespero de paixão pela bela garçonete, o deus dos gatos o transformou em um belo rapaz.

Preferiu mexer na forma do gato, pois ele era seu súdito. Se fizesse o contrário, mexendo na forma da mulher e transformando-a em um felino, o deus dos humanos poderia não gostar dessa invasão de competência e o conflito estaria gerado. Assim, Baphomet, ou o que quer que seja o nome do deus dos gatos, preferiu ficar na dele e transformar o gato em gente, coisa que, afinal, não era tão difícil para ele, já que, segundo dizem, ele mesmo, Baphomet, costumava se transformar em um gato preto nas seções secretas que os Cavaleiros Templários realizavam para fazer as suas bruxarias.

Mas não ficou só nisso, pois segundo consta, o deus dos gatos não é mesquinho como o deus dos humanos, que prefere dar aos seus fiéis uma vara de pescar ao invés de um peixe suculento já preparado e servido em uma bela mesa, acompanhado por um excelente vinho branco.

Não. O deus dos gatos é mais pródigo e não só transformou o nosso feioso gato preto em um belo e prendado rapaz, como também fez a bela garçonete cair de amores por ele assim que botou os olhos nele.

Isso, pensou ele, não era invasão de competência, pois o exercício dessa competência já estava prevista nos estatutos conferidos aos bruxos e aos feiticeiros, que já gozavam dessas faculdades desde os antigos tempos, e que agora, também eram exercidas pelas ciganas, pais e mães de santos, taumaturgos, quiromantes e outros praticantes dessas artes sutis que tem o dom de mexer nos sentimentos dos outros.

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E assim começou um belo romance entre o antigo e feio gato preto e a bela garçonete, que certamente iria terminar em casamento e um final feliz do tipo novela global.

E dessa forma teria sido não fosse uma noite em que os dois pombinhos caminhavam, abraçadinhos, pela rua soturna e escura onde ele, antigamente costumava varejar as latas de lixo em busca de comida.

Eis que, de repente, um baita ratão sai correndo de dentro de uma lata. Não deu outra. Com um salto acrobático, de quem sempre fez isso a vida inteira, eis que o nosso jovem e romântico ex-gato se atirou em cima do rato. Pegou-o como se fosse um exímio goleiro buscando uma bola chutada bem no cantinho do gol. E ao levantar-se, com a presa na boca, já tinta pelo sangue do rato triturado pelos seus afiados dentes, ele se sentia um herói das épicas gestas medievais, mostrando para sua amada, a quem acabava de salvar das garras de um monstro, o corpo inanimado do seu inimigo.

Mas ela nem esperou para abraçar o seu herói. Pois na sua frente, naquele soturno beco, naquela avançada hora da madrugada, o seu belo e prendado namorado havia se transformado num horrendo gato preto que segurava na boca tinta de sangue um sujo e malcheiroso rato, todo dilacerado pelas dentadas do felino. Ela desmaiou, e ele, imediatamente, percebendo que havia voltado á sua antiga forma, mais que depressa desapareceu pelos telhados da cidade fria e silenciosa. 

Em algum lugar do mundo inferior, um miado de desconsolo e decepção foi ouvido. Era Baphomet dando conta do seu fracasso como deus. Acabara de descobrir que as aparências podem ser mudadas facilmente, mas a natureza não

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é qualquer deus que muda. E quanto ao nosso gato, ele continua miando pelos telhados, na eterna busca pela sua amada, que agora não pensa mais em príncipes encantados e só cuida mesmo é de caçar pokemons.

DEUS EXISTE?

  Um vendedor de bíblias entrou um dia no consultório de um médico, para tentar vender-lhe o seu produto. Fez um eloqüente discurso sobre a sabedoria do livro sagrado, das boas coisas que Deus prodigaliza ás pessoas, da necessidade de se ter uma crença, enfim, tudo que um bom vendedor costuma dizer para convencer um cliente.

Mas de nada adiantou a sua verve, pois o médico, impassível como um guarda do Palácio de Buckingham, simplesmente respondeu: 

– Meu amigo, tudo isso é bobagem, Deus não existe.– Porque o senhor pensa assim?– quis saber o vendedor.– Se Deus existisse, não haveria tanta doença, tanta guerra,

tanta pobreza e ruindade no mundo  – respondeu o vendedor. 

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O vendedor levantou-se para sair. Ali estava um cliente que parecia impossível de ser convencido.

Mas antes de sair ele viu um grosso livro de anatomia, que estava em cima da mesa do médico. Pegou-o e deu uma pequena folheada.

– Sabe, doutor – disse o vendedor: – Eu compreendo que o senhor não acredite em Deus. Afinal de contas, eu também não acredito em médicos.

– Como assim? – perguntou o médico, sem entender – Se os médicos existissem, não haveria tanta gente doente nos hospitais, nem tantos mortos nos cemitérios – disse o vendedor, com um sorriso maroto.

– Isso é diferente – respondeu o médico. – As pessoas ficam doentes porque não se cuidam direito e morrem porque faz parte da natureza delas. As pessoas são humanas.      

– Exatamente – disse o vendedor, com seu sorriso maroto. E foi embora, deixando o médico com a boca aberta e uma enorme interrogação na mente. 

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OS RICOS E OS POBRES

  Era uma vez um abastado comerciante. Seu maior desejo era que seu único filho seguisse o seu caminho e se tornasse também, um homem muito rico, continuando a tradição da família. Por isso, achou que a melhor forma de passar seus valores para o filho era fazer com que ele vivesse as próprias experiências, para aprender a distinguir o que era bom e o que era ruim.

Como o menino sempre fora rico e tinha tudo que queria, o comerciante pensou que seria bom que ele experimentasse viver, por uns tempos, uma vida de privação. Dessa forma aprenderia a dar valor ao conforto e ao bem estar que o dinheiro proporciona.

Foi assim que ele mandou o menino passar uns tempos com um primo que ele tinha no interior. Esse era um homem muito

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pobre, que morava num sítio afastado da cidade, numa casinha, limpa e agradável, mas muito simples.

Durante três meses o garoto viveu com essa família. Trabalhou na roça com os primos, nadou no rio, andou de cavalo pelos campos, aprendeu a tocar viola e a cantar, e muitas outras coisas.

Quando voltou para a cidade, seu pai lhe perguntou: – E aí filho? Gostou da experiência? O que você achou da

vida de pobre?– Ah! pai, não sei– respondeu o garoto. Como não sabe – perguntou, perplexo, o comerciante. –

Você não viu as dificuldades que seus primos passam, pelo fato de serem pobres?

– Bom – disse o menino. – Eu vi que lá eles têm quatro cachorros e nós só temos um. Que eles vão de cavalo para todos os lados e não precisam parar em semáforos, nem ficam presos horas e horas no trânsito. Que eles têm um rio enorme, que dá de vinte a zero nessa nossa piscina. Que não precisam comprar Cds, discos e Ipods para ouvir música. Eles mesmos fazem e cantam as próprias músicas. Que á noite, ao invés de ficar assistindo TV, ouvindo notícias ruins e vendo falsas estórias contadas em telenovelas, eles contam suas próprias experiências uns para os outros e criam suas próprias histórias.

– E o que você aprendeu com tudo isso? – perguntou, preocupado, o comerciante.

– Que os verdadeiros pobres, na verdade, somos nós – disse o garoto.

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EM FORMA DE LUZ

Aquele padre tinha fama de muito sábio e muita gente costumava ir á sua paróquia em busca de conselhos. Um dia ele recebeu a visita de um jovem muito rico, que acabara de herdar uma grande fortuna. Mas por ter sido criado numa família muito religiosa, ele tinha algumas ideias restritivas com respeito á riqueza, inspiradas por ensinamentos bíblicos, que interpretavam a posse de muitos bens como um perigo para alma. 

“ Padre”, perguntou ele. Como devemos interpretar a parábola contada por Jesus, a respeito de ser mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar nos reino dos céus?”

O padre se levantou e pediu que o jovem o acompanhasse até a janela da sacristia. A janela estava fechada, mas através dos vidros se podia ver, ao fundo, uma favela, onde centenas de

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homens, mulheres e crianças, maltrapilhas, magras, de rostos macilentos e aparência doentia, subiam e desciam as ruas estreitas e lamacentas.

O que você vê através desses vidros?- perguntou o padre.− Vejo uma favela, com a gente que nela vive. Pobres, tristes, famintos, mal vestidos –, respondeu o rapaz.

Então, o padre o pegou pela mão e o conduziu para a frente de um espelho.

− E agora, o que vê− perguntou o padre.−Vejo uma pessoa bonita, bem vestida, saudável−

respondeu o rapaz.− Você agora está vendo a si mesmo e não está vendo os

outros − disse o padre. Na janela, você via os outros.− Repare− continuou ele− que tanto o vidro da janela,

quanto o cristal do espelho são feitos da mesma matéria, ou seja, o vidro. Mas no vidro do espelho há uma camada de prata, que não deixa que os olhos vejam o que há além dele; todavia, essa camada de prata retém a luz que bate sobre ela e reflete os objetos que nela se conformam. Assim pode ser entendida a questão da riqueza: você pode ser o vidro da janela e ver o mundo em que vive e fazer alguma coisa por ele, ou pode ser um espelho que reflete apenas a si mesmo. Depende de você, ser uma luz que atravessa o vidro, ou uma luz que é aprisionada dentro de um cristal. 

Não deixe a prata aprisionar a sua luz, completou o padre. Pois no céu nós só entraremos em forma de luz. 

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O MUNDO É UM ESPELHO

  Numa cidade turística do interior, certo dia, chegou um sujeito solicitando informações sobre a cidade. Era um cara muito mal humorado e arrogante, que já chegou falando mal da estrada, reclamando do tempo, criticando a fila que teve que pegar para falar com a recepcionista e outras coisas.

Parecia estar muito mal com a vida. Depois de perguntar sobre as atrações turísticas da cidade, quis saber que tipo de gente morava ali. A jovem que dava as informações, com um sorriso cativante, respondeu com outra pergunta: “ Que tipo de gente mora lá na cidade de onde o senhor veio?”

“Pessoas desagradáveis, egoístas, mal humoradas, chatas, ignorantes”, respondeu o sujeito.

“Aqui também o senhor só encontrará pessoas desse tipo”, respondeu a moça.

O sujeito saiu resmungando e ela começou imediatamente a atender outra pessoa. Era um senhor de rosto simpático,

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sorridente e bem humorado. As perguntas foram as mesmas. Inclusive sobre as pessoas que viviam na cidade. A resposta da recepcionista foi a mesma.

“Como são as pessoas na cidade de onde o senhor vem?”, perguntou a moça.

“Ah! São ótimas. São pessoas alegres, cooperativas, simpáticas, solidárias,” respondeu o homem.

“Pois esse é o tipo de pessoa que o senhor encontrará na nossa cidade”, respondeu a moça, com o seu cativante sorriso.

Um homem, que estava atrás desse senhor, esperando a sua vez para perguntar, não pode conter-se e fez a pergunta: “Como é que você dá duas informações tão diferentes para as pessoas?”

“Porque o mundo é como um espelho”, respondeu a moça. “Ele só reflete aquilo que você mostra para ele.” 

Essa metáfora foi inspirada em um ensinamento do filósofo Sócrates.

Certa vez, um de seus discípulo fez-lhe a seguinte pergunta: “ Mestre, como o senhor explica que o Aristides, sendo o

que é e tendo o que tem, parece sempre tão infeliz?” Aristides era o homem mais rico de Atenas. Tinha centenas

de Escravos e a maior propriedade da Grécia. Como político era também muito influente. Todos os atenienses o invejavam. Seu poder era imenso.

Sócrates respondeu: “O problema do Aristides, é que onde quer que ele vá, ele leva consigo o Aristides.”

    

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BURRO ESPERTO, CAVALO BURRO

 

Um cavalo e um burro discutiam sobre qual o tipo de carga eles deveriam levar. Eles pertenciam a um tropeiro que transportava cargas de um lado para outro no sertão em que ele vivia. No caso, eles estavam com dois fardos para transportar. Um deles era uma carga de açúcar, que devia ser levada de um pequeno engenho até a cidade mais próxima e o outro era um fardo de buchas vegetais, que o dono do pequeno engenho tinha vendido para o supermercado da cidade. 

Burro e cavalo discutiam quem devia levar o que. O cavalo, á sua maneira, convenceu o tropeiro que ele, sendo mais bonito e mais inteligente que o burro, devia levar a carga mais leve, ou seja, as buchas. Assim, o tropeiro atou o pesado fardo de açúcar nas costas do burro, e o fardo leve de buchas no cavalo, e lá se foram os dois, pela estrada. 

“ Você é burro, mesmo”, relinchou ele para o companheiro.” “Burro tem se ferrar.” 

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E lá se foram os dois pela estrada, o cavalo trotando alegre, com sua leve carga de buchas, e o burro, todo arqueado, andando com dificuldade, com a sua pesada carga de açúcar. 

Depois de andarem alguns quilômetros, chegaram á margem de um rio. As violentas chuvas que caíram nos dias anteriores haviam destruído a ponte. As águas já haviam baixado, mas o rio era largo e profundo. Como era preciso atravessá-lo, o tropeiro fez uma pequena jangada com troncos, subiu nela e amarrou os dois animais num dos troncos, para que eles fossem a nado.  

Á medida em eles que iam avançando em meio ás águas, o burro começou a se sentir cada vez mais leve, pois o açúcar foi se dissolvendo. O cavalo, ao contrário, começou a ficar cada vez mais pesado, pois as buchas iam absorvendo a água e inchando. 

Resultado. O burro conseguiu chegar até a outra margem, mas o cavalo foi arrastado pela correnteza e morreu afogado.

Moral da história: a esperteza, quando é demais, vira bicho e come o dono.

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DIFICULDADE E OPORTUNIDADES

João era faxineiro numa Loja de revenda de carros. A loja, quando o contratou, era uma pequena empresa, que com o passar dos anos, foi crescendo, até se tornar uma concessionária de grande porte.

O dono tinha um filho recém formado em administração de empresas em uma das melhores universidades do país, e também fizera alguns cursos de pós-graduação em importantes universidades estrangeiras.

Ao assumir a direção da concessionária, resolveu fazer algumas modificações, a fim de modernizar a empresa, que ela achava obsoleta.

A sua primeira medida foi verificar o grau de escolaridade dos seus funcionários, para fins de iniciar um programa de treinamento. João, infelizmente, era analfabeto e não podia participar de programa nenhum. Em conseqüência, ele foi despedido.

João saiu da empresa desesperado. O que ele, um pobre analfabeto, sem profissão, iria fazer agora? Onde encontraria

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outro emprego? Andou pela cidade, perambulando, parando de bar em bar, tomando uma cachaça em cada parada, desconsolado da vida.

Lá pelas tantas da madrugada, já meio chapado, sentiu uma fome danada. Pensou que uma canja, uma sopa, um caldo quente, naquela hora, e nas condições em que ele estava, ia cair muito bem. Então saiu pela noite procurando um bar, uma lanchonete, um restaurante que fosse, que pudesse servir aquele tipo de alimentação naquela hora.

Andou todo o resto da noite, mas não encontrou. Não havia um único estabelecimento na cidade que prestasse aquele tipo de serviço. Mas notou que havia muita gente como ele, na madrugada daquela cidade, que tinha o mesmo desejo. 

Então foi o que ele fez. Obteve uma licença e montou uma barraquinha, em uma das praças do centro da cidade, para vender canjas, caldos e sopas, na madrugada. O negócio deu tão certo, que em pouco tempo ele já tinha aberto uma franquia do seu negócio, com mais de vinte barracas espalhadas por toda a cidade e inclusive pelas cidades vizinhas. 

Quando a grana começou a entrar, João foi a um banco abrir uma conta e começar uma carteira de investimentos. O gerente, ávido de bons clientes, e vendo o potencial de João como comerciante, foi logo mostrando para ele a lista de produtos que o banco tinha para investidores. João olhou para a ficha com vergonha e foi obrigado a confessar que era analfabeto. O gerente custou a acreditar no que ouvia.

“Puxa! Um comerciante com o talento que o senhor tem é analfabeto? Imagine então se soubesse ler?”

“ Se eu soubesse ler ainda seria faxineiro naquela concessionária”, respondeu João.

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O CORTADOR DE PEDRAS

Houve, certa vez, um operário que trabalhava em uma pedreira, cortando pedras que seriam usadas para calçar ruas. Ele era um jovem muito sonhador, e nunca estava contente com nada.

Vivia sonhando com uma vida melhor e invejando cada pessoa que parecia estar em melhor situação do que ele.

Um dia, ao passar em frente a uma suntuosa mansão, no bairro rico da cidade, ele viu o dono da casa saindo, no seu luxuoso automóvel, ao lado de uma linda mulher. 

– Ah! suspirou ele.– O que  não daria para ser como esse cara!

Aconteceu de estar passando por ali um senhorzinho, bem baixinho, de longas barbas brancas e pernas tortas. Tinha orelhas pontudas e grossas sobrancelhas, bem negras. Seu olhar era maldoso e o sorriso sarcástico.

– Isso que você disse é de coração? – perguntou o anãozinho, que na verdade era um duende. 

– De todo coração – respondeu o rapaz.

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– Pois então está concedido! Tudo que você pedir, daqui para a frente, lhe será dado– disse o duende, rindo como um pequeno demônio travesso.

Ele fez um gesto com as mão e puff! Eis o jovem cortador de pedras, por um passe de mágica, vivendo numa rica mansão, com uma linda loura do lado. Tudo do bom e do melhor. Um exército de empregados, todos armados, tomavam conta da sua mansão. Ele não estranhou toda aquela parafernália. Achou que fazia parte do pacote.

“ Esse gênio pensa em tudo”, imaginou ele, pois com uma grana daquela, os bandidos deviam estar de olho nele.

Mas não havia se passado três dias ele estava na piscina, tomando a sua champanhe   e eis que um batalhão de policiais invade a esplêndida mansão e leva todo mundo para a cadeia. A acusação: ele sido denunciado pelo Ministério Público como sendo o chefão de um grupo de traficantes de drogas.

Só então o jovem cortador de pedras compreendeu de onde vinha toda aquela grana. Sozinho na sua cela, amargando a perspectiva de pegar uns vinte anos de cadeia sem ser culpado, ele se arrependeu de não ter pedido ao duende que fizesse dele um monge que não precisasse se preocupar com mais nada a não ser comer e rezar. 

Puff! E eis que imediatamente, lá estava ele num mosteiro, no alto de uma montanha, vestido de monge, com uma gamela de sopa de batatas na mão. E ele logo viu que a vida de um monge não era só comer e rezar. Os coitados trabalhavam de sol a sol. De manhã arrumavam a cela, depois faziam a faxina no mosteiro, depois arrumavam a cozinha e deixavam tudo pronto para o almoço, e tarde trabalhavam na horta. E á noite, moídos de cansaço, só tinham um colchão de palha, estendido

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no chão frio, para dormir. E para comer, só aquela horrorosa papa.

Ele logo verificou que ali, naquele mosteiro, estava tão preso quanto antes, quando era um traficante. Desejou ser livre. Livre com aquele passarinho, que vinha pousar na sua janela pela manhã e depois saia voando, alegre, pelos campos...

Puff! Eis o antigo jovem cortador de pedras transformado em um vistoso sabiá-laranjeira, de mavioso canto e linda plumagem, voando feliz, pelos campos. Voava, de árvore em árvore, cantava, saltitava, alegre na relva. Na sua alegria, não percebeu o gavião que o espreitava. Só se deu conta do que acontecera quando as garras do terrível predador se fecharam, como tenazes, sobre ele. E ele percebeu que estava sendo levado para o ninho do gavião, onde, de certo seria devorado.

Voando bem alto, preso nas garras do gavião, ele se arrependeu da escolha que havia feito e desejou ser uma nuvem, pois elas sim, não se preocupavam com nada...

Puff! Ei-lo, nuvem branquinha, a pairar no céu, levado de um lado para o outro, pelo sopro do vento... E o jovem cortador de pedras pensou: “agora sim. É só planar, planar, sem preocupações, nem problemas, nem ninguém para me fazer mal...”.

No sossego que estava então, nem notou que o vento o havia empurrado para uma zona mais fria, no céu. E que seu corpo vaporoso estava se transformando em água. Que em poucos minutos estava caindo na terra, na forma de uma copiosa chuva. Que logo se transformou numa forte enxurrada, rolando morro abaixo, arrastando tudo que encontrava na sua frente. 

– Ah! que destino cruel – disse o jovem cortador de pedras. – Bem que eu gostaria de ser uma dessas enormes pedras que

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João Anatalino

estão na base da montanha... Assim, eu não seria incomodado por nada. Viveria eternamente imóvel, sem precisar fazer nada na vida...

Puff! O jovem cortador de pedras foi transformado em uma enorme rocha. E ali se postou, na base da montanha, altaneira como uma sentinela da natureza, olhando de frente para a cidade.

E de repente, eis que aparece um operário, com seu martelo e sua ponteira. E ele começou a cortar aquela enorme pedra em pedaços retangulares, para deles fazer paralepípidos para calçamento de ruas.

Ele era uma pedra, mas tinha consciência do que acontecia com ele. E a cada golpe daquela ponteira, ele sentia dor, muita dor. 

E foi então que ele desejou ser aquele jovem cortador de pedras desejou ser um cortador de pedras ao invés de ser uma pedra.

Imediatamente seu desejo foi atendido. Em segundos, ele era, novamente, um operário, trabalhando numa pedreira. 

Então ele compreendeu que seu cérebro era como um duende de pernas tortas, orelhas grandes e malévolas intenções, que lhe daria tudo que ele quisesse, desde que ele não questionasse a forma pela qual seria adquirida. Ele pode nos dar tudo que a gente quer, mas a forma de fazer isso nem sempre é salutar.

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OS ALPINISTAS

Uma vez, um grupo de quatro turistas americanos, juntamente com seu guia, estava escalando um pico nas Montanhas Rochosas, quando sobreveio uma terrível nevasca. Imediatamente procuraram abrigo dentro de uma caverna, para esperar a tempestade passar.

Estava anoitecendo e nada de a tempestade amainar. E eles viram que teriam de passar a noite naquela caverna. O termômetro estava abaixo de 20º C. E cada vez ia ficando mais frio.

Então o guia falou. “Não temos nada para queimar. Assim, não podemos fazer uma fogueira. Até porque a caverna ficaria cheia de fumaça e nós morreríamos asfixiados. A solução, minha gente, é nós tiramos os nossos agasalhos e fazermos um cobertor coletivo. Depois nos abraçarmos todos, num bloco só, para que possamos passar calor uns para os outros.”

Então, os quatro turistas olharam detidamente uns para os outros, coisa que eles não tinham feito até então. Um deles era um negro que tinha vindo do sul do Mississipi. Ele odiava os brancos, que durante séculos haviam oprimido os negros ali.

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Outro era um branco vindo do Alabama, membro da Klu-Klux-Klan e seu ódio pelos negros era uma coisa entranhada. O terceiro indivíduo era um judeu do Bronx. Não abria a mão nem para dizer bom dia. O quarto era um cowboy do Texas, metido a macho, daqueles que costumava dizer que a sua parte feminina era sapatão. O quinto era o guia, um sujeito de bom coração, mas sem nenhuma iniciativa e nenhuma liderança.

Bem, já sabemos o que aconteceu. O negro olhou para o branco racista e disse para si mesmo: “mas nem Deus me fará abraçar esse maldito lixo branco.” O branco também olhou para o negro e pensou a mesma coisa.” Abraçar um negro? Jamais!” O judeu,por sua vez, pensou que dividir o seu agasalho com os outros o tornaria mais pobre. O cowboy disse para si mesmo: “eu, me agarrar com esses cinco marmanjos? Mas nem morto!”O guia, por sua vez, ficou olhando para os outros quatro, esperando que algum deles tomasse a iniciativa de por em prática a sua idéia. Como ninguém se habilitou, ele ficou na dele.

Quando, pela manhã, a tempestade passou e uma equipe de resgate chegou, só encontraram na caverna cinco homens mortos, rígidos como blocos de gelo. Todos com os braços cruzados sobre o peito, como se tivessem defendendo algo de muito valioso.  

O maior terror vem dos fantasmas que nós mesmos criamos.            

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O BESOURO E O VAGA-LUME.

                         Era uma vez um enorme besouro cascudo e feio que vivia perseguindo um alegre e bonito vaga-lume. Toda tarde, era só o pirilampo sair para o seu passeio diário, lá estava o irascível besouro, de tocaia, para persegui-lo. O vaga-lume escapava como podia.

Mas já estava ficando cansado daquela brincadeira sem graça. Um dia resolveu encarar o importuno cascudão, que não lhe dava trégua.

– Hei cara, qual é a sua? Porque está me perseguindo?– perguntou o pirilampo ao besouro.

– Eu quero comer você – respondeu o besouro.– Mas porque? Pelo que sei eu não faço parte do seu

cardápio– perguntou o pirilampo.

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– Você não faz parte do meu cardápio– respondeu o besouro. – Mas você me incomoda. Você é bonitinho, tem luz própria. As pessoas olham para você com ternura e admiração. Os poetas se inspiram em você para fazer versos. Eu, ao contrário, sou olhado com constrangimento e horror. As pessoas têm medo de mim. Por isso vou comer você. Quem sabe esse seu brilho possa passar para mim. 

O besouro matou o pirilampo e o devorou. Cinco minutos depois estava morto, intoxicado.  Ele não sabia que a enzima que faz o pirilampo brilhar é venenosa. 

Moral da história. Não deixe o sucesso alheio envenenar você.     LIÇÕES DE VIDA

Mestre e discípulo caminham por um caminho pedregoso, difícil e inseguro. O objetivo é chegar a um santuário em cima da montanha. A caminhada é longa, cansativa, perigosa. A cada instante, o perigo de queda é iminente. O Mestre, mais experiente, consegue se manter calmo, confiante, e vai vencendo os obstáculos com eficiência e calma. O discípulo, entretanto, mais afoito, inexperiente, ansioso, tropeça muitas vezes e leva várias quedas.

Em cada queda, rala os joelhos, machuca as mãos, esfola as pernas. Dessas quedas, levanta-se resmungando e maldizendo as pedras do caminho. Durante horas e horas eles caminham sob o sol inclemente. Nesse tempo todo o Mestre não diz uma palavra.

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Mas finalmente eles chegam ao santuário. O Mestre diz algumas palavras rituais, e imediata e silenciosamente, recomeça a caminhar, na direção de outro santuário, que fica em um pico ainda mais longínquo e inacessível.

Horas e horas de nova caminhada sob o sol causticante, novas quedas, mais ferimentos e um infinito cansaço toma conta do discípulo. Ele está no final de suas forças. Quando o segundo santuário é avistado, lá no alto da montanha, o Mestre, afinal, pergunta: 

– O que aprendestes hoje ?O discípulo balança a cabeça, desconsolado e aturdido. Mal

consegue balbuciar uma frouxa resposta.– Não sei, Mestre. Acho que não aprendi nada. – Nada? – pergunta, espantado, o Mestre. – Mas eu lhe dei

hoje as três mais importantes lições para a vida!– E quais foram elas, Mestre?– Primeiro: Olhe bem onde pisa. Segunda: Se cair, nunca

amaldiçoe o lugar e o que ou quem você acha que causou a sua queda. Procure saber o que foi que o derrubou. Terceiro. Quando chegar ao seu objetivo, não pare para admirar o que já fez. Ponha-se imediatamente a caminho de outro lugar mais alto.

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SIMÃO CIRINEU

“ E obrigaram um certo homem, Simão de  Cirene, que vinha do campo(...) a tomar a cruz de Jesus.                                                                                             Marcos 15;30.

Simão Cirineu era um servil agricultor,Que um dia, ao voltar do seu roçado,Foi compelido pelo romano opressor,A transportar a cruz dum condenado.Sem entender a razão de tal maldade,Pôs nas costas aquela cruz de madeira,E foi arrastando-a pelas ruas da cidade,Até o monte que parecia uma caveira. Ali ele viu um homem ser crucificado,

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E no instante mais crucial da sua dor,Perdoar a quem o punha nesse estado. Então ele soube o que era a verdade: Aquele homem era o seu Libertador,Dando a vida dele pela sua liberdade.                        

  Simão Cirineu é um dos mais enigmáticos personagens do Novo Testamento. Nenhum autor, até hoje, por mais imaginação que tivesse, conseguiu criar para esse figurante uma biografia interessante, como já foram criadas para outros personagens que aparecem, acidental ou incidentalmente, no drama de Jesus. 

De fato, Simão Cirineu não parece ser um personagem que aparece por acidente nessa história. Não é um sujeito que, conforme diz o evangelista Marcos, passava por ali por acaso e topou com o cortejo dos três condenados a caminho do Gólgota.

E por que teria sido ele, o Cirineu, escolhido para carregar a cruz até o alto do monte, em meio á uma multidão que se aglomerava nas estreitas ruas de Jerusalém, como em dias de quermesse, para ver passar a procissão? De certo muitos outros homens haveria naquela turba, que poderiam realizar esse trabalho.

Seria porque o Cirineu, homem parrudo, afeito ao trabalho no campo, era um sujeito forte e mostrava, em sua postura não verbal, sentir uma grande pena daquele homem, com o corpo destroçado, arrastando aquela pesada trave pelas íngremes vielas de Jerusalém, caindo a cada esquina, ferindo-se ainda mais em cada queda?

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Talvez, já que a piedade é uma das maiores virtudes do ser humano e o evangelista quis aproveitar a oportunidade para passar essa ideia. O próprio Jesus havia pregado esse principio na sua famosa parábola do Bom Samaritano. Próximo é quem nos ajuda na hora da necessidade e não aquele que vive a vida inteira ao nosso lado, mas foge ao primeiro clarim da desgraça.

É possível, porém, como a maioria dos personagens que aparecem nos textos evangélicos, que Simão Cirineu seja uma figura emblemática, arquetípica, posta na história para transmitir verdades arcanas, de forma simbólica e hermética, acessíveis apenas a quem não se aferrolhou aos grilhões da ortodoxia. Ou então ele simbolize informações que foram propositalmente passadas em forma de alegorias ou meras charadas, tão a gosto dos esoteristas e dos arquitetos de conspirações. 

Historicamente o apelido Cirineu aplicava-se aos naturais de Cirene, capital da província romana da Cirenaica, situada no norte da África, território da atual Líbia. Era uma região colonizada pelos gregos, conquistada pelos romanos depois das Guerras Púnicas, quando Roma derrotou Cartago, a grande potência que dominava aquela região até então.

Simão Cirineu pode ter sido um judeu nascido em Cirene, pois ali se concentrava uma importante colônia judaica (Ver Flávio Josefo, As Guerras dos Judeus Vol. II) que foi destruída pelos romanos nos conflitos que ocorreram entre 66 e 70. Segundo ainda Marcos e Lucas, os únicos evangelistas a se referirem a esse personagem, ele tinha dois filhos, Alexandre e Rufo, que uma tradição posterior identificou como discípulos de Jesus.  

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Mas os evangelhos dizem que ele era um indivíduo que voltava do campo naquela hora. Informação intrigante essa, porquanto era a manhã de uma sexta-feira, aquela em que Jesus e seus dois companheiros de infortúnio estavam sendo levados ao calvário, e o mais correto seria que Simão estivesse indo para o campo e não voltando dele. 

Então Simão de Cirene tomou a cruz de Jesus e a levou até o monte onde ele seria crucificado. E depois desaparece da história. E ele nem era discípulo de Jesus. Talvez nem o conhecesse nem sequer tivesse ouvido falar dele.

Há algumas tradições curiosas envolvendo o nome de Simão Cirineu. Um dos evangelhos gnósticos, constante da biblioteca de Nag Hammadi (O Evangelho de Seth), diz que quem morreu na cruz foi Simão Cirineu e não Jesus. Esse evangelho, datado do segundo século da era cristã, sugere que havia um complô entre Pilatos e os seguidores de Jesus, e que no caminho para o Gólgota os prisioneiros foram trocados. Num desses tratados apócrifos (O Segundo Tratado do Grande Seth), um suposto Jesus diz coisas tão estranhas como “(...) Eu não morri como eles planejaram (...). Eu não morri realmente, mas apenas aparentemente, e assim eu os enganei(...). Por que minha morte, que eles pensaram ter acontecido, (...)  em seu erro e cegueira, pregaram na cruz outro homem, para morrer. (...) Foi outro,  que bebeu fel e vinagre, não eu. (...) Foi outro, Simão, que carregou a cruz em seus ombros. Foi sobre outro que eles puseram a coroa de espinhos...E eu fiquei rindo da ignorância deles.” 

Um texto tão antigo contendo uma mistificação como essa dá o que pensar. No mínimo, ficamos sabendo que a

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imaginação conspiratória não é coisa de autores atuais. E que o cristianismo, em seus primeiros tempos, atuava como se fosse uma sociedade secreta  com cada grupo desenvolvendo suas próprias ideias e rituais,  também não é novidade para ninguém. 

As coisas ficam mais complicadas quando se sabe que povos inteiros acreditaram nisso e que muita gente morreu por essas crenças. Pois a ideia de que foi Simão de Cirene quem morrera na cruz e não Jesus foi uma das crenças esposadas pelos cátaros, povo que vivia no sul da França nos primeiros séculos do segundo milênio da era cristã e foram dizimados numa cruzada pelos exércitos do Vaticano e da coroa francesa.

Há indicações que os Templários também acreditavam nisso. Essa crença, aliás, ainda hoje é divulgada em certos círculos islamistas, para quem Issa (Jesus), o grande profeta, não morreu na cruz, mas sim que foi substituído por outro. Várias seitas gnósticas, aliás, acreditavam que Jesus foi arrebatado para o céu, em vida, antes de seu corpo ser pregado na cruz. Quem foi crucificado foi outra pessoa. Há quem diga que foi Simão de Cirene, outros dizem que foi Tomé, o Dídimo, que segundo algumas tradições, era irmão gêmeo de Jesus.

Enfim, desde aquele fatídico dia, há conspirações para todos os gostos...

Simão de Cirene, na verdade, talvez seja um desses personagens emblemáticos que aparecem numa história como símbolo de alguma ideia que se quer passar subliminarmente aos leitores. Ele é o oposto de Simão Pedro. Simão Pedro, que era discípulo, prometeu seguir Jesus até a morte. Mas no

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primeiro sinal de perigo o negou três vezes. Simão de Cirene, um desconhecido, sem qualquer vínculo com Jesus, pegou a sua cruz e a levou até o calvário. Isso confirma as próprias palavras de Jesus: “não há profeta sem honra a não ser em sua própria casa.” Quer dizer: os judeus, conterrâneos e parentes consanguíneos de Jesus o negaram. Um estranho tomou suas dores e o ajudou. 

Geralmente é assim. Dificilmente um homem, caído em desgraça, encontra suporte entre os seus. O auxílio

sempre vem de fora. Essa é uma lição que os séculos e todas as tradições têm confirmado. E talvez seja essa a verdadeira lição do personagem Simão Cirineu. Um exemplo de amor ao próximo e uma mostra  do que deve ser a verdadeira fraternidade

O FIO DE SEDA

O Tonhão era um péssimo caráter. Desde cedo sua vida era dedicada a contabilizar maldades.  Em criança, na escola, gostava de debochar dos colegas roubando a merenda deles, machucando-os nas brincadeiras, zombando deles com pegadinhas maldosas como o “pau de bosta”, “cachimbinho de cinza”, “martelo de borracha” e outras sacanagens do tipo.

Como adolescente judiava dos garotos mais fracos, tomando coisas deles, batendo neles, maltratando-os de toda forma. O que hoje chamamos de bullyiing era carinho perto das coisas ruins que o Tonhão fazia para os coitadinhos.

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Não perdoava nem a família. Vivia roubando o minguado dinheiro do pai, humilde servente de pedreiro que mal conseguia ganhar para o suficiente para o sustento da família, para comprar maconha.

Cometeu o primeiro roubo aos dezesseis anos e o primeiro assassinato aos dezoito. Depois de dois anos na FEBEM, onde aperfeiçoou suas habilidades criminosas, ele saiu e foi logo assaltando um posto de gasolina.

Deu azar. Por que naquele justo momento havia um policial abastecendo seu carro no posto. No tiroteio que se seguiu, Tonhão levou um tiro na cabeça.

Caído no chão, esvaindo-se em sangue, a última coisa que ouviu foi a sirene de uma ambulância parando ao lado dele. E a última coisa que viu foi dois paramédicos que saíram dela com uma maca. E a última coisa que sentiu foi o solavanco do movimento que eles fizeram para colocá-lo na maca e depois na ambulância.

Depois um silêncio sepulcral e um vazio sem fim.Acordou em um lugar que parecia hospital. Era tudo branco

e as pessoas que andavam por lá também todas se vestiam de branco. Um senhor, com uma longa barba grisalha, vestido com uma batina imaculadamente branca, como se fosse um padre, estava ao seu lado.

─ Onde estou? ─ perguntou Tonhão.─ Você está no purgatório, meu filho ─ respondeu o senhor

de algodoadas barbas.─ Então eu morri ─ lamentou-se o Tonhão.─ Sim, meu filho. Aquele tiro que você levou na cabeça lhe

foi fatal.

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─ O que vai acontecer comigo agora? ─ perguntou, temeroso.

─ Depende de você, meu filho, ─ respondeu o senhor de barbas branca. ─ O purgatório é apenas um local de passagem, uma sala de espera, por assim dizer. Aqui as pessoas decidem se querem ir para o céu ou para o inferno. Para cima é o céu, para baixo é o inferno.

─ Mas não é pelo que nós fazemos na vida que essas coisas são decididas? Sempre me disseram que quem faz mal vai para o inferno, quem faz bem vai para o céu...

─ Em regra é assim mesmo que acontece─ disse o homem. ─ Mas Deus é puro amor e bondade. E até o último minuto ele oferece aos homens a possibilidade de redenção. Nunca ouviu falar do bom ladrão, que na última hora se arrependeu e foi com Jesus para o paraíso? Nunca ouviu falar de extrema-unção, quando as pessoas tem a oportunidade de arrepender-se e fazer as pazes com sua consciência e com Deus?  

─ Então basta eu me arrepender dos meus crimes para ir para o céu ao invés de ir para o inferno?

─ Sim, meu filho.“Que moleza”, pensou Tonhão. “Se é assim, então é fácil”.

Afinal, voltar à vida não dava. Estava morto. Nada como ir para o céu, onde se dizia, a vida era uma maravilha. Se para isso era só se arrepender...

─ Eu me arrependo de todos os males que fiz, senhor ─ disse Tonhão. Posso então ir para o céu?

─ Se for sincero esse arrependimento, sim ─ disse o senhor de barbas brancas, com um sorriso amável.

─ Mas antes é preciso que você me conte pelo menos uma única coisa boa que fez na vida. Basta uma. Pois como você

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sabe, Deus prometeu que pouparia Sodoma e Gomorra se lá encontrasse um único justo. E concede a salvação á toda alma que tenha, pelo menos, realizado uma ação boa na vida. Isso prova para Ele que a pessoa é, pelo menos, humana.

Tonhão puxou pela memória. Estava difícil. Tudo que ele fizera na vida fora maldades. Então lembrou-se de que dia, ele viu uma pequena aranha lutando desesperadamente para sair de uma poça d’agua onde ela havia caído. Pegou um graveto e tirou-a da água, salvando a vida dela.

─ É a única coisa boa de que consigo lembrar de ter feito, ─ disse Tonhão.

─ É o suficiente ─ disse o anjo, que agora Tonhão já sabia que era, pois somente anjos se vestiam daquele jeito e podiam fazer promessas como aquela.

Então o anjo estalou os dedos e um fio prateado e meio pegajoso caiu imediatamente sobre a cama de Tonhão. Parecia um fio de aranha, mas era forte e resistente o suficiente para aguentar o peso de vários homens.

─ Sua boa ação o salvou, meu filho ─ disse o anjo. ─ E a pequena aranha, que você ajudou um dia, vai ajudá-lo agora. É sempre assim. O bem é pago com o bem. Pegue esse fio e suba por ele até o céu.

Tonhão pegou o fio e começou a subir por ele. Então ele olhou para baixo e viu que várias pessoas estavam tentando aproveitar o fio para subir também. Com medo que o fio arrebentasse ele gritou:

─ Hei! vocês aí. Caiam fora. Esse fio é meu. Vão procurar cada o um seu próprio fio!

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Mas as pessoas, atrás dele, não queriam perder a oportunidade de ir para o céu também. Então Tonhão começou a dar coices e pontapés naquelas pessoas para derrubá-los.

No esforço da luta o fio se rompeu. Tonhão caiu. Foi a mais longa de todas as quedas das quais ele se lembrava. No seu desespero, enquanto estava caindo, ele ainda pode divisar o anjo, que assistia, impassível, a sua queda.

─ Ajude-me por favor, ─ gritou.─ Impossível─ disse o anjo. ─ Você teve a sua chance. Mas

é tão egoísta que conseguiu anular o mérito da única ação boa que fez. Boa sorte no Inferno! Boa viagem, meu filho!

CALÍGULA E A RÊMORA

 

O paradoxo da infinitude é uma metáfora muito utilizada no campo da física nuclear, mas também se presta a interessantes considerações filosóficas. Ele diz que a solidez de um corpo é dada pela compressão dos elétrons em torno do seu eixo. Isso significa que quanto menor for o espaço em que eles estiverem confinados, maior será a velocidade com que eles girarão em volta do núcleo. Dai resulta a solidez dos corpos físicos. Isso ocorre porque a velocidade com que os elétrons giram em torno do eixo “fecham” a superfície do átomo com mais eficiência quanto maior for a sua velocidade. É como um goleiro que ficasse se movimentando no espaço do gol a duzentos quilômetros por hora. Nenhuma bola chutada contra esse gol entraria nele se não tivesse uma velocidade superior a essa.

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Qualquer bola lançada contra o gol a menos de 200 km por hora seria rebatida.   

Isso que dizer: quanto menor for o corpo em que a energia for concentrada, maior potencial energético encontraremos nele. Há uma história que ilustra bem esse fato. O imperador Calígula comandava uma esquadra de navios de guerra perseguindo uma frota inimiga. A frota romana era a mais poderosa esquadra que já havia sido vista no Mediterrâneo até aqueles dias. Centenas de navios bem armados e equipados. Velejavam rápidos e seguros em direção ao seu objetivo. Nada obstava o avanço da poderosa armada. Nada podia detê-los. Calígula, ele mesmo reverenciado como um deus, não tinha nenhuma razão para reclamar dos deuses. 

Mas de repente, sem qualquer motivo aparente, a galé imperial se imobilizou no meio do mar. Enquanto os barcos inimigos velejavam rápido, se pondo a salvo das balistas romanas, o barco do imperador simplesmente empacou e com ele toda a esquadra.

Calígula ficou furioso. Mandou que o marcador de compasso aumentasse o ritmo das batidas e os quatrocentos remadores do barco puseram todos os seus músculos em atividade. Remavam e remavam, mas nada de o barco sair do lugar. Não se movia um centímetro.

A maior parte da frota inimiga escapou. O imperador começou a pensar que algum monstro marinho, ou então Netuno, o deus dos oceanos, tivesse ficado com inveja dele e simplesmente resolvera segurar a sua galera. Mandou então que vários tripulantes pulassem na água e nadassem em volta do barco para ver o que o estava segurando. Mergulharam por baixo do casco e finalmente descobriram que uma rêmora, um pequenino peixe de aproximadamente quinze centímetros tinha ficado preso na cana do leme, impedindo que o barco se movesse. Nem a força do vento, nem a potência dos braços de quatrocentos homens foram capazes de mover o barco. O

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imperador do mundo, comandante do mais formidável exército que o mundo vira até então, tinha sido detido por um insignificante peixinho. 3 

Essa história, contada pelo filósofo francês René Francóis, ilustra bem o paradoxo da infinitude.

A força se esconde no ínfimo e não no imenso. Assim também dizia o historiador romano Plínio, o Moço, que ao se referir a essa história dizia que “a natureza se esconde, faz sentinela e mantém sua guarnição nas menores criaturas.”

E é isso mesmo que a ciência do átomo está a confirmar: toda a potência do mundo está condensada no núcleo do átomo, o mais infinitesimal dos elementos da matéria. E a lei da relatividade nos confirma esse princípio. A massa de um corpo, diz-nos essa lei, é igual á energia que ele encerra, acelerada ao quadrado da velocidade da luz. Isso quer dizer que a massa de um corpo, o seu volume, o seu tamanho, não depende só da energia que ele concentra, mas também da velocidade do seu movimento.

Da mesma forma que a sabedoria popular já consagrou a fórmula segundo a qual os melhores perfumes se concentram nos menores frascos, a física e a filosofia, que são as duas colunas mestras do conhecimento humano vem agora a nos 3 Caio Júlio César Augusto Germânico (em latim Gaius Julius Caesar Augustus Germanicus; (12 a.D. - 41 a D), também conhecido como Caio César ou Calígula, foi imperador de Roma entre 16 de março de 37 até o seu assassinato, em 24 de janeiro de 41. Foi o terceiro imperador de Roma e membro da Dinastia Júlio-Claudiana, instituída por Otávio Augusto. Ficou conhecido pela sua natureza extravagante e por vezes cruel. Foi assassinado pela guarda pretoriana em 41, aos 29 anos. Calígula é um apelido que significa "botinhas" em português. Esse apelido lhe foi posto pelos soldados das legiões comandadas pelo seu pai, Germanicus, que achavam graça em vê-lo vestido de legionário, calçando pequenas caligae (sandálias militares) nos pés.

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confirmar: a grandiosidade, a opulência, o exibicionismo, a magnificência, no mais das vezes tem imensos espaços vazios a esconder. E por isso são lerdos em seus movimentos. 

É propriedade intrínseca da energia se concentrar em pequenos pacotes. E a inteligência, que também  é energia, se concentra em pequeninas células, que são os neurônios. Aliás, não é sem razão que a energia fundamental que dá conformação ao universo se chama-se quanta.4

Mais um motivo para dar razão á Jesus. “Deixai vir a mim os pequeninos, pois destes é o reino dos céus.”

O BOI FALANTE E O FAZENDEIRO INGRATO

  No tempo em que os animais falavam, houve um fazendeiro que tinha alguns bois em sua fazenda. Eles eram muito úteis principalmente para fazer o trabalho pesado da propriedade.

Um dia, um dos mais fortes e sacudidos daqueles bois caiu num buraco bem fundo e estreito, de tal modo que não conseguia sair de lá por si mesmo. Por mais que se debatesse e tentasse sair daquele buraco, só conseguia se ferir mais e mais a cada tentativa. 

Ao ouvir seus mugidos, o fazendeiro correu em seu socorro, mas ao ver a situação do animal, encalacrado naquele buraco

4 Quantas são grãos de energia, que se apresentam ora como partículas, ora como ondas.

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fundo e estreito, todo ferido, logo desanimou. Seria impossível tirá-lo dali. Ele estava entalado de tal maneira que qualquer tentativa para resgatá-lo, além de difícil e custosa, seria, a seu juízo, infrutífera, pois o boi já estava muito machucado e certamente morreria.

Então chamou alguns de seus empregados e mandou que sepultassem de vez o boi naquele buraco. Seria uma solução mais barata e lógica, além de poupar sofrimento ao animal, que estava se machucando cada vez mais com suas tentativas de escapar daquele buraco.

Os empregados começaram a jogar terra dentro do buraco. Mas quanto mais terra eles jogavam em cima do boi, mais ele se sacudia dentro dele. Em consequência, a terra ia se acumulando no fundo do buraco e ele ia subindo para a superfície á medida que o buraco ia se enchendo. Depois de algumas horas daquela operação, o boi tinha escapado dele, ferido, mas bem vivo.

─ Graças a Deus conseguimos salvá-lo. Eu já estava conformado em perder o melhor boi da minha fazenda. Agora     vamos embora, que temos muito trabalho a fazer ─ disse o fazendeiro, na maior alegria, tentando meter uma canga no boi e puxá-lo para o campo.

─ Vamos o cacete ─ respondeu o boi. ─ Eu estou vivo porque me recusei a ficar nesse buraco. Se fosse por você eu já estaria morto e enterrado. Para você eu não trabalho mais. Vá procurar outro bobo que derrame suor para enriquecê-lo, e na primeira dificuldade que tiver consinta em ser esquecido e enterrado vivo.

Quanto a mim, eu vou procurar outro patrão que tenha mais respeito pelo meu trabalho.

E lá se foi o boi falante. E os outros bois, ouvindo e vendo tudo aquilo, resolveram acompanhá-lo, deixando o fazendeiro ingrato boquiaberto e sem fala.

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Dedico essa fábula a todos os nossos políticos que depois de eleitos se comportam igualzinho a esse fazendeiro.

 

 

O PADRE E O MAÇOM

“ A traição dos clérigos começou no dia em que um deles representou um anjo com asas; é com as mãos que se sobe ao céu,”  Pawels e Bergier ─ O Despertar dos Mágicos“Nem todo o que me diz, Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus, mas o que faz a vontade do meu Pai,,”- Mateus, 7:21.

                                                ♀

Dois sujeitos morreram no mesmo dia, praticamente na mesma hora. Por consequência chegaram á porta do céu á

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mesma hora. São Pedro, porteiro do céu, consultou os passaportes dos dois e viu que um era um pedreiro que passara a vida trabalhando em construções civis. Sua especialidade era a construção de igrejas. Era um maçom operativo que sabia construir altares, abóbodas, naves e transeptos, com uma competência e uma habilidade invejáveis.

Em sua ficha estava escrito também que ele criara uma bela família e realizara importantes serviços para sua comunidade. São Pedro deu um cândido sorriso para ele e foi logo carimbando o seu passaporte sem fazer quaisquer outras perguntas. 

─ Pelo visto você foi um bom maçom. Seja bem-vindo ao céu, meu filho. ─ disse São Pedro, pegando o enorme molho de chaves que tinha na mão, para abrir a porta do céu para ele.

Em seguida passou a examinar a ficha do outro. Viu que se tratava de um padre. Este, durante a vida toda, fora um sujeito muito rígido em questões de moral e ferrenho defensor da ortodoxia religiosa. Rezava cerca de vinte Padres Nossos e trinta Aves Maria por dia, além dos atos de contrição e outras litanias próprias da profissão. Na ficha dele estava escrito que ele fora um religioso ortodoxo que levava a ferro e fogo a sua crença de que só a fé a oração podia salvar uma alma.

 São Pedro olhou para ele com orgulho e satisfação. “Eis aí

um dos nossos”, pensou consigo mesmo. “Um verdadeiro batalhador pela nossa causa, um defensor da Igreja que eu fundei.”

─ Seja muito bem-vindo, meu filho. Estou feliz por recebê-lo entre nós. Pessoas como você enobrecem a criação divina ─ disse São Pedro ao padre.

Escolheu uma das chaves do enorme molho de chaves que tinha nas mãos, abriu uma das portas laterais e mandou o padre entrar por ela. Quando ele se viu lá dentro, imediatamente dois anjos o tomaram pelos braços e deitaram-no, de bruços, em

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uma bancada. Depois fixaram nas suas costas um belíssimo par de asas, branquinhas como lírios em sua mais perfeita floração e colocaram em volta de sua cabeça uma linda e vistosa auréola, tão luminosa e colorida, que pareciam as órbitas de um elétron em volta do seu núcleo.. 

O padre não cabia em si de contente. Toda a sua vida de fé e rigidez na liturgia da religião havia dado seus frutos. Ele era, finalmente, um anjo. Valera a pena sua dedicação á fé e á doutrina da Igreja.  

Ao voltar á presença de São Pedro, este o olhou de alto a baixo e soltou um suspiro e um assobio de satisfação. 

─ Ótimo, meu filho! Ótimo. Você está perfeito. Está lindo. Agora pode escolher a sua nuvem e começar a fazer o seu trabalho.

─ Desculpe, meu Santo Apóstolo ─ disse o Padre. ─ Eu não entendi. Se eu agora sou anjo, não deveria ir para o céu?

─ Ah!. Eu estou mesmo ficando velho ─ disse São Pedro. ─ Esqueci de explicar para você que os anjos não moram no céu. Eles são os guardiões da obra de Deus. Por isso vivem nas nuvens, no espaço, na luz e nas sombras, observando o mundo e intervindo nele para corrigir desvios e erros que possam colocá-lo em perigo de extinção. 

─ Mas meu Santo Apóstolo, isso não é injusto? Que adianta então ser anjo? Rezei a minha vida toda e agora vou ter que trabalhar eternamente? Isso não é uma inversão de valores? Porque esse maçom ateu pode entrar no céu, ele que nem asas têm, e eu, um anjo não?─ choramingou o beato. 

─ Ah! Isso é outra coisa que precisa ser bem explicada ─ disse São Pedro. ─ É que ninguém sobe ao céu com asas, mas sim com as mãos.

Cada um escolhe a sua forma de recompensa. Você escolheu a sua. Agora, vá para a sua nuvem, meu filho, vá...

Histórias que a vida conta

CONTO DE AREIA

 

3M D14 D3 V3R40, 3574V4 N4 PR414, 0853RV4ND0 DU45 CR14NC45 8R1NC4ND0 N4 4R314. 3L45 7R484LH4V4M MU170 C0N57RU1ND0 UM C4573L0 D3 4R314, C0M 70RR35, P4554R3L45 3 P4554G3NS 1N73RN45. QU4ND0 3574V4M QU453 4C484ND0, V310 UM4 0ND4 3 D357RU1U 7UD0, R3DU21ND0 0 C4573L0 4 UM M0N73 D3 4R314 3 35PUM4. 4CH31 QU3, D3P015 D3 74N70 35F0RC0 3 CU1D4D0, 45 CR14NC45 C41R14M N0 CH0R0. M45 3L45 C0RR3R4M P3L4 PR414, FUG1ND0 D4 4GU4, R1ND0 D3 M405 D4D45 3 C0M3C4R4M 4 C0N57RU1R

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0U7R0 C4573L0. C0MPR33ND1 QU3 H4V14 4PR3ND1D0 UM4 GR4ND3 L1C40; G4574M05 MU170 73MP0 D4 N0554 V1D4 C0N57RU1ND0 4LGUM4 C0154 3 M415 C3D0 0U M415 74RD3, UM4 0ND4 P0D3R4 V1R 3 D357RU1R 7UD0 0 QU3 L3V4M05 74N70 73MP0 P4R4 C0N57RU1R. M45 QU4ND0 1550 4C0N73C3R 50M3N73 4QU3L3 QU3 73M 45 M405 D3 4LGU3M P4R4 53GUR4R, 53R4 C4P42 D3 50RR1R! S0 0 QU3 P3RM4N3C3 3 4 4M124D3, 0 4M0R 3 0 C4R1NH0. 0 R3570 3 F3170 D3 4R314... (N40 S31  QU3M 3 0 4U70R)                                    Eu também não sei quem escreveu esse texto. Mas nele eu aprendi, de pronto, duas coisas: a primeira está na mensagem embutida na estória. Que não vale a pena ficar se apegando as coisas que construímos, como se elas fossem parte de nós. Elas não são parte de nós. Nada nos pertence absolutamente. Nem o nosso próprio corpo, que a natureza, ou Deus (seja quem for, ou o que for que controle esse processo) pode tomar a qualquer momento, sem que possamos fazer nada a respeito.

Tudo é passageiro no universo. Como castelos de areia que a onda do mar leva. Enquanto estamos no cone de luz do tempo, como dizem os cientistas ─ e isso significa quase nada em termos de tempo na vida do universo ─ podemos construir e reconstruir muita coisa. E quando fazemos, fazemos para o mundo, não para nós mesmos. E quando o mundo leva o que fazemos, não devemos acalentar a sensação de perda.

Nada perdemos, porque nada é nosso de verdade. E as coisas, as pessoas, tudo no universo (como a teoria da relatividade tem mostrado e a lei da conservação das massas, de Lavoisier, confirma), são eventuais.

No universo nada se perde, nada se cria, e também nada se destrói, mas apenas muda de forma. Isso porque cada coisa (e cada pessoa também) ocupa um ponto relativo no espaço e no

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tempo, que nunca coincide com outro. Assim, as coisas e as pessoas não se perdem de nós e nós nunca as perdemos. Elas passam por nós e nós passamos por elas.

Enquanto a posição delas no tempo e no espaço está no mesmo cumprimento de onda da nossa, estabelece-se uma relação. Mas como a inércia absoluta não existe, acontecerá um momento em que o universo em movimento levará as coisas e pessoas para outro ponto e a nossa relação com elas deixará de existir. O movimento do universo se encarregará de afastá-las de nós e nós delas.

E nós só as veremos no passado, com os olhos da memória. Como uma estrela morta cuja luz só está chegando aos nossos olhos agora. Ela só morreu para os nossos olhos. Para o universo ela continua viva em algum lugar.

Outro ensinamento que podemos tirar desse texto é que não é a línguagem que separa as pessoas, mas a forma como nós lemos as palavras. A leitura é feita em bloco (lemos a palavra inteira e não letra por letra). A consequência disso é que o significado das palavras, muitas vezes, acaba sendo pervertido pelo que a gente tem dentro da cabeça, e o verdadeiro sentido da mensagem se perde.

Isso nos leva a pensar que a Bíblia talvez estivesse certa quando diz que houve um tempo em que a raça humana falava uma língua só. Talvez naquele tempo não houvesse tantos interesses em jogo, nem muita coisa para as pessoas chamarem de "meu".      Talvez não seja difícil se chegar a isso novamente nos tempos que virão. Ou quem sabe seja possível criar, no futuro, uma língua única, com a qual a humanidade toda possa se comunicar. Já se tentou isso com o esperanto (uma língua artificial), mas até hoje o projeto não vingou.

Há quem diga que isso pode acontecer com o inglês, uma língua de caráter universal, mas essa possibilidade está chumbada a fatores políticos e econômicos, pois a

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universalidade do inglês está vinculada ao poder que hoje é exercido pelos países que tem essa língua como idioma, como no passado aconteceu com o latim e o grego. E tudo que é imposto, seja por que razão for, um dia acaba sendo removido. Pois língua é elemento cultural e cultura também está sujeita á lei de Lavoisier. 

Esse texto nos mostra também que o nosso cérebro foi construído com uma infinita capacidade de assimilação. Basta oferecer a ele uma pista que ele faz o resto.  E como diz o autor, quem sabe se a gente se desse as mãos, o nosso cérebro não assimilaria melhor a mensagem sinestésica que o toque das mãos nos trás do que aquelas que as palavras, muitas vezes, construídas ardilosamente, nos induzem a acreditar.

Porque, quando os alicerces sobre os quais nossas crenças e valores são derrubados, a sobrevivência fica mais fácil quando se tem mãos amigas para segurar. As coisas que fazemos se descolam de nós e ficam para trás, como marcas da nossa passagem por aquele caminho. Agora, o amor, o carinho, a amizade, nós levamos junto conosco á medida que nos deslocamos no tempo e no espaço. Isso nem o tempo nem o mar leva

O CAMUDONGO INCONFORMADO

Houve uma vez um pequeno e tímido camundongo que vivia no porão de uma velha casa. Além dele, um gato, um cão e um homem também moravam lá. Todo dia, o camundongo saia do seu cantinho no porão em busca de comida e era perseguido pelo gato. Voltava correndo para sua toca, geralmente com fome. 

Cansado daquela vida de tribulações e perigos, ele começou a rezar, todos os dias, para o deus dos camundongos, pedindo

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que ele o transformasse em um gato.  E o deus dos camundongos, cansado daquela ladainha diária, o atendeu. Transformou-o em um lindo e forte felino, que por seu porte e beleza, logo tomou o lugar do antigo gato da casa. 

Mas logo ele viu que vida de gato também não era fácil. Cada vez que ele saia para o quintal, eis que surgia um enorme buldogue pulguento que corria para cima dele, com seus temíveis dentes pontiagudos, prontos para estraçalhá-lo. E ele era obrigado a usar de toda sua agilidade felina para escapar das garras daquele monstro. 

Cansado daquela vida de estressantes temores, ele começou a rezar para o deus dos gatos pedindo que o transformasse em um cachorro grande e forte, para que ele pudesse dar conta daquele buldogue nojento e desgraçado que não o deixava em paz. Foi então que o deus dos gatos, de saco cheio com tantas súplicas, transformou-o em um gigantesco dogue alemão, com quase um metro de altura e cem quilos de peso. Quando o homem viu aquele mastodonte em sua casa, logo resolveu trocar o velho buldogue por ele.

Mas o antigo gato que também já fora camundongo logo percebeu que vida de cachorro não era essa maravilha que ele pensava ser. Tinha que ficar o dia inteiro atento para ninguém entrar na casa, e á noite dormia mal, porque qualquer barulhinho o acordava. E como era muito grande e guloso, a comida que aquele mão- de -vaca de seu dono lhe dava diariamente não cabia nem no buraco do dente. Em consequência ele vivia com fome. E não raras vezes apanhava do dono. Era só fazer cocô ou xixi fora do lugar habitual, ou soltar algum pelinho pela sala, lá vinha aquela paulada, ou

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aquele pontapé nas costelas. E como cão doméstico não podia revidar, por mais forte que fosse... 

O recurso foi começar a rezar para o deus dos cães para que ele o transformasse em um homem. O homem, pensava ele, era o animal que estava no topo da cadeia da evolução. Todo animal devia esperar, um dia ser um homem. Para poder mandar nos outros animais. Ter poder sobre todas as demais espécies. Não ter necessidade de fugir quando ele aparece, nem ficar abanando o rabinho, ou ronronando na perna dele para obter um carinho.

Ah! Que bom se ele fosse um homem... E como o deus dos cães, que além de compressivo, também não suporta lamentações, foi logo atendendo o pedido dele. O imenso dogue alemão, que já havia sido rato e gato, acordou no dia seguinte como homem.

Mas logo viu que sua vida como ser humano não ia ser muito fácil também. Para começar odiou aquele maldito despertador que o acordou ás seis horas da manhã, no melhor do sono.

Depois não compreendeu bem porque tinha que tomar banho, escovar os dentes, vestir aquelas roupas desconfortáveis e amarrar no pescoço aquela gravata apertada. Ele, que enquanto camundongo, tinha ojeriza de ter que sair da toca, como gato abominava tomar banho e acordar cedo e como cachorro, odiava coleiras... E depois ter que passar horas num trânsito maluco, assustando-se com os barulhos das buzinas, dos motoqueiros com suas motos aceleradas, com aquela fumaça no seu nariz e nos olhos, com todos aqueles caras se xingando uns aos outros.

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E depois ficar preso durante dez horas ou mais dentro de um escritório, atendendo telefones, os olhos fixos na telinha de um computador, com um cara, a toda hora, entrando na sala e perguntando se ele já fez isso, já fez aquilo, se tal coisa estava pronta... 

Ah!  Vida porca essa de seres humanos... Então ele pensou em rezar para o deus dos humanos para que ele o transformasse em outra coisa menos estressante, menos confusa e mais tranquila. E o deus dos humanos, que também não gosta de resmungos, lamentações e reclamações (veja-se o caso de Jó), transformou-o de novo em um camundongo.

─ Hei Deus! Reclamou ele, agora de novo na pele de um camundongo. Não foi isso que eu pedi. Eu já fui camundongo e não gostei disso. Não tem coisa melhor para me dar, não?

Deus respondeu. ─Meu amigo, seja qual for o corpo que eu lhe der, se o seu espírito é de camundongo, camundongo você sempre será.

Naquele dia o chefe teve que mandar dedetizar o escritório inteiro porque todo mundo viu um ratinho passar correndo como um doido pelo meio das pernas dos funcionários tirando gritinhos histéricos das mulheres e palavrões impublicáveis dos homens.

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