48
Qualquer utilização da obra – que não somente para a leitura pessoal – Entrar em contato com o autor [email protected] WhatsApp (21) 98773-4608 9.610/98 - Lei dos Direitos Autorais 0

rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

Qualquer utilização da obra

– que não somente para a leitura pessoal – Entrar em contato com o autor

[email protected]

WhatsApp (21) 98773-4608

9.610/98 - Lei dos Direitos Autorais

0

Page 2: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

SOB O MESMO TETO

de: Jomar Magalhães

Testamento (Núcleo Suspense)

TODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

UM MENINO DE 12 ANOS ENTRA EM CENA ALEGREMENTE, BRINCANDO COM UMA BOLA DE FUTEBOL. SUBITAMENTE LEVA AS MÃOS AO ESTÔMAGO, CAMBALEIA E CAI AGONIZANTE NO CANTO DA SALA ATÉ PARAR POR COMPLETO OS MOVIMENTOS

CAI A LUZ

AO REACENDÊ-LAS SEU CORPO PERMANECE ALI, INERTE, SENDO OBSERVADO FRIAMENTE POR CASIMIRO

SAMANTA, TITO E A GOVERNANTA NAIR ESTARÃO TAMBÉM EM CENA

CASIMIRO – (sem comoção) – Sim, os olhos estão esbugalhados, a pele escamada e a língua retorcida. É mesmo uma evidência de envenenamento.

NAIR – (abalada) Santo Deus! Estou estarrecida! Como isso pode ter acontecido!?? Precisamos chamar a polícia!

SAMANTA – (súbito) Não! (ameniza) Chamar a polícia agora pra que? Para que Vô Inácio enfarte de vez?

TITO – Mas como assim? Como assim... ele morreu? Ele morreu pra sempre? O Betinho é muito novo! Isso não acontece assim!

CASIMIRO – Não, Nair, nada mesmo de chamar a polícia. Não tem nem cabimento uma perícia agora! Podemos alegar que só nos deparamos com o cadáver daqui a duas ou três horas. Tempo esse necessário para que saibamos o que Vô Inácio reservou a cada um.

NAIR – O que é isso, Casimiro? Como alegar uma coisa dessas...?

CASIMIRO (taxativo) – Nair! Eu não vim de longe pra um velório!

SAMANTA – Estávamos fora de casa... Sim, podemos dizer que estávamos todos no quintal, lá perto da churrasqueira, e nem demos falta dele que brincava por aí, como era

1

Page 3: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

de costume. Vamos mandar algum empregado puxar o corpo mais lá pra fora e depois ajeitamos uma justificativa pra isso.

NAIR – Como governanta asseguro que nenhum dos empregados irá tocar no menino, fui clara? Vocês são monstruosos!

TITO – O Betinho tem quase a minha idade. Ele tem 12 e eu tenho 17. Se ele morrer eu vou ficar muito mais velho e não vou mais poder brincar com ele. Ele não pode morrer não, Casimiro!

CASIMIRO – Vê se sossega, estupor!

SAMANTA – Quanto tempo um corpo demora pra exalar mau cheiro?

CASIMIRO – Depende de uma série de fatores, incluindo a temperatura ambiente, a umidade...

TITO – Deu no rádio que vai fazer muito frio hoje à tarde. Trouxe até meu casaco.

NAIR – Sinceramente... vocês não podem estar em um perfeito juízo! Houve uma morte aqui dentro... muito provavelmente um assassinato, já que somente o prato dele pudesse estar envenenado. É uma vida que se foi... E esse menino é tudo pro Vô Inácio!

SAMANTA – Nair, todos estamos chocados com o ocorrido. Teremos inúmeras providências a tomar a respeito dessa tragédia, mas acaso você não sabe que a morte é irreversível? O destino que o corpo seguirá não mudará em nada se anunciado daqui a três ou quatro horas. Ninguém sairá desta casa antes da chegada da polícia, melhor assim?

NAIR – Mas não podemos mentir... A perícia vai checar tudo!

SAMANTA – Estou me lixando pra perícia! Sabe há quantos anos Vô Inácio anuncia a distribuição dos bens? Há mais de cinco anos!

CASIMIRO – Cinco anos e quatro meses, pra ser mais exato!

SAMANTA – Pois então! E o dia é hoje! Compreende a importância das próximas horas na vida de cada um aqui?

NAIR – Como compreender em vista de uma cena dessa...?

CASIMIRO (irônico) – É mesmo? Será que a serviçal mais amada de Vô Inácio não compreende nada apenas porque já é sabido que para uma confortável sobrevivência ficará com a casa de horta na roça além da quitanda?

SAMANTA – Não só ficará como, inclusive, já usufrui disso nas férias.

TITO – Com o dinheiro que Vô Inácio me der, vou fazer uma reprodução do Sistema Solar no meu quarto.

2

Page 4: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

NAIR – Quero que ouçam uma coisa: O que eu compreendo e sempre compreendi é que essa família sempre foi marcada pela ganância, pela cobiça e pelas trapaças! E isso se mostra agora em cores vivas!

SAMANTA – Insolente!

TITO – Nair, você não precisa ficar preocupada, não. Ninguém vai tirar a casa lá da roça de você. Eu te empresto até o meu cachorro pra ajudar a tomar conta. Eu gosto daquela casa porque lá do quintal eu sempre ficava observando Vênus, mas eu quero que ela seja sua. Só sua!

NAIR – Eu não estou emocionalmente pronta para esse momento. Vô Inácio adotou esse menino desde pequenino. É a alegria dessa casa... Ainda há pouco ele estava correndo por aí, pulando, cantando... e agora...

NAIR IRROMPE EM CHORO E SE RETIRA

CASIMIRO – (seguindo-a com os olhos) Precisamos evitar que ela fique muito próxima ao velho pelos próximos minutos.

TITO – Mas quem botou veneno na comida do Betinho? Quem botou?

SAMANTA – E quem disse que alguém botou, seu tonto? Alguém viu se ele lavou a mão pra almoçar? Vai ver comeu de mão suja de terra.

CASIMIRO – Daqui a pouco Vô Inácio desce! Teremos que manter a naturalidade, mesmo sabendo que ele já esteja caduco pra certas percepções.

SAMANTA (súbito) – A bola! Ele pode ter rolado a bola por cima de algum veneno de rato ou coisa assim. Sim! Pode ter acontecido isso perfeitamente.

CASIMIRO – Esse testamento vem virando uma verdadeira novela ao longo dos anos. Faço votos que Vô Inácio dê uma atenção especial a quem está aqui presente. Se Laura, Fabrício, Gilberto ou quem quer que seja não puderam vir, paciência! Eu vim de longe e aqui estou!

SAMANTA – Desde que a “atenção especial” a que você se refere não seja a cobiça na fábrica têxtil, concordo plenamente.

CASIMIRO – Verdade? Não julgo que quem já faliu duas microempresas possa herdar uma fábrica daquele porte.

SAMANTA – Talvez porque eu não tenha tido um papai igual ao seu, sempre disposto a acobertar as lambanças do filho.

TITO – Quem vai ficar com a bola do Betinho?

CASIMIRO (irritado) – Responda uma coisa, Tito: o que você faz aqui hoje? Qual o principal motivo que te fez vir pra cá?

3

Page 5: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

TITO – O Vô Inácio tem problema de coração e vai ler o testamento pra dizer o que cada pessoa da família vai ganhar depois que ele morrer.

CASIMIRO – Pois então: “Depois que ele morrer!” Entendeu!? Se ele morre antes, ninguém mais ganha bulhufas tão cedo, compreende bem? Veja então se sossega essa matraca pra não falar besteira na hora errada!

TITO – Eu vim também porque gosto muito do lanche que a Nair serve quando...

SAMANTA (desperta aflita) – O corpo! Precisamos cobrir o corpo!

CASIMIRO – Claro! Abra uma dessas gavetas pra pegar um lençol ou coisa assim!

SAMANTA TIRA A TOALHA DA MESA E VAI ATÉ O CADÁVER, COBRINDO-O

TITO – Não, Samanta! A Nair ainda vai servir o lanche!

CASIMIRO – (indo à coxia) Nair..! Nair..!

NAIR ENTRA, POUCO EM SEGUIDA

CASIMIRO – Providencie imediatamente outra toalha pra mesa! De preferência, parecida com a anterior, anda!

NAIR – Na terceira gaveta daquela cômoda estão as toalhas. Sou governanta, não sou empregada. Muito menos serviçal de abutres.

SAMANTA – Escute uma coisa, Nair, ninguém está interessado em deixar o ambiente ainda mais pesado do que se apresenta, compreende? Houve uma tragédia sim, um acontecimento inegavelmente terrível, mas diga uma coisa: qual sua verdadeira intenção neste momento?

NAIR – (olha fixamente) Encontrar o assassino!

SAMANTA – E se não houver um assassino?

NAIR – Isso é a polícia quem dirá, apesar de eu ter certeza que há.

CASIMIRO – Sim, e quem colocaria veneno no prato do menino? Acaso já perguntou às cozinheiras se alguém entrou na cozinha?

NAIR – Elas não perceberam nenhuma movimentação anormal. Por outro lado, o veneno pode não ter sido posto na comida, mas quem sabe na sobremesa ou até em alguma bala que alguém gentilmente possa ter oferecido a ele.

TITO – Eu tava “mastigando” chiclete, mas não dei a ele não. Também se o meu chiclete tivesse envenenado eu tinha morrido antes de dar a ele, né?

4

Page 6: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

NAIR – Desde a repentina morte da patroa eu sinto uma aura sobrecarregada entre essas paredes. De qualquer forma, tudo o que eu quero advertir é que a ganância sempre gerou infortúnios. Aqui não será diferente.

CASIMIRO – Por favor, dispensamos sermões. Não queira tornar a situação ainda pior!

SAMANTA – (pondo a toalha na mesa) Taí! Tive uma ótima ideia! Chame imediatamente a polícia, Nair! Vá! Chame sim! Mas antes disto, sente-se nesta mesa e faça uma declaração de que você abre mão da casa da horta com a quitanda e escreva também que retira todos os seus pertences de lá até que isso seja efetivamente confirmado em testamento. Que tal?

TITO – (pânico) Polícia não! Polícia não! Eu já vi a polícia fazendo um tiroteio lá na minha rua! Não manda a polícia atirar aqui dentro não!

CASIMIRO – Cala essa boca, estrupício! (para os demais) Vamos mudar de assunto antes que...

OUVE-SE O TOC TOC DE BENGALA

NAIR – Veja! Vô Inácio está vindo!

TODOS CORRIGEM A POSTURA. VÔ INÁCIO ENTRA EM CENA, TRAZENDO UM LIVRO ATA CONSIGO

NAIR – Boa tarde, Vô Inácio! Já pretende abrir o testamento agora?

CAMINHA COM PASSOS CURTOS, MÃOS LEVEMENTE TRÊMULAS, AJEITA OS ÓCULOS COM CERTA FREQUENCIA

VÔ INÁCIO – Não, ainda não. Continuem conversando e se distraindo. Só vou anunciar depois do lanche. Ainda estou fazendo algumas anotações.

CASIMIRO – Ah, sim, claro... Mas Vô Inácio... o senhor já definiu a maior parte?

VÔ INÁCIO – Hein!? Claro, como não!? Isso já está definido há muito tempo! A maior parte ficará para o Betinho, vocês não sabem disso?

TITO – Ih, mas se o Betinho não quiser mais...?

SAMANTA (interrompe Tito) – Vô Inácio, o que o Casimiro quer dizer é se falta pouco para o senhor finalizar... A maior parte já foi escrita?

VÔ INÁCIO – Sim, falta pouco. Só um detalhe aqui, outro ali. Chamei um tabelião pra tirar qualquer dúvida. Que horas marcam agora?

NAIR – Agora são exatamente três e meia da tarde. A que horas o senhor quer que eu sirva o lanche?

VÔ INÁCIO – Como hoje é dia de festa, sirva lá pelas seis horas.

5

Page 7: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

SAMANTA – Não tem como ser às cinco? Já sinto um pouco de fome.

VÔ INÁCIO – Cinco e meia, pronto! Enquanto isso, matem a saudade uns dos outros já que nem no natal, nem nos aniversários ou em qualquer outra ocasião a família se reúne. Vejam só! Hoje mesmo só vieram três. (saindo)

NAIR – Darei ordem na cozinha para que o lanche seja servido às cinco e meia.

VÔ INÁCIO – Isso! E faça uma vitamina reforçada pro Betinho. Esse menino corre tanto por aí e se alimenta muito pouco. (sai)

TITO – Hum... acho que não quero lanchar mais não.

NAIR – (aflita) Estão vendo só que situação terrível!? Quando ele retornar vai querer saber do menino. Não vai dar início ao lanche sem a presença de Betinho.

CASIMIRO – Serão duas horas bastante tensas...

SAMANTA – Temos que ocupar esse tempo de alguma forma objetiva.

TITO (fala pausadamente) – Meu vizinho tem muito jornal sobre urso nervoso.

NAIR – O que é isso, Tito?

TITO – É uma maneira de guardar a ordem do Sistema Solar com as iniciais das palavras: Meu vizinho tem... Mercúrio, vênus, terra... Muito jornal sobre... Marte, júpiter, saturno... Urso Nervoso... Urano e Netuno.

SAMANTA – Nunca estive em uma situação tão perturbadora como essa.

TITO – Só não pode confundir porque tem dois planetas que começam com a letra “m”: Mercúrio e Marte. Então se...

CASIMIRO – Vê se para com essa ladainha dos diabos, infeliz! Será que já não basta um cadáver nesta sala?

NAIR – Controle-se, Casimiro!

CASIMIRO – Quem vai querer saber de lua, de sol ou do raio que o parta numa hora dessas!?

TITO – É que a Samanta disse pra ocupar o tempo com alguma coisa boa. Então eu pensei nos planetas!

SAMANTA – Esqueça, Tito, não foi nada disso que eu quis sugerir... (intrigada / insinuante) mas a frase que você falou, Casimiro, tem muito a ver com que eu quis dizer.

CASIMIRO – Como assim?

6

Page 8: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

SAMANTA – Você disse “Será que já não basta um cadáver nesta sala?” O que exatamente você quis dizer com isso?

CASIMIRO – Há necessidade de explicação? Não compreendo o sentido da pergunta.

SAMANTA - Por que “não basta um”? Acaso você seria capaz de promover um segundo cadáver?

CASIMIRO – Coisa mais sem cabimento!

NAIR – Pois pra mim tudo tem cabimento! A verdade é que acaba de ser eliminado o herdeiro que receberia a maior parte dos bens. Fica claro que estaria aí a motivação do crime.

SAMANTA – E como temos duas horas, podemos realizar algumas investigações antes mesmo da policia, não?

CASIMIRO – Ah, é? Perfeito! Então vamos lá! Você, por exemplo, foi a primeira pessoa a chegar aqui, certo? Provavelmente cumprimentou o Betinho. Tinha alguma pessoa por perto quando você esteve com ele? Houve algum momento em que vocês tenham ficado a sós?

SAMANTA – É um interrogatório? Pois bem! Ele foi o primeiro a correr até o portão quando me viu chegando. Havia o jardineiro e mais alguns funcionários por perto. Dei um beijo nele, perguntei sobre a escola, entre outras coisas. Dali Vô Inácio me recepcionou e fomos até o escritório e depois pra cá. Minutos após você chegou. Algo mais te interessa saber?

CASIMIRO – Imagino que eu tenha visto uma cartilha ou álbum de figurinhas com ele, dado por você.

SAMANTA – Sim, trouxe-lhe um álbum de figurinhas sobre a fauna e a flora. Entreguei a ele justamente no momento em que lhe perguntava sobre a escola.

CASIMIRO – E por quê não mencionou isso? Justo figurinhas que as crianças costumam passar a língua antes de colar no álbum...!?

TITO – Eu colava minhas figurinhas com arroz. Uma vez colei com arroz doce e meu álbum ficou cheio de formiga.

SAMANTA – Já no seu caso, é possível que houvesse alguma repulsa dele em relação a você, não? Pois em nenhum momento, desde que você chegou, percebi ele se aproximar de você.

CASIMIRO – É verdade, não nego. O mais agradável, no entanto, é perceber que sua insinuação venha a favorecer minha própria defesa, já que sequer nos aproximamos.

7

Page 9: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

SAMANTA – Dizer que não houve aproximação dele até você não significa dizer que você não possa ter se aproximado do copo de refrigerante dele. Sobretudo quando fez questão de promover o brinde.

TITO – Ah! Alguém aqui por acaso sabe dizer por que a gente fala tim tim quando brinda? Alguém sabe? Pois eu sei! É porque...

SAMANTA – E você, Tito, mergulhado em toda essa abestalhação? Acredita que isso te isenta de alguma suspeita?

TITO – O que?

CASIMIRO (corroborando) - Ela está insinuando que todo o seu blá, bla, blá nessa algaravia infernal não faz de você um pobre inocente.

TITO – Eu não matei o Betinho não, Samanta. Se eu tivesse matado ele, ele ainda estaria vivo porque eu não sei matar ninguém.

SAMANTA – Há muitos casos de pessoas cientes de algum distúrbio mental que se prevalecem disso para atingir seus interesses. Já ouvi dizer que você só perambula por perto de casa. E hoje veio pra cá sozinho à espera da herança.

TITO – Eu vim ontem também porque errei o dia.

SAMANTA – Você veio ontem?

NAIR – Sim, ele veio ontem, mas nem entrou. Mesmo Vô Inácio tendo insistido.

CASIMIRO – É uma informação que pode apresentar algum indício. Curiosamente foi hoje o último a chegar, atrasando até o almoço.

TITO – É porque hoje eu errei o caminho.

SAMANTA – E por ter chegado atrasado teve a oportunidade de ficar algum tempo com Betinho lá fora enquanto todos nós já estávamos aqui dentro, certo?

TITO – Eu não matei o Betinho não, Samanta. Senão ele ainda estaria vivo.

NAIR – Eu vou avisar à cozinheira que o lanche vai sair às cinco e meia.

CASIMIRO (insinuante) – Vai se retirar agora, Nair? Justamente você que estava tão ansiosa por chamar a polícia pra elucidar o caso!?

NAIR – Não compreendo perfeitamente o que...

OUVE-SE NOVAMENTE O SOM DE BENGALA. VÔ INÁCIO REAPARECE

VÔ INÁCIO – Escutem uma coisa... como é mesmo o nome daquele afilhado da Adelaide?

8

Page 10: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

SAMANTA – Quem? Aquele menino franzino? É Bernardo o nome dele.

VÔ INÁCIO – Isso! Bernardo! Vou deixar algum agrado pra ele também.

CASIMIRO – Agrado? Bem... Vô Inácio... mas ele não chega nem a ser parente... pelo que eu saiba ela apenas o batizou porque não tinha ninguém pra ser madrinha...

VÔ INÁCIO – Sim, e qual é o problema? O Betinho também não é parente e vai receber a maior parte dos meus bens. Aquele menino lá precisa ter pelo menos alguma ajuda para os estudos.

SAMANTA – Sendo que o Betinho o senhor adotou quando pequenino... já esse outro é bem mais distante.

VÔ INÁCIO – Não é nenhuma fortuna, apenas uma ajuda. Aliás, vocês que aqui vieram terão um tratamento diferenciado. Já até alterei algumas coisas aqui no livro.

SORRISO DE FELICIDADE NOS TRÊS. VÔ INÁCIO INICIA A RETIRADA, MAS VOLTA-SE UM POUCO

VÔ INÁCIO – Ah, Nair, mudei de ideia! Vou anunciar o testamento antes mesmo do lanche! Peço que vocês se retirem do aposento para que as serviçais preparem o ambiente em conformidade com a solenidade. (sai)

CASIMIRO (exultante) – Salve! Foi como eu desejei! “Tratamento diferenciado!” Nair, tem que dar um jeito do corpo sair dali!

SAMANTA – (eufórica) Sim, Nair! Não faz sentido um momento tão nobre com um cadáver ao fundo!

NAIR (aturdida) Não sinto um bom presságio em relação a tudo isso! (sai)

SAMANTA, CASIMIRO E TITO VISLUMBRAM AQUISIÇÕES ANDANDO PELA SALA. FALAM SIMULTAMENTE E TERMINAM AS FRASES AO MESMO TEMPO

CASIMIRO – A agência de automóveis haverá de ficar pra mim... ao menos como sócio majoritário! Não vejo também ninguém mais indicado nesta família pra ficar com o iate do que eu! Oh... Ações! Venho estudando obsessivamente o mercado de ações. Quem mais na família estará apto a acompanhar a bolsa de valores? Oh, vida tão almejada...!

SAMANTA – Moda! Finalmente poderei mergulhar a fundo no mundo da moda! Farei da fábrica têxtil a maior revolução de vestuário deste país! Criarei minha própria grife! Dos imóveis do Vô Inácio, haverei de herdar no Leblon ou no Morumbi! Quero ver meu nome em vitrines e nas colunas sociais! Muitos me invejarão!

TITO – Com dinheiro que Vô Inácio vai me dar vou fazer uma reprodução gigantesca do sistema solar no meu quarto! “Meu vizinho tem muito jornal sobre urso nervoso”! Vou colocar saturno ainda mais bonito! No meu quarto não. Precisarei de mais espaço!

9

Page 11: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

Já sei! A casa da Nair na roça! Isso mesmo! Eu quero a casa da Nair pra mim! A casa e a quitanda! Porque o sol vai ficar na casa e plutão lá na quitanda!

DURANTE OS MONÓLOGOS NAIR CAMINHA LENTAMENTE, PEGA UM QUADRO NA PAREDE, VAI À ESQUERDA DO PALCO E, APÓS O TÉRMINO SIMULTÂNEO DOS MONÓLOGOS, FALA, OLHANDO PARA O RETRATO

NAIR – Somente agora, patroa, eu compreendo perfeitamente o segredo que um dia a senhora me confiou!

CAI A LUZ

A PEÇA RECOMEÇA COM O AMBIENTE SUTILMENTE CERIMONIOSO, REFORÇADO PELA ILUMINAÇÃO E NOVOS APETRECHOS NA MESA. O CORPO FOI RETIRADO. NAIR ESTÁ SÓ EM CENA E VAI ATÉ UMA DAS PORTAS QUE DÃO ACESSO À SALA

NAIR – Por favor, queiram regressar!

SAMANTA E CASIMIRO ENTRAM

SAMANTA – Hum! Que aroma agradável. Sândalo, não?

NAIR – Sândalo hindu. Queiram sentar-se novamente! (sinaliza-lhes a mesa e se retira) Um momento!

NAIR VAI À COXIA E LOGO REGRESSA COM TAÇAS E UMA GARRAFA DE VINHO QUE COLOCA NO BALDE, JÁ À MESA.

NAIR – Cadê o Tito?

SAMANTA – Não sei. Daqui eu fui para a biblioteca.

CASIMIRO – E eu para a sala de estar. O biruta saiu dizendo que hoje a lua minguante pode ser vista à tarde. Acho que foi lá para os fundos.

SAMANTA – Gostei dessas velas nesses castiçais.

NAIR – Serão acesas no momento da leitura. O vinho é pra brindar a distribuição dos bens, conforme ordenou Vô Inácio!

SAMANTA (olha desafiadora para Casimiro) – Ótimo! Dessa vez eu farei questão de promover o brinde!

NAIR – Neste suporte que habitualmente fica a Bíblia que Vô Inácio abrirá o testamento.

CASIMIRO – E ele já está descendo?

10

Page 12: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

NAIR – Está se agasalhando. Pediu-me para ordenar aos funcionários que liguem o aquecimento a gás desta sala. Em quinze minutos fica aquecida e ele desce.

SAMANTA – É bom que o aluado do Tito venha logo.

NAIR – Irei lá nos fundos chamá-lo.

NAIR SAI

CASIMIRO – Quero deixar claro que não cederei a nenhum tipo de histerismo que por ventura venha a fazer no momento da leitura.

SAMANTA – Tudo o que posso te assegurar é que não sairei entristecida.

CASIMIRO – Perfeito! Sendo assim, estou preparado para uma guerra de titãs, mas acredito que haja uma questão que mereça um armistício para unirmos nossas forças.

SAMANTA – Refere-se, por acaso, a uma substancial transferência dos bens de Betinho a nosso favor?

CASIMIRO – Devo reconhecer o quanto és perspicaz. Vô Inácio já antecipou que, por termos vindo, teremos um tratamento diferenciado. Assim, para ganharmos ainda mais o apreço dele, devemos acalmá-lo e tomarmos todas as providências para o funeral do bastardo, já que o abestalhado do Tito é carta fora do baralho.

SAMANTA – Já estava destinada a assumir essa função sozinha, mas para lhe ser simpática, aceito a parceria.

CASIMIRO – Perfeito! Faremos então um brinde secreto a esse acordo.

EM SEGUIDA NAIR ENTRA EM CENA. APRESENTA-SE ESTARRECIDA, COM EXPRESSÃO DE INCREDULIDADE

CASIMIRO – O que houve, Nair? Que cara é essa?

SAMANTA – Fala, Nair! Aconteceu alguma coisa com Vô Inácio!???

NAIR – Não...!

CASIMIRO – O que há então!??

NAIR – Tito morreu enforcado nos fundos do quintal.

ENTREOLHAM-SE ABISMADOS E CORREM EM SENTIDO À SUPOSTA DIREÇÃO. CAI A LUZ

REINICIA-SE A PEÇA COM CASIMIRO E SAMANTA EM CENA. VÔ INÁCIO ENTRA

VÔ INÁCIO – Bem, vamos lá! Vamos dar logo definição a isso de uma vez porque não tenho mais idade e nem saúde para tantos cálculos. Tô chamando o Betinho pela janela

11

Page 13: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

lá de cima, mas é tanto o que ele brinca por aí que deve estar longe. Não tem importância, vamos sem ele porque o dele já está definido.

SAMANTA – E o tabelião, Vô Inácio, virá?

VÔ INÁCIO – Chegará mais tarde pro lanche. Vem pra tirar toda e qualquer dúvida para amanhã ratificar o testamento. Deixem-me fechar essas portas pra aquecer melhor o ambiente e por ser um momento restrito à família.

VÔ INÁCIO FECHA TRÊS AS TRÊS PORTAS QUE DÃO ACESSO À SALA. GUARDA O MOLHO DE CHAVES NO BOLSO E VOLTA À MESA

SAMANTA – Já está tudo definido no testamento?

VÔ INÁCIO – Já! Todos os meus bens estão despejados e distribuídos nas letras aqui dentro. Vamos começar! Cadê aquele menino... o Tito?

SAMANTA – Ele foi...

CASIMIRO – Bem... Ele resolveu voltar pra casa, sem mais nem menos, dizendo que amanhã retorna pra guardar o caminho direito.

VÔ INÁCIO – Aquele ali desde pequeno sempre teve um parafuso a mais e dois a menos. Deve ter perdido lá em marte.

CASIMIRO (animando) – Então vamos logo ao brinde, Vô Inácio?

VÔ INÁCIO – Sim, vamos... mas cadê a Nair pra nos servir?

SAMANTA – O senhor trancou as portas, Vô Inácio.

VÔ INÁCIO – Bolas, é verdade!

CASIMIRO – Fique sentado! Deixe que eu abro pro senhor.

VÔ INÁCIO – Não precisa. Deixa que eu vou lá chamá-la novamente.

VÔ INÁCIO VAI ANDANDO EM DIREÇÃO À PORTA QUE DÁ PRA COZINHA, TIRANDO AS CHAVES DO BOLSO

VÔ INÁCIO – Justo hoje deu pra ficar preguiçosa? Chamei por ela umas cinco vezes e ela nada...

USA UMA DAS CHAVES E ABRE A PORTA

VÔ INÁCIO - Estava lá, deitada no sofá da varanda. Nunca foi de fazer isso!!!

SAI, FECHA A PORTA

SAMANTA E CASIMIRO DESCONFIAM-SE EM PÂNICO. BLECAUTE.

12

Page 14: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

A LUZ AUMENTA GRADATIVAMENTE PARA O REINÍCIO DA PEÇA. EM CENA, VÊ-SE OS CORPOS DE SAMANTA E CASIMIRO ESTIRADOS NO CHÃO

LOGO EM SEGUIDA ENTRA VÔ INÁCIO TRIUFANTE, SEM BENGALA, GIRANDO PELA SALA E ABRAÇADO AO TESTAMENTO

VÔ INÁCIO – Fortuna! Amada fortuna! Tu serás sempre minha! Somente minha! Para todo o sempre minha! Levarei você para o além! Xô, família de urubus! Belo trabalho gás, belo trabalho forca, belo trabalho veneno!

SAI GARGALHANDO, EXULTANTE

VÔ INÁCIO – Fortuna! Fortuna!

FIM

[email protected]

13

Page 15: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

Campesinato (Núcleo Drama)

De: Jomar Magalhães

O INÍCIO DA CENA JÁ REVELA TINO E CACO APREENSIVOS EM MEIO A UM DIÁLOGO

TINO - Mas tem certeza que ela não viu seu rosto?

CACO - Tenho! Quer dizer, viu de forma confusa na hora em que eu estava ajeitando novamente ela na cama. Foi um olhar distante de gente sonâmbula.

TINO - Caco, você sabe que o combinado é tirar o capuz na frente do sequestrado somente em total segurança.

CACO - Mas ela estava desmaiada! Estava caída no chão e com o pé retorcido pela corrente. Eu precisava agir rápido e o capuz me atrapalhava. Ela estava grogue e não me identificou. Vá por mim!

TINO - Todo cuidado é pouco. Eu queria que essa situação não passasse de uma semana, mas já vamos pra uma quinzena.

CACO – Dezessete dias!

TINO - Paciência! É a única chance de oferecermos segurança ao nosso povo. (acende um cigarro) É tudo muito tenso. O Brito já deveria ter chegado.

CACO - Ele é precavido. O que me preocupa agora é essa dondoca nesse estado de fraqueza. E se adoecer de vez, o que faremos? Não temos como socorrê-la, como chamar médico. Não somos profissionais do crime. E se ela morre? Aí que o extermínio aos camponeses será inevitável.

TINO - Vira essa boca pra lá! Já que começamos, teremos que seguir até o fim! É caminho sem volta!

SONS DE CAVALGADA DO LADO DE FORAA

CACO – Ouça! É ele!

BATIDAS NA PORTA

TINO - (saca uma arma) – Senha?

BRITO (em off) – rebanho!

TINO ABRE A APORTA. BRITO ENTRA

TINO – E então?

14

Page 16: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

BRITO – Tudo indo conforme o esperado. Passei próximo ao campesinato pela manhã a pé e a cavalo mais tarde.

CACO – Tem certeza que não levantou nenhuma suspeita?

BRITO – Tenho. Passei durante os horários de bom fluxo de pessoas. Percebi supostos capangas do coronel por perto, disfarçados de gente do povo. Na quitanda conversei a sós com o Cachimbo que me disse que os dias têm sido dessa forma. Vigiam disfarçadamente, mas sem nenhuma investida contra os camponeses.

TINO – Vê aí? Nesses dezessete dias de sequestro são dezessete dias sem nenhuma baixa em nenhum dos núcleos. Temos mesmo que jogar na ofensiva pra garantirmos nossos direitos.

BRITO – Pois é, mas eu já me expus por três vezes durante esse período. É hora do rodízio.

CACO – Claro, da próxima vez vou eu . Até pra poder ver como está a horta das raízes. Não podemos perder a safra.

TINO – Acho mais seguro que alguém de outro núcleo faça a ronda. Como você já é do povoado fica mais fácil perceber seus movimentos.

CACO – Relaxa Tino, eu entro normalmente a cavalo como quem tivesse ido vender os produtos fora dali; fico por lá por dois ou três dias. Se eu levar mais tempo pra voltar é porque o cerco aumentou. Aí sim, desloca alguém de outro núcleo pra dar sequencia.

DOLORES ENTRA EM CENA, EXIBINDO UM PRATO DE COMIDA

DOLORES (tirando o capuz) – Veja só! Continua se recusando a tocar na comida. Nem um grão de arroz sequer.

CACO – Olha aí! É isso que estou dizendo que me preocupa. Já vai pra quatro dias assim! Teve um desmaio agora mesmo.

DOLORES – Até água ela se recusa beber.

TINO - Isso é realmente arriscado para o nosso objetivo!

TINO (com atitude) – Dolores, me dê esse prato aqui. Pronto, agora vá lá dentro com o Caco, desamarrem a dondoca e tragam ela pra cá.

DOLORES E CACO COLOCAM O CAPUZ E SE RETIRAM. TINO BOTA UMA CADEIRA NO CENTRO DO PALCO

TINO – Brito, como vocês moram em outro núcleo, essa tarefa é sua e da Dolores. Senão amanhã ou depois ela pode reconhecer a minha voz ou a do Caco.

15

Page 17: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

OS DOIS COLOCAM TAMBÉM O CAPUZ. POUCO DEPOIS A SEQUESTRADA ENTRA EM CENA, TRAZIDA POR DOLORES E CACO. TINO INDICA-LHE A CADEIRA

BRITO – Senta aí, Cinderela!

A SEQUESTRADA APRESENTA-SE ABATIDA, ARQUEJANTE. BRITO DEIXA O PRATO SOBRE ALGUMA MOBÍLIA E PEGA UM CADERNO

BRITO – Primeiramente, tome este caderno!

BRITO JOGA O CADERNO SOBRE O COLO DA SEQUESTRADA QUE POUCO REAGE

BRITO – Apoia esse caderno direito, Bonequinha de Porcelana! Segure esta caneta e escreva o que eu ditar, anda!

BRITO USA ATITUDES ENÉRGICAS E SUTILMENTE AGRESSIVAS. A SEQUESTRADA SEGURA A CANETA EM MEIO A SOLUÇOS

BRITO – Vamos lá: “Pai”... Como você trata ele? Pai, papai, coronel, monstro ou que outro nome?

SEQUESTRADA (em soluços) - Pai.

BRITO – Então anota aí! “Pai, estou me sentindo muito frágil e não me alimento há três dias...”

BRITO AGUARDA QUE ELA REPRODUZA A FRASE NO CADERNO. O CLIMA É TENSO. HESITANTE E TRÊMULA A SEQUESTRADA COMEÇA A ESCRITA. BRITO SEGUE DITANDO

BRITO – “... passo meus dias amarrada em uma cama, em um quarto sem ventilação e com um cachorro que me policia dia e noite...”

RABISCA

BRITO – “...Venho sofrendo desmaios e sinto o corpo febril. Peço, encarecidamente, que o senhor atenda as exigências de meus sequestradores...”

RABISCA

BRITO – “...Providencie, com urgência, em troca do meu resgate, dez fuzis, três metralhadoras e trinta espingardas, além das munições...”

SEMPRE TRÊMULA, A SEQUESTRADA ESCREVE SOB A OPRESSÃO PSICOLÓGICA IMPOSTA POR BRITO

BRITO (para Dolores) – Diga uma notícia importante que deu no rádio hoje.

16

Page 18: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

DOLORES – Aumentou pela quarta vez o número de desempregado no país.

BRITO FINALIZA O DITADO

BRITO – Anota: “... o noticiário de hoje informou que aumentou o número de desempregados no país...”

RABISCA

BRITO – “... essa é a prova de que até a data de hoje, ainda estou viva”.

BRITO FINALIZA O DITADO E PEGA O CADERNO DO COLO DA SEQUESTRADA. EM SEGUIDA PASSA UMA TIRA DE TECIDO SOBRE ELA, VENDANDO-LHE OS OLHOS. TODOS TIRAM O CAPUZ

BRITO – Passem pra mim aquele prato de comida.

FAZ UM TILINTAR DO TALHER NO PRATO. DIRIGE-SE NOVAMENTE À SEQUESTRADA

BRITO - Você sabe o que é isso aqui? Sabe? Isso aqui é alimento sagrado produzido por um dos campesinatos que seu pai oprime! É com isso aqui que cada daqueles camponeses precisa contar a cada dia pra sobreviver, sabe disse? Abre a boca!

BRITO FORÇA COM OS DEDOS QUE A SEQUESTRADA ABRA A BOCA. ELA TENTA ESQUIVAR O ROSTO, MAS ENGOLE ALGUM ALIMENTO À FORÇA. TOSSE

BRITO – São naqueles pedaços de terra, que seu pai faz ficar cada vez menor, que as famílias precisam plantar pra sobreviver e educar seus filhos. Dizer isso pra quem está acostumada a frequentar restaurantes finos é bobagem, não mesmo? Abra essa boca direito!

SEQUESTRADA (resiste) – Me deixa em paz!

BRITO (espanto) – O que disse? Quer ficar em paz? Então é você que diz isso, Cinderela!? Você sabe há quanto tempo nosso povo vem implorando pra ter paz e seu pai não deixa? Sabe quantas mortes já foram causadas nos campesinatos ao longo dos anos pelos capangas do seu facínora que tem na sua casa? Não, você não sabe e nem nós sabemos. Não podemos saber porque tem a morte imediata que vem pela bala e pela lâmina, mas também tem muitas outras que vêm matando aos poucos; mata no dia-a-dia; mata pela fraqueza, pela fome, pelo isolamento...

ENFIA MAIS UMA COLHERADA

BRITO - Só que agora a paciência esgotou! Agora seu pai vai começar a entender a lição da nova cartilha, compreende bem? É por isso que você está aqui! É por isso que durante esses dias nossos camponeses não sofreram nenhuma baixa.

17

Page 19: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

MAIS BRUSCAMENTE BRITO OBRIGA A SEQUESTRADA A COMER, PUXANDO SEU CABELO DA NUCA PRA BAIXO E COLOCANDO GRANDE QUANTIDADE DE COMIDA EM SUA BOCA

BRITO – Coma!

DOLORES – Tenha calma!

BRITO – Coma tudo isso, filha de parasita!

FURIOSO, ESFREGA A QUANTIDADE DO PRATO NO ROSTO DA SEQUESTRADA QUE TOSSE COMO A FORÇAR O VÔMITO

DOLORES – Acalme-se! Deixa que eu dou a ela, vai!

DOLORES, COM CAUTELA, INTERCEPTA A AÇÃO DE BRITO

BRITO – Causa mesmo dó ver uma pobre coitada sofrendo pra não comer, não é isso? Dó ainda maior sentimos nós todos os dias vendo nossas crianças e nossos idosos subnutridos. Fome sentimos todos nós porque o poderoso coronel nos furtou metro após metro as melhores porções de terra tínhamos.

DOLORES – Eu vou buscar um copo com água. (sai)

BRITO – Ouvi dizer que você é muito agarrada com seu irmãozinho caçula, não é isso? Pois então! Ele é nosso próximo alvo. Pode até ser um alvo à distância, mas será nosso próximo alvo. Depois dele, outros virão porque é assim que se amansa um psicopata favorecido por políticos, juízes e toda corja de poderosos.

DOLORES RETORNA COM O COPO

DOLORES – Deixa eu ver se ela bebe um pouco.

DOLORES UMIDECE UM PANO DE PRATO E LIMPA O ROSTO DA SEQUESTRADA. EM SEEGUIDA INCLINA-LHE O COPO NA DIREÇÃO DA BOCA, MAS ELA VIRA O ROSTO, EVITANDO. MAIS AINDA DESCONTROLADO, BRITO TOMA O COPO DA MÃO DE DOLORES

BRITO – Beba, cretina!

FORÇA O GOLE SEM OBTER SUCESSO. ENTÃO DERRAMA A ÁGUA SOBRE A CABEÇA DA CATIVA, SACUDINDO-A VIOLENTAMENTE PELOS OMBROS. EM MEIO AO TRANSTORNO EMOCIONAL, DOLORES E OS DEMAIS PROCURAM ACALMÁ-LO

DOLORES – Está bom, está bom! Deixa agora isso com a gente, vá!?

BRITO AFASTA-SE. DOLORES CONDUZ NOVAMENTE A CONDENADA PARA O INTERIOR DA CASA. OS TRÊS RETIRAM O CAPUZ

18

Page 20: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

TINO – Acalme-se, Brito! É bom que ela sinta esse choque pra colaborar com nosso plano, mas evite se exaltar tanto.

CACO – Eu fico preocupado porque não sei o que se passa pela cabeça dela.

BRITO – Ela é que tem que estar preocupada por não saber o que se passa por nossa cabeça.

CACO – Sim, mas e se a intenção dela for a morte? E se o desejo dela for querer fugir de tudo isso? Quem pode assegurar que essa menina é feliz só porque pode ir para a Europa a hora que quer? O pai dela é um opressor! É possível que seja também com a própria família.

TINO – Faz sentido. De qualquer maneira foi ótimo você ter ameaçado o irmão caçula dela.

BRITO – O que mais me revolta é que as coisas não deveriam ser assim. Se aquele cão maldito é milionário; se come do bom e do melhor e viaja pelo mundo inteiro, pouco me importa! O que mais me revolta é saber que apesar da vida que leva, não se compadece de um povo que quer apenas sobreviver sossegado em uma pequena faixa de terra para o próprio sustento!

TINO – Brito, ninguém é milionário sem que uma grande parcela de pessoas não seja explorada.

BRITO – Pois bem! Já que assim é; teremos armas!

DOLORES RETORNA À CENA

DOLORES – Dei a comida pro cachorro que já estava com a caçamba vazia. Ela se recusa mesmo a comer ou beber qualquer coisa que seja.

CACO – Vamos então combinar assim: amanhã eu pego o cavalo e saio cedo pro campesinato. Já disse que só retorno se perceber que está tudo sob controle.

BRITO – Isso! Guarde aí a mensagem dela. (destaca a página do caderno) Se perceber que algum suspeito se aproxima, jogue esse papel imediatamente fora. Se tudo correr bem, largue o bilhete em praça pública, na porta de algum comércio ou em qualquer outro local de grande circulação. Certamente chegará ao conhecimento do crápula. Toma! Segura com esse lenço que é pra não deixar as digitais.

CACO PEGA O BILHETE

DOLORES – Caco, não deixe de levar um buquê para a igreja de Nossa Senhora das Dores.

CACO – Pode deixar, levarei logo que for possível.

TINO – Então é isso! Amanhã segue mais um dia!

19

Page 21: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

BLECAUTE

A CENA RECOMEÇA COM DOLORES ENTRANDO AFOITA COM O RÁDIO LIGADO, PEDINDO A ATENÇÃO DE TINO E BRITO

DOLORES – Ouçam, está dando a notícia!

RÁDIO – “... O latifundiário Wilson Medeiro, conhecido como coronel, aceitou ceder às exigências dos sequestradores. Comprometeu-se a enviar amanhã para o povoado metade do armamento. A outra metade será entregue após sua filha ser resgatada em segurança. Continuamos agora com nossa programação musi...”.

TINO – (exultante) Salve! Vamos brindar! Caco fez um ótimo trabalho!

OS TRÊS SE ABRAÇAM

BRITO – Dessa forma eu e a Dolores levaremos a Cinderela até as margens da cidade na madrugada seguinte à entrega das armas. De lá mesmo seguiremos direto para o nosso núcleo, confere?

TINO – Claro! Eu ficarei por aqui até que tudo seja concretizado. Depois sigo com o cachorro para o campesinato e me encontro com o Caco.

BRITO – Não demore a providenciar que os armamentos cheguem a todos os núcleos, está bem?

TINO – Claro, deixe comigo!

DOLORES – Amém! Tenho fé que partiremos em segurança.

BLECAUTE

A CENA REINICIA COM TINO SOZINHO NA CASA. AUMENTA O RÁDIO NO MOMENTO DA NOTÍCIA

RÁDIO – “E atenção! A filha de Wilson Medeiros que sobreviveu ao sequestro se alimentando de ração e água de cachorro, revelou conhecer um dos sequestradores. Tratava-se de Caco, responsável pelo cultivo de raízes no campesinato. Caco foi executado pela manhã na porta da igreja de Nossa Senhora das Dores. Um casal também foi apreendido em seguida se deslocando para outro acampamento do mesmo bando. Em ambas operações o policiamento informou ter reagido a tiros. A polícia encontra-se agora atrás do mentor intelectual dos sequestros. Acompanha o galope de um cavalo que teria sido usado pela quadrilha...”

TINO, APAVORADO, DESLIGA O RÁDIO E CORRE ATÉ A JANELA. OUVE-SE O RELINCHAR DE CAVALO

FIM

[email protected]

20

Page 22: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

Aventura (Núcleo Comédia)

De: Jomar Magalhães

É NOITE. UM GRUPO DE TRÊS AMIGOS ADENTRAM-SE VAGAROSAMETE EM UMA CASA PELA PORTA PRINCIPAL. ESTÃO TEMEROSOS

PACHECO – Caramba, tem certeza de que a casa é aqui mesmo, Siri?

SIRI – A chave entrou quando eu abri, não entrou? Então! É aqui!

CANDINHO – Mas você não falou que era uma mansão?

SIRI – Sim Candinho... foi o que o corretor me assegurou.

PACHECO – Ele quis dizer que era do verbo foi e não é mais, não é? Olha só que penumbra! Só dá pra enxergar a lua cheia, lá fora.

CANDINHO – Além da coruja na árvore, morcegos sobrevoando, gato preto miando... Ai, eu quero ir embora!

SIRI – Como ir embora? Viemos na última condução! A viagem de volta é só quando amanhecer.

PACHECO – (irônico) Maravilha! É aqui que rola a tal balada de sexta-feira que nós estávamos procurando?

CANDINHO – Quando decidimos escolher um lugar que não fôssemos descobertos não era com essa intenção, Siri.

SIRI – Eu expliquei isso a ele, mas não sei se ele estava bêbado. Tudo o que ele repetia era que deveríamos ser descobertos, deveríamos ser descoberto... não entendi nada!

PACHECO – Calmaí! Que dia é hoje do mês?

CANDINHO – Treze, por quê?

PACHECO - Então é sexta-feira treze? Aaaiiiiiii!!!

SIRI – Eu bem que desconfiei que com oitenta e quatro reais não seria possível reservar um lugar muito bom.

CANDINHO – Querem saber de uma coisa? Vocês que fiquem aqui porque eu vou embora agora mesmo, tendo ou não condução.

FORÇA A PORTA

CANDINHO – Virgem Maria! A porta está trancada!

SIRI – Trancada? Como assim? Ele disse que a chave é gelo.

CANDINHO – Abrimos com essa vermelha. Não existe nenhuma cor gelo aqui!

21

Page 23: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

SONOPLASTIA DE SUSPENSE. NO OUTRO EXTREMO DO PALCO SURGE O CASEIRO E DUAS SERVIÇAIS. TODOS VESTIDOS DE PRETO, COM OLHEIRAS

SOTURNO – Sejam Bem-vindos!

UNÍSSONO – Aaaaaiiiiiiiiiiiiii!!!

SIRI – Que-quem são vo-vocês?

SOTURNO – Meu nome é Jair Soturno! Eu serei o anfitrião de vocês nesta mansão. Essas duas serão as suas serviçais. Estamos aqui para melhor servi-los!

UMA DAS SERVIÇAIS TEM O AR GRAVE. A MAIS NOVA SORRI ESTRIDENTE E DESENFREDA, MOVIMENTANDO A CABEÇA COM INQUIETAÇÃO

PACHECO – Jesus, Maria, José! Minha prisão de ventre foi embora!

CANDINHO – Faz isso com a gente não, moço! A gente é pobre, mas a gente é limpinho! Ninguém aqui nunca assaltou, nunca roubou, nunca trapaceou, nunca torceu pro Flamengo!

SIRI – Não fomos avisados que teríamos empregados aqui. O corretor disse que nós é que teríamos que limpar...

SOTURNO – Somos nós!

SIRI – Que cozinhar...

SOTURNO – Somos nós!

SIRI – Que lavar...

SOTURNO – Somos nós!

PACHECO – Ah, é? Tudo com vocês? E se tiver que dar beijo na boca?

CANDINHO – (para Soturno) Opa! Não tira meu emprego não, viu?

SOTURNO – Estamos aqui para que vocês tenham uma ótima estada.

SIRI – Olha, senhor Soturno! Está tudo muito confuso... Procurávamos um lugar onde pudéssemos passar um final de semana pra dançar, beber, essas coisas... Não exatamente essa casa aqui.

SOTURNO – Esta casa a que você se refere é uma mansão de 130 anos em que eu trabalho há alguns anos antes de vocês nascerem. Foi edificada sobre um extinto cemitério pertencente a uma antiga Ordem Religiosa. Aqui viveram várias gerações. Houve glórias e tragédias...

CANDINHO – É... Quais foram as tragédias?

SOTURNO – Algumas! Por exemplo... Um milionário ganancioso matou todos os seus herdeiros pra não ter que distribuir seus bens entre eles... Houve também um sequestro mal sucedido por camponeses em que todos os sequestradores morreram.

22

Page 24: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

PACHECO – Inclui agora aí que uma cueca teve perda total sem que tivesse nenhuma outra pra substituí-la!

CANDINHO – Chega, senhor Saturno! Não precisa continuar.

SIRI – E quais seriam as glórias?

SOTURNO – As glórias...? Bem, a glória é que na data de hoje já não existe mais nenhum sobrevivente dos antigos moradores!

O CASEIRO DÁ UMA GARGALHADA FANTASMAGÓRICA E SE RETIRA COM AS DUAS SERVIÇAIS

PACHECO – Ouça aqui uma coisa, Siri! Você nunca mais vai organizar nem encontro de cachorro atrás de cadela no cio, tá entendido?

SIRI – Pacheco; o que já está feito, feito está! Ninguém me deu um centavo a mais pra eu conseguir coisa melhor, então o remédio agora é rezar para que essa noite passe rápido.

CANDINHO – Ele falou que já morreu gente aqui dentro. Vocês ouviram?

O GRUPO CAMINHA, OBSERVANDO A SALA

PACHECO – Tudo aqui deve ter mais de cem anos. Veja! A matéria desse jornal fala sobre a Abolição da Escravatura!

CANDINHO (observa as mobílias) – Ai! O retrato desse menino de boné, segurando uma bola é meio assustador.

SIRI – A mesa está limpa, a sala está limpa, tudo está limpo. Talvez nem seja tão assustador assim...

PACHECO – Se você respirar direitinho mais perto de mim vai perceber que nem tudo está limpo.

SIRI – Acho melhor decidirmos logo qual será nossa estratégia porque daqui a pouco eles...

SOTURNO E AS SERVIÇAIS RETORNAM

SOTURNO – Viemos informá-los que no 2ª andar temos 13 quartos destinados aos hóspedes.

PACHECO – É?

SOTURNO – Sete deles são suítes.

CANDINHO – Bem, seu Saturno, ninguém aqui tá querendo dar trabalho, sabe? Pode deixar os quartos lá, arrumadinhos para os próximos visitantes.

SIRI – Pois é, não há necessidade... a gente vai dormir aqui pela sala mesmo que é bem agradável.

SOTURNO – Mas a sala não tem cama, não tem abajur, não tem criado mudo.

CANDINHO – Pra que criado mudo se o silêncio daqui já é tremendo?

23

Page 25: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

SOTURNO – Sim, mas pode ser que a madrugada não seja tão silenciosa assim.

PACHECO – Olha, seu Soturno! Preocupe-se com a gente não. Basta o senhor destravar a porta da sala que a gente não vai ter do que reclamar.

SOTURNO – Não tenho mais a chave da porta principal. Só as dos fundos. Já que preferem dormir na sala, é necessário que venham pegar o cobertor com as criadas.

SIRI – Mas precisa de cobertor mesmo?

SOTURNO – Sim, precisa de cobertores e de algumas taças do vinho porque a madrugada aqui faz frio... (sinistro) muito frio!

UNÍSSONO – Aiiii!

CANDINHO – Já que não tem jeito... vamos lá pegar as cobertas, né...?

SOTURNO – Sim, mas um de cada vez! Primeiro... ele!

CRIADA DE SEMBLANTE GRAVE VAI ATÉ PACHECO

PACHECO – Eu!???

SIRI E CANDINHO (empurra-o) – Sim, você!!!

CRIADA SINALIZA-LHE O CAMINHO

PACHECO – Que isso! Eu não sou de sentir frio não. Eu durmo sem camisa no inverno. Eles são bem mais friorentos que eu... será que daria pra...

A CRIADA MANTÉM A INDICAÇÃO DO CAMINHO. SEM ALTERNATIVA, PACHECO OBEDECE. O ANFITRIÃO E AS DUAS SERVIÇAIS SAEM EM SEGUIDA

CANDINHO – Olha só o que você aprontou, Siri! Até que ele era um cara legal!

SIRI – Candinho, por mim eu não teria nem saído de casa neste fim de semana. Muito menos pra esse lugar aterrorizante. Pra piorar só se tivesse algumaTV lilgada no Big Brother!

CANDINHO – Tenta abrir a porta com a chave que você trouxe, anda! Senão o próximo será um de nós.

SIRI CORRE ATÉ A PORTA E FORÇA A CHAVE

SIRI – Caramba! Nem sequer entra mais na fechadura!

CANDINHO – Vamos então sair por essa que o Saturno levou o Pacheco e procurar uma fuga.

NESSE INSTANTE ENTRA AFOITO EM CENA, UM SUJEITO GAGO. ESTA PERSONAGEM SERÁ INTERPRETADA PELO MESMO ATOR QUE INTERPRETA PACHECO

GAGO – De-Deus do Cé-éu! Virgem-gem Maria!

CANDINHO – Eita égua! Quem é você!?

24

Page 26: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

GAGO – E-eu sou o Belmi-miro!

CANDINHO – Belmimiro?

GAGO – Nã-não! Belmi-miro!

CANDINHO – Entendi nada!

SIRI – O senhor trabalha aqui também?

GAGO – Si-sim! Trababalho. Eu sou o do-domesticador de animamais! Tô assustatado porque em lu-lua cheia morre muitos bi-bichos misteteriosamente. Mata-taram bo-bode, cabra e carneneiro.

CANDINHO – Cruzes! Estão matando veado também?

SIRI – O senhor tá dizendo que os animais aqui morrem quando é lua cheia, é isso?

GAGO – Si-sim! Sempre que a lu-lua tá che-cheia vem um bi-bicho estranho de olhos vermemelhos e com cacara de lo-lobo e mata os animamais pelo pescocoço.Tem muita gagalinha morta tambémbém.

CANDINHO – Ai! Ainda bem que não viemos com minha irmã.

SIRI – Ele mata e vai embora?

GAGO – Nãnão! Enquaquanto tem lu-lua cheia, e-ele fifica por aíí. Tenhom medo dedele que me pelo. Tenho medo dedele querer entrar aquiqui.

CANDINHO – Aqui na sala?

GAGO – É. Porque eu salvevei um pintinho e e-ele vai quererer vir atrátrás.

SIRI – E cadê o pintinho?

GAGO – Tá escondidido aqui na ca-calça.

CANDINHO FAZ UMA EXPRESSÃO CURIOSA DE QUERER VER

SIRI – Seu Belmiro, então o senhor não pode ficar aqui senão esse lobisomem vai atacar a gente.

GAGO – Eu vim aquiqui buscar ajuda pra vocêcês irem lá fofora comimigo.

CANDINHO – Como é que é? O senhor bebeu, seu Belmimiro?

SIRI – Tá louco!? O senhor que trate de jogar esse pinto pela janela pra não atrair o monstro!

CANDINHO – Nada disso! O senhor pula a janela, mas o pinto fica dentro.

GAGO – Vocêcês são uns cocovardes! Eu vou embobora, mas levo me-meu pinto comimigo! Vou enfrenta-tar o lo-lobo assassissino sozinho.

O GAGO PEGA SAI

25

Page 27: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

CANDINHO – Olhaí, Siri! Tem até Chupa Cabra lá fora!

SIRI – Deus me livre! E a noite está só começando!

CANDINHO – Nós precisamos fazer alguma coisa pra escapar.

SIRI – Escapar como se tem esse lobisomem lá fora!?

CANDINHO – Será que trancaram o Pacheco em um quarto de hóspede? Será que ele ainda está vivo?

SIRI – Se o seu Soturno chegar sem ele, a gente só sai sozinho se for morto, combinado Candinho?

CANDINHO – Combinado!

PACHECO RETORNA À CENA ENVOLTO EM UM COBERTOR E COM UM PAPEL HIGIÊNICO

UNÍSSONO – Pacheco!!?

PACHECO – Que cara é essa? Parece que viram um Lobisomem.

CANDINHO – Nós não, mas o seu Belmimiro viu?

PACHECO – Quem?

SIRI – Belmiro é o nome do empregado que cuida dos animais. Ele falou que lá fora tem um bicho metade lobo, metade homem que mata os animais nas noites de lua cheia.

PACHECO – Sério?

CANDINHO – Sério! Só não come pinto, o resto ele come.

PACHECO – Duvido! Queria ver ele encarar o tribufu que me levou lá pra cima!

SIRI – Ela te levou pra pegar o cobertor?

PACHECO – Se era só pra pegar o cobertor eu não sei, mas minha sorte é que eu estava protegido por um aroma produzido por meu organismo.

SOTURNO RETORNA À CENA COM AS CRIADAS

SOTURNO – Agora venha você!

SIRI – Não pode ser ele?

A CRIADA SORRIDENTE VAI AO ENCONTRO DE SIRI, SINALIZANDO O CAMINHO

PACHECO – Força, amigo! Se não der conta, joga pro Chupa Cabra.

SIRI SAI AMEDRONTADO ACOMPANHADO PELO TRIO

CANDINHO – Virgem Maria, depois serei eu!

26

Page 28: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

PACHECO – Vamos pensar em alguma coisa que possa salvar a nossa pele!

CANDINHO FICA NA POSIÇÃO DE LÓTUS

PACHECO – O que é isso?

CANDINHO – É posição de lótus pra poder meditar melhor. Vai, faz também!

PACHECO – O que? Se eu já me borrei todo sem fazer essa posição, imagina se eu incentivar o intestino!?

CANDINHO FECHA OS OLHOS EMITINDO ALGUM MANTRA. PACHECO SENTA NO SOFÁ ENFIANDO O ROSTO ENTRE OS BRAÇOS. EM SEGUIDA, ENTRA UM SUJEITO MATUTO. ESTA PERSONAGEM SERÁ INTERPRETADA PELO MESMO ATOR QUE INTERPRETA SIRI

MATUTO – Desuslivre, sô! Fico lá fora é mais nunca!

UNÍSSONO – Hem!? Quem é você?

MATUTO – Meu nome é Agripino...

PACHECO – Saúde!

MATUTO – Eu sou o funcionário que fica lá na porteira pra vigiá o terreno. Dá pra ficá mais lá não nas lua cheia. É um tal de ouvi vozes e ouvi gemidos e ouvi uns gritos sem que tenha ninguém por perto. É susto pra matá quarqué cabra macho.

CANDINHO – E essa porteira é muito longe daqui?

MATUTO – Fica a uns cem metros. Mas vim pra cá tão disparado que me acheguei em dois minutos.

PACHECO – Mas seu Atchim, isso que o senhor ouve é o que? É alma do outro mundo... são fantasmas?

MATUTO – E eu num tô falando? São vozes nos meus dois ouvido. Sem falá que no no meio da mata vejo vultos, olhos iluminados piscando, árvores se mexendo... Inté que eu resolvi abri a porteira pra fugi cá pra dentro montado num cavalo, mas como o bicho tava do lado de fora, ele brecou na hora de atravessá pra dentro. Daí eu caí no chão e vim correndo mermo. Na lua cheia é assim! A porteira pode está aberta, mas os bicho que estão de fora não entra e os bicho que estão de dentro não sai.

CANDINHO – E o que o senhor pretende fazer?

MATUTO - Eu pretendo ficar essa noite por aqui mermo com vocês. (pausa) O que?

CANDINHO – O que, o que? Nós não falamos nada!

MATUTO – Eu sei, mas eu não to falando com cês não. Tô perguntando o que pra umas vozes que to ouvindo aqui no ouvido.

PACHECO – Como é que é? Então o senhor está pensando em ficar aqui dentro ouvindo vozes?

27

Page 29: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

MATUTO – Tô sim, seus menino.

PACHECO – (resoluto) Mas não está mesmo! O senhor pode ficar conversando com quem quiser só que a 10 quilômetros daqui! Ajuda a empurrar aqui, Candinho!

MATUTO – Faz isso não, seus menino! Quero saber de ficar mais naquela porteira é nada! Olha só! As vozes estão me dizendo que lá fora é noite de lua cheia das grande!

OS DOIS EMPURRAM O MATUTO ATÉ TIRÁ-LO DE CENA

CANDINHO – A coisa aqui está ficando cada vez mais assustadora! É morcego, é coruja, é gato preto, é essa casa, é lobisomem, é porteira...

PACHECO – E daqui a pouco é meia-noite! Aí só Deus sabe o que pode acontecer!

CANDINHO – Vamos continuar com a yoga! (posiciona-se)

PACHECO – Chega dessa frescura! Acha que eu vou dar um nó na perna justo na hora de correr!?

PACHECO PUXA CANDINHO PRA FICAR EM PÉ. DURANTE ESSA INSISTÊNCIA, ENTRA SIRI ENVOLTO NO COBERTOR

SIRI – Valha-me Deus! Que corredor mais escuro é aquele!?

PACHECO – Siri! Isso aqui é mais mal assombrado do que a gente pensa!

SIRI – Como assim?

CANDINHO – Um sujeito super resfriado saiu daqui agora mesmo falando um monte de coisa sobre a porteira.

SIRI – Então tem porteira aqui também? Quer saber? Eu vou enfiar minha cabeça embaixo desse cobertor que não saio debaixo até o sol chegar!

PACHECO – Eu também!

CANDINHO – Virgem Maria! Daqui a pouco será minha vez de...

SOTURNO ENTRA EM CENA COM AS DUAS CRIADAS

SOTURNO – Agora vem você comigo.

PACHECO (insinuante) – Hum...!

CANDINHO – Eu!? Será que não daria pro senhor pegar o cobertor lá dentro pra mim e...

SOTURNO – Não tenho tempo a perder! Vamos!

EMBARAÇADO, CANDINHO OBEDECE EMITINDO UM MANTRA. SAEM

PACHECO – Tá sentindo o drama? Quando ele voltar já será perto de meia-noite. Aí é que a coisa vai começar pra valer!

SIRI – Fala isso não, Pacheco! Minha cueca ainda está branca!

28

Page 30: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

PACHECO – Fala isso não coisa nenhuma! Tudo que é história de assombração que eu conheço o pânico pega geral quando é meia-noite.

SIRI – Mas já aconteceu tanta coisa que vai ver já acabou o repertório.

PACHECO – E só em pensar que a nossa intenção era que a essa hora estaríamos em uma festa, paquerando umas gatinhas... Olha só onde viemos parar! Que gata iria aparecer por aqui agora!?

MARGARIDA ENTRA EM CENA. USA PERUCA LOIRA E TRAZ UM ESPANADOR. ESTA PERSONAGEM SERÁ INTERPRETADA PELO MESMO ATOR QUE INTERPRETA CANDINHO

MARGARIDA – Tá tudo limpo com a Margarida no recinto!

PACHECO – Jesus!

SIRI – Credo! Quem é você?

MARGARIDA – Eu sou a Margarida, a arrumadeira do palácio! Se querem ser minhas amigas, não sujem onde eu limpei e não baguncem onde eu arrumei.

PACHECO – Amigas?

MARGARIDA – Ah, tá! Pensam que me enganam, é? Tá bom! Bem, mas vamos ao texto: hoje era dia de eu arrumar o porão da casa, acontece que sexta-feira 13, em noite de lua cheia, eu não entro ali nem que um exército me empurre!

SIRI – Por quê?

MARGARIDA – Por quê? Em uma noite como a de hoje é um tal de ouvir ruídos por todo canto do porão. Sem falar que as mobílias se mexem sozinhas, as louças se quebram, as janelas batem sem ter vento, luzes se apagam... Tô fora! Pulo logo aqui pra cima!

SIRI – Então aqui embaixo tem um porão?

MARGARIDA – Não, Inteligência! Aqui embaixo tem um terraço! O porão fica lá em cima.

PACHECO – Tô te falando que a coisa vai ficar mais feia!

SIRI – Ai, São Benedito! O que estava branco já ficou sujo.

MARGARIDA (exibindo o espanador) – Onde? Fala onde que eu limpo agora mesmo.

SIRI – Esquece, Margarida! Esquece!

PACHECO – Rala daqui, Margarida! Rala pra outro cômodo porque aqui o que tá limpo, tá limpo e o que tá sujo vai ficar mais sujo ainda.

MARGARIDA – Faz isso não, fofinhos! Deixa a tia ficar aqui! Eu sou pobre, mas sou limpinha! Eu nunca assaltei, nunca roubei, nunca trapaceei...

PACHECO – Já sei, você é tricolor! Agora pula fora, anda! Pula fora porque vai faltar cobertor pra tanta frescura!

29

Page 31: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

MARGARIDA – Então por que você não bota fogo?

PACHECO – Vaza, Margô! Vaza!

PACHECO EMPURRA MARGARIDA QUE SAI PROTESTANDO

SIRI – Só sei de uma coisa. Eu vou ficar bem no meio desse sofá coberto dos pés a cabeça.

PACHECO – Que diferença faz no meio ou na beirada?

SIRI – Pelo menos se alguém cutucar meu ombro eu vou achar que foi um de vocês.

PACHECO – Lasqueira, tem razão! Então eu que vou ficar no meio porque foi você que botou a gente nessa enroscada.

EMPURRA, EMPURRA NA DISPUTA PELO LUGAR

SIRI (estanque) – Espera! Se o Candinho não voltar não terá mais meio algum. Será lado direito e lado esquerdo.

PACHECO – Verdade! Será que faz parte de algum ritual de sacrifício? As barangas levaram a gente e o Sinistrão levou ele.

SIRI – Isso não está me cheirando bem!

PACHECO – Chega dessa piada que já cansou!

CANDINHO ENTRA EM CENA COM O COBERTOR

SIRI – Candinho! Então você não cantou pra subir?

CANDINHO – Não, mas dancei pra descer.

PACHECO – Se você chegasse um pouquinho antes ia dar de cara com uma arrumadeira que acabou de sair daqui.

SIRI - Feia que nem o cão!

CANDINHO – Também não precisa esculhambar, assim né? Foram só dois minutos pra produção.

PACHECO – Esculhambado ficou a gente depois que ela disse que tem um porão mal assombrado aqui.

CANDINHO – Porão onde? Aqui embaixo?

SIRI – Não, Inteligência! Aqui embaixo fica o terraço. O porão fica lá em cima!

CANDINHO – Veja! Até que você falou uma frase engraçada. De quem é?

PACHECO – Não importa! Chega de blá, blá, blá e senta logo nesse sofá. Daqui ninguém mais sai até que amanheça.

CANDINHO SENTA-SE NO LADO OPOSTO A PACHECO

30

Page 32: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

SIRI – Faltam dez minutos pra meia-noite. Se a sua teoria estiver certa... Deus que nos livre!

SOTURNO ENTRA EM CENA COM AS CRIADAS

SOTURNO – Muito bem! Agora que vocês já caminharam pelo corredor sombrio e já receberam os cobertores, queiram beber do vinho que está sobre a mesa pra se protegerem. Porque aqui à noite faz frio... muito frio...!

PACHECO – Beber daquele vinho...?

SIRI – Naquelas taças?

CANDINHO – Mas seu Saturno, e a se a gente não quiser beber.

SOTURNO – Isso será uma opção de vocês. Há muitos anos havia três funcionários aqui na mansão que se recusaram a beber: um domesticador de animais, um vigia da porteira e uma faxineira. Quando amanheceu nenhum dos três pertenciam mais a este mundo.

UNÍSSONO – Aiiiii!!!

SOTURNO DÁ MEIA VOLTA E SAI COM AS CRIADAS

CANDINHO – Eu continuo pobre mas já não sou mais tão limpinho!

PACHECO – Quem sabe rezar o terço?

SIRI – Vamos beber logo esse vinho pra salvar nossa pele!

OS TRÊS SE LEVANTAM E CORREM ATÉ A MESA. SIRI SERVE AS TRÊS TAÇAS

CANDINHO – (bebendo) Arghhh! Que gosto mais horrível. Se vocês beberem vão vomitar!

PACHECO – E o que é um vômito pra quem já está cagado!? (bebe)

SIRI – Tudo pela sobrevivência! (bebe)

EM SEGUIDA, CANDINHO MEIO QUE PERAMBULA

PACHECO – Que isso? Que cara é essa, Candinho?

CANDINHO – Não sei... acho que só estou sonolento!

SIRI – (já grogue) Hem...? O que você disse...?

PACHECO – Ele disse que só está meio...

ANTES DE TERMINAR A FALA, OS TRÊS DESABAM SOBRE O SOFÁ EM SONO PROFUNDO. EM SEGUIDA AS LUZES DIMINUEM SOBRE ELES.

OCORRE AQUI UMA ATRAÇÃO MUSICAL ESTILO MORTO/VIVO. ENQUANTO UMA ATRIZ/CANTORA INTERPRETA ALGUMA MÚSICA ADEQUADA À SITUAÇÃO, O ELENCO DOS NÚCLEOS DE SUSPENSE E DRAMA COMPÕEM A COREOGRAFIA

31

Page 33: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

APÓS A APRESENTAÇÃO DO NÚMERO MUSICAL, OS TRÊS DESPERTAM

SIRI – Caramba! Tive um pesadelo daqueles!

CANDINHO – Eu também!

PACHECO – Não deve ter sido pior do que o meu!

SIRI – Com certeza foi! Era uma coisa confusa de luzes e cores. Esta sala foi invadida por uma mulher maquiada, de roupa justa, cabelo colorido e um monte de mortos-vivos dançando enquanto ela cantava.

PACHECO – Sério!? Mas foi exatamente esse o meu pesadelo!

CANDINHO – O meu também foi idêntico!

PACHECO – Chega pra lá porque agora sou eu que vou ficar no meio do sofá.

SIRI – Daqui eu não saio nem que me limpem!

CANDINHO – Ai, Santa Luzia! Se eu escapar vivo dessa prometo largar essa vida de pegador.

OS TRÊS FICAM NO EMPURRA-EMPURRA, ENVOLVIDO NOS COBERTORES, TENTANDO OCUPAR O MEIO DO SOFÁ

SIRI – (levanta-se com ímpeto) Pessoal, calma! Não podemos ficar assim alimentando o medo! Quanto mais a gente o alimenta, mais o medo aumenta!

PACHECO – Isso é verdade! Li em algum lugar que quando mais você enfrenta o escuro, menos assustador ele fica.

BLECAUTE

UNÍSSONO – Aaaiiiiii!

PACHECO – (desesperado) Calmaí, iluminador! É só uma maneira de falar!

A LUZ VOLTA

UNÍSSONO – Uff!

CANDINHO – Olha, então já que a gente tem que enfrentar o medo, eu sugiro que um de cada vez tem que ficar sozinho aqui na sala.

PACHECO – Você tá louco? Quem vai concordar com isso?

CANDINHO – Nem eu concordo, mas não é assim que tem que ser?

SIRI – Ele está certo, Pacheco. Ou a gente enfrenta o medo de verdade ou enfartamos de vez! Saem dois e fica um! Começa por você mesmo, Candinho!

CANDINHO – Por mim?

PACHECO – Claro! Tem a vantagem de ser o primeiro a morrer. Imagina o tamanho do pânico de quem for o último!

32

Page 34: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

PACHECO E SIRI SAEM. CANDINHO OLHA AO REDOR CONTENDO O PAVOR. EM SEGUIDA SENTA-SE NO SOFÁ EM POSIÇÃO DE LÓTUS

A LUZ CAI EM RESISTÊNCIA, A SONOPLASTIA AUMENTA. SAMANTHA ENTRA POR UM LADO E POR OUTRO CASIMIRO. DESFIGURADOS, EVOLUEM PELA SALA. EM SEGUIDA AGARRAM O TESTAMENTO SOBRE A MESA, CADA UM PUXANDO PRA SI. CANDINHO ABRE OS OLHOS, VÊ A CENA, PUXA O COBERTOR SOBRE A CABEÇA E SAI APAVORADO. CAI MAIS INTENSAMENTE A LUZ

AO REACENDÊ-LAS, É SIRI QUEM ENTRA EM CENA BUSCANDO CONTROLAR O PAVOR. VASCULHA ALGUMAS COISAS PELA SALA. NÃO PERCEBE ATRÁS DE SI BETINHO, PÁLIDO, DESFIGURADO, SEGURANDO UMA BOLA DE FUTEBOL. EM MOMENTO APROPRIADO SIRI OLHA PRA TRÁS. DEPARA-SE. CORRE IGUALMENTE APAVORADO. CAI A LUZ

AO REACENDÊ-LAS, É PACHECO QUEM ENTRA EM CENA. VAI À MESA E CONSOME MAIS UM POUCO DE VINHO ENQUANTO PRONUNCIA PALAVRAS DE ENCORAJAMENTO. JÁ EMBRIAGADO, CAMINHA EM DIREÇÃO AO SOFÁ E DEITA-SE. NO MOMENTO SEGUINTE OUVE-SE UM RELINCHAR DE CAVALO. VIRA-SE EM DIREÇÃO À JANELA. NESTE INSTANTE, UMA LUZ OPACA REVELA TINO DESCABELADO, COM OLHEIRAS E UM FILETE DE SANGUE A ESCORRER PELA BOCA. SAI AOS BERROS. BLECAUTE

AO REACENDER A LUZ, OS TRÊS ENCONTRAM-SE NOVAMENTE EM CENA

SIRI – Não há mais nada a ser dito! Estamos infestados por assombrações! Já está perto do amanhecer. Só precisamos saber se antes que o sol nasça sobreviveremos ou não.

CANDINHO – Isso é um feitiço, Siri! E como todo feitiço deve haver um enigma a ser desvendado. Somente assim sobreviveremos.

SIRI – Concordo! Se aquela porta se abrir, teremos quebrado o feitiço.

CANDINHO – E se não se abrir?

PACHECO PERAMBULA PELA SALA

PACHECO – Misericórdia! Deve haver alguma pista pra desvendar esse segredo...

FOLHEIA O JORNAL SOBRE A MESA. ESTANCA

PACHECO – Hein!??? O que é isso!???

SIRI – O que houve, Pacheco?

CANDINHO – Que cara é essa?

PACHECO – (ao encontro dos dois) Olhem isso aqui. É de outubro de 1888!!!

PACHECO LÊ O INÍCIO DA MATÉRIA. OS DOIS SE APROXIMAM

PACHECO – “Primeiro morador de uma mansão recém-construída, distante da cidade, foi assassinado por sua mulher e sua filha...

33

Page 35: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

SIRI – (continua a leitura) ...Após o crime, a mulher e a filha se suicidaram...

CANDINHO (continua a leitura) ...O motivo do assassinato era a crueldade com que ele tratava a família, tendo chegado a decepar a língua das duas para que nunca mais emitissem som algum”.

PACHECO – (abre a página do jornal) Gente! Veja isso! Essa foto é do Soturno e das duas criadas!!!

CANDINHO – Jesus!!!

SIRI – Então descobrimos que eles também estão mortos! Será que desvendamos o mistério!?

CORREM ATÉ A PORTA QUE CONTINUA TRANCADA. INSISTEM. BLECAUTE. IMEDIATAMENTE DO LADO OPOSTO DOIS FOCOS DE LUZ ACENDEM SOBRE AS CRIADAS NO MESMO INSTANTE EM QUE LANÇAM UM GRITO ESTARRECEDOR. LUZ VERMELHA NO PALCO. OS TRÊS DESABAM ENROLADOS EM SEUS COBERTORES. SOTURNO SURGE NO MEIO DAS CRIADAS.

SOTURNO – De curiosos os cemitérios estão cheios!

CANDINHO – Se-seu Saturno... a gente não sabia que o senhor era famoso...

O TRIO FANTASMAGÓRICO APROXIMA-SE LENTAMENTE

SOTURNO – Como ousaram vir incomodar o nosso sossego?

PACHECO – Mas tudo o que a gente não quer é incomodar! Foi um prazer, viu?

SOTURNO – Sim, tenho certeza que vocês não irão incomodar mais ninguém.

A CRIADA MAIS NOVA DÁ SUA RISADA ESTRIDENTE ENQUANTO A OUTRA SE MOSTRA AINDA MAIS ASSUSTADORA E O SOTURNO GARGALHA PROVOCANDO ECO. APROXIMAM-SE

OS TRÊS JOVENS ENCURRALADOS SE DESESPERAM EM UM INÚTIL EMPURRA-EMPURRA

CANDINHO – Socorro! É o nosso fim! Eu não quero ver mais nada!

CANDINHO COBRE NOVAMENTE A CABEÇA COM O COBERTOR. NUM REPENTE, SIRI DESPERTA COM UMA LEMBRANÇA

SIRI – Calma, Candinho, não faça isso! Arranque esse cobertor! Arranque também, Pacheco!

OS DOIS APENAS OLHAM ATÔNITOS PARA SIRI

SIRI – Acho que agora tudo faz sentido! O corretor disse que nós deveríamos ser descobertos, lembra? Deveríamos ser descobertos!

NO MESMO INSTANTE EM QUE PRONUNCIA A FRASE, SIRI JOGA O COBERTOR NO CHÃO, SENDO SEGUIDO PELOS DOIS AMIGOS. IMEDIATAMENTE SOTURNO E AS DUAS CRIADAS TÊM UMA REAÇÃO COMO A DE VAMPIRO

34

Page 36: rl.art.br · Web viewTODA TRAMA DA PEÇA OCORRERÁ EM CENÁRIO ÚNICO, SENDO ESTE A SALA DE UM CASARÃO ANTIGO, COMPOSTO POR MOBÍLIAS E DEMAIS APETRECHOS QUE COMBINEM COM TAL AMBIENTAÇÃO

ENCARANDO CRUXIFIXO. PROCURAM DESVIAR A VISÃO MAS, AINDA ASSIM, SEGUEM SE APROXIMANDO DOS TRÊS

PACHECO – Glória a tudo de bom, Siri! Vamos fugir!

CANDINHO – Vamos! Primeiro as damas!

VOLTAM-SE PARA A PORTA. SACODEM-NA, MAS CONTINUA FECHADA

SIRI – Não é possível! Ainda estamos presos!

PACHECO – Eu já soltei tudo!

O TRIO DO TERROR ENCONTRA-SE APENAS A TRÊS PASSOS

CANDINHO – Siri, estou pensando aqui que o cobertor era pra espantar o frio.

SIRI – Sim, e o vinho também!

PACHECO – Isso! E todos eles são frios! Então o frio pode ter a ver com a pista que precisamos.

O TRIO ESTÁ A DOIS PASSOS

CANDINHO – O segredo está no frio.

SIRI – JÁ SEI! Encontramos a chave!

PACHECO – Então abra logo!

SIRI – É a frase que o corretor falou...

SOTURNO E AS CRIADAS ESTÃO A UM PASSO E NO INSTANTE EM QUE PREPARAM PARA ABRAÇAREM OS RAPAZES, SIRI ANUNCIA

SIRI – A chave é GELO!

NO MESMO INSTANTE A PORTA ATRÁS DELES SE ABRE SOZINHA E OS TRÊS FANTASMAS DESABAM, SE DEBATENDO NO CHÃO, ENQUANTO OS TRÊS RAPAZES FOGEM, GRITANDO EM OFF

RAPAZES – A chave é gelo! A chave é gelo...!

FIM

[email protected]

WhatsApp 21 98773-4608

35