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Roberto Gomes - Critica Da Razao Tupiniquim

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  • CRTICA DA RAZO TPINIQIM Roberto Gomes

    lOt EDIO

    i l i FTD

  • Copyright ( c ) Roberto Gomes, 1990 Todos os direitos de edio reservados

    EDITORA FTD S.A. MATRIZ Rua Rui Barbosa 156 (Bela Vista) So Paulo

    CEP 01326-010 Tel. 253.5011 FAX (011)288 0132

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Gomes, Roberto, 1944-Crtica da razo tupiniquim / Roberto Gomes. 11. ed.

    So Paulo : FTD, 1994. (Coleo prazer em conhe-cer)

    ISBN 85-322-0333-7 1. Filosofia - Brasil 2. Filosofia brasileira I. Ttulo. II.

    Srie.

    94-0590 CDD-199.81 ndices para catlogo sistemtico:

    1. Brasil : Filosofia 199.81 2. Filosofia brasileira 199.81

    Editor: Jorge Cludio Ribeiro Coordenador de reviso: Adolfo Jos Facchini Editor de arte: Cludio Cuellar Capa: Criao - Roberto Soeiro

    Execuo - Chromo Digital, Design Grfico Ilustrador: L u i z Carneiro Produo e Diagramao: Reginae Crema Editorao eletrnica: Paulo Lopes da S i l v a

  • ndice Capitulo 1 - Um ttulo 4 Capitulo 2 - A srio: a seriedade 9 Capitulo 3 - Uma Razo que se expressa 17 Capitulo 4 - Filosofia e negao 26 Capitulo 5 - O mito da imparcialidade: o ecletismo 32 Capitulo 6 - O mito da concrdia: o jeito 41 Capitulo 7- Originalidade e jeito 48 Capitulo 8 - A Filosofia entre-ns 55 Capitulo 9 - A Razo Ornamental 69 Capitulo 10- A Razo Afirmativa 82 Capitulo 11 - Razo Dependente e negao 95 Sugestes de atividades didticas 111 O autor 117 Bibliografia 117

  • Captulo 1 Um ttulo

  • Um ttulo 5

    POESIA COM LAMENTAO DO LOCAL DE NASCIMENTO

    Tudo o que eu digo, acreditem, teria mais solidez se em vez de carioquinha eu fosse um velho chins.

    MUXR FERNANDES (Papverum Millc)

    Oque pode significar isso: Razo Tupiniquim? Tratando-se de ttulo de um livro, supe-se que denuncie um te-ma. Ocorre que este tema jamais foi explicitado, no existindo. Fcil constatar que entre ns esta Razo esta-r adormecida ou pulverizada em mil manifestaes que

    seria problemtico reunir num nico n com a virtude da sntese. Talvez seja impossvel o tema deste livro, embora seu ttulo

    possa ser at sugestivo. No fcil escrever sobre algo que s exis-tir caso seja inventado. Uma Razo Brasileira, no existindo atual-mente, precisaria antes do mais ser providenciada, vindo tona. Ento, das duas uma: ou este livro no pode ser escrito ou ser uma tentativa de "inventar" esta Razo, seguindo vestgios espar-sos no romance, na poesia, na msica popular e at - pois ca-paz de que mesmo a transparea - nalguns livros de Filosofia.

  • 6 Um ttulo

    Mas estas alternativas devem ser rejeitadas. Primeiro, me impossvel no escrever este livro. Segundo, absurda a pretenso de "inventar", aqui, seu tema. Outra ser sua pretenso.

    Partamos de algo pacfico: mal sabemos o que seja uma Ra-zo Tupiniquim. Uma piada, talvez. Hiptese que nos causaria gran-de prazer. Gostamos muito de piadas. H todo um esprito brasi-leiro que se delicia com a prpria agilidade mental, esta capacida-de de ver o avesso das coisas revelado numa palavra, frase, fato. Somos, os brasileiros, muito bem-humorados. Conseguimos rir de tudo. Do governo que cai e do governo que sobe. Das instituies que deveriam estar a nosso servio, dos dirigentes que deveriam representar nossos interesses. E no s. Chegamos a fazer pia-das sobre nossa capacidade de fazer piadas. Nada mais ilustrativo do que a srie de piadas onde representantes de outros pases so ridicularizados pelo desconcertante "jeitinho" de um brasileiro. Neste plano, seja dito, nos movemos com facilidade gritante.

    Desta atitude seria til extrair o avesso. Embora tenhamos uma imensa mitologia construda em cima de nosso jeito piadsti-co, no momento de pensar no admitimos piada. Queremos a coi-sa sria. Frases na ordem inversa, palavras raras, citaes latinas -e impossvel qualquer piada em latim, creio. Isto criou situaes constrangedoras, como as fteis crticas srias a Oswald de Andra-de, acusado de mero piadista. Estranha gente, esta. Gaba seu ini-mitvel jeito piadstico, mas na hora das coisas "culturais" mergu-lha num escafandro greco-romano. j Creio que a existncia de uma piada tipicamente brasileira deveria ser objeto de estudo mais aprofundado. Possuir caracte-rsticas especficas? Que atitudes bsicas revela? Uma saudvel maneira de suportar um existir humilhado? Um modo de estar aci-ma daquilo que amesquinha nosso dia a dia? Talvez sim. Certa-mente sim. Uns reagem com dramaticidade, tragdia e muito san-gue - ocorreu-nos reagir com o riso.

    Talvez uma posio existencial muito nossa. O riso - um cer-to tipo de riso, o nosso - nos salva, tiraniza o tirano, amesquinha quem nos tortura, exorciza nossas angstias. No creio, aqui de

  • Um ttulo 7

    meu ponto de vista brasileiro - e que outro ponto de vista poderia me importar? - que pudssemos ter feito melhor.

    H um perigo, porm. Sempre h um perigo. A mesma pia-da que salva pode mascarar-se em alienao. Como qualquer cria-o humana, tambm a piada deve ser essencialmente crtica, j que de sua pretenso ser isso: uma forma de conhecimento. Ora, quando o riso se perde em pura facilidade, em distrao, morre a atitude crtica. E o "jeito piadstico" estar a servio de nossa inau-tenticidade. H indcios, entre ns, de tal coisa: deixar como est pra ver como que fica; no esquentar a cabea; analisa no; d-se um jeito.

    O conformismo brasileiro encontra a seu terreno de eleio. Justificar, por exemplo, sua prpria condio - dependncia, insol-vncia poltica, jogos de privilgios - atravs de um simples "o bra-sileiro assim mesmo", eis o que impede seja criada entre ns uma atitude tipicamente brasileira ao nvel da reflexo crtica, pro-posta e assumida como nossa. Desconhecendo-se, mal sabendo de uma Razo Tupiniquim, o brasileiro aliena-se de dois modos: rindo de sua sem-importncia ou delirando em torno do "pas do futuro", em variados "anaus". Na verdade, conformismo e ausn-cia de poder crtico, pois nos dois casos h um abandono - "dei-xa como est para ver como que fica" - e uma esperana mgi-ca - "d-se um jeito".

    Mergulhado num escafandro greco-romano - embora no se-ja nem grego nem romano - , o brasileiro foge de sua identidade. Tem sido na Filosofia que o esprito humano tem buscado sua au-to-revelao. Porm, autocomplacente e conformista, sujeito srio, o brasileiro ainda no produziu Filosofia. Assim, necessrio ad-vertir que um pensamento brasileiro jamais esteve l onde tem si-do procurado: teses universitrias, cursos de graduao e ps-gra-duao, revistas especializadas - e logo se ver por qu. No bolor de nosso "pensamento oficial" no se encontra qualquer sinal de uma atitude que assuma o Brasil e pretenda pens-lo em nossos termos. Alm do palavrrio aridamente tcnico e estril, das idias

  • 8 Um ttulo

    gerais, das teses que antecipadamente sabemos como vo concluir, das idias bem pensantes, nada encontramos que possa denunciar a presena de um pensamento brasileiro entre nossos "filsofos oficiais", vtimas de um discurso que no pensa, delira.

    Este livro invivel comea, pois, com uma srie de advertn-cias. A questo de um pensamento brasileiro dever brotar de uma realidade brasileira - no do "pensamento" e da "realidade" oficiais. Deve inventar seus temas, ritmo, linguagem. E inventar seus pontos de vista. Obras como as de Mrio de Andrade, Os-wald de Andrade, Machado de Assis, Lima Barreto, Srgio Buar-que de Holanda, Noel, Chico Buarque, alm daquilo que se tem feito no campo das cincias humanas nos ltimos anos, tm mais a nos dizer do que as maantes teses universitrias nas quais a Filo-sofia se mascara no Brasil. O mesmo se diga do torcedor de fute-bol, da porta-estandarte e do homem da rua em geral

    Mas no ser apenas isso que ir tornar vivel este livro. Uma Razo no se faz com um livro. Provisoriamente, permanea-mos em nossos limites. No se trata de "inventar" uma Razo Tu-piniquim, mas de propor um projeto, um certo tipo de pretenso certamente quixotesca e evidentemente absurda: pensar o que se , como se .

  • Captulo 2 A srio: a seriedade

  • 10 A sno: a seriedade

    Alis muito difcil nesta prosa saber onde termina a blague onde principia a seriedade. Nem eu sei.

    MRIO DE ANDRADE (Prefcio Interessantssimo)

    No captulo anterior levantou-se um tema para um ttulo. necessrio no desperdiar ttulo to sugestivo. Cabe agora perguntar: trata-se de tema "srio"?

    Pelo que ficou dito, prope-se ser srio, no uma piada. Quero que me entendam: no uma piada em seu

    sentido alienante. tema que dever ser "seriamente" considera-do. Mas: conseguiremos pensar "a srio"? Razo Tupiniquim? No coisa no que se pense - e sobretudo nestes termos. S po-de ser brincadeira, jamais um tema "srio". Quer dizer: no cons-ta de nenhuma tese defendida na Sorbonne ou em Freiberg.

    Prestando ateno, vemos que h vrios empregos possveis para a palavra "srio" e, conseqentemente, vrios sentidos para a "seriedade". Creio que isso fique claro se considerarmos estas duas ocorrncias: "Fulano de Tal um homem srio" e "Fulano de Tal leva a srio seu trabalho".

    Entre os dois empregos no h apenas o acrscimo de uma letra, mas uma mudana de perspectiva e de acentuao. Mudou o carter da seriedade em questo. No primeiro caso queremos dizer que Fulano de Tal um homem que zela pela seriedade das japarncias. respeitador das normas e convenes sociais. Seria incapaz de "sair da linha". Dele no se esperam coisas que fujam

  • A sno: a seriedade 11

    ao normal estatstico. Isto vale dizer: Fulano de Tal um homem respeitador e respeitvel.

    Na segunda ocorrncia, a seriedade em questo remete-se a outra gama de significaes. Levar a srio, seja um trabalho, um lugar ou um amor, no consiste no zelo pela vigncia de normas sociais. Ao contrrio. O acento faz com que toda carga significati-va recaia sobre o aspecto interno e virtualmente negador do social-mente admitido. Se levo a srio, isto algo que sai de mim em di-reo ao objeto da seriedade. Se sou srio, me coisifico como obje-to de seriedade. A est a diferena entre o que dinmico - eter-namente em questo - , encontrado no a srio, e o carter de coi-sa acabada e estril da seriedade do sujeito objetificado. A srio, revigoro o mundo com uma quantidade imensa de significaes. Srio, reduzo-me a objeto morto, caricato, de existir centrado no externo.

    Ao levar a srio, estou profundamente interessado em algu-ma coisa, a ponto de voltar todas as minhas energias no sentido de sua realizao - outro no sendo o princpio de erotizao do agir. Mesmo quando isso exige "sair da linha". S aqui poderemos encontrar o germe revolucionrio indispensvel criatividade.

    Fixemos, por exemplo, o caso do artista. O prottipo do artis-ta, se quiserem. E bvio que a encontramos uma figura muito dis-tante daquilo que se considera srio. Valores no convencionais, palavras e frases talvez extravagantes, um modo de vida que tor-ce o nariz aos bem pensantes. O artista - e o filsofo, quando fiel sua vocao igualmente marginal - tem recebido ao longo da histria o rtulo de louco. E sua "loucura" consiste nisto: no um homem srio.

    Por oposio, nada parece ser levado to a srio quanto o tra-balho artstico. Atividade desinteressada - no no sentido de alie-nao das questes de sua poca, mas em oposio seriedade daquilo que vigente. No sem motivo que hoje se busca no ar-tista um modelo de ao no repressiva e de reerotizao do agir. O critrio segundo o qual se orienta no o lucro ou a dominao do outro, sendo flagrante que o artista realiza um conjunto de valo-res que se chocam frontalmente com aqueles que so vigentes.

  • 12 A sno: a seriedade

    No homem srio, ao contrrio, encontramos a perfeita encar-nao do "interessado" - palavra agora utilizada em sua conota-o menor: eu como objeto da seriedade. ambicioso, calculista, visa lucro, poder, organiza suas relaes em termos de futuro pro-veito etc. Curioso notar que nada poderia estar to distante dos valores idealmente apregoados pela tradio do pensamento oci-dental do que o homem srio. No entanto, o artista que, ao con-cretizar estes valores, acaba recebendo toda a carga de agresso sob o rtulo de "louco".

    O artista, este marginal, objeto de tabu, suportando a mes-ma agressiva ambivalncia por parte do homem srio: amor e dio. Alis, duas so as coisas que o homem srio faz ao chegar ao po-der: instaura a censura e constri suntuosos museus e teatros. E distribui prmios literrios. Isso s parecer contraditrio se deixar-mos de considerar que existem duas maneiras de aniquilar com o artista: censurando-o ou promovendo-o a uma espcie de ornamen-to social. E assim que o homem srio exorciza aquilo que teme. I Algumas concluses so possveis. Antes de mais nada, b-vio que o srio est a servio de uma mscara social - uma per-isona que assumo. Ou: que me assume. Casca normativa que nos vem do exterior e que nos dita o que convm, esta a essncia de tal seriedade. A partir disso, pouco ou nada importam as intuies que procedam do interior, ficando nossa expresso mais pessoal e crtica eliminada. Eis como existem coisas que um professor faz -e outras que no faz. Usar culos, ser carrancudo e empertigado.

    Afogar-se e suar desesperadamente num terno e gravata. Falar num jargo convencional e altamente "erudito" - coisas que cabem, que convm. Outras, nem tanto.

    O mesmo se d com aqueles que praticam a Filosofia entre-ns, a imensa maioria composta por professores. Existem coisas srias, consagradas pelo uso acadmico, de bom tom e alta ilustra-o. So coisas que vm sendo discutidas na Sorbonne, em Oxford, publicadas em Paris ou Berlim, apresentadas em congressos. Cons-tituiu a Filosofia, desta forma, seus prprios temas e maneiras de trat-los - aqueles que convm. Quer dizer, seus sufocantes ternos e gravatas. E o triunfo do homem srio atingido quando se che-

  • A srio: a seriedade 13

    ga completa ritualizao. Quando j no importa o dito, mas a maneira de dizer dentro de padres previamente consagrados. As-sim, uma comunicao a um congresso pode ser absolutamente vazia e soberbamente tola - mas, cumprido o ritual, o aspecto "sa-crossanto" da cultura preservado. Eis a coisas convenientes, per-feitamente srias.

    Quero com isto dizer - no principalmente e no s - que o tema providenciado para este ttulo exigiria sair do srio. Pare-ce evidente que Filosofia brasileira s existir a partir do momen-to que vier a ser, como a piada, uma investigao do avesso da se-riedade vigente. Obras srias so feitas com arquivos, notas ao p da pgina e num jargo que me aborrece. esta mscara sria que vem sufocando o pensamento brasileiro, onde ela mais profun-damente aderiu ao rosto. A ritualizao, triunfo do srio, consiste exatamente nisto: fala-se agora sobre temas adequados, pouco im-portando se importam. Vale dizer: mesmo que se trate de especu-laes sem qualquer raiz na realidade que nos circunda. Assim, perdeu-se a ligao e a referncia crtica realidade, que sempre foi a pretenso bsica da Filosofia quando soube ser fiel sua mis-so marginal.

    Faz algum tempo. l i uma entrevista de Nelson Rodrigues -exemplo de tpica inteligncia brasileira cujos descaminhos s nos resta lamentar - em que dizia que o mais grave defeito dos perso-nagens de romance brasileiro serem incapazes de cobrar um es-canteio. Por detrs do efeito de esprito, uma intuio radical: en-tre-ns perdeu-se o contato com a realidade em torno.

    Isso tudo vem a ser ainda mais espantoso se observarmos que nossa atitude corriqueira - a do brasileiro, vale dizer - de profunda averso ao formal. Temos horror pompa. Um trao bsico do humor brasileiro, e, portanto, da sabedoria do brasilei-ro, desestruturar qualquer pomposidade, desarmando as tentati-

  • 14 A srio-, a seriedade

    vas de empostao. J as expresses da lngua revelam isto. Um francs qualquer pode dizer: "Je vous en prie" ou "Je suis enchan-t de faire votre connaissance". Isto, ao p da letra, ridculo em portugus. Um escritor alemo pode, por exemplo, semear genero-sos pontos de exclamao ao longo do que escreve. Em termos brasileiros, nada mais chocante do que uma exclamao. No con-fere com nosso natural ceticismo, nossa oblqua maneira de olhar. Em ns espontnea a tendncia a ver o avesso das coisas. Se diz que qualquer personalidade mundial, com dois dias de Brasil, j no seria mais levada a srio.

    Entretanto, no Brasil onde o falar, o escrever e o pensar vieram a ser as coisas mais formalizadas e rgidas que se conhece. Todo sujeito que sobe numa tribuna julga essencial, antes do mais, colocar-se na ponta dos ps e no alto de seus tamancos. Essencial trocar todas as palavras usuais por palavras que estranham nosso modo. Construir frases numa ordem que jamais usaria para pedir um cafezinho. E falar sobre coisas para as quais nos custa encon-trar referncia na realidade em volta. No intelectual brasileiro que discursa, triunfa o srio - expresso de uma classe privilegiada dian-te da multido analfabeta. No homem srio, triunfa a Razo Orna-mental.

    O melhor exemplo disto talvez seja o terno e gravata. Este uso revela entre-ns muito mais do que se poderia supor. Alm da natural averso ao formalismo, as razes de clima: este um pas onde, na maior extenso, o calor brutal. Apesar disto, sem-pre que se trata de realizar uma atividade "cultural" - apresentar uma aula, discursar, escrever um livro ou pensar - , o brasileiro s-rio mergulha num terno e gravata.

    Este triunfo do externo no significa apenas a submisso ao vigente. Significa mais. A bem dizer, determina que o discurso, em terno e gravata, fuja da realidade brasileira. E bvio que nin-gum saber cobrar um escanteio nestes trajes. Pelo mesmo moti-vo, nada poder dizer de importante, que importe. A roupa deter-mina, no caso, um ato de seletividade que procede do vigente: a partir do momento em que a assumo, uma srie de coisas deixam de ser urgentes. No as vejo. No so suficientemente srias. En-

  • A sno.- a seriedade 15 to, a fuga para um universo adequado ao traje: a fria Europa.

    Assim, o filsofo brasileiro, capaz de vos to mirabolantes no tempo e no espao, capaz de pensar o sculo XIII ou as cosmo-vises europias, no capaz, pela armadura na qual se encontra, de enxergar um palmo diante do nariz. Este mesmo "pensador" no capaz de cobrar um escanteio ou danar um samba. O que levanta a questo fundamental sobre as condies de possibilida-de de um juzo filosfico brasileiro: a Filosofia, de terno e gravata, pensa?

    Eis o que desejaria mostrar: nossa averso pompa acaba convertendo-se em seu oposto - o triunfo da cultura formalistica. E, pois, urgente que assumamos a capacidade a sno do humor como forma de conhecimento. S no momento em que, abandona-da a tirania do srio, percebermos que nossa atitude mais profun-da encontra-se em ver o avesso das coisas que poderemos reti-rar de nossas costas o peso de sculos de academismo. E s ento pensar por conta prpria. Se deslocarmos a acentuao do exter-no para o interno, encontraremos condies de pensar o que est diante de nosso nariz. E o que Filosofia? a tentativa, penso, de enxergar um palmo diante do nariz - o que no to fcil nem to intil quanto muitos pensam. Afinal, o peixe quem menos sabe da gua.

  • 16 A sno: a seriedade Creio ser isto suficiente para denunciar nossa inautenticida-

    de intelectual. Quando, com um mnimo de conscincia crtica, in-vestimos contra nossos deuses e fantasmas, nossos sagrados precon-ceitos? Sempre damos um jeito? E o que quer dizer isto? Uma vir-tude, uma maleabilidade maior? Este o pas das "revolues sem sangue"? De fato e historicamente? E o que significa isto? Um humanismo superior? Falta de carter? Um deixar como est pa-ra ver como que fica? Mito da conciliao? Fuga do a srio?

    Vejamos bem: se este o pas do futebol, por que nossos personagens de romance no sabem cobrar um escanteio? Ou se-r o pas do eterno carnaval, da praia, do cafezinho, do papo des-contrado, do funcionrio pblico, do heri sem nenhum carter, do chope gelado, ou, antes e acima de tudo, o pas do jogo do bi-cho e da loteria esportiva, revivncia dos mitos do bandeirante? Mas qual a Razo - se h - implcita nisto? Qual o pensar que da decorre? Qual o projeto existencial que a tudo isso informa? Em suma: o que significa isto?

    No sabemos. Estes temas ainda no adquiriram o status de assunto srio, pois o intelectual brasileiro s leva a srio o que srio, bvia inverso. Onde o hbito faz o monge.

  • Captub 3 Uma Razo que se expressa

  • 18 Uma Sazo que se expressa

    For muitos anos procurei-me a mim mesmo. Achei. Agora no me digam que ando procura da originalidade, por-que j descobri onde estava, pertence-me, minha.

    MARIO DE ANDRADE (Prefcio Interessantssimo)

    Sempre que uma Razo se expressa, inventa Filosofia. O que chamamos de Filosofia grega nada mais do que o sreap-ease cultural que a Razo grega realizou de si mesma. deste ato - mais simples do que gostariam de supor os pensadores tupiniquins - , no qual uma Ra-

    zo se descobre em sua originalidade e conhece seus mais ntimos projetos, que emerge a possibilidade de Filosofia.

    Mas no que consiste descobrir-se em sua originalidade? Te-mos aqui duas questes: sobre o que seja descobrir-se e sobre a natureza da originalidade. E algo anterior: as condies desta des-coberta.

    Se parto do suposto que descobrir-se , de algum modo, des-cobrir alguma coisa, desde logo me coloco em oposio a isto que deverei descobrir. No momento em que encontrasse tal objeto, te-ria concludo minha tarefa. Mas no existe de fato nada com o que, ou com quem, eu deva me encontrar para descobrir-me. Os encontros com so externos e superficiais.

  • Uma Sazo que se expressa 19

    De fato, descobrir-se encontrar-se em, pelo simples fato de no haver um "outro" que eu deva descobrir - desde o incio sou eu quem est em questo. A descoberta , pois, fenmeno pri-mrio: um re-conhecimento.

    Se nos despimos de todas as artificialidades que providencia-mos para nossa instalao no real, verificamos que a questo so-bre o esar permanece alm de todas. Assim, desde o incio a ques-to a respeito do que eu sou remete-se pergunta: "Onde es tou?" E onde estou? Num tempo, num lugar, entre coisas qu< me rodeiam, pessoas com quem falo. A conscincia primariamen-te este contato com a proximidade, com os contornos que imedia-tamente me chocam, exigem e perturbam. Estou em determina-do lugar e, a partir dele, principio a ser. Antes estou, depois sou.

    A Filosofia, onde uma Razo se expressa, sempre se revelou pela fidelidade a este dado. Sbito, uma Razo descobre-se em. Em Mileto, por exemplo. Por mais abstrato que possa parecer um pensamento, sempre traz em si a marca de seu tempo e lugar.

    Ao inverso do comumente suposto, no a desvinculao do lugar e do tempo que confere profundidade a um pensamento, como, por exemplo, o de Plato. Seu grande mrito ser a expres-so realizada do esprito grego num dado momento - pois este ho-mem foi, sem dvida, um grego. Compreendemos mal o que dis-se se quisermos conservar de sua obra aquilo que no se "mistu-ra" impuramente com as atribulaes de sua poca. A conscincia aguda, altamente diferenciada da Razo grega naquele momento, eis a raiz de sua profundidade e a natureza de sua lio. Seu pen-samento torna-se incompreensvel se no levarmos em conta a nti-ma conexo que a existe entre Poltica e Filosofia, sendo esta es-clarecida por aquela, na medida em que reflete a seu respeito. O fracasso poltico na Siclia, as condies polticas perturbadoras, a morte de Scrates o levaram ao postulado fundamental de seu idea-lismo: o mundo material deve ser modificado - quer dizer: nega-do - a partir das verdades obtidas na intuio das idias. Assim, ao postular a reforma da cidade, o "mundo das idias" mostra-se como o no-ser negador do vigente, a sntese de sua crtica a seu tempo. E s assim, visto em sua essncia inegavelmente poltica,

  • 20 Uma Sazo que se expressa

    faz pleno sentido. Fora disso, parecer construo vazia e "plat-nica" - o que de fato nunca foi.

    Quanto a Toms de Aquino - um dos autores, alis, pelo qual devemos ter o mximo de piedade, pois foi vtima do pior dos preconceitos, o preconceito a favor -, devemos notar que, "his-toricamente, o tomismo no surgiu como o sistema intemporal e 'sabe-tudo' que nos apresentam (...) era a resposta patente a um problema inadivel do momento".1 Encontrava-se em dada posi-o e dela buscava a resposta quilo que era urgente questionar. Assim, tentar eterniz-lo, colocando-o acima do tempo, desservi-lo - donde se conclui que, em matria de desservios, os tomistas conseguiram mais do que os mais severos crticos de Toms de Aquino. "Isolada do contexto histrico que a viu nascer, a sntese tomista aparece como anacrnica."2

    Os exemplos poderiam continuar e toda uma histria da Filo-sofia poderia ser escrita a partir da. Fiquemos apenas com o es-sencial. Como entender Hegel sem a Revoluo Francesa, sem re-ferncia necessidade de reorganizao do Estado e da socieda-de em bases racionais? "Os esforos histricos concretos para o estabelecimento de um tipo de sociedade racional haviam sido transpostos, na Alemanha, para o plano filosfico e transpareciam nos esforos para elaborar o conceito de Razo. Tal conceito es-t no cerne da Filosofia de Hegel. Este sustenta que o pensamen-to filosfico nada pressupe alm da Razo, que a histria trata da Razo, e somente da Razo, e que o Estado a realizao da Razo. Estas afirmaes no so compreensveis, porm, se a Ra-zo for tomada como um puro conceito metafsico, pois a idia que Hegel fazia da Razo preservava, ainda que sob forma ideals-tica, os esforos materiais no sentido de uma vida livre e racional. (...) A no ser que se apreenda com clareza o sentido de tais con-ceitos, e sua intrnseca correlao, o sistema de Hegel aparecer

    1. SCHOOYANS, Michel. Tarefas e vocao da filosofia no BrasiL Revista Braseira de FosoBa, So Paulo, 21(41):61-69, jan./fev./mar., 1961, p. 65.

    2 Idem, ibidem.

  • Uma Sazio que se expressa 21

    como a obscura metafsica que de fato nunca foi."3 Fora, portanto, das urgncias de seu tempo, os pensadores

    no chegam a fazer pleno sentido. Mas no basta ressaltar que to-do pensamento traz a marca de seu lugar e tempo - isto, de um modo ou de outro, muitos aceitam. O vital reconhecermos que um pensamento original no por superar sua posio - o que impossvel - , mas precisamente por dar forma e consistncia a es-te tempo e apresentar uma reviso crtica das questes de sua po-ca, a tendo origem. O pensamento superior no a despeito de ser situado, mas justamente por situar-se.

    Desta forma, embora entre as pretenses da Filosofia - e tam-bm da cincia, no caso - encontremos a de querer ultrapassar o espao e o tempo, esta mesma possibilidade de superao radica-se no ato de assumir sua posio especfica. Isto equivale a dizer que justo esta pretenso que se encontra em jogo. Entre-ns, por exemplo, encontramos o apego extremo ao pensamento de outros por julgarmos que s os outros podero nos dar qualquer chave do saber. Assim, queremos nos descobrir num encontro com um pensamento qualquer, seja medieval ou grego, de hoje ou de ontem. Aguardamos uma soluo estrangeta sem nos darmos con-ta de que, sendo estrangeta, ser precisamente isto: estranha. E o pensamento, antes da pretenso de ser atemporal, deve ter a pretenso primria de no ser jamais estranho, o saber de um outro.

    Se exigirmos da Filosofia no ser apenas algo entre-ns, mas Filosofia brasileira, claro que estamos supondo uma originalida-de, a nossa. Um erro seria, portanto, apegar-se a uma resposta es-tranha, que aqui no tenha nascido. Outro, confundir originalida-de com novidade. O novo apenas um acidente do original. Que-ro dizer: dele decorre em alguns casos. Uma formulao qualquer original no pelo fato acidental de ser nova ou indita, mas pe-lo fato de esar vinculada a determinadas origens. Produto de um

    3. MARCUSE, Herbert Razo e Revoluo. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1969, p : 17.

  • 22 Uma Razo que se expressa

    ato do esprito que se enraza em. Criar um automvel sem motor, direo e lugares e - suprema novidade - que no transporte, se-ria algo absolutamente novo, rigorosamente indito. Creio, no en-tanto, que sem nenhuma originalidade. O delrio novidadeiro e for-malstico na arte, por exemplo, tem produzido resultados deste ti-po - uma arte que se recusa a qualquer compromisso para bastar-se num auto-envolvimento aos limites do narcisismo. De fato isto revela to-somente o vazio existencial, a ausncia de qualquer pro-jeto criador. Surge, de resto, num momento em que a arte perdeu a noo de qualquer papel histrico.

    O original, em suma, o avesso do estranho e do novo: tem razes aqui e de longa data.

    Coisas simples decorrem da. Se no assumo minha posio, carecerei de um ponto de vista e, conseqentemente, nada verei. E condio de viso estar em dada posio e dela vislumbrar os objetos. Ver , ou envolve, um ato de seletividade. E s vejo de minha posio. Qualquer verdade minha verdade - e s o ser se vier a ser minha. No pretendo, como uma acusao ligeira e superficial poderia supor, qualquer inexistncia da verdade. Viso insistir em que preciso ver, ou estar-vendo, da nica maneira possvel: historicamente. O suposto da verdade, de resto, postula-do intencionalmente na prpria natureza do ato de pensar. Ocor-re que a verdade no se encontra onde muitos julgam que esteja. Se quisermos ser fiis verdade, devemos supor que resida no em nossos juzos (histricos, situados, mutveis, refutveis), mas no limite projetivo destes juzos. A verdade, sendo criao histri-ca, encontra-se no limite da direo para o qual apontam os juzos. Da a refutabilidade indefinida do conhecimento, seja cientfico, seja filosfico. Da a iluso de esgot-lo no juzo, uma vez que, his-toricamente - quer dizer: de fato e efetivamente - , a verdade no reside no juzo, mas em sua projeo.

    A originalidade da Filosofia consiste em descobrir-se em de-terminada posio, assumindo-a reflexivamente. Alm disso: se sua pretenso bsica a verdade, vale lembrar que esta s faz senti-

  • Vaia Sazo que se expressa 23

    do quando minha. Mesmo a verdade de um outro s poder ser verdade para mim se dela me apropriar, antropofagicamente. E no se poderia objetar, do ponto de vista de um pensamento rudi-mentar, que a verdade em si j se encontrava l. Por um motivo simples: verdade em si no faz sentido algum.

    Eis por que uma Filosofia brasileira s ter condies de ori-ginalidade e existncia quando se descobrir no Brasil. Estar no Bra-sil para poder ser brasileira. E isto no tem ocorrido. Desde sem-pre nosso pensar tem sido estranho, providenciado no estrangeiro.

    imprescindvel, portanto, a clara conscincia de que um pro-blema para um alemo do sculo XX ou um grego do sculo V a.C. pode, perfeitamente, no ser um problema para mim. Ou: s o ser se eu o fizer meu. E s poderei legitimamente faz-lo meu se corresponder s importncias e urgncias diante das quais me encontro. Esta, a condio de possibilidade anterior a toda e qualquer Filosofia. No h aqui um elenco de coisas anteriormen-te fixadas - "estranhamente" - que eu possa utilizar como um ro-teiro ou espcie de ndice, de tal maneira que, ao tratar de cada um destes assuntos, eu esteja inevitavelmente fazendo Filosofia. Fazer Filosofia fazer a Filosofia. O que envolve: seus temas e seu modo de abordagem. Jamais posso d-la como pressuposta, como se bastasse manuse-la maneira de um arquivo.

    Urge, pois, com relao aos temas e instrumentos "estranha-mente" providenciados, que eu verifique se me-importam. S en-to terei condies de aproximar-me deles a srio, fazendo com que sejam efetivamente meus. Condio para que meu conheci-mento seja um estar-vendo de minha posio - e no um abstra-to ver fora do tempo e do espao.

    Motivo pelo qual uma Razo s se expressa ao providenciar seus temas, sua linguagem, decorrncia de encontrar-se em sua posio. A grande dificuldade, no sentido de fazer explodir toda uma construo sria da Filosofia que entre-ns se instalou, rea-lizar a conscincia de que o pensamento e seus objetos so pura

  • 24 Uma Sazo que se expressa inveno. Com efeito, no havia um "problema" para a Filosofia grega antes que os gregos o inventassem, assim como a IX? Sinfo-nia no estava em parte alguma antes que Beethoven a criasse. No havia um "problema hegeliano" esperando por Hegel anterior-mente a Hegel. Assim, no h um "problema" para a Razo Bra-sileira que nos esteja esperando. Urge, isto sim, invent-lo no pr-prio ato de inventar um Filosofia brasileira. Nosso streap-tease cultural.

    Inveno, porm, que no se d no vazio. Hegel, Tales ou Marcuse no injetaram um problema na conscincia de seu tem-po, assim como um mdico implanta - "estranhamente" - um r-go ou tecido no corpo do paciente. Ao contrrio, de Tales a Mar-cuse a Filosofia fez vir conscincia reflexiva da poca coisas que urgiam ser providenciadas. No que, ao modo do em si acima refe-rido, tais elementos l estivessem em estado latente espera de uma espcie de suco reflexiva. Insista-se que os filsofos, ao in-ventarem Filosofia, inventaram igualmente o que importava e des-tacaram o que era urgente, o que se veio a perceber depois de ter sido inventado. Da a intuio original que gerou dado conjunto de idias. A noo de que o pensamento uma espcie de pice reflexivo da conscincia de seu tempo pode ser excessivamente ro-mntica - mas inevitvel. E uma histria da Filosofia que se re-cuse a ser um amontoado de dados ter por tarefa recuperar aque-las intuies que, ao longo da histria, geraram pensamento.

    Assim, Filosofia uma Razo que se expressa - frmula on-de a palavra Razo comparece carregada de historicidade. E uma Filosofia brasileira precisaria ser o desnudamento desta Razo que viemos a ser. Seja por excesso de pudor, por medo, o fato que at hoje no nos despimos. Talvez temendo nada encontrar por debaixo de nossos trajes europeus, nosso infatigvel terno e grava-ta. Ou talvez fosse para ns excessivamente doloroso descobrir-se em, enfrentando a radical solido da nudez. Tiraramos as roupas para descobrir, absurdamente, que estamos nus. Sem mscaras de aplausos ou punies, sem nossa imagem de homens srios, cheios de certezas. O que, afinal, fazer de uma nudez que no acei-tamos como nossa?

  • Uma Sazo que se expressa 25

    A questo se reduz a algo simples: no existe uma "problem-tica"brasileira nossa espera. Urge ser inventada. Inventada e pos-ta em questo - este, o esforo da Filosofia, desde sempre. Cabe perguntar se entre-ns encontramos sinais de tal esforo. Em resu-mo e didaticamente: h uma Filosofia brasileira?

  • Captulo 4 Filosofia e negao

  • Filosofia e negao 27

    O passado lio para se medi-tar, no para reproduzir.

    MARIO DE ANDRADE (Prefcio Interessantssimo)

    AFilosofia goza de um destino certamente trgico: deve justificar-se. No no sentido em que as cincias devem justificar-se. Quanto cincia, urge saber de sua valida-de, das condies de construo de seus objetos e deter-minar, no conjunto da cultura, o lugar do conhecimen-

    to que prope. No o que ocorre com a Filosofia. A cincia e seu saber procedem de um movimento do espri-

    to em direo ao real que nos circunda, real suposto independen-te de mim. Em nossos dias isto assumiu um carter pragmtico: seu valor o de seus resultados em termos de tcnica. Antes mes-mo de determinado o lugar e a validade da cincia, j damos por suposta sua importncia. A cincia nos importa, sendo teis os seus resultados. Antes mesmo de questionarmos a respeito de seus supostos e conseqncias, damos por admitido que os resultados do saber cientfico so desejveis, gerando progresso. claro que mal sabemos o que seja progresso, mas no importa: o cientista , do ponto de vista do vigente, dispensado de defender a cidadania da cincia. Ela j a tem, admitida.

    As coisas mudam quando tratamos da Filosofia. Torna-se ago-ra urgente justificar e assumir a Filosofia. Justific-la no ainda a defesa de sua cidadania, mas algo anterior. Antes do mais, impli-

  • 28 Filosofia e negao

    ca certa atitude geral diante do Universo - atitude muito diversa daquela adotada pela cincia. Nesta lidamos com determinados objetos munidos de determinados instrumentos, sendo que antes convencionamos os limites e o valor de sua utilizao. Na Filosofia, deparamos com um modo de colocar a existncia em questo. Sen-do que este modo gera seus prprios objetos. No h, j foi visto, objetos que a estejam - "filosoficamente" - espera de um trata-mento adequado. Tais objetos so criados pelo esprito, isolados num ato de intuio. No ocorre a simples seleo de um objeto, mas sua inveno. Por Sm, sua projeo existencial no plano de nossas importncias e urgncias.

    Estes momentos - atitude, inveno, projeo e determina-o das urgncias - descrevem um nico processo. No entanto, no tudo. Ocorre um momento paralelo: urge assumir a Filoso-fia. Talvez isto signifique algo simples: pergunta-se aqui se a Filoso-fia , para ns, importante. Ser que, alm do bolor acadmico do qual se reveste e da busca de sucesso intelectual, a Filosofia re-almente nos importa? Responder a tal questo implica determinar a distncia que vai da justificao da atitude filosfica (crtica) ao uso da Filosofia para justificar atitudes (ideologia).

    No basta estabelecermos os vcios de nossa costumeira posi-o intelectual, ainda que isso seja decisivo. E preciso perguntar alm, na origem. Ou seja: precisamos mesmo de Filosofia? Propor esta questo no um mero perguntar-se acadmico - e "brilhan-te", num jogo de palavras. levar o questionamento a seu limite: o limite de sua importncia.

    verdade que qualquer executivo esbarra ao longo da vida com questes que constam entre aquelas problematizadas pelos filsofos. Mas s isto no concede importncia a tais questes. E preciso que eu esteja envolvido num processo no qual tais ques-tes emerjam como decisivas, vindo a ser urgentes, quando as le-vo a srio.

    Descobrimos para l da importncia da Filosofia dada pelo homem srio - erudio, brilho, status, justificao ideolgica do vigente - a importncia da Filosofia quando levada a srio - a emergncia da conscincia negadora.

  • Filosofia e negao 29

    As questes decorrentes so as seguintes. Onde, entre-ns, esta importncia a srio do filosofar? Onde, o objeto de nossas preocupaes referido ao que nos rodeia e inventado por ato de uma conscincia crtica brasileira? Onde, a autenticidade e a cida-dania de uma Filosofia nossa?

    Estas, as questes que entre-ns foram extraviadas. Isto por-que a grande tentao da Filosofia - algo que compartilha com a arte - apresentar-se como "respeitvel", quer dizer, com preten-ses srias.

    O conceito de responsabilidade , assim visto, essencialmen-te acrtico; e j sabemos que o homem respeitvel o homem s-rio. Tal homem est definitivamente comprometido com dado siste-ma, molde e fim de seus atos. A partir do momento em que a Filo-sofia adquire respeitabilidade, pode conseguir tudo - verbas, diplo-mas, honrarias, imortalidades acadmicas - , menos o essencial: es-prito crtico.

    Em livro de introduo Filosofia, por exemplo, comum encontrarmos a insistncia com relao "utilidade" da Filosofia - verso sria da importncia. apresentada como conhecimen-to desinteressado (o que, de resto, ou equvoco ou no existe, sendo todo conhecimento interessado, j que assumido como ur-gente), embora fosse melhor dizer inofensivo. E assim busca-se mostrar os benefcios informativos e formativos - "espirituais" -da Filosofia. Esta atitude dos manuais equivale a pedir um lugar ao sol para um pobre mendigo, o filsofo. Jura que inofensivo, srio, e que cuida apenas das coisas do esprito - e pede um pou-co de sol. Desconfio que tal sujeito mendiga errado, j que no sa-be do que precisa.

    Ao se ressaltar a utilidade da Filosofia - e uma importncia sria que lhe ser dada - estaremos de imediato liquidando com esta Filosofia. Poder a partir de ento reproduzir ideologicamen-te o que vigente, s. "Pense" o que quiser, ser sempre ideolgica.

    Tal Filosofia ficar impossibilitada de, antes de mais nada, criar um mundo - o que equivale a dizer: destruir um mundo, aque-le que impede o prximo. Visar manter o mundo dado com to-da a sua seriedade. Assim, as duas caractersticas anteriormente

  • 30 Filosofia e negao

    exigidas, autenticidade e cidadania, ficam prejudicadas. E a Filoso-fia permanecer entre-ns como aquele agregado de Machado de Assis, o Jos Dias, que aplaude e concede para sobreviver.

    A Filosofia no pode prescindir de sua misso primeira: des-truir um mundo. Efetivamente, o que Filosofia? A mim parece ser isto: dizer o contrrio.

    Esta, a lio primria que uma histria do pensamento deve-ria sempre ressaltar. Os grandes momentos do pensamento surgem no auge de uma curva, dando consistncia e definio a um mo-mento do processo histrico. E condensam isto numa intuio po-tencialmente criadora. Imediatamente aps o perodo de criao, surge a cristalizao e a esterilidade - e a encontramos os preten-sos seguidores. quando aquela intuio originria se perde nalgu-ma escolstica. S mais tarde surgir o verdadeiro sucessor: aquele que disser o contrrio, respondendo intuio envelhecida em con-ceito com uma nova intuio. E o processo segue.

    Antes de mais nada, Scrates diz no a tudo que o precede, como Tales havia dito no s cosmogonias e como Plato dir no a Scrates - encontrando em Aristteles aquele que lhe diz o con-trrio. Os verdadeiros seguidores de Plato no so os neoplatni-cos, pois estes festejam um cadver. Poderamos construir toda uma histria da Filosofia, que se recusasse a ser mero arsenal ilus-trativo de dados histricos, mostrando que qualquer momento cria-dor foi, na origem, uma negao. Isto no envolve, advirto, a idia de uma necessria sucesso linear que conduzisse a um "progres-so" contnuo para algo melhor - apenas envolve momentos legti-mos de um processo que, embora produto humano, nos escapa em seu sentido globaL

    Oswald de Andrade, que entre-ns representou um momen-to de devastadora destruio e, portanto, de mxima criao, fez bem em notar com relao arte: "Essa necessidade de moderni-zar de todos os tempos (...) Giorgio Vasari, o grande crtico do Renascimento, fala sempre e insistindo em exaltar, na 'maneira moderna' de Leonardo da Vinci, de Rafaelo Sanzio de Urbino, esses que so hoje os clarins supremos do classicismo. E o so jus-tamente porque foram 'modernistas'. Se no o fossem, aguavam

  • Filosofia e negao 31

    repetindo Giotto e Cimabue, em vez de produzir a Lngua nova da Renascena."4

    Qualquer conhecimento inicia sendo negao, ou seja, como essencialmente crtico. O que no , est visto, exclusividade da Filosofia. Das artes plsticas cincia, assistimos sucesso de in-tuies criadoras degradando-se em esteretipos at serem recupe-rados por nova intuio.

    H, no entanto, uma condio para este no. A crtica al-go a ser assumido, uma posio do esprito. E no a assumo do ponto de vista da eternidade. Por um motivo simples: no estou na eternidade. Estou no tempo, num lugar. Ao assumir a postura crtica a partir deste tempo e lugar, deixa de haver distncia entre o que digo e o que sou - inexistindo qualquer diferena entre es-tar e ser. Digo o que sou. Isto Filosofia. Meu streap-tease cultural.

    Entre-ns, porm, encontramos atitude oposta, que chamarei de "mito da imparcialidade". Queremos estar acima das oposies. No no sentido de assumi-las e ento resolv-las. Mas no sentido de evit-las e ento dissolv-las. Aguando, como diria Oswald de Andrade.

    E fato constante nossa tendncia a evitar o choque de idias e as tomadas de posio. Encontramos sempre um meio-termo en-tre, digamos, idealismo e realismo, subjetivismo e objetivismo, e houve mesmo quem entre-ns encontrasse um meio-termo entre positivismo e marxismo, disparate que me intriga. Tudo isto pode-ria consistir em empresa louvvel, mas no do modo como a con-duzimos: dissolvendo oposies. Cabe, a propsito, alertar que no meio no est a virtude, como muitos pensam. No meio est o medocre.

    Eis por que, no assumindo uma posio nossa, um pensar brasileiro torna-se impossvel - impossibilitado de criar por no aceitar destruir o passado que nos impuseram - , recusando assu-mir sua condio bsica: que seja nosso, negador do alheio.

    4. ANDRADE, Oswald de. Ponta de Lana. 3? ed., Rio de Janeiro, Civilizao Brasilei-ra, 1972, p. 12.

  • CapubS O mito da impar-cialidade: o ecletismo

  • O mito da imparcialidade: o ecletismo

    Trazendo em seu esprito o re-flexo das faces mercantil e feudal do domnio, ceve a intel-Ugentsia nacional que conci-liar tambm o liberalismo eco-nmico e o instituto da escra-vatura, procurando ajust-lo realidade do pas. Ademais, tudo a levava a uma ideologia da me-diao.

    PAULO MERCADANTE (A Conscincia Conservadora no Brasil)

    Brasil aconteceu ser o paraso de algumas outras coisas, alm do futebol e do jogo do bicho. Entre elas, o ecletis-mo e o jeito.

    "A corrente ecltica representa o primeiro movi-mento filosfico plenamente estruturado no Brasil (...).

    No meio sculo transcorrido entre as dcadas de 30 e 70 inserem-se a formao, o apogeu e o declnio do ecletismo no BrasiL As sementes lanadas sob o manto da autoridade de Cousin, filsofo oficial na Frana de Lus Filipe (1831/1848), encontraram terreno frtil Se no chega a estruturar-se numa autntica corrente filos-fica, a doutrina configura plenamente o esprito da elite dirigente constituda durante este perodo. Sinnimo de simples justaposio de idias, perde, no Bras, toda e qualquer conotao negativa e adotado, quase universalmente, com a denominao de esclare-cido, qualificativo que visa sem dvida enobrec-lo. Mais que isto, a prpria vitria da conciliao no plano poltico, durante o Segun-do Reinado, atribuda ao estado de esprito que se identificava com o ecletismo."5

    5. PAIM, Antnio. Histria das Idias Filosficas no Brasil 1? ed., So Paulo, Grijalbo, 1967, pp. 75 e 104.

  • 34 O mito da imparcialidade: o ecletismo

    As idias deste filsofo menor, Cousin, espcie de hegelianis-mo dissolvido aos limites da inconsistncia, vieram a ser no ape-nas aquilo em que o esprito das elites dominantes se viram retrata-das, mas, sobretudo, as frouxas bases sobre as quais se fundou uma autntica ideologia da conciliao. Seus traos mais marcan-tes seriam: 1? - a desconfiana com os "sistemas", que seriam ca-misas-de-fora do esprito; 2? - a crena de que a "verdade" pode-ria ser o resultado de um mosaico montado a partir de inmeros pensadores, o que, alm de livrar-nos dos perigos dos sistemas, permitiria um enriquecimento indefinido, aproveitando-se de ca-da sistema o "melhor" - da a qualificao de "esclarecido"; dizia Cousin: "O que recomendo um ecletismo ilustrado que, julgan-do com eqidade e inclusive com benevolncia todas as escolas, pea-lhes por emprstimo o que tm de verdadeiro e elimine o que tm de falso"; 3? - finalmente, a crena tipicamente narcisis-ta e imatura de que, assim agindo, estaramos dando mostras de "esprito aberto", "esclarecido", no-dogmtico - mito que seria notvel relacionar com aquele da natural "bondade" do brasileiro, ou com os mitos da "cordialidade", da "democracia racial", das "re-volues sem sangue".

    No minha pretenso desenvolver aqui as peripcias histri-cas descritas pelo ecletismo entre-ns.6 Quero outra coisa. Me pa-rece que o ecletismo no foi entre-ns apenas um movimento, o primeiro a se estruturar, ou o simples reflexo de uma determina-da situao poltica e social. Produto direto da indiferenciao inte-lectual brasileira, que por sua vez produto da dependncia cultu-ral que at hoje perdura, creio que no ecletismo tenhamos revela-do muito mais do que normalmente se supe. manifestao de alguns traos bsicos de nosso carter intelectual e de nossa condi-o poltica, e continua vivo, ainda encontradio, prezado e vigen-te entre-ns. Saber como se manifesta, porque optamos por ele,

    6. Sobre o tema, alm da obra de Antnio Paim acima referida, o livro de Jos Hon-rio Rodrigues: Conciliao e Reforma no Brasil, um desafio histrico-cultural. Civilizao Brasileira, Rio de Janeiro, 1965, onde se faz uma anlise de nossa caracterstica "politica de conciliao" e a obra A Conscincia Conservadora no Brasil, de Paulo Mercadante, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2? ed., 1972

  • O mito da imparcialidade: o ecletismo 35

    onde se encontra, eis algumas coisas que urgiriam ser respondidas. Compe o que chamo de um mito brasileiro: o esprito da impar-cialidade.

    Fica claro neste mito que, se ainda no criamos qualquer po-sio filosfica nossa, demos variadas mostras de imaturidade inte-lectual, e, no ecletismo, retratamos nossa hesitao em assumir um ponto de vista que nos permitisse uma sntese original De res-to, reflexo da dependncia cultural que desde sempre nos acompanha.

    Gostaria de comear por uma afirmao bvia e altamente "ingnua": a de que o Brasil um "pas jovem". Esta expresso, que circulou com sucesso durante anos, ressalta nossa pujana vir-tual e grandeza ainda no realizada. Com a transformao histri-ca operada pela conscincia da dependncia, caiu em desuso. E a noo de "pas subdesenvolvido" ganhou cidadania.7

    Mas peo licena para usar a expresso num sentido mais sim-ples e elementar, prescindindo por ora das implicaes da depen-dncia para a devida compreenso da despersonalizao em que nos encontramos. Viso ressaltar to-somente que este pas foi des-coberto em 1500 - h 476 anos - mas que apenas em 1808, vin-do a Corte para o Brasil, ganhou alguns favores mnimos, sem os quais um pas no pode (sequer) pretender existir. E s em 1822 tornamo-nos formalmente independentes. Estes dados poderiam ser complicados para ganhar em consistncia, mas pretendo me li-mitar a isto: de.pas colonizado passamos a fazer parte dos satli-tes dos imprios que emergiam e, de fato e materialmente, nossa dependncia prolongou-se, assumindo diferentes formas, s vezes to sutis que chegamos a pensar, sem brincadeiras, que ramos li-vres. Resta, portanto, a constatao de que este pas tem uns cen-to e poucos anos, num critrio fraco e condescendente - e que te-ria ainda menos, caso o critrio viesse a ser mais severo.

    7. CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. Reviste Argumento, So Pau-lo, 1:6-24, out, 1973.

  • 36 O mito da imparcialidade: o ecletismo

    O jovem leva uma vantagem: ainda no se cristalizou em po-sies rgidas e defensivas. H, no jovem, a disponibilidade indis-pensvel ao trabalho criador: o gosto pelo novo, o risco do incer-to. Em oposio, o passar do tempo se acumula sob forma de rigi-dez e fracasso na criao. Mas cuidemos da concluso apressada: a de que o jovem seja por si mais criador do que o idoso. E cuide-mos da facilidade oposta: a de que s o homem "experiente" se-ja capaz de criar. No. O tempo no experincia. Pode ser esclerose.

    Numa viso ligeira, envelhecer seria um caminhar no senti-do do futuro - o que no corresponde verdade. Caminhar em direo ao futuro a caracterstica do jovem, ocorrendo envelheci-mento quando se inicia o processo inverso: a volta ao passado, sua preservao, dele se fazendo sempre mais dependente. No que en-velhece, o risco o hbito - a infindvel repetio daquilo que foi antes uma resposta criadora. O perigo a tenso, inerente ao pas-sado, de buscar perpetuar-se, oferecendo as mesmas respostas a questes que agora so outras.

    Esta, a ameaa do passado. Mas h outro ngulo. O passa-do no se acumula somente sob a forma de hbito, mas, virtual-mente, introduz a possibilidade da memria. E se o hbito faz com que se repitam mecanicamente respostas caducas, a memria o potencial criador sempre disponvel com o qual a histria pode contar.

    O jovem est, num certo limite, livre de um passado que ame-ace escraviz-lo - simplesmente por no existir ou por no ter atin-gido a intensidade necessria. Na aparncia - como se isso no dependesse de uma posio do esprito - , sendo o Brasil um pas jovem, estaramos menos prximos dos perigos da esclerose. Mas com o que podemos contar? J foi dito, de resto, ser o Brasil um pas sem memria. Nosso ceticismo destruiria esta considerao -no sentido de levar em conta - com relao ao passado. Parece que estamos condenados a sempre partir do zero.

    Desta forma, um pas jovem pode ser apenas infantil. Se no corre o risco da esclerose, no conta com o potencial criador da memria.

    neste contexto contraditrio - na verdade apenas vital -que se d (ou no) o ato de assumir-se uma personalidade defini-

  • O mito da imparcialidade: o ecletismo 37

    da, propondo uma Filosofia. Foi concretizando esta personalida-de assumida que ao longo da histria o esprito criou a si mesmo. Por isso, a questo de uma Filosofia brasileira encontra-se com a urgncia de ter que assumir uma Razo Brasileira.

    Para que isso ocorra, precisamos atinar que o passado, o pre-sente e o futuro no so coisas dadas, mas criadas - primeira con-dio de pensamento original. O passado, na aparncia, dado -do ponto de vista em que nos encontramos. Mas ele mesmo uma questo em aberto: foi feito e poder ser recriado em inme-ros sentidos se encarado como memria. S na medida em que assumirmos a essencial temporalidade e contingncia inerente ao processo de criao de um esprito brasileiro, assumindo ao mes-mo tempo nossas contradies e alienaes, tomaremos posse de uma das condies do pensar brasileiro: nossa posio.

    Algumas constataes de fato. No h, em Filosofia, algo que seja uma posio brasileira. H uma iluso: a de que possamos, im-parcialmente, usufruir benefcios das mais diversas reflexes estran-geiras, delas retirando o "melhor". Desde sempre visamos extrair do pensado por outros aquilo que poder nos ser til - e isto cons-titui o mito da imparcialidade. Entre-ns, atitude freqente bus-car dissolver oposies, justapondo subjetivismo e objetivismo, ma-terialismo e idealismo, racionalismo e empirismo - como se tal ati-tude pudesse, impunemente, ser adotada. Sem nos cobrar o pre-o daquilo que poderamos ser. Assim, nos falseamos, nada sendo. E nada assimilamos. A condio mnima de assimilao a existn-cia prvia de uma estrutura que assimile. No existe assimilao neutra, na qual s a objetividade bruta do conhecido importe. Exi-ge-se a presena do fator originante do conhecimento: a posio do sujeito.

    E pretenso ingnua querer tudo assimilar, dissolvendo oposi-es, extraindo de cada um o "melhor". Para extrair o "melhor", necessrio seletividade - e esta envolve um critrio. Logo, uma

  • 38 O mito da imparcialidade: o ecletismo

    posio. O vazio nada assimila. E o que determinaria o "melhor"? Fator originante do conhecimento, a posio do sujeito

    quem organiza a seletividade. A distino entre um conhecimento crtico e um conhecimento ingnuo como o praticado no Brasil esta: a conscincia clara dos critrios adotados. S a partir da cons-cincia de um critrio que deixo de me encontrar diante de um universo neutro, fazendo surgir um universo cognoscveL S assim haver assimilao, no havendo apenas coisas a serem assimila-das, mas uma atividade criadora do sujeito que assimila.

    Se no ecletismo se fizer presente algum critrio, deixa de ser ecletismo, passando a ser uma posio caracterizada pelo critrio existente. Alm de ingnuo, o ecletismo impossvel. Como sem-pre haver, por mais obscuro, algum critrio, o ecletismo determi-na um tipo de Filosofia enlouquecida, que no sabe de si. Pois fa-zer Filosofia colocar em questo os critrios, os pressupostos com os quais trabalho. Uma Filosofia no filosofada, eis a estranha coi-sa - numa estranha expresso - que se tem praticado no Brasil. Nosso sono dogmtico consiste em assumirmos uma posio que , ao mesmo tempo, ingnua e contraditria.

    Ausncia de critrios crticos, alm de absurda e catica, no pode ser confundida com abertura intelectual e menos ainda com "esclarecimento". E despersonalizao intelectual e produz o mais baixo dos produtos culturais: o ecletismo e seu pragmatismo cego. Essa indiferenciao intelectual gerou um monstrengo em termos de atitude filosfica: evitar oposies e dissolv-las, ao invs de en-frent-las e resolv-las. Srgio Buarque de Holanda deu expresso a este fenmeno: "E freqente, entre os brasileiros que se presu-mem intelectuais, a facilidade com que se alimentam, ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que susten-tam, simultaneamente, as convices mais dspares. Basta que tais doutrinas e convices se possam impor imaginao por uma rou-pagem vistosa: palavras bonitas ou argumentos sedutores. A con-tradio que porventura possa existir entre elas parece-lhes to pouco chocante, que alguns se alarmariam e se revoltariam sincera-mente quando no achssemos legtima sua capacidade de aceit-las com o mesmo entusiasmo. No h, talvez, nenhum exagero

  • O mito da imparcialidade: o ecletismo 39

    em dizer-se que quase todos os nossos homens de grande talento so um pouco dessa espcie".8

    O que no quer dizer, sendo impossvel, que no tenhamos critrios seletivos. Mas so da pior espcie, sem conscincia de si, sem reflexo ao nvel crtico. No usamos nossos critrios, somos suas vtimas. So formados por algo prximo do meio-termo (on-de, j foi visto, no est a virtude, mas o medocre), qualquer coi-sa que gostamos de chamar de bom senso, ponderao, sensatez, e que eu prefiro chamar de "senso impensado".

    Um pas sem memria no pode ficar esperando que um pas-sado caia do cu: precisa constru-lo, pois mesmo um passado se constri - quando o fao para mim. E o paradoxo se dissolve: cons-tnimos um passado voltando-nos para o futuro, escolhendo um projeto, um ponto de vista. Nossa posio.

    Este gesto nos faltou: apostar. Lembremos que assumir uma posio no fechar-se ao real, mas condio de realidade. Assu-mir uma posio no significa embotamento. , ao contrrio, con-dio de existncia, o momento em que passamos a conviver com a dvida. O contrrio a despersonalizao na qual nos encontra-mos, atados a nosso dogma peculiar: a ingnua imparcialidade.

    Todo pensamento parciaL A partir do momento em que se pe. delrio pretender um conhecimento absoluto, imutvel. E aqui emerge outra de nossas contradies: de clicos, nos revela-mos dogmticos. Nosso ecletismo surgiu por no admitirmos limita-es - querendo de tudo o "melhor", o saber completo - , pelo fa-to de sonharmos com a ilimitao. Ora, Plato o ponto de vista de Plato - nem poderia ser de modo diverso. Esta, a tragdia e a fora de todo pensamento criador.

    O dilema no assumirmos ou no uma posio, mas ssu-mi-la com esprito crtico. O esprito da dvida, que sempre foi, quando a Filosofia soube ser fiel a si mesma, a essncia do pensa-

    8. BUARQUE DE HOLANDA, Srgio. Razes do BrasL 7? ed., Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1973, p. 113.

  • 40 O mito da imparcialidade: o ecletismo

    mento. Da o "mito da imparcialidade" revelar, por detrs da ms-cara de iseno e objetividade, uma fraqueza primria: a ausncia de risco. A incapacidade de ver no conhecimento um empreendi-mento a mais, uma inveno a ser levada a termo. A tentativa de dissolver oposies. Dar um jeito. No radicalizar.

    Isso revela um dos elementos de nosso ceticismo: a autocrti-ca impiedosa e castradora de um personagem que ainda no se li-bertou do imprmatur europeu. Nosso folclore cultural est cheio, na msica e no romance, no esporte e no teatro, de momentos em que, aplaudidos na Europa, nos sentimos altamente satisfeitos, pois a Europa novamente se curva diante do Brasil Na verdade isso no revela, na cifrao do inconsciente - ou da m-f, se qui-serem - , a submisso da Europa ao Brasil, mas nossa imatura ale-gria por termos sido reconhecidos e aceitos pela Grande Me. No fundo, medo de assumir nossa posio. Medo de desligar-se da cultura europia, dela suplicando reconhecimento.

    Entre-ns, portanto, a pobreza filosfica de um pas no ape-nas jovem, mas sobretudo imaturo. Que ainda no conseguiu levar-se a srio, preso a modelos de seriedade providenciados estranha-mente. No "mito da imparcialidade", recusamos estar no Brasil. E s deste estar poderamos extrair um critrio seletivo nosso, rei-vindicando nosso ser.

    Se nada fizermos, corremos o risco de continuar sendo ape-nas um pas jovem que no sabe a que veio, nem o que tem a di-zer. Por medo, omisso, covardia. E jamais inventaremos nossa posio, nada vindo a ser. Sem termos providenciado nossa exclu-siva problematicidade.

    E Filosofia, entre-ns, no ser feita.

  • Captulo 6 O mito da concrdia: o jeito

  • 42 O mito da concrdia: o jeito

    A gente d um jeito. (Do povo)

    0ufanismo brasileiro privilegia um objeto: o jeito. voz corrente que damos um jeito em tudo, do existencial ao poltico, do fsico ao metafsico. E no paramos a: ficamos muito satisfeitos em ser, pelo que nos parece, o nico povo capaz de to saudvel atitude.

    Creio que o elemento constitutivo do jeito seja a no-radicali-zao Um distanciamento das posies a serem tomadas, o que combina com nosso modo oblquo de olhar as coisas e nosso pecu-liar ceticismo. Um homem que se exalta perde a capacidade de "dar um jeito". Um pas que entra num processo revolucionrio no soube descobrir o "jeito" de evitar coisa to desagradvel saber ver: para o brasileiro - futebol posto de lado - , o mximo ridculo ser apanhado "crendo". Seja em poltica, Filosofia ou re-ligio. Nunca nos sentimos mais estpidos do que no momento em que algum aponta a nossa radicalizao, nosso empenho num projeto. Envolver-se determina a perda daquilo que confundimos com esprito crtico: a imparcialidade da Razo Tupiniquim. Nu-ma atitude dissolvente que sempre nos acompanha, ao modo de manter um p atrs, nos afastamos das posies a assumir. Da, o jeito.

    Nasce o esprito conciliador. Afinal, as coisas da existncia, seja pessoal ou social, no esto a para serem levadas to a srio. Conciliador e obediente, cordial, o brasileiro jamais conduz as ten-ses quele nvel em que geram um limite sem retorno.

  • O mito da concrdia.' o jeito 45

    O que fazer diante de uma condio, a existncia, que conti-nuamente se apresenta como urgente, exigindo que se assuma uma posio? Existir radicalizar. Radicalizao que ser posterior-mente negada, num processo indefinido. Posio estar e preten-der. Necessariamente uma escolha e uma radicalizao. No pos-so ver a vida como espetculo, como no a posso ver do "ponto de vista da eternidade".

    Resta saber: a gente d um jeito?

    Justificamos nosso abandono ao ecletismo como antdoto ao fanatismo, j que abominamos solues radicais. Louvvel inteno, se supusermos que solues possam ser no-radicais. Jeitosamen-te buscamos a conciliao, esquecendo e dissolvendo oposies.

    Um exemplo: a burocracia. Esta lamentvel coisa, exigida pe-la mquina que hoje nos utiliza, exerce uma tirania quase comple-ta. O princpio da burocracia, no entanto, no apenas a mecani-zao - fator inerente a seu processo - , mas algo ainda anterior: a desconfiana. Ou: a falncia do humano diante do mecnico. O fator alienado na burocracia minha veracidade, mesmo a mais primitiva, quando digo: eu sou eu. Burocraticamente, s sou este "eu" que afirmo se o nego atravs de uma identidade. O reconhe-cimento da burocracia recai sobre o eu que no sou. Aquele 3 por 4.

  • 44 O mito da concrdia: o jeito

    Diante disso, o jeito. O extremo formalismo, que encontra-mos no social, recebe como resposta o jeito. O ascensorista d um jeito e no v o cigarro que acendi O guarda rodovirio d um jeito se meu exame de vista est vencido. Fao matrculas con-dicionais, a prpria institucionalizao burocrtica do jeito.

    Nosso ceticismo guarda a noo essencial de que por detrs das formalidades se encontram valores mais respeitveis do que um "eu" 3 por 4. O jeito , portanto, uma maneira marota de des-respeitar a extrema formalidade em respeito a valores maiores.

    Associado, porm, ao muito nosso "deixa como est para ver como que fica", o jeito nos tem conduzido a um vazio existen-cial dos mais estreis. custa de sempre dissolvermos oposies, acabamos sem qualquer posio, vtimas disto que j identificamos: o senso impensado. Esta indiferenciao existencial na qual nos encontramos talvez explique o tipo de vtimas dceis que nos habi-tuamos a ser dos colonizadores, dos senhores de engenho, dos co-ronis, das potncias estrangeiras, dos politiqueiros e dos regimes ditatoriais.

    A indiferenciao do senso impensado tanto intelectual quan-to poltica. Afinal, coisas indissociveis. Srgio Buarque de Holan-da mostrou, citando Holanda Cavalcnti - "Nada h mais pareci-do com um saquarema do que um luzia no poder" - , que nada distinguia realmente os dois grandes partidos do tempo da Monar-quia, salvo rtulos. "Na to malsinada primazia das convenincias particulares sobre os interesses de ordem coletiva revela-se nitida-mente o predomnio do elemento emotivo sobre o racional"9

    Embora a observao seja precisa, no me parece suficien-te. Embora a constatao esteja correta, o fundamento desta crti-ca parece fraco. Analisar a partir do pressuposto de que "somos um povo pouco especulativo" coisa perigosa e, de resto, falsa. Representa, em ltima anlise, introjetar a dependncia. Todos sa-

    9. BUARQUE DE HOLANDA, Srgio. Op. ciL, p. 137.

  • O mito da concrdia: o jeito 45

    bemos que no o povo o encarregado da direo poltica, assim como no o povo que, por consenso, escreve obras de Filosofia. So elites. As elites polticas.e intelectuais. O que precisaria ser ressaltado o estado de alienao destas mesmas elites - do que, seja dito, Srgio Buarque de Holanda no esquece. O desapego da realidade em volta, a falta de identidade com o povo e a preo-cupao incestuosa com uma distinta e idealizada Europa fizeram com que as elites polticas, atravs de seus representantes intelec-tuais e cuidando de seus interesses, ficassem inteiramente alheias a uma realidade brasileira. Pois a elite brasileira sempre teve hor-ror ao que a circundava. Preferiram esquecer isso, que era feio e chocante, e voltaram-se para as questinculas metafsicas, refugian-do-se "n mundo ideal de onde lhes acenavam os doutrinadores do tempo. Criaram asas para no ver o espetculo detestvel que o pas lhes oferecia".10

    O resultado concreto foi a importao, pelas elites dominan-tes, de modelos polticos, econmicos e educacionais inteiramente estranhos s nossas condies e quilo que somos e viemos a ser. No to estranhos, porm, aos interesses destas elites.

    Envolvidas em lutar por interesses internos e/ou externos, as elites mostram uma desvinculao to mais sensvel quanto maior a teorizao "ornamental" utilizada para justificar sua ao e po-der. Da a enxurrada verbalstica que sempre envolveu, entre-ns, a discusso poltica e de idias. O discurso brasileiro no apresen-tou nunca aquela caracterstica de buscar um desvelamento de nossas urgncias e importncias, antes pelo contrrio.

    Se um saquarema idntico a um luzia, a indiferenciao de-nuncia a inconsistncia de nosso ecletismo, produto de senso im-pensado. Os partidos polticos tm apresentado entre-ns a oposi-o mais estranha: nenhuma. Somemos a isso a "jeitosidade", a hbil conciliao de uma teoria grandiloqente com uma realida-de simplesmente esquecida. Nesta alienao, as origens da Razo Ornamental, da teorizao barroca e sem compromisso com o real - exceto quando se trata de legitimar o vigente.

    10. Idem, p. 140.

  • 46 O mito da concrdia: o feito

    Obra de uma elite desvinculada das urgncias histricas do pais, os partidos polticos em nada se diferenciam, exceto pelos in-teresses dos grupos que representam. "No Imprio de D. Pedro II foi o ecletismo recebido com aplausos gerais, graas inrcia pol-tica daquela sociedade escravocrata e semipatriarcal, onde a luta pelo poder no passava de intrigas palacianas, onde os partidos no representavam nada de substancial, sendo manejados displicen-temente por um monarca bocejante e onde, finalmente, por essa poca, o Marqus do Paran formava o mais heterogneo e amor-fo dos governos, a que a histria batizou precisamente com o pre-dicado prprio da Filosofia ecltica, como o Gabinete da Concilia-o."11

    Inconsistente e indiferenciada, nossa posio poltica geraria um novo fanatismo: o da concrdia. No comportando em si o choque de idias, buscando antes dissolv-lo, as divergncias devem ser excludas. Oliveira Viana acerta ao dizer que entre-ns "o ad-versrio poltico considerado pelo vencedor um verdadeiro ou-tlaw". No estando prevista a oposio real - posto que o ecletis-mo suprime a noo de oposio - , os que se atrevem a radicali-zar passam a ser olhados com hostilidade. Se por um lado o brasi-leiro atura de tudo - chegando, no carnaval, a aturar o prprio avesso da realidade sria - , por outro lado hostiliza, de modo pri-mrio, aquilo que questiona seus comodismos de instalao. E ns, pretensamente tolerantes e esclarecidos, os eclticos de esprito aberto, mostramos nossa verdadeira face: a intolerncia. Uma into-lerncia sria. Aquela que constitui, por indiferenciao intelectual, as igrejinhas de polticos, artistas, filsofos de academia, grupos ri-vais, com suas trocas de favores, elogios, influncias e idias inevi-tavelmente vazias. Isso casa perfeitamente com a intolerncia pol-tica. As igrejinhas de intelectuais so os PSDs ltero-musicais.

    Esta, a expresso mxima de nosso pretenso esprito eclti-co e conciliador: o fanatismo do mesmo. Os grupos so lugares de privilgio das elites na partilha do poder. Nesta priso primria

    11. VITA, Lus Washington. Escoro de Filosofia no Brasil Coimbra, Atlntida, 1964, p. 51.

  • O mito da concrdia: o jeito 47

    que o grupo fanatizado, a viso mgica emerge. Divergir cri-me. Discordar subverso. Perguntar j um ato de desobedin-cia. Isso no pas do jeitinho, do homem cordial, do carnaval eter-no. Com efeito, o real no apresenta a linearidade das distines lgicas. Nele, o indiferenciado, o inconsciente, o que mais atua e sob a forma mais arcaica.

    Urgente, pois, que se faa a leitura alm das aparncias dos mitos com os quais gostamos de nos revestir de modo narcisista. Alm da cordialidade, do esprito aberto e conciliador; so mitos e apresentam algo comum aos mitos: estruturam uma viso de mundo e pretendem ser inquestionveis. Gerados pela ausncia de uma posio crtica, so produto da indiferenciao intelectual Eis por que, ausente a crtica, seu contrrio emerge sob a forma de intolerncia, sectarismo, partidarismo estril, represso, censu-ra - um campo frtil para a atuao da autoridade irracional e pa-ra os regimes que dela faam uso.

    Quanto Filosofia, grave que entre-ns tenha se recusado a cumprir a misso que lhe seria prpria: ser o centro da conscin-cia crtica, da negao de nossas falsificaes existenciais. A inex-pressividade da Filosofia no Brasil se deve ao fato de ocorrer, sem revolta, ao nvel de represso difusa no todo social. E esta desper-sonalizao, ainda no pensada entre-ns, que destri a possibilida-de de um pensamento nosso. Se esse pensamento quiser existir, dever traar para si um caminho marginal, ousar, sair do srio -coisas que vo contra predisposies assumidas ao longo de tan-

    to tempo que, hbito arraigado, nos aprisionam. Assim, no um pas jovem, mas apenas infantil - e isso no se refere ao povo, mas queles que dizem falar em seu nome. E pas ameaado de envelhecimento precoce, j que vtima de uma histria dependen-te, devedor do passado.

    Se quiser sair do bolor universitrio e acadmico, a Filosofia precisa realizar entre-ns a conquista de cidadania crtica, radicali-zando nossa posio.

    Quanto a isso, no h como dar jeito.

  • Captiub 7 Originalidade e jeito

  • Originalidade e jeito 49

    Sempre enfezei ser eu mesmo. Mau mas eu. OSWALD DE ANDRADE

    (Ponta de lana)

    Se nos limitarmos superfcie, o jeito promotor de uma atitude de tolerncia e de abertura intelectual Como expresso da Razo Conciliadora, um dos produtos mais lamentveis, de potencial desptico e conservador.

    H um retrato possvel, cruel mas verdadeiro, do praticante de Filosofia no Brasil - a imensa maioria composta de professores, tipos entre os quais predomina, a despeito das alegri-cas pretenses reformistas (idealizadas, de resto), o esprito mais retrgrado e legitimador do vigente. Neste retrato vemos algum sempre disposto a encontrar analogias - as quais pretende brilhan-tes - entre as teorias mais opostas e irreconciliveis, fazendo sua tradicional salada filosofante, onde, em propores idnticas ou no, entra algo de tomismo e de Comte, de Comte e de Marx, de Marx e de estruturalismo, de estruturalismo e Marcuse.

    Ocorre, porm, uma coisa estranha: o mesmo homem que rea-liza a mais dissolvente conciliao, urra de dio contra os oposito-res. A maldosa crtica fora de propsito, dirigida contra pessoas e no contra idias, passa a ser ento a arma de que se vale este cu-rioso arrivista, o intelectual tupiniquim. Somos incapazes de convi-ver e dialogar com algum que discorde de nosso modo de ver -embora sejamos capazes de conviver com autores e obras mutua-

  • 50 Originalidade e jeito

    mente excludentes, adotando a todas com igual entusiasmo. No que se percebe pouca razo.

    H razo, porm. Mesmo o irracional tem uma Razo atra-vs da qual podemos dele nos dar conta. A atitude conciliadora ausente de critrios, de intuies geradoras de pensamento. Pen-sar unificar. O esforo secular da Filosofia tem sido a tentativa, continuamente renovada, de apreender o real num nico ato de saber. Comumente - e isto ostensivo entre-ns - confundimos o filsofo com aquele sujeito que sabe muitas coisas e que discur-sa sobre tudo. Em suma: o filsofo tido como o homem de mui-tas idias. Equvoco total. O filsofo o homem de uma idia s. Idia que, por sua virtualidade criadora, capaz de desenvolver no esprito uma viso unificada do mundo.

    A razo desse nosso despotismo intelectual tavez seja esta: se um objeto qualquer submetido Razo Conciliadora apresen-tando contradies, a nica coisa a fazer suprimir a oposio. Explica-se: se a Razo Conciliadora no dispe de critrios explci-

    j tos para pr em questo situaes que lhe escapam, se no sabe dar razes de suas alternativas, s lhe resta se dirigir ao portador da idia e no idia ela mesma. Impossvel enfrent-la.

    Da a ocorrncia de variados modismos entre-ns. Indiferen-I ciada e personalista, nossa "Razo" saltita de galho em galho, re-

  • Originalidade e jeito 51

    produzindo posies que, como na recente moda estruturalista, nada tm a ver com qualquer urgncia brasileira. H muitos anos calada, a "inteligncia" brasileira voltou-se para um formalismo delirante, novidadeiro e pernstico, e "esqueceu" o que a fazia ca-lar. Esquecimento que ocorre diretamente ligado ao fato de que, no dispondo de critrios assumidos criticamente, a problemtica filosfica no Brasil no se gera por uma problematizao interna e vinculada s urgncias do pas, tese j defendida por Sylvio Ro-mero em 1878. "Na histria do desenvolvimento espiritual no Bra-sil h uma lacuna a considerar: a falta de seriao nas idias, a au-sncia de uma gentica. Por outros termos: entre ns um autor no procede de outro; um sistema no uma conseqncia de al-gum que o precedeu. (...) A leitura de um escritor estrangeiro, a predileo por um livro de fora vem decidir a natureza das opi-nies de um autor entre ns. As idias dos filsofos, que vou estu-dando, no descendem umas das outras pela fora lgica dos acon-tecimentos. (...) que a fonte onde nutriam suas idias extrana-cionaL"12

    bem verdade que, desastradamente, aps fazer esta consta-tao de grande valia, Sylvio Romero acrescenta: "No um preju-zo; antes equivale a uma vantagem".13 E passa a fantasiar em tor-no de um "cosmopolitismo" que o impediu de determinar, j em 1878, a origem real da constatao que fizera. Mas seria pedir de-mais, talvez.

    Estas observaes - conciliao ou supresso do pensamen-to alheio - nos conduzem seguinte caracterstica da Razo Orna-mental: a vigncia entre-ns de coisas que, em dados momentos, so de bom tom ler, comentar ou pensar. Tendo se furtado a res-ponder a urgncias histricas nossas, a grande crise do intelectual tupiniquim viver mendigando considerao e reconhecimento. Mas busca este reconhecimento numa possvel identificao com pensadores de naes "mais cultas", equvoco atravs do qual bus-

    12. ROMERO, Sylvio. A Filosofia no Brasil: ensaio crtico. In: Obra Filosfica. Rio de Janeiro, Jos Otympio, 1969, p. 32

    13. Idem, ibidem.

  • 52 Originalidade e jeito

    ca aceitao. Quer ser aceito sem perceber que ser aceito mor-rer para a Razo. Querendo ser srio - para ento ser levado a srio -, policia-se: o que pensar, o que ler, o que escrever. Seu es-quecimento consiste nisto: esqueceu-se de que pretende ser reco-nhecido pelo que no-. Seu pensamento, portanto, ser puro or-namento.

    Duas so as possibilidades de defesa desta Razo alienada: ou conciliar ou suprimir. Expresses de seu abandono do real, a conciliao e a supresso no se realizam com relao s coisas circundantes, mas com as teorias que versam sobre o real. A Ra-zo Conciliadora lida com razes anteriormente dadas do real -no com o real enquanto taL O plo que centraliza nossa Razo so teorias enquanto verbalizaes, posto que o real sobre o qual versam o estrangeiro.

    Esta, a razo pela qual, em matria de Filosofia, viramos a ser fazedores de misturas ideolgicas. Por exemplo: "A tarefa de conciliar Marx e Comte seria daquelas a que Lenidas de Rezen-de se entregaria de modo permanente e persistente".14 Despreza-da a desagradvel realidade que nos circunda, restou ao intelec-tual brasileiro fazer Filosofia como quem, monta um quebra-cabe-a: buscando o melhor ajuste (conciliao) possvel e rejeitando (supresso) as peas mais rebeldes. Dando um jeito. Consideran-do to-somente os "verbos" e suas possveis ajeitaes. Tomadas em lugar da realidade, as idias filosficas no Brasil passaram a viver, dentro da pirotecnia carnavalesca daquilo que chamo de Razo Ornamental, como seres em si. Ou, como teria dito Jos Maria Alkmim - alis, concretizao quase perfeita da Razo Or-namental - "importam as verses, no os fatos".

    Havendo concluso, esta simples. Se no assumo com clare-za posies vinculadas situao em que me encontro, s me res-ta reagir primitivamente diante do que escapa minha possibilida-

    14. PAIM, Antnio. Op. cit, p. 22R

  • Originalidade e jeito 53

    de de conciliao: suprimindo. S levando isso em conta podere-mos utilizar a oposio entre o "emocional" e o "racional" para compreendermos o carter brasileiro. A supresso carregada de emoo na medida em que representa o retorno de um conflito que foi esquecido pela Razo Ornamental.

    Reconheo que seja irritante aceitar o jeito - objeto de nosso deslumbrado ufanismo - como retrato de uma alienao in-telectual e poltica. Mas, para alm de qualquer envolvimento emo-cional, devemos reconhecer que o jeito, se pode dar origem a um tipo de humanismo tipicamente brasileiro - ainda no precisado, de resto - , tambm responsvel pela rudimentaridade de nossas posies. O que se revela em nossa busca de semelhanas, na ten-tativa de ver em tudo o "mesmo", quando da essncia do espri-to apreender em tudo as oposies no interior de um processo. Ou seja: o diverso. Nesta paixo pela "mesmidade", a falta de con-sistncia do pensar entre-ns. Eis por que qualquer Razo, para vir a ser expresso brasileira, precisar dar-se conta desta ingenui-dade: ver em tudo o "mesmo". Deixada no esquecimento, esta ati-tude nos impede de chegar ao irredutvel das coisas. Aquilo que elas tm delas prprias.

    Por a se percebe que no ser com o acmulo de dados, te-ses, argumentos que se chegar Filosofia. Urge buscarmos suas razes noutra parte. De fato, chegamos Filosofia atravs de algo mais simples e primitivo, uma originalidade anterior a qualquer eru-dio: a tragdia. atravs da tragdia que chegamos s urgn-cias de nossa posio.

    Se as origens da Filosofia se encontram na tragdia, fcil perceber por que tantas pessoas fogem dela. Fuga que procede pela supresso. Existindo duas formas de supresso, uma delas pe-la simples afirmao. Me explico. Ou abandono a Filosofia como algo metafsico e me dispenso de faz-la, ou a afirmo sem mais, como se seu existir fosse bvio, o que tambm me dispensa de fa-z-la, pois j a encontro feita. Estas duas posies tm isto em co-mum: ambas exigem da Filosofia uma importncia em si.

    Ora, filosofar dar-se conta da Filosofia. Dando razes de sua existncia e assumindo os riscos seguintes. Ela no tem qual-

  • 54 Originalidade e jeito

    quer importncia que possa se impor a mim antes do momento em que eu me importe. Ao darmos a existncia da Filosofia co-mo bvia, ela se v transformada em sistema acabado, ao modo de um arquivo de primeiros socorros existenciais. Se dou sua im-portncia por suposta, a tarefa do pensamento se empobrece, re-duzindo-se busca de um bom ajuste entre frmulas e modelos, estruturas e conceitos, mais ou menos como me comporto diante da necessidade de cumprir risca uma receita de bolo. Irei julgar que ao menos virtualmente - como o bolo da receita - ela j se encontra l, acabada. Mas no se esgota a a falncia desta atitu-de. Se a pressuponho feita, jamais a fao minha. E seria justamen-te nisso que consistiria dar-lhe existncia.

    A supresso da questo a respeito da Filosofia ou a supres-so da prpria Filosofia, como, por exemplo, encontramos no to-mismo e no neopositivismo, explicariam por que, conciliando, ja-mais tenhamos chegado originalidade.

    Conciliao sempre do prvio, jamais do original - no ha-vendo sentido na aplicao da palavra conciliao no ltimo caso. Conciliar exige admitir algo como pressuposto; por exemplo: uma importncia em si, que existir ou no. Da a incompatibilidade to-tal entre uma originao da Filosofia brasileira e a atitude de con-ciliao. Tida como prvia, jamais ser original.

    Uma Filosofia condenada a no ser original est condenada a no ir s origens, pois isso que a palavra originalidade signifi-ca. No o novo, mas aquilo que lida com as origens. Nada, portan-to, poder ser dado como prvio. Tudo deve estar em questo. Esta, a tragdia.

    E inteiramente estranha Filosofia uma atitude de concilia-o que tome idias como coisas dadas em si mesmas. Sem a crti-ca desta questo, qualquer esforo de pensamento estar, entre-ns, a servio da Razo Ornamental. Mais simplesmente: enquan-to a Filosofia no Brasil no encontrar suas condies de originalida-de, no poder, est visto, ter origem.

  • Caputilo 8 A Filosofia entre-ns

  • 56 A FUosoa entre-nos

    Babei 'Filosofia latinoamericana' en el momento y en la medida en que el pensar lanoamercano logre articular su propio discurso de lo universal situado, encontrar d lenguaje inhrente a su propia situation histrica.

    MARIO CASALLA (Razn y liberation)

    Creio que possamos admitir pacificamente a existncia de Filosofia no Brasil, clarificado o sentido deste termo. H Filosofia no Brasil porque ela aqui se encontra entre-ns, manifestando sua presena. Talvez um corpo estra-nho, mas presente. No s contamos com documentos

    a respeito, documentos com data marcada, como encontramos re-vistas e livros que versam sobre seus temas. Aqui realizam-se con-gressos, encontros, debates, e nos currculos universitrios a Filoso-fia consta obviamente - cada vez menos, mas consta. Tudo isso in-dica que a Filosofia est entre-ns. Como um parente distante, uma tia talvez, que chega e vai ficando -mas, seja como for, entre-ns.

    Esta presena e seu carter se evidenciam se procurarmos extrair o negativo das seguintes palavras de Lus Washington Vita: "De fato, cumprindo seu destino e sua vocao, o pensamento bra-sileiro, mais do que criativo, assimilativo das idias alheias, e, ao invs de abrir rumos novos, limita-se a assimilar e a incorporar o que vem de fora. Da a histria da Filosofia no Brasil ser, em geral, uma histria da penetrao do pensamento alheio nos reces-sos de nossa vida especulativa, ser, em suma, a narrativa do grau

  • A Filosofia entre-ns 57

    de compreenso, da nossa capacidade de assimilao nas diferen-tes pocas e do nosso quociente de sensibilidade espiritual".15

    Em termos de retrato, perfeito. Mas creio que Lus Washing-ton Vita no conseguiu extrair do negativo que tinha nas mos a revelao verdadeiramente significativa. Afirma que "cumprindo seu destino e sua vocao" - o que equivale a dizer que existe ins-crito em algum cu transcendental algo que seja o "destino" e a "vocao" do pensamento brasileiro. Ao contrrio, vejo a a confir-mao de que, manifestao de um pas dependente, nossos inte-lectuais assumiram ao limite o papel que lhes reservou a condio de colonizados: serem assimflativos. Introjetou-se aqui a funo do dependente: compreender as idias alheias e, curiosamente, re-duzir a histria da Filosofia no Brasil narrativa de nossa "capaci-dade de assimilao" e de nosso "quociente de sensibilidade espiri-tual", quando, numa adequada compreenso histrica, caberia, is-to sim, extrair desta constatao o significado mais profundo: os modos de falsificao dos quais temos sido vtimas e co-autores. "O simples fato da questo (como ser original) - nota Antonio Candi-do - nunca ter sido proposta revela que, nas camadas profundas da criao (as que envolvem a escolha dos instrumentos expressi-vos) sempre reconhecemos como natural a nossa inevitvel depen-dncia."16

    Com a naturalidade com que esquecemos de ser originais, deixamos de observar que um pensamento alheio se enraza e tem em mira uma situao histrica diversa daquela na qual nos encon-tramos. O que se envidencia pela preocupao de Lus W. Vita com nosso "grau de compreenso" do pensamento alheio. Esque-cemos igualmente que idias vitais para um europeu ou norte-ame-ricano podero ser aqui meros ornamentos intelectuais, desfibra-dos e mambembes.

    Seja como for, h Filosofia entre-ns. Lembro, no entanto, que isso no esgota a problemtica a respeito de uma Filosofia brasileira, propondo, no mais das vezes, seu avesso: os sinais de

    15. VITA, Lus Washington. Op. t , p. 9. 16. CANDIDO, Antonio. Op. cit, p. 8.

  • 58 A Filosofia entrens

    seu esquecimento. Carentes de melhor distino entre estas duas questes - Filosofa entre-ns e Filosofa nossa - , encontramos em nossos historiadores de idias uma marca constante: a quase totalidade do que se escreveu sobre o tema baseia-se num equvo-co primrio. Este: confundir o valor ou existncia de livros de Filo-sofia escritos por brasileiros com o valor ou existncia de uma Filo-sofia brasileira. Eis o que permitiu a Lufe W. Vita a estarrecedo-ra afirmao: "H Filosofia num pafe quando existem nele filso-fos".17 O autor obscurece e embaralha a questo, confundindo os dois problemas. Assim, chega a concluir que "por isso podemos afirmar que h Filosofa brasileira"16 sem o menor sobressalto.

    Este, o equvoco bsico sobre o qual elaborou toda espcie de ufanismo embandeirado ou pessimismo diluidor - conforme se julgue estarem as obras entre-ns produzidas altura ou no das estrangeiras. Pretendeu-se que a constatao de uma Filosofia en-tre-ns fosse critrio suficiente para a inferncia de que existe uma Filosofia brasileira. Que existam autores de obras filosficas entre-ns no pode ser objeto de dvida. Basta consultar alguns catlo-gos. Que tais autores sejam, em alguns casos, do melhor nvel, tam-bm no pode ser contestado. Ocorre que isso no diz respeito essncia da questo aqui levantada. Na verdade nunca se pergun-tou, a srio, quais as condies de uma Filosofia brasileira, limitan-do-se a sondar, de modo vicioso, o valor de autores que aqui escre-vem ou escreveram.

    Elaborando em cima de equvocos desta ordem, ocorreu nas pginas da Revista Brasileira de Filosofa19 um curioso debate en-tre Vilm Flusser e Nelson Nogueira Saldanha que tem o valor

    17. VITA, Lufe Washington. Op. cit, p. 14. 18. Idem, ibidem. 19. FLUSSER, Vilm. H filosofia no Brasil? Demonstrao em trs pensadores expres-

    sivos. Revista Brasileira de Filosofia, So Paulo, 7(65):5-9, jan./fev./mar., 1967 e H Filoso-fia no Brasil? Dilogo de Nelson Nogueira Saldanha e Vilm Flusser. Revista Brasileira de Fosofia, So Paulo, 27(67):3004, juL/ago./set, 1967.

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    de sintoma. significativo do plano em que se costuma colocar a questo de um pensamento brasileiro. Vilm Flusser publicou um artigo intitulado "H Filosofia no Brasil? - Demonstrao em trs pensadores expressivos". Comea emitindo conceitos que, no mni-mo, exigiriam longas justificativas - " absurdo falar na Filosofia de um pas", por exemplo - e chega ao disparate total: " isto que distingue a Filosofia da maioria das outras disciplinas: essencial-mente, ela no possui geografia nem histria". Absurdo, claro. Mas deixemos passar. Me importam coisas mais prximas.

    O sr. Flusser levanta em seguida alguns traos que poderiam caracterizar o esforo filosfico entre-ns. Diz ser a Filosofia uma rebelio "independente do tempo e do espao". O que complica as coisas: se independente do tempo e do espao, rebelar-se con-tra o qu? Bom. H Filosofia entre-ns, voltando ao autor, porque, sendo seres humanos, filosofamos. E haveria entre-ns a presen-a de um duvidar e um distanciar-se "indisciplinados", o que seria "uma herana de Portugal e , talvez, um carter latino em geral". Isso teria conduzido nossos trabalhos num sentido "desordenada-mente