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REFLEXÕES SOBRE TEMAS RELACIONADOS À CARREIRA DOS AGENTES FISCAIS DE RENDAS DO ESTADO DE S.PAULO ROBIN HOOD ÀS AVESSAS A SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PAULISTA Antônio Sérgio Valente Número 1 SÉRIE JUSTIÇA TRIBUTÁRIA Outubro 2011

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REFLEXÕES SOBRE TEMAS RELACIONADOS À CARREIRA DOS AGENTES FISCAIS DE RENDAS DO ESTADO DE S.PAULO

ROBIN HOOD ÀS AVESSAS A SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PAULISTA

Antônio Sérgio Valente

Número 1 SÉRIE JUSTIÇA TRIBUTÁRIA Outubro 2011

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CARTAS DO FISCAL ROBIN HOOD ÀS AVESSAS Antônio Sérgio Valente

Série inédita de artigos publicada originalmente pelo www.BLOGdoAFR.com

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Parte I

m artigo intitulado Postura Crítica sugerimos que as entidades do Fisco apontassem publicamente os equívocos do governo, posicionando-se com firmeza e independência em relação a temas

tributários, econômico-sociais, orçamentários e de gestão pública, sempre tendo em vista o interesse da sociedade à qual servimos e o da própria classe. Enquanto as entidades refletem sobre o assunto, vai aqui a nossa contribuição.

A partir deste artigo esmiuçaremos algumas distorções que o governo anterior implantou e que o atual, pelo menos até o momento, não manifestou interesse de reformular.

Comecemos pela Substituição Tributária.

* * *

A Substituição Tributária, na sistemática modificada pelo governo paulista, a partir de 2008, com ampliação para uma infinidade de produtos (alimentícios, higiênicos, medicinais, fonográficos, de limpeza, perfumaria e papelaria, autopeças, ração animal, pilhas, lâmpadas, materiais de construção, colchoaria, ferramentas, bicicletas, instrumentos musicais, máquinas, materiais elétricos e eletrônicos, brinquedos, etc.), transforma o Estado numa espécie de Robin Hood às avessas: tira dos pobres para dar aos ricos.

Para quem não se lembra, Robin Hood foi um herói mítico inglês, um fora-da-lei que roubava dos ricos para dar aos pobres, no tempo do Rei Ricardo Coração de Leão. Era hábil no arco e flecha e vivia na floresta de Sherwood.

Pois saiba a sociedade que o governo paulista está fazendo exatamente o oposto do que Robin Hood fazia: está transferindo carga tributária dos mais ricos para os mais pobres.

Parece absurdo?

Pois é. É exatamente isso que está ocorrendo.

Os tributos incidentes sobre circulação de mercadorias, por sua própria natureza, costumam ser mais perversos para as classes mais pobres, eis

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que fazem incidir as mesmas alíquotas e bases de cálculo sobre o consumo de todas as pessoas, indistintamente. Vale dizer, em situação normal, sem a Substituição Tributária (ST), um sujeito que ganha R$ 100.000,00 por mês e compra um quilo de café no supermercado paga exatamente o mesmo ICMS que um trabalhador que ganha R$ 1.000,00 por mês. Digamos que ambos consumam por mês a mesma quantidade e que isso lhes custe algo em torno de R$ 1,00 de ICMS já embutido no preço, conclui-se que, em relação à renda mensal de cada um, o mais abastado paga apenas 0,001%, enquanto o trabalhador paga 0,1%. Em outras palavras, nesse exemplo, o pobre está pagando, em termos relativos, 100 vezes mais que o rico!

É óbvio que quanto menor for a distância entre os vencimentos do rico e os do pobre, menos injusto será o tributo. Por si só essa — digamos assim — indiferença do tributo, já é uma enorme perversidade.

Que esse é um problema de distribuição de renda, de política macroeconômica, e que o governo estadual pouco pode fazer, até se compreende, porém…

O que não se pode aceitar é que o governo estadual agrave ainda mais o problema, que torne o ICMS ainda mais perverso.

O aumento da perversidade passou a ocorrer, em São Paulo, e está servindo de mau exemplo para todo o Brasil, em razão de várias distorções que foram implantadas, a partir de 2008, na sistemática da Substituição Tributária, sobretudo a partir de 23/12/2008, quando o governo paulista proibiu o ressarcimento, nos casos de venda a consumidor final com margem inferior à prevista, que geralmente alcança produtos destinados às classes mais pobres e estabelecimentos que praticam margens mais baixas, e, por outro lado, dispensou o recolhimento complementar do tributo, nos casos em que a margem efetiva é superior, geralmente produtos destinados à elite e comercializados por varejistas que operam com margens mais elevadas.

Em outras palavras, o tributo pago a maior pelo mais pobre não pode ser ressarcido, e o pago a menor pelo mais rico não precisa ser complementado. É o pobre, em suma, pagando o imposto da elite, com a benção do governo.

* * *

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A alteração na sistemática produziu várias distorções no cálculo e na gestão do ICMS. E o pior é que todas confluem para prejudicar as classes sociais de renda mais baixa, de várias formas, a saber:

a) Oneram mais as mercadorias que as classes mais pobres consomem, e menos as que a elite consome.

b) Oneram mais os varejistas das periferias, das regiões mais pobres, que em geral operam com margens menores, e menos os de áreas mais nobres, de centros comerciais que atendem a elite e que em geral praticam margens bem mais elevadas.

c) Retiram vantagens tributárias concedidas aos varejistas do Simples Nacional, cujos faturamentos a legislação federal desonera por meio de alíquotas inferiores, porém às vendas para esses estabelecimentos também se aplica a Substituição Tributária, de modo que parte do benefício se esvai, eis que a ST leva em conta as alíquotas normais do ICMS. Vale dizer, o governo federal dá e o estadual tira.

d) Estimulam a concentração comercial, o crescimento dos oligopólios, das grandes redes, mitigando assim a concorrência.

e) Fomentam a inflação dos produtos mais populares.

f) Agravam o problema da distribuição de renda.

g) Elevam o custo da gestão tributária das empresas, dos varejistas e seus fornecedores, inclusive de outros Estados, que certamente repassam esses custos para os preços.

h) Elevam o custo administrativo das entidades empresariais, que têm de produzir periódicas pesquisas de preços, e o do próprio governo.

Como se percebe, o assunto é extenso, o espaço é curto, e a paciência do leitor tem limite, de modo que tentaremos explicar essas distorções por partes, sem pressa, com exemplos, nos próximos artigos. Até lá.

* * *

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Parte II

m artigo anterior sobre a Substituição Tributária (Robin Hood às Avessas — Parte I), comentamos as alterações implantadas pelo

governo paulista, a partir de 2008, sobretudo no que se refere à proibição de ressarcimento, nos casos de venda a consumidor final com margem inferior à prevista, que geralmente alcança produtos destinados às classes mais pobres e estabelecimentos que praticam margens mais baixas, e, por outro lado, à dispensa de recolhimento complementar do ICMS, nos casos em que a margem efetiva é superior à prevista, beneficiando produtos destinados à elite, comercializados por varejistas de alta classe, que em razão disso operam com margens mais elevadas.

Aludimos, naquele texto, a uma série de distorções causadas pela mudança na sistemática, e agora, neste artigo, tentaremos detalhar a primeira delas, relacionada aos tipos de mercadorias.

* * *

Antes, porém, como muito bem lembrou um leitor, convém frisar que continuam permitidos os ressarcimentos relativos a mercadorias oneradas por ocasião da entrada ou aquisição, cujos fatos geradores não se concretizaram em saídas para consumidores finais paulistas, em razão de: a) furto, deterioração, vencimento do prazo de validade, quebras, etc; b) saídas para outras UFs; e c) saídas isentas ou não tributadas (exportação, Zona Franca de Manaus, etc.) Sublinhamos que tanto no artigo anterior como neste, referimo-nos exclusivamente à proibição de ressarcimento, nos casos de venda a consumidor final com margem inferior à prevista, a partir de 23/12/2008. Antes era permitido. Vale dizer, antes dessa data a distorção também ocorria, mas podia ser sanada, embora de forma extremamente complexa, mediante elaboração de complicadíssimas planilhas, às quais deviam ser apensadas montanhas de documentos e arquivos magnéticos, de tal forma que muitos contribuintes, sobretudo os de menor porte, raramente se encorajavam a pleitear os seus ressarcimentos. E note-se que até então a ST alcançava

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um número reduzido de itens: refrigerantes, cervejas, sorvetes, pneus e automóveis, basicamente.

O problema agora é muito mais grave. Além da maior abrangência, a sistemática vem acompanhada de uma mordaça administrativa: o contribuinte sequer pode pleitear o ressarcimento.

Mas vamos logo à primeira das distorções, conforme o prometido, que o espaço é curto.

* * *

A legislação atual prevê que o ICMS relativo à última etapa de circulação — daquela enormidade de mercadorias que entrou na lista da ST, a partir de 2008 — seja pago, antecipadamente, mediante aplicação, sobre o preço de compra do varejista, de margem média ponderada, apurada e divulgada pelo governo, em muitos casos com apoio em pesquisas de preços elaboradas por entidades e associações empresariais. É o chamado IVA-ST (Índice de Valor Adicionado Setorial).

Mas os economistas sabem quão ilusionistas são as médias. Um famoso ex-ministro costumava dizer que média é enfiar a cabeça do paciente no forno, os pés na geladeira, um termômetro no reto, e diagnosticar — se a temperatura ficar por volta de 36,5ºC — que está tudo bem com o infeliz.

Parece piada, mas o ministro estava certo, é a mais pura verdade.

As médias, ainda que ponderadas, distorcem a tributação por vários motivos. Vejamos o primeiro deles:

Especificidades das Mercadorias

Ainda que certas mercadorias pertençam ao mesmo grupo, vale dizer, que sejam identificadas com a mesma posição fiscal, que tenham a mesma descrição genérica e a mesma finalidade, costumam apresentar índices de valor agregado diferentes, em função de uma série de fatores: marca, qualidade, propaganda, tecnologia, investimentos em pesquisa, sistema de distribuição, público-alvo, etc.

Por exemplo, um desodorante mequetrefe, vendido a R$ 4,00 numa farmácia ou supermercado, pode estar embutindo uma margem bruta sobre insumos de 50% a 100% no máximo, enquanto um outro, de marca

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famosa, sofisticada, comercializado numa perfumaria charmosa dos Jardins, onde é vendido a R$ 20,00, pode estar embutindo uma margem bruta sobre insumos de até 500%, já que a maior parcela do valor agregado a este produto não é matéria-prima nem embalagem, nem transporte — é marca, é propaganda, é pesquisa, é tecnologia, enfim, rubricas que não geram créditos de ICMS.

Digamos, para exemplificar, que a margem média ponderada, apurada e divulgada pelo governo, para esse tipo de produto, seja de 177,19%, como consta na Portaria. O desodorante mequetrefe pagará ICMS sobre 177,19% de margem bruta, que, aliás, ele não teve (sua margem, vimos, era de 50% a 100%), enquanto o desodorante da marca sofisticada pagará sobre os mesmos 177,19% de margem bruta, embora tenha embutido no preço 500% de margem. Vale dizer, o desodorante mequetrefe está sendo tributado mais do que devia, e o desodorante da elite muito menos.

Assim, em relação ao produto mequetrefe, mais consumido pelas classes mais baixas de renda, pela massa de eleitores, o governo está cobrando mais do que devia, mais até do que a Constituição Federal e o Código Tributário Nacional permitem, eis que o ICMS é tributo sobre valor acrescido, abate-se numa etapa o montante cobrado nas anteriores, mas no caso da ST a etapa final está superestimada, acima da efetiva. Em outras palavras, o governo está cometendo um excesso de exação em relação ao produto mequetrefe, está escorchando o consumidor desse produto, cobrando mais do que lhe era permitido cobrar. Por outro lado, em relação ao produto sofisticado, está deixando de cobrar o que a CF e o CTN determinam, ou seja, está permitindo que alguém se locuplete.

Ora, as duas situações são igualmente recrimináveis. Se elas se compensassem entre si, como pressupõe o governo, se o pobre usasse num dia o desodorante mequetrefe, e no outro o da marca de luxo, e se o cidadão mais abastado fizesse o mesmo, a injustiça até que não seria tão grande, mas sabemos que isso não acontece na vida real.

E há muitos outros casos similares ao exemplo. As variações nas margens de valor agregado sobre os insumos ocorrem praticamente em todos os tipos de mercadorias, nuns mais, noutros menos. De pó de café a lâmpada, de travesseiro a bicicleta, de caneta esferográfica a sabão em pó, basta observar as variações nos preços de produtos similares nas gôndolas da vida e imaginar os insumos; não é possível que certas mercadorias com tão pouca diferença na composição e na estrutura de custos diretos, porém com preços tão discrepantes, tenham a mesma margem bruta sobre insumos.

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O problema sobre o qual o governo precisa refletir é que, quando se trata igualmente os desiguais, comete-se tanta injustiça como quando se trata desigualmente os iguais.

No próximo artigo, seguiremos com a análise das distorções da Substituição Tributária.

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Parte III

o primeiro artigo desta série, apontamos distorções que o governo paulista implantou na Substituição Tributária, a partir de 2008, tornando-a mais abrangente e injusta. No segundo, analisamos as

distorções quanto às Especificidades das Mercadorias. Neste terceiro artigo, pretendemos refletir sobre as perversidades implantadas em face dos perfis dos estabelecimentos varejistas.

O problema é que os varejistas, em função do tipo, da localização e do porte operam com margens brutas diferentes, embora a ST seja calculada com base no IVA-ST, que é apurado por média ponderada.

Vejamos inicialmente a questão do tipo.

Os supermercados, por exemplo, costumam praticar — e isto é de conhecimento público — para as mesmas mercadorias, margens inferiores às das padarias, restaurantes, lanchonetes e empórios sofisticados. Aplicar o mesmo IVA-ST para comerciantes que operam com margens diferentes é, sem dúvida, uma distorção tributária, mormente com a proibição de ressarcimento, nos casos em que o preço final efetivo é inferior ao previsto, e com a dispensa do recolhimento complementar, nos casos em que o preço final efetivo é superior ao previsto.

A perversidade está no fato de que se pune o estabelecimento que opera com margens inferiores à média ponderada; vale dizer, pune-se equivocadamente quem deveria ser premiado. Pratica-se o inverso do que deveria ser feito. Aprofunda-se a injustiça tributária.

Também a localização influencia a margem. Um varejista de uma rua com trânsito médio de pedestres, que paga aluguel relativamente baixo, costuma agregar ao preço de compra margens bem menores do que um varejista de shopping center, que tem custos indiretos mais elevados (condomínio, aluguel, ponto, instalações sofisticadas, etc). Se a rua for de muito movimento (Brás, Pari, 25 de Março, 12 de Outubro, por exemplo), o varejista pratica margens menores ainda, pois pode compensá-las com o volume de vendas.

Ora, atribuir a mesma média ponderada a varejistas de diferentes localizações, que praticam margens brutas efetivas que podem oscilar de 50% a 300%, gera distorções em alguns casos escandalosas.

E o pior é que esse tipo de distorção beneficia os varejistas que operam com margens maiores, que atendem a públicos mais abastados, os

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clientes de alta classe. É profundamente injusto, pois não podemos esquecer que os custos tributários entram na composição dos preços. Se a Fazenda tributa um lojista de shopping center sobre uma margem, por exemplo, de 100%, quando deveria tributar pela de 200%, o custo tributário desse lojista abaixa e quem se beneficia, em parte, é o consumidor que compra no shopping, e em outra parte, o próprio lojista. Ou seja, a classe mais abastada, que deveria pagar, por justiça fiscal, mais do que a classe mais carente, acaba pagando menos. A Substituição Tributária, neste caso, faz exatamente o oposto do que devia fazer: cobra mais do mais pobre, e menos do mais endinheirado. É o retrato mais escrachado do Robin Hood às Avessas desta série.

Mas há uma terceira distorção decorrente dos perfis dos varejistas: quanto ao porte. É notório que um minimercado tem muito menos poder de barganha junto a fornecedores do que um grande mercado, sobretudo se a comparação for com os que integram redes.

Exemplificando: um mercado que compra mil caixas de sabão em pó, obtém do fabricante um desconto provavelmente inferior ao do concorrente que compra dez mil. O tratamento é outro, não há dúvida. E para enfrentar a concorrência, para manter o preço final compatível, o minimercado se vê obrigado a praticar margens inferiores às do supermercado. Portanto, quando se tributa o minimercado com o mesmo IVA-ST que vale para o supermercado, vale dizer, presumindo que o pequeno tem mais margem do que efetivamente tem, agrava-se o dano comercial, comete-se outra perversa distorção tributária.

E quando combinadas a segunda e a terceira distorções, por localização e por porte, o dano então se exponencia.

Um minimercado da periferia, por seu pequeno poder de barganha junto a fornecedores, pela acanhada estrutura de custos (instalações precárias, aluguel baixo, pouco luxo nas prateleiras, salários aquém da praça), e pela clientela de baixa renda, que gasta sola de sapato antes de comprar, em geral é obrigado a praticar margens muito mais baixas que os estabelecimentos elitizados.

Por outro lado, os mercados que atendem o público de maior poder aquisitivo, em geral precisam de margens mais elevadas, pois se situam em áreas nobres da cidade, os aluguéis são mais altos, a loja tem mais luxo e funcionários melhor remunerados, enfim, os custos são maiores. Mas estes têm lá a sua contrapartida: a clientela não se importa muito com o preço, não apresenta à moça do caixa os folhetos da concorrência, de modo que a margem agregada geralmente é superior. Seria justíssimo que pagassem o ICMS sobre o valor que efetivamente agregam à

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mercadoria. Mas não; pagam pela média, que é, por definição, inferior ao pico que praticam. Em outras palavras, pagam sobre margem agregada menor que a efetiva.

Em suma, também quanto aos perfis dos estabelecimentos, as distorções implantadas, a partir de 2008, pelo governo Serra e continuadas pelo atual governo, são extremamente perversas, injustas e até inconstitucionais.

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Parte IV

ontinuando a série de artigos sobre as distorções implantadas no ICMS, a

partir de 2008, com as mudanças na sistemática da Substituição Tributária, que passa a atingir uma infinidade de mercadorias, veda o ressarcimento (nos casos em que o preço final é inferior ao previsto), e dispensa o recolhimento complementar (quando ocorre o inverso), abordaremos agora a maquiavélica perversidade quanto aos estabelecimentos enquadrados no SIMPLES NACIONAL.

Antes de tudo, recordemos que o Simples Nacional (SN) tenta aliar a simplificação da cobrança tributária à justiça fiscal, a fim de diminuir o chamado custo Brasil e fomentar a atividade econômica das empresas com faturamento anual de até R$ 2.400.000,00. A adesão é voluntária, mas muito bem vista pelo empresariado de pequeno porte, que tem aderido maciçamente.

Vários tributos estão englobados no Simples Nacional: IRPJ, CSLL, COFINS, PIS/PASEP, CPP, ISS, IPI e ICMS. As alíquotas são crescentes em função da faixa de faturamento e do tipo de empresa, mas quase sempre são mais vantajosas.

Uma empresa comercial, com faturamento anual de até R$ 120 mil, paga a alíquota total de 4% sobre a receita bruta, dos quais 1,25% é de ICMS. Se a receita for de R$ 480 mil a R$ 600 mil, a alíquota é de 7,60% (2,58% de ICMS); se for de R$ 840 mil a R$ 960 mil, a alíquota sobe para 8,45% (2,87% de ICMS); e assim por diante. Nos casos de faturamentos relativamente baixos, as vantagens são expressivas.

Vejamos uma linha de exemplos. Digamos que um empório da periferia, com faturamento anual de até R$ 120 mil, pratique em média margens em torno de 100% sobre os preços de compra. Se pagasse 18% de ICMS, isto corresponderia a 9% sobre o valor total. Na sistemática do SN paga apenas 1,25% de ICMS sobre o faturamento total. Ou seja, 7,2 vezes menos! É muita vantagem. Se o faturamento anual fosse de R$ 600 mil, pagaria 2,58% de ICMS; se fosse de R$ 960 mil, pagaria 2,87% de ICMS; e se fosse

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de R$ 2.400 mil, o máximo, pagaria 3,95% de ICMS. Em todos esses casos, a vantagem é sempre muito grande, embora vá declinando à medida que o faturamento cresce. Aqui temos o Robin Hood original em ação: dando mais vantagens aos pequenos, menos aos médios e nenhuma aos grandes. É o governo agindo como realmente deve agir, tentando retirar a perversidade do sistema tributário.

Porém, com a Substituição Tributária (ST) aplicada por algumas unidades da federação, capitaneadas pelo Estado de São Paulo, as vantagens do SN relativas ao ICMS são retiradas. Os produtos sujeitos à ST e vendidos — pelas indústrias, por importadores e atacadistas — aos varejistas do SN são tributados normalmente, como se os destinatários não tivessem optado pelo regime nacional.

Por exemplo, um produto com IVA-ST de 50%, sujeito à alíquota de 18%, pagará ICMS, a título de retenção por ST, de 18% sobre o valor agregado, que neste caso corresponde a 6% sobre o valor total, ou seja, muito acima de 1,25%, 2,58% ou 3,95%, conforme a faixa de faturamento do varejista.

Em outras palavras, o governo dá com a mão direita e tira com a esquerda.

E pior: o governo federal, que dá a maior parte dos incentivos (IRPJ, CSLL, COFINS, PIS/PASEP, CPP), contando com a parceria dos governos municipais (ISS) e estaduais (ICMS), é traído descaradamente por estes, que posam na fotografia aplaudindo a medida, mas na retaguarda inventam jeitinhos de neutralizar os seus efeitos.

Governo estadual, é bom que se informe, como o de São Paulo, por exemplo, que inclui na ST operações com produtos destinados a empresas do SN, que age como diz o novelista: morde e assopra. Aliás, age pior: primeiro assopra e depois morde.

Por isso insistimos que todos os agentes públicos, sobretudo os que lidam com tributos, devem ficar muito conscientes do que os seus governantes vêm fazendo contra a sociedade. Afinal, são servidores públicos, servem o público, a sociedade.

E não apenas os agentes públicos devem refletir a respeito e manifestar-se; também os contabilistas, os economistas, os empresários, os políticos, os jornalistas, os meios de comunicação de um modo geral. É preciso que a sociedade se defenda, democraticamente, dos que a escorcham.

As normas tributárias são complexas, muitas vezes se ocultam em artigos e parágrafos de Portarias que só os diretamente interessados leem, e se não forem esmiuçadas pelos homens que labutam no metiê, se não houver ampla divulgação das distorções, se não forem apontados

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nominalmente os governantes que as editam, a sociedade corre o risco de não perceber o que está acontecendo e reeleger — ou até eleger para cargos mais elevados — políticos e respectivos garupas que vão continuar adotando medidas semelhantes.

É absolutamente imperativo, é democrático, é justo, que o público saiba quem é quem, quem faz o quê contra quem, quem faz o quê a favor de quem e, principalmente, com que interesses.

As entidades de classe têm enorme responsabilidade quanto a isso. Sobretudo as ligadas ao tema. As injustiças tributárias, os Robin Hood às Avessas da vida precisam ser conhecidos pelo público. Matérias como estas que vimos publicando neste espaço, precisam ser assumidas pelas entidades, em seus editoriais, nos releases que enviam à grande imprensa e aos políticos, até mesmo através de publicações que poderiam ser distribuídas diretamente ao público, nas portas das repartições, das entidades associativas, das empresas, talvez por moças caracterizadas de bruxinhas, Pinóquio ou Robin Hood, para chamar mesmo a atenção do público e da mídia.

Medidas como essas seriam provavelmente mais eficazes do que meras paralisações de quinze minutos uma vez por semana (que têm algum valor, mas são muito tímidas). Ademais, os servidores não estariam sujeitos a eventuais punições administrativas e não desgastariam a sua imagem junto ao público. Até pelo contrário, as entidades estariam saindo em defesa da sociedade. Dariam desgaste ao governo e não aos seus filiados.

Por outro lado, o governo certamente veria, na altivez e independência das entidades, até aqui de joelhos, tratadas mais como inimigas do que como colaboradoras, a que ponto vai a indignação dos que elas representam.

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Parte V

este penúltimo artigo desta série, abordaremos os efeitos nocivos indiretos das alterações na Substituição Tributária, a partir

de 2008, com extensão a uma infinidade de mercadorias, com dispensa de recolhimento complementar, nos casos em que o preço efetivo é superior ao obtido através do IVA-ST, e com vedação de ressarcimento, quando o preço é inferior.

Já vimos, no terceiro artigo, que os estabelecimentos varejistas praticam margens diferentes em função do seu porte, do poder de barganha junto a fornecedores, da sua estrutura de custos indiretos, e que tributá-los com índice de valor adicionado médio causa prejuízos aos que acrescem percentuais inferiores à média, e vantagens extraordinárias aos que operam acima. Vimos que os pequenos, para competir com os grandes, são obrigados a reduzir os seus markups, e só conseguem fazê-lo porque têm estruturas mais enxutas e simples, menos funcionários, localizam-se em bairros menos valorizados, pagam menos aluguéis, etc. Concluímos que os pequenos comerciantes, ao pagar ICMS sobre valores agregados teóricos superiores aos efetivos, já de pronto ficam em desvantagem em relação aos que praticam as margens teóricas das Portarias, e em desvantagem ainda maior em relação aos que praticam margens superiores. Ao contrário, os que têm maior poder de barganha, que vendem para públicos mais abastados, que se localizam em áreas mais nobres, são muito favorecidos, eis que a partir de 2008 não mais são obrigados a complementar os recolhimentos.

Da distorção básica e extremamente perversa apontada acima, decorrem vários efeitos nocivos indiretos, que ora abordaremos.

* * *

Em primeiro lugar, estimula-se a concentração comercial. Não é difícil deduzir que se os pequenos são prejudicados e os grandes são beneficiados, a aglutinação de estabelecimentos, seja por fusão ou incorporação, passa a ser instrumento de defesa mercantil.

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Salta aos olhos a conclusão de que a ST, nos moldes atuais, fomenta a formação de oligopólios, as grandes redes de supermercados, de materiais de construção, de farmácias, etc.

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Em face do efeito anterior, dá-se a mitigação da concorrência, da qual os grandes prejudicados são os consumidores finais, sobretudo os de baixa renda.

É requisito da concorrência perfeita a atomização da oferta. De modo que quando os agentes econômicos se aglutinam, a concorrência tende a arrefecer.

* * *

Como consequência dos dois efeitos acima apontados, os preços passam a ser nivelados por alto. E eis que estamos diante de outro malefício da ST atual: o estímulo à inflação dos produtos destinados às classes menos abastadas, sobretudo os comercializados em regiões pobres e periféricas; por outro lado, ao reduzir a carga tributária efetiva de produtos destinados ao público de maior poder aquisitivo, como vimos no segundo artigo desta série, a ST estimula a deflação de mercadorias destinadas ao público mais abastado.

Em outras palavras, este efeito castiga quem não merece e privilegia quem não precisa. É estupidamente injusto.

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Em decorrência dos três motivos anteriores, temos um agravamento do problema da distribuição de renda. É novamente o governo estadual agindo na contramão do governo federal e até dele próprio.

O governo federal vem adotando políticas distributivas de renda, enquanto o estadual, a partir do governo Serra, mais precisamente a partir de 2008, passa a fazer o oposto. É o Robin Hood de verdade, o federal, contra o Robin Hood às avessas, o estadual.

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E este último age não apenas na contramão do outro, mas até na sua própria contramão, pois se, por um lado, oferece vantagens tributárias (alíquotas menores, isenções, reduções de base de cálculo) para uns poucos produtos da cesta básica, que são consumidos por pobres e também por ricos, por outro lado, onera com margens superiores às efetivas uma infinidade de produtos sujeitos à ST e destinados às classes mais baixas da população, ao mesmo tempo em que desonera em parte as mercadorias destinadas ao público mais abastado, ao tributá-las com base em IVAs-ST inferiores aos efetivos (em alguns casos, muito inferiores).

* * *

Por último, há que se falar dos perversos efeitos indiretos relativos aos custos financeiro e de gestão tributária e jurídica dos varejistas.

A elevação do custo financeiro se dá porque os varejistas têm de pagar o valor do tributo da etapa seguinte ao fornecedor, na data de vencimento da fatura, que muitas vezes ocorre antes mesmo do fato gerador final. Quando se trata de venda mediante cartão de crédito ou a prazo, o recebimento é quase sempre posterior ao pagamento da fatura com o tributo incluso. Isto para não falar do ICMS nos estoques, que embora tenha sido parcelado em vários meses, exigiu reposição do capital financeiro nos casos em que os índices de giro comercial eram baixos, vale dizer, dos estabelecimentos que operam com mercadorias que costumam dormir meses e até anos nos almoxarifados.

O custo da gestão tributária dos estabelecimentos que operam com margens abaixo do IVA–ST também cresce. Agora, há que planilhar mensalmente os produtos vendidos para consumidores finais de outras unidades da federação, os perecimentos e furtos, disponibilizar documentos, arquivos magnéticos e funcionários para atender o Fisco, pois essas ocorrências permitem ressarcimento. Não se confunda a vedação de ressarcimento nas saídas internas, por preço inferior ao estimado pelo IVA-ST, com as hipóteses deste parágrafo; aqui, apesar dos pesares, ocorre dos males o menor, afinal, pelo menos geram alguma justa compensação. Que, aliás, não é favor nenhum do governo, pois são casos em que realmente não ocorre o fato gerador subsequente. De todo modo, antes da ST para essa infinidade de produtos que entrou na dança a partir de 2008, não era necessário cogitar das planilhas de ressarcimento, e agora é. O custo da gestão tributária realmente se elevou.

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Nos casos de produtos com margens efetivas muito aquém das médias ponderadas (IVA-ST), há que se acrescentar o custo da gestão jurídica: será preciso contratar advogado, preparar as planilhas que demonstram a tributação inconstitucional e requerer judicialmente, eis que o ressarcimento administrativo está proibido para esses casos.

É claro que essas medidas implicam em maiores custos para os varejistas, obviamente com exceção das empresas que praticam margens superiores aos IVAs-ST, pois estas foram dispensadas dos recolhimentos complementares e das planilhas acessórias. Até mesmo aqui, neste pormenor burocrático, o Robin Hood às avessas está agindo.

Por ora, para que a paciência do leitor não se canse do articulista, fiquemos nisto. Para o próximo artigo, prometemos a finalização desta série. Até lá.

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EPÍLOGO

os artigos anteriores, analisamos uma série de distorções causadas pela Substituição Tributária, na forma

implantada a partir de 2008, em face da sua maior abrangência, da vedação de ressarcimento (nos casos em que o preço final efetivo é inferior ao estimado pelo IVA-ST), e da dispensa de recolhimento complementar (quando o preço final efetivo supera o teórico). Apontamos vários efeitos nocivos dessas medidas, diretos e indiretos, sobretudo para as classes de renda mais baixas e para os pequenos varejistas.

Agora, ao finalizar esta sequência de artigos, pretendemos abordar a questão do chamado CUSTO BRASIL.

A elevação dos custos tributários, diretos e indiretos, para os varejistas de pequeno porte, estejam ou não enquadrados no Simples Nacional, já foi fartamente comentada nos artigos precedentes. Mas não apenas a esses estabelecimentos a ST atual causa problemas. Também as indústrias e os atacadistas sofrem com a medida. Ainda que situados em outros Estados, precisam obter inscrições estaduais em São Paulo, na qualidade de substitutos tributários, apurar em separado os tributos devidos a cada ente federativo que adote a sistemática, prestar-lhes declarações econômico-fiscais mensalmente, atender às fiscalizações de todos os fiscos estaduais, enfim, uma série de novas demandas.

Por exemplo, se um comerciante de São Paulo compra produtos de uma indústria da Bahia, esta precisa inscrever-se em São Paulo, manter-se atualizada sobre as Portarias paulistas que divulgam os IVAs-ST dos produtos, aplicar esses índices sobre os seus preços de venda acrescidos de frete e seguro, cobrar dos comerciantes paulistas o tributo relativo às etapas seguintes de circulação, segundo as alíquotas internas de São Paulo, lançar essas operações em seus livros, declará-las mensalmente e recolher a soma do ICMS devido por ST aos cofres do tesouro bandeirante. Transfere-se, assim, para estabelecimento de outro Estado a incumbência de reter e recolher aos cofres do tesouro paulista o ICMS sobre fatos geradores futuros, que poderão ocorrer — ou não — no território de São Paulo.

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No caso dos atacadistas é ainda pior, pois estes, além de pagar antecipadamente para o fornecedor do outro Estado, precisam também planilhar as suas operações de venda para fora de São Paulo envolvendo mercadorias oriundas de outras UFs, com ICMS retido por ST, eis que o fato gerador interno não ocorreu e esta é uma das exceções em que cabe ressarcimento. Neste caso, o contribuinte paulista pagou para o fornecedor da Bahia — que por sua vez espera-se que recolha para São Paulo — o ICMS devido por uma ex-futura operação de venda a consumidor final que poderia ocorrer em território paulista, mas que ao cabo não ocorreu, de modo que, para não pagar duas vezes, será preciso pedir ressarcimento do imposto pago pelo fornecedor baiano a São Paulo relativamente àquela mercadoria vendida a seguir, pelo atacadista de São Paulo, para um varejista de Minas Gerais, por exemplo. Parece o Samba do crioulo doido, mas é exatamente assim que funciona.

É necessário dispor de uma imensa parafernália instrumental, de pessoal e burocrática para atender à complexidade implantada, e esses custos ninguém pense que são baixos. Para se ter uma ideia, há empresas prestadoras de serviços que vêm se especializando no assunto, pois os contadores não dão conta de administrar o problema, tamanha a complicação e o volume de informações.

Até mesmo as entidades empresariais tiveram os seus custos elevados, pois algumas, em colaboração com o governo — sabe-se lá com que intenções e interesses subliminares — elaboram pesquisas de preços que auxiliam na fixação dos IVAs-ST.

Tudo isso e mais o custo do próprio governo. Que não é nada fácil fiscalizar as alterações introduzidas pela nova legislação. Há que verificar se as notas fiscais de compra foram corretamente emitidas, se a base de cálculo e a alíquota futura estavam corretas, se os fornecedores declararam as operações, se recolheram o ICMS correspondente; em caso de dúvida, será preciso encaminhar pedido de verificação fiscal junto ao fornecedor — e note-se que em boa parte dos casos estamos falando de outras unidades da federação!

Imagine-se, por exemplo, o imbróglio se um fornecedor situado em outra UF não recolher o tributo retido em operações de venda a comerciantes paulistas. Quantos deslocamentos interestaduais de servidores serão necessários? Ainda que se possa cogitar da responsabilidade solidária do adquirente paulista, se este provar que pagou a fatura já com o tributo incluso, a fornecedor interestadual regularmente estabelecido e inscrito, como se portará o Judiciário ante a questão? Quantas cartas rogatórias

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serão necessárias? O governo está criando, e parece que ainda tomou conhecimento disso, um monstrengo burocrático que talvez o devore.

Nos casos de ressarcimento permitido administrativamente, e nos que vierem a ser admitidos por via judicial, será imprescindível o confronto das informações lançadas nas planilhas com as notas fiscais de compra, com os cupons fiscais emitidos por ocasião das vendas, com os mapas-resumos e com os livros fiscais, pois em todas essas fases podem ocorrer equívocos, digamos assim. Mesmo com o auxílio da informática, as conferências são complexas e trabalhosas.

E não se diga que o custo do governo é fixo, que o AFR está lá para isso mesmo, pois há sempre o custo de oportunidade, a alocação mais producente da qualificada mão de obra disponível.

Também não se diga que a ST reduz a sonegação na etapa final. Muito pelo contrário. Primeiro, porque parte dessa última etapa de circulação foi contemplada com evasão legal: os que operam com margens efetivas superiores aos IVAs-ST. E segundo, porque a oportunidade de sonegar, quanto à parte não premiada pela evasão legal, continua na praça, apenas mudou das mãos dos varejistas para as dos atacadistas e industriais, alguns até situados muito longe de São Paulo. Basta um lançamento omitido ou um recolhimento a menor lá longe, quem sabe um acordo aqui pertinho, uma reutilização de Nota Fiscal, uma devolução fictícia, uns cancelamentos à moda da casa, uns errinhos nas planilhas de ressarcimento ou nos mapas-resumos da vida, umas falcatruas aqui e acolá — e eis a festa. Enfim, o governo abriu, com a nova ST, além das citadas brechas de evasão legal, também várias opções sonegatórias de difícil e trabalhosa detecção. Haja dedicação e competência para apurá-las.

Em suma, não há dúvida de que a Substituição Tributária, nos moldes alterados e ampliados em 2008, além de causar sérias injustiças de natureza tributária, econômica e social, elevou significativamente a complexidade da apuração do ICMS, os controles burocráticos, o chamado Custo Brasil, tanto para a iniciativa privada como para o próprio governo.

Órgãos fiscalizadores e do Poder Judiciário, consumidores finais das classes mais baixas de renda, indústrias, atacadistas e quase todos os varejistas sofrem ou sofrerão com a complexidade implementada.

Se o governo não retificar as implantações, se não reduzir o número de produtos sujeitos à sistemática, se não consertar o estrago feito, estará perpetuando as injustiças, prejudicando as pequenas empresas e os cidadãos de São Paulo, sobretudo os menos abastados.

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Que o governante de plantão ponha a cabeça no travesseiro, reflita de madrugada, e tente dormir. Pois agora não mais poderá dizer que ignora o problema.

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Sobre o autor

ANTÔNIO SÉRGIO VALENTE, cronista, contista e romancista. Publicou crônicas em diversos jornais, o romance A Solidão do

Caramujo (1995) e o volume de contos Deus Protege os Cães Perdidos e Outros Achados (2000), que figurou entre os finalistas do Prêmio Jabuti. Participou do Grupo Contares e de diversas

antologias, inclusive da UBE – União Brasileira de Escritores. Na década de 1990 participou de oficinas literárias na Casa Mário de Andrade. Nascido em 1955, é gaúcho de Porto Alegre, mas filho de paulistanos da gema, está radicado em São Paulo desde a infância. Formado em Economia (FAAP) e em Direito (USP). Foi cartorário (auxiliar e escrevente no Tabelionato de Ermelino Matarazzo, Capital), analista econômico-financeiro da BOVESPA, Inspetor Fiscal da PMSP e Agente Fiscal de Rendas do Estado de São Paulo, cargo no qual se aposentou em 2010, para dedicar-se à literatura. [email protected]

CARTAS DO FISCAL A exemplo de entidades de classe, sites de especialistas e blogs de analistas, o BLOG do AFR lança o primeiro livro eletrônico, com a série inédita de artigos sobre a substituição tributária paulista, de autoria do articulista ANTÔNIO SÉRGIO VALENTE. O tema é polêmico e tem sido alvo de dissertações no meio acadêmico. Esta publicação tem o caráter de enriquecer o debate demonstrando diferentes ângulos de questões relacionadas à carreira fiscal.