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ROCK, POLÍTICA E SOCIEDADE: ESTADO VIOLÊNCIA”, DA BANDA TITÃS, GERAÇÃO 1980 Marília Luana Pinheiro de Paiva 1 (Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas- Universidade Estadual de Ponta Grossa) PALAVRAS CHAVES: ROCK NACIONAL-HISTÓRIA- REDEMOCRATIZAÇÃO. RESUMO: Este artigo tem a intenção de discutir a música como objeto de estudo da história, bem como compreender através da letra “Estado Violência” da banda Titãs, aspectos que ela incorpora e evidencia em suas letras, buscando através da metodologia análise do discurso, entender como se estabelece o diálogo da cultura dos anos 1980. O processo de redemocratização do Brasil e as marcas de 20 anos de ditatura no Brasil. Uma música considerado engajada devido o seu discurso marcado pela crítica social, o que nós possibilita uma discussão sobre as marcas da ditadura e a geração dos anos 80 do rock brasileiro. Através da música buscou se refletir sobre a crítica, suas ideologias e a relação com a realidade vivida, pois a música esta diretamente ligada com o seu tempo, com as continuidades e com o tempo passado. ABSTRACT: This article intends to discuss the history of music as an object of study, as well as understanding through Titãs’s “Estado Violência” lyrics, aspects that it embodies and demonstrates in their lyrics, searching through discourse analysis methodology, understand how the culture of dialogue in the 1980’s has been established. The democratization process in Brazil and the marks of 20 years of dictatorship in Brazil. A song considered to be engaged because their speech marked by social criticism, which allow us dictatorship marks discussion and the Brazilian rock 80’s generation. Through the music, proposing to reflect about the criticism, their ideologies and the relationship with their lived reality, because the music is directly linked with their time, and the continuities of the past time. KEYWORDS: NATIONAL- ROCK- HISTTORY REDEMOCRATIZATION. Segundo Napolitano, a música não é apenas boa para se ouvir, mas para se pensar. O que Napolitano chamou de música popular, e que particularmente chamamos de canção, é um produto do século XX. (NAPOLITANO, 2002, p.8) A música também possui uma identidade própria e está conectada com outras formas da produção e do consumo culturais. Ela tem a função de comunicar, de dialogar com o ouvinte, o que faz das suas letras grandes disseminadoras de ideologias, crenças e de um conjunto de ideias presente no seu tempo e espaço, afirmando-se como produto identitário de um grupo social. Como diz Ross, A partir de meados do século XIX, as plateias se acostumaram a adotar a música como uma espécie de religião secular ou política espiritual, 1 Graduada em História licenciatura pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, 2013. Mestranda em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa 2014-2015.

ROCK, POLÍTICA E SOCIEDADE: ESTADO VIOLÊNCIA”, DA … · que nós possibilita uma discussão sobre as marcas da ditadura e a geração dos anos 80 do rock brasileiro. Através

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ROCK, POLÍTICA E SOCIEDADE: “ESTADO VIOLÊNCIA”, DA BANDA

TITÃS, GERAÇÃO 1980

Marília Luana Pinheiro de Paiva1

(Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas- Universidade Estadual de Ponta Grossa)

PALAVRAS CHAVES: ROCK NACIONAL-HISTÓRIA- REDEMOCRATIZAÇÃO.

RESUMO: Este artigo tem a intenção de discutir a música como objeto de estudo da história, bem como

compreender através da letra “Estado Violência” da banda Titãs, aspectos que ela incorpora e evidencia

em suas letras, buscando através da metodologia análise do discurso, entender como se estabelece o

diálogo da cultura dos anos 1980. O processo de redemocratização do Brasil e as marcas de 20 anos de

ditatura no Brasil. Uma música considerado engajada devido o seu discurso marcado pela crítica social, o

que nós possibilita uma discussão sobre as marcas da ditadura e a geração dos anos 80 do rock brasileiro.

Através da música buscou se refletir sobre a crítica, suas ideologias e a relação com a realidade vivida,

pois a música esta diretamente ligada com o seu tempo, com as continuidades e com o tempo passado.

ABSTRACT: This article intends to discuss the history of music as an object of study, as well as

understanding through Titãs’s “Estado Violência” lyrics, aspects that it embodies and demonstrates in

their lyrics, searching through discourse analysis methodology, understand how the culture of dialogue in

the 1980’s has been established. The democratization process in Brazil and the marks of 20 years of

dictatorship in Brazil. A song considered to be engaged because their speech marked by social criticism,

which allow us dictatorship marks discussion and the Brazilian rock 80’s generation. Through the music,

proposing to reflect about the criticism, their ideologies and the relationship with their lived reality,

because the music is directly linked with their time, and the continuities of the past time.

KEYWORDS: NATIONAL- ROCK- HISTTORY – REDEMOCRATIZATION.

Segundo Napolitano, a música não é apenas boa para se ouvir, mas para se

pensar. O que Napolitano chamou de música popular, e que particularmente chamamos

de canção, é um produto do século XX. (NAPOLITANO, 2002, p.8) A música também

possui uma identidade própria e está conectada com outras formas da produção e do

consumo culturais. Ela tem a função de comunicar, de dialogar com o ouvinte, o que faz

das suas letras grandes disseminadoras de ideologias, crenças e de um conjunto de

ideias presente no seu tempo e espaço, afirmando-se como produto identitário de um

grupo social. Como diz Ross,

A partir de meados do século XIX, as plateias se acostumaram a adotar a

música como uma espécie de religião secular ou política espiritual,

1 Graduada em História licenciatura pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, 2013. Mestranda em

Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa 2014-2015.

investindo-a com mensagens tão urgentes quantas vagas. As sinfonias de

Beethoven prometem liberdade política e pessoal; as óperas de Wagner

inflamam a imaginação de poetas e demagogos; os balés de Stravinsky

liberam energias primais; os Beatles incitam uma revolta contra antigos

costumes sociais. Em qualquer momento da história, existem alguns

compositores e músicos criativos que parecem deter os segredos da época.

(ROSS, 2011, p. 12)

Nesse sentido, procuro nesse artigo abordar a relação entre rock e política nos

anos finais da ditadura civil-militar que se instituiu no Brasil a partir do golpe de 1964,

bem como seus efeitos no processo de redemocratização. Para isso, analiso uma música,

“Estado Violência”, da banda Titãs, tentando compreender a repercussão sobre uma

nova geração de jovens dos anos 1980, que começa a romper com o silêncio imposto

pela censura e pela repressão.

Conforme Pappámikail (2010), a juventude como agente de mudanças sociais é

um produto da modernidade. A juventude é entendida como um período prévio à vida

adulta e considerada um grupo social abrangente e heterogêneo que goza de certa

liberdade, porém ainda limitados a certa dependência dos pais. É uma fase de

construção, questionamentos e adaptações, um momento para a construção de si, através

de interações e socializações. (PAPPÁMIKAIL, 2010, p. 398.). Nesse sentido, Léon &

Abramo (2005) convergem ao definir os jovens como grupos sociais em período de

mudança, considerando a juventude uma construção sociohistórica e cultural ligada

diretamente à sociedade contemporânea. Trata-se de uma fase que está em

desenvolvimento uma etapa de configuração do processo identitário individuais,

coletivos e sociais. (ABRAMO; LÉON, 2005, p.11). Pode-se, portanto, compreender

como uma geração de jovens grupos ou “tribos” que estão em um processo de

transformações e legitimação da sua própria identidade. São esses grupos de jovens que

se organizam nos anos 1980 e através do rock brasileiro difundem suas críticas e suas

convicções.

No Governo Médici a repressão política foi intensificada. O período 1969-1974

é chamado “anos de chumbo” devido à intensa repressão e violência institucional. O

autoritarismo era expressivo em todos os meios da sociedade, no trabalho, nos teatros,

na escola, na família. Qualquer cidadão que se colocasse contra as ações e de oposição

ao governo poderia ser preso, morto, torturado. Foi a fase mais violenta dos anos

ditatoriais. O governo militar utilizou em grande escala a mídia, os meios de

comunicação, para divulgar os projetos para o país, assim como propagandas elogiando

as suas ações e divulgando-as. (ROCHA, 2000, p. 108)

A década de 1970 foi marcada por uma massiva tendência de consumo, que

atingia grande parte da classe média brasileira. (NAPOLITANO, 2008, p. 82).

Napolitano aponta o crescimento do consumo das telenovelas, noticiários, como jornais

e revistas, e um destaque para a revista Veja com grande circulação na época. Esse

sistema de produção e consumo de bens culturais atingiu uma escala industrial.

Outro fator que marcava os meios de comunicação era a censura, pois qualquer

crítica ao regime militar era previamente censurada. Os meios de comunicação, novelas,

revistas eram todos controlados pela censura, o que suprimia qualquer forma de livre

expressão. Eram os tempos do Ato institucional número 5 (AI-5), considerado o mais

opressor dos atos institucionais militares. O AI-5, proclamado por Costa e Silva em

1968, concedia ao presidente da República poderes singulares como: intervir tanto nos

munícipios quanto nos estados, assim como caçar mandatos eletivos tanto municipais

quanto estaduais e federais. E ainda a suspenção de direitos políticos contra qualquer

cidadão por 10 anos. A repressão se consolidava na violação dos direitos políticos e

civis, pois os cidadãos não podiam votar, o que significava um ato contra a democracia,

assim como eram punidos, torturados, mortos e presos se conspirassem contra o

governo; a sua liberdade era vigiada e seus direitos caçados. (FAUSTO, 1995, p. 484)

É nesse contexto, paralelamente à repressão e à censura, que começou a surgir

uma rede “alternativa” a toda a indústria de “cabresto” que ditava o que o brasileiro

tinha que assistir, ler, ouvir e pensar. Esse espaço “alternativo” em sua maioria era

formado por jovens que contestavam e lutavam contra o regime de ditadura civil-militar

tem origem nos anos 60. Essa rede “alternativa” era ligada a uma produção artesanal,

desvinculada de qualquer empresa que dominava o mercado. (NAPOLITANO, 2008, p.

83) Manifestavam-se em teatros e cinemas “marginais”.

Os anos 70 foram marcados por um crescente viés econômico que foi expressivo

no governo de Emílio Garrastazu Médici, o chamado milagre ecônomico. O Brasil saiu

da lista de 50º para 10º país com maior PIB (Produto Interno Bruto), aumentou

signitivamente o seu desenvolvimento industrial. A população também cresceu

significativamente. Houve aumento da exportação, e a economia cresceu 11% ao ano. O

“milagre econômico” estimulou o consumismo especialmente entre as classes médias,

com destaque para eletrodomésticos e automóveis.

Em meio à ditadura, ao consumismo e ao crescimento econômico excludente, os

jovens críticos e questionadores se deparavam com três opções, segundo Napolitano

(2008): a resistência democrática em pequenas ações no dia-a dia, a clandesdinidade, ou

vivendo fora do modelo de sociedade determinada pela ditatura. Ou seja, jovens críticos

do sistema político viviam na vulnerabilidade, às margens da sociedade.

Ao longo dos anos 70, as comunidades hippies protagonizavam uma nova

maneira de viver. Afastados do consumismo e da repressão da época, pregavam a

liberdade do indivíduo, a diluição da fronteira entre a arte e o corpo, assim como

praticavam o uso de drogas narcóticas e alucinógenas como a maconha e o LSD.

Viviam e conservavam o amor livre. Era a forma que encontravam de expandir a mente

e de se libertar, na busca de novas maneiras de viver e de se relacionar, com sexo livre e

uso de drogas pesadas. As consequências por vezes foram danosas, como em alguns

casos a morte e especialmente a dependência química dessas drogas. Mas havia também

o grupo de jovens politicamente engajados que buscavam a libertação coletiva, cuja

utopia se baseava na busca da resolução dos problemas coletivos, sociais, dos

problemas políticos então reprimidos. Esses jovens viviam na clandestinidade e lutavam

pela democracia e pelo fim da ditatura, pela liberdade de expressão.

Porém, havia outro segmento jovem da classe média que, entusiasmada com

todas as novas possibilidades de consumo e de bens culturais, assim como bens

materiais, participavam da abertura de um novo mercado de trabalho. Trata-se de jovens

considerados alienados, consumidores que almejavam os produtos da época,

especialmente o automóvel, considerado sinônimo da juventude da época; desejavam

comprar o Corsel 73 e aproveitar esse momento favorável ao consumismo.

(NAPOLITANO, 2008, p. 84)

Nesse contexto, a música, mais que a literatura, o cinema e o teatro, era uma

grande disseminadora de críticas e reinvindicações, porém muitas vezes censurada.

Artistas e cantores eram exilados e perseguidos. O alvo, evidentemente, eram as

músicas que relatavam criticamente as circunstâncias e as más condições de vida da

grande maioria da população, assim como criticavam e questionavam o sistema político

e social. Algumas vezes esses discursos críticos ficavam nas insinuações, nas

entrelinhas, mas que todo cidadão engajado conseguia interpretar; outras vezes a crítica

era mais aberta, a exemplo da canção MPB de Geraldo Vandré, “Pra não dizer que não

falei das flores” e até mesmo a Bossa Nova (ROCHA, 2000, p.102).

O rock se desenvolveu nesse contexto de contestação e reivindicação. Sua crítica

e protesto já foram considerados banalizados pelas bandas comerciais; mas, antes de

tudo, o rock, com suas reivindicações, protestos e críticas, contribuiu para a discussão e

a disseminação de questões políticas, sociais e históricas que serviram de combustível

para as lutas da juventude.

E se um capitão do exército americano diz que o rock and roll contribuiu

para o uso de drogas, bem como para a alta incidência de doenças venéreas

entre os recrutas, existe também o jovem radical que afirma: O rock não é

apenas um hino de guerra, um fundo sonoro como A Marselhesa foi para a

Revolução Francesa. Para a nossa geração o rock é a revolução

(MUGGIATTI, 1973, p. 19)

No governo Médici, o PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), com o lema

“Segurança e desenvolvimento”, promoveu a acelerada acumulação do capital industrial

na produção e ofereceu mão-de-obra barata aos investidores estrangeiros e estatais. E,

para conter e reprimir a população, o AI-5 entrava em cena. (ROCHA, 2000, p. 98)

Rocha (2000) aponta que estudantes, sindicalistas, guerrilheiros, intelectuais,

jovens revolucionários gritavam por mudanças, faziam passeatas nas ruas,

manifestações contra o fim da ditatura.

Denunciavam a penetração do capital estrangeiro como domínio imperialista

sobre o país. Criticavam a falta de liberdade de expressão e do livre debate

sobre o desenvolvimento. Combatiam a desvalorização dos salários e da

queda da qualidade de vida da maioria da população. Exigiam o fim da

ditatura e o retorno das liberdades democráticas (ROCHA, 2000, p. 99)

Vulnerável e com uma política voltada totalmente ao mercado externo, o milagre

econômico decaiu; a economia e o governo Médici tinham o seu fim; as “massas”

críticas cresciam em torno do movimento de fim do regime ditatorial e da

redemocratização do país.

Com o governo Geisel, inicia-se uma fase de abertura política, de forma “lenta

gradual e segura” e com medidas de dentro dos setores militares, tanto setores

moderados como “linha dura”. Este último, conservador, defendia o autoritarismo e a

repressão; o primeiro defendia uma abertura política. Ambas as linhas tiveram

contribuições para que o governo se articulasse frente às mudanças políticas ocorridas

nos anos 70. A partir de pressões internas e externas (com as manifestações e oposições

estudantis, sindicais, guerrilhas), o governo começou a distender a repressão ao terror

que perdurou durante dez anos. Em 31 de dezembro de 1978 chegou ao fim o AI-5;

estava instituito outro militar no governo, João Batista de Oliveira Figueiredo.

(CODATO, 2005, p. 85)

Com a campanha pela anistia retornava ao Brasil os exilados que estiveram fora

do país; a abertura política prosseguia com o fim do bipartidarismo e com a junção de

novos partidos políticos; configurava-se a nova fase com pretensão de uma democracia,

pregada por Figueiredo em seu discurso. Porém as suas atitudes e pretensões estavam

longe de serem democráticas. Numa declaração, Figueiredo disse: “Quem for contra a

democracia, eu prendo e arrebento.” Não era essa regressão que o país inteiro previa. O

presidente, que jurara no discurso de posse fazer do Brasil um país democrático, estava

se contradizendo? Ou eram apenas palavras de fingimento? (FAUSTO, 1995, p. 487)

Em 1983 e 1984, anos das Diretas Já, com o povo na rua, a divergência entre

sociedade e governo se tornava cada vez mais aguda. Em 1983, mais de um milhão de

pessoas na rua, reunidas na praça da Sé, em São Paulo, exigiam o fim da ditadura e o

estabelecimento de eleições presidenciais diretas no país. A insatisfação era clara:

inflação, desemprego e fome; baixos salários, dívida externa, repressão e autoritarismo;

exílio, prisões, perseguições, mortes e censura eram a herança da ditatura civil-militar.

Em 25 de abril de 1984, a votação da emenda Dante de Oliveira tinha sido

rejeitada; essa emenda previa o fim das eleições presidenciais pelo Colégio Eleitoral e

instituía a forma direta de eleição. Seguiram-se manifestações pelas Diretas Já em São

Paulo, no Rio de Janeiro e várias outras cidades do país. Derrotada a emenda

constitucional, de forma indireta, Tancredo Neves foi eleito presidente pelo Colégio

Eleitoral, tendo como vice José Sarney. (OLIVEIRA, 2011, p.12) Nascia a chamada

“Nova República”, com um discurso de viés democrático. Havia um otimismo com

Tancredo Neves à frente da Aliança Democrática.

Nesse mesmo ano de 1985, frente a uma série de mudanças e permanências

históricas, aconteceu o primeiro Rock in Rio no Brasil. O sucesso do festival respondia

a grupos que compunham uma nova geração que nascera no circuito São Paulo-Rio de

Janeiro-Brasília. Jovens que viveram a ditadura silenciados, por anos feito reféns,

compunham suas músicas com frases e versos de crítica social e política. Muitas dessas

canções foram entoadas no grande evento que reuniu milhares de pessoas do mundo

inteiro: o Rock in Rio. (SEVERIANO, 2013, p.442) Era uma nova fase, um momento

de livre expressão e de “mostrar as caras” e toda a insatisfação política que revoltava

amplos segmentos da sociedade. Que a música é um fenômeno repercurssor de críticas e

protestos sociais, isso ficou claro no rock brasileiro especialmente depois do Rock in

Rio.

Com a dramática morte de Tancredo Neves, seu vice José Sarney assumiu o

governo, com medidas para conter a inflação. A moeda Cruzado assumia o lugar do

Cruzeiro, houve uma valorização da moeda e os preços de mercado foram congelados;

assim o salário deveria ser ajustado automaticamente com relação à inflação. A

população acatou bem as novs medidas. (OLIVEIRA, 2011, p. 6) Com o aumento

significativo da inflação e a insatisfação com o Plano Cruzado, foram então

promulgadas as eleições diretas para presidente. Estava instaurada de fato a democracia

no Brasil. (FAUSTO, 1995, p. 487)

No que tange à produção cultural, esse período foi significativo, especialmente

após o fim da ditatura, momento em que o país vivia um livre momento para se

expressar e se comunicar. Atente-se à musica jovem do período. A música, grande

disseminadora de ideologias, nos traz elementos centrais referentes a essa nova fase da

nova República: a nova geração dos anos 80; geração que vivera nas grades da ditatura

a repressão e o autoritarismo, e que agora gritava em suas músicas repúdio e

insatisfação, expondo sem censura a sua indiganação e recusa diante do quadro social,

político e econômico do país.

É uma geração expressiva, com uma identidade marcada pela voz de crítica,

repúdio e contestação. Bandas de rock nacional são as maiores críticas nessa fase

marcada pela intensidade geracional da livre expressão. Nessa nova fase, o rock

brasileiro passou a ser mais audível e aceito. Com o grande evento do Rock in Rio, o

chamado “Brock”, ou rock brasileiro, que crescia a passos largos, deu um grande salto.

Em 1985, em meio a uma “Nova República”, os jovens e estudantes com suas bandas

puderam então gritar, dançar e cantar as suas canções sem nenhuma censura e repressão.

Mas a pergunta permanece: o que mudou na década de 1980? Brandão (2009)

questiona sobre a sua caracterização como uma “década perdida”, afinal, trata-se de

uma década que não só abalou no sentido político, com a transição e a

redemocratização, mas se também no sentido cultural. (BRANDÃO, 2009, p. 2) O que

estava se produzindo nessa época? Quais eram as novas músicas e a novas questões

vinculadas nas letras? O que estava sendo produzido e consumido no rock brasileiro?

Várias novas bandas surgem nesse contexto: Paralamas do Sucesso, Ultraje a

Rigor, Legião Urbana, Ira, Titãs, Capital Inicial, Plebe Rude, Barão Vermelho, Blitz,

entre muitas outras. A ideia de “década perdida” acaba por menosprezar o que se

produziu e se consumiu culturalmente nos anos 80. Diante desse cenário, as bandas

citadas tiveram grande repercursão no mercado, contando também com jornais e

revistas da época que ajudaram nessa divulgação fonográfica. Dentre as revistas da

época, podemos destacar: a Somtrês, de 1979 a 1989, considerada a primeira revista a

trabalhar com o genero rock e equipamentos musicais.2 Outra revista de grande

destaque foi a Bizz, que seguia uma linha industrial mais ampla em relações ao rock

brasileiro e internacional, assim como instrumentos, letras, notícias, posters, entre

outros assuntos ligados ao mundo do rock. A Bizz teve seu ínicio de publicação em

agosto de 1985 e perdurou, com algumas interrupções, até o ano de 2007.3

Não se sustenta a ideia de que o rock brasileiro teria então se amenizado em suas

contestações em forma de letras de músicas, em ruptura com a linha de canções de

protesto dos anos 50, 60 e 70, como a MPB, a Bossa Nova e a Tropicália; os

documentos da época, a começar pelas canções, evidenciam, pelo contrário, que o rock

dos 80 foi pano de fundo e hino das grandes manifestações e insatisfações sociais da

¹ ( Disponivél em < http://www.audiorama.com.br/somtres/index.htm> acessado em 13 de fev. De 2015,

20;35) 3 (Disponivél em http://bizz.abril.com.br/ acessado em 13 de fev de 2015, as 20:40)

época, assim como o rock de Raul Seixas, também grande disseminador em suas

canções de críticas sociais e políticas.

Essa pesquisa analisa o rock nacional dos anos 80 utilizando como uma das

fontes a revista Bizz, investigando as mais tocadas e, dentre elas, as que compunham o

hit parade; escolhidas as canções, é possível, mediante a análise do discurso,

problematizar as mais expressivas, ou seja, as que contenham elementos identitários que

possam ser analisados enquanto discurso litero-musical. A análise permite assim

evidenciar e compreender as representações das vozes de uma geração jovem que

questionavam o quadro político, econômico e social da época.

Para trabalhar com música, em especial suas letras, ou seja, analisando um

discurso contido nas canções, é preciso seguir alguns procedimentos metodológicos. A

metodologia empregada nessa pesquisa é a Análise do Discurso (AD). Segundo Orlandi

(1994), o discurso é um efeito de sentido entre locutores, é a produção de sentidos

através da linguagem, em relação com a exterioridade, ligado à história de uma

sociedade.

A Escola Francesa de AD nasceu na França nos anos 60 a partir de análises de

documentos textuais, mas logo extrapolou para um sentido mais amplo. Como aponta

Foucault, o discurso é objeto de desejo, aquilo que está intrínseco em nossa busca é

representação daquilo que almejamos possuir.

Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso como a psicanálise nos

mostrou, não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é,

também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que isto a história não cessa

de nos ensinar, o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou

sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual

nos queremos aponderar. (FOUCAULT, 1970, p. 10)

E, como afirma Orlandi (2005), a AD, partindo do enunciado, evidencia a

produção de sentido e permite o trabalho de interpretação.

[..] Todo enunciado, toda consequência de enunciado, toda sequência de

enunciados é lingüisticamente descrítivel como uma série (léxico-

sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar

à interpretação. (ORLANDI, 2005, p. 11)

O recurso à AD permite interpretar a música enquanto linguagem e reflexão

sobre o seu tempo e espaço social. Na canção a seguir analisada, a análise da letra abre

possibilidades para uma interpretação histórica e sociológica: ela remete-nos

diretamente à contestação e indignação de uma geração jovem. E, partir do momento

que o discurso é coletivo, ele intervém no social, causando identificação e uma

representação social geracional no escopo da sociedade. A análise acontece no corpus

como um todo; a análise de discurso não trabalha com frases isoladas, mas como ela se

corpora em uma série de enunciados. Assim, a análise é constituída de organizações dos

fragmentos mais ou menos enunciados, mais ou menos longos e mais ou menos

homogêneos, para poder submetê-los à análise. Discurso e enunciados são termos

confundidos na análise de discurso, sendo que o primeiro requer investigação e que

permite estabelecer um corpus. (MAZIÉRE, 2007, p. 14)

Usando o critério de seleção a partir do hit parade da revista Bizz, selecionei o

ano de 1986 por conter letras e canções com questões problematizadoras mais tônicas

frente à situação social e política. A partir desse quadro de 1986, selecionei o albúm

Cabeça Dinossauro, da banda paulista Titãs. Do álbum, selecionei a música “Estado

violência”, com a seguinte letra:

Sinto no meu corpo/A dor que angustia/A lei ao meu redor

A lei que eu não queria/Estado violência/Estado hipocrisia

A lei que não é minha/A lei que eu não queria

Meu corpo não é meu/Meu coração é teu

Atrás de portas frias/O homem está só

Homem em silêncio/Homem na prisão

Homem no escuro/O Futuro da nação

Homem em silêncio/Homem na prisão

Homem no escuro/O Futuro da nação

Estado violência/Deixem-me querer

Estado violência/Deixem-me pensar

Estado violência/Deixem-me sentir

Estado violência/Deixem-me em paz

Estado violência/Deixem-me querer

Estado violência/Deixem-me pensar

Estado violência/Deixem-me sentir

Estado violência/Deixem-me em paz

Estado violência/Deixem-me querer

Estado violência/Deixem-me pensar

Estado violência/Deixem-me sentir

Estado violência/Deixem-me em paz

(GAVIN, Charles. Estado Violência. In: MIKLOS, Paulo. Cabeça Dinossauro.

Rio de Janeiro: WEA, 1986. 1CD. Faixa5).4

Em 1985, o momento histórico era de transformações políticas. José Sarney

assumira indiretamente a presidência da República com o falecimento de Tancredo

Neves, eleito ainda por um colégio eleitoral depois da derrota da campanha das Diretas

Já. (KINZO, 2001, p.7). De qualquer forma, o fim da ditadura e da censura política e

moral estimulava a intensificação do descontentamento juvenil. Houve então uma maior

abertura para a difusão de críticas dos crônicos problemas do país. Uma parcela

significativa dos jovens, especialmente da classe média urbana, difundia críticas e

vários questionamentos sobre as relações sociais e a democracia. (ROCHEDO, 2011, p.

12).

Durante a ditadura civil-militar, a democracia e a cidadania foram abafadas.

Como aponta José Murilo de Carvalho, a cidadania estende-se a direitos civis (direito à

vida e à liberdade), sociais (direito à saúde, educação, trabalho) e também a direitos

políticos no que diz respeito à participação do indivíduo no governo e na sociedade,

como o direito de organizar partidos políticos e votar. Este último foi extinto totalmente

durante o regime em que os militares ocuparam o poder. (CARVALHO, 2002, p. 10)

Nessa perspectiva, a primeira estrofe que se refere “A dor que angustia/A

lei ao meu redor/A lei que eu não queria/ Estado violência/Estado hipocrisia” trata-se de

uma contestação enfática do período ditatorial, da prepotência e das leis impostas pelos

sucessivos governos militares: leis de cassação de mandatos, eleições indiretas, estado

de sítio, censuras nos meios de comunicação, nas artes e na educação artístico, exílio. A

rejeição é enunciada no verso “a lei que eu não queria”. A crítica é centrada nas

instituições do Estado, como nos versos que exigem: “Estado violência, deixem-me

querer/Estado violência, deixem-me pensar/Estado violência, deixem-me sentir/Estado

violência, deixem-me em paz”.

4 (Disponível em < http://www.vagalume.com.br/titas/estado-violencia.html#ixzz3RbU75ItH .Acessado

em 13 de fev. de 2015)

A estrofe seguinte — “Atrás de portas frias/O homem está só/Homem em

silêncio/Homem na prisão/Homem no escuro/O Futuro da nação” — merece uma

análise contextual. A partir de 1974, a ditadura enviava ao exterior agentes infiltrados

nos grupos de esquerda, opositores do regime; esses agentes infiltrados iam à caça de

militantes que tinham estratégicas de continuar a luta e assim voltar ao Brasil. Dessa

maneira, com infiltrações e traições de agentes no próprio âmbito dos movimentos,

muitos acabaram sendo eliminados e presos. Havia vários grupos opositores ao governo

dentre eles, destacou-se a Vanguarda Popular Revolucionária, que adentrou no Brasil

em julho de 1974 com o intuito de fortalecer suas ações contra a ditatura. (PALMAR,

2005, p. 19)

Nos anos de ditadura, os movimentos sociais levantaram as suas bandeiras, pela

luta da dignidade, pela liberdade e pela justiça social; cresceu o número de militantes e

guerrilheiros, associados a partidos e sindicados que, insatisfeitos com o quadro político

que a ditatura impunha, unia-se em prol de uma causa. O movimento estudantil,

sindical, junto à militância partidária e comunitária, contribuiu com a luta a favor do fim

da ditadura militar no Brasil. Greves, movimentos sociais, paralisações e passeatas

marcaram o cenário dos anos 70 e 80. O resultando desse processo foi as Diretas Já, a

qual, apesar da frustração coletiva, mudou o cenário político brasileiro. (ASSUNÇÃO,

2004, p. 14)

Entre 1971 e 1972 um grupo de militantes revolucionários lutavam contra a

ditatura. Eram militantes que inspiraravam-se na na Revolução Cubana e na Revolução

Chinesa, organizaram-se nas proximidades do Rio Araguaia, que banha os estados de

Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Tocantins e Pará. Esse movimento

guerrilheiro rural foi organizado pelo Partido Comunista do Brasil (PcdoB), com o

objetivo de desencadear uma revolução socialista. Porém o movimento foi descoberto.

De 1972 a 1975, o exército brasileiro assassinou o movimento; aproximadamente

setenta de seus membros são considerados como “desaparecidos políticos”. Esse

episódio levou o nome de “Guerrilha do Araguaia” fato que aconteceu em pleno

domínio ditatorial, porém foi marcado por um sigilo opressor e autoritário do sistema.

Esse acontecimento só reforçou o quanto era violento e injusto o sistema ditatorial

(FAUSTO, 1995, p. 485).

Porém, a maioria das pessoas não tomava conhecimento nem dos

acontecimentos de extermínio, nem dos presos políticos, caçados, torturados,

desaparecidos, pois atos contra o governo não eram mostrados, não eram vinculados e

não apareciam nos noticiários e nos meios de comunicação, pois estes, mediante censura

prévia, também eram controlados pelo sistema.

O governo passou a interferir drasticamente na vida das pessoas, principalmente

no cotidiano dos jovens ativistas políticos. A repressão, sobretudo, favoreceu o

desaparecimento da socialização, o que gerou um “esvaziamento das cidades”. Como

aponta Silva (2009), o cenário da redemocratização foi um campo propício para a

divergência política e o aparecimento de bandas e coletivos musicais, marcando uma

nova época, uma nova fase tanto de reflexão do tempo vivido diante da ditatura e suas

marcas, como de exaltação do descontentamento de suas permanências no cotidiano.

Silva (2009) aponta que nesse contexto surgem o “Rock de Brasília”, a

“Vanguarda Paulista”, O “heavy metal mineiro”, o “Punk do ABC Paulista”. Uma

característica dessas manifestações é o seu caráter urbano e o espaço de socialização

através da música. Um novo espaço se formou no começo dos anos 80, diferente da

época dos anos 60 e 70 sofridos pela repressão, esse novo espaço era uma intervenção e

articulação da cidade e seus espaços urbanos. Essas manifestações marcou uma época

de transição política democrática no final dos anos 1970 e começo dos anos 1980. A

cultura estava se remodelando e caminhando a um desenvolvimento democrático. Outro

aspecto relevante é a localização onde esses movimentos surgem, que são então a priori

as cidades de São Paulo e de Brasília. A primeira vista como símbolo de metrópole,

com característica cosmopolita e espaço de industrialização, se destacando entre as

cidades do Brasil pelos seus espaços urbanos. A segunda é sinônimo de urbanização e

modernismo, planejamento e de referências culturais. São espaços de grandes

repercussões e expressividades nacionais. (SILVIA, 2009, p. 2)

Como aponta Castells (1999), vivemos em uma sociedade em rede na qual

somos moldados pelas tendências da globalização e da identidade. A informação e a

reestruturação do capitalismo produz uma nova forma de sociedade, a sociedade em

rede. Vivemos em um espaço de expressões de identidades coletivas

Que desafiam a globalização e o cosmopolitismo em função da singularidade

cultural e do controle das pessoas sobre suas próprias vidas e ambientes.

Essas expressões encerram acepções múltiplas, são altamente diversificadas e

seguem os contornos pertinentes a cada cultura, bem como as fontes

históricas da formação de cada identidade. (CASTELL, 1999, p. 18)

Nesse sentido, pode-se analisar esse novo espaço de socialização e de

redemocratização como um acontecimento novo na esfera musical, em relação com um

campo de identidade geracional construída a partir de convicções políticas, marcadas

pela crítica e inseridas em um contexto de transformação social. As bandas de rock

brasileiro que surgiram nesse período marcaram a identidade de uma geração de jovens,

bem como serviram de trilha sonora a um novo período social no Brasil. Essas canções

construíram novos posicionamentos ideológicos disseminando uma postura crítica e

politizada entre segmentos da juventude.

Mesmo após a ditatura, a música como forma de protesto continuou apontando

suas insatisfações e fazendo suas críticas. É o caso da música “Estado Violência”, dos

Titãs. O rock brasileiro emergia com um novo “modelo” de atitude e comportamento,

gritavam uma nova voz, reprimida. Eram os filhos da ditadura agora em uma nova cena,

em uma nova época, os anos da abertura política.

“Os anos 1980 chegam com uma demanda reprimida e uma estrutura

industrial pronta para abraçá-la”, acredita Ricardo Alexandre, autor do

livro Dias de luta, publicada em 2002 [...]. Influenciadas pelo pós-punk

e new wave dos EUA e da Inglaterra, surgiram bandinhas de amigos de bairro

ou escola. “A gente viveu um momento peculiar, bacana na história. Nossa

geração faz parte da linha de frente, queria botar a boca no mundo”, lembra

Bi Ribeiro, dos Paralamas do Sucesso. “Eu tenho o maior orgulho. Depois do

regime militar, a nossa geração foi a primeira a ter voz, a se expressar

artisticamente”, reforça Guto Goffi, do Barão Vermelho. O rock dos anos

1980 se tornou porta-voz de um país ávido por se reinventar e propiciou

espaço para rupturas e experimentações musicais sob guarida da liberdade. 5

A cultura ávida vivida no contexto de ditadura e pós ditatura leva a uma reflexão

sobre, em especial as canções engajadas do rock brasileiro dos anos 1980. Essas

canções estão ligadas diretamente com o espaço político. Como afirmou Mcluhan

(1969), o meio é a mensagem Isso nos remete à compreensão de que as consequências

5 Disponível em <http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/viver/2013/05/19/internas_viver,440093/rock-dos-

anos-1980-o-som-que-revolucionou-uma-geracao.shtml > acessado em 19 de fev de 2015, ás 20:30.

sociais e pessoais de qualquer meio estão diretamente ligadas com a sua produção; a

produção ou aquilo que construímos culturalmente é a extensão de nós mesmos, da

nossa identidade, daquilo que vivenciamos e acreditamos. “O meio é a mensagem,

porque é o meio que configura e controla a proporção e a forma das ações e associações

humanas”. (Mcluhan, 1969, p. 23). Compreende-se que o conteúdo de qualquer meio

está diretamente ligado ao meio e ao contexto inserido. Nesse caso, o período de

redemocratização reflete a angústia e o descontentamento com o regime militar, um

momento de abertura política que possibilita o artista/compositor/cantor se manifestar

contra o governo.

É preciso pensar o contexto de produção dessas letras no sentido amplo, como

diz Bakhtin/ Voloshinv (1992, p. 106)

Conforme Bakhtin/Voloshinov [...] “o sentido da palavra é totalmente

determinado por seu contexto. De fato, há tantas significações possíveis

quantos contextos possíveis” [1]. A partir desse aspecto de unicidade-

singularidade do uso das palavras, as indicações são de que o contexto diz

respeito à fugacidade do aqui-agora, ou seja, às condições e fatores

temporais, espaciais e sociais que envolvem os interlocutores. Assim, o

contexto – da ditadura ou pós-ditadura – é o espaço das ruas, dos espetáculos

artísticos, da redação e da leitura jornalística, é o controle da polícia e dos

censores, o temor dos brasileiros, a ação e a não-ação da população, é a aura

que paira e que “agride” sobretudo quem se opõem ao governo militar, é a

sensação provocada pela anistia no final da década de 1970, é a liberdade de

se expressar contra o governo. Podemos, então, afirmar que o contexto são

aspectos gerais da sociedade brasileira das décadas 1960-70-80 concernentes

à política e à cultura.6

A música é formada por uma series de linguagens sendo compostas por música e

poesia, assim como series informativas como sociológicas, históricas, biográficas

estéticas. O que nos permite uma vasta interpretação em relação à conjuntura que está

vinculada e direcionada.

Os sentidos enigmático e polissêmico dos signos musicais favorecem os

mais diversos tipos de escuta ou interpretações — verbalizados ou não — de

um público ou de intelectuais envolvidos pelos valores culturais e mentais,

altamente matizados e aceitos por uma comunidade ou sociedade. A partir

dessas concepções, a execução de uma mesma peça musical pode provocar

múltiplas “escutas” (conflitantes ou não) nos decodificadores de sua

mensagem [...] de acordo com uma perspectiva sincrônica ou diacrônica do

6 Disponível em < http://artenaescola.org.br/sala-de-leitura/artigos/artigo.php?id=69362> acessado em 19

de fev. De 2015, ás 17:50.

tempo histórico. (NAPOLITANO, 2002, p. 63 Apud CONTIER, 1991, p.

152)

Conforme Bakhtin (2006), o sentido da palavra está totalmente determinado pelo

seu contexto. Há várias significações possíveis como interpretações, como contextos.

(BAKHTIN, 2006, p.107) Os contextos encontram-se numa situação de interação de

conflito, com o qual a cultura está intimamente ligada. A partir do momento que são

frutos desse meio, e inserida nele, de forma que reproduz aquilo que vivem e pensam

seus produtores e consumidores. De forma crítica, o rock brasileiro assumiu esse papel

devido ao cenário de redemocratização e da trajetória política. Utiliza-se de crítica

direta, sem usar metáforas ou entrelinhas; questiona o Estado, o governo, as ações

políticas, econômicas, assim como a censura, militares, a situação social em si, sem

utilizar outras palavras para sem para “disfarçar” ou para referenciar a palavra direta;

utiliza a palavra e seu sentido real, sua contestação nua e crua. Esse é o exemplo da

música “Estado Violência” quando menciona de forma clara frases como “a lei que não

queria”, “Homem em silêncio/homem na prisão” ou a própria expressão-título: “Estado

violência”. Os versos evidenciam claramente um repúdio contra a violência marcada

pelos anos de ditatura e repressão quando reforça: “Estado violência/Deixem-me querer/

Estado violência/deixem-me pensar/Estado violência/ deixem-me sentir/Estado

violência/deixem-me em paz.” Os versos aludem abertamente aos desejos, pensamentos

e sentimentos de uma geração e por fim grita como forma de apelo: “deixem-me em

paz.” De forma explícita e anárquica questiona o Estado, como no próprio refrão Estado

violência’, repressor e limitador, causador da angústia afirmada na primeira estrofe:

“Sinto no meu corpo/A dor que angustia/ A lei ao meu redor/A lei que eu não queria”.

De forma objetiva, Paulo Miklos (um dos vocalistas da banda Titãs) canta e

critica o Estado, a história vivida, censurada e reprimida ao longo dos anos de ditadura.

Com a abertura política, as letras não sofriam mais o risco da censura, o compositor não

temia mais o exílio. Nesse sentido, a canção diferente, por exemplo, da música de Chico

Buarque, que deixa a crítica e a contestação como subtextos, nas entrelinhas dos versos.

Pai, afasta de mim esse cálice/Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice/ De vinho tinto de sangue

Pai afasta de mim esse cálice/Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice/ De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga/Tragar a dor, engolir a labuta

Mesmo calada a boca, resta o peito/Silêncio na cidade não se escuta

De que me vale ser filho da santa/Melhor seria ser filho da outra

Outra realidade menos morta/ Tanta mentira, tanta força bruta

Pai, afasta de mim esse cálice/Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice/De vinho tinto de sangue

Como é difícil acordar calado/Se na calada da noite eu me dano

Quero lançar um grito desumano/Que é uma maneira de ser escutado

Esse silêncio todo me atordoa/Atordoado eu permaneço atento

Na arquibancada pra a qualquer momento/ Ver emergir o monstro da lagoa

Pai afasta de mim esse cálice/Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice/ De vinho tinto de sangue

De muito gorda a porca já não anda/De muito usada a faca já não corta

Como é difícil, pai, abrir a porta/Essa palavra presa na garganta

Esse pileque homérico no mundo/ De que adianta ter boa vontade

Mesmo calado o peito, resta a cuca/ Dos bêbados do centro da cidade

Pai, afasta de mim esse cálice/Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice/ De vinho tinto de sangue

Talvez o mundo não seja pequeno/Nem seja a vida um fato consumado

Quero inventar o meu próprio pecado/Quero morrer do meu próprio veneno

Quero perder de vez tua cabeça/Minha cabeça perder teu juízo

Quero cheirar fumaça de óleo diesel/ Me embriagar até que alguém me

esqueça

BUARQUE, Chico; GIL, Gilberto. Cálice. In: BUARQUE, Chico. Chico

Buarque. São Paulo: Polygram/Philips, 1978. 1CD.Faixa 3.7

A canção “Cálice” foi composta em 1973, mas por ser censurada pela ditadura

foi gravada e publicada somente em 1978, com o início lento e gradual da abertura

política no Brasil. A canção cantada por Chico Buarque utiliza-se de metáforas para

falar sobre a ditatura, a violência e a repressão. Em nenhum momento cita a violência,

mas menciona sangue e a frase repetida: “Pai, afasta de mim esse cálice”, representando

então a censura, a repressão e a tortura. Em outras palavras, nas entrelinhas

complementa com “Como beber dessa bebida amarga/Tragar a dor, engolir a labuta”.

Em nenhum momento o autor menciona Estado, nem prisão, ou quaisquer oposição

clara ao governo militar; é tudo dito nas entrelinhas e em metáforas elaboradas.

Em termos comparativos, pode-se analisar que o rock brasileiro, produto cultural

da geração dos anos de 1980, era mais objetivo e direto em suas contestações, pois era

uma fase de uma “nova República”, uma nova etapa, uma fase de transição para a

democracia. A geração dos anos 1980, os ditos filhos da ditadura, podia enfim deflagrar

as suas insatisfações e descontentamentos abafados durante o período ditatorial. E as

7 Disponível em < http://letras.mus.br/chico-buarque/45121/ > acessado em 19 de fev. De 2015, ás 21:31.

músicas se tornaram um grande meio para vincular essas críticas e também um espaço

de socialização como compartilhamento de ideologias coletivas de uma geração, que

estava aí para mostrar que não iria se calar.

As músicas comportam as questões do espaço-tempo de uma sociedade, de

histórias vividas, do que se presenciou e se construiu. Nesse caso, conforme uma

interpretação possível, a música é “espelho” e “reflexão” da indignação, protesto, crítica

e reinvindicação; é a áspera poesia, a realidade vivida e cantada numa canção. A história

nos permite compreender a música como produto passível de interpretação. A partir dos

historiadores dos Annales, que ampliaram a forma como estudar e compreender a

história, a ampliação do conceito de documento possibilita pesquisar e desmembrar

outros significações e artefatos para se construir e reconstruir a história. (REIS, 2000, p.

18) A música faz parte dessa série de novos meios e novos documentos, não oficiais,

para se estudar a história do país.

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