Rodrigo Naves - Em Pó.pdf

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    11/02/2016 Nuno Ramos - Site do Ar tista Nuno Ram os - www.nunoram os.com .br  

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    Rodrigo Naves - Em pó1/3/1988

    Em pó

    Certamente não foi um simples acaso que fez a arte moderna erguer tantas colunas. Com elas, aescultura podia, num mesmo movimento, interrogar-se sobre sua constituição e estrutura, sobremovimento e repouso, equilíbrio e tensão, ritmo e descontinuidade. Nelas, o processo de

    formalização se revelava em seus elementos mais simples, sem precisar figurar seusprocedimentos numa multidão de torsos, membros, músculos etc. Além disso, as colunas tornarampossível o diálogo crítico com a tradição hierática e simbólica do monumento e da escultura,realçando a solidão orgulhosa da subjetividade moderna e sua confiança na capacidade de tudoformalizar.Basta pensar em importantes trabalhos de Brancusi, Tatlin, David Smith, Barnett Newman, TonySmith e Carl Andre — apenas para citar alguns nomes — para se ter uma idéia da envergaduradestas questões. Contudo, o percurso que leva de Brancusi a Andre é, de certo modo, o caminhoque conduz da certeza ao impasse; da infinitude virtual da forma à serialidade algo frágil de nossosdias, que entre outras coisas aponta para os dilemas em que um conceito dominante deestruturação se vê metido.

     As colunas de Nuno Ramos não desconhecem estas dificuldades. Ao contrário, elas se elevam

    com uma insegurança e uma incerteza de tal ordem que perguntamos a todo instante se darãoconta da forma que assumiram. O movimento ascensional que deveria conduzir as peças é corroídopela cal que vaza pela trama construída com barrotes de madeira. Na verdade, chega a ser difícil,por vezes, identificar aí dois materiais distintos, pois a todo momento um transmite ao outroalgumas de suas características, num entrelaçamento em que a combinação dos elementos nãofortalece a construção resultante, produzindo antes uma relação frouxa que ecoa por todo otrabalho. Por mais estreito, fisicamente, que seja o contato entre a cal e a madeira, há um lapsoque suspende o travejamento entre o pó e o sólido.Nesta indiferença áspera, os dois materiais revertem a clássica relação continente-conteúdo, namedida em que a cal solapa a rigidez da madeira por mera justaposição. E é importante frisar queeste processo erosivo não se dá pela expansão do pó. Se isto acontecesse haveria uma tendênciaà formalização que não se verifica nas colunas — este movimento extrovertido necessariamentedaria sustentação à grade de madeira, que aí sim imporia sua verticalidade. Mas nada disto ocorrre.

    O tempo destes trabalhos não é o tempo da sucessão, que permite que as coisas se acumulem.Ele é antes um tempo poroso, que age no interior de um presente extensivo, a criar reiteradamentea sua própria suspensão, anulando um após o outro todos os movimentos sucessivos. Com isto, éo próprio processo de conformação que é colocado em xeque. Se na tradição moderna em boamedida a forma era obtida a partir de uma concepção fenomenológica da matéria — o que não aimpedia de ter uma presença até então desconhecida —, e consequentemente de umaconstrutividade que era dada na própria relação perceptiva, num embate em que a resistência doselementos estava apenas um pouco aquém do poder de formalização do sujeito, agora temos comoque uma pulverização deste nexo por uma maleabilidade excessiva da matéria, que inviabilizapassivamente as próprias tentativas de estruturação. De certo modo, a trama de madeira é umateatralização deste drama.Mas, se em alguns artistas contemporâneos — penso, por exemplo, em Richard Serra e José

    Resende — esta desmesura da matéria traz em si uma expressividade que reside no incessantequestionamento de suas balizas formais, nestas obras de Nuno Ramos encontramosintencionalmente uma anemia expressiva, pela ausência calculada de qualquer choque produtivo. Épor este estrito motivo que nestas peças a cal será "rebaixada" à reles condição de poeira, nosentido mais comum do termo, aquela leve camada que vai se depositando aos poucos sobre osobjetos, chegando ao ponto de ocultar seu contorno. Neste processo de camuflagem, o materialnão será mais o elemento em que se dá a forma, mas, ao contrário, terá a propriedade dehomogeneizar todas as configurações.Nos trabalhos de pano e cal esta questão aparece com clareza: a sobreposição do pó acaba por dissolver a organização mínima que era propiciada pelas pregas, num processo de sedimentaçãoque equaliza todos os acidentes. A dobra que, numa destas peças, quebra a monotonia dasuperfície de cal apenas aparentemente vence a mesmice que reina soberana. Na verdade, ela é oindicador mais seguro de que nada sobreviveu a este encobrimento: a forma que ela traça ao ser levantada não é mais que um baixo-relevo da poeira que se acumula a sua volta. Nada escapa aeste horizonte em pó.Esta paradoxal sujeira limpa — tão distinta em sua elegância aérea dos bólides de Hélio Oiticica oudos embrulhos asquerosos de Barrio, e que está mais próxima de obras como Desvio para oVermelho e Cinza, de Cildo Meireles —, no entanto, possui um aspecto monstruoso inegável. É

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    11/02/2016 Nuno Ramos - Site do Ar tista Nuno Ram os - www.nunoram os.com .br  

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    que esta aderência universal que a tudo recobre não possibilita qualquer individuação. Desdobradateoricamente ao infinito, nem ao menos permitiria que falássemos em extensão ou profundidade.Deste modo, um trabalho que começou com nítidas referências ao serialismo minimalista terminapor desaguar no bloqueio da própria noção de série. As bolas de pano e cal são a demonstraçãoirrefutável disto. Amontoadas num canto, elas mal propiciam a constituição de um ritmo que,diferenciando-as, unisse as várias unidades numa concatenação cadenciada. Por sua forma edisposição, elas sucumbem ao amorfo, que as indiferencia.Sumariamente, podemos dizer que, se a pop, à sua maneira, foi uma resposta especular a umasociedade que, em seu movimento de base e em sua aparência, tende à livre permuta de tudo, a

    corrente representada por estas obras força a criação de novos limites pela quase eliminação desua possibilidade. A arte que confere visibilidade a este processo toca as raias da própriarepresentação sensível. Afinal, só se vê aquilo que se recorta. Mas, nos nossos dias, talvez sejaeste rebaixamento dos contrastes uma das únicas formas de garantir ao menos a possibilidade deuma percepção reflexiva.