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A Crítica da razão prática e o estoicismo * Valério Rohden Universidade Luterana do Brasil resumo No presente trabalho será demonstrada a estreita, embora discreta, relação da filosofia moral de Kant com a ética antiga, especialmente com o estoicismo de Cícero. O tema será explicitado mediante uma aproximação entre as obras da Crítica da razão prática e Sobre os fins (De finibus), respectivamente de cada um desses autores. Será destacada a crítica de Kant à identificação entre virtude e felicidade e sua reformulação sintética no conceito de “sumo bem”. Na conclusão se torna claro que a realização moral da razão, reivindicada por Cícero, encontra na reformulação de Kant sua determinação mais precisa. palavras-chave estoicismo – idéia – razão – sumo bem – virtude – felicidade 1. Atmosfera estóica A título de introdução ao tema proposto – a presença da ética estóica na Crítica da razão prática –, quero em um primeiro momento mostrar como a ética estóica constituiu a atmosfera propícia ao desenvolvimento da filosofia moral de Kant.A seguir abordarei a concepção estóica do “sumo bem”, adstrito a uma identificação da felicidade com a virtude; por fim, considerarei a concepção sintética do sumo bem em Kant, a partir da qual ele criticou a concepção analítica estóica. Na abordagem será privi- legiada, em relação ao assunto, a discreta relação entre Kant e Cícero. Servir-me-ei, nesta introdução, do termo “atmosfera” em seu sentido figurado de “ambiente espiritual e social” (dicionário Houaiss) que envolve um objeto. Formada a partir de “atmos”, com o sentido grego de 157 doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 2, n. 2, p.157-173, outubro, 2005 Recebido em janeiro de 2005.Aceito em maio de 2005.

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  • A Crtica da razo prtica e o estoicismo*

    Valrio RohdenUniversidade Luterana do Brasil

    resumo No presente trabalho ser demonstrada a estreita, embora discreta, relao da

    filosofia moral de Kant com a tica antiga, especialmente com o estoicismo de Ccero. O

    tema ser explicitado mediante uma aproximao entre as obras da Crtica da razo prtica

    e Sobre os fins (De finibus), respectivamente de cada um desses autores. Ser destacada a

    crtica de Kant identificao entre virtude e felicidade e sua reformulao sinttica no

    conceito de sumo bem. Na concluso se torna claro que a realizao moral da razo,

    reivindicada por Ccero, encontra na reformulao de Kant sua determinao mais precisa.

    palavras-chave estoicismo idia razo sumo bem virtude felicidade

    1. Atmosfera estica

    A ttulo de introduo ao tema proposto a presena da tica estica naCrtica da razo prtica , quero em um primeiro momento mostrar comoa tica estica constituiu a atmosfera propcia ao desenvolvimento dafilosofia moral de Kant.A seguir abordarei a concepo estica do sumobem, adstrito a uma identificao da felicidade com a virtude; por fim,considerarei a concepo sinttica do sumo bem em Kant, a partir daqual ele criticou a concepo analtica estica. Na abordagem ser privi-legiada, em relao ao assunto, a discreta relao entre Kant e Ccero.

    Servir-me-ei, nesta introduo, do termo atmosfera em seu sentidofigurado de ambiente espiritual e social (dicionrio Houaiss) queenvolve um objeto. Formada a partir de atmos, com o sentido grego de

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  • vapor,atmosfera significa no nvel fsico a camada de gases que circun-da um planeta e a se mantm graas respectiva fora de atrao. Emtorno da Terra, a atmosfera a camada de ar que nos permite respirar eviver1. Logo, assim como a vida fsica tem sua atmosfera, tambm a vidaespiritual tem seu ambiente. E se, de um lado, o estoicismo nutriu-se deseu ambiente greco-romano, de outro, a segunda Crtica de Kant encon-trou nele a atmosfera propcia sua reformulao moderna2. Portanto, emrelao a Kant investigar-se- aqui sob que condies essa tica originriada filosofia contribuiu vitalmente para a formao do ambiente kantiano,do qual somos herdeiros e a partir do qual hoje pensamos3.Vou procurarexpressar essa vigncia filosfica do estoicismo a partir da tese de KlausReich sobre a recepo kantiana das idias de Plato por meio deRousseau e Ccero4.

    Rememoro a propsito o texto de Klaus Reich, Die Tugend in der Idee:Zur Genese von Kants Ideenlehre que tambm abordei no projeto depesquisa submetido ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cient-fico e Tecnolgico (CNPq). Reich observa a que o uso por Kant dotermo idia no procede diretamente de Plato mas por meio deCcero, segundo o qual a idia no pode existir na realidade mas serve depadro de medida para orientar o juzo em um determinado domnio eque ele aplica, por exemplo, ao orador e ao vir bonus do livro III do Deofficiis. Kant, por sua vez, aplica essa verso ciceroniana de Plato no 9da Dissertao de 1770 perfectio moralis = Tugend (virtude), transforman-do-a em um conceito a priori em sentido estrito5.A propsito da relaoRousseau-Kant sobre o termo idia na verso dada por Ccero, Kant,nas Vorlesungen zur Religionsphilosophie, edio Plitz de 1817, p. 109,escreveu: A gente representa idias no homem, tambm em Deus. Elasno so cpias das coisas mas arqutipos das mesmas, pelos quais unica-mente so possveis. Rousseau diz: construo de uma casa pertencemtrs coisas: 1. a idia na cabea [...], 2. a imago [...], 3. a apparence [...].Agora,ele [Rousseau] faz uma bela aplicao: o moralista representa a virtude naidia, o historiador representa-a do modo como os homens efetivamentea possuram. O poeta ou o escritor de teatro representa apenas como elaaparece, meramente a apparence (apud REICH, 1964 p. 211).

    O empenho maior de Reich residiu em descobrir onde Rousseauexpunha essa verso ciceroniana de Plato, que encontrou referida em

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  • Kant. Localizou-a no texto De limitation thatrale. Essai tir des dialogues dePlaton (1764).A Rousseau refere-se ao Livro X da Repblica, em que aarte aparece como uma espcie de gosto de terceira classe, depois da idiae da realidade comum. Rousseau combina a, por assim dizer em sentidociceroniano, a idia e o conceito de razo pura, aplicados virtude. O que que ento encontramos em Kant? Responde Reich:Plato visto pelaslentes de Ccero com os olhos de Rousseau (REICH, 1964, p. 212).Kant com certeza conheceu esse texto de Rousseau e o citou naVorlesung por volta de 1784.Alm disso, na Reflexo 6611 lemos:Idia o conhecimento a priori do entendimento, pelo qual o objeto torna-sepossvel. Ela refere-se ao objeto prtico como um principium. Contm emcerto sentido a mxima perfeio [...]. S existe no entendimento [...].Toda a moralidade repousa sobre idias e sua imagem no homem sempre s uma idia [...] (KANT, 1902 ss, vol. XIX, p. 108)6. Segundo aCrtica da razo pura, Plato encontrou suas idias principalmente nodomnio prtico, isto , no que se assenta sobre a liberdade, sob conheci-mentos da razo pura. O conceito de virtude, entendido como arqutipo,se fosse tirado da experincia, perderia seu sentido.As idias tornam pelaprimeira vez possvel a experincia do bem. Em outra passagem, naNachricht von der Einrichtung seiner Vorlesungen..., de 1765, Kant observaque esse mtodo de comparao do que acontece com o que deve acon-tecer uma bela descoberta de nossa poca. O descobridor, segundoReich, foi Rousseau. Kant escreve nas Bemerkungen ber das Gefhl desSchnen und Erhabenen:O livro de Rousseau (mile) serve para corrigiros Antigos (KANT, 1902ss., vol. XX, p. 9, apud: REICH, 1964, p. 214).Serviu tambm para tornar Kant crtico.

    Essa referncia ao conceito platnico de idia, recebido por Kant pelamediao mais remota de Ccero, teve por objetivo introduzir ao rela-cionamento entre esses dois autores e, obliquamente, ao estoicismo. Emverdade, no h no mbito da Crtica da razo prtica nenhuma menoespecfica a Ccero, o estico romano apreciado por Kant.Tampouco issose verifica na Fundamentao da metafsica dos costumes, em relao qual aobra de Carlos Gilbert prova em detalhe a influncia de Ccero (cf.GILBERT,1994 e tambm MARDOMINGO,1996, pp.1-101). Almdisso, depois de ter encontrado em um outro trabalho de Klaus Reich,Kant und die Ethik der Grieschen (1935), uma aluso a uma carta de

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  • Hamann, segundo a qual Kant escrevia em 1784 uma obra de ticacontra a interpretao que Christian Garve fazia de Ccero, investiguei oassunto mais de perto na Correspondncia de Hamann (1965). Na p. 123do vol.V da mesma se l:Kant deve trabalhar em uma anticrtica cujottulo mesmo ainda no se sabe ao Ccero de Garve. Que a notcia fidedigna pode ver-se pelo acrscimo na frase seguinte:Eu visitei-o hoito dias. A notcia impressionou tanto Hamann que ele a repetiu emvrias outras cartas, sem grandes diferenas.

    Essa era a atmosfera estica antes, estico-romana da Crtica darazo prtica.A ns ela interessa na medida em que pretendemos exami-nar a relao de Kant com o estoicismo justamente na perspectiva deCcero. Como escola pertencente tradio helenista da fase ps-clssica(sculos III a I a.C), o estoicismo deu, com os epicuristas e os cticos,unidade filosfica e cultural a uma poca. Segundo Malte Hossenfelder,as escolas antigas de modo geral esto estreitamente aparentadas entre si:possuem convices bsicas e programas comuns, com variaes apenasnas suas conseqncias ou na sua efetivao. O fato de elas polemizarementre si fala em favor de seu estreito parentesco7: possuem uma mesmaterminologia, conferem um primado razo prtica sobre a terica e tmum idntico princpio fundamental prtico. A razo prtica, em umsegundo tipo de relao com a terica, faz esta depender tambm de umcontedo prtico. Por exemplo, para a realizao do sumo bem admiti-mos a imortalidade da alma, mesmo que a razo terica no a alcance (arazo prtica tem o primado em questes sobre as quais no possveluma deciso terica).As afirmaes do primado da razo terica sobre aprtica decorrem, em parte, da presuno de que o dever-ser deriva doser (naturalismo tico) e, em parte, da escolha dos meios adequados a seuconhecimento. No estico Crisipo, como tambm em Epicuro, a Fsicaest a servio de fins ticos. No helenismo a cincia terica tem de justi-ficar-se a partir de interesses prticos. Mas Hossenfelder defende a tese deque o interesse prtico determina decisivamente o contedo e mesmo aforma dos sistemas tericos, como no caso de Sexto Emprico,conformemente ao qual os sistemas foram construdos para justificarnossas fraquezas.

    O princpio prtico comum ao helenismo e a toda a filosofia antiga a eudaimonia (felicidade). Na polmica entre esticos e epicuristas sobre

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  • virtude e vcio, trata-se menos de uma polmica sobre o telos, o fim maisalto, do que de uma polmica sobre o caminho para a realizao da eudai-monia. Nem o prazer em Epicuro, nem a virtude nos esticos um fimprprio, apenas a eudaimonia possui valor absoluto. Esta, no entanto,permanecer um conceito vazio se no for melhor determinada, comono caso no conceito de uma vida bem sucedida.A Glckselligkeit (nomealemo para eudaimonia) limitada a um estado predominantementeinterno e espiritual, enquanto eudaimonia refere-se em primeiro lugar aum sucesso exterior (cf. HOSSENFELDER, 1985, p. 23). Para o helenis-mo, a boa sorte (o Glck alemo) especifica-se necessariamente de umponto de vista negativo como liberdade da excitao interior. Epicuroe os cticos identificam-na como ataraxia (tranqilidade), em ambos oscasos como ausncia de fatores que produzam tenso e agitao da alma.De um ponto de vista positivo, os epicuristas entendem a eudaimoniaanalogamente a uma plena calma do mar (no nimo) e os esticos comoo curso de vida favorvel (Wohlfluss). Quando um curso de rio flui bem,quando em analogia com ele no se impedido por redemoinhos eondas, fala-se de perfeita calma e equilbrio de nimo ou de paz interior,segundo as escolas helenistas.A eudaimonia encontra-se ameaada quandoo corao depende do que no est disponvel ou quando depende denecessidades que no podem ser satisfeitas; portanto, quando no esto aoalcance das foras de cada um. Logo, s se deve desejar o que se conseguesatisfazer, sendo-se indiferente para com o restante. O princpio funda-mental prtico torna-se ento de s se reconhecerem aquelas necessi-dades cuja satisfao se encontra totalmente ao alcance das prpriasforas (idem, p. 20).

    2. Identificao de virtude e felicidade

    Uma abordagem da relao da filosofia moral de Kant com a filosofiaantiga requer um exame da questo do sumo bem, em torno de cujoncleo, como observei, orbitavam todas as suas ticas. Para essa compara-o sigo, de um lado, o texto kantiano da Crtica da razo prtica e, deoutro, o do De finibus de Ccero. Na Crtica da razo prtica, a questo tratada a partir de A 198,Da dialtica da razo pura na determinao do

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  • conceito de sumo bem, em que Kant se estende tambm determi-nao das afinidades entre estoicismo e epicurismo, como duas formasopostas de identificao entre virtude e prazer. diferena dessasconcepes, que na determinao do sumo bem estabeleciam umarelao analtica entre os conceitos de virtude e felicidade, Kant a esta-belece uma relao sinttica entre eles.Ambas essas ticas, maximamenteem sua fase grega, centravam suas reflexes sobre a figura do sbio, queencarnava solitariamente a prtica do bem, enquanto a quase totalidadedos demais homens era vista como tola e vivia no mal; no obstante,Kant considerava a caracterstica mais relevante do estoicismo seuconceito de virtude (KANT, 2003, p. 41; KpV A 22). Os esticos tinhamem comum com os acadmicos e peripapticos a identificao entreviver segundo a natureza e viver segundo a virtude8, que entendiamcomo forma de vida honesta. Para os epicuristas, a necessidade dasabedoria como arte de viver voltada para o prazer justificava-se dianteda insaciabilidade de nossos apetites. Ou seja, ela era desejvel como umaforma superior de prazer, em que tambm a virtude se fundamentava.Pois, embora todos os prazeres se originem no corpo, os prazeres da almaso maiores que os do corpo: o corpo s nos permite sentir o presente,enquanto a alma pode sentir o passado e o futuro. Recordaes e espe-ranas aumentam o prazer. O sbio no depende do futuro, mas o espera.Os tolos sofrem com a recordao de suas dores, enquanto os sbios sealegram com a grata recordao dos bens passados. Por isso o epicuristado texto de Ccero tambm declara que os homens no poderiam viverprazerosamente sem viver sbia, honesta e justamente (CICERO, 1988,I 57). Logo,nenhum tolo feliz e nenhum sbio infeliz. Saber buscaralegremente o prazer ser sbio, virtuoso e feliz. Ou seja, a sabedoriaepicurista consiste em um pragmatismo da administrao racional davida em vista do prazer.

    O estico, por sua vez, procura identificar o sumo bem com a virtude,tentando distingui-lo do prazer. Sua justificativa para a eliminao doprazer a impossibilidade de limitao dos apetites. Por isso ele contestatambm o ponto de vista epicurista, da competncia dos sentidos parajulgar o prazer como bom e a dor como m. Pois s razo competejulgar sobre coisas divinas e humanas concernentes sabedoria e virtude. Nisso o estoicismo concorda com Kant, mas se afasta dele ao

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  • afirmar no s que ao prazer negado ser sede do sumo bem, mas que aele negada tambm sua conexo com a virtude (CICERO, 1988, II,37). O estico afirma duas teses (ou faz duas formulaes da mesma tese):primeiro, de que a razo s reconhece como boa a virtude, no tendo oresto nenhum peso ou somente um peso relativo; segundo, de que avirtude um viver segundo a natureza.

    Diferentemente dos epicuristas, para os esticos cada animal tem suafinalidade, que para o homem no reside simplesmente no comer e noprazer de reproduzir-se, mas no conhecer e agir.Veremos melhor essadiferenciao estica do homem em relao ao animal pela razo e avirtude, mediante a apreciao de uma passagem memorvel do Definibus. Segundo esse pargrafo, que desmembro em cinco pontos,

    1) a virtude possui a natureza de ser louvvel por si mesma, indepen-dentemente de toda a utilidade, prmio ou vantagem;2) o que a virtude depende menos de uma definio do que dojuzo concordante de todos os homens a seu respeito, bem como dosexemplos dos melhores, que procedem de um determinado modosimplesmente porque dever, porque reto e virtuoso, mesmo vendoque no ganham nada com isso;3) os homens distinguem-se dos animais em um ponto: eles possuemrazo.A razo capaz de conhecer as causas e conseqncias, estabe-lecer semelhanas, vincular o passado, o futuro e o presente e, enfim,projetar a estrutura completa de uma vida em si conseqente.A razofaz que cada homem procure a convivncia com os outros e concordecom eles pela natureza, linguagem e aes (cf. CICERO, 1988, II, 45)9;4) esse desenvolvimento da razo se d por um crescimento do amor,primeiro famlia e aos seus, a seguir formao de uma comunidadepoltica e da a todos os homens. Ccero justifica-o com uma frase dePlato, de que o homem no veio ao mundo para si s, mas tambmpara sua ptria e os seus, com uma parte menor para si prprio(CICERO, 1988, II, 47) e5) o homem recebeu os apetites para amar o verdadeiro, o justo e obom e detestar o falso, o enganador e a maldade.

    Assim, segundo a interpretao que Ccero faz do estoicismo, no hnenhum bem alm da virtude.A virtude a consumao da razo. O que

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  • concorda com a razo dever: o dever uma forma de agir que encon-tra aprovao e pode ser justificada.A razo a forma de vida do homem,para a qual tudo toma sentido:Assim como nossos membros corporaisforam-nos dados com vistas a uma determinada forma de vida, assimtambm a aspirao da alma, que em grego se chama , obviamentenos foi dada no com vistas a algum modo qualquer de vida, mas parauma forma de vida bem determinada. O mesmo vale para a razo e paraa razo perfeita (CICERO, 1988, III, 23).

    No era de admirar, pois, que Kant encontrasse em um livro como oDe finibus, de Ccero, uma inspirao ininterrupta para sua reflexo moral.Por isso, para avanarmos e diferenciarmos a concepo kantiana dosumo bem da sua concepo tica estica, leiamos antes o grande louvorfeito a ela na Religio nos limites da simples razo:

    Esses filsofos tomaram o seu princpio moral universal da dignidadeda natureza humana, da liberdade (como independncia do poder dasinclinaes); um princpio melhor e mais nobre tampouco teriampodido pr como fundamento. Eles desse modo hauriram a lei moralimediatamente da razo, unicamente legisladora e ordenante por meiodela; e assim objetivamente, no que concerne regra, e tambmsubjetivamente, no que concerne ao motivo, se atribumos ao homemuma vontade no corrompida, de sem mais assumir essa lei em suasmximas, estava tudo indicado de modo totalmente correto (KANT,1977, vol. 8, p. 709-710;A 62-63, B 68-69).

    Ento, em que consistia a diferena entre kantismo e estoicismo?

    3. Uma concepo sinttica do sumo bem

    Veremos aqui mais especificamente em que se resume a mudana deconcepo de Kant em relao ao antigo conceito de sumo bem. Aprimeira caracterstica dessa virada que, enquanto esse conceito ocupa-va posio central na tica antiga, isso j no acontece na orientaoformal de Kant.Trata-se, no obstante, de um conceito mais relevante doque em geral se supe, na medida em que a apetio essencial de umarazo prtica consiste em querer realizar-se e o sumo bem a matria

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  • dessa realizao mas em Kant jamais seu pressuposto. J antes de suaabordagem temtica, Kant escrevia sobre a implicao entre forma ematria da lei:Portanto a simples forma de uma lei que limita a matriatem que ser ao mesmo tempo uma razo para acrescentar essa matria vontade, mas no para pressup-la. Matria e forma, no entanto, secomplementam, quase se integram, se, ao tomar a felicidade por objeto,pressuponho a universalidade como sua lei. Ou seja, no h incompati-bilidade entre felicidade e moralidade, desde que eu no eleve a minhafelicidade pessoal a um princpio. Seja a matria, por exemplo, minhafelicidade prpria. Se atribuo esta a cada um (como no caso de entes fini-tos, de fato, nos permitido fazer), ela somente pode tornar-se uma leiprtica objetiva se incluo na mesma a felicidade dos outros. Logo, a lei depromover a felicidade dos outros no surge da pressuposio de queaquela seja um objeto para o arbtrio de cada um, mas simplesmente dofato de que a forma da universalidade, que a razo necessita comocondio para dar a uma mxima do amor de si a validade objetiva deuma lei, torna-se o fundamento determinante da vontade; portanto, noera o objeto (a felicidade dos outros) o fundamento determinante e, sim,a simples forma legal, pela qual eu limitava a minha mxima fundadasobre a inclinao para propiciar-lhe a universalidade de uma lei(KANT, 2003, p. 117; KpV A 61).

    Kant acrescenta que o conceito de obrigao surge da limitao damxima forma da universalidade e no do acrscimo do motivo, a feli-cidade dos outros. Logo, ele no universaliza a matria e por issomantm o conceito de felicidade natural ou prpria, que cada um buscaespontaneamente. Todavia, como ente finito, o homem no espon-taneamente bom, mas sua bondade conquistada contrariando as incli-naes, isto , submetendo-as condio da sua compatibilidade rec-proca mediante uma lei da razo, cuja necessidade prtica fruto denossa liberdade moral.

    Com isso dever ficar mais fcil a compreenso da preeminncia davirtude, na sua composio com a felicidade com os dois elementos dosumo bem. Para Kant, h que distinguir entre sumo bem (hchster Gut)e bem supremo (oberster Gut). O sumo bem composto de um bemsupremo, a virtude, e de um segundo elemento, a felicidade. Mas avirtude, embora seja a condio suprema de tudo o que desejvel, no

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  • a o bem completo e consumado, contrariamente ao que vemos nosesticos ( verdade que Ccero, no entanto, como registrei, lucidamenteadmitiu na direo de Kant que a virtude da alma no podia ser todo obem, que inclua tambm o cuidado do corpo). O bem completo econsumado em Kant requer o concurso da felicidade como objeto dafaculdade de apetio de entes finitos. Em resumo, a virtude o bemsupremo, mas no o sumo bem, que inclui alm dela a felicidade.

    Esse reconhecimento kantiano da felicidade como um componenteda realizao da prtica moral importante: a pessoa que pratica a virtudetorna-se digna da felicidade, merecendo-a. verdade que esse direito, porassim dizer, nasce da sua condio de ser natural. Ou seja, ela buscadanaturalmente, por meio da cultura, como um fim ltimo (letzter Zweck)da vida de cada um10. Mas aqui se fala que, se o homem no a conquistanaturalmente, ou mesmo que a conquiste desse modo, de qualquermaneira deve compatibiliz-la com a virtude. Se da Crtica da faculdade dojuzo aprendemos que o homem como ser moral torna-se fim para simesmo, liberdade, e que a partir dessa perspectiva v finalisticamente anatureza, v tambm a prpria felicidade, enquanto busca natural, em umnovo contexto, o moral. Esse novo contexto no implica a supresso dasua condio de felicidade natural, apenas requer a sua compatibilidadecom a felicidade dos demais. Analogamente ao que disse Kant deRousseau no plano scio-jurdico11, poderamos dizer que a incluso dafelicidade em um espao moral, que o da convivncia universalenquanto ser humano, no diminui a felicidade de cada um antes aaumenta (porque ento no apenas eu cuidarei da minha felicidade e,alm disso, custa dos demais, mas todos estaro cuidando dela o tantoquanto da sua prpria). A autoconscincia moral torna-se base desseconceito heurstico de finalidade (cf. KANT, 1993, 84, p. 275; KU, B396; cf. tambm ROHDEN, 1995).

    Na Crtica da razo prtica Kant justifica, do ponto de vista de umquerer no contraditrio, a incluso da felicidade no sumo bem:Pois sercarente de felicidade e tambm digno dela, mas apesar disso no serpartcipe dela, no pode coexistir com o querer perfeito de um enteracional [...] (KANT, 2003, p. 393; KpV A 199). Kant fala ento a defelicidade como componente do sumo bem de um mundo possvel. Snesse conjunto, de que a virtude a condio suprema, ele um bem

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  • consumado. Em contrapartida, a felicidade no por si s algo absolu-tamente bom, mas pressupe como condio a conduta moral.

    diferena dos antigos, Kant afirma que a conexo necessria entreessas duas determinaes, como razo e conseqncia, no s analticae lgica, mas sinttica e real, submetidas aquela lei de identidade e esta lei de causalidade (em sentido prtico). Quando penso em virtude eem felicidade, tenho duas mximas diversas, duas conscincias diversascomo fundamento, que precisam unificar-se, ou seja, que no so analiti-camente uma s.

    Epicurismo e estoicismo em relao ao sumo bem procuravam aunidade do princpio segundo a regra de identidade, mas cada umdivergindo do outro em relao a qual era o conceito fundamental. Aoposio, segundo Kant, dava-se da seguinte maneira:O epicurista dizia:ser autoconsciente de sua mxima que conduz felicidade, eis a virtude;e o estico: ser autoconsciente de sua virtude, eis a felicidade (KANT,2003, p. 395; KpV A 200). Eles esquadrinhavam uma identidade entreconceitos extremamente desiguais. Mas procediam opostamente enquan-to um buscava essa identidade no plano sensvel e o outro buscava-a noplano racional, como independncia da razo prtica de todos os funda-mentos determinantes sensveis. Para um, o conceito de virtude estavacontido na mxima de promoo de sua prpria felicidade e, para outro,o sentimento de felicidade j estava contido na conscincia de suavirtude.Temos a duas totalidades diversas com a mesma matria, varian-do apenas o seu modo de vinculao. Para o estico a virtude o sumobem total, sendo a felicidade apenas a conscincia de sua posse no estadodo sujeito. Para o epicurista, a felicidade o sumo bem total e a virtudeapenas a forma da mxima para concorrer a ela.

    Kant j provara na Analtica da razo prtica a heterogeneidade dessasmximas em relao a seu princpio supremo. Felicidade e moral so doiselementos totalmente diversos, de modo que a sua vinculao no podeser conhecida analiticamente.Trata-se de uma sntese de conceitos.Almdisso, ela conhecida a priori, quer dizer, no podemos inferi-la da expe-rincia real, mas temos de pens-la no nvel de uma experincia possvele necessria. A possibilidade do sumo bem no depende de princpiosempricos, logo sua deduo tem de ser transcendental. Ou seja, Kant temque demonstrar como essa sntese possvel e necessria a priori. a

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  • priori (moralmente) necessrio produzir o sumo bem mediante a liber-dade da vontade (KANT, 2003, p. 401; KpV A 203).

    Kant far essa demonstrao a partir, primeiro, da Antinomia da razoprtica (KANT, 2003, p. 403 ss; KpV A 204 ss.) e, segundo, da Supressocrtica da antinomia da razo prtica (KANT, 2003, p. 405 ss; KpV A 205ss.). No primeiro caso, ele dir que a conexo prtica das causas e efeitosno mundo envolve um conhecimento das leis naturais e, ento que, se apromoo do sumo bem ordenada pela lei moral for impossvel, tambma lei moral o ser.A soluo dada mediante uma demonstrao prticada existncia de Deus. Primeiro, Kant demonstrara que no existircoliso entre necessidade natural e liberdade, se os eventos forem pensa-dos como fenmenos. O homem pensado como noumenon pode ser livredeterminante de certos eventos. A proposio estica, de que a virtudepromove necessariamente a felicidade, no falsa de modo absoluto, masapenas condicional. Kant, porm, pensa esse nexo entre moralidade e feli-cidade mediante Deus, porque a vinculao que ns podemos estabele-cer com a felicidade como objeto dos sentidos contingente e, portanto,insuficiente para o sumo bem. Deus torna-se a base de uma possvelvinculao natural e necessria entre conscincia da moralidade e a justaexpectativa de felicidade proporcional a ela. O desenvolvimento desseponto d-se mais adiante na seo A existncia de Deus como umpostulado da razo prtica (cf. KANT, 2003, p. 441 ss; KpV A 223 ss.),precedido do postulado da imortalidade.

    4. Concluso

    Para concluir, reapreciemos o a implicado conceito de felicidade. Deacordo com o que nos diz o texto, felicidade o estado de um enteracional no mundo para o qual, no todo de sua existncia, tudo se passasegundo seu desejo e vontade e depende, pois, da concordncia danatureza com todo o seu fim, assim como com os fundamentos deter-minantes essenciais de sua vontade (KANT, 2003, p. 443; KpV A 224).Por isso Kant poderia aqui dizer que a felicidade vista desde a perspec-tiva do seu todo ou de seu fim o mesmo. Ambos so uma idia,portanto, uma unidade de natureza e razo. Kant justifica a que, no

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  • sendo o agente racional ao mesmo tempo causa do mundo e da natureza(dos quais a felicidade depende), a lei moral se apresenta como funda-mento para essa interconexo necessria entre moralidade e felicidadeproporcionada a ela. Ns devemos promover o sumo bem, mas aomesmo tempo foge de nossas foras a sua consumao. Por isso temos depensar um ser que possua o fundamento da desejada interconexo, como que o postulado da possibilidade do sumo bem converte-se em postu-lado da existncia de Deus.

    A tese contm um paradoxo: de que a promoo do sumo bem sejaum dever e que ao mesmo tempo no dependa inteiramente de ns, isto, no esteja totalmente ao nosso alcance. Kant, no entanto, distingueentre necessidade subjetiva e necessidade objetiva prtica (dever). Eu notenho deveres em relao existncia, que envolve a razo terica. Umdever em relao ao sumo bem concerne apenas ao empenho por suapromoo no mundo (cf. KANT, 2003, p. 447; KpV A 226).

    As escolas gregas no chegaram soluo da questo do sumo bem,porque dispensavam a existncia de Deus e imaginavam alcanar avirtude plenamente nesta vida (cf. KANT, 2003, p. 451; KpV A 228).Com isso se excederam em relao capacidade do homem como sbio,para alm de todos os limites de sua natureza, admitindo algo contra-ditrio em relao ao que conhecemos do homem. Por outro lado, o seusbio foi tornado independente da natureza e igualado a uma divindade.Eles integraram a felicidade totalmente moralidade, contra o que recla-mava a sua prpria natureza.

    Muito mais identificada com a conscincia kantiana da finitudehumana revelou-se a tica do cristianismo, para o que, igualmente, avirtude era aproximao infinita e a felicidade no era totalmentealcanvel nesta vida. Dessa conscincia tanto de fraqueza quanto demrito emergia o conceito-chave da esperana, pelo qual se passa damoral religio. Mas o passo religio no pertence filosofia moral, quetrata do bem praticvel nesta vida entre seres humanos livres. Estes supe-ram sua propenso solipsista pela abertura razo.A razo, como sendo ocomum a eles vimo-lo em Ccero aspira a realizar-se. Sua realizaocoincide com o sumo bem humano.

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  • * Este trabalho, aps ter sido apresentado no I Colquio de Histria da Filosofia Bicen-tenrio da morte de Kant (Marlia, maro de 2004), foi reapresentado nas VI JornadasNacionales Agora Philosophica, - "El legado de Immanuel Kant: actualidad y perspectivas",ocorridas em setembro de 2004 na cidade de Mar del Plata,Argentina. Com nosso consenti-mento, ele foi tambm publicado nas Actas dessas Jornadas.

    1 A respirao, no entanto, parece no constituir no homem um fenmeno de meradependncia externa, mas provir da conjuno alma-corpo e sobretudo de um princpio inte-rior de vida que se identifica com a alma. O termo alemo atmen e o prefixo atmos se comu-nicam. Segundo Hermann Paul, aquele termo procede do indiano antigo ou snscrito (umalngua falada no norte da ndia no primeiro milnio a. C.), no qual atma significava respiraoe alma. Cf. paralelamente Gnesis 2, 7.Tambm os termos latinos anima/animus tm a ver como grego anemos, vento, sopro. Anima o princpio da vida espiritual (Georges) ou, segundoKant,o nimo por si s inteiramente vida (o prprio princpio da vida) (KANT, 1993, B129. trad. p. 124;por um lapso de digitao, na traduo faltou a parte entre parntesis dessacitao,o princpio da vida). Kant explicou o prazer esttico como sentimento de vida (cf.KANT, 1993, B 4, trad. p. 48).A seguinte frase de Goethe, que vincula esteticamente vida eatmosfera, talvez sirva de fecho a este assunto:Um dich,Adelheid, ist eine Atmosphre von Leben,Mut./ A ti,Adelaide, envolve uma atmosfera de vida, coragem (de Goetz von Berlichingenapud PAUL, 1992, p. 56; o destaque meu).Assim, podemos concluir, o estoicismo foi essaatmosfera inspiradora e vivificadora da filosofia moral de Kant.

    2 Kant fundou esse seu procedimento interpretativo num princpio hermenutico queexpressou na Crtica da razo pura (KANT-1983, KrV A 314/B 370; trad. p. 186) e que formu-lou justamente em vista de Plato, ou seja, de que o pstero de um autor pode compreend-lo melhor do que ele mesmo se compreendeu.

    3 A propsito da nossa proximidade com Kant e dele com a filosofia antiga, reproduzo minhasdeclaraes Programao maio/junho 2004 do Goethe-Institut Porto Alegre:Suponhamos quea definio que Richard Rorty deu do que significa ser filsofo esteja correta: filsofo quemse ocupa com Plato e Kant. Ento sempre que filosofarmos discutiremos com o autor daRepblica. E ento tambm o autor das trs Crticas ser nosso contemporneo. Ou seja, opensamento de Kant estar to vivo quanto a nossa capacidade de pensar por ns prprios.Pensar, portanto, significar discutir com Kant. Com ele aprendemos a ser crticos nos mbitosdo conhecimento, da ao e da vida. Kant torna-se imprescindvel ao nosso tempo e a todotempo em que houver pensamento. Logo, com os duzentos anos de sua morte, na verdade,comemoramos a vitalidade intrnseca de uma filosofia.A frase com que Kant concluiu a Crti-ca da razo pura: S o caminho crtico ainda est aberto, revela-se como certa. Se, como eletambm afirmou,um filsofo posterior entende um autor melhor do que ele prprio se enten-deu, ento Kant desenvolveu um pensamento aberto para o futuro. O futuro dele somos ns.

    4 Segundo declarao oral de Maximilian Forschner, pesquisador kantiano da filosofia esti-ca, Kant manteve permanentemente sobre sua mesa de trabalho apenas dois livros: o Definibus (Sobre os fins, 47 a. C.) e o De officiis (Sobre os deveres, 44 a. C.), de Ccero. Kant lera oltimo j em seu perodo colegial (h uma traduo brasileira do mesmo publicada pelaMartins Fontes, 2000). Se a isso ligarmos tambm que ele mantinha sobre a parede de suacasa apenas o retrato de Rousseau e que por causa da leitura de seu Emlio deixou uma nicavez de dar a sua caminhada diria, ento inferiremos desses dois dados que ambos os autores

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  • eram-lhe os mais caros.

    5 Segundo essa passagem, um dos fins dos conceitos do entendimento dogmtico, cujosprincpios gerais conduzem a algum modelo concebido apenas pelo entendimento purocomo medida comum no que respeita realidade de todos os outros, o qual a perfectionoumenon, com um sentido em parte terico concernente ao ser e Deus, e um sentido prti-co, concernente liberdade, no caso, perfeio moral, que serve como critrio de ajuiza-mento do que no perfeito, mediante um processo de limitao negativa. Escreve a Kant:Em toda espcie de coisas cuja quantidade varivel, o mximo a medida comum e o princ-pio do conhecimento. O mximo de perfeio chama-se presentemente ideal, para Plato aidia (como a idia de sua repblica) e o princpio de toda as coisas que esto contidasna noo geral de alguma perfeio, na medida em que se considera que os graus menoresapenas podem ser determinados por limitao do mximo (KANT, 1985, p. 49).

    6 Dada a importncia para o leitor dessa longa Reflexo, da poca em torno de 1769-1770,transcrevo-a aqui inteira, e que traduzo a partir da edio da Academia, cujas partes entrecolchetes so acrscimos desse editor, enquanto as entre os sinais pertencem ao tradu-tor:(O conceito, a idia, o ideal. O conceito um fundamento geral de distino (o traocaracterstico). Unicamente o conceito a priori tem verdadeira universalidade e o principiumdas regras. Da virtude s possvel um ajuizamento segundo conceitos, por conseguinte apriori. O ajuizamento emprico segundo intuies em imagens ou de acordo com a expe-rincia no fornece nenhuma lei, mas meramente exemplos, que requerem para ajuizamentoum conceito a priori. Muitos so incapazes de deduzir seus princpios a partir de conceitos. Idia o conhecimento [do] a priori [puro] (* do entendimento), pelo qual o objeto torna-sepossvel. Ela refere-se ao objetivamente prtico como um principium. Contm em certo senti-do a mxima perfeio. Uma planta s possvel segundo uma idia. Ela s existeno entendimento e no homem em conceitos. O sensvel s a imagem, por exemplo, na casaa idia contm todos os fins. O esboo somente o sensvel, ao qual a idia se conforma.Todaa moralidade baseia-se em idias, e sua imagem no homem sempre incompleta. No entendi-mento divino trata-se de intuies de si mesmo, por conseguinte, de arqutipos. A repre-sentao de um objeto dos sentidos conformemente a uma idia e perfeio intelectual nela ideal. Ideais concernem somente a objetos do entendimento e existem s no homem e sonele fictiones.Trata-se de uma inveno , para pr uma idia na intuio in concre-to. Os trs ideais da moralidade a partir de conceitos. O ideal mstico da intuio intelec-tual de Plato. Santidade ideal da influncia sobrenatural.(* Conceito de planta, mas no idia)).

    7 um velho conhecimento sociolgico que grupos se combatem tanto mais fortemente,quanto mais estreitamentes se encontram relacionados (HOSSENFELDER, 1985, p. 12).

    8 Cf. a respeito meu trabalho Viver segundo a idia de natureza, apresentado no ColquioKant da Universidade Federal de Santa Catarina em 02/06/2004 (indito).

    9 A razo possui ainda outras caractersticas: revela-se pela sua largueza, grandeza, maisprpria para ordenar que obedecer, freqentemente invencvel, representa ordem e medida.No irrefletida nem jamais prejudica algum.A beleza e dignidade das formas corporais, daspalavras e dos atos sua afigurao.

    10 Todavia, do mesmo modo como numa comunidade humana a condio natural tem de

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  • adaptar-se s condies de adequao recproca, visvel num estado de direito, assim o fimltimo natural tampouco o fim terminal (Endzweck) do homem. Este situa-se ao nvel darazo, em que o homem deixa de pertencer a uma escala animal (em que a felicidade fimltimo natural individual), sem considerao dos demais. No nvel da razo, o indivduotorna-se ao mesmo tempo fim para si mesmo e, sob a condio da igualdade de ver a todosos outros da mesma forma como um fim, torna-se fim dos outros e os toma tambm comoseu prprio fim.

    11 No se pode dizer que o Estado, o homem no Estado, tenha sacrificado uma parte de sualiberdade exterior inata a um fim, mas ele abandonou totalmente a liberdade sem leisselvagem para reencontrar a sua liberdade em geral, no diminuda, em uma dependncialegal, isto , em um estado jurdico; porque esta dependncia surge de sua prpria vontadelegisladora (KANT, 1977, vol. 8, p. 434, 47,A 169/B 199).

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