Romance Claudio

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  • 7/30/2019 Romance Claudio

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    franco more tt i

    A cultura do romance

    Traduo denise bottmann

    Capa waltercio caldas

    cosac naify, 2009

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    cla ud io ma gr is

    O romance concebvel sem o mundo moderno?

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    Em uma pgina de dirio, Croce escreve que o autor de romances Moravia foi

    encontr-lo naquele dia. A nota traz sua inconfundvel malcia, aquele humor fe-

    rino, sagaz e penetrante, que talvez permanea o gnio maior e mais duradouro de

    don

    um rude rebaixamento de Moravia e uma limitao implcita de sua importncia

    e de sua fama, como se o nome Moravia no fosse por si s bastante e houvesse

    tratasse de um visitante annimo qualquer, para conferir-lhe uma identidade.

    informao de passaporte, parece quase redutora, a indicao de uma atividadehonesta e respeitvel, ao menos pela boa vontade, mas no especialmente brilhante

    e portanto situada em um nvel pouco elevado da vida do esprito; mais o exerccio

    de uma funo prtica por certo dialeticamente til do que uma criao de poe-

    sia, do que para Croce a poesia. Certamente, Croce gostou de alguns romances

    e soube interpret-los, mas o romance permaneceu, fundamentalmente, estranho

    sua esttica e sua crtica. No por acaso, pois o romance expresso daquela

    modernidade radical, daquele mundo moderno que ele celebrava como progresso

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    libertado de dogmatismos polticos e religiosos e assim por diante mas que a

    sua natureza mais ntima impedia-lhe de compreender e compartilhar o modo deser e de sentir, as transformaes da sensibilidade e da prpria subjetividade em

    sua relao com o mundo, a empoeirada, parodstica, por vezes degradada mas

    aventurosa e radicalmente nova odisseia.

    O romance nasce e cresce quando se desfaz a civilizao agrria e a ordem

    feudal, espelho de estruturas perenes ou ao menos de longussima durao do

    ser, que so e permanecem as categorias essenciais da fantasia e do gosto de Croce,

    de seu modo de enxergar e viver o mundo e de acolher sua evoluo. No plano

    poltico, Croce exalta a burguesia, que destruiu o classicismo agrrio e criou e

    amou o romance, mas no plano esttico ele permanece completamente estranhoe insensvel moderna prosa do mundo que, como poderia ter-lhe ensinado

    seu caro Hegel, constitui a premissa e essncia do romance. Croce soube viver e

    com inteligncia desabusada contemporaneamente a poltica moderna, mas

    no a cultura, a arte, a literatura, ou seja, a maneira pela qual os homens vivem a

    vida e, em consequncia, tambm a poltica; um contemporneo aguerrido de

    Pode-se imaginar o romance sem o mundo moderno? O romance o mundo

    moderno; no apenas no poderia existir sem este, como a onda sem o mar, mas

    o olhar e o contorno da boca so a expresso de um rosto. Decerto, o termo

    romance remonta epoca medieval, e h os romances gregos, mas se poderia

    embrionrias e com todas as caractersticas culturais, sociais e estilsticas de suas

    pocas aquelas caractersticas de modernizao, para bem e para mal, e de

    da pica, a ambivalente simbiose de crise epigonal e inovao tcnica, resduos

    do universo pico remodelados e recompostos em novas estruturas, declnio deantigos valores e arrojada construo da realidade; mistura de estratgias narra-

    tivas populares, seriale feuilletons que fascinaram o pblico antigo, como mais

    tarde o burgus, polifnica contaminao de gneros e especialmente de regis-

    iminncia de algum outro, e radicalmente diferente, que percebemos mas no

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    O primeiro romance em sentido prprio o incomensurvel Dom Quixote, que,

    olhos de Deus; a partir de seu modelo, sculos mais tarde, o romantismo inventaDom

    Quixote o epos epos

    deixar de aventurar-se pelas estradas esburacadas do mundo, como se este fosse

    desiluso e com essa desencantada e paradoxal resistncia; a epopeia do desen-

    canto e conserva e esbanja, ao menos no incio, na lcida descoberta e na narrao

    do triunfo da prosa, o eco e a ressonncia da poesia e da epopeia.

    O grande estilo pico, escreve Hegel, consiste no fato de a obra parecer cantar-

    se sozinha e apresentar-se como autnoma, sem ter na fronte o nome do autor;Homero um, nenhum e muitos. O heri do epos e com ele o autor sente

    originariamente potica do mundo, como Hegel a chama, na qual os valores,

    as normas ticas, a unidade da vida no so sentidas pelo indivduo como algo

    imposto exteriormente, mas como fundido e temperado em sua disposio de

    esprito, que ignora qualquer ciso.

    O sujeito se sente em harmoniosa e inocente unidade consigo mesmo e com

    insubstituvel e transforma as descartveis bacias de barbeiro no elmo de Mam-

    brino, como queria Dom Quixote, nico e irrepetvel.

    Essa condio originariamente potica acaba, segundo Hegel, com a moderna

    -

    divduo deve propender mesmo contra a sua individualidade, adequando-se ao

    progresso social que exige a sua especializao ou seja, a restrio de seu desen-

    volvimento pessoal, a renncia formao completa de sua personalidade em

    Quando se instaura essa ciso, as determinaes universais que guiam a ao hu-

    mana diz Hegel no fazem mais parte da alma do indivduo, mas se erguem

    ante ele como uma coao estranha, como uma ordenao prosaica das coisas.

    A abstrao e a natureza mecnica do trabalho parecem desautorizar o sujeito

    e contrapor sua poesia do corao sua exigncia de viver uma vida verdadei-

    ramente sua

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    do mundo, a rede annima de relaes sociais, na qual se encontra apenas como

    Hiprion, o heri do romance-poema de Hlderlin que sonha o renascimento daHlade, ou seja, o nascimento de uma nova civilizao total e harmoniosa, fala

    de uma vida cortada pela raiz, do homem que era e deveria e dever voltar a

    ser tudo e que, ao contrrio, nada.

    O romance nasce do triunfo da prosa do mundo, que se pe e percebida e

    -

    ra da sociedade e da relao entre os homens, suas vidas e da narrao de suas vidas;

    como guinada metafsica da histria, de que a verdadeira metafsica um elemento

    fundante. modernidade essencial, entre outras coisas, a ideia de domnio da his-

    tria e da natureza, do projeto capaz de mudar-lhe e dirigir-lhe o curso. No importa

    ir aumentar at se exasperar em nossos dias de uma mutabilidade vertiginosa de

    tudo o que se mostrava ao menos em relao ao tempo histrico do homem como

    eterno e imutvel. O prprio homem, pouco a pouco ou seja, suas paixes, suas

    percepes, sua conscincia, sua lgica, seu ser , surgir mutvel em sua essncia,

    e mutvel surgem, por conseguinte, os prprios cnones e ideais de poesia e beleza.

    O romance o gnero literrio por excelncia dessa transformao universal, que

    envolve e destri todo classicismo, todo Belo potico eterno, e no permite mais

    crer que, sobre os modernos, brilhe ainda o mesmo sol de Homero. No difcil

    entender por que no era um gnero literrio particularmente agradvel a Croce,

    para quem a alternativa poesia/no poesia tinha um estatuto imutvel.

    O romance o gnero literrio que representa o indivduo na prosa do mun-

    do; o sujeito sente-se inicialmente estrangeiro na vida, cindido entre sua nostlgica

    interioridade e uma realidade exterior indiferente e desvinculada. O romance

    com frequncia a histria de um indivduo que busca um sentido que no h, a

    odisseia de uma desiluso. Hegel, entretanto, acreditava e esperava que o romance

    fosse a nova epopeia burguesa, mostrando como o sujeito, superada a exignciajuvenil da poesia do corao, inseria-se judiciosamente na concatenao do mun-

    do, subordinando-se realidade prosaica das relaes sociais, que no princpio

    conduzir, portanto, passando pelas forcas caudinas do desencanto e da depresso

    Na histria da Roma republicana, episdio em que os romanos so subjugados sob duras]

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    subjetiva, a um eplogo positivo, ao reconhecimento de uma totalidade social na

    qual se integrar e aceitao consciente do duro preo a exautorao do indiv-

    duo que o progresso histrico exige.A moderna epopeia burguesa, inspirada nesta f dialtica, ser de fato quase

    inexistente; uma realizao sua por certo no muito importante poder ser

    paradoxalmente, por exemplo, o romance realista-socialista ou stalinista, que re-

    presentar a construo de um mundo pico, coletivo a revoluo, a sociedade

    -

    divduos que se lhe submetem, mesmo sendo triturados.

    Antes que epopeia moderna, como queria Hegel, o romance moderno ser

    a antiepopeia do desencantamento, da vida fragmentria e desagregada. Talvez

    apenas o romance setecentista, anterior Revoluo Francesa, revele um carter de

    para a prpria aventura vital, emancipada de qualquer cdigo valorativo. O Tom

    Jones de Fielding uma autntica epopeia burguesa, uma alegre correspondncia

    entre um sujeito sem valores e um mundo sem valores, que se oferece inesgotavel-

    Defoe em primeiro lugar Moll Flanders, a cortes indestrutvel constroem e

    indiferena e permutabilidade de valores, usados e descartados como roupas.

    -

    corrncia universal nasa uma liberdade maior.

    A mo invisvel de Adam Smith, deusa do mundo moderno, governado pela

    cincia triste da economia, rege portanto o ordenamento do universo romanesco

    como os deuses do Olimpo e, acima deles, o destino regiam o universo da

    garantidos. O mesmo Adam Smith, de resto, usa a metfora da mo invisvel

    como demonstrou Giorgio Gilibert menos do que se acreditava (trs vezes) e

    com uma f incontestvel em seu agir, mas menos incondicionalmente otimistado que se costuma supor.

    De acordo com o diagnstico de Fichte, retomado e evocado genialmente por

    Lukcs muito mais tarde, o romance surge como o gnero literrio de uma poca,

    -

    trica e cruel de todos contra todos, da anarquia dos particulares desenraizados de

    qualquer totalidade.

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    sente a idade moderna como uma contraditoriedade inesperada e por esse senti-

    mento culpado de uma contradio desacorde que nasce a maior arte moderna esobretudo o grande romance moderno. O sentimento de culpa, a pecaminosidade,

    no diz respeito, moralmente, ao indivduo isolado, ao seu agir privado, pelo qual

    subjetivamente responsvel, mas condio histrica geral, impossibilidade objetiva

    de instaurar valores e de encontrar um sentido da vida, o caos e a angstia do mundo.

    O indivduo experimenta o sentimento de viver em um mundo cado e o prprio sen-

    se sentiro culpadas exatamente porque incapazes de remir sua condio de fraqueza

    e de vaidade, porque incapazes de resistir ao mecanismo do mundo que as ameaa,

    inadequadas fora criadora e ao mesmo tempo destrutiva da existncia.

    A melancolia, a sensao oprimida de sentir-se vtima, vivida como culpa.

    Esse sentimento de culpa no menospreza o progresso e suas conquistas, nem se

    volta a idealizaes nostlgicas e falsas do antigo, mas reala o nexo estreitssimo

    entre o progresso e a violncia das transformaes que o realizam, o perigo que

    ameaa o indivduo, que corre o risco de ser destronado e tragado em um ano-

    nimato indistinto.

    A arte arroga-se a prpria anttese da prosa moderna e simultaneamente o

    prprio enredamento desta ltima, a prpria estranheza vida e a impossibili-

    dade de enraizar-se nesta, a prpria falta de atualidade epocal. O moderno surge

    marcado pela falta de um cdigo tico e esttico, de um fundamento, de um valor

    central e fundante que d sentido e unidade multiplicidade da vida, que parece

    um acervo desconexo e desarticulado de objetos indiferentes. O romance nasce

    dessa desconexo e a reproduz. Ele urbano e a grande cidade moderna, emble-

    ma do moderno, logo aparece como alegoria da caducidade, de um tumultuoso

    progresso, que transforma o mundo e constri realidades ciclpicas, mas tambm

    e sobretudo acumula runas.

    O romance com frequncia uma mistura de celebrao e crtica da moder-nidade; o que mais conta que, assim, esta ltima se torna sua respirao, a cir-

    culao de seu sangue. O romance simultaneamente a cruel representao e a

    manifestao do novo demnio do mundo moderno, o consumo. O romance o

    gnero literrio burgus por excelncia e a burguesia criadora e protagonista do

    mundo moderno e de seu nexo de produo e consumo; ela produz e consome

    romances, em um ciclo e em um ritmo que torna difcil dizer como, de resto, em

    toda atividade do homo oeconomicus se a demanda que condiciona a oferta ou

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    vice-versa. A burguesia escreve Giuliano Baioni, vive diretamente a instabilidade

    do moderno, aquela variabilidade da vida histrica destacada por Simmel.

    O romance criatura e voz dessa instabilidade insere a literatura no me-canismo do consumo e da concorrncia, no mercado, realidade deliciosamente

    Schlegel observa que o Belo e o objetivo do classicismo foram substitudos pelos

    modernos interessante, novo e excntrico, que devem estimular com surpresas

    portanto, necessitados de solicitaes e estmulos de intensidade crescentes, como

    no uso de uma droga que reclama doses maiores e novas combinaes.

    Inventor do romantismo, Schlegel teoriza a arte da vanguarda contemporanea-

    mente, com suas experimentaes necessariamente cada vez mais radicais e a pro-

    pense-se na contaminao do romntico promovida por Schlegel apropria-se

    radicalmente do consumo, destino do moderno, e integra-se, em diversos nveis,

    ao poeticamente grandioso.

    Ele ainda se apropria do novo sentimento do tempo caracterstico do moder-

    no, tornando-o sua estrutura profunda; a conscincia peculiar, nova em relao

    tradio precedente, do efmero, da caducidade, do tempo entendido como

    melancolia. O grande tema da moda presente emManon Lescaut, bem como

    em tantas pginas de Goethe, para mencionar s alguns exemplos combina

    seduo e caducidade, eros, artifcio e instabilidade tornados substncia do vivi-

    do. Por esse caminho surgiro obras-primas da literatura romanesca e universal,

    de O vermelho e o negro a Niels Lyhne, deA educao sentimentala Oblomov,

    odisseias extraordinrias do indivduo moderno expatriado da transcendncia

    e sujeito a um tempo que no chega a cumprir-se, a uma vida que um mero

    dissipar da vida mesma.

    O romance tambm impensvel sem a nova funo do dinheiro, que nascecom a ascenso da burguesia. O dinheiro se torna um protagonista da literatura,

    especialmente narrativa; o grande romance ingls setecentista para dar um exem-

    plo apenas articula sua aventura tambm levando em conta a nova qualidade do

    a existncia, elimina fronteiras e ergue outras, rompe e forja grilhes. O dinheiro

    parece escorrer como sangue nas veias, at confundir-se com a vida, com as pulses

    do indivduo liberto da tradio e entregue ao mundo, que o eleva ou avilta.

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    Em uma passagem do Fausto goethiano, Marx via uma das primeiras expres-

    ses da nova natureza demonaca do dinheiro e uma das primeiras intuies da

    essncia do capitalismo, no qual o dinheiro no se limita a oferecer bens, mastransforma a pessoa, torna-se um modo de ser e torna-se sobretudo instrumento

    de uma permutabilidade universal, que pode converter uma coisa tambm afetos

    e valores em outra qualquer. De Defoe a Goethe ou a Balzac, para citar apenas

    alguns nomes, o dinheiro e os seus diversos, at opostos, empregos o consumo,

    o investimento, a especulao so inseparveis do quadro de seduo e violncia

    que a literatura com sentimentos e opinies diversos, de acordo com os autores,

    as pocas e as situaes traa, narrando a vida, o encontro e o desencontro entre

    o indivduo e a realidade.

    A nova concepo do dinheiro indissolvel do gnero literrio por exce-

    lncia que narra essa modernidade capitalista, o romance. Este ltimo se torna

    inclusive um protagonista do mercado, com bestsellers (impensveis em pocas

    precedentes) comoAs aventuras de Robinson Crusoou Os sofrimentos do jovem

    Werther, mas, acima de tudo, assume e interioriza o mercado na prpria estrutura.

    A literatura austraca constitui um caso parte. Nela, esse sentido do dinheiro

    est quase ausente e a economia embora cultivada, com resultados excepcio-

    nais, por grandes escolas de pensamento, da era teresiana ao sculo nunca

    se torna uma Weltanschauung, uma viso de mundo, mas permanece apesar

    arte de equilibrar os balanos, arte requintada a ser aprendida com rigor e ne-

    cessria, mas para criar as premissas que tornam possvel a realizao de valores

    que no pertencem economia. Na literatura austraca do sculo o dinheiro

    exorcizado, gasto na taberna, recebido como aposentadoria, imobilizado na

    propriedade agrria; nunca investido, nunca se torna uma substncia vital,

    como para as personagens de Balzac ou para Fausto, com sua emancipatria e

    devastadora atividade empresarial.

    No por acaso que a literatura austraca oitocentista, grande em outros g-neros, quase no conhea o romance. A cultura austraca, que no sculo ,

    -

    dade, permeadas pela f no progresso imanente histria, torna-se uma cultura de

    em crise. A cultura austraca torna-se, ento, um posto avanado e um sismgrafo

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    dir Karl Kraus , um laboratrio da interminvel anlise que decompe cada

    unidade, a comear pelo prprio indivduo; um observatrio da incerteza, da in-

    determinao, do caos probabilstico que marcam a civilizao contempornea.A literatura austraca ter ento grandes romances-antirromance; no afrescos

    sociais, mas afrescos da desintegrao do tecido social e de toda unidade, inclusive

    atentssima fenomenologia do moderno, tanto mais quanto menos aceita suas

    pretenses globais; ningum entendeu como Karl Kraus, por exemplo, o poder

    miditico e a transformao dos meios de informao, mas exatamente por isso

    aquela civilizao relutava a crer que a leitura dos jornais pudesse substituir a prece

    da manh, como queria Hegel, mesmo quando acabava de proferir aquelas preces ou

    no mais soubesse a quem as enderear. Exatamente por isso, a cultura austraca foi

    da realidade que com frequncia absolutiza a realidade presente, considerando-a

    a nica imaginvel contraps-se, com Musil, o sentido da possibilidade, o pensa-

    mento de que as coisas tambm poderiam muito bem ser de outro modo.

    Mesmo esse romance radicalmente inovador e destruidor das estruturas narra-

    tivas impensvel sem a transformao do real e mais ainda da subjetividade que

    surge no mundo moderno; sem o processo de fragmentao e decomposio

    que invadiu todos os campos e sobretudo o eu, tornado uma anarquia de tomos

    (Nietzsche), um outro (Rimbaud), um homem sem qualidades (Musil), ou

    um conjunto de qualidades sem o homem. Todo nosso ser, escreve Musil, no

    passa de um delrio de muitos.

    Na Teoria do romance obra-prima ensastica ainda fundamental para enten-

    der o que ocorreu vida e narrativa da vida nos ltimos dois sculos , Lukcs

    mostra como o romance move-se em um mundo no qual, diferena do universo

    da pica, o sentido no mais dado, imanente s coisas, ainda que latente, masdeve ser construdo quando no se mostra a impossibilidade de constru-lo,

    como ocorrer progressivamente. No frontispcio do romance moderno parece

    estar, como epgrafe recapitulativa, aquela frase terrvel de Ibsen segundo a qual

    pretender viver viver verdadeiramente para megalmanos. Naturalmente,

    Ibsen queria dizer que tal megalomania, a busca da verdadeira vida, necessria,

    mas que somente a conscincia do quanto ela seja temerria e difcil pode permitir

    aproximar-se dessa vida verdadeira.

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    O romance a peripcia dessa busca, a odisseia de sua desiluso ou chegada,

    apesar de tudo, plenitude de sentido; nascido da desagregao da pica, ele

    principalmente o grande romance oitocentista tambm reconstruo de umaqualidade dela, de uma totalidade de vida.

    O romance-epopeia no nasce da prosa do mundo como queria Hegel, de

    concebida em termos mtico-religiosos; ou seja, nasce de uma civilizao agrria

    ou at pr-burguesa, pr-industrial. A pica moderna, ou seja, a arte capaz de

    alcanar o todo unitrio da vida acima das cises, no se reconcilia com a prosa

    social, mas a refuta e a transcende. O grande flego de Tolsti, que condensa a lei

    do todo na mazurca de Natasha, est enraizado em uma totalidade natural, ou seja,

    em uma sociedade e em uma ideologia que lhe correspondem.Na literatura americana, para dar um outro exempo, a totalidade pica no

    expressa pelo novel, que se concentra na esfera social, mas pelo romance, afas-

    tado da verossimilhana realista-social ou psicolgica e aberto viso intuitiva

    e potica do mundo, como a pequena Pearl emA letra escarlate, de Hawthorne.

    Epopeia no o romance burgus, mas o romance mtico-fantstico, livre dizia

    Henry James da sujeio casualidade, vulgaridade e ao prosaico cotidiano

    e insubordinado no apenas s determinaes sociais, mas tambm aos proble-

    mas extremos e s coisas ltimas, s interrogaes sobre o destino, a culpa e a

    liberdade.

    Essa pica, ainda prxima da natureza e ainda no fagocitada pela segunda

    natureza da tcnica e das relaes sociais, frequentemente incompleta, deixa o

    telhado para o futuro como diz Melville porque tateia em busca de um sentido

    ltimo para a vida; no o possui de incio, como o epos da tradio, mas o procura

    rompendo todo limite social prosaico. Esse epos pode narrar, comoMoby Dick ou,

    mais tarde, os livros de Faulkner, a aniquilao da vida, mas no a extino de seu

    epos desenvolve-se contra o romance, s

    margens ou fora da civilizao burguesa: na narrativa sul-americana, por exemplo,Grande serto: veredas, do brasileiro

    Joo Guimares Rosa, epopeia de uma vida errante no serto que nunca perde, no

    -

    das relaes de trabalho, tampouco a negao subversiva, irnico-vanguardista,

    em um universal que une o mltiplo.

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  • 7/30/2019 Romance Claudio

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    O romance um paradoxo, uma lana de Aquiles que fere e cura; tecido

    com as laceraes do moderno e simultaneamente abarca-o em uma nova

    totalidade. De Hugo a Dickens, a Tolsti ou a Dostoivski o romance, nascidocomo fragmento da desagregao da pica, parece produzir aquela unidade e

    totalidade de vida que o moderno, de quem ele provm como Eva da costela

    de Ado, tende a despedaar; celebra ideais e narra paixes, debate grandes

    questes sociais, mas tambm fornece informaes e notcias, um mapa de

    fantasia e at de conhecimento. Ou ele exaspera a negatividade (categoria subs-

    tancialmente criada pelo moderno), a dissociao entre o indivduo e a vida,

    a sua incompatibilidade.

    O romance do eu, desdeAnton Reiser, de Moritz, o romance da negao do

    eu, de sua represso e de sua anulao: alguns dos maiores heris do romance

    moderno ou melhor, daqueles que vivem e representam a crise da modernidade

    com m maisculo, de seus projetos de domnio da terra e da Histria so, de

    algum modo e de diferentes formas, de acordo com os perodos e os contextos

    culturais, personagens sem mundo e sem histria, de Frdric Moreau a Oblomov,

    de Niels Lyhne ao escrivo Bartleby, de Josef K. a Peter Kien. Grande mundo pico

    e isolado fragmento inacessvel convivem por vezes no mesmo autor, como em

    Melville, que escreveuMoby Dick mas tambm Bartleby, o escrivo.

    Nada e ningum escrutou a fundo o abismo, o impasse, Cila e Carbdes sem

    remisso do moderno como o romance; o riso de Zeno, que s pode provir

    de um romance, a derradeira praia, tanto mais trgica quanto mais irnica e

    elusiva, do niilismo ocidental. Sem este ltimo, o romance europeu ao menos

    como o conhecemos no existiria; seu protagonista, sob tantas, to diferentes e

    antitticas mscaras, o super-homem nietzschiano, o sujeito que se est trans-

    formando em uma mutao antropolgica radical. Mas o super-homem, como

    dizia o prprio Nietzsche, est intimamente associado ao homem do subsolo de

    Dostoivski. Como Nietzsche, este ltimo efetivamente divisa em seu tempo e no

    futuro um futuro que, em parte, ainda o para ns, mas, em parte, j nosso

    a diferena que, para Nietzsche, como lembra Vittorio Strada, trata-se de uma

    libertao a ser festejada e para Dostoivski, de uma doena a ser combatida. Em

    Dostoivski, em Tolsti e em tantos outros grandes autores do romance (ainda

    que no apenas do romance, obviamente, mas da literatura em geral) este ltimo

    o cenrio do advento do niilismo, fato da modernidade; de seu triunfo, de sua

    catstrofe e da resistncia a ele.

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  • 7/30/2019 Romance Claudio

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    Alm disso, no romance, a realidade moderna constitui a prpria estrutura

    experimental, tentacular como ela:

    No damos, portanto, especial importncia ao nome da cidade. Como toda metrpole,

    era constituda de irregularidades, alternncias, precipitaes, intermitncias, choques

    de coisas e de eventos e, de permeio, momentos de silncio abissal; de trilhos e de

    terras virgens, de uma grande pulsao rtmica e do eterno desencontro e confuso

    de todos os ritmos; e no conjunto assemelhava-se a uma bexiga pulsante posta em

    um recipiente formado de casas, leis, regulamentos e tradies histricas.

    Essa estrutura mltipla caracteriza tambm o protagonista de O homem sem qua-lidades, o grande romance interminvel da ilimitada realidade contempornea.

    Em muitos romances de Berlin Alexanderplatzs obras de Dos Passos e tantos

    outros exemplos a complexidade, a organizao, a desconexo e o caleidoscpio

    da vida na metrpole tornam-se montagem e colagem narrativa, estilo e respiro da

    narrao. Em Karl e o sculo vinte, Rudolf Brunngraber transforma em romance

    O romance no s mimese do mundo moderno mas tambm se ps como

    e

    avanada que a literatura alcanou , escritores como Musil, Joyce, Proust, Sve-

    vo, Mann, Broch, Faulkner e outros exigiram da narrativa um conhecimento do

    elas, com sua especializao extrema que tornava cada uma inacessvel aos cultores

    de todas as outras e mais ainda ao homem mdio, despedaaram todo sentido de

    mostrando como os homens vivem o mundo desagregado, poderia e pode alcanaro sentido da realidade e de sua dissoluo, imitada mas tambm obtida e dominada

    por intermdio das mesmas formas experimentais do narrar, da desagregao e

    recriao das estruturas narrativas.

    impossvel imaginar o romance sem o mundo moderno? uma pergunta

    absurda, cuja resposta, absurdamente, corre o risco de distender-se em um pa-

    norama e uma histria do romance moderno. Hoje, uma outra questo posta

    em seu lugar, talvez com maior legitimidade e sobretudo com mais inquietao:

    13 O romance concebvel sem o mundo moderno?

  • 7/30/2019 Romance Claudio

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    o mundo moderno, a modernidade com m maisculo, acabou ou est acabando,

    em uma guinada histrica de enormes dimenses, que s pode ser comparada ao

    Por quase dois sculos, a mais alta literatura ocidental ps-se, nos confrontos

    da histria, como o outro lado da lua, como a zona deixada sombra do devir e do

    uma grande ausncia na vida e na histria, era a exigncia de algo irredutivelmente

    outro, de um resgate messinico e revolucionrio, alis, negado por toda revoluo

    historicamente ocorrida. Desde seu nascimento ou seja, desde o romantismo

    , a literatura contempornea marcada pelo sen-

    impedindo-o de realizar plenamente a prpria personalidade em acordo com aevoluo social e fazendo-o sentir a impossibilidade e a ausncia da vida verdadeira,

    o exlio dos deuses e a fragmentao de sua prpria existncia. O progresso social,

    absolutamente desprezado pela grande literatura inovadora, ao contrrio do que

    ocorre com as nostalgias reacionrias de um romantismo amaneirado, evidenciava

    ainda mais o mal-estar e a incerteza do nico.

    O romance a literatura em geral foi essa voz do moderno, a sua poesia, o seu

    nveis suplantou toda utopia e toda revoluo e, como previra Nietzsche, o prprio

    homem est mudando radicalmente. uma mudana que acontece em perodos

    muito curtos e no mais em milnios como no passado. Em um mundo onde a

    onde a virtualidade substitui a suposta realidade, onde os imateriais bits como

    so chamados substituem os tomos, o que pode fazer ou ser o romance?

    Por enquanto, genericamente, parece que reluta em tomar conhecimento dessa

    inverso e antes parece recuar em relao s grandes experimentaes narrativas do

    no plano quantitativo, na absoluta ignorncia do mundo e de sua transformao, notranquilo desconhecimento da realidade; a maior parte dos romances assemelha-

    se a aparelhos antiquados e obsoletos. Nesse sentido, o romance mdio cada vez

    mais se assemelha tambm na ptina nobre de sentimentos perenemente huma-

    nos ostentados e garantidos como se nada ocorresse queles gneros literrios

    envelhecidos e antiquados que o grande romance moderno, ao irromper violen-

    tamente em cena, havia varrido. Nesse recuo ou regresso h uma capitulao

    potncia estril do existente enquanto tal, como escrevia Lukcs nas notas para o

    14 O romance concebvel sem o mundo moderno?

  • 7/30/2019 Romance Claudio

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    livro inacabado sobre Dostoivski, em cujas obras em sua opinio, no se trata

    em absoluto de romances ele via e esperava o surgimento de um novo mundo

    resgatado da iniquidade (de que o escritor russo teria sido o Homero e o Dante)e de um novo modo de narr-lo.

    No lugar desse novo epos utpico, um sculo aps essa pgina de Lukcs, parece

    triunfar um supermercado poltico-social, no qual os romances com frequncia

    remakes da tradio so produtos secundrios, mas respeitados e vendveis.

    Talvez o romance termine em uma autopardia involuntria. Mas esta, como dizia

    Kipling, uma outra histria.

    15 O romance concebvel sem o mundo moderno?

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